Short Stories">
Edgar Allan Poe...
Edgar Allan Poe...
Edgar Allan Poe...
Dissert acao de Mest rado O fant ást ico em Edgar Allan Poe e Machado de Assis Um est udo c…
Maylah Est eves
Vit imas e Algozes do Medo em "Feliz Ano Novo", de Rubem Fonseca (SEPEL 2011)
Luciano Cabral
ITAJUBÁ – 2006
MARIA LUIZA FERREIRA DE REZENDE
ITAJUBÁ - 2006
FICHA CATALOGRÁFICA
Data: ______/______/______.
BANCA EXAMINADORA:
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
Ao Motta, meu marido, que me fez refletir sobre um
projeto de vida.
This paper aims to present a study about the life and some literary works of
Edgar Allan Poe in order to consider and verify how death and anguish always
followed the work of the strange writer, influencing it and even becoming his very
artistic material. Five tales are analyzed: “The black cat”, “The fall of the house of
Usher”, “The oval portrait”, “The tell-tale heart” and “William Wilson”. The study
intends to show how Poe worked the fantastic elements in such a way he could
transpose his helplessness to his work. The worked material consists of Poe’s literary
production, theories about fantastic narrative and structure of the tale, as well as
psychoanalytic theories, tracing an intersection between literature and
psychoanalysis.
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 10
CONCLUSÃO ...................................................................................................... 67
INTRODUÇÃO
o seu sofrimento para uma outra cena: a produção artística. Mas nem todas as
pessoas possuem esse notável dom, por meio do qual poderiam partilhar seu
toda a sua obra e suas criações tornaram-se um canal para externar a angústia
estavam apenas Edgar e sua irmã mais nova. Com apenas três anos de idade, o
escritor conheceu a solidão de permanecer com sua mãe morta por muitas horas.
mãe.
possam revelar o horror vivido por ele em sua infância. Investigar como o talentoso
escritor recriou seu sofrimento por meio de suas obras constitui o foco deste
trabalho.
São analisados e estudados cinco contos de Edgar Allan Poe: “O gato preto”,
como Poe conseguiu transpor o desamparo vivido na infância para sua obra. O
horror vivida por ele, quando então permaneceu ao lado da mãe já morta, e se
palco de dramas que tendem a se repetir por toda a vida. As pessoas crescem, mas
carregam consigo a primeira visão de mundo que tiveram, ou pelo menos a visão
mais forte, mais profunda. Schopenhauer (apud YALOM, 2005, p. 46) afirmava que,
embora essa visão fosse mais tarde elaborada e aperfeiçoada, não se alterava na
sua essência, o que equivale a dizer que, a despeito de toda vitória que o homem
consiga sobre seus traumas infantis, não poderá jamais se livrar das impressões
vai livrá-lo de suas dores do passado. Mesmo que se vá à Lua ou a outros planetas,
mesmo que a fome seja erradicada da Terra, mesmo que cessem as guerras, cada
fardo pesado de lembranças, pois não lhe é possível apagar os dramas vividos em
sua época de criança. Assim, encerrado em sua própria impotência, percebe que
não tem direito sobre a complexidade das coisas. Resta-lhe a resignação de aceitar
os fatos, de saber que estará sempre à mercê daquilo que não pôde e não pode
decidir. As escolhas, estas aparecem mais tarde, mas, na primeira infância, não
13
existem. As crianças, reféns do saber dos adultos, enxergam o mundo como este
lhes é passado. O certo, o errado, o bem e o mal vão se configurar mais tarde, mas
mundo não se altera, soma-se ainda o fato de que as pessoas não são iguais, sua
Assim, as crianças mais sensíveis tendem a gravar com mais intensidade os fatos
escritores mesclaram vida e criação literária com tamanha intensidade que seria
mesmo. Franz Kafka isolava-se; escondia-se entre seus livros e sonhos, derramando
sua angústia em seu diário. Seus trabalhos retratam o desamparo em que vivia
dentro da própria família. Edgar Allan Poe, objeto de estudo deste trabalho, teve sua
Mas poderia o texto literário, sendo uma expressão de arte, não retratar o
belo e o prazeroso? Não seria sua função conduzir o leitor para aragens mais
frescas e libertá-lo da realidade dura em que vive? Felizmente a arte está onde está
o homem, sempre dividido entre o bem e o mal. Quando o homem se atreveu a sair
14
da “Caverna de Platão”, foi por não mais suportar conviver com o comum. Com
efeito, as tempestades são, por vezes, mais belas do que as calmarias violentas
com o que é belo, atraente e sublime, isto é, com sentimentos de natureza positiva,
mais do que com os sentimentos opostos, de repulsa e aflição. Mas “por estética se
entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir”
horror. E não estaria esse horror também revestido do belo? Para Edgar Allan Poe,
Mallarmé: “Eu não sabia amar senão onde a morte / Mesclava o seu ao hálito da
arrastar seu “eu”, suas experiências dolorosas, como a imensa cauda de um cometa
sombrio e tristonho. À medida que os escritores criam suas obras, vão revivendo
seus traumas infantis, usando personagens que, na verdade, são eles próprios, pois
criação literária, que não é dom de todos, possibilita que muitos indivíduos marcados
pela dor na infância consigam recriar sua experiência inicial de desamparo. E nessa
busca incessante por transpor o horror para a criação, ficam à espera de um público
que possa partilhar do efeito catártico que lhes é tão necessário. A literatura, quando
se reveste dessa função peculiar, permite que autor e leitor assistam à própria vida
15
sendo representada, e catarse é o termo que vem designar uma purificação, por
Polônia, aos quatorze anos, usou essa experiência como fio condutor de toda a sua
obra literária. Para ele, é óbvia a diferença entre quem escreve tendo conhecimento
de algo trágico e quem o faz baseado em sua própria experiência. Neste caso, a
literatura aparece como uma forma de salvação. Numa das passagens de sua obra
que só se juntam pelo ato de escrever” (KERTÉSZ apud BITTENCOURT, 2006, p.1).
De fato, para quem sofreu uma irremediável perda na vida, resta contemplar
Uma reportagem de Raul Juste Lores (2006, p.16) sobre o episódio da guerra
Esteban, que conta sua história em Malvinas-Diario Del Regreso. Interrogado pelo
sobreviventes, respondeu:
embora os fantasmas tenham continuado, como ele mesmo diz, pois não é possível
Rubem Alves (2000, p.87) dizia que “a psicanálise é uma luta para quebrar o
feitiço da palavra má que nos fez adormecer e esquecer a melodia bela”. Da mesma
identifica-se com este, para poder reviver ou repetir o mesmo drama. Dessa forma,
dá-se origem ao “duplo”, uma segurança contra a própria destruição do ego. “Em
1996b, p.252).
Edgar Allan Poe criou em suas obras um estranho que era ele próprio,
cento e cinqüenta anos de sua morte, ele continua sendo um dos ficcionistas mais
17
lidos e admirados no mundo inteiro. Foi um mestre da literatura policial, dos contos
expostos, atmosfera aterrorizante. Poe conseguiu ser original em suas criações, que
sempre repetiam a cena do terror. Sua obra foi dominada por um incrível fascínio
pela morte, que sempre foi sua fiel companheira de vida. Marcado por uma infância
difícil, ele transformou sua criação literária em um canal para externar seu
ele sempre procurou por um público que pudesse partilhar de seu sofrimento e lhe
próprios tormentos.
experiências. Teve um irmão mais velho, William Henry Leonard, deixado com os
abandonou a família ou se morreu, mas, qualquer que tenha sido a causa de sua
desaparição definitiva, houve algo a esse respeito que, mais tarde, causou grande
incômodo ao filho de Elizabeth. O pequeno Edgar, com apenas dois anos, passou a
A senhora Poe ainda teve uma menina, em 1810, a pequena Rosalie, cuja
saúde rapidamente deteriorada. As fadigas das turnês eram enormes e, para uma
mulher sensível, com dois filhos pequenos, esse modo de vida era difícil e exaustivo.
