PPI-UEM Luana Corbelo
PPI-UEM Luana Corbelo
PPI-UEM Luana Corbelo
Maringá
2019
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Maringá
2019
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BANCA EXAMINADORA
AGRADECIMENTOS
Durante o mestrado, sinalizei algumas vezes para mim mesma a quem dirigiria esta parte
da exposição quando chegasse a hora. Em geral, fiz isso com dadas pessoas em dadas situações
que me impulsionavam e, assim, me ajudaram chegar aqui. Este percurso tem passado e
presente e envolveu muita gente. Assumindo o risco de não nomear a todos, me referirei a
alguns em particular.
À minha mãe Janete de Gois, por todos os plantões em meu favor, por me possibilitar
períodos de escrita tão assumidos e manejáveis. Foi ótimo ter em você, além de tudo, uma
“roommate” nesta fase.
À minha família, em especial ao meu pai João Corbelo Neto, sem seu apoio
provavelmente cursar o mestrado não seria possível, a Talita, pela infância e amor
compartilhados, e ao João, pela camaradagem que encontramos um no outro.
A Laura, que alegria ter você na família, o futuro não demora! Que a tua bússola seja a
história.
A Adriana, orientadora presente e paciente, sua coerência com a humanidade me inspira
desde o início da graduação. Obrigada pela confiança em abraçar este tema juntamente comigo
e insistir na calma e foco necessários para conclusão. Obrigada por em todos os momentos da
pesquisa ter consideração comigo enquanto unidade afetivo-cognitiva.
Às professoras da banca, Silvana, pelo entusiasmo com os desafios teóricos e por puxar
meu pensamento para a materialidade desde as contribuições à especialização, e Teca, por
aceitar o convite a dialogar sobre meu trabalho e fazê-lo com esmero, que bom ter você na
discussão, eu atribuo saltos qualitativos na reflexão deste objeto graças às suas colocações em
Qualificação.
Aos companheiros de mestrado Beatriz, Thomas, Matheus e Lucas. Foi muito bom
contar com vocês em vários momentos desta tarefa solitária que estamos envolvidos.
A Vanessa, por me emprestar livro, quarto e casa para estudar, sempre com o humor que
eu gosto. A Laís, por compartilhar períodos de estudo e folga regados de cuidados teóricos e
afetivos.
A Lorena e a Daniela, por seguirmos melhores.
Ao Manoel e a Nielys, por fazerem com que eu me sinta bem-vinda e me divertirem
tanto.
A Thais, por me ensinar que lar pode estar em qualquer vínculo cujas pessoas envolvidas
mais do que os mesmos termos, partilhem os mesmos conceitos.
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RESUMO
Esta pesquisa bibliográfica teórico-conceitual versa sobre o tema vivência e gênero segundo os
subsídios da Psicologia Histórico-Cultural e do feminismo de base Materialista Histórico-
Dialética. O objetivo geral do trabalho é entender se a vivência pode contribuir como ferramenta
conceitual para a apreensão das particularidades de gênero presentes no desenvolvimento dos
sujeitos singulares. Para isso, são desenvolvidas quatro seções organizadas de acordo com os
objetivos específicos da investigação. A primeira seção é direcionada à exposição do conceito
de gênero, partindo da história da família patriarcal e das bases materiais do sistema
sexo/gênero. A segunda seção apresenta a concepção histórico-cultural de desenvolvimento
humano, considerando-o nos aspectos filo e ontogenéticos. A terceira seção aborda a
apropriação teórica atual da temática presente nos artigos selecionados a partir da base de dados
Scielo. Por fim, a quarta seção coteja as relações entre vivência e gênero no desenvolvimento
psíquico, demarcando o conceito vigotskiano mais elaborado de vivência, expõe-se a dinâmica
dialética entre atividade, vivência e constituição da personalidade no contexto da sociedade de
classes gendradas, finaliza-se com a proposta de uma síntese conceitual articulando as diversas
esferas do presente objeto de estudo. Defende-se a vivência como ferramenta de investigação
das implicações culturais do gênero no desenvolvimento psíquico dos indivíduos, evidenciando
que os aspectos afetivo-cognitivos que os constituem também são determinados pelo gênero.
ABSTRACT
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 11
SEÇÃO 1 O SISTEMA SEXO/GÊNERO SEGUNDO O FEMINISMO DE BASE MATERIALISTA
HISTÓRICO-DIALÉTICA .................................................................................................................. 15
1.1 A família patriarcal na história ................................................................................................... 15
1.2 O gênero como construção social de uma sociedade desigual .................................................... 25
SEÇÃO 2 O DESENVOLVIMENTO HUMANO SEGUNDO A PSICOLOGIA HISTÓRICO-
CULTURAL ........................................................................................................................................ 45
2.1 A chave do desenvolvimento humano na filogênese: o trabalho ................................................ 45
2.2 A chave do desenvolvimento humano na ontogênese: a atividade ............................................. 50
SEÇÃO 3 OS ESTUDOS ATUAIS SOBRE VIVÊNCIA E GÊNERO À LUZ DA PSICOLOGIA
HISTÓRICO-CULTURAL .................................................................................................................. 61
3.1 Procedimentos no mapeamento dos artigos ................................................................................ 61
3.2 Análise dos artigos selecionados ................................................................................................ 65
3.2.1 Contribuições dos artigos que definiram conceito de vivência ............................................ 80
3.2.2 Contribuições dos artigos que não definiram o conceito de vivência .................................. 87
SEÇÃO 4 A VIVÊNCIA COMO UNIDADE DE ANÁLISE DAS RELAÇÕES CULTURAIS DE
GÊNERO NO DESENVOLVIMENTO PSÍQUICO ............................................................................ 99
4.1 A evolução do conceito de vivência na obra de Vigotski ........................................................... 99
4.2 A relação dialética entre atividade – vivência – personalidade ................................................. 114
4.3 Por uma síntese: avançando nas relações vivência e gênero para a Psicologia Histórico-Cultural
....................................................................................................................................................... 126
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................. 130
REFERÊNCIAS ................................................................................................................................. 135
11
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, temos como objetivo geral entender se a vivência pode contribuir como
ferramenta conceitual para a apreensão das particularidades de gênero presentes no
desenvolvimento dos sujeitos singulares. Para tanto, realizamos uma pesquisa bibliográfica
teórico-conceitual fundamentada nos aportes da Psicologia Histórico-Cultural e em estudos
feministas ancorados no Materialismo Histórico-Dialético. Pretendemos contribuir para a
discussão crítica acerca do fenômeno das desigualdades de gênero, tendo como compreensão
que gênero é uma construção sócio-histórica.
O interesse pelo problema de pesquisa teve início entre o final de minha graduação em
Psicologia e início da especialização lato sensu em Teoria Histórico-Cultural, ambas cursadas
na Universidade Estadual de Maringá. Este período foi marcado pelo aprofundamento dos
estudos sobre a Psicologia Histórico-Cultural e aproximações com estudos sobre gênero a partir
de autoras feministas.
Em meados de 2015 e 2016, comecei a me deparar com uma palavra presente nos textos
ativistas, principalmente entre as publicações de blogs e outras páginas eletrônicas relacionados
ao movimento das mulheres e ao movimento negro, que aos poucos era incorporada no
vocabulário pessoal de colegas militantes em um sentido muito semelhante aos termos
experiência individual, particular ou pessoal. Tratava-se da “vivência”.
Pouco adiante, estudando sobre o Materialismo Histórico-Dialético, conheci algumas
críticas oriundas do marxismo sobre os impactos históricos das ações militantes quando
circunscritas à individualização, problematizando, no caso das vivências, as decorrências dos
apelos à experiência individual pautando estratégias e táticas desses movimentos sociais.
A vivência, para a Psicologia Histórico-Cultural, não corresponde à experiência
individual isolada do contexto constituído nas bases materiais de existência. Mas de acordo
com Vigotski (2018), vivência é a unidade de análise do psiquismo que evidencia as relações
do sujeito com o meio durante seu desenvolvimento, conservando a interação das características
da personalidade com os elementos do meio.
Apesar da impressão inicial sobre o uso desse termo em circunstâncias militantes
apontar para divergências em relação ao conceito vigotskiano, a alusão à vivência me chamou
a atenção, visto a relevância da mesma no desenvolvimento ontogenético segundo a abordagem
psicológica aqui adotada.
Para entender o papel que a vivência exerce no desenvolvimento é importante assinalar
a concepção acerca deste. Partimos da assertiva de que os seres humanos não nascem com uma
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humanos. E não algumas objetivações para um gênero e outras para o outro como ocorre
atualmente.
Quando nos debruçamos sobre as desigualdades de gênero que incidem sobre os sexos,
é fundamental a compreensão de como são forjadas na vida singular dos indivíduos a
naturalização da opressão às mulheres. Neste sentido, buscamos nos aprofundar no conceito de
vivência.
Tais desigualdades se acirram na atualidade e são apresentadas também nas práticas
violentas contra as mulheres. Este fato é exposto cotidianamente pela mídia e registrado por
pesquisas específicas. Em 2013, o Brasil ocupava a quinta posição internacional em
feminicídio, com a taxa de 4,8 homicídios a cada 100 mil mulheres. (Waiselfisz, 2015). Dois
anos depois, a Lei 13.104, de 9 de março de 2015, alterou o Código Penal reconhecendo as
especificidades do homicídio de mulheres por motivações de gênero e tornando o feminicídio
como crime hediondo. (Lei nº 13.104, 2015). Em 2017, do total de 2795 feminicídios
registrados na região da América Latina e do Caribe, mais de 40% ocorreram em território
brasileiro – em números absolutos, 1133 vítimas. (Cepal, 2018). Já em 2018, houve um aumento
de 12% no número de casos de feminicídio registrados em relação a 2017. (Velasco, Caesar &
Reis, 2019). Além disso, segundo estimativas de subnotificação dos casos de estupro
registrados junto ao Sistema Único de Saúde e à Segurança Pública, cerca de 300 mil a meio
milhão de estupros ocorrem no país a cada ano. (Ipea & FBSP, 2018). Tais dados são expressões
fenomênicas da estrutural divisão sexual do trabalho.
Respaldada na concepção marxiana de que é a vida material que determina a consciência
(Marx, 1985), há na Psicologia Histórico-Cultural a premência de voltar-se ao estudo do ser
humano concreto, assumindo que a subjetividade não é esfera à parte da realidade objetiva, mas
constitui-se na e por esta última. Frente a essa realidade de opressão às mulheres, direcionamo-
nos para a investigação da vivência e gênero, pois desde a compreensão de que o psiquismo
humano é reflexo subjetivo da realidade objetiva, fomos norteadas pela hipótese de que uma
vez desenvolvido em uma sociedade cujas condições objetivas dividem o gênero humano em
gêneros carregará consigo implicações subjetivas desta materialidade.
Por considerar a relação entre singularidade-particularidade-universalidade, a teoria
empregada é capaz de oferecer subsídios ao entendimento do modo com o qual se estabelecem
a opressão das mulheres nas relações sociais. Nessa direção, este trabalho dirige-se a estudiosos
e profissionais da área que se baseiam na Teoria Histórico-Cultural e buscam enfrentar o cenário
apresentado. A fim de alcançar o objetivo geral proposto, elegemos quatro objetivos específicos
divididos por seções na estrutura desta dissertação.
14
1
Como exemplo, duas autoras feministas de destaque que se baseiam no Materialismo Histórico-Dialético: Saffioti
(1987, 2013, 2015) e Izquierdo (1988, 1992, 1994, 2013), cada qual com especificidades teóricas na apreensão da
sociedade patriarcal.
16
A imposição das necessidades da produção sobre todas as esferas da vida não exime a
sexualidade humana. Ou seja, a maneira como a humanidade ao longo da História desempenhou
o trabalho afetou e transformou a sexualidade, bem como as ideias a respeito dela. Trabalho e
cultura retiraram o sexo do reino puramente biológico e o condicionaram, por exemplo, à forma
como tratamos os indivíduos a partir dos gêneros feminino e masculino.
Na relação entre a produção e os demais processos da reprodução social, a base material
da existência se transforma/transformando as relações entre os sexos no interior da família,
instituição social desenvolvida nas contradições do processo histórico. (Engels, 2010).
Assim, o modelo de família vigente hoje tem motivos sociais para sê-lo. Preparamos
este item no intuito de elucidar, com os subsídios de Engels (2010), as principais condições
responsáveis pela implementação do patriarcado, pois a partir da história da família,
entendemos que o gênero se tornou uma particularidade importante para determinar o grau de
genericidade humana a ser apropriada por cada ser singular.
O patriarcado consiste, nas palavras de Souza (2006), fundamentada nas ideias de
Hartmann, em:
Num velho manuscrito inédito, redigido em 1846 por Marx e por mim, encontro a
seguinte frase: “A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher
para a procriação dos filhos”. Hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classes
que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o
homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do
sexo feminino pelo masculino (Engels, 2010, p. 87).
Constituída dos instrumentos de ferro aperfeiçoado, dos foles de forja, do moinho à mão,
da roda de olaria, da preparação do azeite e o vinho, do trabalho de metais elevado à
categoria de arte, de carretas e carros de guerra, da construção de barcos com pranchas
e vigas, dos princípios de arquitetura como arte, das cidades amuralhadas com torres e
ameias, das epopeias homéricas e de toda a mitologia (p. 43).
Nela, os grupos conjugais classificam-se por gerações [grifo nosso]: todos os avôs e
avós, nos limites da família, são maridos e mulheres entre si; o mesmo sucede com seus
filhos, quer dizer, com os pais e mães; os filhos destes, por sua vez, constituem o terceiro
círculo de cônjuges comuns; e seus filhos, isto é, os bisnetos dos primeiros, o quarto
círculo. Nessa forma de família, os ascendentes e descendentes, os pais e filhos, são os
únicos que, reciprocamente, estão excluídos dos direitos e deveres (poderíamos dizer)
do matrimônio [grifo nosso]. Irmãos e irmãs, primos e primas, em primeiro, segundo e
restantes graus, são todos, entre si, irmãos e irmãs, e por isso mesmo [grifo do autor]
maridos e mulheres uns dos outros. O vínculo de irmão e irmã pressupõe, por si, nesse
período, a relação carnal mútua (Engels, 2010, pp. 54-55).
Nota-se como maternidade e paternidade não são noções naturais, mas constituídas
socialmente. Na família consanguínea, por exemplo, os filhos são filhos da comunidade.
Evidentemente, era de conhecimento a reprodutora de cada filho, isto é, a “mãe” biológica, mas
o “papel materno” era exercido por todos do grupo. (Engels, 2010).
O segundo estágio da família foi a punaluana, forma clássica dos matrimônios por
grupos. Deste período, também da era selvagem, advém a segunda restrição das relações sexuais
– entre irmãos – a começar provavelmente pela proibição entre irmãos uterinos e, aos poucos,
até entre irmãos colaterais (primos de primeiro a terceiro grau). (Engels, 2010).
É a esta fase que remontam as origens das gens, o regime social matriarcal da época
primitiva, anterior à criação do Estado (Engels, 2010). Na constituição da gens, evidencia-se
com excelência a relação dialética entre a formação das famílias e a formação da sociedade.
Nas palavras de Engels (2010):
Até que ponto se fez sentir a ação desse progresso o demonstra a instituição da gens
[grifo do autor], nascida diretamente dele e que ultrapassou de muito seus fins iniciais.
A gens formou a base da ordem social da maioria, senão da totalidade, dos povos
bárbaros do mundo, e dela passamos, na Grécia e em Roma, sem transições, à
20
civilização. Cada família primitiva teve que se cindir, o mais tardar depois de algumas
gerações (p. 56).
Em todas as formas de família por grupos, não se pode saber com certeza quem é o pai
de uma criança, mas sabe-se quem é a mãe. Ainda que ela chame filhos seus a todos
[grifo do autor] os da família comum, e tenha deveres maternais para com eles, nem por
isso deixa de distinguir seus próprios filhos entre os demais. É claro, portanto, que em
toda parte onde existe o matrimônio por grupos a descendência só pode ser estabelecida
do lado materno [grifo do autor], e, por conseguinte, apenas se reconhece a linhagem
feminina [grifo do autor] (pp. 59-60).
Sendo incerta a paternidade nessa forma de família, é válida apenas a filiação feminina.
Como os irmãos não podem casar com as irmãs, e só com mulheres de outra origem, os
filhos procriados por essas mulheres ficam fora da gens, por força do direito materno.
Assim, não permanecem no grupo senão os descendentes das filhas [grifo do autor] de
cada geração; os descendentes dos filhos passam às gens de suas respectivas mães
(Engels, 2010, p. 110).
Os filhos das irmãs de minha mãe são também filhos desta, assim como os filhos dos
irmãos de meu pai o são também deste; e todos eles são irmãs e irmãos meus. Mas os
filhos dos irmãos de minha mãe são sobrinhos e sobrinhas desta, assim como os filhos
das irmãs de meu pai são sobrinhos e sobrinhas deste; e todos são meus primos e primas.
