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51524-Texto Do Artigo-751375195593-1-10-20200422

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Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano XIII, n.

37,
Maio/Agosto de 2020 - ISSN 1983-2850
/ Pentecostais na Política Brasileira na era da Constituinte de 1988 e alguns de seus
desdobramentos, p. 25-41 /

Pentecostais na Política Brasileira na era da Constituinte de


1988 e alguns de seus desdobramentos
Wanderley Pereira da Rosa1

DOI: https://doi.org/10.4025/rbhranpuh.v13i37.51524

Resumo: O artigo descreve a relação entre os pentecostais e a política no Brasil, no


período da Constituinte de 1988 e alguns desdobramentos nos anos seguintes. Há um
período relativamente curto, que abarca a primeira metade do século XX até o início da
década de 1960, marcado por um protestantismo progressista, preocupado com sua
contextualização e com a construção cristã de uma ética política e social para o país. A
inquietação intelectual e o esforço por uma participação ecumênica relevante à sociedade,
que fosse capaz de suscitar uma reforma na religião brasileira, fez com que esse período
se tornasse extremamente fecundo. Entretanto, nos anos que se seguiram, o
protestantismo se fragmentou numa miríade de denominações, a maioria das quais
preocupadas com seus próprios projetos de consolidação institucional, marcadas por uma
espiritualidade individualista, moralista e interiorizada. Afastando-se daquela utopia
inicial, os movimentos evangélicos, fruto dessa fragmentação, têm se preocupado cada
vez mais com sua participação na política, mas, ao modo de um fisiologismo e
nepotismo, bem como de um descaso para com a ética e os interesses republicanos. Este
artigo foca, especialmente, na relação de líderes e denominações pentecostais e a política
no Brasil no período supracitado. A história desta relação nos revela, finalmente, que as
principais expressões do cristianismo — todas indelevelmente afetadas por um
conservadorismo, sobretudo moral — não são nem melhores, nem piores do que a
sociedade no interior da qual se constroem, mas, apenas um reflexo dela.
Palavras-chave: Religião e Sociedade; Evangélicos; Política no Brasil; Pentecostais.

Pentecostals in Brazilian Politics in the Constituent Era of 1988


and some of its consequences
Abstract: The article describes the relationship between Pentecostals and politics in
Brazil, during the 1988 Constituent period and some developments in the following
years. There is a relatively short period, from the first half of the twentieth century until
the early 1960s, which is marked by a progressive Protestantism concerned with its
contextualization and with the Christian construction of a political and social ethic for the
country. The intellectual concern and the effort for an ecumenical participation relevant

1Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professor e Diretor
da Faculdade Unida de Vitória, Espírito Santo. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4566-599X.
Email: wanderley@fuv.edu.br

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Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano XIII, n. 37,
Maio/Agosto de 2020 - ISSN 1983-2850
/ Pentecostais na Política Brasileira na era da Constituinte de 1988 e alguns de seus
desdobramentos, p. 25-41 /

to the society, that would be capable of provoking a reform in the Brazilian religion,
made that period become extremely fertile. Over the following few years, however,
Protestantism has fragmented into a myriad of denominations, most of which are
concerned with their own institutional consolidation projects, and marked by an
individualistic, moralistic and internalized spirituality. Moving away from that initial
utopia, the Evangelical movements, fruit of this fragmentation, have been increasingly
concerned with their participation in politics, but in the way of a cronyism and nepotism,
as well as with disregard for ethics and republican interests. This article focuses especially
on the relationship of Pentecostal leaders and denominations and politics in Brazil in the
above period. The history of this relationship reveals to us that the main expressions of
Christianity – all indelibly affected by a certain, especially moral, conservatism – are
neither better nor worse than the society within which construct, but only a reflection of
it.
Keywords: Religion and Society; Evangelicals; Politics in Brazil; Pentecostals.

Los pentecostales en la política brasileña en la era constituyente de 1988


y algunas de sus consecuencias
Resumen: El artículo describe la relación entre los pentecostales y la política en Brasil,
durante el período Constituyente de 1988 y algunos desarrollos en los años siguientes.
Hay un período relativamente corto, que abarca la primera mitad del siglo XX hasta
principios de la década de 1960, marcado por un protestantismo progresista, preocupado
por su contextualización y por la construcción cristiana de una ética política y social para
el país. La inquietud intelectual y el esfuerzo por una participación ecuménica relevante
para la sociedad, capaz de dar lugar a una reforma en la religión brasileña, hicieron que
este período fuera extremadamente fructífero. En los años siguientes, sin embargo, el
protestantismo irrumpió en una miríada de denominaciones, la mayoría de las cuales se
ocuparon de sus propios proyectos de consolidación institucional, marcados por una
espiritualidad individualista, moralista e internalizada. Alejándose de esa utopía temprana,
los movimientos evangélicos, fruto de esta fragmentación, se han preocupado cada vez
más por su participación en la política, pero a la manera de un fisiologismo y nepotismo,
así como por un desprecio por la ética y los intereses republicanos. . Este artículo se
centra especialmente en la relación de los líderes y denominaciones pentecostales y la
política en Brasil en el período anterior. Finalmente, la historia de esta relación revela que
las principales expresiones del cristianismo, todas indeleblemente afectadas por un
conservadurismo, especialmente moral, no son ni mejores ni peores que la sociedad en la
que están construidas, sino solo un reflejo de ello. .
Palabras clave: Religión y sociedad; Evangélicos; Política en Brasil; Pentecostales.