[...] alguns amigos faziam chegar às mãos dela mantimentos e roupas; sua
situação material, na verdade, era tão precária, que o seguinte apelo foi
publicado no Richmond Enquirer: “Esta noite, a Sra. Poe, definhando de dor
em seu leito e cercada pelos filhos, suplica sua ajuda, talvez pela última
vez”.
Em 9 de dezembro de 1811, a atriz morreu. Edgar estava sozinho em casa
com sua irmã Rosalie [...] O brilho dos olhos da Sra. Poe, fitando seu filho
de três anos, [...] viria a dominar toda a obra de Edgar Poe.
A marca traumática de sua infância foi a solidão que ele conheceu, durante
horas a fio, diante dessa morte: em seu desamparo, ele não tinha palavras
para nomear o irreparável. Somente no dia seguinte foi que uma amiga da
mãe, descobrindo o horror da situação, recolheu Edgar. Ela lhe serviu de
mãe adotiva. (MANNONI, 1995, p. 11-12).
Segundo Allen (1945), essa amiga da mãe de Poe foi a senhora Frances
Keeling Allan, a primeira esposa de John Allan, com quem se achava casada há oito
anos, sem filhos. É provável que Frances Allan e sua irmã já tivessem estado com a
mãe de Edgar algumas vezes e se interessado pela sorte de Elizabeth e seus filhos.
Não é difícil imaginar quais devem ter sido os pensamentos e emoções da senhora
desnudo em que moravam os Poes com o belo Edgar, de cabeça cacheada, nos
Depois da morte da mãe, Edgar e Rosalie não se viram por algum tempo.
Criança como era, mal podia o menino Edgar recordar-se das cenas reais que
cercaram a tragédia final de sua jovem mãe, mas deve ter tido consciência, naquele
em torno de si. Quando Edgar chegou à rua, foi separado de sua irmãzinha e de
súbito se viu sozinho com uma mulher afeiçoada, mas não obstante estranha. A irmã
Rosalie, que por certo protestara, tinha misteriosamente sumido nos braços de outra
juntamente com a senhora Allan, Edgar deve ter, pela primeira vez, sombriamente
Edgar Allan Poe foi levado para a casa de John Allan. Embora a senhora
Frances, sem filhos próprios, tenha amado intensamente Edgar, John Allan nunca
Poe começou a escrever muito cedo. Parte dos poemas contidos no seu
primeiro livro, conforme sua própria declaração, foi composta na idade de quatorze
anos. Bem cedo, teve ele uma grande experiência emotiva. Conheceu a mãe de um
amigo, a senhora Jane Stith Stanard, famosa por sua beleza, e nela encontrou o
ideal do primeiro amor, como todo jovem. O poema “To Helen” foi dedicado a Jane,
primeiro volume de uma coletânea de seus poemas. Junto do nome “Helen”, ele
veio a falecer. É sabido que Poe visitava freqüentemente o túmulo da mulher a quem
tinha dedicado seu famoso poema. “Helen” morrera, mas, algum tempo depois,
20
Edgar se apaixonou por Sarah Elmira Royster e, quando foi para a universidade de
Até então, havia Poe recebido uma boa educação, como muitos rapazes de
com que John Allan desistisse de custear seus estudos. A diferença entre eles
aumentou e mais tarde Poe afirmou em um relato: “Ele me tratou tão bondosamente
quanto o permitia sua natureza grosseira” (POE apud ALLEN, 1945, p.122). Edgar
tinha sido provido de casa e de educação, mas não obteve de seu pai adotivo a
casado com outro. Esta perda constituiu para Poe uma profunda fonte de
melancolia. John Allan queria que Edgar trabalhasse para ele, mas Poe certamente
não seria feliz como “homem de negócios”. Em março de 1827, Edgar saiu
Segundo Strickland ([19-]), Poe queria, mais do qualquer outra coisa, tornar-
se famoso. Nos anos seguintes continuou escrevendo e vivendo na pobreza. Ele foi
o primeiro autor americano que tentou ganhar a vida como escritor. Quando saiu da
casa de John Allan, procurou por sua avó, mãe de seu pai, em Baltimore. Ela vivia
em uma pequena casa com sua filha, a senhora Clemm, e a neta, Virginia. Poe
jornais. Uma das revistas que aceitou publicar alguns de seus poemas e histórias foi
21
como crítico de outros escritores, o que o tornou conhecido por toda a nação, bem
como a revista. Ele não temia expor suas opiniões sobre os trabalhos dos outros, o
Nessa época, Poe ainda vivia com a senhora Clemm e Virginia. Ele precisava
muito delas e talvez sentisse por elas um afeto de filho e irmão, mas acabou
casando-se com Virginia, ele com vinte e oito anos e ela com quatorze anos
incompletos. Alguns críticos costumam dizer que Poe se casou com Virginia apenas
para não perder sua nova mãe, a senhora Clemm, e o lar que ela tinha lhe dado.
Poe não parou de beber e perdeu seu emprego. A família mudou-se para
Nova York, depois para Philadelphia, onde ele se tornou editor do Burton´s
Magazine e também do Graham´s Magazine. De volta a Nova York, Poe foi editor do
Broadway Journal. Ele sempre foi um bom editor e sempre conseguia mais leitores
para cada revista ou jornal em que trabalhasse, mas nunca permaneceu em nenhum
emprego por mais de dois anos. Não era apenas por causa da bebida; ele e os
ele deixava o emprego. Poe continuou bebendo. Ele sabia que Virginia não viveria
as levavam para longe de seu cotidiano. Ele demonstrou ter muita habilidade para
esse tipo de literatura. Costumava dizer que escrevia histórias de terror porque era o
22
que as pessoas queriam ler e também porque poderiam dar a ele a fama desejada.
Durante seus últimos anos, Poe travou verdadeira batalha com editores e
críticos em Nova York. Pelo início de 1847, ele sabia que já havia perdido essa luta
e provavelmente tinha bem mais inimigos. Em janeiro daquele ano, Virginia morreu.
Daquele momento em diante, Poe só decaiu e seu espírito foi destruído. Ele passou
encontrar uma de suas ricas amigas que poderiam se casar com ele. Continuou
Recolhido numa sórdida taberna, Edgar Allan Poe foi internado num hospital
de Baltimore nos primeiros dias de outubro de 1849, vazando álcool por
todos os poros. Dali só sairia para o cemitério. Vez por outra despertava do
coma e gritava por um nome, Reynolds. Na manhã de 7 de outubro, um
domingo, acalmou-se por um bom tempo e, às horas tantas, moveu devagar
a cabeça e balbuciou suas últimas palavras: “Senhor, ajudai minha pobre
alma”. (AUGUSTO, 1999, p.12).