Com efeito, enquanto os maridos das irmãs de minha mãe são também maridos desta e,
igualmente, as mulheres dos irmãos de meu pai são também mulheres deste — de
direito, se nem sempre de fato —, a proibição das relações sexuais entre irmãos e irmãs
pela sociedade levou à divisão dos filhos de irmãos e irmãs, até então indistintamente
21
considerados irmãos e irmãs, em duas classes: uns continuam sendo, como antes, irmãos
e irmãs (colaterais); outros — de um lado os filhos dos irmãos, de outro os filhos das
irmãs — não podem [grifo do autor] continuar mais como irmãos e irmãs, já não podem
ter progenitores comuns, nem o pai, nem a mãe, nem os dois juntos; e por isso se torna
necessária, pela primeira vez, a categoria dos sobrinhos e sobrinhas, dos primos e
primas, categoria que não teria sentido algum no sistema familiar anterior (Engels, 2010,
pp. 57-58).
Neste estágio, um homem vive com uma mulher, mas de maneira tal que a poligamia e
a infidelidade ocasional continuam a ser um direito dos homens, embora a poligamia
seja raramente observada, por causas econômicas; ao mesmo tempo, exige-se a mais
rigorosa fidelidade das mulheres, enquanto dure a vida em comum, sendo o adultério
destas cruelmente castigado. O vínculo conjugal, todavia, dissolve-se com facilidade
por uma ou por outra parte, e depois, como antes, os filhos pertencem exclusivamente à
mãe (Engels, 2010, pp. 65-66).
Em Engels (2010), não é conclusivo se para o autor a restrição inicial advinda deste
período sobre a vida sexual das mulheres é interdito à liberdade feminina. Nós assim a
consideramos e diferenciando-nos do autor neste quesito destacamos que as ideias expressas
em sua obra são localizadas histórica e socialmente. Sem mais delongas, apesar da divergência
citada, as contribuições de Engels (2010) seguem desmontando o argumento ideológico
patriarcal de que nos primórdios da humanidade as famílias eram formadas a partir da linhagem
paterna. Ao contrário, a preponderância feminina – possível graças à economia doméstica
comunista característica à gens – “nos tempos primitivos, esteve difundida por toda parte”
(Engels, 2010, p. 68).
Até agora apresentamos os modelos familiares anteriores à civilização. As condições
fundantes da civilização são, justamente, os motores para novos progressos na família: o
prelúdio da família monogâmica por meio da forma intermediária da família patriarcal, a
comunidade familiar patriarcal. Nesta, a posse e o cultivo do solo em comum ganham novo
sentido, sendo a transição entre a família sindiásmica e a família monogâmica. (Engels, 2010.)
Na família sindiásmica o grupo já havia ficado reduzido à sua última unidade, à sua
molécula biatômica: um homem e uma mulher. . . . se não tivessem entrado em jogo
novas forças impulsionadoras de ordem social [grifo do autor], não teria havido
qualquer razão para que da família sindiásmica surgisse outra forma de família. Mas tais
forças impulsionadoras entraram em jogo (Engels, 2010, p. 73).
Dessa forma, pois, as riquezas, à medida que iam aumentando, davam, por um lado, ao
homem uma posição mais importante que a da mulher na família e, por outro lado,
faziam com que nascesse nele a ideia de valer-se dessa vantagem para modificar, em
proveito de seus filhos, a ordem de herança estabelecida (Engels, 2010, p. 76).
Entretanto, para que a filiação paterna fosse biologicamente verdadeira, mais um evento
era necessário: estabelecer a limitação sexual da mulher reprodutora a um único parceiro.
Assim, passamos à fase seguinte da família, a família monogâmica.
A monogamia nasce no período de transição entre a fase média e a fase superior da
barbárie e é instaurada em prol da garantia de descendência legítima do patriarca, logo,
unicamente sobre a vida sexual das mulheres. (Engels, 2010).
Pela análise histórica da família, elucida-se que seu estágio patriarcal remonta às origens
da propriedade privada, do primeiro antagonismo de classes da história através da monogamia,
da possibilidade de (e efetiva) exploração dos seres humanos por outro ser humano, o patriarca.
Figura histórica que a cada progresso das sociedades de classes pode ter sido reconfigurada,
mas não foi abolida. Tamanho o vínculo estrutural entre patriarcado e as sociedades de classes.
25
Vimos até agora que de acordo com os grandes progressos no modo de produção e
reprodução da vida, a estrutura familiar e as relações entre os sexos também foram
transformadas. Engels (2010) posicionou a família e a sexualidade humana como partes
integrantes de uma totalidade histórica.
Conforme mencionado no início desta seção, sobre os termos patriarcado e,
principalmente, gênero levantam-se diversas conceituações. Ante essas, há teorias feministas
26
que advogam pela igualdade de gêneros e outras que advogam pelo fim da sociedade dividida
em gêneros, justificando que somente a partir de tal ruptura e superação a relação de igualdade
entre os sexos será possível. É imprescindível, então, expormos o conceito de gênero que
fundamenta nossas reflexões.
Não admitimos sexo e gênero como sinônimos e a fim de localizarmos as origens da
desigualdade entre mulheres e homens, o que é do reino do sexo ou do gênero, nos baseamos
nas contribuições de Izquierdo (1988, 1992, 1994, 2013) acerca do sistema sexo/gênero e suas
bases materiais.
Estes três níveis se identificam de um modo confuso, sobretudo no caso de pessoas que
não se ajustam ao modelo dominante. É comum que o comportamento feminino em um
macho e o masculino em uma fêmea se definam como homossexual. No entanto uma
fêmea feminina e um macho masculino se supõe heterossexuais, mesmo quando é
evidente que nem sempre o são. Se supõe que uma fêmea vestida com um uniforme
branco é enfermeira, mesmo que seja médica (e o uniforme branco não seja de
enfermeira e sim de médica), porque se considera que em função de seu sexo não pode
estar ocupando espaço social masculino. Também se presume que uma pessoa com
vestido, saltos altos e maquiada é uma fêmea pela vestimenta feminina que usa, quando
pode tratar-se de um macho. Quando se comenta sobre uma briga de rua ou uma partida
27
No lugar de entrar diretamente na análise das diferenças entre sexos, modo habitual de
estudar machos e fêmeas humanas, é a meu modo de ver muito mais esclarecedor o
estudo das características comuns aos próprios humanos e próprias dessa espécie. Nesta
perspectiva estaremos em condição de valorizar a importância relativa às diferenças
entre os sexos e o grau em que as mesmas são ou não uma determinação biológica ou,
pelo contrário, o produto da interação entre a natureza e a cultura (Izquierdo, 1992, s/p).
As características físicas que temos ao nascer são o resultado do acaso, por outro lado,
é fundamental reconhecer as diferentes maneiras pelas quais as características sexuais
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foram compreendidas, e a maneira pela qual elas foram usadas para construir uma ordem
de relações sociais (p. 13 – tradução nossa).
Izquierdo (1992) explica que os diferentes caracteres sexuais dizem respeito a atividade
biológica para a continuidade da espécie, visto que o Homo sapiens é um ser vivo de reprodução
sexuada. De acordo com a influência direta na atividade reprodutiva, tais caracteres podem ser
separados em diferenças primárias ou secundárias.
Masculinidade e feminilidade não são, portanto, categorias naturais, dadas junto ao sexo
macho e fêmea, mas são marcadores da divisão sexual do trabalho, que entende como femininas
as atividades da reprodução da vida e masculinas as tarefas da produção.
As diferenças entre os sexos importam efetivamente apenas à atividade reprodutiva da
espécie (Izquierdo, 1992). Cabe lembrar que o ato sexual não se reduz à atividade de
reprodução. Quando a diferença sexual é estendida como pré-requisito para as outras atividades
humanas trata-se de uma distorção em função das determinações sociais para o sistema
sexo/gênero. Como afirma a autora:
Não temos base para afirmar quais são as características das mulheres em si [grifo da
autora], porque não podemos isolar as mulheres do contexto em que vivem e se formam,
formam seus desejos e aspirações. Portanto, quando falamos das mulheres, não nos
referimos a pessoas em si mesmas, mas a um sistema de relações que toma as
capacidades relacionadas à procriação como ponto de partida para a ordenação das
relações sociais [grifo nosso] (Izquierdo, 2013, p. 14 – tradução nossa).
Por esta explanação, contatamos que a biologia determina as diferenças entre os sexos,
mas não as desigualdades entre eles. Na base das últimas, há as determinações sociais
engendradas pela divisão sexual do trabalho que produz, pois, as desigualdades de gênero.
Adentramos, assim, a discussão de Izquierdo (1992) sobre a segunda base material para o
sistema sexo/gênero.
que recai sobre o sexo feminino – aos homens foi garantida a posse da riqueza gerada pelo
trabalho e às mulheres o destino do trabalho não pago e da subordinação. (Engels, 2010). A
exploração inicial de uma classe sobre a outra na figura do patriarca foi possível pela opressão
do sexo das fêmeas pelos machos e, então, a diferença sexual (referente somente ao papel
biológico de cada sexo na reprodução sexuada da espécie) passou a ser base para a divisão do
trabalho apoiada no sistema sexo/gênero. Sendo assim, nascer fêmea ou macho da espécie
humana passa a ser condicionante no lugar ocupado pelos indivíduos na história não mais
(somente) da continuidade da espécie, mas do gênero humano no contexto das sociedades de
classes.
De acordo com Izquierdo (1992, 2013), as diferenças sexuais são fundamentos e não
causas da desigualdade que se estabelece entre os sexos e os gêneros no patriarcado. Assim, o
sexo é condicionante, isto quer dizer que a partir dele podem ser atribuídos determinados papéis
para determinado indivíduo a depender de seu contexto, mas o que é determinante no
desenvolvimento é o gênero. A base material das diferenças entre os sexos comporta tanto uma
sociedade dividida em gêneros como uma sociedade sem gêneros.
De todos esses fatos se deriva que a primeira base sobre a qual se assenta o sistema
sexo/gênero – nosso corpo – é tal que possibilita a construção de uma sociedade
fundamentada na divisão das posições fêmeas e machos na sociedade, mas também com
que esta construção não seja inevitável [grifo nosso]. Se faz possível sobretudo por
nossa plasticidade em boa medida devida a nossa imaturidade ao nascer. Uma vez
detectado o sexo de uma pessoa, e certificado seu registro de nascimento, pode
conseguir-se que a mesma se ajuste a um certo modelo, tanto por seus aspectos físicos
como pelos interesses que desenvolve, a forma como vê o mundo, o tipo de relações que
estabelece etc. [grifo nosso] (Izquierdo, 1992, s/p).
2
Sobre isso, ver Lessa (2012a). O autor, dentre outros assuntos, discute a divisão das tarefas nas sociedades
coletoras-caçadoras, quando a vida era tão cara que era preciso proteção das fêmeas reprodutoras, não as expondo
à possibilidade de morte das tarefas mais perigosas. Com os “mananciais de riqueza” abertos pela criação e
domesticação de animais e a agricultura, manter a divisão sexual do trabalho cumpriu aos interesses ideológicos
do patriarca. Além disso, o autor sintetiza importantes críticas aos estudos de Engels com algumas das quais
corroboramos, mas não nos detemos para não perder de vista nossos objetivos.
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Por um lado, não é possível classificar alguns indivíduos como machos ou fêmeas a
partir do dimorfismo sexual, por possuírem características sexuais secundárias pouco
marcadas ou por problemas cromossômicos ou hormonais que afetam a diferenciação
sexual [grifo nosso]. Em segundo lugar, algumas pessoas que morfologicamente e
funcionalmente se encaixam em um dos sexos, declaram encontrar-se metidas no corpo
errado, e quando se expressam dessa forma indicam que acreditar que estão
experimentando emoções e desejos, ou querendo fazer coisas que socialmente são
atribuídos ao outro sexo e reconhecidos como tal [grifo nosso]. Assim, esses psiquiatras
[sic] foram apresentados a dois tipos de problemas que tinham uma base comum (p. 36-
37 – tradução nossa).
Em Izquierdo (1988), a autora afirma ser este sistema uma ditadura de gênero, pois não
reconhece como legítimas outras possibilidades que não seja sexo fêmea + gênero feminino =
mulheres e sexo macho + gênero masculino = homens. Entendemos que o termo ditadura é
aqui utilizado no sentido de ditar os modos de existir dos indivíduos e isso se dará por vias
implícitas ou explícitas a depender do momento histórico. Abaixo seguem as palavras da autora
sobre este conceito:
Em outra passagem, a autora discute a atribuição destas tarefas aos gêneros como um
paradoxo no desenvolvimento das pessoas, que desta forma se dá unilateralmente.
Em outro trecho, ainda afirma que “A saída que levaram Stoller e Money foi a da surdez
e da censura, porque a queixa que recebiam – ‘meu corpo está errado’ – consideraram como o
problema e não como o sintoma de um problema” (Izquierdo, 1994, p. 38 – tradução nossa). É
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fundamental destacar o sentido que a autora aponta com essa questão: mantendo o sistema
sexo/gênero, os problemas são individualizados; superando-o, haveria possibilidades de os
sujeitos construírem outras vivências, livres. Conservar a categoria gênero implica em ajustar
os danos do sistema sexo/gênero aos indivíduos, ainda salvaguardando a divisão sexual do
trabalho.
Neste sentido, o cerne da transgressão do sistema sexo/gênero a que se refere Izquierdo
(1994) é a desigualdade com que são tratados os sexos nesta sociedade, que funda outros
sintomas como os mencionados abaixo.
O que implicam essas práticas e as concepções nas quais essa posição se baseia? Em
primeiro lugar que a estrutura da sociedade não é uma variável, mas uma constante. A
estrutura de gêneros da sociedade não é considerada modificável, seja porque não se
quer modificá-la, seja porque não se acredita que possa ser modificada. Se algo está
errado e a estrutura da sociedade deve ser tomada como constante, o que é variável e o
que depende de quê? Sua resposta foi considerar variável o indivíduo e essencial o
gênero, sendo o sexo o contingente. Um pode ser de um gênero ou outro e o sexo deve
necessariamente corresponder ao gênero (Izquierdo, 1994, p. 38 – tradução nossa).
Então, o gênero neste contexto costuma ser abordado ora pelo reducionismo
biologicista, ora pelo reducionismo culturalista. Admite-se que gênero e sexo não são o mesmo,
mas sem questionar a base material para constituição desse sistema a partir da estrutura da
35
A mulher, como o homem, não é um ponto de partida, mas um resultado. Isso significa
que mulheres e homens, isto é, as construções históricas, econômicas, sociais e psíquicas
de mulheres e homens, são a resposta que temos dado ao fato de que em nossa espécie
a procriação é sexuada e as criaturas totalmente dependentes nos primeiros anos de vida.
Paralelamente, constatamos que nossa ordem social se fundamenta na subordinação
daqueles que cuidam de pessoas dependentes do ponto de vista físico ou psíquico, e os
tipifica como femininas; com respeito àqueles que produzem e transformam o meio e
administram as relações sociais, políticas e econômicas, os classificam como
masculinos (Izquierdo, 2013, p. 10 – tradução nossa).
Quando não nos atentamos para a base estrutural do patriarcado – a divisão sexual do
trabalho – arriscamos confundir tanto as manifestações como as causas de tais desigualdades.
A autora complementa que
Na esfera masculina, é onde tem lugar a transcendência do ser humano através de sua
incidência sobre o controle da natureza. Transformando o mundo, produzindo
conhecimentos científicos, invadindo territórios ou protegendo-os das invasões,
ordenando através de atividades políticas a sociedade em que habita, é como o gênero
masculino contribui para a produção da existência humana. Na esfera feminina,
38
doméstica, tem lugar a produção e reprodução da vida humana. Produção gerando novas
vidas, reprodução restaurando as energias vitais consumidas cotidianamente. Essa
produção e reprodução de vida humana, que fará possível as atividades transcendentes
(Izquierdo, 1992, s/p).
Ao longo da história, o patriarcado como sistema de dominação dos patriarcas sobre seu
patrimônio evoluiu também as particularidades pelas quais atualiza as opressões de gênero.
O patriarcado desenvolve esta (perversa) divisão que no capitalismo encontra sua mais
perfeita conjunção: na esfera masculina, ocorrem as tarefas de transcendência, e, na
esfera feminina, ocorrem as tarefas de produção e reprodução da vida, que tornam
possível o mundo da transcendência. Essa divisão converte as atividades dos gêneros
em atividades alienadas, cuja alienação perpassa toda a vida societal, sob a égide do
capital (p. 135).
Complementa a autora que necessitamos “pensar a opressão não apenas como relações
sociais desumanizantes (que efetivamente o são), mas como relações que constituem e
solidificam estratégias de classe que mantêm e sustentam as relações de exploração da força
de trabalho [grifo nosso]” (Souza, 2015, p. 490). É urgente refletir, então, como o patriarcado
se configura no atual estágio do capitalismo a fim de vincular a opressão a sua época histórica.
Segundo Souza (2015):
3
Sobre o conceito de alienação, indicamos a leitura de Marx, K. (2013a). A mercadoria. In: K. Marx. O Capital.
