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Estoicismovoegelin tCoA

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O presente trecho é parte do livro Order and History IV: The Ecumenic Age de Eric Voegelin

e foi traduzido com fins pedagógicos. As notas de rodapé visam a ampliação do panorama
explicativo do texto.

Há uma edição integral disponível no mercado pela Edições Loyola e recomendamos


efusivamente sua aquisição.

***

Ordem e História Vol.IV p.85

O problema apresentado pela transição da filosofia clássica para a filosofia estóica,


bem como a perplexidade que ela causa na ciência contemporânea, foi bem formulado por Carl
Schneider em seu tratado padrão sobre a cultura helenística 1: “A virada do helenismo da
ciência para a religião é em parte certamente devida ao platonismo, mas a maior parcela é
devida ao estoicismo. A verdadeira razão disso provavelmente nunca será completamente
descoberta”. Embora não compartilhe da resignação de Schneider, posso simpatizar com a
perplexidade causada pelas experiências estóicas e sua simbolização. As deformações de
símbolos já diferenciados 2 são realmente mais difíceis de entender do que os próprios
símbolos originais, porque, via de regra, os deformadores não colocam seus próprios métodos
sob análise e nem nos informam seus motivos. 3 E, no entanto, o trabalho de penetração deve
ser feito porque a deformação das diferenciações alcançadas é uma força na história mundial
da mesma magnitude que a própria diferenciação. A questão é ainda mais importante porque a
técnica de deformação desenvolvida pelos pensadores estóicos foi continuada através de
Philon [de Alexandria] no cristianismo e através do cristianismo na deformação moderna da
filosofia pelos pensadores ideológicos.

O que Schneider chama de virada da ciência para a religião no estoicismo implica,


embora a questão nunca seja formulada, a abolição da distinção crítica de Platão entre o
movimento dialético do pensamento na Metaxy e a simbolização mitopoética do ambiente
divino. Embora os estoicos se envolvam na mitopoese, acrescentando novos símbolos aos
platônicos, eles não reconhecem mais a criação mitopoética 4 como tal, mas tratam os
símbolos como se fossem conceitos referentes a objetos sobre os quais o filósofo tem
que avançar proposições. 5 O literalismo que anteriormente havia afetado o mito épico agora
é expandido para a própria filosofia.6 Somente a distinção 7 crítica, no entanto, é abandonada.

1 Kulturgeschichte des Hellenismus. [N.E.]


2 Distinção gradativa de estratos da consciência. Um símbolo diferenciado opõe-se a um símbolo compacto. Os
exemplos mais usados por Voegelin é a comparação entre os mitos compactos da Grécia antiga que cumprem a
função de explicar o transcendente de forma difusa enquanto a filosofia pode explicar os mesmos eventos com
linguagem mais precisa. O surgimento de símbolos diferenciados não anula a verdade contida em símbolos
compactos. [N.E.]
3 Comumente a deformação de símbolos ocorre pela utilização de métodos acríticos; é o velho caso do ajuste do

fenômeno ao método onde o resultado é a exclusão da parcela do fenômeno que não se ajusta à análise. [N.E.]
4 Os estóicos não são capazes de criar e articular mitos como o fazia, por exemplo, Platão. [N.E.]
5 Conceitos são utilizados para apontar fenômenos dados no mundo. Símbolos são expressões multiformes

utilizadas para apontar eventos que ultrapassam o dado no mundo. Em outros termos, o símbolo surge da
exegese da participação enquanto o conceito serve para análise proposicional. A confusão entre ambos causa a
deformação da experiência que originou o símbolo. Um caso clássico é o comum anacronismo, que em algumas
de suas formas explica por conceitos modernos experiências que nada tem que ver com a explicação. [N.E.]
6 O literalismo não é apenas perigoso para a filosofia, mas também para a teologia. Ambas precisam fazer amplo

uso de analogias e metáforas que, caso literalizadas, vulgarizam totalmente a expressão. [N.E.]
Os estoicos não rejeitam a diferenciação noética da consciência que causou a distinção, nem
negam a realidade da tensão cognitiva em relação ao fundamento divino na psique do homem 8,
que Platão e Aristóteles articularam noeticamente. Pelo contrário, eles estão tão conscientes
de sua importância que introduzem o termo abstrato tasis 9 no vocabulário filosófico.

Enquanto Platão e Aristóteles ainda falam a linguagem concreta da tensão, do virar-


se [à idéia do Bem] 10, de procurar e encontrar, de amor, esperança e fé 11, os estóicos
desenvolvem o tasis abstrato para denotar a tensão na matéria em relação a sua forma, e o
tonos abstrato para denotar a tensão em direção à ordem divina na psique do homem e no
cosmos como um todo. E, no entanto, precisamente com o desenvolvimento dessas abstrações
que confirmam a tensão como centro da filosofia, começa a deformação da realidade que
deixa perplexos os historiadores e intérpretes. Quanto mais abstrata se torna linguagem da
tensão, mais suscetível é o usuário a esquecer que a linguagem faz parte do encontro divino-
humano no qual a tensão do homem em relação ao fundamento se torna luminosa 12 para si
mesma.13 Não há linguagem no abstrato, como alguns linguistas modernos parecem supor,
pelo qual o homem possa se referir aos eventos hierofânicos das diferenciações noéticas e
pneumáticas, mas apenas a linguagem concreta criada na articulação do evento.

O surgimento de uma linguagem da verdade14 faz parte do mistério de uma verdade


que constitui a história ao se revelar. 15 No entanto, o evento hierofânico que gera a língua
passa com o homem que foi agraciado por ela, enquanto a língua permanece no mundo.
Quando entra na história, a verdade tem que carregar o fardo da morte e do tempo; e nas
mãos de pensadores menores, que são em certa medida sensíveis à verdade mas não
conseguem reativar completamente a experiência geradora, a verdade sobrevivente da
linguagem pode adquirir um status independente da realidade originária.16 A verdade da
realidade que vive nos símbolos pode ser deformada em uma verdade doutrinária sobre a
realidade; e como o objeto a que a verdade doutrinária se refere proposicionalmente não
existe, deve ser inventado. 17 É o que acontece no caso estóico.

7 A abolição das distinções cria a comum ambiguidade entre as filosofias e origina a confusão onde o leitor não
consegue entender a diferença entre pensamentos e conceitos antinômicos. [N.E.]
8 Voegelin refere-se ao nous [minúsculo] como sensorium da divindade, o Nous [maiúsculo]. [N.E.]
9 Tensão. [N.E.]
10 Periagogé. [N.E.]
11 Mais tarde, no cristianismo, tal símbolo será visto como Fé, Esperança e Caridade. [N.E.]
12 Sentido agostiniano. [N.E.]
13 Quanto mais abstrata a linguagem se torna, mais fácil é se esquecer a que ela se refere. Quando a anterior

linguagem simbólica torna-se abstrata e proposicional, perde-se o fio entre o "as palavras e as coisas". No caso,
perdeu-se a experiência participativa que ocorria em Platão e Aristóteles mesmo que ainda se usasse um
vocabulário parecido. Esse é um dos problemas mais graves da filosofia: as palavras são as mesmas, mas não a
experiência. [N.E.]
14 Que refira-se à verdade. [N.E.]
15 Tema tratado no artigo Ser Eterno no Tempo, disponível no livro Anamnese. [N.E.]
16 Aqui se inicia o problema mencionado: as palavras ficam, os significados se evanescem. [N.E.]
17 Voegelin insiste no ponto por muitos motivos. Podemos indicar um: comumente dizemos haver um “sistema”

platônico ou aristotélico, mas a verdade é que a palavra e o significado de sistema surgem apenas na
modernidade. Não havia sistema algum na Grécia antiga, não há nenhum sistema platônico ou aristotélico; dizer
assim é deformar o que ambos tentaram fazer. Podemos encontrar essa informação, além de em Voegelin, no
livro Platão, de Franco Trabattoni p.103. [N.E.]
O encontro divino-humano, cuidadosamente analisado por Platão como o Imaterial
Entremeio [metaxy] da realidade divina e humana, e por Aristóteles como a realidade
metaléptica, torna-se para os estoicos, sob o nome de “tensão” [tasis], a propriedade de um
objeto material chamado “psique”. A materialização da psique e sua tensão é então estendida à
realidade divina e ao cosmos em geral. E as entidades divinas materializadas de Nous,
Logos, Éter, Natureza, Cosmos,18 finalmente tornam-se a base para estabelecer a continuidade
cultural com o passado helênico, encontrando a filosofia estóica, através da interpretação
alegórica, o significado subjacente do mito homérico e hesiódico.19

O procedimento estóico foi observado e criticado por pensadores contemporâneos.


Boa parte das informações sobre o assunto deve-sem à sua apresentação crítica do orador
epicurista Velleius no De natura Deorum de Cícero. A queixa crítica é dirigida contra a
hipóstase de uma variedade de símbolos em deuses. Zenão é relatado como concordando
com o status dos deuses segundo a lei da natureza, o éter, a razão, as estrelas, os anos, os
meses e as estações; e como privando, em sua interpretação da teogonia de Hesíodo, Júpiter,
Juno e Vesta de sua divindade e insistindo que seus nomes signifiquem alegoricamente
entidades divinas de natureza material. 20 Cleanto atribui status divino ao cosmos, à mente,
à alma do mundo e ao éter. Crísipo tem uma lista semelhante, acrescentando o destino e a
necessidade, água, terra, ar, sol, lua e estrelas e todo o cosmos em sua interpretação dos mitos
de Orfeu, Museu, Hesíodo e Homero; ele assimila seus deuses a seus próprios deuses com
tanta habilidade que “mesmo esses poetas mais antigos, que nunca suspeitaram disso, são
considerados estoicos” (1,36-41). 21

Na opinião do relator, essas doutrinas devem ser caracterizadas como “sonhos de


homens absolutamente delirantes em vez de opiniões de filósofos”, como pouco menos
absurdas do que as histórias do poeta sobre deuses lascivos e licenciosos, as fábulas
igualmente dementes dos magos e Egípcios, e geralmente as crenças do povo ignorante (1,42-
43). No que diz respeito à lógica desse julgamento, finalmente, torna-se evidente a partir da
pesquisa histórica da filosofia grega.

***

Mais opiniões de Voegelin acerca dos estóicos podem ser encontradas em História das Idéias
Políticas Vol.1: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo.

Uma crítica muito curiosa de Plotino aos epicuristas e estóicos pode ser vista em Platão e
Aristóteles na doutrina do nous de Plotino, de Thomas Alexandres Szlezák p.66

18 Aqui nasce parte da psicologia de projeção que tratará Deus como hipérbole do Homem. Um caso clássico é o
de Feuerbach. [N.E.]
19 Aqui os mitos, que antes finitizavam o infinito no sentido de um mito compacto, tornam-se como alegorias e

projeções da psique humana. Esse fenômeno originou o que os estudiosos chamam de materialismo estóico.
[N.E.]
20 Imanentiza-se os deuses, como dito na nota 18. [N.E.]
21 Aqui observa-se um fenômeno análogo a outro moderno, onde se interpreta o antigo pela clave do novo e

transforma-se o antigo em partidário do novo, uma clara deformação de tipo anacrônico. O “Aristóteles
individualista” é um dos casos. [N.E.]

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