23
Durante a Idade Média, o conto viveu sua época áurea, com o aparecimento
de Boccaccio, com Decameron, e Chaucer, com Canterbury Tales. Nos séculos XVI
viveu sua época de glória. Tornou-se “forma artística”, adquirindo importância, e foi
com Trois Contes. Maupassant foi um verdadeiro mestre do conto, sendo imitado
Boule de Suif, La Maison, Tellier e Contes du Jour et de la Nuit. Além dos escritores
franceses, no século XIX, surgiu o norte-americano Edgar Allan Poe, com Tales of
the Grotesque and Arabesque e The Murders in the Rue Morgue; o russo Nicolai
Gogol, que, juntamente com Poe, introduziu o conto moderno; Anton Tchecov,
também destacado escritor russo, que soube bem traduzir a alma eslava com seus
mistérios e misticismo; e o alemão Hoffmann, que ficou famoso com seus Contos
No século XX, mais ainda do que no século XIX, o conto atingiu seu brilho
máximo, chegando até nossos dias como forma “erudita” ou literária. Uns poucos
nomes serão suficientes para dar uma idéia da grande diversidade: Anatole France,
como uma das formas literárias mais flexíveis. Entretanto, mesmo passando por
contínuas mudanças, mais de ordem cultural, ele se manteve com uma estrutura
única. Por mais diferenças que possam ser apontadas entre as histórias, desde as
mais antigas até as mais atuais, é possível perceber que o conto permaneceu como
uma narrativa com características estruturais comuns. Ele traz uma história completa
e fechada, não sendo possível ser estendida esta história para um romance, da
25
mesma forma que um romance não pode ser abreviado nas proporções de um
conto.
conflito e que este conflito também promove uma ação, havendo, pois, uma
movimentos interiores. Pelo fato de compreender uma única ação ou conflito, não é
possível ao conto conter divagações excessivas, porque cada palavra ou frase tem
sua função econômica na narrativa. Assim, o contista pode lançar mão da síntese
espaço é apresentado sempre de forma restrita, podendo ser uma rua, uma casa e
sobre passado ou futuro dentro da história. Assim, sempre voltado para o centro da
objetividade, mais especificamente nas três unidades, de ação, tempo e lugar. Pode-
sucesso do conto.
complementam a ação.
enredo nem ação. O discurso, além de se classificar como externo ou interno, pode
podendo variar conforme o tipo de história, pois há aquelas que exigem mais
Penn Warren (apud MOISÉS, 1967, p.66-67), os focos narrativos poderiam ser
O autor deve optar pelo ponto de vista que melhor se ajuste para narrar uma
Entre os tipos de conto, estão: o conto de ação, tipo mais comum; o conto de
que os dois anteriores; o conto de idéia, muito utilizado no século XVIII; e o conto
conto diz respeito ao início e ao epílogo. Para Edgar Allan Poe, o epílogo possui
“Nada é mais claro do que o fato de que todo enredo digno do nome deve ser
elaborado tendo em vista o desenlace, antes que mais nada seja tentado com a
pena” (POE apud MOISÉS, 1967, 81). Considerado, assim, o clímax da narrativa, o
nome “conto à Maupassant”. Com idéias contrárias às de Poe, Tchecov via o epílogo
como algo que pudesse ser descartado, o que deu origem ao “conto moderno”, sem
escritor russo ainda acreditava que o conto podia e devia prescindir de explanações
do conto constitui o maior desafio que os escritores podem enfrentar, pois ele deve
nortear todo o restante da narrativa. Uma vez preso às primeiras linhas, o leitor
certamente prosseguirá até o fim e o autor terá realizado seu intento. O contista
tradicional ou se à Tchecov.
29
Parece porque é.
Edgar A. Poe
Em seu conto “Of Missing Persons”, Jack Finney (1958) relata a história de
sentir qualquer alegria na vida, arriscam tudo por um bilhete de ônibus que as levará
para outro mundo ou outra dimensão. Instigado pelo agente de viagens para que
diga para onde realmente quer ir, o personagem, contando sua história na primeira
“Do quê?” “Bem” – Agora eu hesitei; eu antes nunca tinha colocado isto em
palavras. “De Nova York”, eu disse. “E das cidades em geral. Fugir das
contrariedades. Do medo. E das coisas que leio nos jornais. Da solidão”. E
agora então eu não podia parar, embora eu soubesse que estava falando
demais, as palavras saíam assim, cuspidas de minha boca. “Escapar de
nunca estar fazendo o que eu realmente quero ou ter, afinal, um pouco de
diversão ou felicidade. Fugir de viver meus dias apenas para permanecer
vivo. Escapar da própria vida – pelo menos do jeito que ela se apresenta
hoje”. Eu olhei diretamente para ele e disse suavemente, “Do mundo”.
(FINNEY, 1958, p.24, tradução nossa).
lugar não identificado, mas, ao que tudo indica, algum outro planeta. No folder, estão
escritas as palavras: “Romântica Verna, onde a vida é como deveria ser” (FINNEY,
naquele lugar, paga o bilhete, que é “one way only”, ou bilhete apenas de ida. No dia
O conto de Jack Finney é um exemplo de narrativa fantástica tal como ela era
homem percebeu que não existia mais espaço seguro para ele. De repente, sua
casa ficou povoada por estranhos objetos e estranhas pessoas e, assim como o
lugar onde pudesse viver sem medo. Segundo Volobuef (2000, p.109):
incapacidade para lidar com a realidade absurda dos dias em que vivia.
vida ao fantástico e o que leva alguém a exclamar: “ ‘Quase cheguei a acreditar’: eis
pode ser auxiliada pelo emprego de certos recursos na escrita, como os processos
dizer que ela muitas vezes remete à loucura, tornando-se necessário questionar se
esta não seria, na verdade, uma razão superior, como faz o narrador de “Eleonora”:
ao final da narrativa, opta por uma solução, ou seja, se ele decide se o que percebe
se deve ou não à realidade, ele sai do fantástico. Se o leitor conclui que as leis da
a obra pertence ao gênero do estranho. Se, ao contrário, ele decide que deve admitir
novas leis da natureza pelas quais o fenômeno possa ser explicado, tem-se o
conservando o fantástico como uma fronteira entre dois domínios vizinhos. Neste
fantástico puro, pois este, pelo próprio fato de não ter sido explicado racionalmente,
dos autores. Quando a sociedade condena certos atos, ela provoca uma
considerados loucos podem agir sem medo, pois, sem a censura, obtêm liberdade
plena. Torna-se claro, afinal, que a função social e a função literária do sobrenatural
33
preto” questiona:
Quem alguma vez, ou muitas vezes, não se pegou fazendo alguma coisa
errada ou má, só pelo fato de saber que é errada? Não somos nós,
humanos, empurrados, dirigidos por algum meio desconhecido a quebrar a
lei justamente porque sabemos que é a lei? (POE apud STRICKLAND, [19-
], p.8, tradução nossa).
Pense [...] pense naquele exato momento quando você está quase
dormindo, mas ainda não adormeceu por completo. Você sonha sonhos
estranhos e aí quando você dorme profundamente, você os esquece. (POE
apud STRICKLAND, [19-], p.12, tradução nossa).
Segundo Strickland ([19-]), Poe afirmava que podia chegar nesse estágio do
sono e então retornar para o mundo real, lembrando-se dos sonhos daquele meio
mundo de que acabava de voltar. Dizia ele que esses sonhos eram o material de
amistoso. De forma curiosa, “heimlich” é tão familiar e íntimo que acaba se tornando
oculto. Pode-se dizer que, se alguém nutre um grande e impossível amor, este amor
sentimento oculto, pelo fato de este amor secreto não poder ser revelado. Da
mesma forma, uma casa, sendo familiar, é “heimlich” e, no entanto, também é algo
ou, como diz Freud, “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao
consciente, mas também existe o que não é conhecido e que, portanto, está no
inconsciente.
uma pessoa encontra-se “escondido”, é estranho, mesmo sendo seu. Ocorre que,
idéia de duplicidade do homem, ou seja, existe um “eu” que se conhece e outro “eu”
revela que:
[...] o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida
sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um
estranho. [...] E, finalmente, há o retorno constante da mesma coisa – a
repetição dos mesmos aspectos, ou características, ou vicissitudes, dos
mesmos crimes, ou até dos mesmos nomes, através das gerações que se
sucedem. (FREUD, 1996b, p. 252).