Livro 1. São Paulo: Boitempo e Mészáros, I. (2006). A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo.
40
Quem elege a dominação como objetivo do capital, e não como sua forma necessária
[grifo nosso], erra no diagnóstico e, conseqüentemente [sic], no enfrentamento a ser
travado. Quanto ao gênero, a análise confirma que o capital, simplesmente, não pode
escolher acabar com a opressão, pois essa é uma necessidade sua, não uma escolha;
pode, entretanto, velar as formas pelas quais essa opressão se exerce, disfarçá-las, pintá-
las com cores belas, efetuar medidas superficiais, cosméticas, subjazendo as formas
societais pelas quais a subsunção real opera, CRIANDO NOVAS TECNOLOGIAS DE
PODER, como ocorre nesses tempos de reestruturação produtiva (p. 65).
O capitalismo pode sim mudar as características do ser humano concreto que será
explorado, mas não romperá com o sistema de exploração que encontra corpo nas opressões.
Para superar o patriarcado é necessário superar a divisão sexual do trabalho. Sem divisão
sexual do trabalho, as diferenças sexuais não importarão para caracterizar outras esferas da vida
que não aquelas relativas à reprodução sexuada.
Isso significa uma sociedade sem gêneros, sem barreiras ao desenvolvimento dos
indivíduos em função do sexo que possuem, para que todas as características humanas e
humanizadoras estejam disponíveis a todos. Prosseguindo com Souza (2015):
Diante disso, segundo esta posição do feminismo de base marxista, lutar por uma
sociedade emancipada é também lutar pelo fim do gênero.
psíquica depende em última análise da estrutura social, o que fazemos sem reservas,
falar sobre gênero e estudar o sistema sexo/gênero implica tomar a realidade por dois
extremos, por um lado as características físicas, as condições vitais, por outro as
características históricas, condições sociais (p. 51 – tradução nossa).
Lembramos que quando nos referimos à divisão sexual do trabalho estamos falando que
estruturalmente às fêmeas humanas delega-se as tarefas da sobrevivência (constituídas como
femininas) e aos machos, tarefas da transcendência. Destarte, a divisão sexual do trabalho
submete o desenvolvimento dos indivíduos ao gênero a eles atribuído. Para Izquierdo (1992),
A última forma de alienação se produz entre os indivíduos que atuam em uma das duas
esferas e os que atuam na outra. Seu mútuo estranhamento se produz porque, como
consequência da forma diferencial com que contribuem para a existência, desenvolvem
duas cosmovisões enfrentadas, duas ordens de valores, prioridades, significados
distintos para as mesmas palavras [grifo nosso]. Quem participa da esfera da
transcendência, tem uma visão linear da vida humana, do tempo, da história. Quem pelo
contrário participa da esfera da sobrevivência, tem uma visão circular da mesma
realidade (s/p).
Uma das estratégias mais utilizadas pela sociedade capitalista patriarcal na constituição
do gênero é a divisão entre os mecanismos psicológicos, sendo que a função psicológica
de afetividade tem sido superestimulada nas mulheres e a racionalidade superestimulada
nos homens (Souza, 2006, p. 141).
Abaixo uma citação a respeito das implicações subjetivas da divisão sexual do trabalho:
A função desempenhada na reprodução sexuada da espécie por cada sexo não deve, mas
na sociedade de classes gendradas pré-determina o lugar de existência no gênero humano. Há
a opressão das fêmeas humanas, a dominação que incide sobre o sexo. Ainda que esta
desigualdade não seja a única, as decorrências na vida concreta das desigualdades de gênero
partem, primeiramente, do sexo. Ao nascer uma fêmea, sobre ela incidem as opressões de ser
mulher, isto é, a desigualdade de gênero incide sobre o domínio do sexo das fêmeas humanas.
(Izquierdo, 1988). Será, então, que a socialização sexista relacionada com o desenvolvimento
de sentidos e significados próprios ao sujeito em questão, não faz com que as circunstâncias do
meio não sejam diferenciadas também pelo gênero? Sobre isso, Souza (2006) comenta:
O capital não tem, por isso, a mínima consideração pela saúde e duração da vida do
trabalhador, a menos que seja forçado pela sociedade a ter essa consideração [grifo
nosso]. Às queixas sobre a degradação física e mental, a morte prematura, a tortura do
sobretrabalho, ele responde: deveria esse martírio nos martirizar, ele que aumenta nosso
gozo (o lucro)? (Marx, 2013c, p. 342).
Torna-se claro que o gênero é mutuamente exclusivo [grifo nosso], isto é, os espaços
sociais, os lugares que podem ser ocupados na divisão sexual da sociedade, impedem a
onipresença. . . . Essa constatação é o que leva ao reconhecimento de que “o feminino”
e “o masculino” fazem parte da estrutura da sociedade, e que uma sociedade sem
desigualdade sexual é uma sociedade sem gêneros, onde cada indivíduo desenvolve suas
potencialidades sem que haja uma pré-definição do que pode fazer ou não fazer em
função de qual é seu sexo (Izquierdo, 1988, pp. 62-63 – tradução nossa).
Em consonância com Izquierdo (1994) e Souza (2015), entendemos que “isso significa
que o que antes era chamado de masculino ou feminino seria propriedade de qualquer indivíduo,
independentemente de qual fosse seu sexo” (Izquierdo, 1994, p. 52). Na luta pelo
desenvolvimento omnilateral do ser humano, um dos entraves a ser superado encontra-se na
limitação que o sistema sexo/gênero impõe ao desenvolvimento dos indivíduos em
determinadas sociedades. Na compreensão de desenvolvimento humano segundo a Psicologia
Histórico-Cultural será pautada a seção a seguir.
45
De posse das conceituações sobre o patriarcado e gênero e seu papel na constituição das
sociedades de classes, em geral, e na manutenção do capitalismo, em particular, nos
perguntamos como este complexo social afeta os indivíduos desta sociedade. Em outras
palavras, como os sujeitos são impactados em seu desenvolvimento pelo sistema sexo/gênero?
Para solucionarmos esta questão, é necessário antes respondermos outra: de que modo ocorre o
desenvolvimento destes indivíduos? Então, destinamos a segunda seção ao resgate da
compreensão histórico-cultural de desenvolvimento humano, tendo em consideração que este
abrange tanto a história do gênero humano como a dos indivíduos mediado pelas condições
concretamente determinadas a cada sociedade. Iniciaremos, assim, pelo desenvolvimento
humano na filogênese, analisado a partir da categoria trabalho, e, em seguida, na ontogênese, a
partir da categoria atividade. Feito isso, teremos condições de prosseguir com as investigações
sobre a vivência na égide da sociedade de classes gendradas.
Tradicionalmente o desenvolvimento humano é estudado como fenômeno de dois polos,
indivíduo e sociedade, aparentemente contrapostos um ao outro. Porém a investigação por meio
do Materialismo Histórico-Dialético e sua análise metodológica da totalidade afirma que esse
nexo (indivíduo-sociedade) não é findo em si mesmo, mas corresponde à mediação de outra
relação mais complexa, a do indivíduo e do gênero humano. (Oliveira, 2005).
Isto porque na aplicação do método dialético singular-particular-universal voltada para
a compreensão do desenvolvimento psíquico apreende como categoria mais geral o gênero
humano, mais específica o indivíduo e as particularidades como as mediações que possibilitam
o intercâmbio do singular ao universal e vice-versa. Ou seja, como categorias que medeiam a
construção do gênero humano no indivíduo e, concomitantemente, dão o esteio ao indivíduo
para contribuir com a história do gênero humano. (Oliveira, 2005).
Qualificar, então, a relação indivíduo-sociedade como mediadora (e não como o todo da
humanização) é chave para a correta apreensão dos determinantes do desenvolvimento psíquico
sob o jugo de uma compreensão histórica. Justificada a dupla abordagem do desenvolvimento
humano, comecemos pela via que lhe é mais geral: a história do gênero humano, também
denominada filogênese.
como consequência direta de seu gênero de vida, devido ao qual as mãos, ao trepar,
tinham que desempenhar funções distintas das dos pés, esses macacos foram-se
acostumando a prescindir de suas mãos ao caminhar pelo chão e começaram a adotar
cada vez mais uma posição ereta. Foi o passo decisivo para a transição do macaco ao
homem (Engels, 2004, s/p).
O caminhar bípede foi fundamental para que as mãos, uma vez livres, pudessem se
especializar em destreza e habilidade – pudessem trabalhar. A nova atividade vital em formação
corresponde ao início do trabalho. (Engels, 2004).
Mas, afinal, o que é o trabalho? Segundo Marx (2013b):
4
Atividade vital refere-se ao modo como os seres vivos retiram da natureza o que é necessário à vida. No caso dos
seres humanos, isto se dá através do trabalho.
47
O progresso do trabalho, desde seu surgimento, exigiu do ser humano primitivo (em
vias de formação pelo próprio trabalho) sua transformação. Cravadas no curso do
desenvolvimento filogenético, as marcas do trabalho estão inscritas na formação biológica do
Homo sapiens e assim, ao modificar a natureza, o ser humano modificou a si próprio, foi
hominizado. (Engels, 2004; Marx, 2013b).
A hominização, a grosso modo, consiste no preparo biológico do Homo sapiens. Para
Leontiev (2004):
O trabalho é assim responsável por elevar o ser orgânico ao ser social, pois a partir dele
(o trabalho) a vida está configurada de acordo com as condições em que o ser humano se
organiza socialmente para suprir suas necessidades biológicas. A objetivação das capacidades
de trabalho do ser humano, por sua vez, concebem, juntamente ao produto do trabalho, novas
necessidades e a história do gênero humano é constituída em um continuum da história do
trabalho. (Lessa, 1999).
Nas palavras de Lessa (1999),
o ser social é distinto do mundo natural porque, na esfera da vida a evolução se faz pelo
desaparecimento e surgimento de novas espécies de plantas ou animais, a história
humana é o surgimento, desenvolvimento e desaparecimento de relações sociais (p. 20).
48
Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem. . .
. No final do processo do trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na
representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já
existia idealmente [grifo nosso]. Isso não significa que ele se limite a uma alteração da
forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao mesmo tempo, seu objetivo, que
ele sabe [grifo nosso] que determina, como lei, o tipo e o modo de sua atividade e ao
qual ele tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além
do esforço dos órgãos que trabalham, a atividade laboral exige a vontade orientada a um
fim, que se manifesta como atenção do trabalhador durante a realização de sua tarefa . .
. . (pp. 255-256).
49
da realidade; o psiquismo humano não se liberta apenas dos traços comuns aos diversos
estágios do psiquismo animal . . .; não reveste apenas traços qualitativamente novos; o
essencial, quando da passagem à humanidade, está na modificação das leis que presidem
o desenvolvimento do psiquismo. No mundo animal, as leis gerais que governam as leis
do desenvolvimento psíquico são as da evolução biológica; quando se chega ao homem,
o psiquismo submete-se às leis do desenvolvimento sócio-histórico [grifo do autor] (p.
73).
Assim, a partir do momento de sua transição para o trabalho como forma básica de
adaptação, o desenvolvimento do homem consiste na história do aperfeiçoamento de
seus órgãos artificias e progride . . . não na linha do aperfeiçoamento de seus órgãos
naturais, mas na linha do aperfeiçoamento dos instrumentos artificiais. Do mesmo
modo, na área do desenvolvimento psicológico do homem a partir do momento da
aquisição e do uso de signos, o que permite ao homem obter controle sobre seus próprios
processos de comportamento, a história do desenvolvimento comportamental, em grau
significativo, transforma-se na história do desenvolvimento de “meios de
comportamento” auxiliares e artificiais – na história do domínio do homem sobre seu
próprio comportamento (Vygotsky & Luria, 1996, p. 90).
Nesse processo reside a démarche histórica do psiquismo humano. Até aqui vimos que
os caminhos de desenvolvimento da humanidade são traçados pelo trabalho. O trabalho fundou
o ser humano, guiando e promovendo o seu desenvolvimento, inaugurando uma nova esfera
ontológica (o ser social) diversa das condições naturais de vida. Isso se estende para a dimensão
psíquica do ser humano. É sobre a apropriação deste tipo superior de psiquismo por cada
membro da espécie na ontogênese que pautaremos o item a seguir.
nas condições materiais da ontogênese é a atividade. Por isso, dedicaremos este item à
exposição de como o gênero humano por meio desta categoria é apropriado pelo sujeito e o
desenvolvimento psíquico assim promovido (ou alienado) de acordo com as circunstâncias
concretas nas quais a atividade está organizada. (Leontiev, 2004).
Ao discorrer sobre os princípios do desenvolvimento psíquico na criança, Leontiev
(2004) aborda o papel da experiência individual em promovê-lo, considerando as diferenças
entre a aprendizagem do ser humano e a de outros animais superiores.
A premissa que evidencia essa distinção é o ato instrumental que se coloca entre sujeito
e objeto da ação, elevando o comportamento do ser humano a um patamar superior aos reflexos
instintivos e condicionados característicos do reino animal. O ato instrumental é condicionado
por estímulos artificiais, criados pelos seres humanos ao longo da história do trabalho e por
eles evocados de modo volitivo. (Vygotsky, 2004a).
O comportamento humano – mediado pelo ato instrumental – como vimos
anteriormente não é natural. Assim sendo, aquilo que foi desenvolvido socialmente precisa ser
aprendido por cada indivíduo, alterando-o. Isso ocorre no processo de internalização da
cultura, que basicamente torna ferramenta do psiquismo (portanto, intrapsicológica) as
objetivações do gênero humano, realizadas entre os seres humanos de forma interpsicológica.
Conforme Tuleski & Eidt (2016), a lei da internalização consiste em:
Essa tarefa leva tempo, não é linear e necessita de mediações. Desse modo, para
compreender dada criança, precisamos analisar sua atividade nas mais diversas relações nas
quais está inserida. No decurso do desenvolvimento, sob as circunstâncias concretas de sua
vida, o lugar que a criança ocupa objetivamente no sistema de relações humanas se altera.
(Leontiev, 2004; Vigotsky, 2009). Devemos voltarmo-nos, pois, para quais relações
contextualizam a experiência individual dessa criança.
A aprendizagem humana se dá por processos diferentes da aprendizagem animal.
Segundo Leontiev (2004), a aquisição de novos comportamentos durante a ontogênese de um
animal está limitada a sua própria experiência em vida, que desencadeará os processos de
adaptação ao meio. Já se referindo ao ser humano, os novos comportamentos necessários para
52
a manutenção da existência não se limitam à aquisição das experiências de uma única vida, é
indispensável a apropriação das aquisições desenvolvidas por milhares de gerações no curso
do desenvolvimento histórico da humanidade. Nas palavras de Leontiev (2004):
Cada geração começa, portanto, a sua vida num mundo de objetos e de fenômenos criado
pelas gerações precedentes. Ela apropria-se das riquezas deste mundo participando no
trabalho, na produção e nas diversas formas de atividade social e desenvolvendo assim
as aptidões especificamente humanas que se cristalizaram, encarnaram nesse mundo. . .
. Está fora de questão que a experiência individual de um homem, por mais rica que
seja, baste para produzir a formação de um pensamento lógico ou matemático abstrato
e sistemas conceituais correspondentes. Seria preciso não uma vida, mas mil. De fato, o
mesmo pensamento e o saber de uma geração formam-se a partir da apropriação dos
resultados da atividade cognitiva das gerações precedentes (p. 284).
Na ontogênese, tais relações são possíveis na atividade que o sujeito está implicado.
Por meio desta, ocorre a apropriação das ferramentas materiais e simbólicas da cultura. Porém,
não são todos os processos concretos da vida de um indivíduo considerados como atividades.
(Leontiev, 2004). Segundo o autor supracitado:
Nem todo o processo é uma atividade. Nós designamos apenas por este termo os
processos que, realizando tal ou tal relação do homem com o mundo, respondem a uma
necessidade particular que lhes é própria. . . . Designamos pelo termo atividade os
processos que são psicologicamente determinados pelo fato de aquilo para que tendem
no seu conjunto (o seu objeto) coincidir sempre com o elemento objetivo que incita o
paciente a uma dada atividade, isto é, com o motivo (Leontiev, 2004, p. 315).
53
é possível elencar as atividade dominantes de cada período, tomando como base Elkonin
(1987): primeiro ano de vida: atividade de comunicação emocional direta; primeira
infância: atividade objetal manipulatória; idade pré-escolar: atividade do jogo de papéis;
idade escolar: atividade de estudo; adolescência inicial: atividade de comunicação
íntima pessoal; adolescência: atividade profissional/estudo. . . . essa teorização pode ser
explorada em todas as etapas da existência humana (Tuleski & Eidt, 2016, p. 52).
O autor também definiu a dinâmica de internalização destas funções como a lei geral
do desenvolvimento psíquico. Segundo esta, toda FPS aparece de duas formas
qualitativamente distintas na ontogênese: primeiro interpsicológica e, depois, intrapsicológica.
Para Facci (2004), as FPS são caracterizadas pela mediação (dos instrumentos psicológicos), a
princípio desenvolvida coletivamente nas relações entre os seres humanos (“inter”) e,
posteriormente, interiorizadas em funções psíquicas da personalidade (“intra”).
Para Leontiev (2004), “existe igualmente uma relação recíproca [grifo nosso] entre o
desenvolvimento das funções e o desenvolvimento da atividade: o desenvolvimento das funções
permite por sua vez à atividade correspondente realizar-se mais perfeitamente” (p. 328). As
funções requeridas em determinada atividade são reorganizadas e transformadas no interior do
próprio processo da atividade. (Leontiev, 2004).
Assim, ao final do processo, não temos psicologicamente o mesmo sujeito que deu início
à atividade. Ele estará tanto mais desenvolvido quanto a atividade o requerera. Colocamos neste
contexto outro questionamento: como as vivências são “qualificadas” por meio das atividades
em uma sociedade patriarcal? Ou melhor, de que modo a relação recíproca entre as funções
psíquicas e a atividade dirigirão as vivências dos sujeitos, dadas em uma situação social de
desenvolvimento caracteristicamente patriarcal?
O sujeito do final da atividade jamais será o mesmo do início. A depender da
configuração da atividade, ele estará mais ou menos desenvolvido, pois a cisão das atividades,
característica à sociedade de classes, em, por um lado, promotoras e, por outro, alienadoras do
desenvolvimento, concederá distintas qualidades às vivências do sujeito.
55
Para Martins (2015), o advento da comunicação mediada interpõe-se entre sujeito (ser
humano) e objeto (natureza):
5
Isso nos sugere a relevância de munir a atividade mediadora da educação com concepções que superem a
hegemonia burguesa e patriarcal de nossos limites históricos. Sobre este aspecto, indicamos a leitura de Toffanelli,
A. C. (2016). Educar para a diferença: uma análise das relações de gênero presentes na literatura infantil sob o
olhar da Psicologia Histórico Cultural e do feminismo de orientação marxista. (Dissertação de mestrado).
Universidade Estadual de Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em
Psicologia, Maringá.
57
Subentendemos por unidade um produto da análise que, diferente dos elementos, possui
todas as propriedades que são inerentes ao todo e, consequentemente, são partes vivas e
indecomponíveis dessa unidade. . . . A psicologia que deseje estudar as unidades
complexas precisa entender isso. Deve substituir o método de decomposição em
elementos pelo método de análise que desmembra em unidades. Deve encontrar essas
propriedades que não se decompõem e se conservam, são inerentes a uma dada
totalidade enquanto unidade, e descobrir aquelas unidades em que essas propriedades
estão representadas num aspecto contrário para, através dessa análise, tentar resolver as
questões que se lhe apresentam (Vigotsky, 2009, p. 8).
Na investigação conduzida por este tipo de análise, Vigotski postulou algumas unidades
mínimas de análise do psiquismo, como o significado da palavra (para o estudo da relação entre
pensamento e linguagem) – (Vigotsky, 2009) – e a vivência, como unidade mínima de análise
da relação entre a personalidade do sujeito e seu meio. (Vigotski, 2018).
Segundo a démarche histórica do psiquismo humano, as condições objetivas da
realidade medeiam a relação indivíduo-gênero humano. Estas condições estão ali não por acaso,
mas porque foram engendradas durante o processo histórico. (Oliveira, 2005). Então, se elas
estão potencializando ou limitando o desenvolvimento humano, cabe à investigação considera-
las na totalidade do processo social, identificando sua função e concretizações em relação a
estrutura social.
Neste trabalho, por exemplo, partimos do princípio de que o gênero é particularidade
limitadora do desenvolvimento humano na ontogênese. Por enquanto, nos deteremos nos
fundamentos de Vigotski e Leontiev a respeito do entrave ao desenvolvimento humano oriundo
das sociedades de classes e alguns questionamentos possíveis para as discussões de gênero.
Segundo Leontiev (2004):
o verdadeiro problema não está, portanto, na aptidão ou inaptidão das pessoas para se
tornarem senhores das aquisições da cultura humana, fazer delas aquisições da sua
personalidade e dar-lhe a sua contribuição. O fundo do problema é que cada homem,
cada povo tenha a possibilidade prática de tomar o caminho de um desenvolvimento que
nada entrave. Tal é o fim para o qual deve tender agora a humanidade virada para o
progresso (p. 302).
Este fim é acessível. Mas só em condições que permitam libertar realmente os homens
do fardo da necessidade material, de suprimir a divisão mutiladora entre trabalho
intelectual e trabalho físico, criar um sistema de educação que lhes assegure um
desenvolvimento multilateral e harmonioso que dê a cada um a possibilidade de
participar enquanto criador em todas as manifestações de vida humana [grifo nosso]
(Leontiev, 2004, p. 302).
Partindo das contribuições de Engels (2010) e Izquierdo (1988, 1992, 1994, 2013)
apresentadas na primeira seção, o desenvolvimento do ser humano nas sociedades patriarcais
terá também uma orientação de gênero. Ou melhor, a unilateralidade do desenvolvimento
também é determinada pelo sistema sexo/gênero tal como está organizado. Vimos que a partir
da atribuição do gênero diferentes possibilidades de socialização são ofertadas às fêmeas e aos
machos da espécie humana, logo a distinção de gêneros não concede acesso livre à apropriação
do gênero humano por parte das mulheres e dos homens.
De acordo com Leontiev (2004):
A divisão social do trabalho tem igualmente como conseqüência [sic] que a atividade
material e intelectual, o prazer e o trabalho, a produção e o consumo se separem e
pertençam a homens diferentes. Assim, enquanto globalmente [grifo do autor] a
atividade do homem se enriquece e se diversifica, a de cada indivíduo tomado à parte
[grifo do autor] estreita-se e empobrece (p. 294).
60
Por essa exposição, vimos que o trabalho, responsável por alargar os limites biológicos
do ser humano na luta pela sobrevivência na natureza, a partir de sua divisão característica às
sociedades de classes aliena a humanidade e faz com que a maioria desta regrida às condições
de luta pela sobrevivência na “selva de pedra” da civilização. Enquanto a humanidade não
superar a grande divisão do trabalho entre intelectual e físico, não superará o desenvolvimento
mutilado da consciência. (Vygotsky, 1930). Entendido como se dá o desenvolvimento humano
à luz da Psicologia Histórico-Cultural, temos condições de explorar a vivência na ontogênese
como unidade que dialeticamente constitui a subjetividade do ser humano e as relações desta
com o meio e seguir analisando como se vinculam vivência e gênero, cotejando as discussões
sobre a constituição da personalidade na sociedade patriarcal. Mas antes pautaremos na próxima
seção como estão atualmente os estudos a respeito do tema investigado a fim de conhecermos
as contribuições sistematizadas pelos mesmos.
61
Nesta seção, apresentaremos um “retrato” de como o objeto desta dissertação vem sendo
estudado recentemente pela Psicologia Histórico-Cultural, levando em consideração os
principais conceitos envolvidos na constituição do mesmo. Assim, pretendemos conhecer qual
é a apropriação teórica sobre os conceitos vivência e gênero presente nos estudos, evidenciando
os avanços e limites disponíveis cientificamente para o tema até o momento. Como delimitação
temporal, adotamos as produções teóricas referentes à década mais próxima – 2008 a 2017.
Inicialmente, explicaremos o caminho metodológico para a seleção do material examinado,
depois, elucidaremos a análise com o auxílio de quadros e gráficos que sintetizam os resultados
encontrados.
descritor psicologia. O número de artigos para o descritor “vivência” era 1819 artigos na
pesquisa considerando “Todos os Índices”. Esta quantidade se contrapôs às buscas relacionando
o termo vivência com alguns descritores de interesse para nosso tema, conforme exposto a
seguir:
Pelo material encontrado, surgiram vários trajetos possíveis para as análises. Levamos,
pois, para o Exame de Qualificação algumas sugestões de seleção dos artigos. Inicialmente,
pretendíamos conhecer se a Psicologia tem estudado a vivência, se os estudos relacionavam
vivência e as discussões de gênero e feminismo e como o faziam. Com o levantamento
percebemos que o problema não está no fato de não haver pesquisas suficientes sobre o assunto,
mas sim, na falta de clareza teórica e metodológica. Devido à grande quantidade de material
levantada (498 artigos), à diversidade teórica ali presente e ao tempo para o término do trabalho,
64
a ideia de analisar teórica e metodologicamente os artigos foi descartada, nosso caminho foi
então reorganizado para um estudo acerca da temática na Psicologia Histórico-Cultural.
Desta forma, decidimos seguir com a pesquisa selecionando somente os descritores que
cruzassem psicologia histórico-cultural, vivência e gênero, a fim de analisar como os
pesquisadores dessa abordagem tem estudado vivência e gênero.
Para responder ao nosso objetivo e nos apropriar de quais contribuições a Psicologia
Histórico-Cultural poderia fornecer para as discussões envolvendo vivência e gênero, buscamos
um refinamento desses conceitos internamente à própria abordagem psicológica adotada, disso
deriva o objetivo central de constituir a terceira seção na configuração presente: quais são as
contribuições advindas dos estudos da Psicologia Histórico-Cultural que versam sobre
“vivência” e “vivência e gênero”, considerando as potencialidades e limites da apropriação
teórica atual para o tema aqui investigado.
Assim, utilizamos os descritores 15, 16, 19 e 20, que totalizavam 20 artigos. A fim de
identificar os materiais repetidos e contabiliza-los apenas uma vez, foi realizada a leitura dos
títulos dos artigos remanescentes, nos restando 18 artigos.
Fizemos a leitura sistematizada dos resumos desses 18 artigos buscando confirmar que
se tratavam de estudos sobre o tema pela Psicologia Histórico-Cultural. Foram excluídos, por
conseguinte, 3 artigos6 nos levando ao número final de 15 artigos analisados. Estes foram lidos
integralmente objetivando delimitar os principais eixos de análise exequíveis por meio do
material selecionado, os quais se constituíram em averiguar o conceito de vivência existente
nos artigos, problematizando-o em relação ao conceito cunhado por Vigotski ao longo de sua
obra e verificar se gênero era conceito problematizado nas discussões dos artigos. Investigamos
este último aspecto entre os artigos que não contavam com gênero como descritor, uma vez que
a partir da leitura dos artigos remanescentes buscando confirmar se eram fundamentados na
Psicologia Histórico-Cultural, foram excluídos 2 dos 3 artigos que tratavam de gênero, sendo
que um deles (dos 3) se repetia, razão pela qual já fora excluído anteriormente. Ou seja, no
escopo do material analisado, não restou nenhum artigo sobre Psicologia Histórico-Cultural,
vivência(s) e gênero.
6
São eles: 1) Méllo, R. P. (2012). Corpos, heteronormatividade e performances híbridas. Psicologia & Sociedade,
24(1), 197-207; 2) Veras, L.; Moreira, V. (2012). A morte na visão do sertanejo nordestino em tratamento
oncológico. Estudos de Psicologia, Natal, 17(2), 291-298; 3) Scorsolini-Comin, F.; Santos, M. A.; Souza, L. V.
Vivências e discursos de mulheres mastectomizadas: negociações e desafios do câncer de mama. Estudos de
Psicologia, Natal, 14(1) 41-50. O primeiro tinha como referencial a Teoria Queer, o segundo a Fenomenologia e
o terceiro não foi considerado como artigo da Psicologia Histórico-Cultural, pois misturava referências pós-
modernas no texto de modo a não evidenciar a teoria cerne do método de investigação.
65
Antes de expor a análise efetuada, destaca-se que não objetivamos tecer críticas de
cunho pessoal aos autores do material selecionado. Compreendemos que o desenvolvimento
das ideias de um autor corresponde a um processo engendrado historicamente, demarcado pela
totalidade na qual se insere e, portanto, de forma alguma se constitui em fenômeno individual.
Nosso foco foi buscar na produção teórica atual potencialidades e limites relacionados
ao tema dessa dissertação. Ainda que dentre os 15 artigos remanescentes nenhum indicava
gênero no descritor, em alguns desses, gênero estava presente como categoria apontada, apesar
de não discutida. Ao tratar de cada artigo, apontamos os casos em que isso se sucedeu.
Iniciamos pela exposição do Quadro 3, realizado no intuito de evidenciar quais áreas do
conhecimento científico vem estudando a vivência a partir da Psicologia Histórico-Cultural, no
período investigado.
11
Fonte: elaborado pela autora com base nos dados extraídos das pesquisas (2018).
brincadeiras, desenhos e
dramatizações.
Artigo 4 O lugar da escola Compreender, a partir Epistemologia Não conceitua vivência. Mesmo que as vivências
Loures, M.; pública na de entrevistas com ex- qualitativa subjetivas na escola fossem
Souza, V. L. T. subjetividade de alunos de uma escola utilizando-se de consideradas importantes
2009. ex-alunos da pública, a relação entrevistas semi- pelos ex-alunos, no seu
Vila São Nazi indissociável entre estruturadas e processo de aprendizagem, não
escola, contexto história de vida. há a percepção de uma relação
sociofamiliar e a necessária entre esses
construção da elementos por parte da escola
subjetividade. ou dos entrevistados.
Artigo 5 Ambiente Discutir o conceito de Não especifica. A vivência é conceituada Problematiza-se a qualidade
Moreira, A. R. pedagógico na Ambiente Pedagógico Mas realiza uma como relação entre das vivências em relação à
P.; Souza, T. N. educação infantil na educação infantil revisão criança e ambiente, promoção do
2016. e a contribuição abordando sua bibliográfica. referindo-se “à vivência desenvolvimento.
da psicologia dimensão relacional e intensa e singular” (p. A organização do Ambiente
processual. 232) e é considerada Pedagógico diz respeito a mais
unidade dinâmica da do que a organização espacial
consciência. em si, pois articula várias
dimensões do processo
educativo, como as relações
estabelecidas e o
desenvolvimento profissional
dos professores.
Artigo 6 Significados Compreender como Fotovoz e Não conceitua vivência. Evidenciam a visão do
Padovani, A. Construídos adolescentes autores encontros de O termo aparece adolescente sobre o
S.; Ristum, M. acerca das de ato infracional, discussão sobre as relacionado a: julgamento social sobre si e
2016. Instituições cumprindo medida imagens experiências infracionais sobre as unidades de
Socioeducativas: socioeducativa de capturadas. como “vivência internação. Há tentativa por
Entre o internação, infracional”; também a parte dos adolescentes de
Imaginado e o significam a experiências modificar os significados das
Vivido internação. emocionais; ou a própria instituições e minimizar o
70
autonomia e emancipação de
seus atores.
Artigo 9 Dramatizações e Averiguar como Pesquisa Não conceitua vivência. Compreendendo a
Pinheiro, F. P.; psicologia ocorrem os processos intervenção. dramatização como técnica
Colaço, V. R. comunitária: um de mediação Análise que traduz e objetifica não só a
2010. estudo de simbólica por meio construtivo- experiência individual, mas a
processos de das técnicas de interpretativa. vivência histórica e
mediação dramatizações em socialmente composta, abre-se
simbólica intervenções da espaço para reelaborar a
psicologia experiência como ato criador.
comunitária, visando
compreender e
articular teoricamente
estas técnicas com
questões relativas à
arte e à brincadeira.
Artigo 10 As vivências: Abordar a questão das Pesquisa Conceitua vivência Ao longo da obra de Vigotski,
Toassa, G.; questões de vivências na etimológica e segundo uso formal e vivência é campo de conflitos.
Souza, M. P. R. tradução, perspectiva de semântica do informal da língua russa, Seu uso caminha de um sentido
2010. sentidos e fontes Vigotski, tratando de idioma russo, em dois sentidos mais dicionaresco e próximo à
epistemológicas suas fontes bibliográfica da principais nas diversas crítica da arte para o de uma
no legado de epistemológicas, crítica literária da produções de Vigotski ferramenta metodológica
Vigotski raízes na língua russa Rússia, analisadas, relacionando fundamental na análise do
e sentidos específicos interlocutores de a categoria com sistemas desenvolvimento infantil.
a partir “A tragédia de Vigotski e psicológicos como
Hamlet. . .”, textos produção do consciência e
pedológicos de 1930 próprio autor personalidade.
com destaque para “A entre 1916 e 1934.
questão do meio. . .”.
Artigo 11 Desafios às Discutir Pesquisa Não conceitua vivência. Apontam a necessidade de as
políticas especificamente os etnográfica de A categoria é recorrente políticas públicas
públicas diante atravessamentos das imersão parcial. no texto. configurarem espaços de
72
diferentes encontros em
meio presentes na
manifestações. vídeo, áudio eexperiência, sendo assim
memoriais. trabalho mental.
Artigo 14 Um momento Apresentar uma Proposta de
Não conceitua vivência. Há promoção da saúde ao
Silva, G. G. S.; dedicado à experiência de experiência utilizar a sala de espera nessas
Pereira, E. R.; espera e à intervenção de estética em sala de experiências para promover
Oliveira, J. O.; promoção da Psicologia da saúde espera de UBS. conversas e trocas a respeito de
Kodato, Y. M. saúde em uma sala de espera estratégias para enfrentar
2013. de uma Unidade sofrimento e dificuldades dos
Básica de Saúde. usuários, na medida em que
“(re)ativam potências,
articulam vivências, geram
reflexões, sensações e
(re)significações” (p. 1001).
