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Carta Génese Heterónimos

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Disciplina: Português

2010 / 2011 - 3º Ano


Módulo: 9
Prof. Liliete Santos

Fernando Pessoa e Heterónimos


A Adolfo Casais Monteiro
Caixa Postal 147
Apartado Postal 147

Lisboa, 13 de Janeiro de 1935

Meu prezado Camarada:

Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar,
quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso
arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento. (...)
Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe
completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim.
Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda
hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus
sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a
despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em
mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para
dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e
cousas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a
vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em
silêncio e poesia...
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa
dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro – os que jazem
perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos
que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas cousas,
como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro
de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão
visíveis e minhas como as cousas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que
me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com
que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido
inexistente – um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura,
não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com
menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei
em quê, um rival do Chevalier de Pas... Cousas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal
ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não
foram realidades.
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da
imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito,
absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente,
espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura –
cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e
conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço,
sinto, vejo... E tenho saudades deles. (...)
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei
umas cousas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o
caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo.
(Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta
bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns
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Módulo: 9
Prof. Liliete Santos
dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 –
acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E
escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da
minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o
aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase:
aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses
trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a
Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a
Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos.
Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa
altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo.
Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode
com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as
amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador
de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se
passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são
diferentes, e como eu não sou nada na matéria. (...)
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os
gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não
me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro
nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão
nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-
me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro
naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora
realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais
baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 in de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco
tendente a curvar-se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos
entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado,
monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo
o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó.
Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou
espontaneamente por ser monárquico. É, um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria.
Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro
mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio
beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular o
que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos,
quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em
muitas cousas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha
um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-
heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela.
Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o
português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos
como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero
exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até
porque é mais espontânea, em verso.) (...)
Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há
outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá
suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.
Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.

Fernando Pessoa
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Prof. Liliete Santos
1. Depois de uma leitura atenta da Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, complete o seguinte
esquema, tendo por base o referido texto:

HETERÓNIMOS

MARÇO DE 1914

Fenómenos que estão na sua origem

Nascimento Nascimento Nascimento


Ano: Ano: Ano:
Local: Local: Local:

Profissão Profissão Profissão

Características Físicas Características Físicas Características Físicas

Educação Educação Educação

Relação com a escrita/ Relação com a escrita/ Relação com a escrita/


Modo de escrever Modo de escrever Modo de escrever

Morte Morte Morte

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