Este tema também é abordado por alguns estudos citados por Freud, como o
de Otto Rank:
Ele [Otto Rank] penetrou nas ligações que o “duplo” tem com reflexos em
espelhos, com sombras, com os espíritos guardiões, com a crença na alma
e com o medo da morte; mas lança também um raio de luz sobre a
surpreendente evolução da idéia. Originalmente, o “duplo” era uma
segurança contra a destruição do ego, uma “enérgica negação do poder da
morte”, [...] e, provavelmente, a alma “imortal” foi o primeiro “duplo” do
corpo. (FREUD, 1996b, p. 252).
do trem, mais violento do que o habitual, fez girar a porta do toalete anexo, e um
senhor de idade, de roupão e boné de viagem, entrou. Freud presumiu que ele, ao
que o intruso não era senão seu próprio reflexo no espelho da porta aberta.
comenta que não devemos ficar assustados com os nossos “duplos”, mas deixar de
por este contato não seria um vestígio da reação arcaica que sente o “duplo” como
O “estranho” que mora no inconsciente de uma pessoa pode vir à tona após
uma transformação ou tradução para o consciente, como bem diz Freud e certa
Às vezes sinto que se abrem portas dentro de mim, ou caminhos, que não
me lembro, mas que são meus, tenho certeza. Encontro com outras de mim,
que são eu mesma. Ao mesmo tempo essas outras são “estranhas”,
pessoas com quem tenho que me habituar a conviver e são tão diferentes
de mim, do que sou e do que fui. Mas gosto tanto delas. Gostaria de ter sido
como elas, que loucura! Onde foi que estive tanto tempo, em que prisões
que me guardavam tão bem? É como se estivesse nascendo agora, ou
saindo de um estado de coma, onde todas as coisas têm que ser
reaprendidas, ou ainda, enxergando pela primeira vez um mundo que eu já
1
conhecia, mas apenas pelo tato e pelos sons.
sublimes” e que residem juntamente em seu peito “um demônio que ruge e um deus
que chora”2 . Rubem Alves pergunta: “Será isto? Em nós mora um outro? [...] Que
conto “William Wilson”, ele explora abertamente este tema, com o narrador, em
1
Relato pessoal da autora deste trabalho.
2
Trechos do poema “Dualismo”, de Olavo Bilac, do site<http://www.portrasdasletras.com.br>.
37
primeira pessoa, contando como foi perseguido por um homem que era um
homônimo seu e possuía os traços físicos semelhantes aos seus. Como narrativa
animista do universo:
assaltado por uma terrível ira, mas é sabido que guarda dentro de seu inconsciente
sua loucura e seus terríveis tormentos. Adotaram essa prática por um simples estilo?
Ou, graças ao dom de escrever, utilizaram a escrita como canal para expressar suas
sentimentos.
38
escritor, que pode incluir mais dados e assim obter uma espécie de totalidade do
profundas para transpor para a ficção o que foi reprimido e o que foi superado,
[...] em primeiro lugar, muito daquilo que não é estranho em ficção sê-lo-ia
se acontecesse na vida real; e, em segundo lugar, que existem muito mais
meios de criar efeitos estranhos na ficção, do que na vida real. (FREUD,
1996b, p.266).
o que é do reino da fantasia não exerce nenhuma influência estranha, por uma
mundo maravilhoso são conhecidos por todos, mas também outras histórias
poética.
acontecer na realidade. Freud chama a atenção para o fato de que, nesse tipo de
obra, quando o escritor faz emergir eventos que nunca ou muito raramente
acontecem, ele trai, de certo modo, a superstição superada, pois o leitor é iludido
pela promessa da pura verdade, a qual não é respeitada. As reações do leitor são as
tarde demais, porque o autor já alcançou seu objetivo. Freud diz que o escritor pode
manter o leitor por muito tempo às escuras, evitando, de forma astuta e engenhosa,
permanece por todo o tempo? Neste ponto, precisamente, Freud abre uma porta
É importante explicitar que Freud analisou todos esses fatores tendo em vista
o efeito de estranheza que era causado ou não nos leitores de ficção, e este
externaram sua dor. Suas criações são fantásticas e são reais. Em Amor, Ódio,
suas histórias de assombração. Em sua infância, com oito anos, contraiu tifo e só
preço, para ela, do mais total isolamento numa ala de hotel, onde teve que
única pessoa a ver a menina era esse médico, cuja aparição podia assemelhar-se,
imprensa que, aos seis anos de idade, havia praticado uma má ação e o pai, para
quando não tinha ainda cinco anos, ficou trancado num armário da casa da avó.
Durante o tempo que ela demorou para encontrar a chave, ele rasgou com os
dentes a roupa que lá estava. Os vestígios dessa experiência original são visíveis
Edgar Allan Poe conheceu a solidão durante horas a fio diante de sua mãe
morta, tendo apenas por companhia sua irmã pequena e doente. O brilho dos olhos
da mãe fitando-o viria a dominar sua obra, resultando no fascínio pela morte - pela
morte real, mas revestida de uma aparência fantástica. Sob os traços horrendos de
cadáveres, eram os olhos de sua mãe que não paravam de persegui-lo e que ele
41
exibia ao leitor. Ele buscou o fim de sua vida no ópio e no álcool, que o mataram,
4. O ETERNO RETORNO
essa espécie de texto literário, caracterizando-se por serem narrativas curtas, com
mas também, e principalmente, de ações internas, uma vez que o conflito sempre se
internos, como interiores de casas, castelos, quartos, adegas e até mesmo celas de
prisão. Quando o autor optava por inserir cenários externos, ele o fazia com o
adequadas ao tom lúgubre, sempre utilizado por ele. O tempo abordado nos contos
certa linearidade, eles são conduzidos por uma ordem determinada pelo desejo,
imaginação e vontade do narrador, que conta sua história sempre após os fatos já
terem acontecido.
aos leitores, todo o texto não passa de um monólogo por meio do qual ele procura
43
ponto de vista do narrador, que as relata em primeira pessoa, o que faz com que a
valorizava este último, afirmando que tudo convergia para o fim da história, o que
pode ser comprovado por meio da análise dos contos que se segue, os quais foram
construídos de maneira a fazer com que o leitor espere avidamente pelo desfecho
do drama.