Artigo 15 A afetividade Investigar os aspectos Entrevistas semi- Não conceitua vivência. Em termos de afetividade, há a
Souza, V. L. T.; como traço da envolvidos na estruturadas e predominância do sentimento
Petroni, A. P.; constituição constituição da observações na de sofrimento oriundo de
Andrada, P. C. identitária identidade docente, escola. tantas expectativas e desejos
2013. docente: o olhar em especial o papel da não realizados no trabalho
da psicologia afetividade. docente.
Fonte: elaborado pela autora com base nos dados extraídos das pesquisas (2018).
74
7
Frente a essa realidade, elaboramos o primeiro item da próxima seção (4.1), evidenciando a própria evolução do
conceito no que tange às relações com o conceito de vivência mais elaborado, apresentado no fim da vida do autor.
8
Com a finalidade de facilitar o entendimento do leitor, conservamos os títulos das obras indicadas pelos artigos.
Não reproduzimos a bibliografia completa dessas referências em nossa dissertação, haja visto que fazem parte do
conteúdo dos artigos e ali estão descritas. Aqueles [artigos] sim foram consultados durante nosso trabalho e, por
isso, inclusos nas Referências.
75
la psicología”. A modo de
introducción
Sobre los sistemas psicológicos Toassa & Souza (2010).
Teoria de las emociones: estúdio Silva, Pereira, Oliveira &
histórico-psicológico Kodato (2013); Souza,
Petroni & Andrada (2013).
Teoria e método em psicologia Barroco & Superti Pinheiro & Colaço (2010);
(2014); Sandler & Souza, Petroni & Andrada
Zanella (2008). (2013).
The problem of the environment Toassa & Souza (2010).
The psychology of art Toassa & Souza (2010).
Fonte: elaborado pela autora com base nos artigos levantados (2018).
A partir do quadro acima, podemos ter uma noção sobre a apropriação da obra
vigotskiana presente no material analisado. Alguns comentários sobre os textos acima listados
são necessários. No livro “Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e
a criança”, citados por Pinheiro & Colaço (2010), há escritos de Vigotski e Luria, como não foi
especificado pelos autores a qual(is) capítulo(s) se referiam, considerou-se que a obra inteira
era referência e, por conseguinte, os capítulos escritos por Vigotski. Para o caso das “Obras
escogidas”, citadas em Schlindwein (2015), não foi esclarecido a qual volume se refere. Mas
pela data indicada de publicação (1982), limitam-se as possibilidades entre os tomos I e II.
A seguir, apresentamos uma sistematização das obras mais comuns entre o escopo de
artigos.
78
0
A formação social da Problemas del desarollo de Psicologia da arte Sobre "Pensamento e
mente: o desenvolvimento la psique Linguagem"
dos processos psicológicos
Fonte: elaborado pela autora com base nos dados extraídos das pesquisas (2018).
A primeira publicação desta obra, feita a partir das traduções norte-americanas em final
da década de 1980 possuía um total de 135 páginas, enquanto que a última realizada
diretamente dos originais em russo possui 496 páginas, sendo que ambas possuem a
mesma estrutura e quantidade de capítulos. Este fato é importante para que seja possível
79
0
A construção do Pensamento y palabra Pensamiento y lenguaje Pensamento e linguagem
pensamento e da
linguagem
Fonte: elaborado pela autora com base nos dados extraídos das pesquisas (2018).
Outra questão a ser assinalada é a relação dessa obra com os artigos que definiram o
conceito de vivência. Como discutiremos na quarta seção, admitimos “A construção do
pensamento e da linguagem” como a obra acessível que representa o pensamento mais
elaborado de Vigotski. O conceito de vivência que nos baseamos nesta pesquisa mantem
unidade com o conceito de vivência ali aprimorado. Por isso, é proveitoso que dentre os artigos
que definiram o conceito vivência e fundamentam-se como um todo na discussão de “A
construção do pensamento e da linguagem”, todos o fizeram sem recorrer à problemática
primeira tradução no Brasil.
80
Além disso, partindo dos dados supracitados, as obras mais presentes entre os artigos
que não definiram o conceito de vivência foram “A formação social da mente: o
desenvolvimento dos processos psicológicos”, em 4 artigos, e “Problemas del desarollo de la
psique”, também em 4 artigos. A primeira também liderou entre os artigos que definiram o
conceito, citada por 3 artigos, juntamente com “Psicologia da arte”, presente em 3 artigos.
Em seguida, apresentaremos contribuições à temática aqui discutida advindas do
conteúdo dos artigos. Primeiramente, trouxemos os artigos que definiram o conceito de vivência
e, segundamente, aqueles nos quais vivência embora presente não foi conceituada.
Quadro 6 - Referências para o conceito de vivência citadas pelos artigos que o definiram
Referência Referências indicadas durante a conceituação da vivência 9
dos artigos
Barroco & Prestes, Quando não é quase a mesma coisa: traduções de Lev
Superti (2014). Semionovitch Vigotski no Brasil; Vygotsky, Psicologia da arte.
Moreira & Prestes, Quando não é quase a mesma coisa: traduções de Lev
Souza (2016). Semionovitch Vigotski no Brasil; Vigotski, Quarta aula: a questão do meio
na pedologia.
Sander & Fariñas León, Acerca del concepto de vivencia en el enfoque histórico-
Zanella cultural.
(2008).
9
A fim de facilitar a compreensão do leitor, conservamos os autores e os títulos das obras indicados pelos artigos,
porém aqui também não reproduzimos a bibliografia completa dessas obras nesta dissertação, haja visto que fazem
parte do conteúdo dos artigos e nesses estão sinalizadas.
81
Como dissemos anteriormente, a vivência é conceituada não somente com base na obra
vigotskiana. Ainda assim, todos os outros autores citados além de Vigotski (Fariñas León,
Prestes e Toassa) se fundamentam na Psicologia Histórico-Cultural do autor e em sua base
materialista histórica. A seguir, apresentamos alguns apontamentos sobre a conceituação da
vivência presente nesta parte do material analisado.
Em Barroco e Superti (2014), a vivência é discutida no contexto de vivência estética,
ligada a emoções e sentimentos da obra de arte mediante o texto “Psicologia da arte”, de
Vygotsky (1999b). Leva-se em conta na discussão afetiva em Vigotski, a posterioridade de seus
estudos, considerando o psiquismo humano como um todo no qual os aspectos cognitivo e
afetivo não se contrapõem. Segundo apontam os resultados do artigo, a arte é instrumento
cultural que proporcionando ao sujeito vivências de sentimentos e emoções não cotidianos,
promove mudanças na consciência. Entende-se que os sentimentos e emoções humanas são
objetivados na arte e, por conseguinte, esta expressa a experiência humana, generalizando o que
já foi vivido. Segundo as autoras, “a arte, com sua estrutura específica, carrega um legado
humano; por meio dela o sujeito vivencia experiências alheias, que não seriam possíveis na sua
vida particular, enriquecendo seu próprio repertório, sua visão de mundo e humanidade”
(Barroco & Superti, 2014, p. 26).
Os dois objetivos principais da psicologia da arte, então, seriam “(a) revelar a vivência
psicológica que a obra de arte objetiva e (b) explicar as consequências da resposta estética no
psiquismo do homem” (Barroco & Superti, 2014, p. 29).
A definição de vivência é ancorada em Prestes (2010) e não há uma distinção nítida
entre vivências e emoções/sentimentos, como mostra o trecho abaixo:
82
Em relação a catarse provocada pela arte, defende-se que “além de acumular energia e
preparar o indivíduo para ações posteriores, contribui para que a vivência artística tenha função
organizadora do comportamento, ou seja, possibilita um processo de generalização que amplia
o domínio do sujeito sobre si e o mundo” (Barroco & Superti, 2014, p. 30).
As autoras coerentemente aprofundam as discussões sobre emoções e sentimentos a
partir do conjunto da obra de Vigotski e concebem o psiquismo constituído por razão e emoção:
“numa concepção de homem por inteiro e que deve ser formado inteiramente, como temos na
psicologia de Vigotski, a riqueza do psiquismo em relação ao aspecto cognitivo não se opõe
aos âmbitos do sentimento e da emoção” (Barroco & Superti, 2014, p. 26).
Outra relação importante feita pelas autoras remete aos signos e significados disponíveis
na obra de arte:
De acordo com Toassa, 2011, nos últimos textos vigotskianos, como nos primeiros, a
vivência é campo de conflitos, um verdadeiro entreposto do funcionamento psíquico
concreto, linguagem do impacto vital do meio esterno no sujeito e de sua reação a isso,
por meio de uma consciência operante num concerto de funções psicológicas que não
pode ser plenamente enquadrada nem nas regulações voluntárias nem nas reações
espontâneas (TOASSA, 2011, p. 231). Vigotski vale-se do termo russo perejivánie que,
de acordo com a nota da tradutora, trata-se de um substantivo formado pelo prefixo
“pere-” (através) e o verbo “-jit” (viver), o que etimologicamente significa “viver através
de”, ou seja, da experiência concreta, seja ela real ou imaginária. Mas a “vivência” é
mais do que a mera presença na consciência da realidade experimentada, ela envolve
um “trabalho mental”, consciente ou inconsciente, por parte da pessoa/de atribuição de
significação aos elementos do meio que constituem a experiência. Vigotski afirma que
uma mesma experiência vivida por duas pessoas provoca tomadas de consciência
distintas, de modo que se pode afirmar que a “vivência” de uma experiência envolve,
de alguma forma, ter um significado do que ela acarreta: é um trabalho semiótico.
Perejivánie não é apenas uma realidade direta à consciência, de seus conteúdos e de
suas condições, não é apenas algo experimentado, mas também um trabalho interior,
um trabalho mental [grifo nosso]. . . (Schlindwein, 2015, pp. 426-427).
“Pela vivência, somos impactados; sofremos a ação da obra de arte, do texto, do quadro.
Vivenciar é processo pautado pela imediatidade”. (VIGOTSKI, 1998, p. 231) De acordo
com Vigotski as vivências conscientes podem ser relativamente sistematizadas e
reguladas pela palavra. Pensando a ideia de palavra explanada no Pensamento e
Linguagem por Vigotski, como processo em constante mudança e atravessado por
tensões, mesmo com uma relativa sistematização, entretanto, a vivência jamais deixará
de ser um campo de conflitos. Assim como uma criança cresce e complexifica tanto seu
modo de pensar quanto o de sentir ao longo de sua constituição como sujeito, também
o próprio conceito de vivência se descortina em vários tipos de facetas na obra de
Vigotski. A vivência, então, “assume o status de unidade sistêmica da vida consciente”
. . . (pp. 431-432).
De acordo com Fariñas León (1999), Vigotski é precursor de um novo pensamento que
reflete sobre o lugar do conceito de vivência, sendo esta, para Vigotski, a unidade onde
está representado o que a pessoa experimentou e as relações afetivas dela com o meio,
suas habilidades cognoscitivas e sociais (Sander & Zanella, 2008, p 65).
Outras autoras que trabalharam com o conceito mais elaborado de vivência foram
Moreira e Souza (2012). No texto, elas ampliam a discussão sobre a relação sujeito e meio para
o modo como é constituído o ambiente pedagógico na escola. Considera-se o caráter relacional
dos envolvidos (professores, equipe, alunos) com o ambiente, visto que o meio, a partir de
Vigotski (2010), é considerado fonte de desenvolvimento.
Vivência é definida a partir da “Quarta aula de pedologia”, de Vigotski (2010), e de
Prestes:
Para a criança, o ambiente é o seu mundo, contexto de interações que vai se ampliando
na medida em que ela vai tendo novas experiências. Em Quarta aula: a questão do meio
na pedologia, Vigotski (2010) explica que o meio (espaço/ambiente/lugar) nunca é
estático e absoluto, uma vez que se modifica a cada momento da vida da criança. Assim,
o ambiente e a criança formam uma unidade indissociável. Vigotski denomina
perejivanie a relação entre a criança e o ambiente (Prestes, 2012). Esse termo refere-se
à vivência intensa e singular de uma pessoa frente a uma determinada situação sendo
considerada a unidade dinâmica da consciência (Moreira & Souza, 2016, p. 232).
10
Conforme abordaremos no item 4.1.
86
Entre os 10 artigos que não conceituaram vivência, buscamos entender como o termo
foi utilizado a fim de captar contribuições à temática. Consideramos a própria ausência de
definição do conceito como um dado importante na discussão do objetivo proposto nesta
pesquisa. Boa parte do escopo do material (2/3) não conceituam vivência. Observamos que
vivência por vezes era trabalhada como categoria relevante no conjunto do texto dos autores,
em outras palavras, vivência era conceito importante dentro do sistema de conceitos; em outros
casos, vivência era utilizada como termo dicionaresco, não propriamente conceito psicológico,
mas de modo similar ao uso cotidiano do verbo experienciar, viver etc. Abaixo exibimos as
informações principais resultantes da análise dessa parte do material.
Em Pessoa da Silva (2013), não houve nenhuma menção de vivência como conceito da
Psicologia Histórico-Cultural. Vivência aparece como verbo referindo-se a experiências pelas
quais a ciência psicológica precisa atravessar aprendendo a estudar seu sujeito, segundo a
88
autora, o sujeito latino-americano. Inclusive, não há referências à obra de Vigotski, fato que
corrobora nossa hipótese de ausência de conceito.
A seguir estão alguns excertos que ilustram essa interpretação: “O quinquagésimo
aniversário da regulamentação da profissão do psicólogo no Brasil convoca a todos os que a
constroem no cotidiano, de práticas a construções teóricas, a retomar questionamentos e a
vivenciar a necessária crise dos cinquenta anos. . .” (Pessoa, 2013, p. 33).
E ainda:
A autora menciona que a psicologia deve enquanto ciência voltar-se ao estudo dos
sujeitos latino-americanos, que por sua vez, vivenciaram processos de colonização parecidos,
“A psicologia precisa compreender a fome, a violação de direitos humanos e a violência com
outro ponto de vista, abandonando velhas concepções moralistas e naturalista a respeito das
drogas, da loucura, do preconceito e dos papeis de gênero” (Pessoa, 2013, p. 40). Pessoa (2013)
considera que estas particularidades contem necessárias investigações, mas não aprofunda
debates em torno da questão – nem era este seu objetivo conforme expresso no Quadro 4. O
texto traz contribuições, mas em relação ao que foi analisado nos artigos, não há conceito de
vivência elucidado, tampouco trabalhadas ou apontadas outras categorias como sentido e
significado, FPE, FPS.
O objetivo de Petroni e Souza (2013) era investigar a compreensão de educadores sobre
a autonomia e em que medida se ver como autônomo influenciaria a prática docente. Já no
resumo, são mencionados os relatos de cenas de vivências da pesquisadora em campo como
instrumentos metodológicos e, no decurso do texto, não é especificado o que seriam estas
vivências da pesquisadora.
Em outras passagens, há relações entre as experiências vivenciadas pelos sujeitos e a
importância da apropriação dos sentidos e significados no desenvolvimento da conduta
autorregulada:
O presente artigo tem como objetivo apresentar os resultados de uma pesquisa em que
se discutiu e analisou as percepções e as vivências dos professores sobre o processo de
inclusão e suas implicações para o desenvolvimento do professor e dos alunos
envolvidos com a inclusão de pessoas com necessidades educacionais especiais em
classes regulares. Para alcançar esses objetivos, adotou-se a perspectiva teórico-
metodológica da Psicologia Histórico-Cultural, que toma como objeto de estudo o
sujeito histórico, que se constitui na relação com a cultura (Barbosa & Souza, 2010, p.
353).
o professor também precisa ser olhado como sujeito que necessita de subsídios, de
condições especiais, para desenvolver o trabalho de inclusão. Nesse sentido,
90
Após uma breve contextualização sobre a formação e preparo dos professores para a
inclusão escolar, segundo suas vivências e percepções, cabe questionar em que medida
as representações sobre a formação e as condições materiais de sua realização
influenciam sua vivência e percepção sobre os alunos com necessidades educacionais
especiais (Barbosa & Souza, 2010, p. 356).
Além disso, apontam pelos resultados da investigação que as vivências dos professores
são carregadas de “sofrimento, desgaste, descontrole e outras emoções decorrentes de um
sentimento de incompetência por não conseguir êxito com os alunos” (Barbosa & Souza, 2010,
p. 359). Consideramos que a vivência é trabalhada enquanto conceito pesquisado, mas nem o
corpo do texto, tampouco as referências apontam para o conceito histórico-cultural de vivência.
Em Lopes, Mello & Bezerra (2015), também se utiliza a vivência para entender relações
internas do sujeito. Os autores buscam compreender como as crianças estabelecem a relação
com o meio, focando em suas espacialidades e instrumentos culturais como mapas, textos,
discurso verbal, brincadeiras, desenhos, gestos e outras. Embora seja apontada como conceito
mote da pesquisa, a vivência não é definida no corpo do texto.
O recorte ao qual nos dedicamos são as relações que as crianças estabelecem com o
meio, tendo como foco principal as suas espacialidades. A partir das contribuições de
pesquisas que se aportam em estratégias de natureza qualitativas e fundamentadas nos
aportes da teoria históricas cultural, elege-se o conceito de vivência (perejivanie) como
mote em torno do qual nossos trabalhos são desenvolvidos (Lopes; Mello & Bezerra,
2015, p. 28).
Em nosso grupo, temos revisado os textos desses autores, lendo e relendo suas obras
como forma de desenvolver escopos de pesquisas que nos ajude a compreender o ser e
91
estar no mundo das crianças a partir de suas vivências socioespaciais. Entre nossos
estudos, alguns conceitos utilizados por esses autores têm sido essenciais para nossa
reflexão, como o de vivência (perejivanie), meio (srredá), criação, entre outros
(VIGOTSKI, 2006, 2010, entre outros). No momento da escrita deste texto, o grupo de
pesquisa vem atuando na sistematização conceitual e técnica do que estamos
convencionando chamar de mapas vivenciais, experienciados a partir de espaços
preexistentes, meios ofertados representados em lâminas cartográficas que são
entregues aos sujeitos pesquisados, ponto de partida para as narrativas e novas
representações, possibilidades de encontrar esse “entre lugar” que constitui a unidade
“espaço ofertado e vivenciado”. Além dos mapas vivenciais, temos buscado construir
outras estratégias como as “fotografias narrativas”, “ofertas de artefatos temáticos”,
“maquetes vivenciais”, bem como produções infantis na escola, como textos, mapas
livres, criações verbais, gestos e brincadeiras, desenhos e dramatizações, focalizando
especialmente as relações intermodais na composição e criação infantis de suas ideias
sobre o mundo. Todas com o desejo de compreender e pensar outras possibilidades de
conceber as espacialidades humanas e das crianças, caminhos para revelar as vivências
cotidianas que forjamos e nos forjam, cientes do constante inacabamento do debate
(Lopes; Mello & Bezerra, 2015, p. 31).
Quando considerado o meio enquanto lugar físico, buscam apontar que as vivências
espaciais são qualificadas por representações culturais do espaço nas múltiplas representações
gráficas, verbais, gestuais e nas brincadeiras. Deste modo, os autores anunciam que as vivências
são constituídas por significados:
Como proposta teórica central, procurou-se traçar uma analogia das dramatizações com
a brincadeira, esta última compreendida segundo a perspectiva de Vygotsky (2000).
Para este autor, o jogo infantil está vinculado à imaginação, que, por sua vez, é tomada
como a brincadeira sem ação. Além disso, esta função psicológica (VYGOTSKY,
1996a) possibilita ao homem projetar-se no futuro, criar imagens de um passado, de
objetos ou de ações que não necessariamente vivenciou; de modo geral, permite a
superação das limitações situacionais impostas pela realidade (Pinheiro & Colaço, 2010,
p. 80).
São feitas contribuições sobre afetividade e vivência partindo da obra de Gonzáles Rey,
e acreditamos que aprofundamentos futuros são necessários para elucidar paridades e
semelhanças, principalmente no que tange ao método empregado no estudo da subjetividade.
Elegemos a passagem seguinte como exemplo:
Desde o conceito de sentido que apresenta uma interpretação singular do sujeito a partir
de suas diferentes vivências em constantes reencontros com a subjetividade social e a
realidade concreta, até o conceito de configurações de sentidos, que permitem organizar
tais experiências sob a forma de sistemas mais ou menos coerentes, percebe-se que o
conceito de subjetividade representa essa tentativa de construir uma forma particular de
o sujeito compreender a si próprio em relação ao universo em que se insere (Loures &
Souza, 2009, p. 122).
Além disso, Loures e Souza (2009) durante a exposição de relatos dos sujeitos
entrevistados, demarcam o gênero, embora não discutam ou fundamentem teoricamente.
Em Padovani e Ristum (2016) a vivência e suas variações aparecem no texto na maioria
das vezes com uso similar a experienciar ou viver uma situação, em outras seu uso se assemelha
ao conceito de vivência como relação do sujeito com o meio. Selecionamos alguns trechos de
exemplo:
E continuam:
O objetivo geral deste trabalho foi compreender e analisar como adolescentes autores
de ato infracional, cumprindo medida socioeducativa de internação, significam a
internação. Como objetivos específicos, buscou-se delinear como esses adolescentes
percebem a internação em suas trajetórias de vida e como percebem a instituição
socioeducativa, além de verificar como esses internos buscam ressignificar esses
espaços, a partir de sua vivência na instituição (Padovani & Ristum, 2016, p. 612).
Ainda:
proposta, que é um recorte de uma pesquisa de doutorado mais ampla (Urnau, 2013),
com o objetivo de discutir especificamente os atravessamentos das políticas públicas
nos significados atribuídos às vivências passadas e presentes e suas repercussões nas
expectativas de futuro de residentes do garimpo (Urnau & Sekkel, 2015, p. 143).
Buscar entender as vivências a partir dos sentidos e significados reforça a natureza social
do psiquismo, concepção demarcada nas palavras das autoras:
Mas buscar compreender o ponto de vista dos sujeitos não significa psicologizar as
políticas públicas, nem demarcá-las como fenômenos de ordem individual. Ao
contrário, visa olhar para os sujeitos nelas envolvidos, como uma de suas dimensões
constitutivas. Sujeitos aqui entendidos como produtos e produtores das relações sociais
e culturais, num contínuo e dialético fazer histórico, cujas subjetividades emanam das
relações objetivas e materiais entre os homens. De acordo com Vygotski (1995), não há
processo pura e originariamente subjetivo. Todo processo intrapsicológico é
primeiramente um processo interpsicológico, construído nas relações interpessoais e
mediado por signos histórica e culturalmente criados e compartilhados. . . (Urnau &
Sekkel, 2015, p. 144).
Como destaca Sawaia (2006), os pobres não podem ser apenas considerados pela
precariedade de meios para a sobrevivência material, pois também são afetados
subjetivamente por estas condições, das quais emanam emoções e sentimentos,
sofrimentos e alegrias, muitos dos quais ideologicamente usados em favor da
subalternidade, da aceitação da condição e da exclusão social. Dentre os quais, podem
ser identificados intensos sofrimentos de “tristeza passiva” e apatia frente às
impossibilidades concretas a que estão submetidos. Neste sentido, a condição de
desigualdade social é promotora de sofrimentos ético-políticos, causados pelas situações
de dominação e opressão dos sujeitos, os quais, portanto, merecem atenção (Sawaia,
2001, 2009). Olhar para tais questões constituiu o cerne da pesquisa desenvolvida
(Urnau & Sekkel, 2015, p. 145).
O diálogo com Marli também é revelador das expectativas para si, relacionadas apenas
às necessidades de sobrevivência física do corpo. O limitado acesso à educação, à arte,
ao lazer e outros possivelmente limitam suas expectativas futuras. Sabe apenas ser mãe
e dona de casa e agora, com seus filhos já criados, só lhe restam as necessidades vitais
do corpo [grifo nosso] (Urnau & Sekkel, 2015, p. 152).
96
Embora não fundamentem teoricamente tal discussão de gênero, fica evidente que as
vivências são constituídas de sentidos e significados que emergem da vida concreta dos sujeitos.
Já em Silva, Pereira, Oliveira e Kodato (2013) a vivência é ligada a sentimentos e à
estética, como promotora de novos repertórios existenciais. Fundamentando-se na obra
vigotskiana “Psicologia Pedagógica”, afirmam:
Propomos uma experiência estética em um lugar instituído para a espera. Como explica
Vygotsky (2003), essa vivência não é a simples promoção de um sentimento agradável
que passivamente seria apropriado pelo sujeito, mas sim, a defesa da ideia de que a
estética institui novos repertórios existenciais, que se constituem em um árduo trabalho
psíquico (Silva et al, 2013, p. 1001).
Embora fique claro que concebem o ser humano de maneira integral, isto é, constituído
por razão e emoção, faz-se mister investigar como consideram a relação entre estas esferas e à
mudança qualitativa advinda da mediação dos signos na afetividade.
no estudo que ora propomos, buscamos demonstrar como os afetos presentes nas
relações empreendidas pelos professores objetivam a constituição de sua identidade
docente, revelada por suas concepções de educação, de aluno e de ensino-aprendizagem.
Essa objetivação deve ser entendida, a um só tempo, como expressão e fundamento da
condição de exercício da docência. Logo, a análise não pode deixar de considerar as
relações entre as partes e o todo, visto que ambos são determinados e se determinam
mutuamente: as partes contêm o todo que, por sua vez, é constituído pelas partes (Souza
et al, 2013, p. 529).
vivência docente e a partir desses sentidos foi constituída a análise. Fazendo referência aos
aspectos afetivos que assumem relevância na expressão dos professores, como sentimentos de
solidão, abandono vivenciados na prática, vinculam vivências e processos de significação.
Após esta exposição, resumimos abaixo os resultados encontrados a partir das análises
empreendidas. Lembramos que construímos esta seção no intuito de conhecer qual era a
apropriação teórica sobre os conceitos vivência e gênero presente nos estudos embasados na
Psicologia Histórico-Cultural, evidenciando os avanços e limites disponíveis cientificamente
para o tema nos últimos dez anos mais próximos ao início dessa pesquisa (2008-2017).
Utilizando a base de dados Scielo, selecionamos o material que constituiu o corpo dessa análise.
Dentre os 15 artigos aqui retratados, nenhum contava com gênero como conceito
elucidado e discutido teoricamente e apenas 5 definiram o conceito de vivência a que se
referiam. É válido lembrar que a primeira tradução para o português do texto (transcrição de
uma conferência) em que Vigotski trabalha com o último sentido de vivência presente em sua
obra só veio a público em 2010 e a segunda em 201811. Fato que nos leva a considerar com
11
São elas: Vigotski, L. S. (2010). Quarta aula: a questão do meio na pedologia. In: Psicologia USP, São
Paulo, 21(4), 681-701. E: Vigotski, L. S. (2018). Quarta aula. O problema do meio na pedologia. In: Z. Prestes &
E. Tunes (Orgs.). Sete aulas de L. S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia. (pp. 73-92). Rio de Janeiro: E-
papers Serviços Editoriais Ltda.
98
Fonte: elaborado pela autora com base nos dados extraídos das pesquisas (2018).
Passamos agora à quarta e última seção deste trabalho, na qual discutiremos as relações
entre vivência e gênero no que tange ao desenvolvimento dos sujeitos singulares segundo a
teoria adotada nesta dissertação.
99
12
Toassa (2009, 2011) foi quem mapeou os conceitos de emoções e vivência na obra vigotskiana, sistematizando-
os. A autora também resgata os sentidos de perejivânie na língua russa, bem como suas principais traduções nas
obras de Vigotski para as línguas português, espanhol e inglês. Em português, nas traduções feitas por Paulo
Bezerra, o termo perejivânie é traduzido por vivência e vivenciamento.
100
quanto a sua conceituação. (Toassa, 2009, 2011). Neste item, temos como objetivo apresentar
de forma sintética a evolução teórica sobre a vivência e demarcaremos o conceito mais
elaborado, no qual fundamentamos esta pesquisa.
Discutir vivência na Psicologia Histórico-Cultural é adentrar no terreno da teoria das
emoções, um dos últimos temas trabalhados por Vigotski, porém não concluído devido a morte
prematura do autor. (Toassa, 2009). Além disso, como termo presente em diferentes momentos
da formação da teoria, faz-se necessário contextualizar as concepções do autor sobre o lugar
das emoções no desenvolvimento psíquico humano ao longo das principais obras em que ele
utiliza e constrói o conceito de vivência. De acordo com Toassa (2011):
Há uma implicação entre vivências e emoções, tanto na obra de Vigotski como na língua
russa utilizada coloquialmente. As vivências, na língua russa, não são experiências
indiferentes. Envolvem necessariamente qualidades emocionais, sensações e
percepções, acarretando uma imersão do sujeito no mundo (p. 34).
E ainda:
13
Embora a publicação original (póstuma) seja de 1935, trata-se da transcrição organizada por M. A. Levina,
colaboradora de Vigotski, de uma conferência/aula realizada pelo autor entre 1933-1934 – mais provavelmente
em 1933, de acordo com Toassa (2010).
102
Aqui já está presente uma vivência que apesar de pessoal não se limita à experiência
isolada de um sujeito em relação ao seu contexto, mas pelo contrário, Vygotsky (1999a) já
aponta para as relações do enredo com a personalidade do sujeito produzindo sua carga
vivencial. As vivências de Hamlet, mesmo que surjam do encontro com o espectro do pai (e
então não surgem diretamente da realidade material), não são desconexas da história de vida do
príncipe. Dando voz a Vygotsky (1999a):
Elas [as vivências] não tem relação com a realidade imediata na qual se dão, mas com
o sentido dela para o protagonista [grifo nosso] – são completamente desconexas
quanto ao seu mundo concreto . . ., tal qual a própria aparição do espectro. . . . As
vivências do príncipe, complexo estado mental, determinam a própria evolução dos
acontecimentos, formando com eles um todo [grifo nosso]. Sem eles, seria impensável
o complexo andamento da fábula (p. 46).
14
Compreendemos que a unidade dialética entre atividade (externa) e o reflexo psíquico (interno) desta, conforme
trabalhado por Leontiev (2004), auxilia na explanação do vínculo entre mudanças nas vivências-ações.
104
(1999b) esboça a possibilidade (e necessidade) de um ser humano que por meio da arte seja
sujeito de seus próprios afetos (embora sua concepção de afeto não seja bem delimitada ainda).
A arte é o social em nós, e, se o seu efeito se processa em um indivíduo isolado, isto não
significa, de maneira nenhuma, que as suas raízes e essência sejam individuais. É muito
ingênuo interpretar o social apenas como coletivo, como existência de uma
multiplicidade de pessoas. O social existe até onde há apenas um homem e as suas
emoções pessoais [grifo nosso]. Por isto, quando a arte realiza a catarse e arrasta para
esse fogo purificador as comoções mais íntimas e mais vitalmente importantes de uma
alma individual, o seu efeito é um efeito social. . . . Seria mais correto dizer que o
sentimento não se torna social mas, ao contrário, torna-se pessoal, quando cada um de
nós vivencia uma obra de arte, converte-se em pessoal sem com isto deixar de continuar
social (Vygotsky, 1999b, p. 315).
Para Vygotsky (1999b), o problema da arte é tão sério que deveria ser assunto de Estado.
E, debruçando-se sobre o tema, conclui que a arte seria uma maneira de conduzir socialmente,
de forma coletiva e emancipatória, os sentimentos individuais. Isso indica o reconhecimento do
autor sobre a importância da esfera afetiva na conduta do ser humano.
Outra divergência entre este e o texto anterior se refere a uma diferenciação entre
vivências reais e irreais dos sujeitos em relação aos conteúdos correspondentes na
materialidade. Em “A tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca”, mesmo as vivências do
protagonista com o espectro não tinham seu quesito de realidade questionado. Em “Psicologia
da Arte”, a vivência estética de uma pessoa que acompanha uma peça de teatro, por exemplo,
já pode ser considerada irreal. Mas o grande salto está no que Vygotsky (1999b) denomina de
lei da realidade dos sentimentos, segundo a qual mesmo que a vivência seja irreal (as de um
surto esquizofrênico, por exemplo), o sentimento associado a ela, o vivenciamento desta
situação, é real e tem consequências sobre o psiquismo. (Toassa, 2011).
Essa característica também será desdobrada posteriormente pelo autor nos textos
pedológicos, quando Vigotski (2018) afirma que o importante na análise da vivência não é o
meio em si mesmo, mas como este meio é subjetivado pelo sujeito, isto é, seu vivenciamento.15
Por ora, nos importa o debate sobre a condução consciente dos sentimentos e sua
situação de função psíquica superior. No debate histórico-cultural das emoções, os termos
afetos, sentimentos, emoções são por vezes imprecisos quanto a sua diferenciação (se é que esta
distinção era intencional para Vigotski, uma vez que o autor não pôde sintetizar sua teoria das
15
O vivenciamento/a vivência de dada situação será mediado/a por sentidos e significados aos quais o sujeito teve
acesso segundo a lei geral de desenvolvimento psíquico (do “inter” para o “intra”), ou seja, conforme as condições
nas quais se deu sua história de vida. Retornaremos a esta questão adiante quando tratarmos dos textos pedológicos
e no item 4.2.
105
emoções). Martins (2012) define os sentimentos como emoções complexas (uma vez que foram
culturizadas), endossamos que este é o termo que melhor traduz já em sua menção a situação
de FPS das emoções/afetos/sentimentos. Em Vygotsky (2004c), encontramos “as emoções
complexas aparecem somente historicamente e são a combinação de relações que surgem em
conseqüência [sic] da vida histórica” (p. 127). Destarte, afetos e conceitos constituem o
conteúdo da consciência humana.
Processo inerente às FPS é a sujeição das funções psíquicas a uma mediação artificial
(Vygotsky, 2004a), criada pelos seres humanos ao longo da história da humanidade e que se
interpõe entre sujeito-objeto, por exemplo, no caso da culturalização de emoções e vivências,
os conceitos advindos de como a humanidade as generalizou em sentimentos, dotando-os de
uma marca histórica.16 E ainda, colocando-as (as emoções e vivências) em relação sistêmica
com outras funções (pensamento, sensação, percepção, entre outras), que com a apropriação da
linguagem na ontogênese não operam isoladamente. (Vygotsky, 2004c).
A fim de esclarecer esta relação sistêmica entre as funções, passamos a palavra a Martins
(2012):
o homem reage [grifo da autora] frente aos objetos e fenômenos da realidade e essa
reação é condicionante primário da construção do reflexo dos mesmos na consciência.
Essa reação, por sua vez, ocorre à medida da mobilização de todo sistema psíquico [grifo
nosso], isto é, reage-se ao mundo pelas sensações, percepções, pela atenção, pelo
memorizado, pelo pensamento, linguagem, imaginação, emoções e sentimentos. Não
há, portanto, um status [grifo da autora] que qualifique diferencialmente tais processos
na formação da imagem psíquica; existe sim uma dinâmica entre eles, um amálgama
condicionado pela natureza da atividade em curso, que confere especificidade à
expressão de cada função e em que medida participam da atividade em questão. O
produto desse amálgama afeta o indivíduo de diferentes modos e em diferentes graus,
na dependência dos quais ele institui suas vivências. Portanto, definimos como vivência
[grifo da autora] o experienciado pelo sujeito em face do objeto que culmina
representado sob a forma de imagem subjetiva. A vida do indivíduo comportará, então,
uma infinidade de vivências e, por isso, conquistarão intensidades distintas e
desempenharão diferentes papéis na vida do sujeito. Algumas serão superficiais,
fortuitas e casuais, operando como “transeuntes” na história da pessoa, isto é, passarão
sem deixar maiores vestígios (pp. 204-205).
16
O autor ilustra esse processo no sentimento ciúme: “A forma de pensar, que junto com o sistema de conceitos
nos foi imposta pelo meio que nos rodeia, inclui também nossos sentimentos. Não sentimos simplesmente: o
sentimento é percebido por nós sob a forma de ciúme, cólera, ultraje, ofensa. . . . nossos afetos atuam num
complicado sistema com nossos conceitos e quem não souber que os ciúmes de uma pessoa relacionada com os
conceitos maometanos da fidelidade da mulher são diferentes dos de outra relacionada com um sistema de
conceitos opostos sobre a mesma coisa, não compreende que esse sentimento é histórico, que de fato se altera em
meios ideológicos e psicológicos distintos . . .” (Vygotsky, 2004c, pp. 126-127).
106
Voltando para obra analisada, a arte é colocada por Vygotsky (1999b) como uma técnica
social dos sentimentos, uma forma de conduzir as emoções com os objetivos eleitos pelo artista.
Mas então as emoções (e as vivências) estariam sujeitas as mesmas leis de volição/orientação
das outras FPS? Toassa (2011) afirma que não.
o sentimento tem certa qualidade involuntária. Não temos poder direto sobre os
sentimentos como sobre os movimentos ou os processos associativos desencadeados
voluntariamente (como a memória voluntária, por exemplo), mas somente um poder
indireto, através da criação de um sistema [grifo da autora] complexo de ideias,
conceitos e imagens de que a emoção é uma parte. Os sentimentos do palco não são
aqueles que os atores experimentaram na vida. São mais provavelmente sentimentos e
conceitos purificados de tudo que lhes é estranho; são generalizados, irrompem por meio
das ideias, como uma correnteza canalizada por mão humana. O caminho é tortuoso. O
psicólogo [Vigotski], aparentemente por conta própria, afirma que os sentimentos do
ator se parecem mais com conceitos do que com sentimentos cotidianos (p. 105).
Também, as vivências não podem ser meramente deduzidas dos atos da criança, de seu
comportamento, pois, embora determinando suas ações infantis, a relação interior da
personalidade com o meio e seus acontecimentos se dá na perspectiva do próprio
indivíduo. O conceito adquire, então, um importante papel na análise da existência
infantil (Toassa, 2011, p. 193).
sujeito não nasce com ele tampouco é despertada em seu crescimento, mas advém de sua
natureza social, conforme já discutido sobre a démarche histórica do psiquismo humano. O
modo como o sujeito é afetado pela situação externa não depende apenas do conteúdo desta,
mas da compreensão que o sujeito tem da mesma. (Vigotski, 2018). Isto mostra a principal
influência da periodização do desenvolvimento nas vivências, pois compreender algo é ato
sujeito ao grau de generalização da formação de conceitos (sempre desenvolvida socialmente)
no qual o indivíduo se encontra.
Por exemplo, ao discorrer sobre “A crise dos sete anos”, Vygotski (1996) localiza nesta
a primeira vez em que se generalizam vivências e afetos. Concedendo lógica aos sentimentos,
a criança torna-se capaz de distinguir, estar consciente de suas vivências e atribuir significados
às mesmas, nas palavras do autor: “aos sete anos forma-se na criança uma estrutura de vivências
que lhe permite compreender o que significa ‘estou alegre’, ‘estou aborrecido’, ‘estou zangada’,
‘sou boa’, ‘sou má’, isto é, surge a orientação consciente de suas próprias vivências” (Vygotski,
1996, p. 379 – tradução nossa).
Note-se que a escola de Vigotski não se baseia em critérios etários para periodizar o
desenvolvimento. Sendo assim, o essencial é a análise pedológica do que ocorria por volta dos
sete anos nas crianças estudadas naquele contexto. Tampouco a tomada de consciência
particular a esse período de crise dos sete anos equipara-se à autoconsciência advinda do
pensamento por conceitos característica à idade de transição (adolescência)17. (Vygotsky,
2004c).
A capacidade de generalizar as próprias vivências tem desenvolvimento paralelo ao do
pensamento e da linguagem na criança, mais precisamente à internalização da comunicação
mediada para si, a linguagem interior. Antes a criança só vivia os sentimentos, mas logo se
torna apta a distinguir seus estados afetivos, suas próprias relações com os objetos e pessoas a
sua volta, em outras palavras, capaz de se reconhecer e, minimamente, orientar-se
conscientemente.
Cabe aqui uma reflexão: ainda que as emoções e as vivências não sejam controláveis no
mesmo nível que outras FPS, não podemos negar que a tomada de consciência – em outras
palavras, o estabelecimento de uma vivência das vivências – parece ser ponto de partida sobre
o que fazer com os próprios afetos, como orientá-los ou portar-se diante deles. No caso da
criança, o meio será a fonte para essas respostas.
17
No caso da adolescência, não se estabelece somente a capacidade de pensar as próprias experiências, “mas
também de se dar conta da base do pensamento” (Vygotsky, 2004c, p. 124), desvendo a lógica por trás do
pensamento.
109
Assim como a criança aprende o nome dos objetos socialmente, aprenderá a qualificar
suas vivências em formações afetivas. Portanto, essas são impregnadas pela generalização, isto
é, pelos conceitos presentes no meio no qual a criança se desenvolve. Como disse Toassa
(2011):
Neste aspecto, podemos nos perguntar como a socialização de gêneros, a partir de sua
designação, que advém do meio para a criança condicionará suas percepções sobre as próprias
vivências. O meio está, pois, impregnado de sentidos – sentidos patriarcais sobre como deve
agir um menino ou uma menina, por outro lado, a não convergência aos padrões estabelecidos
pelo sistema sexo/gênero pode ser geradora de afetos contraditórios durante a ontogênese.
No texto “Quarta aula. O problema do meio na pedologia”, Vigotski (2018) debruça-se,
então, sobre questões observáveis no desenvolvimento, como por quê uma mesma experiência
atinge várias pessoas de maneira distinta? Por que “uma mesma situação do meio, um mesmo
acontecimento que atinge diferentes pessoas que se encontram em etapas etárias distintas tem
uma influência distinta sobre o desenvolvimento de cada uma delas” (p. 77)? O motivo
assinalado é que a relação de cada pessoa para com os acontecimentos é diferente, há uma
vivência diferente e a forma como é vivenciada determinada situação ainda se relaciona com a
influência que a mesma exerce no desenvolvimento de cada um – o que dependerá da
periodização do desenvolvimento, tornando-a fator de discussão na temática vivência.
Para o autor, à pedologia caberia encontrar a relação existente entre o sujeito e o meio,
a vivência, isto é, como a criança se relaciona afetivo-cognitivamente com o ocorrido.
(Vigotski, 2018).
Como Izquierdo (2013) declarou nas ponderações sobre gênero, tanto experiências
semelhantes podem originar vivências muito distintas como experiências diversas, vivências
semelhantes. Assim, pois, somente a observação do contexto objetivo não traduz a vivência,
por isso, a importância da investigação conceitual do sujeito que vivencia a situação.
Averiguando como a vivência foi generalizada pelo sujeito, temos acesso às qualidades dela.
Novamente, os conceitos são imprescindíveis para o exame das vivências.
À relação entre vivência, consciência e personalidade, Toassa (2011) acrescenta a
necessidade de estudar a vivência envolvendo as categorias mais abrangentes dos sistemas
psíquicos mais complexos:
As vivências não são mais tidas como contrapostas ao intelecto. Vivências, emoções,
afetos e sentimentos e irracionalidade deixam de ser correspondentes. As vivências não mais
decorrem apenas de ordens biológicas na gênese dos afetos, tampouco são animalescas – ou
funcionam como paixões irracionais. Ao peso das vivências corresponde o peso da realidade
objetiva subjetivada pelos conceitos e demais ferramentas da cultura. Segundo Toassa (2011):
Uma peculiaridade importante da ideia de vivência, contudo, é sua utilização até mesmo
para denominar as relações do bebê com o meio anteriores à estruturação da consciência,
mas que, com a formação desse sistema, transformam-se qualitativamente. . . . Só a
partir da estruturação de um sistema que possa ser denominado “consciência” as
vivências podem constituir, pois, sua unidade mínima [grifo nosso]. Nascem do caráter
não lapidado da experiência, de sua forma em-si, pré-descritiva e antepredicativa (ou
seja, anterior à linguagem) e transformam-se num processo psicológico mais complexo.
Sistêmico e semântico integram-se na ideia de que as funções psíquicas superiores,
consciência e personalidade, se formam tendo por base os meios culturais (signos,
instrumentos). . . . O signo aglutina vivências dispersas, sem direção, possibilitando
que a criança intelectualize e adquira experiência sobre sua presença no mundo [grifo
nosso] (Toassa, 2011, pp. 192-193).
Desta forma, se edifica o papel do conceito como generalização dos estados vivenciais,
afetivos e além de passar a ser categoria ontológica do psiquismo, a vivência é considerada
categoria metodológica para análise do mesmo.
Para Vigotski (2018), o que importa é o modo pelo qual o meio é subjetivado pela
criança e isso dependerá diretamente de quais mediadores entre consciência e realidade externa
ela dispõe enquanto ferramentas intrapsicológicas. Nas palavras de Vigotski (2018), “a
influência do meio no desenvolvimento da criança, junto com as demais influências, será
medida também pelo nível de compreensão, de tomada de consciência, de atribuição de sentido
ao que nele acontece [grifo do autor]” (p. 79).
Logo, para compreender, por exemplo, as crises no desenvolvimento, as condições
externas devem ser relativizadas com as condições internas da criança em questão, ou seja, qual
a relação da criança com seu contexto material. De acordo com Vigotski (2018):
O meio não deve ser estudado como um ambiente de desenvolvimento que, por força de
conter determinadas qualidades ou características, já define pura e objetivamente o
desenvolvimento da criança. É sempre necessário abordá-lo do ponto de vista da relação
existente entre ele e a criança numa determinada etapa de desenvolvimento (p. 74).
A categoria vivência, colocada como unidade de análise entre sujeito e meio, detém,
portanto, as propriedades inerentes a este conjunto, preservando elementos do meio e elementos
da personalidade. Nas palavras do autor,
113
Sua [da vivência] aparição é rara. Vigotski não volta a declarar que essa é a categoria
de análise da consciência/personalidade, mas tampouco a nega. . . . A vivência é uma
das dimensões metodológicas destinadas à descrição da relação sujeito-objeto (pp. 224-
225).
O que retoma a questão já enunciada sobre a generalização das vivências e o modo como
as qualificamos não apartados do contexto social em que estamos inseridos. Para investigar a
relação do sujeito com o objeto, Vigotsky (2009) pontua a distinção entre sentido e significado
– aspectos aos quais ao longo dessa dissertação nos referimos e agora conceituaremos.
O sentido de uma palavra é a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta em
nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida,
complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma
dessas zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais,
uma zona mais estável, uniforme e exata. Como se sabe, em contextos diferentes a
palavra muda facilmente de sentido. O significado, ao contrário, é um ponto imóvel e
imutável que permanece estável em todas as mudanças de sentido da palavra em
diferentes contextos. . . . O sentido real de uma palavra é inconstante. Em uma operação
ela aparece com um sentido, em outra, adquire outro. Tomada isoladamente no léxico,
114
a palavra tem apenas um significado. Mas este não é mais que uma potência que se
realiza no discurso vivo, no qual o significado é apenas uma pedra no edifício do sentido
(Vygotsky, 2009, p. 465).
A primeira coisa que devemos notar quando nos esforçamos por resolver a questão das
forças motoras no desenvolvimento do psiquismo, é portanto a modificação do lugar
que a criança ocupa no sistema das relações sociais, é, porém, evidente que este lugar
não determina por si só o desenvolvimento. Ele caracteriza simplesmente o nível
atingido num dado momento. O que determina diretamente o desenvolvimento do
psiquismo da criança é a sua própria vida, o desenvolvimento dos processos reais desta
vida, por outras palavras, o desenvolvimento desta atividade, tanto exterior como
interior [grifo nosso]. E o desenvolvimento desta atividade depende por sua vez das
condições em que ela vive. O mesmo é dizer que, no estudo do desenvolvimento do
psiquismo da criança devemos partir da análise do desenvolvimento da sua atividade tal
como ela se organiza nas condições concretas da sua vida. Só uma tal démarche [grifo
do autor] permite determinar a parte das condições de vida exteriores da criança e das
disposições que ela possui (p. 310).
Vigotski (2018) também nos convida a considerar esse duplo caráter na situação social
de desenvolvimento, orientando que os elementos do meio agem de forma diferenciada sobre o
desenvolvimento em seus diversos aspectos na ontogênese. Como abordado no item anterior, a
unidade analítica que elucida o papel do meio sobre o desenvolvimento da personalidade é a
vivência. Logo, a vivência é uma chave para analisar o aspecto interior da atividade.
Determinadas pela interação das características do meio e do sujeito que o vivencia, as
vivências advindas de determinada atividade dependem também do grau de generalização do
pensamento de quem realiza essa atividade. (Vigotski, 2018).
Sendo a cultura fonte de humanização dos seres humanos, devemos olhar para as
ferramentas (materiais e simbólicas) ofertadas para os indivíduos se desenvolverem. Em uma
sociedade dividida em classes, nem tudo que foi historicamente produzido pelo gênero humano
está disponível para todas as pessoas – aliás, não está para a grande maioria delas. O que está
disponível? De acordo com quais particularidades? Para quais singularidades? E por quê? São
questionamentos levantados quando consideramos a natureza social do psiquismo humano.
(Martins, 2004).
Na primeira seção, elucidamos como o sistema sexo/gênero foi base constituinte da
embrionária sociedade de classes patriarcal e, a partir de então, incorporado pelos seguintes
modelos econômicos desenvolvidos na história, inclusive pelo capitalismo, o modo de produção
e reprodução da vida que acirrou os antagonismos de classes até então existentes.
Retomados esses conceitos, afirmamos que há implicações do sistema sexo/gênero na
promoção do desenvolvimento psíquico. Vimos que a divisão sexual do trabalho separa a
atuação dos seres humanos em diferentes esferas de produção e reprodução da existência de
acordo com a socialização de gêneros, submetendo-os a distintas atividades, identificações,
conceitos e ideologias. Nesta direção indagamos como se dá, então, a generalização das
vivências neste contexto? Haverá impacto cultural do gênero sobre as vivências e, por
conseguinte, sobre as personalidades?
Martins (2004) insiste no papel central da atividade para a constituição da personalidade,
discriminando assim, sua natureza histórico-social:
A atividade humana, que por sua natureza é consciente, determina nas diversas formas
de sua manifestação a formação de capacidades, motivos, finalidades, sentidos,
sentimentos etc., enfim engendra um conjunto de processos pelos quais o indivíduo
adquire existência psicológica. O estudo desses processos psíquicos nos leva
necessariamente ao plano da pessoa, do homem como indivíduo social real: que faz,
pensa e sente, e é neste plano que nos deparamos com a personalidade (Martins, 2004,
p. 84).
117
personalidade de cada indivíduo não é produzida por ele isoladamente, mas sim,
resultado da atividade social, e em certo sentido, não depende da vontade dos indivíduos
tomados em separado mas da trama de relações que se estabelecem entre eles (Martins,
2001, p. 79).
Vigotski (2018) adverte que o papel dos fatores externos deve ser analisado em relação
aos distintos aspectos do desenvolvimento, ou seja, nem todos os fatores externos agem da
mesma forma sobre todos os fatores internos, há que considerar o que está sendo focalizado.
Nas palavras do autor:
Junto a uma compreensão dinâmica do meio, começamos a entender que a relação entre
ele e diversos aspectos do desenvolvimento é diferente. Por isso, devemos estudar, de
forma diferenciada, a influência do meio, digamos no crescimento da criança, no
crescimento de determinadas partes específicas e sistemas do organismo, ou, digamos,
a sua influência sobre o desenvolvimento de funções sensório-motoras, ou, ainda, das
funções psicológicas e assim por diante (Vigotski, 2018, p. 84).
nesse caso não é somente “pano de fundo” ou contexto no qual transcorre o desenvolvimento,
mas o meio é fonte do desenvolvimento.
Por isso, na situação particular de cada ser humano, é necessário estar presente o que há
de mais desenvolvido para que o singular se aproprie do universal segundo a lei geral do
desenvolvimento psíquico (do inter para o intrapsicológico). A interação com o meio, a vivência
da criança sobre o meio, é a fonte a partir da qual as propriedades especificamente superiores
do ser humano se desenvolvem, “Existe, no meio, a forma ideal ou terminal que interage com
a inicial, própria da criança, resultando no fato de que uma determinada forma de atividade se
torna patrimônio interno da criança, sua propriedade, uma função de sua personalidade”
(Vigotski, 2018, p. 92).
Destarte, a vivência estrutura a personalidade. (Vigotski, 2018). Portanto,
compreendendo as vivências de uma pessoa, há esclarecimentos também sobre sua
personalidade. Nenhuma formação subjetiva é apartada da realidade objetiva na qual transcorre
a vida do sujeito.
Se o meio tem as formas ideias (no sentido de formas finais a serem alcançadas) para as
quais o desenvolvimento do psiquismo deve guiar-se e, conforme discutimos ao longo desta
pesquisa, no meio ao qual estamos atualmente submetidos o sistema sexo/gênero é
característica tão importante para conduzir a vida das pessoas, há que se averiguar as formas
ideias que estarão disponíveis para a criança de acordo com o gênero a ela atribuído. Se o meio
está permeado pela socialização de gêneros, as vivências da criança também o serão e, por
conseguinte, a formação de sua personalidade também estará suscetível ao sexismo.
As vivências são marcadas pelo gênero em diversos aspectos na ontogênese, inclusive
na infância o brincar é um exemplo. Brincadeiras e brinquedos são diferenciados pelos gêneros.
Às meninas ensinamos enquanto brincam a cozinhar, arrumar o ambiente, cuidar de tudo e de
todos ali envolvidos, a se comportarem de forma recatada, quais palavras e tons são adequados
a elas ao passo que com os meninos ensinamos no brincar as possibilidades do que serão na
vida pública quando crescerem, a serem ativos com seu corpo, sua voz e suas relações, a se
120
Vygotski insiste em que o problema não está na situação concreta do meio, mas no modo
como a criança vive ou sente tal situação. Isto define o papel ativo do sujeito em sua
própria formação. Este mecanismo é o que permite afirmar que a formação do sujeito
está mediada não só pelos objetos, pessoas, signos e significados, mas também pelas
vivências apresentadas pelas condições sociais que rodeiam e influenciam o sujeito
(Beatón, 2009, p. 155).
compor o enredo responsável por tal resultado, evidenciando a dinâmica entre os elementos do
meio, as vivências e a constituição da personalidade no contexto da socialização de gêneros.
Assim como a relação entre todos esses fatores não ocorre de forma estanque ou linear,
mas processual e dialética, a personalidade é processo. Isto é, ela é desenvolvida ao longo da
ontogênese de acordo com o “processo dinâmico pelo qual o primeiro [aspecto objetivo]
converte-se no segundo [aspecto subjetivo] e vice-versa” (Martins, 2001, p. 79). Importa, nesse
caso, a quais meios os sujeitos tiveram acesso, sua organização (material e simbólica) era
limitadora ou potencializadora da personalidade?
Apreender a personalidade nesta base teórico-metodológica levanta-nos a exigência de
compor teoricamente quais foram os processos históricos que constituíram a sociedade tal como
se organiza atualmente, com o imperativo de considerar a história incluindo “o processo de
evolução dos seres vivos, a história da humanidade por suas formações sociais específicas, e a
história do desenvolvimento pessoal de um dado indivíduo” (Martins, 2001, p. 82). Em síntese,
Na sociedade capitalista contamos com uma organização do trabalho que cumpre não
somente a divisão imprescindível às sociedades de classes entre trabalho manual e intelectual
(Marx & Engels, 2007), mas que ainda preserva as condições que caracterizam esta divisão
segundo o sistema sexo/gênero, ou seja, a divisão sexual do trabalho.
Corroboramos com as afirmações de Izquierdo (1992) a respeito da posição social que
ocupa determinado sujeito na totalidade histórica determinar também a consciência deste
sujeito. Compreendemos que as afirmações da autora neste aspecto vão ao encontro das
elaborações da Psicologia Histórico-Cultural.
A autora ainda afirma que paralela às relações de poder impostas estruturalmente pela
sociedade patriarcal, desenvolve-se um processo de socialização de gênero, que ocorre pelas
123
Recorrer às reflexões de Vigotski permite afirmar que o processo histórico não constitui
diferentes funções psicológicas para os gêneros, criando algumas específicas para
homens e outras para as mulheres. O que ocorre . . . é que se alteram os nexos, entre as
funções psicológicas e as determinações sociais, a forma como a educação, as
instituições, as funções sociais, a ideologia é construída e mantida, fazendo com que se
fortaleçam algumas funções psicológicas nas mulheres – por exemplo, a afetividade – e
outras, nos homens – por exemplo a racionalidade (Souza, 2006, 116).
Simionato (2018) afirma que o “sentido da experiência pelo indivíduo pode, em última
instância, tanto organizar quanto desorganizar sua atividade. Ou seja, viver determinadas
situações de modo positivo ou negativo gera uma interferência significativa na atividade que o
sujeito realiza” (p. 121).
Izquierdo (2013) defende que distintos sentidos podem se construir sobre uma mesma
atividade, pois estão mediados pela consciência que os vive:
Uma vez que a consciência que vive os processos objetivos não está dada a priori, mas
nasce em um ambiente “mergulhado” de significados e sentidos distintos sobre como
relacionar-se com fêmeas e machos da espécie humana, consideramos o gênero pauta necessária
de ser discutida na humanização e não “nuvem de fumaça” que esconde os processos reais de
exploração de classe. Discorre Souza (2006):
18
Indicamos a leitura de Izquierdo (2013) para os interessados em compreender a fundamentação deste trecho. No
texto, a autora discute a subjetivação decorrente de atividades femininas e masculinas. Aqui, citamos a título de
exemplo e não desenvolvemos o assunto, visto que o objetivo era somente evidenciar que o gênero promove
desenvolvimento psíquico distinto e, acreditamos que investigar quais são as características especificas desse
processo é tarefa para futuras pesquisas.
125
Até aqui vimos que nossas vivências são determinadas qualitativamente pelo sistema
sexo/gênero, pois este, desde a divisão sexual do trabalho com a socialização de gêneros,
engloba as atividades e os conceitos que nos cercam. Tudo isso concede “modulações” de
gênero às vivências em constante desenvolvimento durante a ontogênese.
Diante dessa exposição, defendemos novamente que nenhum entrave seja posto ao
desenvolvimento das potencialidades de todo indivíduo humano. Entendemos nesse trabalho
126
que as vivências de mulheres e homens são qualitativamente distintas em nossa sociedade, mas
visando o futuro como possibilidade que se ergue no presente dentre várias outras, entendemos
que o fim do gênero é estratégia e luta necessária à humanização emancipada de todos os seres
humanos. Mas, por ora, para pautar a vivência da mulher abstrata à mulher concreta, retomamos
as contribuições de Izquierdo (1988):
4.3 Por uma síntese: avançando nas relações vivência e gênero para a Psicologia Histórico-
Cultural
seguir, que sintetiza o objeto estudado em articulação com a totalidade e algumas categorias
trabalhadas até então.
128
Fonte: elaborado pela autora com base nos dados e resultados da pesquisa.
129
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Historicamente à frente de Engels (2010), nos voltamos criticamente para suas análises
sobre a historicidade da família e apreendemos como a sociedade de classes gendradas,
originária nas comunidades patriarcais, se vinculou à preservação da propriedade privada.
Nesse contexto, a sociedade capitalista se relaciona intimamente com a estrutura
patriarcal do sistema sexo/gênero, conservada ao longo da história das sociedades de classes,
em prol do capital (a forma concreta da propriedade privada). Tal relação simbiótica do
capitalismo com o patriarcado permite ao capital usufruir das opressões para realizar com mais
precisão a exploração da força de trabalho, tanto no contexto do trabalho produtivo – ao utilizar
as mulheres em cargos que demandam “características femininas” na realização da atividade
eximindo o capital dos gastos com a preparação da força de trabalho, por exemplo – como do
trabalho improdutivo, historicamente atribuído ao gênero feminino, ainda que nem sempre
realizado por mulheres – ao “maquiar” o trabalho não remunerado com as diversas ideologias
patriarcais de amor, família, maternidade, feminilidade etc. voltadas para perpetuação da
desigualdade de sexo e de gênero que incide sobre as mulheres oprimindo-as, liberando os
“bolsos” dos capitalistas dos custos da renovação diária da força de trabalho necessária à
perpetuação dessa sociedade. (Izquierdo, 1992; Souza, 2006).
Desse modo, a emancipação das mulheres é impossível sob o jugo do capital. Tampouco
a superação deste último acabaria de modo imediato com as desigualdades sobre o sexo e de
gênero, fabricadas historicamente.
No anseio pela emancipação humana, o fim do gênero, isto é, a destruição e ruptura com
a divisão social do trabalho apoiada no critério sexo (divisão sexual do trabalho), se levanta
como caminho necessário. Pois o gênero é uma construção social engendrada historicamente a
partir da divisão sexual do trabalho, que partindo do sexo divide os seres humanos em duas
esferas contrapostas e, na ontogênese, inicia desde a constatação do sexo da criança distintas
socializações de acordo com o gênero a ela designado no padrão do sistema sexo/gênero.
(Izquierdo, 1992, 2013).
Alicerçadas nas contribuições expostas acima, compreendemos que a situação social de
desenvolvimento contém em si particularidades relativas à socialização de gêneros. Destarte,
as vivências constituindo-se nessa situação também são “atravessadas”, ou melhor dito, erigidas
em uma organização material que cria as desigualdades que incidem sobre o sexo das fêmeas e
as desigualdades de gênero, expressas também na construção dos sentidos e significados do
meio. O meio que é fonte para o desenvolvimento psíquico da criança é concretizado em uma
sociedade capitalista e patriarcal. Desse modo, o desenvolvimento da personalidade é marcado
pelas decorrências do sistema sexo/gênero.
132
Uma vez que pelo gênero os seres humanos foram/são historicamente cindidos em polos
contrapostos, as ferramentas culturais são marcadas por essa cisão e a personalidade formada
nestas sociedades não é livre para desenvolver-se em suas máximas potencialidades. Em outras
palavras, as objetivações do gênero humano disponibilizadas para apropriação das fêmeas
humanas se diferem da apropriação disponível aos machos humanos, e se distanciam a partir
do gênero. Ocorre, pois, que o desenvolvimento unilateral do ser humano é guiado também
pelas particularidades do gênero.
Nesse sentido, as vivências podem lançar luz sobre as implicações das relações culturais
de gênero no desenvolvimento do ser singular. Portanto, defendemos que a vivência, conforme
concebida pela Psicologia Histórico-Cultural, é ferramenta de investigação das implicações
culturais do gênero no desenvolvimento psíquico dos indivíduos. É necessário ir até as
vivências considerando-as nessas particularidades para conhecer quais são os impactos
subjetivos da condição objetiva dos sexos sob a égide do capital e da sociedade de classes
gendradas.
Doravante, novas relações no presente objeto de estudo surgem na carência de serem
aprofundadas futuramente. Apresentamo-las a seguir, convidando o leitor à reflexão e diálogo
em conjunto conosco a fim de que desse modo se avalie limites e possibilidades de nossa
discussão e o objeto estudado seja cada vez mais concretamente pensado.
Haja visto que a vivência ocorre em dada situação social do desenvolvimento que
vincula dialeticamente o sujeito e suas atividades e devido à importância das atividades
dominantes para o desenvolvimento, é mister compreender como as particularidades de gênero
concretizam-se nas atividades dominantes ao longo da periodização do desenvolvimento
psíquico e, por conseguinte, como são as especificidades das vivências em relação ao gênero
durante os diferentes momentos estáveis e críticos da periodização. Ainda, como se relacionam
os sentidos e significados durante diferentes períodos de internalização das particularidades de
gênero.
Pelo conceito de gênero trabalhado na primeira seção a partir de Izquierdo (1994),
compreendemos o gênero como construção social presente nas particularidades da
humanização dos indivíduos, podendo ser analisado nas relações com o sujeito por meio da
vivência. Como a vivência é ferramenta de pesquisa que evidencia quais particularidades
presentes no meio que a criança vive impactam o seu desenvolvimento de forma afetivo-
cognitiva no que tange a sua personalidade, cabe a novas investigações elucidarem a
composição histórica de outras particularidades da sociedade capitalista do período de
acumulação flexível e suas relações com o desenvolvimento humano individual.
133
Por fim, conserva-se uma exigência concatenada aos motivos iniciais para essa pesquisa.
Em textos e contextos de militância feminista, vivência é palavra bastante utilizada por autores
e militantes. Por ser uma categoria recorrente, buscamos saber como este conceito estava sendo
estudado no campo científico. Mediante um mapeamento amplo da temática realizado para
termos uma noção de como a vivência era estudada, obtivemos um grande número de pesquisas
sobre vivência.
Nós filtramos essa quantidade em função do objeto de estudo, mas em face da coleta de
dados, exposta na terceira seção, abrem-se várias possibilidades de análise do conteúdo já
elaborado em artigos sobre vivência e os outros descritores (como feminismo) relacionados à
presente investigação. Consideramos importante explorar e sintetizar, principalmente, as
discussões que a Psicologia tem feito sobre vivência nessas temáticas, na busca de revisar
criticamente esse conteúdo. Como afirma Vygotsky (2004b), para superar a incoerência
metodológica na apreensão dos fenômenos psicológicos, não basta optar por uma teoria e
descartar todo o restante do conhecimento acumulado. É preciso uma revisão crítica
epistemológica dos conceitos e princípios investigados, ressaltando o posicionamento do
método como central na análise psicológica dos fenômenos humanos.
No mapeamento expresso no Quadro 2, retirando os descritores da Psicologia Histórico-
Cultural, pois foram analisados nessa dissertação, há um total de 357 artigos que versam sobre
psicologia, vivência, gênero; 16 artigos sobre vivência e gênero e 5 artigos sobre vivência e
feminismo. Provavelmente, neste montante há materiais repetidos, ainda assim, estes números
são expressivos de uma produção intelectual já sistematizada.
Como dissemos, os resultados de nossa investigação correspondem a considerações
preliminares e não um veredicto sobre o tema. Na união dialética entre a teoria informada pela
prática e a prática orientada pela teoria, julgamos necessária a continuidade de investigações
sobre as vivências dos seres humanos de acordo com as particularidades nas quais se
desenvolvem. Finalizamos com um poema que para nós condensa o movimento da ciência na
apreensão cognitiva da realidade.
“O conhecimento
caminha lento feito lagarta.
Primeiro não sabe que sabe
e voraz contenta-se com cotidiano orvalho
deixado nas folhas ávidas das manhãs.
Depois pensa que sabe
e se fecha em si mesmo:
faz muralhas,
cava trincheiras,
134
ergue barricadas.
Defendendo o que pensa saber
levanta certeza na forma de muro,
orgulha-se de seu casulo.
Até que maduro
explode em voos
rindo do tempo que imaginava saber
ou guardava preso o que sabia.
Voa alto sua ousadia
reconhecendo o suor dos séculos
no orvalho de cada dia.
Mas o voo mais belo
descobre um dia não ser eterno.
É tempo de acasalar:
voltar à terra com seus ovos
à espera de novas e prosaicas lagartas.
O conhecimento é assim:
ri de si mesmo
E de suas certezas.
É meta da forma
metamorfose
movimento
fluir do tempo
que tanto cria como arrasa
a nos mostrar que para o voo
é preciso tanto o casulo
como a asa.”
(Aula de voo, Mauro Iasi).
135
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