Recebido em 18/12/2019 - Aprovado em 02/04/2020

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Introdução
No período que compreende a primeira metade do século XX até início da
década de 1960, o protestantismo brasileiro embalava em seus seios uma corrente
progressista, ainda que não majoritária, bastante significativa e cuja atuação visava uma
inserção ativa e contributiva na sociedade brasileira. Quando se pensa num
protestantismo cioso do abrasileiramento e preocupado com a formulação de uma ética
política e social cristã para o país, considera-se esse é um período bastante fecundo,
marcado pela atuação de jovens pastores e líderes, sobretudo presbiterianos,
presbiterianos independentes e metodistas, inquietos intelectualmente, muitos dos quais
abrigados sob o manto da Confederação Evangélica do Brasil, fundada em 1934.
Boanerges Ribeiro refere-se a esse grupo que já vinha atuando em conjunto desde a
Revista de Cultura Religiosa (década de 1920) como aqueles que “representam uma Reforma
na Religião Brasileira, sem pernosticismo e sem complexo de superioridade:
naturalmente. Uma Reforma necessária, mas até sem polêmica. Não reagem contra
ninguém: expõem superiormente e agradavelmente suas idéias [sic]” (RIBEIRO, 1991, p.
225).
Destacam-se nesse período figuras como a do pastor presbiteriano Erasmo
Braga, o reverendo metodista Guaracy Silveira, único deputado protestante eleito para a
2

Constituinte de 1933/34 pelo Partido Social Brasileiro (Cf. ALMEIDA, 2002, p. 28). Os
fundadores, em 1921, da Revista de Cultura Religiosa (RCR), Epaminondas Melo do Amaral
(Igreja Presbiteriana Independente do Brasil), Othoniel Motta (Igreja Presbiteriana
Independente do Brasil) e o rev. Miguel Rizzo Junior (Igreja Presbiteriana do Brasil).
Eber Ferreira Silveira Lima, em sua tese de doutoramento, descreve o conteúdo da RCR
como um “abrir de janelas”, e ainda, como “o compromisso de uma geração que veio
romper com o hermetismo cultural e social”. Para ele:

Os dirigentes da RCR têm consciência que é necessário


modernizar o próprio protestantismo brasileiro, a fim de

2 Além de pastor e professor do Mackenzie e do seminário presbiteriano, Braga ajudou a fundar a


Sociedade Científica de São Paulo, em 1903, tendo sido seu primeiro-secretário até 1905. Foi
convidado a filiar-se à Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo. Destacou-se como tradutor
e articulista em diversos jornais cariocas como O Dia, A Notícia, O País, o Eco Fonográfico e o Correio
Paulistano. Em 1908 tornou-se sócio efetivo do Centro de Ciências, Letras e Artes, do qual se
tornou secretário, em Campinas. Em 1909 foi membro fundador da Academia de Letras de São
Paulo. Uma biografia bastante completa pode ser verificada na tese de doutoramento defendida na
Escola de Teologia da Universidade de Boston pelo professor Alderi Souza de Matos, intitulada
Erasmo Braga, O Protestantismo e a Sociedade Brasileira: perspectivas sobre a missão da igreja. São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 2008.

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que o mesmo possa acompanhar o ritmo das


transformações culturais pelas quais o país passa, em suas
primeiras décadas do século XX (LIMA, 2012, p. 124.).

Também merecem destaque o missionário estadunidense Richard Shaull e o


presbiteriano Waldo Cesar que, em 1955, fundaram o Setor de Responsabilidade Social
da Igreja (SRSI) dentro da estrutura da Confederação Evangélica do Brasil. Refletindo
sobre aquele período e os avanços representados pela ação do SRSI, Waldo César analisa:

O movimento Igreja e Sociedade superou de certa forma o


nível teológico, ideológico e institucional em que se movia,
timidamente, o Protestantismo brasileiro. Foi, portanto, um
rompimento. O compromisso de fé tinha uma nova
referência, criava um vocabulário novo, outra leitura da
Bíblia e da realidade social na qual vivíamos mais como
vítimas do que participantes. O projeto Igreja e Sociedade
foi para nós uma forma de inserção na conjuntura nacional
e a revelação das contradições do Protestantismo e do País,
das coisas velhas e novas que se produziam nas igrejas e na
cultura brasileira (CÉSAR apud CUNHA, 2012, p. 54.).

O Setor de Responsabilidade Social da Igreja foi o responsável pela realização da


Conferência do Nordeste, realizada em Recife/PE, em 1962. A grande contribuição do
que aconteceu na Conferência do Nordeste foi exatamente a revelação, para muitos
evangélicos que lá estiveram e para outros que foram depois alcançados pelos ventos que
de lá sopraram, da amplitude do alcance da fé cristã, a proposta de superação do
individualismo intimista característico do protestantismo, a capacidade de inserção na
realidade social e cultural do país, a tomada de consciência de um Deus que não está
restrito às paredes do templo e que convida para a ação no mundo sob a inspiração e
exemplo de Jesus de Nazaré. Waldo César, uma das personagens principais desse
período, e particularmente da Conferência do Nordeste, deu este testemunho:

A gente [da mocidade das igrejas] fez a descoberta que foi


muito assustadora: de que Deus não estava só na Igreja, mas
também no mundo. Para nós, antes, a Igreja era o centro de
tudo, não só fisicamente, e todo o nosso tempo era

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dedicado à Igreja. De repente a gente descobre que não é aí


que está a possibilidade de transformação das coisas
(CÉSAR apud CUNHA, 2012, p. 58).