“O gato preto” é um dos mais conhecidos contos de Edgar Allan Poe. O autor
inúmeras análises feitas sobre “O gato preto”, que foi publicado inicialmente no
United States Saturday Post (The Saturday Evening Post) em 19 de agosto de 1843
(QUINN, 1941).
relata seu drama “para aliviar sua alma” (POE, 2005, p.9) . Tal qual sua mulher, fora
amigo dos animais e mais especialmente de seu gato preto chamado Plutão.
gato, enforcou-o em uma árvore em frente à sua casa. Na mesma noite um incêndio
destruiu toda a casa, com exceção de uma única parede, que, para assombro de
dúvida se essa imagem seria ou não um fato sobrenatural. Algum tempo depois, ele
encontrou um outro gato preto e o levou para casa. Curiosamente, assim como
Plutão, esse gato também não tinha um olho, mas trazia no peito uma mancha
branca, que, aos poucos, se revelou como a figura de uma forca, para horror de seu
dono. Sua afeição pelo animal logo se transformou em ódio e, certo dia, após o gato
para matá-lo. A mulher tentou impedi-lo e recebeu o golpe em seu crânio, caindo
morta sem um único gemido. O protagonista colocou seu corpo dentro de uma
praticamente impossível que seu crime fosse descoberto. Em seguida, procurou pelo
casa e a adega, com muita confiança. Sentia-se tão alegre em sua façanha que
abusou da sorte, batendo com a bengala na parede onde estava o corpo da mulher
para mostrar como a casa havia sido bem construída. Nesse momento, um gemido
sua cabeça, com a boca vermelha escancarada e o olho solitário faiscando, estava
“O gato preto” foi escrito por Poe no século XIX, época em que o sobrenatural
alucinações e pesadelos. Com efeito, logo no início do conto, o narrador, tomado por
45
uma grande angústia, confessa não estar certo de que os acontecimentos que irá
relatar não tenham sido um sonho ou mesmo efeito de loucura: “Tanto que até
agora penso que sonhei. Ou que enlouqueci. Não, louco não devo estar” (POE,
2005, p.9).
Este conto de Edgar Allan Poe, em que o personagem principal conta sua
apresentada por Todorov (1969), uma vez que o leitor é tomado por uma hesitação
constante que o leva ora a acreditar nos fatos, procurando para eles uma explicação
natural, ora a aceitá-los como sobrenaturais. Essa mesma hesitação é sentida pelo
acreditar: “Inacreditável que tudo isso tenha acontecido” (POE, 2005, p.9). A
hesitação, de fato, dá vida à história, pois, logo que surge uma explicação natural
de sua casa ter sido consumida pelo incêndio, ele diz: “Não quero pensar se essa
desgraça teve alguma relação com as atrocidades cometidas por mim. Mas também
não quero deixar que seja esquecido nem um elo dessa cadeia” (POE, 2005, p.12).
Mais adiante, ele tenta encontrar uma explicação racional para a figura do gato
durante todo o conto, pois é notória a crença popular que relaciona gatos pretos com
feiticeiras disfarçadas.
provavelmente toma o protagonista por uma pessoa insana, pois, de maneira geral,
produzida pelo álcool. De uma irritabilidade, ele foi desenvolvendo sentimentos cada
vez mais agressivos até chegar à total perversidade, responsável por ações que só
remorso, porém caracterizado por um sentimento tíbio que logo era esquecido, até o
psicótico que teve seu estado agravado pelo vício do álcool, pois os psicóticos, os
Essa questão é abordada pelo narrador do conto, que pergunta quem já não teria
sido tentado a transgredir uma lei só pelo fato de ser uma lei, ou de fazer uma coisa
embora insista em dizer que dormiu “profunda e tranqüilamente” (POE, 2005, p.15).
Afinal, o cadáver deve ser descoberto e o mal reparado com o criminoso sendo
punido. Neste conto e em muitos outros de Poe, ele insiste em expor a morte,
libertados. É possível enxergar por trás desse fato o próprio Poe horrorizado,
recusando-se a permanecer trancafiado com sua mãe morta, exigindo que alguma
estratégia seja tentada para que todo o mal venha à tona e a suposta culpa seja
bravata, talvez seja Poe que suplique que encontrem o corpo de sua mãe e o
libertem.
Edgar Allan Poe tinha sérios problemas causados pelo vício do álcool. Ao
escrever este conto, ele se mostrou, trazendo à tona o indivíduo atormentado que
ele próprio se tornara devido aos inúmeros distúrbios emocionais sofridos desde a
infância. É inegável que ele pretendia mostrar o homem em toda sua crueza, em
personagem de “O gato preto” relata que desde menino fora “[...] dócil, humano.
Sempre tão cheio de ternura para com as pessoas, os animais, as coisas mesmo”
(POE, 2005, p.9). Mais tarde uma transformação radical modifica sua personalidade,
estranho, que era ele mesmo, mas que nem ele conhecia: “Eu me embrutecera [...]
que compartilha com o leitor sua angústia. O protagonista, não sabendo conviver
com seu outro “eu”, dá vazão aos seus instintos maus e reconhece a perversidade
que habita dentro de si e que acaba sendo sua própria ruína. De fato, “o estranho”
emerge e, no caso específico do personagem, a causa parece ser o álcool, que lhe
primitivos de que fala Freud (1996b), exibindo os traços e resíduos dessa fase que
posta para fora e ganha expressão quando ele age livremente cometendo atos
criminosos.
referência que Poe faz aos olhos. O protagonista arranca um dos olhos de Plutão.
Poderia ter ferido o animal de outra maneira, mas existe uma fixação pelos olhos.
Talvez essa obsessão resulte da imagem do brilho dos olhos da mãe do escritor, os
quais nunca foram esquecidos por ele e marcaram sua obra para sempre.
pode ser visto como uma representação de Poe, porém em um estado de tormento
castigado por seus crimes. Poe, por sua vez, também deve ter tido necessidade de
ele já se sentiu oprimido pela atmosfera sombria e macabra do lugar, onde tudo
49
parecia mergulhado numa tristeza mortal. A casa, desbotada pelo tempo, tinha uma
Apenas um olhar mais observador poderia perceber uma fenda que descia do
telhado até o chão. Roderick estava sofrendo de um mal de família incurável, talvez
uma doença nervosa, e confessou ao amigo que grande parte da tristeza que o
afligia era por causa da irmã gêmea, única pessoa da família, Lady Madeline, que
conservou o corpo da irmã durante quinze dias num dos nichos do interior das
paredes da casa, antes do sepultamento final. O narrador descreve esse lugar como
uma galeria “pequena, úmida, apertada, profunda e quase sem ar” (POE, 2005,
p.75). Após parafusarem a tampa do esquife, eles voltaram para a parte superior da
casa. Algum tempo depois, numa noite de tempestade, sem conseguir dormir, o
personagem encontrou-se com Roderick, também insone, e este disse estar ouvindo
preferido até que, sem mais dúvidas quanto aos barulhos, os dois se depararam
com a figura de Lady Madeline, que apareceu com sinais de sofrimento e luta.
desmoronava por aquela fenda que descia do telhado, nada restando da casa de
Usher.
gato preto”, apresenta um diferente foco narrativo, pois a história é contada por um
fantástica, uma vez que novamente o leitor é tomado pela hesitação entre o lógico e
inicialmente normal e natural, mas logo o leitor percebe, pelo ambiente sombrio e
da casa de Usher e das pessoas que lá viviam. A loucura dos irmãos é sugerida pela
família. Incurável. Talvez mais uma doença nervosa [...] Percebi que era uma forma
médicos [...] O diagnóstico era difícil” (POE, 2005, p.73-74). A descrição que o
jamais se alterara de modo tão terrível quanto Roderick Usher! Seu aspecto era o de
irmão está hospedado na casa e tudo indica que ela deixa de viver: “Sim, porque
daquele ataque não saiu mais” (POE, 2005, p.74). O leitor pode se perguntar se a
ocorre nas doenças de caráter epilético, uma leve cor na face e um sorriso suspeito
são conservados, e nada é tão terrível nos lábios fechados para sempre” (POE,
2005, p.75). Alguns dias depois, durante uma terrível tempestade, os dois amigos
permanece até o fim da história, quando, após ver Lady Madeline viva e ferida por
51
retorna à citação do início da história, em que o narrador fala sobre a fenda que
descia do telhado até o chão e que somente podia ser percebida por um olhar
não pode precisar se a destruição da casa foi provocada pela fenda que já se
tornara visível ou se foi por força dos estranhos acontecimentos que lá tiveram lugar.
