A Igreja Do Vaticano II
A Igreja Do Vaticano II
A Igreja Do Vaticano II
Resumo: Neste artigo é abordado o Concílio Vaticano II não apenas sob o aspecto histórico e
analítico, mas, sobretudo, na originalidade de sua inspiração.
Abstract: In this paper we discuss the Vatican II not only from its analytical and historical
perspective, but also regarding its originality and inspiration.
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1. Introdução
1
Professor emérito da Universität Freiburg (Alemanha), além de já ter lecionado também em diversas
universidades brasileiras. Autor de diversos artigos e livros.
Vaticano II: a Igreja enquanto sacramento da reconciliação
mencionado. A Igreja vai bem, mas tem adversários que é imprescindível condenar e
neutralizar. Se o Papa convoca um concílio é isto que ele visa ou deve visar. A Cúria
estaria então disposta a colaborar na realização deste propósito de completar combate
aos inimigos de Deus e da Igreja, na linha da luta empreendida especialmente por Pio
IX.
Quando se inicia a primeira das quatro Sessões do Concílio (13/10 – 4/12/1962),
o projeto papal é transmitido aos bispos. A eles, por ordem do Sumo Pontífice, como
insiste o já nomeado Secretário do Concílio, Dom Péricles Felice, são entregues
também os documentos mais significativos entre os não menos do que 71 projetos
elaborados pelas Comissões pré-conciliares. O Vaticano II deveria ter por objeto esses
projetos, discuti-los e tomar suas decisões. O que seria questão de uns dois ou três
meses. A Cúria teria feito o bom trabalho de indicar os rumos e os campos de trabalho
para os Padres Conciliares.
Com os olhos na I Sessão e sua influência decisiva na opção primordial e na
marcha do Concílio, podemos ter uma primeira ideia e esboçar uma primeira análise da
composição, dos protagonistas, dos líderes dessa assembleia de mais de 2500 bispos
realizando o melhor de um parlamento democrático.
O encontro de todos os componentes do Concílio revela aquela bipolaridade
dialética a que aludimos acima. Nesse momento explode uma verdadeira crise na
assembleia conciliar. Os Padres conciliares constatam e estranham uma oposição
absoluta e total entre:
Eis os temas dos quatro projetos que os Padres conciliares tinham em mãos
como vindos do Papa:
Inaugurar o Concílio por esses projetos e com essa orientação autoritária e polêmica
estava bem na lógica dessa corrente não apenas liderada, mas, dominada por Ottaviani e
seguida pela Cúria Romana.
Um antagonismo radical, irreconciliável entre as duas tendências: esta última
que prolonga o ortodoxismo, diríamos do Santo Ofício, da Inquisição, e a outra
despertada ou ativada pela mensagem de João XXIII. O que agravava e exasperava o
conflito é que esses projetos eram distribuídos como vindos do próprio Papa.
Na verdade, o que ficava bem claro e levantava o maior desafio no limiar do
Concílio é a coexistência, até agora irreconciliável, de dois modelos antagônicos de
compreender e definir a Igreja, sua doutrina, sua vida e sua atitude diante do mundo.
Bem como dois modelos de releitura da tradição. Simplificando o que deveremos
melhor explicar em seguida, diríamos que os dois modelos que se afrontavam, podem se
caracterizar pela antinomia de suas referências fundadoras. Há o modelo do poder
divino e absoluto, que o Deus Todo Poderoso deu à hierarquia da Igreja, e cuja natureza
e limites só mesmo a Igreja, em sua hierarquia suprema, pode definir. O outro modelo,
que João XXIII condensava nas palavras da Igreja Mãe e Mestre, vem a ser o modelo do
Deus Amor fazendo à humanidade da Igreja comunhão de amor, cuja natureza e cujos
horizontes infinitos são revelados pelo Evangelho. Ele mostra a Igreja brotando do
Coração vazio de Cristo. E pelo Dom do Espírito dado a todos fieis, unidos em torno
dos Apóstolos, constituídos ministros desse mesmo Espírito de Amor.
De que Concílio se precisa? De um Vaticano II que retoma a mesma inspiração
de Vaticano I de Pio IX, do sílabo das heresias e dos erros a condenar, ou de um
Vaticano II que retoma o conjunto da tradição, particularmente dos progressos dos
ensinamentos pontifícios, no que toca a renovação da Igreja e suas posições em relação
Pio XII prolongou temas tratados pelo seu predecessor e foi bastante utilizado
pelo Vaticano II, em vários de seus documentos, sobre questões discutidas durante seu
pontificado, e que ainda continuavam sendo debatidas na época do Concílio.
Em geral, Pio XII intervinha nos movimentos de renovação da Igreja, para
orientá-los, e impor limites às iniciativas, lembrando a necessária subordinação à
autoridade eclesiástica, pontifícia e episcopal. Ele abordou temas que serão centrais no
empenho de renovação e mesmo de inovação no Concílio. Os Padres conciliares tinham
em mãos encíclicas de Pio XII sobre a Igreja Corpo Místico de Cristo, sobre a liturgia,
sobre a Ação Católica, sobre a Sagrada Escritura.
Esse paradigma se encontra na base da const. LG. Ele inspira a const. DV,
especialmente o cap. 2º, no que toca a missão da Igreja na transmissão da Revelação.
Ele está presente nos documentos que determinam as posições conciliares no plano
ecumênico, missiológico, face ao pluralismo das religiões e culturas.
A Igreja se define e descreve como a perfeita mediação, que se revela deveras
eficaz, porque de todo transparente. A exemplo e pelo Espírito do Cristo, a Igreja
manifesta e promove a glória de Deus, mediante a "práxis" de uma "theologia crucis”.A
eclesiologia conciliar visava levar a bom termo a teologia da verdadeira reforma da
Igreja, a qual procurava os seus caminhos desde a crise protestante.
Essa teologia propõe e ordena umas tantas prioridades, cujo feixe constitui o
paradigma eclesiológico do Concílio Vaticano II. Antes de mais nada, a Igreja é vista
concretamente como povo de Deus, como realização plena e perfeita das qualidades
bíblicas do povo escolhido por Deus e para Deus, amoldado segundo Deus pela
pedagogia de Deus. E por que não reconhecer que Vaticano II está dentro da
sensibilidade moderna e fala para a mentalidade moderna que distingue o povo e a
massa. Pois o povo é chamado a ser ativo, a participar, a assumir responsabilidade. É o
que já lembrava Pio XII, destacando uma das lições que a humanidade contemporânea
aprendera, após tantos e tão grandes sofrimentos.
Esse povo de Deus é uma comunhão no Espírito e do Espírito. A Igreja é
comunidade tecida de comunidades. O Concílio não hesita em proclamar, falando das
igrejas particulares: "é nelas e a partir delas que existe a Igreja Católica una e única"
(LG, Nº 23).
Os fiéis e as comunidades são animados pelo Espírito Santo, que assiste os
Pastores e multiplica dons e carismas a serviço da Comunidade. Havemos de ser atentos
à assistência do Espírito ao magistério, muito mais ainda à habitação do Espírito Santo
que ilumina, guia e santifica os fiéis. Seguindo os seus próprios caminhos e praticando
uma releitura profunda da Sagrada Escritura e da tradição patrística, Vaticano II
reencontrará aquele dado fundamental, mas esquecido, da teologia de Santo Tomás, no
qual a eclesiologia comunica, em profundidade, com a ética cristã: O que constitui
essencial e primordialmente a lei nova do Evangelho é a graça do Espírito Santo, que
nos é dada pela fé em Cristo. Tudo o mais na Igreja, doutrinas, instituições, ministérios,
são elementos de certo necessários, mas precisamente porque estão ordenados a servir a
gênese e o desenvolvimento da graça do Espírito (cf. I-II, 106, 1; 108, 1).
Tal é o significado profundo e inovador da definição que Vaticano II nos dá da
Igreja como "sacramento" total "da reconciliação de Deus com a humanidade" (cf. LG
1, 9, 48; GS 42, 45; SC 26; AG 5). A teologia sacramental do Concílio de Trento é
ampliada e aprofundada. O sacramento, sinal e fonte de graça, jorrando da redenção e
atingindo toda a humanidade, esse conceito chave é aplicado à Igreja. Ela toma assim
consciência de se realizar e se definir como coextensiva à obra do Cristo. A Igreja é
exaltada e ao mesmo tempo relativizada. Com mais profundidade, havemos mesmo de
proclamar que ela emerge e se compreende qual relação viva e subsistente ao Cristo, na
sua cruz e na sua glória. E pelo Cristo, no Seu Espírito, a Igreja se dá totalmente ao Pai,
toda do Pai e para o Pai, para Ele conduzindo a humanidade inteira. À luz e na
perspectiva desse teocentrismo trinitário, não há lugar para um eclesiocentrismo. A
igreja tanto mais se afirma em seu mistério de comunhão de graça, de presença
fecundado Espírito de amor, quanto mais se apaga, esvaziando-se de toda pretensão, de
toda riqueza e de todo poder mundanos.
Esse paradigma exaltante e exigente mostra a Igreja "povo santo e pecador". Ela
busca realizar-se plenamente como comunhão e missão. Ela se torna consciente de sua
responsabilidade e de sua necessária docilidade ao Espírito, que a anima e assiste, e que
age em toda a humanidade e em toda a história. Esse sentido de responsabilidade, que
leva a mobilizar todos os recursos humanos, e essa atitude de docilidade, que se faz
atenta ao Espírito, agindo dentro e fora da comunidade da salvação, dão à Igreja uma
grande fecundidade, ad intra e ad extra.
está em ação nos corações e nas comunidades, e que as convida e incita à perfeita união
em uma Igreja verdadeiramente reformada. Nessa caminhada ecumênica, sob a conduta
do Espírito, a Igreja não pretende impor aos outros um qualquer modelo histórico de
instituição. O paradigma eclesiológico do Concílio se enraíza em um profundo ato de fé
na força onipotente e renovadora do Espírito de Cristo e do Pai, que faz da Igreja o
sacramento da total e perfeita reconciliação da humanidade, já presente e em marcha na
história e para além da história.
outro lado, mostrando o enraizamento cristão desse valor ético fundador, colocando-o
em correlação com o que emerge como a mais bela herança bíblica e patrística, a
definição do ser humano qual imagem de Deus, Vaticano II abria os caminhos do
entendimento e do diálogo em profundidade com a humanidade contemporânea.
Com muita felicidade, o Catecismo da Igreja Católica retomou e explorou o
essencial desse paradigma antropológico conciliar. Sobretudo em sua 3ª Parte, o
Catecismo utiliza a antropologia de GS, em vista de fundar e articular os dados da moral
católica. Que se leiam especialmente os capítulos I e II: "A dignidade da pessoa
humana" e "A comunidade humana". Eles indicam que o paradigma antropológico do
Concílio tem lançado raízes e vai manifestando a sua fecundidade na teologia e na vida
da Igreja.
heterodoxo. Não aprovou nem reprovou seu conteúdo doutrinal. Deixou de lado esse
paradigma ético, relegando assim um feixe de orientações, de opções e de insistências.
A orientação primordial do anteprojeto era polêmica, ele visava, antes de tudo, condenar
erros e desvios. Ele reitera os anátemas de Gregório XVI e, sobretudo de Pio IX. Não
poderia, portanto servir de paradigma para o Concílio que pretendia ser irênico e
ecumênico, e se esmerava em ajudar o homem moderno a discernir ele mesmo os
verdadeiros e os falsos caminhos, à luz da mensagem evangélica exposta com limpidez
e com serenidade. Vaticano II não hesitará em retomar um ou outro elemento do
anteprojeto De ordine morali christiano, mas não assumirá as suas condenações e seu
tom polêmico. Mais ainda. A todo o conjunto de suas doutrinas, o concilio imprimirá
orientações, opções e insistências bem outras daquelas que se encontram no De ordine
morali christiano.
Alguns exemplos simples e breves poderão pôr em evidência as características
próprias de dois paradigmas éticos, que se opõem precisamente pela acentuação ou
insistência que cada um dá às suas opções e prioridades, e não pela qualidade ortodoxa
de seu conteúdo doutrinal.
O De ordine morali christiano toma como ponto de partida o desígnio divino de
conduzir a humanidade à santificação. Assim o fará, e com maior ênfase, a Constituição
LG em seu capítulo V (veja-se o Proêmio desse capítulo). Igualmente a Constituição GS
pressupõe esse mesmo ponto de partida, que vem, aliás, consagrado da maneira mais
clara e eloquente pelo Novo Testamento, especialmente pelo ensino paulino. Mas se o
ponto de partida é o mesmo, quanta diferença nos caminhos percorridos e apontados nos
textos pré-conciliares e nos documentos de Vaticano II. Nos primeiros, o que se
pretende é mostrar que o "desígnio divino" estabelece e funda a moral cristã em uma
"ordem objetiva e absoluta" ("De índole obiectiva ordinis moralis"; "ordo moralis
absolutus"). Dessa "ordem moral, Deus é o guarda, o juiz e o vingador ("Deus custos,
iudex et vindex ordinis moralis"). Em seus elementos de lei divina revelada e natural,
essa ordem moral é confiada qual precioso "depósito" à vigilância e à interpretação da
Igreja. Esses princípios de base enunciados no capítulo 1º - e sustentados por citações
reiteradas de Pio IX anatematizando os erros modernos, - levarão à forte condenação do
"subjetivismo e do relativismo ético" e a uma exposição enérgica sobre "o pecado". Aí
se acentua a condenação das tendências indulgentes e relativizantes que fazem do
pecado mortal uma avis rara. Estigmatizam-se os exageros daqueles que exaltam o
mandamento do amor como critério único e exclusivo da Nova lei evangélica, pois
Os sonhos de João XXIII e de tanta gente antes dele, com ele e depois dele
tiveram de enfrentar a dura realidade das tendências e forças adversas ou acomodadas.
Algo de semelhante se devia ter passado como aplicação do Concílio. E não houve, ao
menos coma necessária intensidade, quando já se dispunha do Carisma conciliar.
Discutamos as condições da viabilidade. De alto a baixo da Igreja, no governo
central, nas dioceses, paróquias é necessário estabelecer prioridades segundo a
hierarquia de valores, relativizando, por exemplo, as devoções e privilegiando a ação
apostólica e social. Levar em conta o jogo de causa e efeito. É indispensável dar
prioridade ao que é fonte eficaz e permanente de reforma: educação, formação de
líderes. Em muitos setores a Igreja pós-conciliar está completamente desmobilizada,
exigindo reformas sociais. Bem ativas e organizadas, sem menosprezar as obras
urgentes de assistência aos necessitados.
Pode-se dizer que “ao se despedir” no término da GS, o próprio Concílio nos
deixa suas sugestões para uma boa recepção e viabilidade em sua aplicação:
Sem dúvida, toma suas distâncias dos outros concílios dogmáticos, autoritários,
preceituando e interdizendo sob “anátemas”. É isso, aliás, que era proposto nos
projetos pré-conciliares apresentados pela Cúria e deixados de lado pelo
Concílio.
Vaticano II termina propondo atitude positiva e inovadora: despertar iniciativas
e nelas progredir a luz do paradigma evangélico da Igreja e de sua visão social.
Prosseguir a análise da sociedade moderna, análise apenas inaugurada pelo
Concílio.
Projetos permanentes progressivos, culminando em uma estratégia evangélica,
apostólica, pastoral, social, “discernindo os sinais dos tempos”, em termos de
causa e efeito. Por exemplo: Qual a visão e quais os modelos de matrimônio
hoje, quais as causas dessa situação, e quais os meios de influir sobre as causas
e não apenas de denunciar os efeitos.
Preparar a ação seus projetos e sua marcha progressiva. Improvisar é o
caminho certo para errar.
Referência
JOSAPHAT, Carlos (frei). Vaticano II: A Igreja aposta no Amor Universal. Ed.
Paulinas, São Paulo, 2013.