O rev. Joaquim Beato, um dos palestrantes de 1962, ao participar do Congresso


comemorativo dos 50 anos da Conferência do Nordeste, promovido pela Faculdade
Unida de Vitória em maio de 2012, afirmou que a Conferência “foi, sem dúvida, a busca
de uma tomada de posição mais engajada, mais corajosa, mais relevante e mais fiel ao
Evangelho da parte das igrejas, diante das estruturas injustas, de desigualdade e opressão,
que caracterizavam (e ainda caracterizam) a nossa sociedade”. E ele conclui que foi “a
busca de uma nova maneira de entender e levar avante sua missão e de marcar sua
presença e testemunho no seio da sociedade brasileira” (BEATO, 2012, p. 35).
Estes são breves exemplos de personagens e ações que marcaram o cenário
protestante brasileiro até o golpe civil-militar. Muitas outras pessoas e acontecimentos
foram relevantes, mas, nos limites deste artigo, nos parece suficiente os exemplos aqui
sugeridos.
No pós-64, o mundo protestante fragmentou-se numa infinidade de
denominações religiosas comprometidas com seus próprios projetos, na maioria das
vezes focadas numa espiritualidade individualista, pietista, e preocupadas com uma
santidade moralista e interiorizada.
Os movimentos evangélicos, notadamente os pentecostais, dirigidos à atuação
político-partidária, que podem ser observados a partir do fim dos anos 80, com especial
intensidade nas duas últimas eleições, são o reflexo puro e simples do mundo político
brasileiro, no qual se percebe a consolidação de notório fisiologismo e nepotismo, além
da confusão entre a coisa pública e a privada e da conhecida falta de compromisso com a
ética e os interesses republicanos, com raras exceções. Isso é o que se deseja mostrar
neste artigo.
O artigo crítico-descritivo se insere numa perspectiva histórico-social do
movimento evangélico, segundo a qual se concebe pessoas e instituições a partir de suas
mediações históricas e contextuais, de seus “acordos”, experiências e vivências sociais,
para além de qualquer essencialismo (Cf. GEERTZ, 2008). Para tanto, divide-se o texto
em três partes. Primeiramente considera-se o ingresso definitivo dos evangélicos,
sobretudo pentecostais, na política a partir da década de 1980, a partir do qual se percebe
um controle político cada vez maior das lideranças sobre suas comunidades. Em seguida,
destaca-se a relação estreita entre mídia e política como instrumento de fortalecimento
institucional e manutenção do conservadorismo, tendência que ganha força a partir dos
grandes televangelistas norteamericanos. Finalmente, concomitante à presença dos

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pentecostais na política e do seu conservadorismo moral, destaca-se os principais


escândalos políticos envolvendo a bancada evangélica.
Para além do caráter metafísico, tão reclamado por cristãos — sobretudo
evangélicos — que procuram conferir à Igreja uma natureza “imaculada”, a história da
relação entre pentecostais e política no Brasil mostra que a igreja é o que tem sido. Ou
seja, somos convidados a haurir dos registros históricos a melhor compreensão sobre o
atual estado em que se encontram os pentecostais, e evangélicos em geral, no que
concerne à política.

Os pentecostais embarcam na política


Um importante pesquisador que se debruçou sobre a relação dos evangélicos
com a política e a sociedade brasileira, especialmente nas décadas de 1980 e 1990, foi Paul
Freston. Freston identifica o período de redemocratização do país com a entrada mais
intensa dos evangélicos, em termos numéricos, especialmente pentecostais, na política.
Para ele, “o início do pluripartidarismo e a crise do regime militar intensificaram a disputa
eleitoral em torno dos evangélicos” (FRESTON, 1994. p. 40). De repente, o discurso
conservador evangélico de que “crente não se mete em política”, uma forma escamoteada
de apoio à ditadura militar, deu lugar ao “irmão vota em irmão”. Para justificar o
rompimento com a alienação política, líderes pentecostais lançaram mão de boatos que
davam conta de um complô para restringir a liberdade dos evangélicos no país em
benefício da Igreja Católica. Uma dessas informações falsas afirmava que “Tancredo
Neves teria feito um pacto secreto com a CNBB para tornar, de novo, o catolicismo
romano a religião oficial do país. Os evangélicos deveriam ser eleitos para salvar a
liberdade religiosa.”3
No entanto, o ingresso definitivo dos evangélicos na política partidária deu-se
com a Constituinte, em 1986. Entre 1933 e 1987, 50 parlamentares se identificavam como
protestantes, sendo 94% deles ligados a denominações históricas e 6% representados por
pentecostais. Entre 1987 e 1992, foram eleitos 49 candidatos evangélicos, sendo 45%
representados por denominações históricas e 55% por pentecostais. Portanto, num
período de cinco anos foi eleito praticamente o mesmo número de parlamentares
evangélicos que nos 54 anos anteriores (Cf. FRESTON, 1994, p. 46.). Além disso, pode-
se observar o reflexo da mudança do perfil dos protestantes, predominantemente de
denominações históricas, em seus 150 primeiros anos no Brasil, considerando-se a

3 CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo e Política: teoria bíblica e prática histórica. Viçosa: Editora
Ultimato, 2002. p. 240. Os boatos seriam usados também contra o candidato Lula da Silva, na
disputa contra Color de Mello em 1989. Lula seria um ateu que perseguiria as igrejas. Essa estratégia
seria usada recorrentemente nas eleições presidenciais seguintes.

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chegada dos anglicanos no início do século XIX, para uma prevalência de pentecostais a
partir do decênio de 1960.
Freston ainda destaca que o predomínio numérico de parlamentares
pentecostais a partir da Constituinte deu-se como fruto de uma articulação política por
parte das principais denominações pentecostais brasileiras, a saber: Assembleia de Deus,
Igreja do Evangelho Quadrangular e Igreja Universal do Reino de Deus. Dos 27
congressistas pentecostais, pelo menos 21 eram candidatos oficiais de suas denominações,
cujo caráter centralizador e estilo feudal possibilitava às suas lideranças o controle político
das respectivas comunidades, determinando até mesmo em quem os membros deveriam
votar4.
Essa mudança de atitude dos evangélicos em relação à participação política —
sobretudo de pentecostais — fica bem ilustrada por um livro escrito pelo assembleiano
Josué Sylvestre, intitulado Irmão Vota em Irmão, lançado em 1986. Sylvestre, que também
era assessor no Senado Federal, escreve em tom pietista e ufanista, defendendo os
evangélicos como os melhores parlamentares, considerando serem tementes a Deus.
Apelando ao amor fraterno, conclama:

E como aceitar um cristão que no dia da eleição sai


deliberadamente de casa para VOTAR CONTRA O SEU
IRMÃO NA FÉ? (…) Porque quem ama, não quer ver seu
irmão derrotado; quem ama, não quer ver o seu irmão
diminuído perante os concorrentes; quem ama, vê na vitória
do seu irmão o seu próprio triunfo. (…) Por outro lado,
votando em candidatos evangélicos, de bom testemunho
cristão, estaremos demonstrando amor para com a nossa
Pátria, estaremos demonstrando interesse pelo seu
desenvolvimento e pela melhoria da vida de milhões de
brasileiros. (…) Católico vota em católico. Comunista vota
em comunista. Umbandista vota em umbandista e IRMÃO
VOTA EM IRMÃO; isto é, crente vota em crente, porque,
do contrário, não tem condições de afirmar que é mesmo
crente, pois se afirmar isso e votar contra o irmão, estará
desmentindo o próprio Jesus, que disse: “nisto conhecerão

4Cf. FRESTON, 1994, p. 46. O autor ainda destaca que, desses 21 candidatos oficiais, 12 eram da
Assembleia de Deus, quatro da Universal, dois da Quadrangular e três de outras denominações
pentecostais ou carismáticas, mas com o apoio da Assembleia.

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todos que sois meus discípulos, se amardes uns aos outros


(SYLVESTRE, 1986, p. 53-54.).

Para além de uma leitura ideologizante das Escrituras — afinal, o mandamento


do amor tal qual expresso por Jesus não parece ser exclusividade de cristãos evangélicos e
pentecostais —, verifica-se ainda que o critério suposto para ser um bom político é ser
“irmão” e bom crente, com bom testemunho. Ora, o bom cristão, com bom testemunho,
não será necessariamente um bom político. Características outras como consciência
política e experiência na participação em movimentos populares não são consideradas
nos argumentos do autor. Além do mais, o apelo ao amor cristão tal como recomendado
por Sylvestre, tornaria os membros de igrejas presas fáceis de líderes oportunistas com
ambição de poder, o que acabou se verificando na prática, como veremos nas próximas
linhas. Josué Sylvestre entende ser o crente evangélico moralmente superior a outros
cidadãos, pelo simples fato de ser evangélico. Para ele, “ilógica e incompreensível é a
atitude do crente que deixou de votar no irmão na Fé para escolher um umbandista, um
católico, um materialista que concorre ao mesmo cargo”. O crente que assim se comporta
está ajudando a financiar a “idolatria e a feitiçaria”, “ele está colaborando para o
fortalecimento de outras religiões e ideologias que ele, crente, considera erradas e fora
dos ensinamentos bíblicos” (SYLVESTRE, 1986, p. 62).
Um reflexo dessa mudança de cenário na representatividade protestante no
mundo político brasileiro é que, da tendência levemente à esquerda observada no período
anterior a 1987, os parlamentares evangélicos, daí em diante, estarão majoritariamente
ligados às forças conservadoras da política nacional. Além disso, multiplicam-se
exponencialmente os escândalos envolvendo esses parlamentares. Um dos primeiros está
relacionado à reativação da Confederação Evangélica do Brasil (CEB) por deputados
pentecostais. O objetivo era a canalização de verbas federais para a Confederação. Diante
da denúncia de fisiologismo d’O Jornal do Brasil o deputado assembleiano João de Deus
Antunes saiu em defesa da manobra: “Eu sou mesmo fisiologista. Mas quem não é? Todo
mundo que vai para o Congresso Nacional já sabe que é para fazer fisiologismo. Só que
eu faço com o moral elevado” (FRESTON, 1994, p. 50).
A reativação da CEB na cerimônia do dia 25 de junho de 1987 elegeu para sua
diretoria 13 representantes de denominações evangélicas, sendo que oito desses cargos
foram ocupados por constituintes, seis dos quais da Assembleia de Deus.

A diretoria foi: presidente - deputado Gidel Dantas (Igreja


de Cristo - CE); 1º vice-presidente - deputado Salatiel
Carvalho (AD - PE); 2º vice-presidente - Rev. Abival Pires

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da Silveira (IPI) (que alegou ter sido escolhido à sua revelia);


3º vice-presidente - deputado Fausto Rocha (batista - SP);
secretário-geral - Rev. Guilhermino Cunha (IPB); 1º
secretario - deputado Daso Coimbra (congregacional - RJ);
2º secretário - Pr. Manoel Ferreira (AD Madureira); 1º
tesoureiro - deputado José Fernandes (AD - AM); 2º
tesoureiro - deputado Milton Barbosa (AD - BA);
presidente do Conselho Consultivo - Rev. Karl Gottschald
(IECLB); Conselho Fiscal - deputado Costa Ferreira (AD -
MA), deputado Manoel Mareira (AD - SP) e Rev. Othoniel
Martins (IPB) (FRESTON, 1994, p. 71).

Os escândalos se sucederam. Além de ganhar metade de um andar em Brasília


no setor de autarquias para sua sede nacional, a CEB recebeu verbas da Legião Brasileira
de Assistência (LBA) e da Secretaria Especial de Ação Comunitária. Segundo Freston, às
vésperas da votação, no mandato de Sarney, a Confederação teria recebido Cz$ 100
milhões (FRESTON, 1994, p. 72). Várias denúncias foram feitas por veículos de
comunicação como O Jornal do Brasil e por setores evangélicos que questionavam sua
legitimidade. Mas, sustentada especialmente por lideranças da Assembleia de Deus, a
CEB resistiu até o fechamento definitivo, em 6 de novembro de 1990. O destino do
patrimônio e das verbas auferidas permaneceu incerto (FRESTON, 1994, p. 72-74). Um
triste episódio, de fim melancólico, para a Confederação Evangélica do Brasil, que, por
três décadas, constituiu-se na mais extraordinária experiência ecumênica do
protestantismo brasileiro.
O recebimento de verbas federais também era uma das preocupações do livro
de Josué Sylvestre. Ele afirma que, quando um parlamentar católico ou umbandista chega
ao Congresso ele aplica “todo o seu poder de pressão, toda a sua capacidade de conseguir
recursos, em favor de entidades ligadas à sua religião” (SYLVESTRE, 1986, p. 62). Se o
irmão não votar em irmão, prejudicará a obra evangélica:

Daí, conseqüentemente, o imposto que o crente paga nas


suas atividades comerciais, industriais, como profissional
liberal ou autônomo, vai financiar a idolatria e a feitiçaria,
enquanto os colégios, as creches, os abrigos, os orfanatos,
os hospitais, os serviços sociais mantidos pelas igrejas
evangélicas passam por dificuldades ou não atendem a

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contigentes maiores de pessoas por falta de recursos


financeiros.
Cada parlamentar federal, independentemente dos projetos
que patrocina, das verbas especiais que consegue, às vezes
somando milhões de cruzados em favor de obras sociais
ligadas ou dirigidas por entidades de suas religiões ou
ideologias, recebe, anualmente, no Orçamento da União,
uma parcela de recursos que destina livremente para
instituições registradas no Conselho Nacional de Serviço
Social. (…) Arredondando, em cruzeiros de triste memória,
146 milhões de cruzeiros. (…) vejam que volume fabuloso
de recursos poderiam [sic] estar ajudando nossas
organizações no setor social e educacional (SYLVESTRE,
1986, p. 62-64).

A bancada evangélica caracterizou-se também pelo exercício da política miúda.


O deputado João de Deus, da Assembleia de Deus, vangloriou-se de terem conseguido
inserir o nome de Deus na Constituinte: “nossa primeira grande vitória contra a esquerda
diabólica”. Antônio de Jesus, da Assembleia De Deus de Goiânia, foi o autor da proposta
que previa ter uma Bíblia na mesa da Constituinte. Paul Freston informa que o Mensageiro
da Paz chamou a inclusão do nome de Deus “amarga derrota para os ateístas”, e citou
Daso Coimbra, para quem opôr-se à medida era “querer negar a fé que o povo brasileiro
testemunha” (FRESTON, 1994, p. 80). Josué Sylvestre não deixou de registrar sua
insatisfação com a aprovação do projeto que sugeria Nossa Senhora Aparecida5 como
padroeira do Brasil. Isso ocorreu, segundo ele lamenta, “porque não temos número
suficiente de deputados federais que façam valer o nosso posicionamento e que mostrem
representativamente a força do evangelismo brasileiro.” (SYLVESTRE, 1986, p. 49).
Além disso, suas principais bandeiras estiveram ligadas à defesa de questões da
moral comportamental adotada pela maioria dos evangélicos. Em relação ao aborto, por
exemplo, na primeira votação na defesa legal da vida desde a concepção, o resultado foi:
“todos os constituintes, 22%; protestantes históricos, 46%; e pentecostais, 93%”.6 A
deputada Benedita da Silva, ligada na época à Assembleia de Deus, foi uma exceção à

5Em seu texto ele grifa apenas “Senhora Aparecida”.


6 FRESTON, 1994, p. 77. O ápice da demagogia ocorreu no debate entre o deputado Sotero
Cunha, da Assembleia de Deus, e a senadora adventista Eunice Michiles. Cunha afirmou ser contra
o aborto em qualquer caso. Ao ser questionado pela senadora (“mesmo com um revólver apontado
para a cabeça?”), o deputado respondeu: “Bem, pode perder a vida, mas evitar o estupro”.

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regra. Em relação ao homossexualismo, a deputada Benedita propôs a inclusão de


“orientação sexual” na Constituição. Os deputados pentecostais Salatiel Carvalho e José
Fernandes reagiram contrariamente. Fernandes propôs “desvio sexual”. A questão
acabou omitida do projeto final. Contrariando a posição histórica do protestantismo, a
maior parte dos deputados pentecostais votou contra o divórcio, ombreando-se mais uma
vez com os representantes católicos. Essas posições são assumidas como forma de
impressionar os eleitores evangélicos. O recurso à espiritualização é constante. Opor-se a
vícios, aborto, homossexualismo, divórcio e afins é uma forma de afirmar que o “Brasil
pertence ao Senhor Jesus”. Os líderes evangélicos teriam essa tarefa de resgatar o país das
trevas e proteger a família (Cf. BAPTISTA, 2009, p. 191). Sua moralidade é tipicamente
maniqueísta, do tipo “nós e eles”, os que estão do lado da Luz e os que são das Trevas
(Cf. MORAES, 2010, p. 34).

Pentecostais, Mídia e Conservadorismo Político


É importante ressaltar que a relação entre mídia e política como instrumento de
fortalecimento dos meios evangélicos foi uma descoberta que ganhou densidade a partir
do decênio de 1980. Inspirados em televangelistas norte-americanos de grande divulgação
no Brasil, como Jimmy Swaggart e Rex Humbard, pregadores brasileiros perceberam o
potencial político dos programas radiofônicos ou televisivos. Um dos primeiros a alçar
voo nessa seara foi o pastor batista Nilson do Amaral Fanini. Ainda nos anos 70, Fanini
criou o programa Reencontro, difundido pela antiga TV-Rio e retransmitida por 88
emissoras de TV ao longo da semana. Uma versão radiofônica era transmitida em 40
estações. Em 1983, acabou recebendo do presidente Figueiredo a concessão da TV-Rio
(ASSMANN, 1986, p. 84-86), com a intermediação do deputado batista Arolde de
Oliveira, ex-militar com carreira política na área de comunicação.
Além do óbvio status proporcionado pelo programa televisivo, o meio
evangélico valoriza esse instrumento e apoia com sustento financeiro seus televangelistas,
supostamente cumpridores da tarefa precípua da igreja: a evangelização. Freston informa
que “dos 49 evangélicos que chegaram ao Congresso Nacional entre 1987 e 1992, 23
tinham vínculos com a mídia” (FRESTON, 1994, p. 55). Na barganha pelo apoio ao
mandato de cinco anos de José Sarney, a bancada evangélica ganhou pelo menos duas
concessões de TV e sete rádios 7. Daso Coimbra minimizou o fato, uma vez que pelo
menos 100 rádios foram distribuídas, denunciando inconscientemente a absoluta
assimilação da cultura política brasileira pelos deputados evangélicos (Cf. FRESTON,

7 Foi o deputado da Assembleia de Deus do Paraná Matheus Iensen o autor da emenda que
concedeu cinco anos a Sarney.

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1994, p. 80). Um dos contemplados com uma rádio foi o deputado pernambucano
Salatiel Carvalho. Sobre a prorrogação do mandato de Sarney, Salatiel afirmou que “se o
presidente quisesse cem anos para trocar cem rádios, eu trocava mesmo. Se fosse para
divulgar o evangelho, eu trocava”. Salatiel seria o futuro coordenador de campanha de
Fernando Color de Mello entre os evangélicos (Cf. BAPTISTA, 2009, p. 151).
A já citada reportagem d’O Jornal do Brasil de 7 de agosto de 1988 denunciava:

Boa parte dos evangélicos faz da tarefa de preparar a nova


Constituição um grande e lucrativo comércio, negociando
votos em troca de vantagens e benesses para suas igrejas e,
muitas vezes, para eles próprios… A nova Carta… já
propiciou ao grupo comandado pelo pastor Gidel Dantas
uma notável lista de ganhos, que inclui um canal de
televisão, pelo menos meia dúzia de emissoras de rádio,
importantes cargos no governo, benefícios dos mais
variados tipos e sobretudo dinheiro, muito dinheiro (apud
FRESTON, 1994, p. 75).

Os Pentecostais e os Escândalos Políticos


A postura dos parlamentares pentecostais no período da Constituinte
determinou, grosso modo, o padrão de comportamento desses políticos desde então. O tom
estava dado. Os escândalos não paravam. Os evangélicos, de modo geral, foram uma
importante força na eleição de Fernando Collor em 1989. Collor contou com o apoio
explícito das igrejas O Brasil Para Cristo, Casa da Bênção, Universal do Reino de Deus,
Assembleia de Deus e Evangelho Quadrangular, estas duas últimas a partir do segundo
turno (Cf. FRESTON, 1994, p. 89). O engajamento de Edir Macedo, líder da Igreja
Universal do Reino de Deus, foi o mais consistente. O “toma-lá-dá-cá” previa a garantia
de Collor a Macedo do canal de televisão que posteriormente viria a ser adquirido por
este (Cf. FONSECA, 2011, p. 103). No processo de impeachment, parlamentares
pentecostais foram flagrados subornando ou sendo subornados para votarem a favor do
presidente8. No escândalo conhecido como os “anões do orçamento”, em que
parlamentares receberam propina para intermediar a liberação de emendas, novamente
houve farta participação de políticos evangélicos9. Freston ainda lista os escândalos da

8 Foi o caso, por exemplo, dos deputados José Felinto e Orlando Pacheco, ambos da Assembleia de
Deus.
9 Estiveram envolvidos, por exemplo, Manoel Moreira, João de Deus e Matheus Iensen, todos da

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Previdência, da troca de partidos por dinheiro e da Lista do Bicho (Cf. FRESTON, 1994,
p. 103).
Uma importante reação aos escândalos oriundos do fisiologismo e
corporativismo observados na bancada evangélica desde a Constituinte foi a fundação da
Associação Evangélica Brasileira (AEVB), em 1991, por líderes protestantes identificados
com a Teologia da Missão Integral, portanto, preocupados com as questões sociais e
políticas do país. Capitaneados pelo pastor presbiteriano Caio Fábio D`Araújo Filho,
esses protestantes evangelicais formularam o “Decálogo do Voto Ético”, o que
desagradou em cheio os setores identificados com as práticas da bancada evangélica, tal
como aqui estão sendo descritas. A reação partiu de Edir Macedo que, após ter recusada a
filiação de sua denominação na AEVB, e com o apoio do pastor batista Nilson Fanini e
da Assembleia de Deus de Madureira, fundou em 1993 o Conselho Nacional de Pastores
do Brasil (CNPB), para concorrer com a AEVB (Cf. FONSECA, 2011, p. 103).
Excessivamente dependente do carisma pessoal do seu presidente, a AEVB desarticulou-
se junto com a crise de cunho pessoal pela qual passou Caio Fábio em 1998.
Muitos outros casos desonrosos ocorreram. Devemos lembrar que, no
escândalo do Mensalão, o bispo Rodrigues, da Igreja Universal do Reino de Deus, foi um
dos condenados. Em 2009, diversos parlamentares evangélicos estiveram envolvidos e
foram flagrados por câmeras recebendo propina no escândalo conhecido como
“Mensalão do DEM”. Entre eles estava Júnior Brunelli, pastor e filho de Doriel de
Oliveira, fundador da Catedral da Bênção10. Também Leonardo Prudente, então
presidente da Câmara do Distrito Federal, membro da denominação Sara a Nossa Terra,
foi filmado escondendo dinheiro de propina nas meias. Da mesma denominação é Paulo
Octávio, então vice-governador do DF, preso nessa operação. Também a deputada
Eurides Brito, então líder do governo na Câmara, da Igreja Adventista, foi flagrada
colocando maços de dinheiro na bolsa, entregues por Durval Barbosa, o delator do
esquema. O deputado e pastor da Assembleia de Deus Benedito Domingos foi mais um
apanhado e condenado na mesma operação. Além disso, em 2013, o deputado evangélico
Natan Donadon tornou-se o primeiro político no exercício do cargo preso por ordem do
Supremo Tribunal Federal, desde a Constituição de 1988. Ficou conhecido como o

Assembleia de Deus. Eraldo Tinoco, batista da Bahia. Levy Dias, da Presbiteriana Independente do
Piauí. E o pastor da IPB Izaías Maciel, do Rio de Janeiro, por meio de suas obras assistenciais (Cf.
FRESTON, 1994, p. 101-102).
10 Tornou-se exemplo da falta de compromisso ético de muitos políticos evangélicos a cena do

pastor Rubens César Brunelli Jr. orando abraçado com Durval Barbosa, o futuro delator do
esquema, e com Leonardo Prudente, então presidente da Câmara do DF, também evangélico, em
agradecimento pela propina que acabara de receber. A mídia apelidou o ocorrido de “a oração da
propina”. Ver, por exemplo, AGÊNCIA ESTADO, 2019.

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“deputado presidiário”, uma vez que foi poupado pelos seus pares da cassação. A mídia
noticiou na época que a bancada evangélica se articulou para impedir que fosse cassado11.
Esses são tristes exemplos, infelizmente não os únicos, da participação pública de
parlamentares evangélicos, especialmente pentecostais, em escândalos nos últimos anos.

Conclusão
A fragmentação do protestantismo brasileiro no pós-64 decorreu por via de
vários fatores: a reação conservadora da sociedade brasileira às reformas de base do
governo Goulart, sendo essa reação acompanhada por boa parte dos evangélicos; o
recrudescimento do conservadorismo intrínseco ao próprio ethos protestante de origem
norte-americana; a crescente influência das denominações pentecostais, notoriamente
proselitistas; o desembarque no país da controvérsia fundamentalista que agitava as
igrejas estadunidenses desde o início do século XX. Concomitantemente a esses
movimentos, ou em consequência deles, aportaram no país organizações paraeclesiásticas
vindas dos Estados Unidos, focadas principalmente na educação cristã, no ensino
teológico e na produção de literatura de viés conservador/fundamentalista, que
exerceriam profunda influência sobre as igrejas nas décadas seguintes. Paralelamente a
essas organizações, chega também ao Brasil o fenômeno da Igreja Eletrônica americana,
outro canal de influência fundamentalista que inspira, especialmente, mas não somente,
líderes pentecostais brasileiros a erguerem seus próprios impérios midiáticos. Ainda na
década de 1960, uma das primeiras consequências dessas influências foi o cisma
observado em todas as denominações históricas do protestantismo brasileiro, no influxo
do movimento de renovação carismática.
Esse cenário abortou, em certo sentido, a construção do protestantismo
nacional comprometido com uma visão integral da fé cristã. A elaboração de uma
teologia social e política estava em curso desde que Erasmo Braga retornara do
Congresso do Panamá, em 1916, unindo esforços com outros pastores e missionários,
sobretudo presbiterianos e metodistas. Como pudemos observar, a década de 1950 foi
especialmente prolífica na elaboração de um pensamento político protestante,
notadamente em função da influência exercida por Richard Shaull e pela atuação de
líderes protestantes ligados à Confederação Evangélica do Brasil. O desmonte dessa
teologia política que estava em curso coincide, portanto, com o golpe civil-militar e com a
atuação do governo norte-americano nos bastidores do mundo social-político do país.
Seguiram-se os expurgos, as perseguições, as prisões, as torturas, a morte e o exílio desses

11O deputado foi cassado posteriormente, em 12 de fevereiro de 2014, por ampla maioria. Dessa
vez a votação foi por voto aberto.

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protestantes progressistas de outrora. Ora, falar em teologia social e política a partir do


decênio de 1950 é falar do movimento ecumênico. Verificamos que, não obstante a mão
pesada dos donos do poder estatal e eclesiástico, pessoas e grupos comprometidos com a
utopia ecumênica continuaram militando e permanecem ainda hoje na ativa em
denominações (IECLB, IPU, IEAB etc.) ou ONGs ecumênicas (CESE, Koinonia, CLAI
e CONIC, dentre outras).
Por outro lado, o universo protestante/evangélico desse período expandiu-se
muito. Temos que reconhecer que, majoritariamente, o mundo evangélico brasileiro não
é ecumênico. Novos atores surgiram nesse cenário: as comunidades evangélicas apartadas
das grandes denominações; as igrejas neopentecostais de teoideologia neoliberal; os
evangelicais, com sua proposta de teologia da missão integral — estes últimos marcam
um avanço na consciência social e política, mas, ainda assim, estão inarredavelmente
comprometidos com uma teologia conservadora. E as centenas, talvez milhares de
microdenominações que surgem nesse período são curiosamente uma versão eclesial do
tipo “mais-do-mesmo”, posto que todas anunciam uma nova igreja, mas, os conteúdos
são repetições do já visto.
Vimos também que os pentecostais brasileiros, com a redemocratização,
descobriram a política. A relação mídia-política foi a mola propulsora para boa parte das
carreiras que surgem com o apoio oficial de denominações pentecostais, sendo a chamada
bancada evangélica um de seus substratos. Infelizmente, esse “despertamento” não
redundou no que se esperava: a contribuição protestante para a construção de um país
mais justo, mais equânime, com saúde, educação, lazer e segurança para todos, a partir da
inspiração na fé cristã, na experiência de Jesus Cristo, e do humanismo profético que
encontramos nas páginas das Escrituras. Ao contrário, o que se viu e se vê é a repetição
caricata da cultura política do país com seu corporativismo, seu fisiologismo, seu
clientelismo, seu nepotismo e sua sanha ensandecida por mais dinheiro e mais poder.
Além do mais, o crescimento numérico dos pentecostais no Brasil trouxe
consigo os vícios que acompanham normalmente organizações que se tornam poderosas
política e economicamente. De modo geral, a relação com a sociedade tem variado entre
um dualismo ao mesmo tempo salvífico e epistêmico. Ou seja, a missão da igreja é a
salvação da alma e a fé cristã precisa se proteger do materialismo científico. A melhor
proteção contra uma sociedade secularizada e ameaçadora é a reafirmação das verdades
doutrinárias (fundamentalismo), o fortalecimento de nossas instituições e suas tradições, a
postura antidialógica. Nesse sentido, preserva-se a cultura de gueto, com foco na
espiritualidade subjetiva e individualista. A indiferença social e política se expressa na
compreensão de que a tarefa da igreja tem a ver com seu crescimento numérico. De
outro lado, grandes segmentos representados especialmente pelos grupos pentecostais,

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renovados e neopentecostais – mas não somente – optaram por estratégias tipicamente


midiáticas: espetacularização da fé; menosprezo pela reflexão teórica mais densa,
carismatização do culto, massificação da fé e messianismo personalista.
O imenso potencial de transformação social das denominações pentecostais,
dado seu apelo popular, dissipa-se na manutenção da “moral puritana” e da hierarquia
episcopal com seus mecanismos de coerção grupal, como bem mostraram autores tais
como Beatriz Muniz, Cândido Procópio de Camargo, Francisco Rolim e, mais
recentemente, Gedeon Alencar.12 E, no caso das neopentecostais, esse potencial
verificado na mensagem profética de alto poder de transformação se dilui num discurso
que é mero reflexo da sociedade de mercado, nesse caso, com verniz de coisa sagrada. As
denominações históricas ou se debatem entre a opção ou não pela carismatização ou
despendem imensa energia para se manter fiéis, teológica e liturgicamente, às suas raízes
europeias e/ou norte-americanas.
Essas são observações de cunho geral que não devem ser entendidas como
menosprezo pelas funções terapêuticas e de integração social que as comunidades
evangélicas proporcionam a milhões de pessoas. Mas, devemos chamar a atenção para o
desperdício do potencial de transformação social que a fé cristã, quando exercida na
radicalidade, pode proporcionar. No final das contas, conclui-se, a igreja não é melhor
nem pior do que a sociedade na qual está inserida, é simplesmente um reflexo dela.
Ao finalizarmos esta hermenêutica histórico-social dos evangélicos brasileiros,
devemos nos perguntar: haveria alternativa? Seria possível o movimento
pentecostal/evangélico ter seguido outros caminhos, tomado outros rumos? Qual opção
se apresentaria ao dualismo salvífico ou à assimilação acrítica da sociedade de mercado?
Em que fontes seria possível buscar inspiração para propostas alternativas a esse mundo
pentecostal/evangélico brasileiro que está aí e que, em certo sentido, se apresenta como
definitivo? Tal tarefa será, entretanto, objeto de futuros ensaios.

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12Ver, por exemplo, as seguintes obras: SOUZA, 1969; CAMARGO, 1973; ROLIM, 1985;
ALENCAR, 2019.

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