tristeza, em que o leitor é contagiado pela imensa solidão e terrível angústia que
Usher, um lugar tão depressivo que faz o narrador exclamar: “Sei que, de repente,
tudo piorou quando vi a casa. [...] Era como se a atmosfera de fora me tivesse
penetrado até os ossos” (POE, 2005, p. 70). A natureza naquele lugar parece estar
ainda era criança, esta não se apresenta mais familiar, mas com imagens e objetos
do interior da casa de Usher são infinitamente ricas. O escritor sabia que, para obter
De forma diferente do conto “O gato preto”, este não aborda a violência, mas
seu corpo durante quinze dias antes do sepultamento final em um nicho do interior
das paredes principais do edifício. Mas Lady Madeline não estava morta, apenas foi
pessoa sem vida. Dias depois, ela consegue se libertar da prisão de seu túmulo e
reaparece para horror do irmão e do amigo. Em se tratando de ficção, esse fato não
vida poderia significar o desejo de Poe de que sua mãe não estivesse morta, apenas
ser vista como uma revelação de como Poe teria se sentido preso no local onde sua
mãe morrera: “Essa galeria era pequena, úmida, apertada, profunda e quase sem
neste conto à tristeza mortal que aquela casa refletia: “À minha frente, o prédio nu,
de construção muito simples, abria suas janelas como olhos vazios” (POE, 2005,
Poe também evidencia neste conto a decadência de uma família, nas figuras
de Roderick Usher e Lady Madeline, que são unidos por laços estranhos, não
53
explicados pelo narrador. Ambos sofrem de uma mesma doença: “Talvez mais uma
lados de uma personalidade, tema que muito interessou Poe e que remete ao
as pessoas que amava. Ele, tal qual Roderick, teve uma irmã pequena, da qual foi
escritor apostando que ele se casou com Virginia mais por um amor fraterno do que
outro sentimento (STRICKLAND, [19-]). O fato é que não é possível separar a obra e
a vida de Edgar Allan Poe, pois é evidente que ambas sempre estiveram
entrelaçadas.
ferido, encontrou um castelo onde ele e seu criado podiam se abrigar. Embora
arrumado e limpo. Ocuparam uma torre afastada dos outros aposentos. O quarto
uma moldura oval. Buscando o livro que contava a história das pinturas, ele
encontrou a daquele quadro. Aquela moça era uma linda e alegre jovem que se
apaixonou por um pintor, com o qual se casou. Mas ela tinha uma terrível rival – a
54
Arte. O artista resolveu pintar o belo rosto de sua esposa. Ela, humilde, aceitou.
Enlouquecido pela sua arte, o artista passou dias e noites a pintar, sem perceber
que a jovem enfraquecia e perdia a saúde. O retrato já estava chegando ao seu final
quando o pintor proibiu que entrassem na torre, afirmando que só ele e a jovem
poderiam lá ficar. Ele pintava insanamente, sem olhar para ela. Se a tivesse olhado,
ele teria visto que as cores que espalhava sobre a tela eram tiradas das faces de
colorido nos olhos. Contemplando sua pintura, sem perceber que a jovem já estava
secundário, que toma conhecimento dos fatos principais quando chega ao castelo
com o clima de mistério: “Esses quadros, não sei se por sua originalidade ou pelo
de incerteza diante da veracidade dos fatos contados. Afinal, eles podem ter sido um
sonho, embora o narrador diga o contrário: “Bem, não podia agora duvidar. Eu
estava acordado, meus olhos já se haviam habituado à luz das velas que incidiam
A loucura neste conto é representada pelo pintor, que é apaixonado pela sua
arte ao extremo de transpor os traços de sua amada para a tela. Enlouquecido, não
percebe que desloca para o quadro não apenas os traços, mas a própria amada,
55
pois é com as cores de suas faces que ele pinta. Já não distingue mais quem é a
demais, é a própria amada que está presente no quadro. Quando o pintor exclama,
ao final, que aquilo é a própria vida, ele, tomado pela loucura, não sabe que a
mulher está morta, apenas enxerga a vida no quadro. Vida e arte são uma só. Poe,
assim como o personagem pintor de “O retrato oval”, viveu uma espécie de loucura
e sabia que apenas sobreviveria pela arte. Segundo Marie Bonaparte, “o poder de
cura sublimatório que provinha da arte foi o que impediu Poe de expressar seu
Poe sempre enxergou beleza na morte; para ele a imagem desta estava
Sua abordagem sobre a vida após a morte não era especificamente cristã,
embora ele, muitas vezes, acreditasse em um ser supremo; ele estava mais
interessado na possibilidade de que o indivíduo pudesse continuar vivendo
após morrer. (SYMONS, 1978, p.235).
O pintor e a amada sem vida confinados na torre podem ser vistos como Poe
e sua mãe morta. Não era possível para o menino Edgar aceitar que ela tivesse
morrido; restou-lhe tirar dela suas feições e gravá-las de tal modo que ficassem
indelevelmente vivas em sua mente. Pelo resto de sua vida, em todas as mulheres
que encontrou ou que criou, Poe remeteu ao passado e retirou da mente as cores
das faces da mãe, fazendo um eterno retorno, uma repetição que causa horror. Em
56
“O retrato oval”, mais uma linda mulher é morta, mas deve, de alguma maneira,
permanecer viva, pois o autor precisava dessa vida para manter a sua própria.
jovem. Mas um quadro poderia ter vida? É apenas uma figura, como um boneco, e
Ao contar uma história, um dos recursos mais bem sucedidos para criar
facilmente efeitos de estranheza é deixar o leitor na incerteza de que uma
determinada figura na história é um ser humano ou um autômato, e fazê-lo
de tal modo que a sua atenção não se concentre diretamente nessa
incerteza, de maneira que não possa ser levado a penetrar no assunto e
esclarecê-lo imediatamente. Isto, como afirmamos, dissiparia rapidamente o
peculiar efeito emocional da coisa. E.T.A. Hoffmann empregou repetidas
vezes, com êxito, esse artifício psicológico nas suas narrativas fantásticas.
(JENTSCH apud FREUD, 1996b, p.245).
passa a vida toda reconhecendo o fantasma de sua infância em cada pessoa que
encontra.
Em “O retrato oval”, Poe expôs abertamente sua loucura por meio de uma
estranha história em que a arte não se limita a imitar a vida, mas a matá-la, porque
que não é louco, apenas nervoso. O motivo para seu nervosismo era o olho de um
57
velho. Diz o narrador-protagonista que até gostava do homem, mas seu olho
desbotado de cor azul-pálida fazia seu sangue se enregelar. Decidiu, então, acabar
com o velho. Na semana que se seguiu, foi todas as noites vê-lo dormindo. Levava
uma lanterna e colocava a cabeça com muito cuidado para dentro da porta para não
fazer barulho. Na oitava noite, riu com gosto, entre os dentes, ao se lembrar de que
podia abrir a porta e ver o velho dormindo sem que este suspeitasse de nada. Nessa
noite, sem querer, ele fez um barulho e percebeu que o velho o ouvira e estava com
muito medo. Esperou um pouco, depois abriu a lanterna e o raio de luz caiu bem em
cima do olho desbotado. O protagonista, sentindo sua fúria crescer, começou a ouvir
o som das batidas do coração do velho, que faziam um barulho infernal. Mais
enfurecido ainda, ele matou o pobre homem. Sorriu aliviado, esquartejou o corpo e o
enterrou embaixo das tábuas do quarto. Os policiais vieram bater à sua porta,
alegando que um dos vizinhos ouvira um grito. O protagonista os fez entrar, disse-
lhes que o velho estava ausente e mostrou-lhes o quarto. Colocando sua própria
cadeira bem em cima de onde estava o cadáver, percebeu que os policiais estavam
satisfeitos. Mas, de repente, sentiu que não estava bem, que sua cabeça doía, e
começou a ouvir um barulho que foi ficando cada vez mais alto, parecido com as
protagonista, que acreditava não ser possível os policiais não o ouvirem. Qualquer
coisa lhe parecia melhor do que aquilo. Não suportando mais a situação, gritou:
“Miseráveis! Não finjam mais! Confesso o meu crime! Arranquem as tábuas, aqui...
