Platão - O Banquete (Os Pensadores, 1973)
Platão - O Banquete (Os Pensadores, 1973)
Platão - O Banquete (Os Pensadores, 1973)
DIÁLOGOS
O BANQUETE - FÉDON - SOFISTA - POLÍTICO
Traduções de:
JosÉCAVALCANTE DE SouzA (O Banquete)
JORGE PALEIKAT E JoÃo CRUZ COSTA {Fédon, Sofista, Político)
i 1972
O BANQUETE . . . . . . . •. . . . . . . . . . . . . . . •. . . . . . . . . . . . . . . . . . . •. . . 7
FÉDON .......•••.•.•..••.......••..•..•••..•..•.....•.... 61
SOFISTA .•............................................•... 135
POLITICO . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
O BANQUETE
Texto, tradução e notas
10_ PLATÃO
tradução nada tenha de excepcional, e que o seu autor, em muitos torneios de fra-
ses e em muita escolha de palavra, tenha sido vítima da falta de disciplina e de
tradição que está porventura alegando nesse setor da nossa atividade intelectual.
No entanto, em alguma passagem ele terá talvez acertado, e esse parco resultado
poderá dar uma idéia do que seria uma reação especial nossa a um texto helêni-
co, que conhecemos geralmente através da sensibilidade e da elucubração do
francês, do inglês, do alemão, etc. Nossa língua tem necessariamente uma malea-
bilidade especial, uma peculiar distribuição do vocabulário, uma maneira pró-
pria de utilizar as imagens e de proceder às abstrações, e todos esses aspectos da
sua capacidade expressiva podem ser poderosamente estimulados pelo verda-
deiro desqfio que as qualidades de um texto grego muitas vezes representam para
uma tradução. A linguagem fllasófica sobretudo, e em particular a linguagem de
Platão, oferece sob esse aspecto um vastíssimo campo para experiências dessa
natureza. Alguns exemplos do Banquete ilustram muito bem esse tipo especial de
dificuldades que o tradutor pode encontrar e para as quais ele acaba muitas vezes
recorrendo às notas explicativas. No entanto, se estas são inevitáveis numa tra-
dução moderna, não é absolutamente inevitável que sejam as mesmas em todas
as línguas modernas. Fazer com que se manifestasse nesta tradução justamente a
diferença que acusa a reação própria e o caráter de nossa língua, eis o objetivo
sempre presente do tradutor.
Quanto às pequenas notas explicativas, dão elas naturalmente ·um rápido
esclarecimento sobre nomes e fatos da civilização· helênica aparecidos no con-
texto do Banquete, mas o que elas almejam sobretudo é ajudar à compreensão
desta obra platônica, ao mesmo tempo em seus trechos característicos e em seu
conjunto. Alguns anos de ensino de literatura grega levaram-me à curiosa cons-
tatação da impaciência e desatenção com que uma inteligência moderna lê um
diálogo platônico. Quem quiser por si mesmo tirar a prova disso, procure a uma
primeira leitura resumir qualquer um desses diálogos, mesmo dos menores, e de-
pois confira o seu resumo com uma segunda leitura. Foi a vontade de ajudar o
leitor moderno nesse ponto que inspirou a maioria das notas.
Finalmente devo assinalar que, não obstante a modéstia de conteúdo e de
proporções deste trabalho, eu não teria sido capaz de efetuá-lo sem a constante
orientação do Prof. Aubreton, cujas observações levaram-me a sucessivos reto-
ques, particularmente na tradução e na confecção das notas. .,1 ele, por conse-
guinte, quero deixar expressos, com a minha admiração, os mais sinceros
agradecimentos.
J. C. de Souza
Apolodoro 1 e um Companheiro
seus discursos sobre o amor, como alguma coisa, eu era mais miserável
foram eles. Contou-mos uma outra que qualquer outro, e não menos que
pessoa que os tinha ouvido de Fênix, o tu agora, se crês que tudo se deve fazer
filho_de Filipe, e que disse que também de preferência à filosofia" 6 • "Não fi-
tu sabias. Ele porém nada tinha de ques zombando, tornou ele, mas antes
claro a dizer. Conta-me então, pois és dize-me quando se deu esse encontro".
o mais apontado a relatar as palavras "Quando éramos crianças ainda, res-
do teu companheiro. E antes de tudo, pondi-lhe, e com sua primeira tragédia
5 Entre a data da· realização do banquete (v.
1 O interlocutor de Sócrates não está só. infra 173a) e a da sua narração ,por Apolodoro
(N. doT.) medeiam portanto muitos anos. Tanto quanto
2 Porto de Atenas, ao sul do Pireu, a menos de um indício cronológico, essa notícia vale como
6 km da cidade. (N. do T.). uma curiosa ilustração da importância da me-
3 A brincadeira consiste no tom solene da inter- mória na cultura da época. V. infra 173 b e cf.
pelação, dado pelo patronímico e pelo emprego Fédon, 57 a-b (N. do T.)
do demonstrativo em vez do pronome pessoal. 6 O entusiasmo de Apolodoro, raiando o ridí-
(N. doT.) culo, constitui sem dúvida o primeiro traço dó
4 Literalmente, jantar coletivo. Depois da refei- retrato que o Banquete nos dá de um Sócrates
ção propriamente dita é que havia o simpósio, capaz de suscitar desencontradas adesões, e nes-
i.e., "bebida em conjunto", acompanhado das se .sentido é uma hábil antecipação da atitude
mais variadas diversões, entre as quais as com- de Alcibíades, também ridícula, mas noutra
petições literárias. (N. do T.) perspectiva. Cf. infra 222 c-d (N. do T.)
14 PLATÃO
vós vos conte, devo fazê-lo. Eu, aliás, ço, conforme me ia contando Aristo-
quando sobre filosofia digo eu mesmo demo, que também eu' tentarei contar-
algumas palavras ou as ouço de outro, vos.
afora o proveito que creio tirar, ale-
gro-me ao extremo; quando, porém, se Disse ele que o encontrara Sócrates,
trata de outros assuntos, sobretudo dos banhado e calçado com as sandálias, o
vossos, de homens ricos e negociantes, que ·poucas vezes fazia; perguntou-lhe
à mim mesmo me irrito e de vós me então onde ia assim tão bonito.
apiedo, os meus companheiros, que Respondeu-lhe Sócrates: - Ao jan-
pensais fazer algo quando nada fazeis. tar em casa de Agatão. Ontem eu o
d Talvez também vós me considereis evitei, nas cerimônias da vitória, por
infeliz, e creio que é verdade o que pré- medo da multidão; mas concordei em
sumis;· eu, todavia, quanto a vós, não comparecer hoje. E eis por que me
presumo, mas bem sei. .embelezei assim, a fim de ir belo à casa
COMPANHEIRO . de um belo. E tu - disse ele - que tal
- És sempre o mesmo, Apolodo- te dispores a ir sem convite ao jantar?
1 Em 416, no arcontado de Eufemo. V. supra - Como quiseres - tomou-lhe o
nota 5. (N. do T.)
8 Os que formavam o coro de sua tragédia.
outro.
(N. doT.) - Segue-me, então - continuou
9Tal como o próprio Sócrates (v. infra 174a). Sócrates - e estraguemos o provér-
Sem dúvida, outra indicação do fascínio que
Sócrates exercia sobre os amigos. (N do T.) bio, alterando-o assim: "A festins de
O BANQUETE 15
Deixai-o ! É um hábito seu esse 1 5 : às dos copos que pelo fio de lã escorre 1 7
vezes retira-se onde quer que se encon- do mais cheio ao mais vazio. Se é
tre, e fica parado. Virá logo porém, assim também a sabedoria, muito
segundo creio. Não o incomodeis por- aprecio reclinar-me ao teu lado, pois
tanto, mas deixai-o. creio que de ti serei cumulado com
- Pois bem, que assim se faça, se é uma vasta e bela sabedoria. A minha
teu parecer - tornou Agatão. - E seria um tanto ordinária, ou mesmo
vocês, meninos, atendam aos conviva_s. duvidosa como um sonho, enquanto
Vocês bem servem o que lhes apraz, que a tua é brilhante e muito desenvol-
quando ninguém os vigia, o que jamais vida, ela que de tua mocidade tão
fiz; agora portanto, como se também intensamente brilhou, tornando-se an-
eu fosse por vocês convidado ao jan- teontem manifesta a mais de trinta mil
tar, como estes outros, sirvam-nos a gregos que a testemunharam.
fim de que os louvemos. - És um insolente, ó Sócrates -
- Depois disso - continuou Aris- disse Agatão. -_ Quanto a isso, logo
todemo - puseram-se a jantar, sem mais decidiremos eu e tu da nossa
que Sócrates entrasse. Agatão muitas sabedoria, tomando Dioniso por
vezes manda chamá-lo, mas o . amigo juiz 1 8 ; agora porém, primeiro apron-
não o deixa. Enfim ele chega, sem ter ta-te para o jantar.
demorado muito como era seu costu- - Depois disso - continuou Aris- 176 •
me, mas exatamente quando estavam todemo - reclinou-se Sócrates e jan-
no meio da refeição. Agatão, que se tou como os outros; fizeram então
encontrava reclinado sozinho no últi- libações e, depois dos hinos ao deus e
mo leito 1 6 , exclama: - Aqui, Sócra- dos ritos de costume, voltam-se à bebi-
tes! Reclina-te ao meu lado, a fim de da. Pausânias então começa a falar
que ao teu contato desfrute eu da sábia mais ou menos assim: - Bem, senho-
idéia que te ocorreu em frente de casa. res, qual o modo mais cômodo de
Pois é evidente que a encontraste, e bebermos? Eupor mim digo-vos que
que a tens, pois não terias desistido estou muito indisposto com a bebe-
antes. deira de ontem, e preciso tomar fôlego
Sócrates então senta-se e diz·: - - e creio que também a maioria dos .
Seria bom, Agatão, se de tal natureza senhores, pois estáveis lá; vêde então
fosse a sabedoria que do mais cheio de que modo poderíamos beber o mais
escorresse ao mais vazio, quando um comodamente possível.
ao outro nos tocássemos, como a água Aristófanes disse então: - É bom o
15 _É___Clll'.ÍOsa essa explicação de um hábito so~ que dizes, Pausânias, que de qualquer
crático a amigos de Sócrates, tanto mais que, modo arranjemos um meio de facilitar
um pouco abaixo (dl-2), Agatão revela estar
familiarizado com ele. Isso denuncia a ficção
J?latônica, e em particular a intenção de sugerir 17 Sem dúvida um processo de purificação da
desde já a. capacidade socrática para as longas água. Aristófanes (Vespas, 701-702) refere-se
concentrações de espírito, como a que Alcibía- ao mesmo processo, mas com relação ao óleo.
des contará em seu discurso (220c-d). (N. do T.) (N. do T.)
16 Os divãs do banquete se dispunham em for- 18 Patrono dos concursos teatrais e deus do vi-
ma de uma ferradura. No extremo esquerdo fi- nho, Dioniso é apropriadamente mencionado
cava o anfitrião, que punha à sua direita o hós- por Agatão como o árbitro natural da próxima
pede de honra. ~ o lugar que Agatão oferece a competição entre os convivas, no simpósio pro-
Sócrates. (N. do T.) priamente dito. (N. do T .)
O BANQUETE 17
a bebida, pois também eu sou dos que mas ~bendo cada um a seu bel-pra-
ontem nela se afogaram. zer2,.
Ouviu-os Erixímaco, o filho de Acú- - Como então - continuou Erixí-
meno, e lhes disse: - Tendes razão ! maco _- é isso que se decide, beber
Mas de um_de_y_ós ainda preciso ouvir cada um quanto quiser, sem que nada
como se sente para resistir à bebida; seja forçado, o que sugiro então é que
não-é, Agatão? mandemos embora a flautista que aca-
- Absolutamente - disse este - bou de chegar, que ela vá flautear para
também eu não me sinto capaz. si mesma, se quiser, ou para as mulhe-
- Uma bela ocasião seria para res lá dentro; quanto a nós, com dis-
nós, ao que paréce - continuou Erixí- cursos devemos fazer nossa reunião
maco - para mim, para Aristodemo, hoje; e que discursos - eis o que, se
Pedro e os outros, se vós os mais capa- vos apraz, desejo propor-vos.
zes de beber desistis agora; nós, com Todos então declaram que lhes 177 a
Amor. E Parmênides diz da sua ori- resse de se fazer uma cidade ou uma
gem expedição de amantes e de amados,
não haveria melhor maneira de a cons-
tituírem senão afastando-se eles de
bem antes de todos os deusespensou 2 9 tudo que é feio e porfiando entre si no
emAmor. apreço à honra; e quando lutassem um 179 •
r
ao lado do outro, tais soldados vence-
- E com Hesíodo também concorda riam, por poucos que fossem, por
Acusilau 3 0 • Assim, de muitos lados se assim dizer todos os homens 3 1 • Pois
reconhece que Amor é entre os deuses um homem que está amando, se deixou
o mais antigo. E sendo o mais antigo é seu posto ou largou suas armas, aceita-
para nós a causa dos maiores bens. ria menos sem dúvida a idéia de ter
Não sei e11, com efeito, dizer que haja sido visto pelo amado do que por todos
maior bem para quem entra na moci- os outros, e a .isso preferiria muitas
r dade do que um bom amante, e para vezes morrer'. E quanto a abandonar o
um amante, do que o seu bem-amado. amado ou não socorrê-lo em perigo,
ninguém há tão ruim que · o próprio
Aquilo que, com efeito, deve dirigir
Amor não o torne inspirado para a vir-
toda a vida dos homens, dos que estão
tude, a ponto de ficar ele semelhante
prontos a vivê-la nobremente, eis o que
ao mais generoso de natureza; e sem
nem a estirpe pode incutir tão ·bem,
mais rodeios, o que disse Homero "do
nem as honras, nem a riqueza, nem ardor que a alguns heróis inspira o
d- nada mais, como o amor. A que é deus" 3 2 , eis o que o Amor dá aos
então que me refiro? À vergonha do amantes, como um dom emanado de si
que é feio e ao apreço do que é belo. mesmo.
Não é com efeito possível, sem isso, E quanto a morrer por outro, só o
nein cidade nem indivíduo produzir consentem os que amam, não apenas
grandes e belas obras. Afirmo eu então os homens, mas também as mulheres.
qué todo homem que ama, se fosse des- E a esse respeito a filha de Pélias,
coberto a fazer um ato vergonhoso, ou Alceste 3 3 , dá aos gregos uma prova
a sofrê-lo de outrem sem se defender 31 Se não é isso uma alusão ao batalhão sagra-
por covardia, visto pelo pai não se do dos tebanos, que se notabilizou em Leutras
(371), uns dez anos depois da provável publi-
envergonharia tanto, nem pelos amigos cação do Banquete, é pelo menos um indício de
nem por ninguém mais, como se fosse que essa idéia já corria o mundo grego, origi-
nária de cidades dóricas. (N. do T.)
visto pelo bem-amado. E isso mesmo é 32 Homero, Ilíada, X, 182 r{;; o' É~1r11€uo€
o que também no amado nós notamos, µé11oç -yXaruKwmç '.-\1Hw11 = inspirou-lhe ardor
(a Diomedes) Atena de olhos brilhantes; e XV,
que é sobretudo diante dos amantes 262: WÇ €lrrWP €µtrP€UO€ µÉPO<; µÉ')'O! trOtµÉPt
que ele se envergo!!~ª' quando sur- Xai:;,, assim tendo dito, inspirou um
grande ardor no pastor de povos. (N. do T.)
preendido em algum ato vergonhoso.
"33 Casada com Admeto, rei de Feres, na Tessá-
Se por conseguinte ~gum meio ocor- lia,Âlceste aceita morrer em lugar do esposo,
quando os próprios pais deste se tinham recusa-
29 Isto é, a deusa Justiça (Simpl. Fís. 39, 18 do ao sacrifício. Mas pouco depois de sua mor-
Diels). (N. do T.) te, Hércules, hospedado por Admeto e informa-
30 Natural .de Argos (século VI a.C.), Acusilau doaõ-ooorrido, desce ao Hades e traz, Alceste
escreveu várias genealogias de deuses e homens. âe volta. :e. o tema da bela tragédia de Eurípe-
(N. doT.) des, que traz o nolne da heroína. (N. do T.)
20 PLATÃO
mãe, os quais ela tanto excedeu na morte; assim é que, admirados a mais
afeição do seu amor que os fez apare- não poder, os deuses excepcionalmente
cer como estranhos ao filho, e parentes o honraram, porque em tanta conta ele
apenas de nome; depois de praticar ela tinha o amante. Que Ésquilo sem dúvi-
~sse ato, tão belo pareceu ele não só da fala à toa, quando afirma que Aqui-
aos homens mas até aos. deuses que, les era amante de Pátroclo, ele que era
embora muitos tenham feito muitas mais belo não somente do que este
ações belas, foi a um bem reduzido nú- como evidentemente do que todos os
mero que os deuses concederam esta heróis, e ainda imberbe, e além disso
honra de fazer do Hades subir nova- muito mais novo, como diz Homero.
d mente sua alma, ao passo que a dela Mas com efeito, o que realmente mais
efei fizeram subir, admirados do seu admiram e honram os deuses é essa
gesto; é assim que até os deuses hon- virtude que se forma em tomo do
ram ao máximo o zelo e a virtude no amor, porém mais ainda admiram-na e
-amor. A Orfeu, o filho de Eagro, eles ó apreciam e recompensam quando é o
fizeram voltar sem o seu objetivo, pois amado que gosta do amante do que
foi um espectro o que eles lhe mostra- quando é este daquele. Eis por que a
ram da mulher a que vinha, e não lha Aquiles eles honraram mais do que a
deram, por lhes parecer que ele se Alceste, enviando-o às ilhas dos bem-
acovardava, citaredo que era, e não aventurados.
ousava por seu amor morrer como Assim, pois, eu afirmo que o Amor é
Alceste, mas maquinava um m.eio de dos deuses o mais antigo, o mais hon-
penetrar vivo no Hades 3 4 • Foi real- rad~ e o mais poderoso para a aquisi-
mente por isso que lhe fizeram justiça, ção da virtude e da felicidade entre os
, e determinaram que sua morte ocor- homens 3 5 , tanto em sua vida como
resse pelas mulheres; não o honraram após sua morte."
como a Aquiles, o filho de Tétis, nem o De Pedro foi mais ou menos este o
enviaram às ilhas dos bem-aventu- discurso que pronunciou, no dizer de
rados; que aquele, informado pela mãe Aristodemo; depois de Pedro houve al-
de que morreria se matasse Heitor, guns outros de que ele não se lembrava
enquanto que se o não matasse voltaria bem, os quais deixou de lado, pas-
à pátria onde morreria velho, ,-teve a sando a contar o de Pausânias. Disse
este: "Não me parece bela, ó Pedro, a
34 Não é essa evidentemente a versão comum da
lenda. Descendo ao Hades para trazer de volta maneira como nos foi proposto o. dis-
sua querida Eurídice, Orfeu consegue convencer curso, essa simples prescrição de um
a própria Perséfone, rainha daquele reino, gra-
ças aos doces acentos de sua música. Mas esta elogio ao Amor. Se, com efeito, um só
lhe impõe uma condição: Orfeu não deve olhar fosse ó ·Amor, muito bem estaria; na
para trás, enquanto não subir à região da luz.
Já quase ao fim da jornada, porém, o músico realidade porém, não é ele um só; e
duvida da sinceridade de Perséfone e olha para
trás: logo sua amada desaparece, e para··sem- 35 Confrontar essa peroração com o final do
pre. A lembrança constante de Eurídice faz-lhe discurso de Sócrates, particularmente 212a-b.
esquecer as outras mulheres que, enciumadas, O poder do amor, a virtude .e a felicidade têm
matam-no. (N. do T.) conteúdo diferente nos dois discursos. (N. do T.)
O BANQUETE 21
d não sendo um só, é majs acertado pri- res 3 7 que os jovens, e depois o que
meiro dizer qual o que se deve elogiar. neles amam é mais o corpo que a alma,
Tentarei eu portanto corrigir este e ainda dos mais desprovidos de inteli-
senão, e primeiro dizer qual o Amor gência, tendo em mira apenas o efetuar
que se deve elogiar, depois fazer um o -ato, sem se preocupar se é decente-
elogio digno do deus. Todos, com efei- mente ou não; daí resulta então que
to, sabemos que ~~l!l_Amor não há eles fazem o que lhes ocorre, tanto o
Afrodite. Se portanto uma só fosse que é bom como o seu contrário. Tra-
esta, um só seria o Amor; como porém ~....c.om__efeito do amor provenlente
são duas, é forçoso que dois sejam da deusa que é mais jovem que a outra
também os Amores. E como não são e que em sua geração participa da
duas deusas? Uma, a mais velha sem fêmea e do macho. O outro porém é o
_dúvida, não tem mãe e é filha de da Urânia, que primeiramente não par-
ticipa da fêmea mas só do macho - e
Urano 3 6 , e a ela é que chamamos de
é este o amor aos jovens 3 8 - e depois
Urânia, a Celestial; a mais nova, filha
é a mais velha 3 9 , isenta de violência;
de Zeus e de Dione, chamamo-la de
daí então é que se voltam ao que é
Pandêmia, a PopuÍar. É forçoso então
másculo os inspirados. deste amor,
que também o Amor, coadjuvante de ·afeiçoando-se ao que é de natureza
uma, se chame corretamente Pandê- mais forte e que tem mais inteligência.
mio, o Popular, e o outro Urânio, o
E ainda, no próprio amor aos jovens
Celestial. Por conseguinte, é sem dúvi-
poder-se-iam reconhecer os que estão d
da preciso louvar todos os deuses, mas movidos exclusivamente por esse tipo _
o dom que a um e a outro coube deve- de amor 4 0 ; não amam eles, com efeito,
se procurar dizer. Toda ação, com efei- os meninos, mas os que já começam a
to, é assim que se apresenta: em si ter juízo, o que se dá quando lhes vêm
mesma, enquanto simplesmente prati- chegando as barbas. Estão dispostos,
1s1 • cada, nem e bela nem feia. Por exem- penso eu, os que começam desse
plo, o que agora nós fazemos, beber, ponto, a amar para acompanhar toda.a
cantar, conversar, nada disso em si é vida e viver em comum, e não a enga-
belo, mas é na ação, na maneira como nar e, depois de tomar o jovem em sua
é feito, que resulta tal; o que é bela e inocência e ludibriá-lo, partir à procu-
corretamente feito fica belo, o que não ra de outro. Seria preciso haver uma lei
o é fica feio. Assim é que o amar e o proibindo que se amassem os meninos,
Amor não é .todo ele belo e digno de a fim de que não se perdesse na incer-
ser louvado, mas apenas o que leva a teza tanto esforço; pois é na verdade
amar belamente. incerto o destino dos meninos, a que
Ora pois, o Amor de Afrodite Pan- ponto do vício ou da virtude eles che-
dêmia é realmente popular e faz o que 37 Confrontar com 208 e, onde Sócrates encon-
lhe ocorre; é a ele que os homens vul- tra o grande sentido do amor normal à mulher,
gares amam. E amam tais pessoas, aqui especiosamente confundido como o tipo
inferior do amor. (N. do T.)
primeiramente não menos as mulhe- 38 Muitos editores consideram esta frâse uma
glosa. (N. do T.)
36 Hesíodo, Teogonia, 188-206. -Urano foi mu- 39 Na velhice .domina a razão. Daí é que os
tilado por seu filho Zeus, e o esperma do seu amàntes desse amor procuram os que já come-
membro viril, atirado ao mar, espumou sobre çam a ter juízo ... (N. do T.)
as águas, donde se formou Afrodite. Em Ho- 40 Confrontar com 210a-b. A progressão do
mero, no entanto, essa deusa é filha de Zeus, amor, segundo Diotima, exige que o amante
e de Dione (Ilíada, V, 370). (N.doT.) largue o amor violento de um só. (N. do T.)
22 PLATÃO
gam em seu corpo e sua alma. Ora, se veita aos seus governantes que nasçam
os bons amantes a si mesmos se grandes idéias entre os governados,
impõem voluntariamente esta lei, de- nem amizades e associações inabalá-
via-se também a estes amantes popula- veis, o que justamente, mais do que
res obrigá-los a lei semelhante, assim qualquer outra coisa, costuma o amor
como, com as mulheres de condição inspirar. Por experiência aprenderam
livre 41 , obrigamo-las na medida do isto os tíranos 4 4 desta cidade; pois foi
possível a não manter relações amoro- .o amor de Aristogitão e a amizade de
1s2 • sas. São estes, com efeito, os que justa- Harmódio que, afirmando-se, destruí-
mente criaram o descrédito, a ponto de ram-lhes o poder. Assim, onde se esta-
alguns ousarem dizer que é vergonhoso beleceu que é feio o aquiescer aos
o aquiescer aos amantes; e assim o amantes, é por defeito dos que o esta-
dizem porque são estes os que eles beleceram que assim fica, graças à
consideram, vendo o seu despropósito ambição dos governantes e à covardia
e desregramento, pois não é sem dúvi- dos governados; e onde simplesmente
da quando feito com moderação e se determinou que é belo, foi em conse-
norma que um ato, seja qual for, incor- qüência da inércia dos que assim
reria em justa censura. estabeleceram. Aqui porém, muito
Aliás, a lei do amor nas demais mais bela que estas é a norma que se
cidades é fácil d~ entender, pois é sim- instituiu e, como eu disse, não é fácil
ples a sua determinação; aqui 4 2 porém de entender. A quem, com efeito, tenha
ela é complexa. Em Élida, com efeito, considerado 4 5 que se diz ser mais belo
na Lacedemônia, na Boocia, e onde amar claramente que às ocultas, e
não se saiba falar, simplesmente se sobretudo os mais nobres e os melho-
estabeleceu que é belo aquiescer aos 'res, embora mais feios que outros; que
amantes, e ninguém, jovem ou velho, por outro lado o encorajamento dado
diria que é feio, a fim de não terem difi- por todos aos amantes é extraordinário
culdades, creio eu, em tentativas de e não como se estivesse a fazer algum
persuadir os jovens com a palavra, ato feio, e se fez ele uma conquista pa-
incapazes que são de falar; na Jônia, rece belo o seu ato, se não, parece feio;
porém, e em muitas outras partes é e ainda, que em sua tentativa de con-
tido como feio, por quantos habitam quista deu a lei ao amante a possibili-
sob a influência dos bárbaros. Entre os dade de ser louvado na prática de atos
1
e bárbaros, com efeito, por causa das 44 Hípias e Hiparco, filhos de Pisístrato. Numa
tiranias, é uma coisa feia esse amor, primeira conspiração em 514, ao que parece
por -motivos pessoais, Hiparco foi assassinado,
justamente como o da sabedoria e da enquanto Armódio morria na luta e seu com-
ginástica 4 3 ; é que, imagino, não apro- panheiro Aristogitão era condenado à morte.
Quatro anos depois Hípias perdia o poder, víti-
41 Isto é, não escravas. (N. do T.) ma de uma nova conspiração (V. Tucídides, VI,
42 Os manuscritos trazem a expressão "e na 54). (N. do T.)
Lacedemônia" depois de "aqui", o que não con- 45 Essa subordinada, iniciando um longo perío-
corda com a notória tendência dos ·lacedemô- do, não tem seqüência lógica com a sua princi-
nios ao homossexualismo. (N. do T.) pal, formulada em 183c (Poder-se-ia pensar
43 Observar a expressão grega correspondente que ... ) . Mesmo à custa da clareza, preferimos
( <Pt>--ouo.pla Kai Ti o,pt>._o-yuµvaaía ) e lembrar conservar a mesma articulação ampla e irregu-
~Q.~násios eram dos locai~ m-~s ~ lar, a fim de permitir uma melhor apreciação
Sócrates ( cf. a introd. do Cãrm1des, LIS!s, Ta- do estilo do discurso, geralmente apontado
ques;-etc.). (N. do T.) como uma paródia de lsócrates. (N. do T.)
O BANQUETE 23
fato de ser amante como também o nossa lei provar bem e devidamente, e
serem os amados amigos dos amantes. que ·a uns se aquiesça e dos outros se
Quando porém, impondo-lhes um pe- fuja. Por isso é que uns ela exorta a
dagogo 4 7 , os pais não permitem aos perseguir e outros a evitar, arbitrando
46 Por que da filosofia? Vários críticos tenta- e aferindo qual é porventura o tipo do
ram corrigir essa lição dos mss. Burnet apôs-lhe amante e qual o do amado. Assim é
o óbelo da suspeita. No entanto, não se deve
entender a palavra no seu conceito platônico, que, por esse motivo, primeiramente o
mas antes na acepção menos específica de cul- se deixar conquistar é tido como feio, a
tura superior, tal como, por exemplo, a enten-
dia Is6crates, um saber prático que incluía 48,Uma longínqua antecipação da idéia desen-
entre .outras coisas o conhecimento das .boas volvida plenamente em 207d-208b. (N. do T.)
normas do cidadão. (N. do T.) 49 Expressão homérica (Ilíada, II, 71), aplicada
47 e, o escravo encarregado de acompanhar os a Oneiros, o sonho personificado, que veio a
jovens à palestra e à escola. (N. do T.) Agamenão. (N. do T.)
PLATÃO
24
fim de que possa haver tempo, que bem segundo em precisão de adquirir para
parece o mais das vezes ser uma exce- a sua educação e demais competência,
lente prova; e depois o deixar-se con- só então, quando ao mesmo objetivo
quistar pelo dinheiro e pelo prestígio convergem essas duas normas, só
político é tido como feio, quer a um então é que coincide ser belo o aquies-
mau trato nos assustemos sem reagir, cer o amado ao amante e em mais
b quer beneficiados em dinheiro ou em nenhuma outra ocasião. Nesse caso,
sucesso político não os desprezemos; mesmo o ser enganado não é nada feio;
nenhuma dessas vantagens, com efeito, em todos os outros casos porém é
parece firme ou constante, afora o fato vergonhoso, quer se seja enganado,
de que delas nem mesmo se pode deri- quer não. Se alguém com efeito, depois 185 a
sional. Pois de novo revém a mesma cujo conhecimento nas translações dos
idéia, que aos homens moderados, e astros e nas estações do ano chama-se
·para que mais moderados se tomem_ os astronomia. E ainda mais, não só
que ainda não sejam, deve-se aquiescer todos os sacrifícios, como também os
e conservar o seu amor, que é o belo, o casos a que preside a arte divinatória
celestial, o Amor da musa Urânia; o - e estes são os que constituem o
outro, o de Polímnia 61 , é o popular, comércio recíproco dos deuses e dos e
que com precaução se deve trazer homens - sobre nada mais versam
àqueles a quem se traz, a fim de que se senão sobre a conservação e a cura 62
colha o seu prazer sem que nenhuma do Amor. Toda impiedade, com efeito,
intemperança ele suscite, tal como em costuma advir, se ao Amor moderado
nossa arte é uma importante tarefa o não se aquiesce nem se lhe tributa
servir-se.convenientemente dos apetites honra e respeito em toda ação, e sim
da arte culinária, de modo a que sem ao outro, tanto no tocante aos pais,
doença se colha o seu prazer. Tanto na vivos e mortos, quanto aos deuses; e
música então, como na medicina e em foi nisso que se assinou à arte divina-
todas as outras artes, humanas e divi- tória o exame dos amores e sua cura, e
nas, na medida do possível, dev~~e assim é que por sua vez é a arte divina-
conservar um e outro amor; ambos tória produtora 63 de amizade entre
188 a com efeito nelas se encontram. De deuses e homens, graças ao conheci- d
1a9 • Tendo então tomado a palavra, con- sacrifícios lhe fariam, não como agora
tinuou Aristodemo, disse Aristófanes: que nada disso há em sua honra, quan-
- Bem que cessou! Não todavia, é do mais que tudo deve haver. É ele d
verdade, antes de lhe ter eu aplicado o com efeito o deus mais amigo do
espirro, a ponto de me admirar que a homem, protetor e médico desses
boa ordem do corpo requeira tais ruí- males, de cuja cura dependeria sem dú-
dos e comichões como é o espirro; pois vida a maior felicidade para o gênero
logo o soluço parou, quando lhe apli- humano. Tentarei eu portanto iniciar-
quei o espirro. vos 6 5 em seu poder, e vós o ensinareis
E Erixímaco lhe disse: - Meu bom aos outros. Mas é preciso primeiro
b Aristófanes, vê o que fazes. Estás a aprenderdes a natureza humana e as
fazer graça, quando vais falar, e me suas vicissitudes. Com efeito, nossa
forças a vigiar o teu discurso, se por- natureza outrora não era a mesma que
ventura vais dizer algo risível, quando a de agora, mas diferente. Em primeiro
te é permitido falar em paz. lugar, três eram os gêneros da humani-
Aristófanes riu e retomou: - Tens dade, não dois como agora, o mascu-
razão, Erixímaco ! Fique-me o dito lino e o feminino, mas tàmbém havia a
pelo não dito. Mas não me vigies, que mais um terceiro, comum a estes dois,
eu receio, a respeito do que vai ser do qual resta agora um nome, desapa-
dito, que seja não engraçado o que vou recida a coisa; andrógino era então um
dizer - pois isso seria proveitoso e gênero distinto, tanto na forma como
próprio da nossa musa - mas ridícu-. no nome comum aos dois, ao mascu-
los 4.
- Pois sim! - disse o outro - lino e ao feminino, enquanto agora
lançada a tua seta, Aristófanes, pensas nada mais é que um nome posto em
em fugir; mas toma cuidado e fala desonra. Depois, inteiriça 6 6 era a
e como se fosses prestar contas. Talvez forma de cada homem, com o dorso
todavia, se bem · me parecer, eu te redondo, os flancos em círculo; quatro
largarei. mãos ele tinha, e as pernas o mesmo
"Na verdade, Erixímaco, disse Aris- tanto das mãos, dois rostos sobre um J9Q a
compaixão, Zeus consegue outro expe- uma mulher não dirigem muito sua
diente, e lhes muda o sexo para a frente atenção aos homens, mas antes estão
- pois até então eles o tinham para voltadas para as mulheres e as amigui-
fora, e geravam e reproduziam não um nhas provêm deste tipo. E todos os que
no outro, mas na_ terra 69 , como as são corte de um macho perseguem o
cigarras; pondo assim o sexo na frente macho, e enquanto são crianças, como
deles fez com que através dele se cortículos do macho, gostam dos ho-
processasse a geração um no outro, o mens e se comprazem em deitar-se 192 a
os quais nem saberiam dizer o que que- tanto ao desejo e procura do todo que
rem que lhes venha da parte de um ao se dá o nome de âmor. Anteriormente,
outro. A ninguém com efeito pareceria como estou dizendo, nós éramos um
que se trata de união sexual 7 2 , e que é só, e agora é que, por causa da nossa 193 a
d E eis que Pedro, disse Aristodemo, Amor, se é lícito dizê-lo sem incorrer
interrompeu e exclamou: - Meu caro em vingançaªº, o mais feliz, porque é
Agatão, se responderes a Sócrates, o mais belo deles e o melhor. Ora, ele é
nada mais lhe importará do programa, o mais belo por ser tal como se segue.
como quer que ande e o que quer que Primeiramente, é o mais jovem dos
resulte, contanto que ele tenha com âeuses, ó Pedro. E uma grande prova b
quem dialogue, sobretudo se é com um do que digo ele próprio fornece, quan-
belo. Eu por mim é sem dúvida com do em fuga foge da velhice, que é rápi-
prazer que ouço Sócrates a conversar, da evidentemente, e que em todo caso,
mas é-me forçoso cuidar do elogio ao mais rápida do que devia, para nós se
Amor e recolher de cada um de vós o encaminha. De sua natureza Amor a
seu discurso; pague 78 então cada um o odeia e nem de longe se lhe aproxima.
que deve ao deus e assim já pode Com os jovens ele está sempre em seu
conversar. convívio e ao seu lado; está certo, com
- Muito bem, Pedro ! - excla- efeito, o antigo ditado, que o seme-
mou Agatão - nada me impede de lhante sempre do semelhante se aproxi-
falar, pois com Sócrates depois eu ma. Ora, eu, embora com Pedro con-
poderei ainda conversar muitas vezes. corde em muitos outros pontos, nisso
"Eu então quero primeiro dizer não concordo, em que Amor seja mais
como devo falar, e depois falar. Pare- antigo que Crono e J ápeto, mas ao
ce-me com efeito que todos os que contrário afirmo ser ele o mais novo
antes falaram, não era o deus que elo- dos deuses e sempre jovem, e que as
giavam, mas os homens que felici- questões entre os deuses, de que falam
tavam pelos bens de que o deus lhes é Hesíodo 81 e Parmênides, foi por Ne-
195 • causador; qual porém é a sua natureza, cessidade82 e não por Amor que ocor-
em virtude da qual ele fez tais dons, reram, se é verdade o que aqueles
ninguém o disse. Ora, a única maneira diziam; não haveria, com efeito, muti-
correta de qualquer elogio a qualquer lações nem prisões de uns pelos outros,
um é, no discurso, explicar em virtude e muitas outras violências, se Amor
de que natureza vem a ser causa de tais estivesse entre eles, mas amizade e paz,
efeitos aquele de quem se estiver falan- como agora, desde que Amor entre os
do ~ 9 • Assim então com o Amor, é deuses .reina. Por conseguinte, jovem
justo que também nós primeiro o lou- ele é, mas alêm de jovem ele é delica-
vemos em sua natureza, tal qual ele é, e do; falta-lhe porém um poeta como era
depois os seus dons. Digo eu então que Homero para mostrar sua delicadeza
de todos os deuses, que são felizes, é o de deus. Homero afirma, com efeito, d
·78Como um bom "simposiarca", Fedro zela 80 Cf. 180e-3. As palavras e os atos humanos
pelo bom andamento do programa estabelecido. podem suscitar a justiça vingativa (nemesis) dos
V. supra p.17, n. 21. (N. do T.) deuses. (N. do T.) ·
79 Sócrates louvará mais adiante a excelência 81 Cf. Teogonia, passim. (N. do T.)
desse princípio, que representa uma etapa deci- 82 É talvez idéia de Parmênides. O que este
siva na progressão dos discursos. Com efeito, escreveu sobre os deuses devia estar na parte
embora não vá acertar na definição da natu- do seu poema referente às "opiniões" dos mor-
reza do Amor, Agatão traz à baila o problema, tais. Segundo Aécio II, 7, 1 (Diels 28, A, 37).
possibilitando assim a refutação socrática (189 ele punha Justiça e Necessidade no meio de vá-
ds204c) e a definição platônica (201c-204a). ias esferas concêntricas, como causa de movi-
(N. do T.) 1ento e geração. (N. do T.)
34 PLATÃO
que Ate é uma deusa, e delicada - parte a parte há guerra. Quanto à bele-
que os seus pés em todo caso são deli- za da súa tez, o seu viver entre flores
cados - quando diz: bem o atesta; pois no que não floresce,
seus pés são delicados; pois não como no que já floresceu, corpo, alma
[sobre o solo ou o que quer que seja, não se assenta
se move, mas sobre as cabeças dos o Amor, mas onde houver lugar bem
[homens ela anda 83 • florido e bem perfumado, aí ele se
Assim, bela me parece a prova com assenta e fica.
que Homero revela a delicadeza da Sobre a beleza do deus já é isso bas-
deusa: não anda ela sobre o que é tante, e no entanto ainda muita coisa
, duro, mas sobre o que é mole. Pois a resta; sobre a virtude de Amor devo
mesma prova também nós utilizaremos depois- disso falar, principalmente que
a respeito do Amor, de que ele é delica- Amor não comete nem sofre injustiça,
do. Não é com efeito sobre a terra que nem de um deus ou contra um deus,
ele anda, nem sobre cabeças, que não riem de um homem ou contra um
são lá tão moles, mas no que há de homem 8 5 • À força, com efeito, nem ele
mais brando entre ·os seres é onde ele cede, se algo cede - pois violência e
anda e reside. Nos costumes, nas não toca em Amor - nem, quando
almas de deus~s e de homens ele fez age, age, pois todo homem de bom
sua morada, e ainda, não indistinta- grado serve em tudo ao Amor, e o que
mente em todas as almas, mas da que de bom grado reconhece uma parte a
encontre com um costume rude ele se outra, dizem "as leis, rainhas da cida-
afasta, e na que o tenha delicado ele de"ª 6 , é justo. Além da justiça, da má-
habita. Estando assim sempre em con- xima temperança ele compartilha. É
tato, nos pés como em tudo, com os com efeito a temperança, reconhecida-
que, entre os seres mais brandos, são mente, o domínio sobre prazeres e
os mais brandos, necessariamente é ele desejos; ora, o Amor, nenhum prazer
196 • o que há de mais delicado. É então o lhe é predominante; e se inferiores, se-
mais jovem, o mais delicado, e além riam dominados por Amor, e ele os
dessas qualidades, sua constituição é dominaria, e dominando prazeres e
úmida. Pois não seria ele capaz de se desejos seria o Amor. excepcional-
amoldar de todo jeito, nem de por toda mente temperante. E também quanto à
alma primeiramente entrar, desperce- coragem, ao Amo~ "nem Ares se lhe
bido, e depois sair, se fosse ele secoª 4 • opõe"ª 7 • Com efeito, a Amor não pega d
Mas é que eu não sabia então o modo que é amor de algo ou de nada? Estou
de elogiar, e sem saber concordei, tam- perguntando, não se é de uma mãe ou
bém eu, em elogiá-lo na minha vez: "a de um pai - pois ridícula seria essa
língua jurou, mas o meu peito não" 9 8 ; pergunta, se Amor é amor de um pai
-que ela se vá então. Não vou mais elo- ou de uma mãe - mas é como se, a
b giar desse modo, que não o poderia, é respeito disso mesmo, de "pai", eu
certo, mas a verdade sim, se vos apraz, perguntasse: "Porventura o pai é pai
quero dizer à minha maneira, e não em de algo ou não? Ter-me-ias sem dúvida
competição com os vossos discursos, respondido, se me quisesses dar uma
para não me pre~tar ao riso. Vê então, bela resposta, que é de um filho ou de
Pedro, se por acaso há ainda precisão uma filha que o pai é pai 9 9 ; ou não?"
de um tal discurso, de ouvir sobre o Exatamente -disse Agatão.
}\mor dizer a verdade, mas com nomes E também a mãe não é assim?
e com a disposição de frases que por Também - admitiu ele.
acaso me tiver ocorrido. Responde-me ainda, continuou
Sócrates, mais um pouco, a fim de me-
Pedro então, disse Aristodemo, e os
lhor compreenderes o que quero. Se eu
demais presentes pediram-lhe que,
como ele próprio entendesse que devia te perguntasse: "E irmão 100 , enquanto
é justamente isso mesmo que é, é irmão
falar, assim o fizesse.
de algo ou não?"
- Permite-me ainda, Pedro - re- - É, sim, disse ele.
tornou Sócrates - fazer umas pergun-
- De um irmão ou de uma irmã,
tinhas a Agatão, a fim de que tendo
não é? Concordou.
obtido o seu acordo, eu já possa assim
- Tenta então, continuou Sócra-
falar.
tes, também a respeito do Amor dizer-
- Mas sim, permito - disse me: o Amor é amor de nada ou de
Pedro. - Pergunta! - E então, disse algo?
Aristodemo, Sócrates começou mais - De algo, sim.
ou menos por esse ponto: - Isso então, continuou ele, guar- 200 a
- Realmente, caro Agatão, bem da contigo 1 0 1 , lembrando-te de que é
~- pareceste iniciar teu discurso, que ele é amor; agora dize-me apenas o
quando dizias que primeiro se devia
99 Entender: Assim corno pai é pai com rela-
97 Sócrates critica nos elogios anteriores a preo- ção a filho, amor é amor com relação a algu-
cupação exclusiva da aparência, em detrimento ma coisa. É por esse objeto específico do amor
da realidade. Corno concorrentes, os oradores que Sócrates pergunta. (N. do T.)
agiram corno se a máxima beleza dos seus dis- 100 A repetição dos exemplos numa argumenta-
cursos fosse urna conseqüência da rnJixirna be- ção, que muitas vezes nos parece ociosa e ge-
leza atribuída ao Amor. Sócrates evita essa fíl- ralmente nos impacienta é típica dos diálogos,
lha fundamental. (N. do T.) que parecem nesse ponto refletir um hábito da
98 Eurípedes, Hip6lito, 612. TI ·y'Awaaa Óµwµox' época. (N. do T.)
ri 8i <{)PT/V &vwµoTO~. (N. do T.) 101 Para dizê-lo em 201 a 206. (N. do T.)
38 PLATÃO
seguinte: Será que o Amor, aquilo de za, saúde e fortaleza. o que queres é
que é amor, ele o deseja ou não? também no futuro possuir esses bens,
- Perfeitamente - respondeu o pois no momento, quer queiras quer
outro. não, tu os tens; observa então se, quan-
- E é quando tem isso mesmo que do dizes "desejo o que tenho comigo",
deseja e ama que ele então deseja e queres dizer outra coisa senão isso:
ama, ou quando não tem? "quero que o que tenho agora comigo,
- Quando não tem, como é bem também no futuro eu o tenha." Deixa-
provável - disse Agatão. ria ele de admitir?
- Observa bem, continuou Sócra- Agatão, dizia Aristodemo, estava de
tes, se em vez de uma probabilidade acordo.
não é uma necessidade que seja assim, Disse então Sócrates: - Não é isso
o que deseja deseja aquilo de que é então amar o que ainda não está à mão
carente, sem o que não deseja, se não nem se tem, o querer que, para o futu-
for carente. É espantoso como me ro, seja isso que se tem conservado
parece, Agatão, ser uma necessidade; e consigo e presente?
a ti? - Perfeitamente - disse Agatão.
- Também a mim-disse ele. - Esse então, como qualquer
- Tens razão. Pois porventura de- outro que deseja, deseja o que não está
sejaria quem já é grande ser grande, ou à mão nem consigo, o que não tem, o
quem já é forte ser forte? que não é ele próprio e o de que é
Impossível, pelo que foi admiti- carente; tais são mais ou menos as coi-
do. sas de que há desejo e amor, não é?
Com efeito, não seria carente - Perfeitamente - disse Agatão.
disso o que justamente é isso. - Vamos então, continuou Sócra-
- É verdade o que dizes. tes, recapitulemos o que foi dito. Não é
- Se, com efeito, mesmo o forte certo que é o Amor, primeiro de certas
quisesse ser forte, continuou Sócrates, coisas, ·e depois, daquelas de que ele
e o rápido ser rápido, e o sadio ser tem precisão?
sadio - pois talvez alguém pensasse - Sim - disse o outro. 201 •
certo que o Amor seria da beleza, mas discurso. que sobre o Amor eu ouvi um
não da feiúra? Concordou. dia, de uma mulher de Mantinéia, Dio-
- Não está então admitido que tima, que nesse assunto era entendida e
aquilo de que é carente e que não tem é em muitos outros - foi ela que uma
o que ele ama? vez, porque os atenienses ofereceram
:_ Sim - disse ele. sacrificios para conjurar a peste, fez
- Carece então de beleza o Amor, por dez anos 1 0 6 recuar a doença, e era
e não a tem? ela Que me instruía nas questões de
- É forçoso. áinor - o discurso então que me fez
- E então? O que carece de beleza aquela mulher eu tentarei repetir-vos, a
partir do que foi admitido por mim e
e de modo algum a possui, porventura
por Agatão, com meus próprios recur-
dizes tu que é belo?
sos e como eu puder. É de fato preciso,
- Não, sem dúvida. Agatão, como tu indicaste, primeiro
- Ainda admites por conseguinte discorrer sobre o próprio Amor, quem
que o Amor é belo, se isso é assim? é ele e qual a sua natureza e depois
~ Agatão: - É bem provável, ó Só- sobre as suas obras. Parece-me então
crates, que nada sei do que então que o mais fácil é proceder como
disse 103 ? outrora a estrangeira, que discorria
· - E no entanto, prosseguiu Sócra-
interrogando-me 1 0 7 , pois também eu
tes, bem que foi belo o que disseste, quase que lhe dizia outras tantas coi-
Agatão. Mas dize-me ainda uma pe- sas tais quais agora me diz Agatão,
q-uena coisa: o que é bom não te parece que era o Amor um grande deus, e era
que também é belo?. do que é belo; e ela me refutava, exata-
- Parece-me, sim. mente com estas palavras, com que eu
- Se portanto o Amor é carente do estou refutando a este., que nem era
que é belo, e o que é bom é belo, tam- belo segundo minha palavra, nem bom.
bém do que é bom seria ele carente 1 0 4 E eu então: - Que dizes, ó Dioti-
- Eu não poderia, ó Sócrates, ma? É feio então o Amor, e mau?
disse Agatão, contradizer-te; mas seja E ela: - Não vais te calar? Acaso
assim como tu dizes. pensas que o que não for belo, é forço-
- É à verdade 10 6 , querido Aga- so ser feio?
tão, que não podes contradizer, pois a - Exatamente. 101 •
Sócrates não é nada dificil. - E também se não for sábio é
- E a ti eu te deixarei agora; mas o_ ignorante·? Ou não percebeste que exis- .
103 Agatão reage como um discípulo ou um te algo entre sabedoria e ignorância?
amigo de Sócrates, isto é, confessando franca- - Queé?
mente a ignorância que acaba de descobrir em
si. (N. do T.) 10~ Se se trata da peste que assolou Atenas no
104 Essa associação do bom e do belo, bem fa- começo da guerra do Peloponeso, Diotima te-
miliar ao grego (ob. o epíteto corrente: Ka~àç ria feito o sacrifício em 440, quando Sócrates
Ka"}'ai?Óç ) , e insistentemente defendida na argu- entrava na casa dos trinta. (N. doT.)
mentação socrática (v. por exemplo, Górgias, 107 ~ estranho que uma sacerdotisa use o mé-
47 4d-e), será de muita utilidade em 204e. todo de explicação dos sofistas do século V,
(N. doT.) através de perguntas forjadas por ela mesma.
105 Não se trata aqui de refutar a A ou a B, é Esse parece um dos mais fortes indícios de que
o que quer dizer Sócrates; uma vez estabeleci- o fato contado por Sócrates é fictício. sobretu-
da a veracidade de um argumento, não é mais do se se considera a exata correspondência dos
possível, ou melhor, não é mais questão de diálogos Sócrates-Agatão, Diotima-Sócrates.
co!'testá-lo. (N. do T.) (N. do T.)
40 PLATÃO_
que não é belo a ser feio, nem o que reconheceste que, por carência do que
não é bom a ser mau. Assim também o é bom e do que é belo, deseja isso
Amor, porque tu mesmo admites 1 0 9 mesmo de que é carente.
que não é bom nem belo, nem por isso - Reconheci, com efeito.
vás imaginar que ele deve ser feio e - Como então seria deus o que
mau, mas sim algo que está, dizia ela, justamente é desprovido 90 que é belo
entre esses dois extremos. e bom?-
- E todavia é por todos reconhe- - De modo algum, pelo menos ao
cido que ele é um grande deus 1 1 0 que parece.
- Todos os que não sabem, é o - Estás vendo então - disse -
que estás dizendo, ou também os que que também tu não julgas o Amor um
sabem? deus?
- Todos eles, sem dúvida. - Que seria então o Amor?
E ela sorriu e disse: - E como, ó perguntei-lhe. - Um mortal?
Sócrates, admitiriam ser um grande Absolutamente.
deus aqueles que afirmam que nem - Mas o quê, ao certo, ó Diotima?
deus ele é? - Como nos casos anteriores -
- Quem são estes? perguntei-lhe. disse-me ela - algo entre mortal e
- Um, és tu - respondeu-me - e imortal.
eu, outra. - O quê, então, ó Diotima?
E eu: - Que queres dizer com isso? - Um grande gênio, ó Sócrates; e
com efeito, tudo o que é gênio está
108 Cf. Menão, 97b-e. (N. do T.)
109 No l.ísis (216d - 22le) Sócrates faz uma entre um deus e um mortal.
proposição semelhante ( é amigo do belo e do - E com que poder? perguntei-lhe.
bom o que não é nem bom nem mau), que ele - O de interpretar e transmitir aos
encaminha para a seguinte aporia: A presença
do mal no que não é bom nem é mau é o que deuses o que vem dos homens, e aos
faz este desejar o belo e o bom, e assim, ausente homens o que vem dos deuses, de uns
o mal, o belo e o bom não seriam capazes de
suscitar o amor. Como se vê trata-se de puras as súplicas e os sacrificios, e dos ou-
idéias, cuja relação é dificultada na razão di- tros as ordens e as recompensas pelos
reta da sua exata conceituação. (N. do T.)
llO Essa observação de Sócrates vai determinar sacrifícios; e como está no meio de
a passagem do método dialético para a exposi- ambos ele os completa, de modo que o
ção alegórica. Demonstrada a natureza inter-
mediária do Amor, Diotima chama-o de gênio, todo fica ligado todo ele a si mesmo.
conta sua origem e traça seu retrato. (N. do T.) Por seu intermédio é que procede não
O BANQUETE 41
só toda arte divinatória, como também sem lar, sempre por terra e sem forro,
· a dos sacerdotes que se ocupam dos deitando-se ao desabrigo, às portas e
sacrificios, das iniciações e dos encan- nos caminhos, porque tem a natureza
20J • tamentos, e enfim de toda adivinhação da mãe, sempre convivendo com a pre-
e magia. Um deus com um homem não cisão. Segundo o pai, porém, ele é insi-
se mistura, mas é através desse ser que dioso com o que é belo e bom, e cora-
se faz todo o convívio e diálogo dos joso, decidido e enérgico, caçador
deuses com os homens~ tanto quando terrível, sempre a tecer maquinações,
despertos como quando dormindo; e ávido de sabedoria e cheio de recursos,
aquele que em tais questões é sábio é a filosofar por toda a vida, terrível
um homem de gênio 1 1 1 , enquanto o mago, feiticeiro, sofista 1 1 2 : e nem •
sábio em qualquer outra coisa, arte ou imortal é a sua natureza nem mortal, e
oficio, é. um artesão. E esses gênios, é no mesmo dia ora ele germina e vive,
certo, são muitos e diversos, e um deles quando enriquece 1 1 3 ; ora morre e de
é justamente o Amor. novo ressuscita, graças à natureza do
- E quem é seu pai - perguntei- pai; e o que consegue sempre lhe esca-
lhe - e sua mãe? pa, de modo que nem empobrece 1 1 4 o
- É um tanto longo de explicar, Amor nem enriquece, assim como tam-
disse ela; todavia, eu te direi. Quando bém está no meio da sabedoria e da
nasceu Afrodite, banqueteavam-se os ignorância. Eis com efeito o que se dá. 204 •
era o amado e não o amante; eis por que é bom, disse ela, que os felizes são
que, segundo penso, parecia-te todo felizes, e não mais é preciso ainda per,
belo o Amor. E de fato o que é amável guntar: E para que quer ser feliz aquele
é que é realmente belo, delicado, per- que o quer? Ao contrário, completa
feito e bem-aventurado 1 1 7 ; o amante, parece a resposta.
porém é outro o seu caráter, tal qual eu - É verdade o que dizes - tor-
expliquei. nei-lhe.
E eu lhe disse: - Muito bem, --' E essa vontade então e esse
estrangeira! É belo o que dizes! Sendo amor, achas que é comum a todos os
porém tal a natureza do Amor, que . homens, e que todos querem ter sempre
proveito ele tem para os homens? consigo o que é bom, ou que dizes?
- Eis o que depois disso - res- - Isso respondi-lhe· é
d
comum a todos.
pondeu-me - tentarei ensinar-te. Tal é
de fato a sua natureza e tal a sua ori- - ~ por que então, 6 Sócrates, não b
Quando então - continuou ela vista do belo, que de uma grande dor
- é sempre isso o amor, de que modo, liberta o que está prenhe. É com efeito,
nos que o perseguem, e em que ação, o Sócrates, dizia-me ela, não do belo o
seu zelo e esforço se chamaria amor, como pensas.
amor 12 5 ? Que vem a ser essa ativida- Mas de que é enfim?
de? Podes dizer-me? Da geração e da parturição no
- Eu não te admiraria então, ó belo.
Diotima, por tua sabedoria, nem te Seja - disse-lhe eu.
freqüentaria para aprender isso Perfeitamente - continuou. 207 •
mas os animais, qual a causa desse seu nascem e outras morrem para nós, e ja-
comportamento amoroso? Podes di- mais somos os mesmos nas ciências,
zer-me? mas ainda cada uma delas sofre a
De novo eu lhe disse que não sabia; mesma contingência. O que, com efei-
e ela me tomou: - Imaginas então to, se chama exercitar é como se de nós
algum dia te tomares temível nas ques- estivesse saindo a ciência; esqueci-
tões do amor, se não refletires nesses mento é escape de ciência, e o exercí-
fatos? cio, introduzindo uma nova lembrança
- Mas é por isso mesmo, Diotima
em lugar da que está saindo, salva a
- como há pouco eu te dizia - que
ciência, de modo a parecer ela ser a
vim a ti, porque reconheci q_ue preci-
sava de mestres. Dize-me entao não só mesma. É desse modo que tudo o que é
a causa disso, como de tudo o mais mortal se conserva, e não pelo fato de
que concerne ao amor. absolutamente ser sempre o mesmo,
- Se de fato - continuou - crês como o que é divino, mas pelo fato de
que o amor é por natureza amor daqui- deixar o que parte e envelhece um
lo que muitas vezes admitimos, não fi- outro ser novo, tal qual ele mesmo era.
ques admirado .. Pois aqui, segundo o É por esse meio, ó Sócrates, que o
mesmo argumento que lá, a natureza mortal participa da imortalidade, no
mortal procura, na medida do possível, corpo como em tudo mais 130 ; o imor-
ser sempre e ficar imortal. E ela só tal porém é de outro modo. Não te
pode assim, através da geração, porque admires portanto de que o seu próprio
sempre deixa um outro ser novo em rebento, todo ser por natureza o apre-
lugar do velho 1 2 9 ; pois é nisso que se cie: é em virtude da imortalidade que a
diz que cada espécie animal vive e é a todo ser esse zelo e esse amor acompa-
mesma. - assim como de criança o nham.
homem se diz o mesmo até se tornar Depois de ouvir o seu discurso,
velho; este na verdade, apesar de ja- admirado disse-lhe: - Bem, ó doutís-
mais ter em si as mesmas coisas, diz-se sima Diotima, essas coisas é verdadei-
todavia que é o mesmo, embora sem- ramente assim que se passam?
pre se renovando e perdendo alguma E ela, como os sofistas consumados,
coisa, nos cabelos, nas carnes, nos tornou-me: - Podes estar certo, ó Só-
'e ossos, no sangue e em todo o corpo. E crates; o caso é que, mesmo entre os
não é que é só no corpo, mas também homens, se queres atentar à sua ambi-
na alma os modos, os costumes, as ção, admirar-te-ias do seu desarrazoa-
opiniões, desejos, prazeres, aflições,
temores, cada um desses afetos jamais 130 Alguns críticos querem ver nessa passagem
uma contradição com a doutrina da imortali-
permanece o mesmo em cada um de dade da alma, e conseqüentemente um indício
nós, mas uns nascem, outros morrem. da anterioridade do Banquete ao Fédon, onde
aquela doutrina é longamente exposta. Na ver-
208 a Mas ainda mais estranho do que isso é dade, ela não autoriza a inferência de que a
que até as ciências não é só que umas alma é mortal. Diotima diz que seus afetos e
conhecimentos são passageiros, como os ele-
129 Segue até 208b um quadro muito vivo da mentos do corpo, mas não afirma que a alma
visão heraclitiana da realidade. Mas, sob o são esses afetos e conhecimentos. A idéia de vã-
fluxo desesperador das coisas, Diotima vê em rias encarnações da alma e a do conhecimento-
sua geração, a sua maneira de continuar, o seu reminiscência, exposta também no Fédon, ilus-
modo de participar do ser perene das idéias. tra muito a compatibilidade de uma alma imor-
(N. do T.) tal com ácidentes transitórios. (N. do T.)
46 PLATÃO
mento, a menos que, a respeito do que estes estão todos os poetas criadores e
te falei, não reflitas, depois de conside- todos aqueles artesãos que se diz serem
rares quão estranhamente eles se com- inventivos; mas a mais importam_e,
portam com o amor de se tomarem disse ela, e a mais bela forma de pensa-
renomados e de "para sempre uma gló- mento é a que trata da organização dos
ria imortal se preservarem", e como negócios da cidade e da família, e cujo
por isso estão prontos a arrostar todos nome é prudência e justiça 1 3 4 - des-
d_ os perigos, ainda mais do que pelos tes por sua vez quando alguém, desde
filhos, a gastar fortuna, a sofrer priva- cedo fecundado em sua alma, ser divi-
ções, quaisquer que elas sejam, e até a no que é, e chegada a idade oportuna,
sacrificar-se. Pois pensas tu, continuou já está desejando dar à luz e gerar, pro-
ela, que Alceste 1 3 1 morreria por Ad- cura então também este, penso eu, à
meto, que Aquiles morreria depois de sua volta o belo em que possa gerar;
Pátroclo, ou o vosso Codro 1 3 2 morre- pois no que é feio ele jamais a fará.
ria antes, em favor da realeza dos Assim é que os corpos belos mais que
filhos, se não imaginassem que eterna os feios ele os acolhe, por estar em
seria a memória da sua própria virtu- concepção; e se encontra uma alma
de, que agora nós conservamos? Longe bela, nobre e bem dotada, é total o seu
disso, disse ela; ao contrário, t~ segun- acolhimento a ambos, e para um
do penso, por uma virtude imortal e homem desses logo ele se enriquece 1 3 5
por tal renome e glória que todos tudo de discursos sobre a virtude, sobre o
fazem, e quanto melhores tanto mais; que deve ser o homem bom e o que
pois é o imortal que eles amam. Por deve tratar, e tenta educá-lo. Pois ao
conseguinte, continuou ela, aqueles contato sem dúvida do que é belo e em
que estão fecundados em seu corpo sua companhia, o que de há muito ele
voltam-se de preferência para as mu- concebia ei-lo que dá à luz e gera, sem
lheres, e é desse modo que são amoro- o esquecer tanto em sua presença
sos, pela procriação conseguindo para quanto ausente, e o que foi gerado, ele
o alimenta justamente com esse belo,
si imortalidade, memória e bem-aven-
de modo que uma comunidade muito
turança por todos os séculos seguintes,
maior que a dos filhos ficam tais indi-
209 • ao que pensam; aqueles porém que é víduos mantendo entre si, e uma ami-
em sua alma - pois há os que conce- zade mais firme, por serem mais belos
bem na alma mais do que no corpo, o e mais imortais os filhos que têm em
que convém à alma conceber e gerar; e comum. E qualquer um aceitaria obter - d
o que é que lhes convém senão o pen- tais filhos mais que os humanos, de-
samento e o mais da virtude 1 3 3 ? Entre pois de considerar Homero e Hesíodo,
131 ~ uma referência ao discurso de Pedro, 179 e admirando com inveja os demais
ss. (N. do T.) bons poetas, pelo tipo de descendentes
132 Rei legendário de Atenas. Informado de
que um oráculo prometera vitória aos dórios, que deixam de si, e que uma imortal
se estes não o matassem, disfarça-se em solda- glória e memória lhes garantem, sendo
do e como tal encontra a morte com que sal-
vou sua pátria. (N. do T.) 134 Prudência ( aW<()POC1Úv11 ) e justiça são aqui
133 Entender :virtude no sentido amplo de exce- formas do pensamento ( ,ppÓVf/aiç ) ; como no
lência, tal como o grego apení . Notar a dis- Protágoras (361b ss.) elas são, como as de-
tinção feita no Banquete entre lflPÓV'f/u1ç (de mais virtudes, formas ou aspectos de uma
,ppovéaµ.ai ) = disposição para a sabedoria, ciência ( érriuriiµ. 11 ).. (N. do T.)
pensamento e ao.pia, isto é, sabedoria (v. 202) 135 No grego eimopei . V. supra p. 41 , n. 113.
que só os deuses possuem. (N. do T.) (N. doT.)
O BANQUETE 47
eles mesmos o que são; ou se prefe- seu dirigente, deve ele amar um só
res 1 3 6 , continuou ela, pelos filhos que corpo e então gerar belos discur-
Licurgo deixou na Lacedemônia, sal- sos 1 3 9 ; depois deve ele compreender- b
meiro lugar, se corretamente o dirige o para o belo já muito, sem mais amar
como um doméstico a beleza indivi-
136 A ordem em que aparecem os exemplos da
poesia e da legislação parece sugerir a preemi- dual de um criançola, de um homem
nência da primeira sobre a segunda. Cf. toda- ou de um só costume, não seja ele,
via República, X, 597 e ss., em que Platão, ao
contrário, explica a superioridade da segunda. nessa escravidão, miserável e um mes-
(N. do T.) quinho discursador, mas voltado ao
137 Em conferência na Associação dos Estudos
Clássicos do Brasil ( Seção de São Paulo) , so- vasto oceano do belo e, contemplan-
bre o autocriticismo em Atenas, o Prof. Aubre- do-o, muitos discursos belos e magní-
ton observou com muito acerto os sentimentos
de laconismo que revela essa maneira de um 139 Evidentemente não se trata aqui do amor
ateniense citar depois das leis de Licurgo - físico entre o homem e a mulher, que tem a
salvadores da Grécia . . . - as leis do seu con- justificação na procriação ( 208e), e sim de
terrâneo - e também Sólon ... (N. do T.) uma primeira etapa do amor entre o amante e
138 Feito o exame das diversas formas da ativi-· o bem-amado, que deve estar condicionado à
dàde amorosa (proscrição, poesia, legislação), produção dos belos discursos. Essa etapa ini-
Uiotima as considera como estágios prelimina- cia)· corresponde ao que Pausânias, numa pers-
res do supremo ato do amor, que é a conquista pectiva menos clara, afirma ser o nobre amor
da ciêncía do belo em si. Para dar no entanto de Afrodite Urânia. (N. do T.)
a entender o caráter dessa ciência e de sua 140 Assim como, pouco antes, um belo corpo é
aquisição, ela recorre à alegoria da iniciação irmão de um belo corpo, todos estes por sua
aos mistérios. Compará-Ia a esse respeito com vez têm a mesma relação com os belos ofícios
o mito da Caverna na República. (N. do T.) e as belas leis. (N. do T.)
48 PLATÃO
ficos ele produza, e reflexões, em ines- tudo mais que é belo del~ participa, de
gotável amor à sabedoria, até que aí um modo tal que, enquanto nasce e -pe:-
robustecido e crescido 1 4 1 contemple rece tudo mais que é belo, em nada ele
ele uma certa ciência, única, tal que o fica maior ou menor, nem nada sofre.
seu objeto é o belo seguinte. Tenta . Quando então alguém, subindo ~partir
agora, disse-me ela, prestar-me a máxi- do que ~qui é belo 1 4 4 , através do cor-
ma atenção possível. Aquele, pois, 9!!e reto amor aos jovens, começa a con-
até esse ponto tiver sido orientado para templar aquele belo, quase que estaria
as ~oisas . do amor~ contemplando
seguida e corretamente o que é belo, já a atingir o ponto final. Eis, com efeito,
chegando ao ápice dos graus do amor, em que consiste o proceder correta-
súbito perceberá algo de maravilhosa- mente nos caminhos do amor ou por
mente belo em sua natureza, aquilo outro se deixar conduzir: em começar
mesmo 1 4 2 , ó Sócrates, a que tendiam do que aqui é belo e, em.vistadaquele
todas as penas anteriores, primeira- belo, subir sempre, como que servin-
2JI a mente sempre sendo, sem nascer nem do-se de degraus, de um só para dois e
perecer, sem crescer nem decrescer, e de dois para todos os belos corpos, e
depois, não de um jeito belo e de outro dos belos corpos para os belos ofícios,
feio, nem ora sim ora não, nem quanto e dos ofícios para as belas ciências até
a isso belo e quanto àquilo feio, nem que das ciências acabe naquela ciên-
aqui belo ali feio, como se a uns fosse cia, que de nada mais é senão daquele
belo e a outros feio; nem por outro próprio belo, e conheça enfim o que em
lado aparecer-lhe-á o belo como um si é belo. Nesse ponto da vida, meu d
rosto ou mãos, nem como nada que o caro Sócrates, continuou a estrangeira
corpo tem consigo, nem como algum de Mantinéia, se é que em outro mais,
discurso ou alguma ciência, nem certa- poderia o homem viver, a contemplar o
mente como a existir ém algo mais, próprio belo. Se algum dia o vires, não
como, por exemplo, em animal da terra
é como ouro 1 4 6 ou como roupa que
ou do céu, ou em qualquer outra coisa;
ao contrário, aparecer-lhe-á ·ele ele te parecerá sei:, ou como os belos
mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, jovens adolescentes, a cuja vista ficas
sendo sempre uniforme 1 4 3 , enquanto agora aturdido e disposto, tu como ou-
141 A abundância é a grandeza dos discursos
tros muitos, contanto que vejam seus
decorrentes da extensão do belo já contempla- amados e sempre estejam com eles, a
do ( 11pÔ<; 110>.v ~ To KaM11 ) é condição para nem comer nem beber, se de algum
atingir a contemplação do próprio belo.
(N. doT.) modo fosse possível, mas a só contem-
142 Observar ro que precede até essa expressão
uma extraordinária técnica de suspense para
plar e estar ao seu lado 1 4 6 • Que pensa-
preparar o deslumbramento do que segue, isto mos então que aconteceria, disse ela,
é, a descrição do belo em si. Desencantados da se a alguém ocorresse __contemplar o
magia desse trecho, podemos perceber que ele
é uma rel.posta àquela litania final do discurso próprio belo, nítido, puro, simples, e
de Agatão (197d-e), mas quão superior em
emoção e grandeza! (N. do T.) 144 O pronome rw,,& parece-me aqui refe-
143 Essas expressões, que aparecem freqüente- rir-se claramente à idéia do belo. Assim, tradu-
mente no F édon para caracterizar as idéias em zimo-lo especificando: "as coisas belas daqui".
sua pureza essencial, contrapõem-se a fórmulas A menção explícita TWII 1<1tAW11 , um pouco
usadas pouco acima (de um jeito ... de ou- abaixo, explica-se pelo fato de que Diotima
tro ... , ora ... ora ... quanto a isso ... quanto está resumindo sua lição. (N. do T.)
àquilo . . . etc. ) para qualificar as coisas deste 145 Como o sofista Hípias o define para Sócra-
mundo, e que representam por assim dizer os tes. V. Hípias Maior, 289e. (N. do T.)
marcos da argumentação socrática. (N. do T.) 146 Cf. supra 192d-e. (N. do T.)
O BANQUETE 49
não repleto de carnes, humanas, de coisa 1 50 , que era a ele que aludira Só-
cores e outras muitas ninhãrias mor- crates, quando falava de um certo dito;
tais, mas o próprio divino belo pudesse e súbito a porta do pátio, percutida,
ele em sua forma única contemplar? produz um grande barulho, como de
212 • Porventura pensas, disse, que é vida vã foliões, e ouve-se a voz de uma flautis-
a de um homem a olhar naquela dire- ta. Agatão exclama: "Servos! Não d
ção e aquele objeto, com aquilo 1 4 7 ireis ver? Se for algum conhecido, cha-
com que deve, quando o contempla e mai-o; se não, dizei que não estamos
com ele convive? Ou não consideras, bebendo, mas já repousamos".
disse ela, que somente então, quando Não muito depois ouve-se a voz de
vir o belo com aquilo com que este Alcibíades \no pátio, bastante embrfâ~
pode ser visto, o.correr-lhe-á produzir gado, e a gritar alto, perguntando onde
não sombras 1 48 de virtude, porque estava Agatão, pedindo que o levassem
não é em sombra que estará tocando, para junto de Agatão. Levam-no então
mas reais virtudes, porque é no real até os convivas a flautista, que o
que estará tocando? tomou sobre si, e alguns outros acom-
Eis o que me dizia Diotima, ó Fedro panhantes, e ele se detém à porta, cin-
e demais presentes, e do que estou gido de uma espécie de coroa tufada de
convencido; e porque estou conven- hera e. violetas, coberta a cabeça de
fitas em profusão, e exclama:
cido, tento convencer também os ou- "Senhores ! Salve! Um homem em
tros de que para essa aquisição, um completa embriaguez vós o recebereis
colaborador da natureza humana me- como companheiro de bebida, ou deve-
lhor que o Amor não se encontraria mos partir, tendo apenas coroado Aga-
facilmente. Eis por que eu afirmo que tão, pelo qual viemos? Pois eu, na ver-
deve todo homem honrar o Amor, e dade, continuou, ontem mesmo não fui
que eu próprio prezo o que lhe con- capaz de vir; agora porém eis-me aqui,
cerne e particularmente o cultivo, e aos com estas fitas sobre a cábeça, a fim de
outros exorto, e agora e sempre elogio passá-las da minha para a cabeça do
o poder e a virilidade do Amor na me- mais sábio e do· mais belo, se assim
devo dizer. Porventura ireis zombar de
dida em que sou capaz. Este discurso,
ó Fedro, se queres, considera-o profe- mim, de minha embriaguez? Ora, eu, m.
por mais que zombeis, bem sei por-
rido como um encômio 1 49 ao Amor; tanto que estou dizendo a verdade.
se não, o que quer que e como quer que Mas dizei-me daí mesmo: com o que
te apraza chamá-lo, assim deves fazê- disse, devo entrar ou não? Bebereis co-
lo. migo ou não?"
Depois que Sócrates assim falou, Todos então o aclamam e convidam
enquanto que uns se põem a louvá-lo, a entrar e. a recostar-se, e Agatão o
Aristófanes tenta dizer alguma chama. Vai ele conduzido pelos ho-
147 Isto é, com a inteligência, ou antes, com a mens, e como ao mesmo tempo colhia
própria alma, livre das suas relações com o as fitas para coroar, tendo-as diante b
corpo. V. Fédon, 65t--e. (N. do T.)
148 São as virtudes praticadas pelo comum dos 150 Aristófanes não parece, como os demais
homens, tais como Platão as explica no Fédon, convivas, empolgado com o que foi dito por
68b-69b. (N. do T.) Sócrates, o que bem revela sua pouca predis-
149 Porque foi proferido à maneira socrática. posição para captar o conteúdo do discurso de
V. supra 199b. (N. do T.) Alcibíades. (N. do T.)
50 PLATÃO
dos olhos não viu Sócrates, e todavia mitido dirigir nem o olhar nem a
senta-se ao pé de Agatão, entre este e palavra a nenhum belo jovem, senão
Sócrates, que se afastara de modo a este homem, enciumado e invejoso, faz
que ele se acomodasse. Sentando-se ao coisas extraordinárias, insulta-me e
lado de Agatão ele o abraça e o coroa. mal retém suas mãos da violência. Vê
Disse então Agatão: - Descalçai então se também agora não vai ele
Alcibíades, servos, a fim de que seja o fazer alguma coisa, e reconcilia-nos;
terceiro em nosso leito 1 51 • ou se ele tentar a violência, defende-
- Perfeitamente - tornou Alci- me, pois eu da sua fúria e da sua pai-
bíades; - mas quem é este nosso ter- xão amorosa muito me arreceio.
ceiro companheiro de bebida? E en- - Não! - disse Alcibíades -
quanto se volta avista Sócrates, e mal entre mim e ti não há reconciliação.
o viu recua em sobressalto e exclama: Mas pelo que disseste depois eu te
Por Hércules! Isso aqui que é? T.u, 6 castigarei; agora porém, Agatão, ex-
Sócrates? Espreitando-me de novo aí clamou ele, passa-me das tuas fitas, a
te deitaste, de súbito aparecendo assim fim de que eu cinja também esta aqui,
como era teu costume, onde eu menos a admirável cabeça deste homem, e
esperava que haverias de estar? E não me censure ele de que a ti eu te
agora, a que vieste? E ainda por que coroei, mas a ele, que vence em argu-
foi que aqui te recostaste? Pois não foi mentos todos os homens, não s6 ontem
junto de Arist6fanes 1 52 , ou de qual- como tu, mas sempre, nem por isso eu
quer outro que seja ou pretenda ser o coroei. - E ao mesmo tempo ele
engraçado, mas junto do mais belo dos toma das fitas, coroa Sócrates e recos-
que estão aqui dentro que maquinaste ta-se.
te deitar. Depois que se recostou, disse ele: -
E Sócrates: - Agatão, vê se me Bem, senhores! Vós me pareceis em
defendes! Que o amor deste homem se plena sobriedade. É o que não se deve
me tornou um não pequeno proble- permitir entre vós, mas beber; pois foi
ma 1 53 • Desde aquele tempo, com efei- o que foi combinado entre nós. Como
d to, em que o amei, não mais me é per- chefe então da bebedeira, até que tiver-
des suficientemente bebido, eu me elej~
151 V. supra p. 15 , n. 13, e p. 16 , n. 16. a mim mesmo 1 5 4 • Eia, Agatão, que a
(N. doT.)
152 Por que essa referência a Aristófanes? Não tragam logo, se houver aí alguma gran-
temos nenhuma outra notícia da predileção de de taça. Melhor ainda, não há nenhu-
Sócrates pelos cômicos, em particular por Aris-
tófanes. Por outro lado é de supor que Alcibía- ma precisão: vamos, servo, traze-me
des de pronto percebesse a possibilidade de aquele porta-gelo! exclamou ele, quan- 214 a
Sócrates ter sido convidado pelo próprio Aga-
tão, como de fato aconteceu. Assim, suas pala- do viu um com capacidade de mais de
vras devem ser entendidas mais como um arti oito "c6tilas" 1 5 5 • Depois de enchê-lo,
fício dramático para chamar a atenção sobre a
incapacidade cm Aristófanes de entender o ver- primeiro ele bebeu, depois mandou Só-
dadeiro aspecto cômico da atitude de Alcibía- crates entornar, ao mesmo tempo que
des para com Sócrates. (N. do T.)
153 Essa observação de Sócrates, como a de 154 Alcibíades sente em sua embriaguez que o
Alcibíades logo a seguir, anuncia à maneira de "simposiarca" (v. supra p. 17 , n. 21) não se
um prelúdio as conclusões que vamos tirar do houve bem em sua função e pretende reparar a
discurso de Alcibíades sobre a irresponsabilida- falta. . . (N. do T.)
de de Sócrates no comportamento de Alcibía- 155 Uma "cótila" equivalia a pouco mais de
des. (N. do T.) um quarto de litro. (N. do T.)
O BANQUETE 51
faz dizer outra, não te admires; não é flautista quer uma flautista ordinária, •
fácil, a quem está neste estado, da. tua são as únicas que nos fazem possessos
singularidade dar uma conta bem feita e revelam os que sentem falta dos deu-
e seguida. ses e das iniciações, porque são divi-
"Louvar Sócrates, senhores, é assim nas. Tu porém dele diferes apenas
que eu tentarei, através de imagens. Ele nesse pequeno ponto, que sem instru-
certamente pensará talvez que é para mentos, com simples palavras, fazes o
carregar no ridículo, mas será a ima- mesmo. Nós pelo menos, quando d
gem em vista da verdade, não do r.idí- algum outro ouvimos mesmo que seja
culo. Afirmo eu então que é ele muito um perfeito orador, a falar de outros
semelhante a esses silenos ~ 6 0 coloca- assuntos, absolutamente por assim
dos nas oficinas dos estatuários, que os dizer ninguém se interessa; quando
artistas representam com um pifre ou porém é a ti que alguém ouve, ou pala-
uma flauta, os quais, abertos ao meio, vras tuas referidas por outro, ainda que
vê-se que têm em seu interior estatue- seja inteiramente vulgar o que está
tas de deuses. Por outro lado, digo falando, mulher, homem ou adoles-
também que ele se assemelha ao sátiro cente, ficamos aturdidos e somos em-
Mársias 1 6 1 • Que na verdade, em teu polgados. Eu pelo menos, senhores, se
aspecto pelo menos és semelhante a não fosse de todo parecer que estou
esses dois seres, 6 Sócrates, nem embriagado, eu vos contaria, sob jura-
mesmo tu sem dúvida poderias contes- · mento, o que é que eu sofri sob o efeito.
tar; que porém também no mais tu te dos discursos deste homem, e sofro
assemelhas, é o que depois disso tens ainda agora. Quando com efeito os
de ouvir. És insolente 1 6 2 ! Não? Pois escuto, muito mais do que aos cori-
se não admitires, apresentarei testemu- bantes 1 6 4 em seus transportes bate-me
nhas. Mas não és flautista? Sim! E o coração, e lágrimas me escorrem sob
muito mais maravilhoso que o sátiro. o efeito dos seus discursos, enquanto
Este, pelo menos, era através de instru.- que outros muitíssimos eu vejo que
mentos que, com o poder de sua boca, experimentam o mesmo sentimento; ao
encantava os homens como ainda ouvir Péricles porém, e outros bons
agora o que toca as suas melodias - oradores, eu achava que falavam bem
pois as que Olimpo 1 6 3 tocava são de sem dúvida, mas nada de semelhante
Mársias, digo eu, por este ensinadas - eu sentia 1 11 5 , nem minha alma ficava
as dele então, quer as toque um bom perturbada nem se irritava, como se se
encontrasse em condição servil; mas
160 Também chamados sátiros, os silenos eram
divindades campestres que faziam parte do sé- com este Mársias aqui, muitas foram 216 •
quito de Dioniso. Eram figurados com cauda e as vezes em que de tal modo me sentia
cascos de boi ou de bode e rosto humano, sin- que me parecia não ser possível viver
gularmente feio. (N. do T.)
161 Exímio flautista, Mársias desafiou Apolo em condições como as minhas. E isso,
coril sua lira e, vencido, foi esfolado pelo deus. 6 Sócrates, não irás dizer que não é
162 A liberdade espiritual de Sócrates dá-lhe
realmente, em muitas circunstâncias, essa apa- 164 Sacerdotes de Cibele, da Frígia, que dança-
rência. V. Apo/. 20e-23c, 30c e ss. e 36b-37. vam freneticamente ao som de flautas, címba-
(N. dõT.) les e tamborins. (N. do T.)
163 Em Minas Sócrates cita-o como bem-amado 165 É que não eram estes oradores "homens de
de Mársias. Muitas canções antigas lhe eram gênio", suscetíveis de uma inspiração divina (v.
atribuídas. (N. do T.) supra 203a). (N. do T.)
O BANQUETE 53
verdade. Ainda agora tenho certeza de Que esta sua atitude não é conforme à
que, se eu quisesse prestar ouvidos, dos silenos? E muito mesmo. Pois é
não resistiria, mas experimentaria os aquela com que por fora ele se reveste,
mesmos sentimentos. Pois me força ele como o sileno esculpido; mas lá den-
a admitir que, embora sendo eu mesmo tro, uma vez aberto, de quanta sabedo-
deficiente em muitos pontos ainda, de ria imaginais, companheiros de bebida,
mim mesmo me descuido, mas trato estar ele cheio? Sabei que nem a quem
dos negócios de Atenas 1 8 8 • A custo a
é belo tem ele mínima consideração,
então, como se me afastasse das antes despreza tanto quanto ninguém
sereias, eu cerro os ouvidos e me retiro poderia imaginar, nem tampouco a
em fuga, a fim de não ficar sentado lá e quem é rico, nem a quem tenha qual-
aos seus pés envelhecer. E senti diante quer outro título de honra, dos que são
deste homem, somente diante dele, o enaltecidos pelo grande número; todos
que ninguém imaginaria haver em esses bens ele julga que nada valem, e
mim, o envergonhar-me de quem quer que nós nada somos - é o que vos
que seja; ora, eu, é diante deste homem digo - e é ironizando e brincando
somente que me envergonho. Com efei- com os homens que ele passa toda a
to, tenho certeza de que não posso vida. Uma vez porém que fica sério e
contestar-lhe que não se deve fazer o se abre, não sei se alguém já viu as
que ele manda, mas quando me retiro estátuas lá dentro; eu por mim já uma
sou vencido pelo apreço em que me vez as vi, e tão divinas me pareceram
tem o público. Safo-me então de sua elas, com tanto ouro, com uma beleza
presença e fujo, e quando o vejo enver- tão completa e tão extraordinária que 217 •
como Sócrates amorosamente se com- 168 Alcibíades passa a contar os seus esforços
porta com os belos jovens, está sempre para conquistar o amor de Sócrates. Tais esfor-
ços constituem, como observa Robin em sua
ao redor deles, fica aturdido e como Introdução, uma verdadeira tentação, isto é.
também ignora tudo e nada sabe 1 8 7• uma caricatura da iniciação amorosa tal como
é caracterizada por Diotima. Através dessa
166 Cf. Alcibíades, 109d e 113b. (N. do T.) caricatura, Platão pretende ilustrar a qualidade
16 7 Como numa cilada para atrair os incautos. superior do cômico obtido com uma verdadeira
Cf. supra 203d. (N. do T.) arte. (N. doT.)
54 PLATÃO
que apliquem aos seus ouvidos portas ser verdade o que dizes a meu respeito,
bem espessas 1 7 1• e se há em mim algum poder pelo qual
Como com efeito, senhores, a lâm- tu te poderias tomar melhor; sim, uma
pada se apagara e os servos estavam irresistível beleza verias em mim, e
fora, decidi que não devia fazer ne- totalmente diferente da formosura que
nhum floreado com ele, mas franca- há em ti._ Se então, ao contemplá-la,
mente dizer-lhe o que eu pensava; e tentas compartilhá-la comigo e trocar-
assim o interpelei, depois de sacudi-lo: beleza por beleza, não é em pouco que
- Sócrates, estás dormindo? pensas me levar vantagens, mas ao 219 •
171 Alusão a uma fórmula de iniciação órfica: estas duas mãos a este ser verdadeira-
or~ íJɵis
,píJÉ-y~oµai ian'ii íJÚpa~ ó' E1TÍÍ1EOÍ1E, /JÉ/J1)ÀOt.
mente divino e admirável fiquei deita-
"Falarei àqueles a quem é permitido; aplicai ·
portas (aos ouvidos), ó profanos." (N. do
T.) 173 flíada, VI, 236. Enganado por Zeus, Glauco
172 Alcibíades aplicou literalmente a doutrina troca suas armas de ouro pelas de bronze de
de Pausânias. Cf. supra 184d-185b. (N. do T.) Diomedes (N. do T.)
56 PLATÃO
do a noite toda. Nem também isso, ó mos ali companheiros de mesa. Antes
Sócrates, irás dizer que estou falsean- de tudo, nas fadigas, não só a mim me
do. Ora, não obstante tais esforços superava mas a todos os outros -
meus, tanto mais este homem cre-sceu e quando isolados em algum ponto,
desprezou minha fuviriiiu:le: _lÜdibri(!U:- como é comum numa expedição, éra- 220 a
_a.___ insultou-a e justamente naquilo é_ mos forçados a jejuar, nada eram os
que eu pensava ser alguma coisa, outros para resistir - e por outro lado
senhores juízes; sois com efeito juízes· nas fartas refeições, era o único a ser
da sobranceria de Sócrates 1 7 4 - pois capaz de aproveitá-las em tudo mais,
ficai sabendo, pelos deuses e pelas deu- sobretudo quando, embora se recusas-
sas, quando me levantei com Sócrates, se, era forçado a beber, que a todos
foi após um sono em nada mais vencia 1 7 e ; e o que é mais espantoso de
d extraordinário do que se eu tivesse dor- tudo é que Sócrates embriagado ne-
mido com meu pai ou um irmão mais nhum homem há que o tenha visto. E
velho. disso, parece-me, logo teremos a
Ora bem, depois disso, que• disposi-
ção de espírito pensais que eu tinha, a prova. Também quanto à resistência
julgar-me vilipendiado, a admirar o ao inverno - terríveis são os invernos
.caráter deste homem, sua temperança e ali -· entre outras façanhas extraordi-
coragem, eu que tinha encontrado um nárias que fazia, uma vez, durante uma
homem tal como jamais julgava pode- geada das mais terríveis, quando todos
ria encontrar em sabedoria e fortaleza? ou evitavam sair ou, se alguém saía,
Assim, nem eu podia irritar-me e pri~ era envolto em quanta roupagem estra-
var-me de sua companhia, nem sabia nha, e amarrados os pés em feltros e
como atraí-lo. Bem sabia eu·, com efei- peles de carneiro, este homem, em tais
to, que ao dinheiro era ele de qualquer circunstâncias, saía com· um manto do
modo muito mais invulnerável do que mesmo tipo que antes costumava tra-
Ájax ao ferro, e na única coisa em que zer, e descalço sobre o gelo marchava
eu imaginava ele se deixaria prender, mais à vontade que os outros calçados,
ei-lo que me havia escapado. Embara- enquanto que os soldados o olhavam
çava-me então, e escravizado pelo de soslaio, como se o suspeitassem de
homem como ninguém mais por ne- estar troçando deles. Quanto a estes
nhum outro, eu rodava à toa. Tudo fatos, ei-los aí: ·
isso tinha-se sucedido anteriormente; mas também o seguinte, como o
depois, ocorreu-nos fazer em comum fez
uma expedição em Potidéia 1 7 6 , e éra- e suportou um bravo 1 7 7
174 Em sua embriaguez, Alcibíades figura mo- lá na expedição, certa vez, merece ser
mentaneamente um processo em que a acusa- ouvido. Concentrado numa reflexão,
ção de sobranceria dissimula justamente sua
defesa no processo histórico: a recusa de Só- logo se detivera desde a madrugada a
crates, um crime de orgulho nessa patuscada, examinar uma idéia, e como esta não
significa de fato sua inocência. (N. do T.) lhe vinha, sem se aborrecer ele se con-
175 Em 432, Potidéia, na Calcídica, recusou-se
a pagar. tributo a Atenas e foi pelos atenienses servara de pé, a procurá-la. Já era
sitiada, capitulando em 430. Essa insurreição
foi uma das causas imediatas da Guerra do 176 V. supra p. 17, n. 19. (N. do T.)
Peloponeso. (N. do T.) 177 Odisséia, IV, 242. (N. do T.)
O BANQUETE 57
meio-dia, os homens estavam obser- suas armas de hoplita. Ora, ele se reti-
vando, e cheios de admiração diziam rava, quando já tinham debandado os
uns aos outros: Sócrates desde a nossos homens, ao lado de Laques:
madrugada está de pé ocupado em acerco-me deles e logo que os vejo
suas reflexões ! Por fim, alguns dos exorto-os à coragem, dizendo-lhes que
jônicos 1 7 8, quando já era de tarde, d~- os não abandonaria. Foi aí que, me-
d pois de terem jantado - pois era lhor que em Potidéia, eu observei Só-
então o estio - trouxeram para fora crates - pois o meu perigo era menor,
os .seus leitos e ao mesmo tempo que por estar eu a cavalo -'- primeiramente b
iam dormir na fresca, observavam-no a quanto ele superava a Laques, em
ver se também a noite ele passaria de
domínio de si; e depois, parecia-me, ó
pé. E ele ficou de pé, até que veio a au-
Aristófanes, segundo aquela tua ex-
rora e o sol se ergueu; a seguir foi
pressão1 8 1, que também lá como aqui
embora, depois de fazer uma prece ao
ele se locomovia "impando-se e olhan-
sol. Se quereis saber nos combates -
pois isto é bem justo que se lhe leve em do de través", calmamente exami-
conta - quando se deu a batalha pela nando de um lado e de outro os amigos
qual chegaram mesmo a me condeco- e os inimigos, deixando bem claro a
rar os generais, nenhum outro homem todos, mesmo a distância, que se
me salvou senão este, que não quis alguém tocasse nesse homem, bem
abandonar-me ferido, e até minhas vigorosamente ele se defenderia. Eis
armas salvou comigo. Eu então, ó Só- por que com segurança se retirava, ele
crates, insisti com os generais 1 7 9 para e o seu companheiro; pois quase que,
que te conferissem essa honra, e isso nos que assim se comportam na guer-
não vais me censurar nem irás dizer ra, nem se toca, mas é aos que fogem
que estou falseando; todavia, quando em desordem que se persegue. - e
bem, caro Agatão, que nada mais haja tar-se ao lado de Sócrates; súbito
para ele, e faze com que comigo nin- porém uns foliões, em numeroso
guém te indisponha. grupo, chegam à porta e, tendo-a
Agatão respondeu: - De fato, ó encontrado aberta com a saída de
Sócrates, é muito provável que estejas alguém, irrompem eles pela frente em
, dizendo a verdade. E a prova é a direção dos convivas, tomando assento
maneira como justamente ele se recos- nos leitos; um tumulto enche todo o
tou aqui no meio, entre mim e ti, para recinto e, sem mais nenhuma ordem,
nos afastar um do outro. Nada mais é-se forçado a beber vinho em demasia.
ele terá então; eu virei para o teu lado Erixímaco, Fedro e alguns outros,
e me recostarei. disse Aristodemo, retiram-se e partem;
- Muito bem - disse Sócrates - a ele porém o sono o pegou, e dormiu e
reclina-te aqui, logo abaixo de mim. muitíssimo, que estavam longas as noi-
- ô Zeus, que tratamento recebo tes; acordou de dia, quando já canta-
ainda desse homem ! Acha ele que em vam os galos, e acordado viu que os
tudo deve levar-me a melhor. Mas pelo outros ou dormiam ou estavam ausen-
menos, extraordinária criatura, permi- tes; Agatão porém, Aristófanes e Só-
te que entre nós se acomode Agatão. crates eram os únicos que ainda esta-
- Impossível ! - tomou-lhe Só- vam despertos, e bebiam de uma
crates. - Pois se tu me elogiaste, devo grande taça que passavam da esquerda
eu por minha vez elogiar o que está à para a direita. Sócrates conversava
minha direita. Ora, se abaixo de ti 1 8 9 com eles; dos pormenores da conversa
ficar Agatão, não irá ele por acaso disse Aristodemo que não se lembrava
fazer-me um. novo elogio, antes de, - pois não assistira ao começo e
pelo contrário, ser por mim elogiado? ainda estava sonolento - em resumo d
m • Deixa, divino amigo, e não invejes ao porém, disse ele, forçava-os Sócrates a
jovem o meu elogio, pois é grande o admitir que é de um mesmo homem o
meu desejo de elogiá-lo. saber fazer uma comédia e uma tragé-
- Evoé ! - exclamou Agatão; - dia, e que aquele que com arte é um
Alcibíades, não há meio de aqui eu poeta trágico é também um poeta cô-
ficar; ao contrário, antes de tudo, eu mico. Forçados a isso e sem o seguir
mudarei de lugar, a fim de ser por Só- com muito rigor eles cochilavam, e pri-
crates elogiado. meiro adormeceu Aristófanes e, quan-
- Eis aí - comentou Alcibíades do já se fazia dia, Agatão. Sócrates
- a cena de costume: Sócrates presen- então, depois de acomodá-los ao leito,
te, impossível a um outro conquistar os levantou-se e partiu; Aristodemo,
belos ! Ainda agora, como ele soube como costumava, acompanhou-o; che-
facilmente encontrar uma palavra per- gado ao Liceu 1 9 0 ele asseou-se e,
suasiva, com o que este belo se vai pôr como em qualquer outra ocasião, pas-
ao seu lado. sou o dia inteiro, depois do que, à
Agatão levanta-se assim para ir dei- tarde, foi repousar em casa.
190 Ginásio dedicado a Apolo, às margens do
189 Isto é, à sua direita, entre ele e Sócrates. Ilisso, mais tarde utilizado por Aristóteles para
Agatão passaFa para a direita de Sócrates, a sua escola, que ficou com esse nome.
ficando este no meio do divã. (N. do T.) <N. doT.)