“O gato preto”, a perversidade e a loucura são enfocadas por Poe. Existem aspectos
coração denunciador”, o narrador diz: “É verdade! Sou muito nervoso. Mas não sou
louco [...] Eu sei tudo o que fiz com o velho. Ninguém pode me chamar de louco. Os
loucos nada sabem” (POE, 2005, p.118). Ao final da história, não mais suportando a
agonia de ouvir pulsar o coração do velho, confessa seu crime. Também semelhante
decidi acabar com o velho [...] Ri com gosto, entre os dentes, ao me lembrar que
podia abrir a porta, vê-lo dormindo, e ele nem sequer sonhava com meus atos ou
Naturalmente, ele sabe tratar-se de uma ficção, o que garante ao escritor poderes
para ampliar o efeito de estranheza (FREUD, 1996b). O leitor também sabe que, na
vida real, estes eventos estranhos, embora mais raramente, podem acontecer.
forma permanece até o final da história, ansioso pelo desfecho, que, para Poe, era
de suma importância.
59
A batida do coração do velho, que enquanto este era vivo já havia enfurecido
homem já estava morto, mas o leitor experimenta uma hesitação, pois também pode
esse som era apenas uma impressão provocada pela loucura do narrador-
atormentado que deixa emergir o estranho que está dentro de si, libertando-o para
cometer um crime terrível. A loucura, desta vez, embora negada pelo narrador, fica
mais evidenciada, visto não ser causada pelo álcool, como em “O gato preto”, mas
vítima, pois ele decide matar o velho baseado no argumento de que seu olhar era
algo terrível e insuportável, que, portanto, deveria ser eliminado: “Não havia motivo.
Penso que era o olhar dele! Sim, era isso. [...] E quando me olhava, meu sangue se
enregelava. [...] Eu não o matei. Destruí seu maldito olho de abutre que me punha
feita por uma pessoa tomada pela loucura: “Só abria o bastante para passar minha
cabeça, e a lanterna. Eu queria vê-lo, sem perturbar-lhe o sono. Então, levava uma
60
hora para colocar a cabeça toda na abertura. Até vê-lo deitado” (POE, 2005, p.119).
É sabido que os loucos negam sua loucura e o autor do texto usou essa negação
que, em outro conto de Poe, “Eleonora”, o narrador questiona se a loucura não seria
“a mais suprema inteligência” (POE, 1988, p.91). Afinal, os loucos são efetivamente
de agir livremente. Neste ponto, mais uma vez é possível remeter à antiga
1996b).
barulho da batida do coração do velho, grita para os policiais, mostrando onde está o
cadáver, parece ser Poe suplicando que o ajudem, pois ele também estava diante
de um cadáver, o de sua mãe. E, como ele não queria que ela estivesse morta, pode
ter tido a esperança de que ainda vivesse, de que seu coração ainda pudesse bater.
corpo da mãe.
personagem principal mata o velho por causa de seu olhar, que o deixava nervoso.
Maud Mannoni (1995) comenta sobre a solidão que Edgar Allan Poe conheceu
passando horas a fio com sua mãe morta e afirma que o brilho dos olhos da mãe
fitando-o viria a dominar sua obra, resultando no fascínio pela morte. Após a leitura
61
pessoas, mas é preciso considerar que este estranho olhar sempre o perseguiu,
idéia de morte. O escritor parece ter gravado profundamente o último olhar da mãe.
O menino sensível, com tão pouca idade, levou para toda a sua vida futura a
amargura por esta perda. Sob os traços de todos os cadáveres exibidos por Poe
história de Poe que revela como ele transpôs seu desamparo e sua solidão para a
criação literária.
uma intrigante história para aliviar sua alma. William Wilson é um nome fictício
utilizado por ele, pois prefere ocultar seu nome verdadeiro para não envergonhar
mais ainda a sua família pelos horrores e baixezas cometidas. Revelando-se, pois,
como perverso e escravo de todas as tendências más, conta sua história. Suas
autoritária, logo se impôs entre os colegas, mas havia um que não se submetia a
ele. Esse colega, curiosamente, mesmo não sendo seu parente, possuía o mesmo
diferença - a voz, que mais parecia um eco sussurrado da sua própria voz. Era difícil
medo. Contudo, essa complexa ambigüidade de sentimentos não era percebida por
nenhum dos colegas, apenas pelo protagonista, que sempre contestava o rapaz e
era por ele contestado. O que mais o irritava era o ar de proteção que o sósia
demonstrava ter para com ele e foi com muito assombro que percebeu certos
conhecido aquele estranho há muito tempo. O narrador conta que, horrorizado com
esse sósia intruso, abandonou o colégio. Mais tarde, em sua pior fase de
alguém que queria falar com ele. Embriagado, em uma sala escura, percebeu um
vulto que, vestido como ele, lhe sussurrou no ouvido que era William Wilson,
velas se apagaram e, envolto na escuridão, ele ouviu uma voz que o fez tremer. Era
a voz do sósia que denunciava sua trapaça. Foi desprezado e convidado a deixar
Oxford. Desse momento em diante, tudo correu mal em sua vida e aquele homem
estranho, que ele odiava mas também temia, não mais parou de persegui-lo. Até
uma jovem casada, sentiu um toque no ombro e ouviu o sussurro que o fazia tremer.
63
Cheio de cólera, desafiou o estranho homem a uma luta. Após mergulhar muitas
vezes a espada em seu peito, viu, cheio de espanto e horror,sua imagem refletida
manchado de sangue! Nesse instante viu a capa e a máscara de seu sósia no chão.
O estranho era ele! No espelho, a imagem falava com ele, com sua voz, agora não
mais sussurrada, com sua emoção, sua agonia, sua morte: “Venceste e eu me
Nessa mesma obra, Freud afirma que as narrativas fantásticas não podem causar
obra são introduzidos fatos que nunca ou raramente aconteceriam no mundo real.
Freud ainda comenta que o escritor pode manter o leitor por muito tempo às
(FREUD, 1996b). Em “William Wilson”, Edgar Allan Poe, trabalhando com a extrema
estranheza de que fala Freud, ou seja, optou por um cenário da realidade comum,
relatados.
Novamente, Poe escreveu a sua história optando pelo foco narrativo em que
acordo com sua perspectiva. De forma semelhante ao que ocorre em “O gato preto”,
o narrador de “William Wilson” conta seus erros passados, porém desta vez não na
assim, uma revisão de seus atos inconseqüentes. Ao recordá-los, o narrador faz uso
importantes.
Também este conto é uma narrativa fantástica, pois novamente o leitor é feito
crença de que tudo possa ter sido produto de uma natureza bastante imaginativa e
impressionável: “Na verdade não terei vivido num sonho? Não estarei morrendo
poder de sua imaginação, bastante intenso desde sua infância: “Para mim, o que
2005, p.104).
provocado pelo “duplo”, sem realmente saber se este estranho é uma outra pessoa
ou o próprio personagem que relata a história. Quando o narrador diz que seu sósia
era uma perfeita imitação dele mesmo, ele enfatiza que tudo era igual, palavras,
3
Apenas esse excerto de “William Wilson” foi extraído da tradução de Berenice Xavier,
disponível no site <http://www.unb.br/il/tel/Graduacao/romantismo/wilson.htm> e semelhante ao
original: “ [...] Have I not indeed been living in a dream? And am I not now dying a victim to the horror
and the mystery of the wildest of all sublunary visions?”
65
gestos, roupa, maneira de andar, porém, um aspecto era diferente – a voz, pois,
eco. O leitor pode concluir que essa diferença se justifique por ela ser a voz da
interpretação é reforçada pelo fato de o narrador relatar que as outras pessoas nada
percebiam:
Afinal, era uma perfeita imitação de mim mesmo. Palavras e gestos. Roupa,
maneira de andar. Até minha voz não lhe escapava. Seu sussurro
característico (uma deficiência o impedia de elevar a voz) tornou-se
verdadeiro eco do meu. [...] O meu consolo estava no fato de ser a imitação,
ao que parece, notada somente por mim . [...] Que a escola não
percebesse a satisfação e o sarcasmo da parte dele sempre foi um enigma
para mim. (POE, 2005, p.106).
Wilsons” são uma única pessoa: “[...] me fez relembrar coisas de minha primeira
infância. Daí eu ter ficado com a impressão de que conhecera aquele estranho ser
humano:
O pastor da igreja era o diretor da escola. Difícil crer que a doce figura que
pregava no púlpito era a mesma do monstruoso homem que impunha o
cumprimento da lei no colégio. Paradoxo grande demais para ser entendido!
(POE, 2005, p. 103).
morte já está próxima, mostra-se disposto a confessar seus atos perversos, seus
que o autor também passou por fases terríveis com a bebida e jogatina, que foi de
temperamento difícil, que sofreu mudanças abruptas ao longo de toda a sua vida.
66
Portanto, parece possível afirmar que Poe apresenta em “William Wilson” seu auto-
retrato. Ele transpôs seus tormentos e sua personalidade contraditória para sua
história. De acordo com Symons (1978), na infância, Edgar também foi educado em
uma escola, em Stoke Newington, onde ele passou dois anos. E a carreira do
pai adotivo. Entretanto, ele deve, tal como Wilson, ter se sentido perseguido por sua
consciência, por seu “duplo”, que lhe sussurrava conselhos insinuados, mas ao qual
nem sempre conseguiu atender. Ao contrário, ele tentou matar o estranho que
emergia das profundezas de seu ser, porque não lhe era possível ser uma pessoa
Poe teve uma infância difícil. Não há como medir o sofrimento experimentado
quando permaneceu com a mãe morta por horas a fio nem como compreender a
angústia sentida quando foi separado de sua irmã mais nova, porém é incontestável
e o sadismo que tanto ele expôs em suas histórias eram reais, pois provinham de
leis, uma revolta que teria que ser canalizada de alguma maneira ou ele próprio
sucumbiria, e esta via foi sua criação literária. Através dela, retornava
escritor, uma extraordinária auto-revelação. Tal qual Wilson, Poe também matou seu
duplo, aquele estranho que insistia em lhe mostrar o caminho certo. Já era tarde
demais para ele; restava-lhe, como ao personagem, conviver com suas dolorosas
67
de compaixão e simpatia.
68
CONCLUSÃO
Este trabalho foi desenvolvido para refletir como a trágica infância vivida por
Edgar Allan Poe influiu sobre sua obra literária e também analisar como o escritor
seus textos. Para tanto, foi necessário conhecer a trajetória de sua vida, familiarizar-
fantástico na literatura.
É inegável que Poe viveu uma trágica infância. A dolorosa experiência de ter
permanecido com sua mãe morta lhe causou sérios transtornos emocionais,
trouxeram-lhe amargura e solidão. Sua vida foi um eterno retorno à mesma cena de
pavor e desamparo, pois jamais conseguiu se libertar das primeiras visões que teve
do mundo.
Embora Poe costumasse dizer que escrevia histórias de terror porque era o
que as pessoas queriam ler (STRICKLAND, [19-]), suas criações literárias revelam o
que lhe ia na alma. Após um estudo investigativo de sua vida, é possível perceber
que, para construir cada conto, o notável escritor remexia em seus arquivos
lembrar que a criação literária não é dom de todos; portanto o extraordinário talento
de Poe deve ser considerado, pois, ainda que memórias trágicas e tristes
íntimo, não poderia ele transformá-los em criações literárias se não tivesse sido
dotado de tão rara genialidade. Poe sabia como escrever uma história. Mestre ímpar
retornar aos mesmos temas, o escritor parecia andar em círculos, sem conseguir se
Psicanalítica, de Marie Bonaparte, Freud se refere a Poe como “um grande escritor
de tipo patológico” (FREUD, 1969, p.310) e diz que investigações como as que a
autora fez “não se destinam a explicar o caráter de um autor, porém mostram quais
as forças motrizes que o moldaram e qual o material que lhe foi oferecido pelo
destino” (FREUD, 1969, p.310). Pelo presente trabalho, foi possível perceber “as
70
forças motrizes” de que fala Freud e que moldaram o caráter de Poe. Os contos
analisados revelam o homem atormentado que vivia em luta permanente com seu
material que o destino lhe ofereceu e que ele transformou em valiosa obra literária,
Edgar Allan Poe não conseguiu exatamente, através da escrita, um efeito libertário
para seu sofrimento. Entretanto, pôde transpor sua dor para suas criações, que até
identifica com o horror apresentado em suas obras. Sua produção literária atuou
como um mecanismo de salvação que lhe permitia dar vazão a devaneios que
beiravam a loucura, mas sua vida foi para sempre marcada pelo sofrimento da
infância.
71
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALLEN, Hervey. Israfel: vida e época de Edgar Allan Poe. Trad. Oscar Mendes. Rio
de Janeiro: Livraria do Globo, 1945.
ALVES, Rubem. O retorno e terno. 18. ed. Campinas, SP: Papirus, 2000.
Oliveira Brito, Paulo Henrique Britto, Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro:
Sigmund Freud: edição standard brasileira. Trad. Themira de Oliveira Brito, Paulo
Henrique Britto, Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1996b. v. 17. p.
235-269.
72
Sigmund Freud: edição standard brasileira. Trad. Jaime Salomão. Rio de Janeiro:
LORES, Raul Juste. A história passou por cima de mim. Folha de São Paulo. São
MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 9.ed. São Paulo: Cultrix, 1967.
NABUCO, Carolina. Retrato dos Estados Unidos à luz da sua literatura. 2.ed. Rio
em:<http://www.unb.br/il/tel/graduacao/graduacao/romantismo/wilson.htm>. Acesso
QUINN, Arthur Robson. Edgar Allan Poe: a critical biography. New York: D.
STRICKLAND, F. Cowles. The life and writings of Edgar Allan Poe. In: BAUER,
Richard et al (Org.). Edgar Allan Poe: storyteller. Washington, D.C.: [s.n.], [19-]. p.
7-14.
SYMONS, Julian. The tell-tale heart: the life and works of Edgar Allan Poe. London: