Science">
Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Trivium - Trabalho Acadêmico

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 125

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS – CECH


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

A CALMARIA DOS CAMINHOS TORTUOSOS:


Construção e método do Trivium Medieval

Carlos Henrique da Silva

São Carlos
2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS – CECH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

A CALMARIA DOS CAMINHOS TORTUOSOS:


Construção e método do Trivium Medieval

Carlos Henrique da Silva

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Educação da Universidade Federal de São Carlos, como parte
dos requisitos para obtenção do Título de Mestre em Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Marisa Bittar.

São Carlos
2017
Aos meus pais, Tania Maria Camilo e Juares Carlos Camargo da
Silva pelo apoio incondicional mesmo nos momentos de maior
dificuldade.
Agradecimentos

À professora e orientadora Marisa Bittar, pelo apoio e incentivo ao longo de


cada momento da pós-graduação, colocando-se não somente à disposição em que tange
assuntos acadêmicos, mas principalmente pela preocupação com os assuntos
corriqueiros que envolvem o cotidiano de nossa existência material. Além desta
referência, agradecer pela possibilidade de convívio intelectual que foram de grande
valia não apenas para este curto período, mas para a sequência de minha vida.
Ao professor Amarilio Ferreira Jr. pelas inúmeras contribuições em relação ao
desenvolvimento deste trabalho, contribuições estas altamente reflexivas e efetivas para
o pleno desenvolvimento desta pesquisa.
Aos colegas de universidade, em especial Jarbas Mauricio Gomes, Aldrei
Galhardo Batista e Thais de Biagi pelas inúmeras conversas e dicas que certamente
contribuíram positivamente para a conclusão deste trabalho.
Aos meus companheiros de trabalho e amigos pessoais Rafael Henrique
Custódio, Victor Santos, Andreia Miranda Gonçalves, Jessica Giampaolo e Letícia
Maria Barbano que vivenciaram cada etapa desta pesquisa, seja de maneira direta pelas
constantes conversas sobre a temática, seja de maneira indireta na compreensão pelos
momentos de ausência em decorrência de todo o processo encarado.
Aos professores Marcos Antonio Gigante e Paolo Nosella pelas considerações e
correções realizadas com total acuidade ao longo das bancas de qualificação e defesa.
Momentos de grande aprendizado e ganho intelectual que caracterizam e enriquecem os
momentos formais da pós graduação.
Por fim, a todos os professores e demais educadores com os quais tive contato ao
longo de minha vida escolar e acadêmica, cada qual com a sua devida importância e
paciência em cada etapa. Em especial às professoras Vera e Zuleika que me
alfabetizaram, assim como o professor Antônio, popularmente conhecido por
“Toninho”, da escola Jesuíno de Arruda, pelas aulas memoráveis de História que
certamente despertaram em mim o interesse pelas ciências humanas. Agradeço também
aos meus professores de graduação, em especial Marcos Antonio Gigante pelo incentivo
e auxílio ao longo desses anos, assim como os professores Fransérgio Follis e Waldir
Paganatto. Certamente chego até este momento graças ao esforço individual de cada um
aqui mencionado.
No princípio era o Verbo...
João (1,1)
Resumo

A presente dissertação consiste em analisar a construção e o método de ensino das três


artes liberais (Gramática, lógica e retórica) da idade média, historicamente conhecido
por Trivium. Para tal finalidade, a dissertação se propôs a analisar, em um primeiro
momento, a construção histórico-filosófica de cada uma das artes que integram o
método, realçando seus principais preconizadores e suas principais fontes de estudo ao
longo da idade média. Em um segundo momento, o trabalho buscou contemplar uma
análise específica do método, destacando sua finalidade e seu funcionamento prático
enquanto proposta educacional de um período histórico. Nesta etapa, optou-se por
destacar a prática de ensino de cada uma das artes mencionadas, assim como sua relação
com o todo orgânico que destaca o método. Por fim, o trabalho faz um balanço entre a
construção histórico-filosófica do método e seu resultado final enquanto proposta
efetiva de formação humana, compreendendo, portanto, o desenrolar dialético da
construção metodológica e sua síntese final.

Palavras chave: Trivium, Educação Medieval, Educação Clássica


Abstract

This dissertation is to analyze the construction and teaching method of the three liberal
arts (grammar, logic and rhetoric) middle age historically known for Trivium. For this
purpose, the dissertation aimed to analyze, at first, historical-philosophical construction
of each of the arts that are part of the method, highlighting its main builders and its
main sources of study throughout the Middle Ages. In a second step, the study sought to
address a specific analysis of the method, highlighting its purpose and its practical
functioning as an educational proposal for a historical period. At this stage, we chose to
highlight the teaching practice of each of the mentioned arts, as well as its relationship
to the organic whole that highlights the method. Finally, the work is a balance between
historical and philosophical construction method and its end result as effective proposal
for human formation, comprising therefore the dialectical unfolding of methodological
construction and its final synthesis.

Keywords: Trivium, Medieval Education, Classical Education


Sumário

Introdução ................................................................................................................... 3
1 - A Construção Histórico-filosófica das Artes Sermocinales ................................ 14
1.1 - Contradições gerais e discordâncias curriculares .......................................................... 14
1.1.1 - A Presença do Cristianismo na educação .............................................................. 16
1.2 - O Caminho da Gramática ............................................................................................ 18
1.3 - O Caminho da Retórica ............................................................................................... 28
1.4 - O Caminho da Lógica ................................................................................................. 34
2 – O Encontro dos Três Caminhos .......................................................................... 38
2.1 - Prolegômenos ............................................................................................................. 38
2.1.1 - Sobre a natureza da linguagem no Trivium ........................................................... 45
2.2 - A Arte da Gramática ................................................................................................... 48
2.2.1 - Palavras categoremáticas ...................................................................................... 51
2.2.2 - Palavras sincategoremáticas .................................................................................. 53
2.3 - A Arte da Lógica ......................................................................................................... 61
2.3.1 - Formas proposicionais .......................................................................................... 65
2.3.2 - Conjunção ............................................................................................................ 68
2.3.3 - Oposição .............................................................................................................. 70
2.3.4 - Inferência ............................................................................................................. 71
2.3.5 - Silogismo ............................................................................................................. 72
2.3.6 - Falácias ................................................................................................................ 78
2.4 - A Arte da Retórica ...................................................................................................... 81
3 - A Calmaria dos Caminhos Tortuosos ................................................................. 90
3.1 - Pavimentação dos Caminhos ....................................................................................... 90
3.1.1 – O Conceito de “Clássico”..................................................................................... 94
3.1.1.1 - Categoria Objetivista dos Clássicos ................................................................... 94
3.1.1.2 - Categoria Espiritualista dos Clássicos ................................................................ 98
3.1.2 – A Educação na Filosofia Perene ......................................................................... 102
3.1.3 – A Universidade Medieval .................................................................................. 105
3.2 – A Permanência da Tortuosidade................................................................................ 108
3.2.1 – O Pragmatismo de Miriam Joseph ...................................................................... 108
3.2.2 – A Palavra como Ato Político. ............................................................................. 111

1
Conclusão ................................................................................................................ 113
Referências Bibliográficas ...................................................................................... 116

2
Introdução

Há períodos e contextos históricos em que a forma de abordagem metodológica


define pari passu a compreensão dos mesmos, clarificando pontos não tão claros e
imprecisos, e, todavia, obscurecendo outros pontos nevrálgicos que deveriam saltar aos
olhos do historiador por transcenderem uma apreensão metodológica específica.
Se há um período em que os paradigmas epistemológicos se digladiam em uma
constante de “clarear” e “obscurecer” objetos, trazendo à tona novas questões ou
forçando o olhar para fatores secundários de uma temporalidade, este período é a idade
média. Ora tratada como um período obscuro da história que pouco evoluiu em relação
às sociedades antigas – essencialmente as civilizações Greco-romanas –, estagnando-se
em um falso avanço que nunca saiu dos domínios eclesiásticos ou nobres, dependendo
das regiões do antigo medievo, revelando, portanto, um profundo atraso cultural; ora
tratada de forma oficialista e com pouca inteligibilidade, buscando apenas reforçar uma
legitimação de castas e gerações cuja máxima realização histórica – e por essa postura
metodológica entende-se que os ditos “sujeitos da história” são instituições duradouras e
linhagens de nobreza – foi a de se perpetuarem ao poder de maneira descentralizada, ou
a de sustentar-se, até tardiamente – já ao final da média –, nos sonhos cavalheirescos de
uma sociedade que já estava nas mãos da burguesia. É possível também ressaltar as
análises mais recentes que reforçam um olhar histórico-cultural, mas antes de mencioná-
los de uma forma mais aprofundada, cabe estabelecer em qual tipo de duração está
situada a idade média.
Um dos fatores fundamentais para a análise histórica de um determinado período
passa pela compreensão de sua temporalidade, os tais períodos de longa duração e curta
duração que Fernand Braudel estabelece em um novo repensar historiográfico (Escolas
dos Annales). Os períodos de longa duração se caracterizam prioritariamente pelas
permanências estruturais e conjecturais de um determinado contexto. As mudanças se
estabelecem de forma lenta, e há pouca percepção de que os processos estão sendo
alterados (e estão sendo, afinal a história sempre está em movimento e nunca deixa de
fluir). Em contraposição a perspectiva de longa duração, há a curta duração que revela
processos de constantes alterações que, diante de contextos efusivamente complexos,
pouco permanecem, sempre surgindo ou ressurgindo com “roupagens” estruturais
diversas. Obviamente a curta duração não necessariamente expressa algo novo, afinal
em história não existe o novo sem o processo dialético que remonta as perspectivas

3
passadas, encaminhando assim a história em um fluxo contínuo, mas não concêntrico,
entre passado – presente – futuro.
Quando buscamos encaixar a idade média dentro dessas duas perspectivas (de
longa ou curta duração), a primeira salta aos olhos pela própria demarcação temporal
que sofreu a idade média ao longo dos anos de trabalho historiográfico. Comumente
entende-se por idade média o período que vai do século V, com a queda do Império
Romano do Ocidente, e vai até o século XV com a tomada de Constantinopla pelos
Turcos Otomanos. Um período de dez séculos, portanto mil anos, revelaria a
permanência de certas formas estruturais que pouco se alteraram. Essa visão é em parte
verdadeira, mas na tentativa de evitar rotulações e generalizações, um objeto pode se
mostrar muito mais dinâmico quando se desprende de algumas amarras metodológicas.
A própria idade média surge de um período de extremo fervor cultural, uma profusão de
culturas diversas que, no Cristianismo, se reestabelecem de maneira sincrética. É
possível até dizer que a longa duração se estabelece pela realização e manutenção de
uma ordem cultural Cristã, ou seja, que determinadas cosmovisões podem dar ensejo às
permanências estruturais, e que as curtas durações surgem em rompimentos
revolucionários com a ordem, este é o eterno debate e a eterna disputa entre
conservadores e reformadores, reacionários e revolucionários; entretanto, os próprios
movimentos revolucionários podem cair em pontos de constância. O revolucionário que
foge à dialética tornar-se-á um conservador mais cedo ou mais tarde.
A compreensão de que a idade média pode ser dinâmica passa também pela
análise dos processos educativos ao longo dela. Sem dúvida que há certas permanências,
como, por exemplo, o caráter mnemônico de determinadas práticas educativas, ou os
constantes castigos físicos exercidos pela também constante igreja, principal instituição
formativa. Entretanto, mesmo por trás das permanências há um fluxo, e esse fluxo é
perceptível nas artes da mente (Trivium) que eram lecionadas ao longo do período. A
própria constituição das disciplinas sofreu várias alterações ao longo dos séculos,
acompanhadas quase sempre de uma constante revisão filosófica de ordem
patrística/escolástica e de uma intensa disputa pela solidificação da doutrina católica. As
permanências nessa ordem filosófica se dão justamente em meio a grandes disputas
dialéticas e, curiosamente, essas disputas se intensificam gradualmente quanto mais se
encaminha para uma compreensão dialética estabelecida pela escolástica.
Destacar certos pontos específicos de um período pode justamente clarear e
obscurecer outros, e aqui caímos em outro problema historiográfico sobre uma

4
compreensão macro ou micro dos processos históricos. Quando se analisa um
determinado período, e se estabelecendo como homem/pesquisador do século XXI,
deve-se levar em conta que ainda é possível olhar para o passado buscando uma visão
macro do processo. Uma visão holística das civilizações permite uma compreensão total
dos fenômenos socialmente e culturalmente integrados, percebendo assim que a longa
duração não é estática como já dita, e que sua diferença com a curta duração é muito
mais afeccional do que substancial, ou seja, de intensidade. A visão marxista da
história deixa bem claro a natureza da compreensão historiográfica e a análise efetiva
dos processos longevos ao estabelecer que toda realidade social é mutável, e que mesmo
diante de estados de equilíbrio relativo é possível notar que esse equilíbrio provem de
mudanças e darão ensejos a novas mudanças; é percepcionar que a compreensão
epistemológica entre passado, presente e futuro se dá de forma dialética e não
necessariamente contínua, e que a circunstância de não ser fugaz não revela uma
completa estagnação de processos. O motor da história sempre está em movimento e o
ato de olhar para o passado implica uma introspecção de que estamos enxergando algo
do qual somos herdeiros – pelo bem ou pelo mal -, sendo possível também – por que
não? – convocar o passado a depor sobre o nosso presente, afinal a história pode ser
evolutiva, mas uma evolução não necessariamente pressupõe progressos.
A idade média quando tomada pela longa duração e analisada por uma
perspectiva holística será mais bem compreendida através de um exercício dialético, e
os processos educativos seguem essa mesma lógica. Obviamente, compreender todo um
período por um método que implica afirmação e negação recairá em certos recortes
metodológicos, sem os quais demandaria um árduo trabalho de pesquisa, podendo este
permanecer por anos sem com isso encerrar-se ao final de uma vida.
O lançamento da “história problema” com ensaio de hipótese possibilita saltos
explicativos (hipotético-dedutivos) que podem clarificar um determinado período
histórico. Seja por interesse do pesquisador, ou por limitações de outra ordem, o recorte
metodológico e a busca por uma resposta e pela compreensão de determinados
processos recaem na história problema, que foge das proposições positivistas – que
possuem seus totais méritos, principalmente no que tange erudição e delimitação
científica do campo historiográfico. Mesmo os paradigmas que não adotam diretamente
uma história problema (método Weberiano, por exemplo) procuram uma delimitação de
objeto. O próprio Weber na realização de seu método compreensivo, procurando assim
compreender o sentido das ações humanas, toma como “problema” o surgimento do

5
capitalismo. A sequência da análise pode naturalmente abarcar outros métodos e outros
problemas – no caso dele (Weber) qual vertente específica do protestantismo possui o
“ethos” mais propício para as práticas capitalistas? –, mas isso não esconde que
inicialmente houve um problema a ser estudado.
Ao tomarmos a “história problema” como um procedimento metodológico,
podemos passar a ideia de que estamos caindo em análises microtemáticas, cujo
objetivo foge a compreensão geral de um fenômeno, buscando assim compreensões
pontuais de um contexto muito mais amplo e complexo. É obviamente o contrário disto.
Partir de um problema específico pode clarear o todo, mas isso se estabelece em uma
relação dialética em que o todo interfere no pontual, e a análise do pontual necessita
uma compreensão geral.
Os microtemas podem obter sucesso nas pesquisas historiográficas, mas a ênfase
nas análises pontuais nasce com outra perspectiva. Nascida no ambiente pós-moderno
em que tudo é extremante relativo e que a busca pela verdade é mera questão
consensual, caiu-se em uma conclusão de que tudo é estabelecido por vias culturais e
que quaisquer expressões socioeconômicas são meros discursos culturalmente
construídos. Dizer que tudo é cultura é, ao mesmo tempo, dizer que nada é cultura. Se
tudo é uma única coisa, conclusivamente ela não é nada, e estabelecendo essa
perspectiva analítica, a história cultural passa a tomar para si objetos de estudos
fragmentários para assim ter algum objeto concreto passível de análise. Mutatis
Mutandis, a partir de então se visualiza uma profusão de estudos pontuais que
desembocam na mera curiosidade, muitas vezes encerrando-se em si mesmos sem
quaisquer amarrações macroanalíticas. Para além desse resultado pouco profundo, há
certa omissão em relação à própria compreensão do presente histórico, o que leva a um
historicismo agudo que encara toda e qualquer verdade como válida apenas em seu
tempo. A história passa a ser encarada como momentos desconectados cuja
inteligibilidade não faz sentido algum fora dos padrões culturais. Da história se extrai
curiosidades e nada muito além; problema este, porém, que transcende a própria ciência
histórica e recai em outras áreas do conhecimento, não precisando de muitos
argumentos pra demonstrar que inclusive as ciências exatas e suas divulgações caem em
curiosidades ou demandas de mercado.
As análises desses pontos metodológicos circundam todo objeto desta
dissertação. Dentro da idade média é possível estudar objetos fragmentários,
conectando-os ou não com uma visão – e cosmovisão – mais ampla. É possível também

6
vislumbrar uma visão macro do processo, realçando aspectos sociais, culturais ou
econômicos. Potencialmente possível é também ver os ciclos de tensão na longa
duração, que podem ser tratados nos estudos educacionais através dos tipos ideais
weberianos, criando arquétipos analíticos que permitem notar distanciamentos e
aproximações de concepções educativas. Em todas as posturas macroanalíticas, faz-se
necessário o entendimento de que a história está em movimento, e não é um movimento
linear e de um único aspecto (cultural, econômico e etc). A história é complexa em si
mesma, e a escolha metodológica traz consigo ganhos e perdas, e é nesse momento que
o sujeito da pesquisa assume uma postura e arca com suas consequências, sem
demonstrar medo pelo julgamento histórico ou esperança de que um dia a história o
absolverá.
Após essa breve constatação metodológica, cabe revelar como se chegou ao
objeto de pesquisa e como escolhi tratá-lo ao longo das próximas páginas.
Comumente, a definição de um objeto de pesquisa por parte do pesquisador
esbarra em inúmeros problemas metodológicos. Sua determinação, seu tipo específico
de abordagem e o constante contato com o objeto transformam-se em um verdadeiro
processo dialético em que sujeito e objeto relacionam-se de maneira intensa e profícua,
quase sempre criando e recriando as relações e trazendo novas perspectivas tanto sobre
o objeto, quanto sobre o sujeito da pesquisa.

Ao longo desse árduo e complexo processo de interação, cabe separar dois


momentos distintos do contato, pois somente assim se terá clarividente como se chegou
ao objeto e, posteriormente ao contato, como o objeto força o repensar subjetivo do
sujeito. Cabe aqui, portanto, assumir e compreender que existe um vínculo real entre a
consciência individual e a objetividade do conhecimento, sem com isso fugir à busca da
tão debatida neutralidade científica. Partindo dessa simplificação analítica entre sujeito
e objeto, inicio a abordagem da temática de forma anamnética 1, buscando com isso
rastrear em minha memória como e quando tive interesse por assuntos relativos à idade
média, assim como a relação desta com processos educativos.

Durante a fase de graduação pude reavaliar meus conhecimentos obtidos até


então sobre o período histórico europeu conhecido como “idade média”, conhecimentos
estes adquiridos nos meus anos de formação no ensino regular. Essa visão que obtive e

1
Processo pelo qual a consciência individual procura remontar suas experiências sensíveis buscando a origem de
suas ideias.

7
que reproduzi ao longo dos demais anos reduzia-se aos preconceitos de uma
historiografia que enxergava – e ainda enxerga em certa medida – no
renascimento/iluminismo, a superação da inércia medieval e um grande avanço da
cultura civilizacional no ocidente. Sendo assim, a civilização natimorta, ou o período
“tenebroso” do século V ao XIV – recorte popularmente mais utilizado - conhecido
como “idade das trevas” (PERNOUD, 1997), foi secundário em minha formação
enquanto estudante no ensino público, formação esta que priorizava o renascimento
cultural clássico e a suposta “luminosidade” da sociedade moderna. Por consequência,
pessoalmente sempre avaliava e desprezava o período medieval com base em um senso-
comum escolar que enquadrava e impossibilitava a análise de todo um período, caindo
nos lugares comuns e repetindo chavões como “dominação eclesiástica”, “atraso e
obscurantismo educacional” e seus mutualismos com as “estruturas produtivas” ditas
feudais, sem com isso partir para um exame racional da temática. Essa predisposição em
exaltar o renascimento europeu e a retomada da cultura Greco-romana, colocando em
segundo plano – ou por vezes até ocultando – o período medieval é perceptível no livro
“História da Educação na Antiguidade” de Henri-Irénée Marrou, em que ele
desconsidera o período medieval buscando assim uma ligação direta entre antiguidade e
modernidade:

A história da educação na Antiguidade não pode deixar indiferente


nossa cultura moderna: ela retraça as origens diretas de nossa própria
tradição pedagógica. Somos greco-latinos: o essencial da nossa
civilização veio da deles: isto é verdadeiro, num grau eminente, para
nosso sistema de educação. (MARROU, 1966, p. 4)

Ao ingressar na graduação em História pude aprofundar na compreensão


histórico-filosófica da idade média, assim como na constante e intensa contradição
encarada pelos sujeitos da história (individuais, coletivos ou institucionais) da época,
fugindo em demasia dos preconceitos oriundos de anos de formação básica. A partir
desse “despertar” racional, compreendi que parte das contradições estabelecidas se deu
pela relação conflitante entre cultura clássica (greco-romana), as invasões bárbaras, a
ascensão do cristianismo e os contatos diretos com a cultura árabe; um período histórico
imerso em efervescências culturais que resultam, ao seu final, e após um período de
mais de dez séculos, como o grande formador da identidade ocidental. Esse “ganho”
analítico que as leituras me proporcionaram, reformularam meu olhar científico para o

8
período medieval, olhar esse contrário às palavras de Marrou (1966) e que se veem
sintetizadas em um trecho do livro “História da Pedagogia” de Franco Cambi:

[...] a Idade média não pode ser vista como matriz do Moderno e nada
mais, já que, na realidade, é, pelo contrário, uma longa época de
fermentações, de transformações, de rupturas e renovações, de
esfacelamentos e reagrupamentos, que abarca o campo econômico e o
social, o político e o cultural etc., dando a imagem de um fervilhar de
eventos desenvolvimentos em muitas direções, os quais – embora
ocorrendo sob o fundo da ideologia cristã que alimenta e domina a
história daquele mil anos – nos fornecem a visão de uma civilização
vital, aberta em muitas direções e absolutamente não-monolítica ou
bloqueada, antes até inquietamente dedicada a salvaguardar ou impor
instâncias de liberdade dentro das malhas compactas de uma
sociedade aparentemente uniforme. (CAMBI, 1999, p. 154)

Ao longo de uma idade média conturbada, inconstante em determinados pontos,


mas constantes em tantos outros, é que se forma a identidade civilizacional do ocidente.
Os anos de graduação me possibilitaram a compreensão de que essa identidade
civilizacional se deu em três fatores característicos da cultura ocidental: Filosofia Grega,
Direito Romano e Moral Judaico Cristã. Pode haver adendos, justificativas ou críticas a
cada um desses três “pilares”, mas essa tríade inegavelmente caracteriza o “ethos” do
homem ocidental em sentido generalista, e esta questão já traz consigo uma justificativa
do porque estudar um período imerso nas contradições, pois, na eminência de perder
dois dos três pilares (Filosofia grega e Direito Romano), as estruturas do medievo
conseguem concluir de maneira unívoca o resultado de uma dialética cultural intensa:

Neste momento já se consumou uma profunda ruptura histórica: o


mundo helênico- romano quase desapareceu no ocidente e os contatos
com o resto do império romano-bizantino são mínimos. [...] É uma
cultura, já totalmente “medieval” e cristã. Esta cultura herda, queira
ou não, junto com a língua latina, infinitas reminiscências das
tradições clássicas. (MANACORDA, 2010, p. 156)

Após esse repensar formativo, saindo de um senso-comum preconceituoso para


um aprofundamento analítico, decidi compreender como se deu esse processo de
construção cultural da civilização ocidental, e eis que na mesma graduação obtive
brevemente uma pista: O currículo de ensino na idade média, mais precisamente as artes
liberais do Trivium (Gramática, lógica e retórica) e do Quadrivium (Aritmética,
geometria, música e astronomia). De maneira sintética e como uma hipótese longínqua,
mantive em minha consciência que esse currículo foi um dos fatores fundamentais para
9
a aglutinação das contradições da idade média, e resolvi estudá-lo por conta própria -
ainda sem aspirações acadêmicas - até o ano de ingresso na pós.

Com os avanços nos estudos solitários, e na iminência do processo seletivo do


Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos,
decidi mergulhar mais a fundo na temática idade média/Trivium e Quadrivium, partindo
da premissa que processos educativos modelam gerações e possuem a potencialidade de
construir ideários civilizacionais aglutinando diferenças em prol de determinadas
finalidades, e que isto na idade média foi obtido na junção Cultura Clássica, Cultura
Bárbara, Árabe e Cristã através das artes liberais de ensino. Dessa conclusão ensaísta
decidi compreender, afinal, o que era o currículo de ensino Trivium, como ele se
formulou mediante a atmosfera cristã, que inegavelmente determinou o pensamento do
homem medieval, tal como tão bem disserta Franco Cambi em “O Cristianismo como
revolução educativa”, capítulo quinto de seu livro “História da Pedagogia”, e como se
deu realmente sua aplicabilidade enquanto metodologia de ensino. Ressalto aqui apenas
o Trivium, pois as três artes (Gramática, lógica e retórica) foram a base inicial e
fundamental para a formação educacional do homem medieval cristianizado no
ambiente educativo das catedrais e dos mosteiros, sem a qual não se chegava nem ao
estudo do Quadrivium (realizado em uma fase posterior). Mesmo no século XI, com as
universidades surgindo no cenário europeu, os estudos universitários só eram
alcançados após uma sólida formação nas três artes liberais transmitidas pela igreja
católica (KOSMINSKY, 1960, p. 97 Et seq.).

Obviamente, dizer que as artes da gramática, lógica e retórica formavam a base


da educação episcopal e monacal, não exclui a possibilidade de que havia outros
processos educativos em andamento, como, por exemplo, a educação cavaleiresca de
origem predominantemente bárbara (MANACORDA, 2010, p. 170 e 196), e as de
cunho técnico como a preparação para ofícios artesanais (MANACORDA, 2010, p. 172
e 199). Contudo, as principais atividades educativas e intelectuais da época partiram da
igreja católica que, não à toa, fomenta a criação das universidades (DE PAULA, 1957),
legado até hoje fundamental não apenas para a civilização ocidental, mas para todo o
mundo.
Definida as características próprias e contextuais do objeto, o passo seguinte
consistiu em realizar estudos exploratórios para compreender em quais condições
estavam as produções nacionais sobre a temática, e quais obras seriam essenciais para a

10
compreensão do tema. Nessa etapa pude notar que as produções brasileiras sobre o
assunto são extremamente escassas 2, reduzindo-se em poucas produções de livros e
algumas dúzias de artigos que circundam o tema sem abordá-lo diretamente. Encontrei
quatro livros sobre o assunto, dois dos quais são traduções de obras de língua inglesa:
“Trivium Clássico” de Marshall McLuhan e “O Trivium – As artes liberais da lógica,
gramática e retórica” da Miriam Joseph; e outros dois nacionais intitulados:
“Universidade: Do trivium-quatrivium ao ensino-pesquisa extensão numa visão ‘on the
road’” de Eduardo Fonseca e “Trivium e Quadrivium – As artes liberais na idade
média” de coordenação de Lênia Márcia Mongelli.

O livro de Marshall McLuhan faz uma análise histórico-filosófica do Trivium


partindo desde sua origem grega, passando pela patrística e escolástica medieval, até
chegar ao século XVI com Thomas Nashe, objeto de estudo do autor. Esta obra em
particular revela os intensos debates e conflitos recorrentes entre cada uma das artes,
revelando com isso os sujeitos históricos da época e suas influências nos processos
educativos. Já o livro de Miriam Joseph adentra de maneira bem mais profunda no
método Trivium, pois o livro é resultado de estudos posteriores da própria autora para
aplicar o método no Saint Mary’s college na cidade de South Bend em Indiana
(JOSEPH, 2008, p.17). O livro traz de maneira prática e carregada de exemplos as três
artes liberais da idade média, municiando assim a compreensão e aplicação real do
método, assim como, indiretamente, deixa claro quais as perspectivas e intenções para
esse tipo específico de formação.

Já o livro de Eduardo Fonseca - citado acima - aborda o Trivium apenas como


ponto de partida para outro objeto, e ainda assim o faz de forma superficial apenas para
situar o surgimento das universidades em uma perspectiva moderna, fugindo
substancialmente ao meu objeto de pesquisa. Curiosamente, a obra possui um erro de
título, deixando claro que a educação medieval é secundária e apenas um ponto de
partida para algo posterior3.

2
A escassez de estudos sobre períodos longínquos e não nacionais possuí certa justificativa pela ausência
ou dificuldade de acesso às fontes primárias. Longe de ser algo determinante, os “obstáculos” de acesso
às informações ainda dificultam a profusão de determinados estudos no Brasil.
3
O livro cujo título é “Universidade: Do trivium-quatrivium ao ensino-pesquisa extensão” de Eduardo
Fonseca possui um erro de grafia no mínimo estranho, pois o termo correto para se referir as quatro artes
liberais posteriores ao trivium é “quadrivium” derivado do “quad” (quatro) latino e não “quatrivium”
como está no título do livro.

11
Por fim, a única produção brasileira sobre o assunto diz respeito à obra
“Trivium e Quadrivium – As artes liberais na idade média” que consiste em uma série
de estudos escritos e compilados por estudiosos especializados em cada uma das sete
artes liberais. Uma compilação rica em detalhes e fontes, mas que, por suas
características de estudos compilados, apresenta-se de forma fragmentada.

Encontrei também, ao longo do estudo exploratório, artigos que abordam


indiretamente o tema, porém sempre caindo em análises específicas da patrística e da
escolástica medieval. São estudos complementares às artes liberais, principalmente as
três primeiras (Trivium), sendo muitas dessas produções realizadas por Jean Lauand da
FEUSP, um especialista em que tange à filosofia medieval. Há também produções
complementares realizadas por Ricardo da Costa da Universidade Federal do Espírito
Santo, produções excepcionais que também abordam o Trivium e o Quadrivium
medieval de maneira indireta.

Para além do conteúdo dessas produções, que inegavelmente contribuem e


esclarecem vários pontos sobre a cultura medieval, o fato primordial que chama a
atenção é que, de todos os estudos encontrados, apenas os do professor Jean Lauand
correspondem à autoria de pesquisador de um programa de pós-graduação em Educação
e, para além disto, nenhuma delas, mesmo as de Jean Lauand, analisa propriamente o
Trivium como uma proposta efetiva de ensino, que educa e portanto forma, em conjunto
com o cristianismo, o homem medieval. Eis um ponto em que a pesquisa justifica-se em
si mesma: A tentativa de contribuir com a produção e com a discussão de algo tão
pouco estudado nas academias brasileiras.

Como bibliografia complementar pesquisada, cabe obviamente realçar as obras


clássicas de historiadores da educação como Mário Manacorda, Franco Cambi, Paul
Monroe, Henri-Irénée Marrou. Pelas características de suas obras sobre História da
educação e pedagogia, seria humanamente impossível dedicar um grande espaço para
analisar o Trivium medieval e sua relação com os processos formativos do homem
cristão. Entretanto, são obras de extrema riqueza que ganham em aspectos gerais e
contextuais, possibilitando com isso uma base historiográfica sólida da educação na
idade média. Destaco também as obras de outros (as) medievalistas como Régine

12
Pernoud, Étienne Gilson e Jacques Le Goff que também passam brevemente pelo
Trivium por terem pesquisado o período.

As características educacionais de uma época dizem muito a respeito de si


própria e sobre o que ele anseia – ou ansiou – para o futuro, e na idade média isto não
foi exceção. Compreender o currículo do Trivium medieval é compreender como o
homem europeu medieval enxergava – com olhar cristão – a herança clássica
modificando-a perante seus conflitos contextuais ao longo de dez séculos (do século V,
com a queda do império romano do ocidente, até o século XV com a tomada de
Constantinopla pelos Turcos Otomanos), e como isso, ao final, se traduz em uma
metodologia de ensino. Eis aqui a problemática da pesquisa: Como, diante de caminhos
tão tortuosos, o Trivium (em latim traduzido como “o Cruzamento de três caminhos”)
conseguiu consolidar-se como um método ideal para a formação intelectual do homem
medieval? O que são essas três artes liberais, e como elas operam enquanto
metodologia de ensino?

Para mim, tentar responder essa questão é compreender as relações que


formaram – e que ainda formam em alguma instância – o homem ocidental. Tentar
responder essa questão é retomar a discussão da educação para a liberdade e para a
plenitude, antagônica ao caráter técnico-prático que a educação ganhou nas sociedades
modernas.

13
1 - A Construção Histórico-filosófica das Artes Sermocinales

1.1 - Contradições Gerais e Discordâncias Curriculares

Quando pensamos em um determinado momento histórico nos vem em mente,


sem grandes considerações ou análises iniciais, os aspectos mais gerais e conhecidos do
período, aspectos estes que o demarcam positivamente – ou negativamente. Tais
aspectos se manifestam por dois motivos que podem ser tanto complementares como
discordantes: 1) pela sensação de continuidade que estabelece certos “lugares comuns”
de contextualidade; 2) pelos preconceitos estabelecidos sem uma análise criteriosa das
fontes históricas.

Em que tange o primeiro, é comum – e muitas vezes correto – definir um


período histórico muito mais pelas suas características permanentes do que
necessariamente por suas mudanças cíclicas e contraditórias que caracterizam a história.
A perenidade de certos aspectos fornece uma maior segurança para uma definição
conjectural, facilitando assim uma “síntese” histórica.

Todavia, ao sintetizarmos um fluxo de acontecimentos em determinados


conceitos gerais, podemos desembocar em uma série de enunciações reducionistas que
dificultam e a depreciam um período histórico.

Um dos grandes exemplos dessa movimentação perceptiva dualista é a


concepção que comumente anuncia-se sobre o período medieval, mais precisamente
período da queda do império romano ocidental até as primeiras bases do renascimento
europeu. Não é raro visualizar manifestações que corroboram com a sensação de
continuísmo no período, realçando aspectos tais como a permanência e a predominância
de uma cultura ruralista fomentada por relações de servidão sob as batutas de uma
instituição que, mesmo estando em processo de formação, estabelecia-se como um dos
pilares dos poderes medievais. As pequenas mudanças oriundas da movimentação
dialética são tratadas como exceções, excertos e fragmentos que fogem à regra do
medievo.

Semelhante é esta sensação em que tange os processos educativos do período –


ou em boa parte dele. As rédeas da educação nas mãos da igreja católica ancoradas em
uma nova concepção de homem com vias de simulacro à figura de Jesus Cristo, a
predominância formativa para os propósitos clericais e a pouca utilização da cultura

14
clássica grega são alguns dos pontos comuns e generalistas que caracterizam o período.
Todavia, toda generalização pode, variavelmente, desembocar no segundo motivo
exposto no início deste capítulo.

A repetição de chavões ou conceitos comuns para explicar determinados


aspectos históricos possui, geralmente, como procedimento, o julgamento do passado
por parte do “juiz” contemporâneo; o julgamento de quem sempre enxerga a história por
uma linha progressista buscando nela a realização plena de seus anseios ou o próprio
fim do campo de sua ação. Por outro lado, o problema a ser analisado não diz respeito
ao julgamento de tempos históricos, algo que pode ser válido e até essencial ao “fazer”
historiográfico, mas sim as demarcações reducionistas às quais desembocam alguns
julgamentos. Dos aspectos gerais e perenes destacados anteriormente, se autoconclui
certos fatos que não possuem correspondência completa na realidade. Por exemplo, ao
se falar em declínio da cultura clássica na educação medieval, se autoconclui, por um
viés iluminista, que houve uma descontinuidade progressista no ocidente, levando o
período a um obscurantismo anti-intelectual que somente foi recuperado na
modernidade.

Os anúncios indevidos de tal conclusão omitem de maneira deliberada todo e


qualquer avanço possível do período, pois mesmo que a premissa encaminhe para uma
conclusão procedente, nenhum período posterior deixa de herdar aspectos de seu
antecessor. O homem não escolhe sobre qual temporalidade se dará sua atuação, mas na
verdade reconhecesse como fruto de um processo contínuo com retrocessos e avanços
de ocorrência quase simultânea.

Evitando um rechaço pleno do período medieval, este trabalho, como um todo,


tem como propósito geral realçar a dinâmica da educação do período a partir de uma
análise curricular, no caso, tendo como base o desenrolar dialético das três artes liberais
que compunham o Trivium Medieval, sendo elas: Gramática, lógica (dialética) e
retórica.

Entretanto, antes de analisar propriamente as três artes que proporcionam


conteúdo e forma para o currículo medieval, cabe apresentar mesmo que de maneira
geral, os aspectos gerais da educação do período medieval. Estes aspectos gerais que
embora remetam exatamente as críticas iniciais deste capítulo às sínteses e lugares
comuns que definem um período, serão tratados de uma maneira dinâmica e baseando-

15
se em autores que primam pela análise pormenorizada, evitando assim unanimidade de
pensamento, etapa esta predecessora dos julgamentos históricos generalistas. Mais do
que um breve relato contextual, este primeiro passo visa ambientar as exposições
posteriores do verdadeiro objeto deste trabalho assim como a inserção de pequenos
aspectos metodológicos que possuem o objetivo de demonstrar os movimentos
complexos da sociedade feudal.

1.1.1 - A Presença do Cristianismo na Educação

Ao se falar da presença do cristianismo na educação, poder-se-ia seguir a linha


generalizante de realçar aspectos conhecidos colocando-os em constante debate com seu
período antecessor e posterior, tal como um pugilista que está nas cordas sofrendo
golpes de não um, mas dois adversários. Se há algo já realçado nessas linhas iniciais que
se pretende evitar é o “maniqueísmo” histórico – e historiográfico – de tal
procedimento.

A presença do cristianismo na educação é muito mais um momento processual


do velho em contato com o novo – e do novo em contato com o velho –, do que
necessariamente uma ruptura brusca entre as concepções clássicas e sua “atualização”
cristã. A mudança da Paideia Clássica para a Paideia Cristã tão bem retrata por Franco
Cambi em seu livro “História da Pedagogia” é antes um processo natural originário das
novas experiências históricas do que necessariamente uma alteração forçosa e
impositiva de concepções.

A naturalidade deste movimento origina-se com a própria figura de Cristo e o


novo conceito de homem que dela deriva, o homem em uma perspectiva igualitária,
solidária que pauta-se nas práticas virtuosas da humildade e do amor, encontrando em
sua família não extensões das relações paternalistas, mas sim uma homogeneidade
essencial cuja base é o amor, assim como a da tão falada e eleita sagrada família
(CAMBI, 1999, p.121). Nesta nova perspectiva formativa, a família possui um papel
central pelo amor tomado no sentido de ágape, destoante do eros clássico e sua
impulsividade à obtenção do bem no banquete platônico, ou de sua natureza mediadora

16
em consonância com a teoria das reminiscências em Fedro 4 (REALE,2014, p. 164 -
168).
Esta nova perspectiva formativa cristã sustentou-se em dois momentos
fundamentais do novo testamento, o primeiro baseando-se nos sermão da montanha do
evangelho de Matheus e Lucas e o segundo nas epístolas paulinas. As recomendações
de Cristo em seu sermão introduziram uma série de novas prerrogativas morais que
demonstram o novo caminho da formação cristã, pautando-se no amor – algo já
mencionado –, e no discernimento para uso da humildade e da caridade em momentos
concretos, como no exemplo abaixo:

Por isso, quando deres esmola, não te ponhas a trombetear em


público, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, com o
propósito de ser glorificados pelos homens. Em verdade vos digo: já
receberam sua recompensa.
Tu, porém, quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que
faz a tua mão direita (Mt 6, 2-3).

O segundo momento fundamental do Novo Testamento que estabelece uma nova


perspectiva formativa se faz presente nas epístolas paulinas e em seu dualismo
corpo/alma que consolida a repreensão do primeiro por perturbar a consolidação da vida
espiritual do segundo (CAMBI, 1999, p. 124). Entretanto, esta prerrogativa não foi
novidade tomando como exemplo os diálogos platônicos Fédon e Mênon e suas
características dualizantes sempre colocando a alma como prisioneira de um corpo que
não permite sua plena realização. Este dualismo no ocidente cristão se coloca
principalmente com perspectivas escatológicas de salvação, tendo em vista que o
controle dos desejos corporais a partir da defesa e do cuidado da vida espiritual são
exemplificações diretas da passagem de Deus pela matéria. Esta concepção possui um
peso concreto nos processos formativos na sequência dos séculos, pois colocam a
educação em um caráter ascético, de vivência e aprofundamento das experiências
originais deixadas por Jesus Cristo; a educação com o propósito de exaltação divina.

Este propósito de unir Cristo aos processos educativos a partir da imitação de


sua figura não ocorre de uma maneira unívoca e apartada dos processos formativos
encarados anteriormente. Em São Justino (100 d.C. a 165 d.C.) e Taciano de Síria (120
d.C. a 180 d.C., por exemplo, há uma clara tentativa de se unir Platão e Cristo em

4
O Eros do Banquete platônico e o Fedro possuem características particulares que se autocomplementam.

17
perspectivas formativas, mesmo sendo Taciano de Síria um profundo crítico ao
paganismo e a filosofia. Tal como realça Frederick Copleston em seu livro “História da
Filosofia”, os primeiros séculos de cristianismo conviveram na dualidade de criticar o
paganismo e suas vertentes gnósticas se apropriando em grande medida de recursos
filosóficos tipicamente pagãos5.

Essa tentativa de união que estrutura filosoficamente a paideia cristã se


aprofunda ainda mais no século IV nas figuras de Basílio de Cesarea (329 d.C. -379
d.C.), Gregório de Nazianzo ( 330 d.C. a 389 d.C.) e Gregório de Nissa (335 d.C. a 394
d.C.), intelectuais que se preocuparam em relacionar a cultura clássica aos textos
cristãos (CAMBI, 1999, p. 129).

1.2 - O Caminho da Gramática

O desenvolvimento desta etapa do trabalho poderia se estabelecer de duas


formas que são distintas entre si, mas igualmente importantes para a compreensão dos
processos aqui analisados. A primeira forma diz respeito à descrição quase que
inteiramente expositiva da arte “gramática” e sua presença ao longo da idade média,
realçando século a século cada conteúdo e autor mencionado para a tratativa desta arte.
Este trabalho mais minucioso, factual e cronologicamente determinado é sem dúvida
importante, todavia, este presente trabalho possui como objetivo uma análise orgânica
dos processos educativos que originaram o Trivium, sendo assim, mais do que a
importante menção factual e sequência da arte, vale ressaltar suas constantes oscilações,
picos e baixas de importância que somente um recorte metodológico poderia fornecer.
Mais do que a sequência secular, cabe destacar e realçar os aspectos mais importantes e
fundamentais da composição do estudo da gramática no período, pois são nesses
aspectos que as contradições curriculares se manifestam como expressão da própria
natureza do período analisado. Destas contradições nascerá um método coeso e
organicamente funcional que será exposto no capítulo posterior.

A eleição do que considero como fundamental e secundário para a compreensão


desta arte se estabelece em base ao livro “Trivium e Quadrivium – As artes liberais na
Idade Média” de coordenação de Lênia Márcia Mongelli. Tal obra se caracteriza por ser

5
Etienne Gilson em seu livro “O espírito da filosofia medieval” trabalha com a problemática de se definir
uma “filosofia cristã” pelos próprios métodos não teológicos da filosofia clássica.

18
uma compilação de estudos isolados de especialistas sobre cada uma das artes liberais
na idade média, realçando assim de maneira sintética os principais caminhos percorridos
por cada disciplina que integra o currículo medieval. Seria possível realizar, a partir
desta característica compilatória da obra, um trabalho mais específico de cada arte,
destacando pontos com enfoque maior, recortando em demasia o objeto de estudo deste
trabalho. Todavia, tal como mencionado na introdução, o olhar “macro” será o enfoque
deste trabalho, partindo das características gerais de cada arte e seus pontos
contraditórios.

A gramática tal como concebemos modernamente é distinta da tradição greco-


latina dos estudos dessa arte. A gramática romana, na maior parte de sua existência,
constituía-se em etapas de estudos iniciadas a partir dos sete anos de idade com
finalidades práticas à aplicabilidade retórica. Nas etapas iniciais o aluno passava por
um processo constante de alfabetização que exigia total atenção tanto do mesmo quanto
do professor, ambos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Essa etapa,
dividida na aprendizagem e na memorização do alfabeto e das constituições silábicas da
língua era essencial para as etapas posteriores do ensino da gramática, pois este
procedimento inicial fornecia aos alunos a base fundamental à leitura, habilidade de
suma importância no ensino da gramática enquanto arte trivial (MONGELLI, 1999, p.
37-38).

Nesta fase posterior (a fase da leitura) a rapidez da compreensão cedia seu lugar
à precisão. A partir da leitura de poesias e textos de grandes poetas, o aluno era levado a
compreender as “miudezas” da gramática, analisando e percebendo as acentuações
empregadas nos termos, assim como a intensidade de certos termos que provocavam um
efeito peculiar na escrita clássica. Curiosamente, este processo intenso de leitura e
análise possuía como principal faculdade desenvolvida a memorização. A precisão não
estava somente em compreender os aspectos gerais da língua, mas os aspectos
particulares dos poetas clássicos consultados. Mais do que a invenção, caberia neste
momento a compreensão e a imitação das características gramaticais dos textos
clássicos (MONGELLI, 1999, p. 37-38).

Essa característica possuía ainda mais força pelo próprio dualismo que
compunha a classe dos professores de gramática, profissionais estes que não apenas se
dedicavam à gramática, mas também à retórica:

19
Os gramáticos latinos que, desde a origem dessa atividade, ensinavam
também retórica, eram conhecidos por literatti, e, se tomarmos em
consideração o testemunho de Suetônio6, se distribuíam por duas
classes: os que interpretavam criticamente os textos e os que
oficialmente exerciam a profissão de ensinar. [...] estes últimos
recebiam o nome de grammatici (MONGELLI 1999, p.38).

Havia na educação romana uma prioridade da arte retórica como disciplina


predominante para a formação do bom orador, sendo assim, o uso da gramática estava
intimamente ligado com a sua finalidade prática (o discurso). A predominância da arte
discursiva justificava-se em demasia pela sua aplicação política nas oligarquias
romanas. O discurso era de suma importância à práxis política, ora como mantenedora
de ordem constitucional, ora como desestabilizadora com viés reformista, mas mais do
que isto, o discurso expressava uma seletividade a partir de sua própria execução.
Muitos poucos falavam, e quem exercia seu direito ao pronunciamento público era
preparado para tal feito, realçando tanto uma seletividade política, como educacional.

Mais do que uma relação orgânica entre gramática e retórica, havia a


secundarização da gramática em relação à segunda tendo em vista os objetivos políticos
para a formação do bom orador. O exercício pleno da fala bastava em grande medida
para a formação do jovem estudante romano, nesse sentido, os grammatici possuíam
apenas importância em sua finalidade, mas não em sua própria função e aplicação de
sua arte7.
Com os avanços posteriores à idade média, o ensino da gramática se dualiza
ainda mais tendo em vista sua base original greco-romana. A distinção essencial que
permaneceu ao longo de toda a idade média da ars recte loquendi e a enarratio
poetarum caracterizou dois momentos importantes do processo educativo desenvolvido
à compreensão da gramática.

Mais do que uma mera correção do falar e do escrever, a ars recte loquendi
visava uma compreensão e seguimento das regras gramaticais que disciplinam a ordem
das palavras, ou seja, casos de concordância entre sujeito e verbo e a busca constante
pela fuga dos barbarismos e solecismos que descaracterizavam a língua (MONGELLI,
1999, p. 39-40). Tal perspectiva do estudo gramatical possuía justificava no período

6
Caio Suetônio Tranquilo (Gaius Suetonius Tranquillus) - Escritor latino do primeiro século da era cristã.
7
Os menores salários pagos à docência da época se destinavam aos professores das primeiras letras, tal
como destaca Manacorda (2010) e Franco Cambi (1999).

20
inicial da era medieval – e até o período inicial da baixa idade média –, pela alta
profusão cultural/linguística do período. Para uma tentativa efetiva de manutenção da
linguagem, a ars recte loquendi era seguida à risca como forma de critério de qualidade
para o desenvolvimento gramatical. A contradição que se coloca, entretanto, dentro
desta perspectiva de manutenção, é que mesmo diante de muitas tentativas de correção e
coerção da escrita, o baixo nível cultural permanecia constante até o século IX,
alterando a situação no período graças à atuação do Imperador Carlos Magno.
Por sua vez, a enarratio poetarum se caracterizava não pelo regimento e pela
correção típica da natureza da arte gramatical, mas sim por uma característica de
estudos filológicos com o intuito de interpretar obras clássicas da literatura. Mais do que
uma mera leitura das obras, a enarratio poetarum era um estudo profundo do estilo
clássico de escrita, o estilo belo a ser mantido e defendido diante das invasões bárbaras,
característica esta que não poderia ser perdida sendo ela pagã ou não pagã.

A característica peculiar da tratativa da enarratio poetarum possuía, entretanto,


uma similiaridade com um aspecto de uma arte a princípio rival da gramática: a retórica.
Contraditoriamente, a imitatio tão característica da arte retórica, mostrava-se
8
profundamente presente na enarratio poetarum ao ponto de causar em Quintiliano
uma grande confusão. Para Quintiliano, caberia à gramática o dever de repetir os
modelos clássicos pela cópia e paráfrase, proposta típica da imitatio retórica e sua
proposta de reprodução dos belos discursos proferidos. Não obstante, a gramática
romana vinha em grande medida a reboque da preponderante arte retórica em Roma,
algo que se encaminha até boa parte da idade média, alterando-se apenas ao final do
período conhecido como Alta Idade média. Para o mesmo Quintiliano, seria função da
retórica apenas a invenção e a apresentação do discurso, todavia, bons discursos seriam
inegavelmente baseados na estruturação dos belos discursos antigos, estabelecendo
assim uma duplicidade da imitatio nas duas artes mencionadas (MONGELLI, 1999, p.
41).
Em síntese e tomando como base o modelo romano, pode-se considerar que o
estudante de gramática medieval tomava contato com dois modelos de estudo que
ampliavam sua compreensão sobre a linguagem escrita e, mais do que isto, estruturavam
a sequência de seus estudos.

8
Marco Fábio Quintiliano (Marcus Fabius Quintilianus) – Professor de gramática e retórica do primeiro
século da era cristã.

21
O primeiro modelo diz respeito a Ars poetica (Ars minor), modelo este que
despertava interesse no gramático por:

1) Estabelecer relações de metrificação típicas da linguagem poética,


aprofundando assim a escrita normal do literato e transformando-a em
uma escrita mais ordenada (poética) por ritmos, versos e prosas.
2) Realizar um estudo aprofundado sobre metaplasmo, ou seja, por uma
compreensão de desvios recorrentes de fonética tão presentes nos
poetas.
3) Estudar as figuras de linguagem (figuras da retórica) (MONGELLI,
1999, p. 43).

A Ars minor de Élio Donato9 se caracterizou como um dos estudos clássicos


para a compreensão da gramática ao longo de quase toda a idade média. Todavia,
curiosamente, o mesmo Élio Donato que se manteve constante através de sua Ars
grammatica ao longo da idade média, era reconhecido não apenas por ser um grande
gramático, mas sim por predominantemente ser também um retórico. Ambas as artes
estavam atreladas não somente em conteúdo e finalidade, mas também no exercício de
docência de seus principais membros.

Após o estudo da Ars minor de Donato, voltavam-se as atenções para o estudo


da Ars maior que também se dividia em três partes que aprofundavam o estudo da
gramática, sem, todavia, cortar relações com a retórica.

A primeira parte era totalmente dedica à fonética, fonologia, prosódia e


ortografia (MONGELLI, 1999, p. 43-44). Em linhas gerais, a Ars maior de Donato se
caracterizava pela possibilidade de um estudo mais profícuo das letras em si mesmas.
Versando sobre aspectos estruturais da grafia, a primeira parte era a base para as duas
posteriores, pois estabelecia os elementos necessários para tais estudos 10.
Posteriormente, avançava-se para os estudos das partes do discurso, trazendo
definitivamente o estudo da gramática para um aspecto mais prático e proximal da arte

9
Élio Donato – Gramático latino dos anos 300 d.C. que influenciou diretamente os estudos da arte
gramatical ao longo da Idade Média.
10
Posteriormente, no segundo capítulo, esta base será melhor apresentada com os estudos
categoremáticos e sincategorimáticos dos termos.

22
retórica. Quando se menciona em partes do discurso, entendem-se as características
11
estruturantes da arte discursiva , ou seja, a composição do discurso desde a invenção
de seus termos (inventio) até as disposições dos mesmos (dispositio). Nesse sentido, a
gramática “municiava” até então a retórica, que ampliaria ainda mais sua força na
terceira parte do estudo da Ars maior.

A terceira parte em especial proporcionava o estudo dos ditos vícios de


linguagem mencionados por Donato:

A terceira parte começa com a definição de barbarismo que, segundo


Donato, é vício no falar e na pronúncia. [...] Depois de breves
definições de doze vícios de linguagem (barbarismo, solecismo,
acirologia [impropriedade], cacófato, pleonasmo, perissologia
[repetição], macrologia [prolixidade], tautologia, elipse, tapinose
[apoucamento], cacossínteto [ligação ou colocação viciosa da
palavra], anfibolia [anfibologia] (MONGELLI, 1999, p. 44).

A Ars grammatica de Élio Donato com sua segregação entre Ars minor e Ars
maior compunha boa parte dos estudos da arte gramatical do período, mesmo que de
maneira totalmente relacional – e até de certa forma confusa – à arte retórica.
Juntamente com Donato, Priscianus Caesariensis, mais conhecido por Prisciano,
também constituía a base de estudos da gramática medieval.

Através de sua “Institutio de arte grammatica”, Prisciano se configurou com


uma das bases do estudo da gramática. A Institutio se caracterizava por uma obra
volumosa composta por dezoito livros que visavam o estabelecimento de regras de
linguagem voltadas à correção de erros gramaticais, tal como a terceira parte da Ars
Maior de Donato. Baseada nos modelos de estudo gramatical dos estudiosos de
gramática grega Erodiano e Apolônio Díscolo, a Institutio possui comentários críticos
sobre a arte a partir de gramática de Varrão (116 – 27 a.C.), fornecendo assim um relato
rico e profundo sobre autores latinos clássicos para o ensino de gramática e os avanços
característicos da Enarratio Poetarum já mencionada anteriormente (MONGELLI,
1999, p. 45).

A base clássica estruturada por Donato e Prisciano influenciou diretamente


outros autores de menção igualmente importante para o estudo da gramática ao longo da
idade média. Boécio (480 – 524 d.C.), Cassiodoro (490 – 583 d.C.) e Isidoro de Sevilha

11
A estrutura da arte retórica será delimitada em maior proporção no capítulo seguinte.

23
(570 – 636 d.C.) são os exemplos mais expoentes de que Donato e Prisciano foram
mantidos e constantemente reinseridos no ensino da arte pelo simples aspecto funcional
da linguagem que ambos foram pioneiros em analisar (MONGELLI, 1999, p. 46). Os
ditos “enciclopedistas” – denominação dada aos três intelectuais mencionados acima –
“compuseram obras de natureza enciclopédica destinadas à instrução religiosa,
desejosos de oferecer ao leitor as bases do saber integral da época, onde se incluem
partes relativas à gramática e à retórica” (MONGELLI, 1999, p. 51).

Boécio será tratado posteriormente na arte da lógica de maneira sintética,


todavia, Cassiodoro e Isidoro de Sevilha merecem um destaque por serem exatamente
enciclopedistas de grande relação com a gramática. Flávio Magno Aurélio Cassiodoro,
por exemplo, escreveu obras de alto valor literário direcionadas ao estudo e exegese das
sagradas escrituras a partir da base deixada por Donato e Prisciano.

Já Isidoro de Sevilha foi sem dúvida o gramático de maior importância do


período, quiçá, o mais importantes após os dois pilares já mencionados (Donato e
Prisciano). Isidoro de Sevilha foi um arcebispo da cidade de Sevilha que participou
ativamente da conversão dos visigodos ao catolicismo. Sua obra clássica
“Etymologiarum sive originum libri XX” discutia de maneira profunda os signos
linguísticos da época, analisando etimologicamente cada termo em individual e sua
relação com o todo contextualizado da idade média. Eis abaixo alguns exemplos de
análise realizada por Isidoro em sua obra:

LETRA B

22. Beatus (feliz, bem-aventurado), como se disséssemos bene auctus


(o que se desenvolveu bem, realizado), isto é: quem tem tudo o que
quer e não padece o que não quer. Pois verdadeiramente feliz é quem
tem todos os bens que quer e não quer senão o bem.

23. Bom (bonus). Acredita-se que bom procede originariamente da


beleza (venustate) do corpo, e depois estendeu-se ao espírito.

28. Bruto (brutus) provém de obrutus (enterrado, encoberto) porque


carece de sensibilidade ou senso. É, pois, quem não tem razão ou
prudência. Por isso, aquele Júnio Bruto, filho da irmã de Tarquínio
Soberbo, temendo que lhe acontecesse o mesmo que ao seu irmão
(assassinado pelo tio por causa de suas riquezas e de sua prudência),
simulou durante algum tempo uma oportuna imbecilidade. Em razão
disso, chamando-se Júnio, foi cognominado Bruto.

LETRA H

24
114. Humilde (humilis), como que inclinado à terra (humus).

115. Honorável (honorabilis), digno da honra (honore habilis)

116. Honesto (honestus), que nada tem de torpe. Pois o que é a


honestidade senão a honra perpétua e a honra estável (honoris status)?

LETRA P

201. Prudente (prudens), como se disséssemos que alguém vê adiante


(porro videns).

207. Presente (praesens) é o que está diante dos sentidos (prae


sensibus), diante dos olhos que são sentidos do corpo.

222. Pérfido (perfidus) é o fraudulento, que não cumpre a palavra, que


perdeu a confiabilidade (perdens fidem) (LAUAND, 2013, p. 105 -
121).

A análise realizada por Isidoro configura-se como uma das grandes obras de
gramática da idade média. Sua preocupação em delimitar a compreensão de cada termo
dentro de uma perspectiva cristã, foram de grande valia à Paideia reformulada, trazendo
mais uma vez o caráter analítico clássico para um viés contextualizado de religiosidade
profunda.
Para além dos enciclopedistas, havia também os ditos “comentadores” de textos
gramaticais. Tais comentadores foram definidos da seguinte maneira por Hugo de São
Vitor (1097 – 1141) em seu Didascalicon:

Dois interesses distintos devem ser reconhecidos e diferenciados em


toda arte: primeiro, como alguém deve tratar a arte em si mesma;
segundo, como deve aplicar os princípios dessa arte em todos os
outros problemas de qualquer gênero. São aqui trazidas à discussão
duas coisas distintas: o tratamento da arte, e depois o tratamento por
meio da arte. Tratamento de uma arte é, por exemplo, o tratamento da
gramática; ao contrário, o tratamento por meio dessa arte é o
tratamento de um problema gramaticalmente. Note-se a diferença
entre estas duas coisas: tratamento da gramática, e tratamento de um
problema gramaticalmente (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p. 50).

A manutenção de tais autores (os enciclopedistas) sem dúvida se caracteriza por


um aspecto ao menos contraditório que pode ser visualizado entre os séculos VIII ao
XII.
Embora ambos os autores como Donato e Prisciano fossem a base de estudos e
discussões para a manutenção da arte gramatical foi possível visualizar uma mudança
essencial das perspectivas dos estudos da gramática. O que antes se caracterizava por
25
um estudo corriqueiro e de preservação linguística, passa a obter novos ares mediante o
período de Renascimento Carolíngio. As falhas interpretativas das sagradas escrituras
de um clero até então mal formado – por vezes semialfabetizado – levaram Carlos
Magno a contratar profissionais oriundos de partes distintas da Europa para elevar o
nível intelectual da casta eclesiástica imperial. Mais do que uma reformulação completa
da formação clerical, as mudanças preconizadas por Magno levaram a gramática para
um caminho de maior orientação teológica e exegética, ou seja, uma reorientação de
teor das fontes clássicas pagãs para uma finalidade coesa e coerente aos preceitos da
Paideia Cristã.
Após o século XII o que se visualiza é uma nova perspectiva da gramática já sob
forte influência dos escritos lógicos. Ou seja, a gramática, que outrora era fortemente
influenciada pela arte retórica, passa a receber totais influências dos escritos de lógica.
Nesta nova esteira a gramática sai de uma função predominantemente descritiva – quase
coercitiva – para adentrar em uma postura mais “perceptiva”. Por essa mudança, a
gramática passou a ser pensada pelo seu caráter lógico e relacional, e não apenas
histórico formal, tal como uma arte que encontra razão em si mesma sem depender de
outras para se autorrepensar (MONGELLI, 1999).
Ao encontrar razão em si mesma, a arte da gramática passa a se inserir por
completa na esfera escolástica da interpretação filosófica, saindo assim da patrística e
compreendendo que cada termo/palavra deve ser interpretada não pelo seu uso
condicionado, mas sim pela sua natureza e função intrínseca à sua criação. No próximo
capítulo, essa perspectiva da nova gramática ficará ainda mais clara, todavia, cabe
salientar neste momento que a organicidade da gramática em si mesma ganha contornos
e nitidez mais profunda com a inserção da lógica em seu interior.
Nesta inserção é possível notar em profundidade a influência da lógica na
gramática a partir das teorias aristotélicas que versaram três problemas sobre a natureza
da linguagem. Tais problemas refletem uma compreensão mais ampla e altamente
filosófica da linguagem em sua relação com o mundo.
O primeiro problema versa sobre a possibilidade de uma gramática universal,
tendo em vista que as ideias gramaticais e a natureza da comunicação são as mesmas em
todas as línguas (MONGELLI, 1999, p. 63). Essa possibilidade de uma linguagem
universal sem dúvida se vê inserida dentro de um contexto cristão em que as
possibilidades de uma única língua e uma única gramática foram encaradas como
possibilidades positivas pela Igreja Católica.

26
O segundo problema cuja inserção da lógica traz à arte gramatical interfere
diretamente na arte retórica. A compreensão de que um discurso necessita de um Vox,
ou seja, o entendimento de que toda oração ou processos discursivos exige a busca dos
agentes envolvidos, revela que a gramática a partir do séculos XI e XII avança em suas
bases originárias de Donato e Prisciano. O Vox presente a partir da lógica estabelece que
em toda a oração “fala-se ‘algo’ de ‘alguém’ ou ‘alguma coisa’”, complementando
assim os aspectos materiais e semânticos da gramática antiga e passando a encará-la em
aspectos mais formais e funcionais de arte (MONGELLI, 1999, p. 64).
O terceiro e último problema se dá em relação ao uso das palavras ao longo da
composição gramatical e discursiva, ou seja, quais são as categorias adotadas para que
uma palavra se estabeleça em relação a outra e como elas, unidas em um todo lógico,
poderão revelar um conteúdo (MONGELLI, 1999, p. 64)12.
Tais estudos, todavia, não se encerravam apenas nos aspectos lógicos da
linguagem, mas também havia a presença de outros textos de Aristóteles em relação a
linguagem e os estudos gramaticais. Tanto o “De animo”, quanto a Física e a Metafísica
de Aristóteles unidas às doutrinas árabes de Alfarabi, Aviceno e Averróis trouxeram
novamente a gramática de uma maneira totalmente relacional à retórica a partir dos
ditos “gramáticos modistas”. Os modistas ampliaram a relação entre gramática e
retórica a partir de uma ampliação da análise discursiva tendo o foco na construção,
congruência e perfeição da arte gramatical. Todavia, o movimento dos gramáticos
modistas que se originou em Bolonha por volta de 1275, não se estabeleceu com força,
sofrendo várias críticas de Guilherme de Ockham e João Aurifaber por seu excesso
analítico. Sem dúvida tais críticas já revelavam um possível retorno à gramática mais
tradicionalista e clássica, ou seja, um renascimento da gramática antiga.

12
A relação apontada se estabelece pela junção das ditas palavras categoremáticas e sincategoremáticas.
Dualidade esta que será explicada no segundo capítulo deste trabalho.

27
1.3 - O Caminho da Retórica

A história da arte retórica no ocidente é sem dúvida marcada por constantes


alterações e permanências que ora revelam o uso quase contínuo da arte em um período
de dois mil anos, como também revela sua depreciação e primazia ao longo de todo este
período.
Já em alguns diálogos platônicos é possível perceber esta dualidade tratativa
quando, em Górgias, Sócrates debate com o próprio, assim como com Cálicles e Polo.
Neste diálogo em especial é possível notar a busca pela natureza da arte retórica,
desassociando-a da prática sofista, muito embora se reconheça nela certo aspecto
persuasivo que lhe é natural. Sócrates em todos os momentos demonstra compreender a
natureza da retórica sabendo o que compõe corretamente um discurso oral.
Tal percepção torna-se ainda mais clara no diálogo Fedro quando Socrátes, ao
encontrar o referido, pede a este que reproduza o discurso proferido por Lísias sobre o
amor.
Curiosamente, ocorre que Fedro opta por querer reproduzir tal discurso apenas
utilizando-se da memória, querendo com isto exercitar as práticas mnemônicas tão
corriqueiras à busca do conhecimento platônico. Todavia, Sócrates encontra o discurso
escrito junto a Fedro e pede que este o leia, sem com isto utilizar-se apenas da memória
para reproduzi-lo.13
O diálogo segue com a exposição de três discursos: o discurso de Lísias que dá
início à discussão e serve como base analítica para o diálogo, o primeiro discurso de
Sócrates que pouco avança em relação ao discurso base de maneira proposital, e um
segundo e último discurso de Sócrates que se contrapõem dialeticamente aos dois
discursos anteriores e avança na discussão sobre a natureza do amor. Não caberá neste
momento expressar o conteúdo de tais discursos, afinal este detalhamento fugiria ao
propósito deste trabalho, entretanto, cabe aqui destacar alguns aspectos essenciais em
relação à arte retórica que o próprio Sócrates busca deixar claro ao longo do diálogo.
Em um determinado momento da exposição, Sócrates expressa que não existe
problema em proferir discursos – mais uma vez tirando da retórica o rótulo de arte
injusta e impraticável sob um aspecto moral –, o problema essencial seria proferi-los de
maneira incorreta. Para este, o falar de maneira correta e com elegância está diretamente

13
Esta exigência de Sócrates revela o nascimento de uma cultura de uma prática escrita em Platão. A
cultura oral cedendo lugar à cultura escrita.

28
atrelado ao conhecimento da verdade e a busca por esta. Diante desta busca, o orador
deverá saber com exatidão o objeto de seu discurso para “persuadir” as pessoas ao
acerto (Bem), pois a retórica é, em síntese, a arte de conduzir as almas por meio de
palavras. Esta condução de almas requer uma série de regras de aplicabilidade da arte
que Sócrates expõe a Fedro, regras estas que, em linhas gerais, permanecem inalteráveis
ao longo de quase dois mil anos 14.
A primeira regra essencial expressa por Sócrates diz respeito ao conhecimento
dos dois caminhos que permeiam o assunto: o caminho concordante e o discordante.
Haverá sobre todo e qualquer assunto a dualidade de opiniões e caberá ao orador
conhecer esses dualismos e distingui-los em seu discurso. Por conseguinte, caberá ao
orador distinguir com exatidão o gênero de seu assunto, sem avançar as cegas para
pronunciá-lo.
Após a compreensão do gênero, ficará a cargo do orador a primordial definição
do objeto tratado. O orador precisa ter muito claro a natureza do que se esta falando
para assim evitar problemas e falhar em sua persuasão, levando as almas para caminhos
incorretos. Nesta recomendação em especial, Sócrates traz a conclusão, a titulo de
exemplificação, que Lísias desconhece a definição de Eros (amor) e por isso comete
sérios erros em seu discurso, afinal, sem a clara compreensão da definição do objeto,
não será possível dar o passo seguinte que diz respeito à disposição correta do discurso
em início, meio e fim. Ao desconhecer a natureza do que está a ser dito, torna-se
impossível dispor um discurso coerente, seguindo uma linha expositiva clara e correta.

Por fim, Sócrates menciona que somente após a definição do objeto e da


disposição do discurso, deve haver a preocupação com a arte da eloquência que deve se
preocupar em:

1) Concentrar numa ideia única uma visão conjuntural de elementos dispersos,


buscando assim uma definição;
2) Dividir as ideias articulando-as naturalmente com o objeto tratado, pensamento e
fala de maneira constante, dirigindo-se assim tanto à unidade quanto à
multiplicidade, dando vida para a dialética.

14
A estrutura exigida para construção de um discurso na Idade média segue, em grande medida, as
recomendações Socráticas da arte. Muito embora haja o acréscimo de algumas partes, tal como será
mencionado no capítulo seguinte, é possível notar que a retórica manteve-se de maneira mais perene que
as outras duas artes triviais.

29
Sendo assim, a eloquência é precedida por um trabalho altamente filosófico que dará
plena sustentação ao discurso retórico. A retórica não é redutível para Sócrates como
uma mera arte de persuasão, mas sim como arte que acompanha o exercício filosófico a
partir de sua busca pela verdade.

Essa busca pela verdade prossegue com o Estagirita Aristóteles e a relação que este
traça entre retórica e dialética a partir de “Arte Retórica”. Para Aristóteles, a relação
estabelecida entre as duas artes se dá pela apresentação das provas e de seus contrários,
tal como exposto na tradução da Arte Retórica de Aristóteles por Antônio Pinto de
Carvalho:

[...] ora, nenhuma das outras artes conclui os contrários por meio do
silogismo, a não ser a dialética e a retórica, porque uma e outra têm
por objeto os contrários. Todavia, as matérias que lhes dizem respeito
não apresentam o mesmo valor, porque o que é verdadeiro e
naturalmente superior presta-se melhor ao silogismo e é mais fácil de
persuadir, absolutamente falando. [...] é manifesto que o papel da
retórica se cifra em distinguir o que é verdadeiramente suscetível de
persuadir do que só o é na aparência, do mesmo modo que pertence à
dialética distinguir o silogismo verdadeiro do silogismo aparente
(ARISTÓTELES, 1964, p.21).

Em Aristóteles a característica da arte retórica ser a arte de persuasão em si


mesma se acentua, todavia, este ampliamento ocorre pela relação direta entre a busca
pela verdade e seu anúncio a partir dos meios comuns à retórica. Os meios comuns à
arte, tal como estrutura Sócrates no Fedro, são retomados por Aristóteles por outra via
analítica:

[...] definamos a virtude do estilo: ela consiste na clareza. Sinal disso é


que, se o discurso não tornar manifesto o seu objeto, não cumpre sua
missão. Além disso, o estilo não deve ser rasteiro nem empolado, mas
convir ao assunto. O estilo poético não peca talvez por ser rasteiro,
mas não convém ao discurso. Entre os nomes e os verbos, os que
comunicam clareza ao estilo são os termos próprios. Evita-se a
baixeza de estilo e dá-se elegância, empregando todos os nomes que
indicamos na arte poética (ARISTÓTELES, 1964, p.189).

Esses preceitos socráticos e aristotélicos permearam em grande medida a


compreensão retórica ao longo de toda idade média como já mencionado. Todavia,
havia em Roma uma predominância da arte retórica em relação às demais que a

30
caracterizava propriamente como a arte persuasiva a quem a convém, algo também já
mencionado.
A retórica em Roma possui um capítulo importante de sua história com o
15
primeiro tratado de retórica, o Rhetorica ad Herennium de Marco Túlio Cícero .A
partir deste primeiro tratado, a retórica passa a sair da mera vulgaridade e persuasão
negativa, vinculando-se de maneira mais direta com a gramática e a poesia
(MONGELLI, 1999, p. 86).
Cícero se caracteriza como a fonte mais importante para o estudo da retórica ao
longo da idade média. Além de sua obra Rhetorica ad Herennium, escreveu De oratore,
De inventione, De optime genere oratorum, Topica, De fato, Paradoxa Stoicorum, De
Partitione Oratoria, Brutus e Orator (MONGELLI, 1999, p. 87). Em especial no De
invetione, Cícero analisa um dos aspectos mais importantes, quiçá fundamentais, da
estrutura retórica que diz respeito à invenção e disposição correta dos termos para a
construção discursiva, assim como no De Oratore em que a elocução e enunciação
discursiva são tratadas de maneira aprofundada (MCLUHAN, 2012, p.88). Tanto a
invenção como a enunciação se caracterizam como as etapas primordiais para a
efetivação da arte retórica e exatamente por esta importância que tais obras foram
fundamentais para o estudo da retórica até o período da renascença (MONGELLI,
1999).
Até então apartada de um estudo mais conectado, a arte retórica romana se vê
modificada com a figura de Cícero. O estudante de retórica a partir de então passa a
realizar leituras mais extensas visando a repetição dos modelos clássicos discursivos, a
compreensão de sua composição e as possibilidades de refutação de seu conteúdo.
A prática da refutação e da retórica ganha ainda mais força com outro importante
intelectual , Marco Fábio Quintiliano. Junto a Cícero, Quintiliano constituiu um dos
autores fundamentais para o estudo da retórica ao longo da idade média. Com a junção
da retórica grega , filosofia e a poesia ciceroniana, Quintiliano consegue incluir no
currículo romano de ensino o estudo da retórica desde muito cedo. A partir de sua obra
Institutio oratória, Quintiliano aprofunda a perspectiva de imitação dos clássicos e
desenvolve ferramentas mnemônicas que mais tarde foram utilizadas pela Igreja para a
compreensão e reprodução a partir da memória dos saltérios bíblicos. De maneira
contraditória, mais uma vez, as ferramentas utilizadas para o ensino medieval derivam

15
Marco Túlio Cícero – Cônsul da república romana em 63 a.C .

31
em grande parte de autores pouco mergulhados – para não dizer pagãos – no
Cristianismo (MONGELLI, 1999, p. 88 - 89).
A relação da retórica com o Cristianismo passa sem dúvida a se estabelecer de
maneira mais direta com Santo Agostinho (cuja base de estudo para retórica fora
ciceroniana). A retórica passa a ser encarada a partir de Agostinho como forma de
doutrinação e argumentação para a salvação dos Cristãos. O discurso coerentemente
ordenado com as sagradas escrituras permitiria o convencimento e a salvação de almas,
trazendo finalmente a retórica para um campo fora de sua possível prática passível de
erros morais. Para Agostinho era de fundamental importância que o professor Cristão
estimulasse as artes liberais em seus alunos a partir dos estudos apologéticos,
defendendo a verdadeira fé e refutando o erro herético e pagão.
No excerto abaixo é possível acompanhar um breve discurso (sermão) de
Agostinho quando Roma fora saqueada em 430 por Alarico, o Visigodo. Agostinho
aplica as invenções e as disposições Ciceronianas de uma maneira cristã, realizando seu
discurso e atingindo seu objetivo junto ao público: alertar sobre a devastação do
império:

“Ah! Se nossos olhos pudessem ver as almas dos santos que nessa
guerra foram mortos, veríeis como Deus poupou a cidade. Pois
milhares de santos descansam em paz, felizes, e dizem a Deus: "Nós
Vos damos graças porque nos livrastes das tribulações da carne e dos
tormentos. Nós Vos damos graças porque já não tememos os bárbaros,
nem o diabo, nem a fome, nem a tempestade, nem os inimigos, nem os
tribunais perseguidores da fé, nem os opressores. Estamos mortos na
terra, mas imortais ante Vós, salvos no Vosso reino, por graça Vossa e
não por mérito nosso".

Qual a cidade que, em sua humildade, fala desse modo? Ou


porventura considerais que uma cidade é feita de pedras e de paredes?
A cidade são os homens e não as casas! Se Deus tivesse dito aos
habitantes de Sodoma: "Fugi, pois vou incendiar este lugar", não lhes
atribuiríamos mais mérito se fugissem e o fogo do céu destruísse
somente suas muralhas e suas casas? Não teria Deus poupado a
cidade, se os cidadãos tivessem escapado aos efeitos devastadores
daquele fogo?” (LAUAND, 2013, p. 26).

O trecho acima possui algumas peculiaridades importantes quando analisadas a


partir da retórica Ciceroniana e seu caráter cristianizado em Santo Agostinho.
A invenção de alguns termos que permeiam boa parte do discurso deixa claro o
direcionamento que será dado ao mesmo e o efeito a ser causado nos ouvintes. As
invasões bárbaras mataram “santos” e não propriamente homens comuns. Os cristãos,
32
ao serem assassinados por povos pagãos, assemelham-se aos mártires perseguidos dos
primeiros séculos de cristandade, e por isso são denominados como “santos”. Nota-se
que o termo “homem” no lugar de “santo” não produziria o mesmo efeito retórico,
sendo assim, a invenção do termo não somente produz um apelo popular cristão maior,
como dualiza os processos não somente entre vítimas e agressores, mas entre cristãos e
povos não cristianizados.

O termo “santo” não somente proporciona o dualismo, ele engendra em outros


termos contidos no sermão aspectos negativos que irão determinar claramente a
disposição ciceroniana do discurso. Ao utilizar palavras divinas, dispõe-se, em um
segundo momento, termos que realizam uma analogia entre os povos bárbaros e todos
os aspectos ruim que deles podem derivar. O bárbaro assemelha-se ao diabo, à fome e à
tempestade, termos propositalmente colocados para gerar dualismos. A cidade cristã
está sendo atacada pelos males diabólicos e não existe hora de maior manifestação e
confirmação da fé cristã do nos momentos de conflito.

É possível também verificar em São Cesário de Arles tais prerrogativas em seu


sermão para os homens do campo de Arles. Também um homem cristão, utilizando as
categorias pagãs de invenção e disposição da arte retórica:

“E ainda que eu creia que, com a ajuda de Deus e graças a vossos


esforços, erradicados estão daqui aqueles desgraçados costumes
herdados do paganismo, no entanto, se ainda souberdes de alguém que
pratique a torpeza sordidíssima das annicula ou do cervulus,
repreendei-o severamente para que se arrependa de ter cometido
sacrilégio. E, se conhecerdes quem ainda lança clamores à lua nova,
exortai-o e mostrai-lhe quão grande é este pecado de ousar confiar-se
à proteção da lua - que, simplesmente, por ordem de Deus, esconde-se
de tempos em tempos - por meio de seus gritos e imprecações
sacrílegas.

E se virdes alguém dirigir votos junto a fontes ou a árvores e ir


procurar, como já dissemos, charlatães, videntes e adivinhos, pendurar
no próprio pescoço - ou no de outros - amuletos diabólicos, talismãs,
ervas ou âmbar, repreendei-o duramente, dizendo que quem cometer
estes males perderá a consagração do Batismo.

Ouvi dizer que ainda há certos homens e mulheres tão assolados pelo
diabo que, às quintas-feiras, não fazem eles seus trabalhos nem elas
fiam. Diante de Deus e de seus anjos, nós os admoestamos: todo
aquele que persistir nessas observâncias, e não expiar por dura e longa
penitência esse grave sacrilégio, será condenado ao fogo em que arde
o demônio. Esses infelizes e miseráveis que não trabalham às quintas-

33
feiras, em honra de Júpiter, são os mesmos, não duvido, que não
temem nem se envergonham de trabalhar aos domingos. Se
conhecerdes algum desses tais, repreendei-o duramente e, se ele não
quiser se emendar, não o admitais em vossa mesa nem em vosso trato.
Se são vossos escravos, castigai-os com o açoite: que temam a chaga
do corpo, já que não se preocupam com a salvação de sua alma
(LAUAND, 2013, p. 47 - 48).

Os avanços históricos ao longo das invasões bárbaras não proporcionaram


muitos avanços ao que já fora mencionado por Platão, Aristóteles, Cícero e Quintiliano
em relação a retórica. Havia uma aplicabilidade Cristã da arte retórica, mas
estruturalmente não se alterou em demasia as fontes pagãs. Mesmo o período
carolíngio, período este de grande avanço cultural e reestruturação educacional, não
avançou além da cultura clássica e da Patrística (LE GOOF, 1986, p.166). Alcuíno de
York, por exemplo, intelectual de alta confiança de Carlos Magno trocava diálogos
fictícios com seu monarca de procedência ciceroniana para realçar certas virtudes
cristãs, em uma clara união dos dois momentos retóricos que constituíram em grande
proporção o Trivium.

Mesmo nos séculos XI, XII, XIII já com o surgimento das universidades, foi
possível perceber apenas um revigoramento dos clássicos da arte retórica já
mencionados. Muito embora a gramática ainda se veja em grande debate no período,
não havia na retórica a mesma dinâmica dialética. Se houve, neste sentido, uma arte
constante e perene do Trivium ao longo da antiguidade e idade média, esta arte foi sem
dúvida a retórica. A arte que anuncia verdades, verdades estas obtidas em um período
bem especifico a partir da terceira e última arte do Trivium: a arte lógica.

1.4 - O Caminho da Lógica

Em relação ao caminho da arte lógica em especial, caberá uma proposta


diferente da adotada até aqui pelo aspecto temporal da análise. Se em relação as duas
artes anteriores fora possível identificar os principais pontos de influência ao longo da
antiguidade/idade média para composição do conteúdo das artes, em relação a lógica
não é possível realizar tal procedimento.
A lógica que compõe o Trivium é, em sua essência, a lógica aristotélica, ora
empregada de maneira fragmentada , ora empregada em plenitude conforme o período

34
em destaque. O conteúdo da lógica aristotélica será tomado em maiores detalhes no
segundo capítulo deste trabalho, cabendo agora apenas apontar os caminhos gerais dessa
arte que compõem uma das artes triviais.
Os estudos de lógica que compuseram o Trivium ingressaram na idade média
através Boécio16 e Martianus Capella17. Ambos, sendo apreciadores de Aristóteles e
importantes membros de ensino das artes liberais, retransmitiram a arte dentro de uma
perspectiva cristã a partir do estudo das formas de pensamento e de argumentação. Por
essa transmissão, na idade média entendia-se a lógica como a arte de pensar
corretamente, seguindo um conjunto de regras e operações que permitiam realizar
afirmações com clareza, sobretudo as afirmações divinas (MONGELLI, 1999, p. 117-
118).
Todavia, por estas afirmações, nota-se que até o século IX a lógica fazia-se
diluída na gramática e na própria retórica, ora tomada por Alcuíno, Martianus e
Cassiodoro em relação ao todo conjuntural do ensino cristão, ora tomado
exclusivamente como ferramenta de discernimento retórico. A individualidade propícia
à lógica seria visualizada com o tempo a partir do avanço das traduções Aristotélicas
somadas aos comentários de Boécio ao Organon do estagirita18.
Diante dessa propagação, o que se visualiza é uma transmissão de um legado
clássico baseado profundamente na lógica aristotélica até o século XII com Pedro
Abelardo e Santo Anselmo, dentro de um contexto pré- escolástico. Do caminhar do
século IX de Carlos Magno até o século doze, se visualiza a cada medida uma maior
inserção da lógica nas artes liberais, cada vez mais presente, mesmo que de maneira
relacional – embora já se desvinculando –, na gramática e na retórica (MONGELLI,
1999, p. 120).
A lógica ainda está atrelada à finalidade dialética de separação e identificação de
termos corretos e incorretos para a efetivação do discurso retórico. Há ainda no período
pré-escolástico uma força retórica que sobrepuja as demais artes para seu ambiente,

16
Anício Mânlio Torquato Severino Boécio – Filósofo romano que traduziu obras de Porfirio e
Aristóteles ao longo do século V - VI d.C.
17
Martianus Minneus Felix Capella – Filósofo latino que estudou e estruturou de maneira geral as artes
liberais no século V d.C.
18
Há nessa transmissãoda lógica certas minuciosidades de influência estoicas e neoplatônicas que sem
dúvida não podem deixar de ser mencionadas. Todavia, este capítulo se propõe a expor de maneira geral
os aspectos principais de cada arte, cabendo ao terceiro e último capítulo deste trabalho um fechamento
de certas particularidades dos caminhos do método Trivium e sua composição fina.

35
ampliando ainda mais seus recursos. Tal situação se vê representada no sermão de
Bernardo de Claraval19 sobre o Conhecimento e a Ignorância:

[...] Tinha vos anunciado o tema do sermão de hoje: a ignorância, ou


melhor, as ignorâncias, porque, como lembrais, há duas ignorâncias: a
de nós próprios e a de Deus. E vos aconselhava a evitar uma e outra,
pois ambas são perdição.

Hoje, procuraremos esclarecer melhor esse assunto. Antes, porém,


discutiremos se toda ignorância é condenável. Parece-me que não,
pois nem toda ignorância produz perdição: há muitas e mesmo
inúmeras coisas que se podem ignorar sem problema algum para a
salvação.

Se alguém, por exemplo, desconhece artes mecânicas, como a


carpintaria, a arte de edificação e outras que são exercidas para a
utilidade da vida neste mundo, acaso tal ignorância constitui obstáculo
para a salvação?

Também são muitos são os que se salvaram e agradaram a Deus pela


sua conduta e com seus atos sem as artes liberais (e, certamente, são
úteis e moralmente bons esses estudos). Quantos não enumera
a Epístola aos Hebreus (cap. XI), que se tornaram agradáveis a Deus
não com erudição, "mas com consciência pura e fé sincera" (I Tim 1,
5)2. E agradaram a Deus com os méritos de sua vida e não com os de
seu saber. Cristo não foi buscar Pedro, André, os filhos de Zebedeu e
todos os outros discípulos, entre filósofos; nem em escola de retórica
e, no entanto, valeu-se deles para realizar a salvação na terra
(LAUAND, 2013, p. 263).

Nota-se no discurso de Bernardo de Claraval a clara intuição retórica da


persuasão, todavia, o discurso em muitos momentos se vê impregnado por uma
preocupação lógico-dialético de esclarecimento dos termos e suas relações. O que é
ignorância? Quais são os tipos de ignorância? Todas são boas ou más? Perguntas estas
que somente o exame lógico poderá responder, passos estes que podem ser anunciados
na arte retórica, mas nunca determinados por ela mesma.

A partir da lógica predominantemente escolástica, o que se visualiza é uma total


autonomia da arte lógica em si mesma, inclusive estendendo seu grau de influência em
outras artes tal como mencionado em relação à gramática. A base dessa lógica
escolástica que compõem o Trivium é em síntese a redescoberta total e irrestrita de
Aristóteles. Desde as bases teóricas das proposições até a compreensão silogística, o
que se visualiza é um ensino de lógica estruturado e coeso com as demais artes liberais.
19
Bernardo de Claraval – Abade Francês do século XII que travou uma conhecida disputa com Pedro
Abelardo entre conhecimento teológico e validação lógica das proposições argumentativas.

36
Essa organicidade que a lógica proporcionou será mais bem visualizada no próximo
capítulo que terá como objetivo demonstrar o funcionamento do Trivium a partir dos
aspectos gerais apontados nesse capítulo introdutório.

37
2 – O Encontro dos Três Caminhos

2.1 - Prolegômenos

Tendo explorado no primeiro capítulo a formação do Trivium em seu aspecto


histórico-filosófico, cabe agora trazer uma exposição mais prática - ou sintética em um
sentido metodológico - das artes liberais medievais. A proposta principal deste capítulo
é apresentar o conteúdo de cada uma das artes estruturantes do Trivium realçando a
organicidade e os pontos de convergência entre elas.

Em meio à profusão de concepções apresentadas anteriormente, é possível


perceber que há uma ordem silenciosa que perpassa todo um período conturbado e
realiza sua potencialidade no reencontro com o que outrora houvera sido o ápice da
filosofia grega. Nesse sentido, como um prolegômeno, este segundo capítulo exige
algumas análises e exposições preliminares que podem auxiliar na sua compreensão,
evitando assim que se torne solto e “descartável” da sequência expositiva já estabelecida
no primeiro capítulo. Essa preocupação vem à tona pela bibliografia utilizada para sua
escrita, pois se trata de uma obra que não corresponde diretamente a uma exposição de
História da educação, mas sim na proposta e tentativa de revitalização de um método de
ensino utilizado há mais de sete séculos.

A obra chave utilizada para este capítulo é o livro “O Trivium: As artes liberais
da lógica, gramática e retórica” da Irmã Miriam Joseph (1898-1982), obra publicada
originalmente nos Estados Unidos com o título “The Trivium in College Composition
and Reading”, em 1937, e com tradução para a língua portuguesa realizada em 2008
pela editora ÉRealizações. O livro na verdade é um “texto-guia” desenvolvido pela
própria Irmã Miriam Joseph nos vinte e cinco anos em que esta lecionou o Trivium no
Saint Mary’s College em South Bend, Indiana.

Graduada em Jornalismo com doutorado em Inglês e literatura comparada pela


Columbia University, Miriam Joseph toma contato com o filósofo aristotélico e escritor
americano Mortimer Adler20 em 1935. Ao lado de Adler, Miriam Jospeh começa a
estudar com maior profundidade as artes liberais de ensino para aplicá-las na proposta

20
Mortimer Jerome Adler (1902-2001) foi o principal expoente da liberal education nos Estados Unidos,
tendo escrito vários livros sobre educação na paideia grega e o ensino a partir da leitura dos clássicos da
literatura.

38
curricular do Saint Mary’s College, tendo como objetivo principal preparar
intelectualmente os estudantes ingressantes da universidade.

Com fins práticos e pedagógicos, Miriam Joseph escreve a obra de “The Trivium
in College Composition and Reading” em 1937, fornecendo um estudo aprofundado
sobre o funcionamento das artes liberais de ensino e buscando melhorar a capacidade de
leitura, fala e escrita dos alunos participantes da disciplina. A prática obteve êxito
imediato, de tal forma que o curso “The Trivium” foi sendo lecionado ano após ano pela
irmã Miriam Joseph ao longo de vinte e cinco anos ininterruptos, e permanecendo,
mesmo após sua saída do college e seu falecimento em 1982, como curso introdutório
obrigatório da instituição 21.

O livro “The Trivium” em suas várias edições após a primeira publicação possui
uma característica até então inédita, pois enquanto a maioria das obras que falam sobre
o Trivium se apegam há uma narração histórica, quase que predominantemente
descritiva, tratando a temática de forma longínqua22 e de pouca influência em nossa
contemporaneidade, ele busca revitalizar o que há de mais permanente e coeso nas três
artes liberais com a finalidade de reaplicá-las enquanto proposta de formação
intelectual. Há implícito na proposta da irmã Miriam um esforço em realçar uma
organicidade do Trivium com fins exatamente práticos.

Como este capítulo se propõe a apresentar o conteúdo de ensino de forma


orgânica e unívoca, demonstrando assim um desenrolar dialético da constituição
curricular das três artes, efetivamente não poderia abrir mão da obra da Irmã Miriam
Joseph. Entretanto, por ser uma obra do século XX com finalidades pedagógicas, é
imprescindível dizer que a autora, em pose plena do método e do funcionamento das
artes liberais, utiliza muitas vezes exemplos mais contemporâneos para expor o
funcionamento do Trivium. Para não fugir demasiadamente da análise desenvolvida no
primeiro capítulo de forma contextual, tentarei centrar sempre o método em vistas do
que já foi apresentado, ou seja, tentando exemplificar determinadas questões
apresentadas a partir temáticas mais próximas da educação medieval. Quando isto não

21
Até o momento de escrita desta dissertação, tanto o Trivium, quanto o Quadrivium continuam sendo
cursos obrigatórios a todos os ingressantes do Saint Mary’s College. Cabe salientar também que outras
instituições, a partir da prática iniciada no Saint Mary’s, passaram também a incorporar o ensino das artes
liberais em suas dependências.
22
Essa questão possui relação com a breve análise desenvolvida acerca das produções historiográficas e
as concepções de escrita da História na introdução deste trabalho.

39
for possível, seja por ausência referencial e documental, ou para não fugir da coesão e
da clareza do exemplo citado no livro, tentarei apresentar os aspectos gerais (essenciais)
do método, pois o intuito desde capítulo é exatamente este: revelar o funcionamento do
método de ensino e seu conteúdo de forma sintética e o quanto este se torna coeso em
unidade mesmo após os conflitos históricos e epistemológicos demonstrados no
primeiro capítulo.

Ainda nessa primeira análise preliminar, cabe destacar que a partir dessas
características, o presente capítulo possui a potencialidade de tornar-se uma breve aula
de gramática, lógica e retórica. Se esta percepção vier a ser verdadeira ao leitor, o
objetivo do capítulo também terá sido obtido. Em linhas gerais, o nosso estudo
contemporâneo de gramática e lógica foge muito pouco dos apresentados pelo Trivium,
e isso revela o quanto ainda somos influenciados pela cultura clássico-medieval.

A segunda análise preliminar a ser realizada diz respeito à natureza das artes
liberais enquanto proposta formativa humanizadora. Há no Trivium uma concepção de
estudos de caráter “intransitivo”, ou seja, que centraliza seus esforços
predominantemente no sujeito, em seu pensamento e relacionamento com a realidade.
Essa centralização no indivíduo demarca uma separação fundamental entre as
perspectivas educacionais na idade média, no caso entre uma educação para fins
práticos e uma outra educação para fins intelectuais, cada uma delas em espaços e
contextos sociais distintos como já mencionado no primeiro capítulo. A Irmã Miriam
Joseph utiliza a seguinte analogia para esclarecer melhor as distinções entre essas
perspectivas formativas: “O carpinteiro aplaina a madeira [caráter transitivo]. A rosa
floresce [caráter intransitivo]” (JOSEPH, 2008, p.23).

Na concepção utilitarista de educação (representada de forma análoga na frase


de verbo transitivo) a ação começa no sujeito, mas “cruza” ele e termina no objeto. O
carpinteiro não “aplaina” a si mesmo, mas sim um objeto, que no caso é a madeira.
Nesta concepção utilitarista de educação, a ação do homem acaba por fugir dele mesmo
por ser uma atividade com objetivos finais externos ao próprio homem, ao ponto de a
23
ação começar nele, mas ao final não permanecer mais e se finalizar no objeto. Esse
tipo de perspectiva educacional se vê representada, no contexto medieval, pelas

23
Essa concepção utilitarista não possui uma relação direta com a problemática da apropriação do
trabalho na perspectiva marxiana. A ação da qual fala a irmã Miriam Joseph não possui uma preocupação
inicial com a dita “atividade vital” humana, embora seja possível aprofundar nessa análise.

40
corporações de ofício originadas na Baixa Idade Média (MANACORDA, 2010, P.199),
denotando claramente os polos contrários estabelecidos para cada tipo de formação:
uma para o trabalho manual e outra para vida clerical/intelectual.

Em contrapartida, a concepção das artes liberais - portanto, do Trivium - possui a


característica de ser uma forma de estudo intransitiva, isto é, em que a ação começa no
sujeito e termina permanecendo nele mesmo, não havendo uma “fuga” de
desenvolvimento formativo do homem. O fato de a rosa florescer revela que há nela
essa potencialidade, tal como há no homem a potencialidade de desenvolver plenamente
sua natureza humana. No caso do homem, esse desenvolvimento ocorre prioritariamente
pela aquisição de conhecimento, mas não qualquer conhecimento, mas sim aquele que
permanece no indivíduo e fornece bases para a aquisição de novos conhecimentos 24.

Nesse dualismo propositivo, a principal diferença entre ambas revela-se na


concepção de educação. Enquanto há na concepção utilitarista uma imposição de ideias
e ideiais sobre a matéria, afinal as artes utilitaristas, independente de beleza e
importância, atuam na matéria e produzem um produto final para as mais diversas
finalidades, há no Trivium também uma imposição de ideias e ideais, mas estes voltados
para a mente de forma unificada e orgânica. 25

Nesse sentido, há no Trivium uma organicidade que se vê representada na união


das três artes da gramática, lógica e retórica em busca da verdade. As três artes isoladas
não se unem entre si, como já foi detalhado no capítulo anterior, mas quando as três
possuem um objetivo em comum que é a busca pela verdade, elas se encontram na
consciência humana e desenvolvem o ser em plenitude, possibilitando a este uma vida
racionalmente clara. Esta união e esses objetivos podem ser encontrados no seguinte
trecho da obra “Discálicon” de Hugo de São Vítor, quando analisados em vista à
retórica de Aristóteles:

24
Quando se fala em “conhecimento permanente” no Trivium há um apego inegável aos conhecimentos e
aos autores clássicos. Como já mencionado no primeiro capítulo, mesmo em contradição, os cristãos
medievais assimilarem os clássicos gregos e romanos incorporando-os ao Trivium.
25
Nas próprias sete artes liberais há uma distinção entre as consideradas “artes da mente” e as “artes da
matéria”. Enquanto o Trivium (gramática, lógica e retória) se refere ao treinamento da mente, o
Quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia) se refere ao treinamento do corpo para uma
atuação material, porém atuação distinta da concepção utilitarista (JOSEPH, 2008, p.21).

41
A gramática é a ciência do falar sem erro. A dialética é a disputa
aguda que distingue o verdadeiro do falso. A retórica é a disciplina
para persuadir sobre tudo o que for conveniente (HUGO DE SÃO
VÍTOR, 2001, p.129).

A linguagem possui fator determinante na distinção entre silogismos verdadeiros


e falsos, validades ou não averiguadas pela lógica. Obviamente, o que é verdadeiro
possui maior poder de persuasão, pois o verdadeiro é naturalmente superior ao falso.
Em busca da verdade, a gramática prepara as bases para a verificação lógica, que por
fim será anunciada pela retórica. O funcionamento desse processo será melhor
esclarecido com a sequência do capítulo.

O caráter intransitivo do Trivium liga-se a uma “chave” central que é a


linguagem humana. Sem uma análise da linguagem é impossível compreender certos
aspectos da atuação humana, mais precisamente dos processos educativos que visam
aquisição de conhecimento. Algumas passagens do diálogo platônico “Crátilo” e do
Gênesis bíblico elucidam essa problemática:

Cratylus: To give instruction, Socrates. After all, the simple truth is


that anyone who knows a thing's name also knows the thing.

Socrates: Perhaps you mean this, Cratylus, that when you know what
a name is like, and it is like the thing it names, then you also know the
thing, since it is like the name, and all like things fall under one and
the same craft. Isn´t that why you say that whoever knows a thing’s
name also knows the things?

[...] Socrates: So, If things cannot be learned except from their names,
how can we possibly claim that the name-givers or rule-setters had
knowledge before any names had been given for them to know?

Cratylus: I think the truest account of the master, Socrates, is that a


more than human power gave the first names to thing, so that they are
necessarily correct (COOPER, 1997, p. 151; 153)26.

26
Trechos extraídos das Obras completas de Platão (Plato - Complete Works) editado por John Madison
Cooper.

42
O desenrolar do diálogo entre Sócrates e Crátilo culmina na crítica do primeiro
aos princípios Heraclatianos manifestados por Crátilo, entretanto, o objetivo neste
momento não é o de aprofundar na sequência do diálogo, mas sim o de demonstrar
apenas parte da problemática. Nota-se a importância dada à linguagem na compreensão
da realidade, mais propriamente no nomeamento dos objetos da realidade. Crátilo
compreende que o conhecimento do nome de algo permitirá também o conhecimento de
sua essência (caindo em contradição por ser Heraclitiano 27). Procedendo em busca da
verdade, Sócrates levanta o problema da ordem do conhecimento sabendo que a
presença de um nome requer um nomeamento inicial a partir de um conhecimento
anterior ao próprio processo de conceituação, apontamento este respondido com um
argumento metafísico por Crátilo.

Em que tange à perspectiva do Trivium medieval sobre a linguagem, Crátilo não


está totalmente errado. O nome de uma coisa deve revelar muito de sua função e de seu
conteúdo, mas o problema levantado por Sócrates faz todo o sentido enquanto
indagação filosófica, e também haverá no Trivium uma tentativa de explicação
concomitante a compreensão de um dos trechos bíblicos mais emblemáticos acerca da
linguagem:

Iahweh Deus modelou então, do solo, todas as feras selvagens e todas


as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as
chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. O
homem deu nome a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras
selvagens (Gn 2, 19-20).

A criação coube a Deus, mas houve para o homem uma participação efetiva
nesse processo através do reconhecimento da natureza das coisas e da possibilidade de
nomeá-las e assim desvendar o mundo criado por Deus. Segundo Marshall Mcluhan
(2012, p.30), quando Deus permite a Adão o poder de nomear as coisas este já possuía
um alto grau de conhecimento metafísico que só veio a perder com sua queda. Após a
queda pelo dito “pecado original”, coube à humanidade a tarefa de retomar pelas artes
esse poder de nomeamento, leitura e tradução da criação divina. Este é um dos
pressupostos do Trivium: é preciso conhecer o mundo que já está posto e não criar um
novo mundo com intenções pedagógicas, mas este empreendimento exige determinadas

27
O devir de Heráclito estabelece que a essência é fluída mesmo que a aparência de algo
permaneça(ANTISERI; REALE, 1990 , p. 35-36). Conhecer a essência para um Heraclitiano como
Crátilo é cair em contradição.

43
“chaves” ou preparo intelectual que somente uma perspectiva intransitiva de educação
possibilitará. O fato de o homem tender ao conhecimento, tal como Aristóteles anuncia
em sua Metafísica, está também atrelada à busca do Trivium pelo conhecimento da
natureza manifestada, e essa tentativa de compreensão não pode partir do homem e
terminar em algo exterior a ele, mas deve sim partir dele e nele permanecer, pois o
conhecimento verdadeiro em momento algum deve sair do homem – ou sequer deveria
ter saído tal como ocorreu com Adão. O fato de o homem ter que viver de seu próprio
trabalho a partir da queda revela que a busca pelo conhecimento deverá ser feita em
caminhos árduos e tortuosos, pois ao perder pecaminosamente seu alto grau de
conhecimento, o caminho de reconquista também deverá ser um caminho de
reconciliação com Deus28. Essa nova preocupação de existência material do homem faz
com que exista uma concepção de conhecimento utilitarista requerida para a
subsistência material do homem. Uma forma de conhecimento nem correta e nem
incorreta, mas apenas distinta do conteúdo que caracteriza o Trivium, ou do tipo de
conhecimento do qual Aristóteles comenta. Um conhecimento de apreensão e
compreensão da natureza a partir do uso da linguagem.

O Trivium enquanto proposta educacional baseia-se nas ditas três artes da


linguagem: gramática, lógica e retórica. Essas três artes se definem conforme se
relacionam entre si ou com a realidade (JOSEPH, 2008, p. 27). Enquanto a gramática
trata de algo tal como ele é simbolizado, a lógica trata de como ele é conhecido e a
retórica, por sua vez, de como ele é comunicado. A Irmã Miriam Joseph traz um
exemplo fundamental para compreender o funcionamento de cada uma das artes de
forma isolada, mas também relacional:

A descoberta de Plutão, em 1930, ilustra a relação entre a metafísica e


as artes da linguagem. O planeta Plutão já era uma entidade real,
percorrendo a sua órbita em torno do Sol há muitos e muitos milênios,
por nós desconhecidos e, portanto, sem nome. A sua descoberta em
1930 não o criou; porém, ao ser descoberto, tornou-se uma entidade
lógica. Quando lhe foi dado o nome “Plutão”, tornou-se uma entidade
gramatical. Quando, por seu nome, o conhecimento dessa entidade foi
comunicado a outros através da palavra falada e escrita, o planeta
Plutão tornou-se então uma entidade retórica (JOSEPH, 2008, p.28).

28
Embora não possua relação direta com a temática tratada, cabe lembrar o problema da patrística em
relação às seitas gnósticas dos primeiros séculos da era cristã. A substituição da fé em Jesus Cristo pelo
conhecimento (gnosis) foi a característica principal dos movimentos de Cerinto, Basílides e Valentino
(COPLESTON, 1971, p.25-32). A aquisição do conhecimento proposta pelo Trivium medieval é uma
contemplação consciente, concepção distinta, em linhas gerais, ao gnosticismo dos séculos iniciais.

44
Há muito a se destacar em relação ao Trivium nesse trecho. O primeiro ponto diz
respeito entre a relação da metafísica com as artes da linguagem. A realidade já está
dada e o não conhecimento de algo contido nela faz parte do reino metafísico. O fato do
homem não conhecer Plutão antes de 193029 não implica na não existência do mesmo.
Além de um erro metafísico, esta concepção poderia atribuir ao homem o poder de
criador de todas as coisas, trazendo à existência coisas antes inexistentes, e a linguagem
não possui este poder no Trivium tal como possui nas análises linguísticas mais
contemporâneas. O Trivium passa a operar a partir de um determinado tipo de
conhecimento (isto será mais bem exposto adiante) e a partir desse momento as artes
começam a operar de forma dinâmica e coesa. Quando se descobre a existência de algo,
este cai no campo lógico-dialético em que será possível averiguá-lo trabalhando-o com
a finalidade de determinar sua natureza. Após essa etapa, virá o processo de definição
ou conceituação em que a entidade lógica torna-se gramatical e, por fim, quando se tem
uma entidade gramatical torna-se possível sua anunciação.

O anúncio da entidade gramatical através da retórica foi o objetivo final do


Trivium na idade média, mais do que isso, a retória é a arte mestra do Trivium, pois há
implícita nela as construções gramaticais e lógicas (JOSEPH, 2008, p.28). Ao final,
mais importante do que a busca pela verdade é o seu anúncio em caso de descoberta. O
anúncio de uma verdade através da retórica é a corroboração da afirmação de Jesus
Cristo em João 8,32 (Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará), pois quem
conhece a verdade não deve retê-la para si, mas sim propagá-la, e por isso a retórica
possui grande força nos anos iniciais de Cristianismo e permanecendo soberana por toda
a Alta e Baixa Idade Média.

2.1.1 - Sobre a natureza da linguagem no Trivium

A partir dessas considerações, cabe ressaltar que o Trivium compreende a


linguagem humana e o processo de nomear como algo preponderantemente humano,
pois:

29
O Planeta foi descoberto em 18 de fevereiro de 1930 por Clyde Tombaugh, um astrônomo norte-
americano.

45
[...] Uma vez que somos racionais, pensamos; porque somos sociais,
interagimos com outras pessoas; sendo corpóreos, usamos um meio
físico. Inventamos símbolos para expressar a gama de experiências
práticas teóricas e poéticas que constroem a nossa existência. Palavras
permitem deixar um legado de nossa experiência para deleitar e
educar aqueles que nos sucederem. Por usarmos a linguagem,
engajamo-nos num diálogo com o passado e com o futuro (JOSEPH,
2008, p.17).

O ser humano possui dois modos específicos de comunicação, um simbólico e o


outro por imitação (JOSEPH, 2008, p.32). Enquanto a imitação se baseia em aspectos
artificiais, limitados e ausentes de essência, embora ainda assim importantes como
forma de contato para um estilo definido, os símbolos são convencionalmente
suscetíveis à percepção e captam com maior profundidade os pensamentos, emoções e
sentimentos expressados pelo homem. Essa característica dos símbolos permite, tal
como a Irmã Miriam Joseph citou, que as palavras deixem um legado de experiência
dos emissores originais, e torna-se evidente afirmar que o avanço da humanidade só foi
possível pelo acúmulo e pela representação dessas experiências, carregadas de valores,
assim como é inegável que a capacidade de expressar e manter símbolos é fundamental
para a permanência de toda e qualquer cultura humanizada.

Essas experiências ganham concretude de manifestação quando adquirem um


signo (matéria) e um significado convencional (forma), culminando em um símbolo.
Quando o símbolo possui expressão na linguagem oralizada sua matéria torna-se o som
(mais corretamente conhecido por fonética), já na linguagem escrita, sua matéria torna-
se o sinal (mais corretamente conhecido por ortografia). Em ambas, a forma é a
semântica, ou seja, o significado do que foi expresso (JOSEPH, 2008, p.36).

Ao entrarmos no campo dos símbolos, é preciso compreender que na Idade


Média linguagem e realidade se mesclam de tal forma que se tornam inseparáveis.
Analisar a linguagem é analisar a realidade, e analisar a realidade é analisar a
linguagem. Essa característica filosófica sustenta-se no Trivium pela compreensão de
que as essências podem ser significadas pelas palavras (ou símbolos no caso) a elas
referenciadas, e essa consideração possibilita a organicidade das artes liberais.

No Trivium, essência é: “aquilo que faz o ser ser o que ele é, e sem o quê, não
seria o que é” (JOSEPH, 2008, p. 37). A pavimentação dos caminhos que levam à
essência e à verdade corresponde às três artes da mente e através delas reconhece-se –

46
ou tenta-se reconhecer – os objetos contidos na realidade. Essa constituição do ser e sua
representação simbólica podem ser expressas de quatro formas distintas: Por um nome
próprio e por uma descrição empírica, ou por um nome comum e uma descrição geral.
Na análise das artes (da gramática em especial) essas formas de expressão simbólica
serão analisadas mais profundamente, pois são a “matéria-prima” das artes liberais. O
importante a se ter em mente como condição preliminar de compreensão do Trivium é o
fato de que nele a linguagem pode representar essências específicas, genéricas e
individuais sempre tomando como base o indivíduo, e que a linguagem humana é a
grande fonte de estudos para a gramática, lógica e retórica.

Ao representarmos a essência específica de “homem” levamos em consideração


o que lhe faz ser o que é em espécie. Quando representamos sua essência genérica, leva-
se em consideração o gênero, e assim por diante. O que há de comum em todas essas
etapas abstrativas é que elas partem de uma espécie individual a partir da qual a mente
irá operar gerando uma abstração da realidade. O conhecimento na perspectiva
intransitiva compreende essa abstração a partir de uma experiência real e individual do
sujeito. Neste modus operandi abstrativo considera-se que a geração de um símbolo
leva em conta tanto os sentidos externos (visão, audição, etc) que operam sobre um
objeto concreto produzindo uma percepção sobre este, e os sentidos internos
(imaginação, memória sensorial, instinto, etc), que fornecerão ao intelecto a
possibilidade de criação de um conhecimento abstrato-intelectual. Esse tipo de
conhecimento obviamente não é material e por isso mesmo é menos “vívido”, mas ele é
mais claro e trabalhado que o próprio conhecimento sensível (JOSEPH, 2008, p.42).
Em linhas gerais, o processo abstrativo e o conhecimento final abstrato não são eles
mesmos realidades concretas. Se o intelecto cria símbolos a partir da realidade é
possível entender que esses próprios símbolos a representem linguisticamente,
expressando-a das mais variadas maneiras30. Esses modos representativos dão um
sentido profundo nas relações orgânicas do Trivium, pois é por essa tentativa de
“mapeamento” dos seres que a lógica, gramática e retórica ganham dinamismo, rigor e
profundidade.

30
Essa variedade representativa da substância diz respeito às categorias aristotélicas, sendo elas:
substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, estado, hábito, ação e paixão. Todo termo
presente na realidade deve representar uma ou mais categorias destas citadas.

47
2.2 - A Arte da Gramática

Embora o anúncio final dos símbolos seja a grande finalidade “prática” do


Trivium, a arte base, ou a arte que dá o impulso inicial ao movimento em busca pela
verdade é a gramática. Embora tenha havido oscilações de importância – e disputas em
grande medida – entre as artes liberais, o que se constata efetivamente é que sendo uma
característica especial da idade média a relação entre linguagem e realidade há um
apego inicial maior na gramática em relação às demais artes, e isso faz todo sentido
tanto pelo contexto medieval, quanto pela dinâmica do Trivium. A correta disposição
das palavras (termos ou conceitos) e a compreensão de sua natureza auxiliam na
operação lógica e retórica, ou, para avançar um pouco mais na importância da
gramática, determinam em grande medida o sucesso e o fracasso de muitas operações
sequentes. Obviamente isso não quer dizer que a gramática por si só se bastava para a
formação baseada no Trivium, pois na exposição das demais artes ficará perceptível que
lógica e retórica trabalham e complementam certos aspectos da linguagem e do
pensamento humano dos quais a gramática jamais mencionou por sua própria
delimitação funcional, sendo que, em caráter geral, sua função consista em “[...]
estabelecer leis para relacionar símbolos de modo a expressar pensamento” (JOSEPH,
2008, p.90).

Como já mencionado no primeiro capítulo, o que poderíamos chamar como


gramática ideal do Trivium se vê representada nos séculos XI e XII pela dita “Gramática
perceptiva ou especulativa”, que se tratava de uma nova abordagem do estudo
gramatical fortemente influenciada pelas categorias aristotélicas. Esse tipo de
abordagem passou a compreender a linguagem de um modo mais estruturado, formal e
diretamente relacionado com a realidade pelo exercício abstrativo (MONGELLI et all.,
1999, p. 63; 119).

Todo aluno inserido nesse contexto educacional iniciava seus estudos pelos
aspectos morfológicos da gramática, cujo objetivo fundamental era o de compreender e
classificar todas as palavras existentes dentro de quatro quadros morfológicos possíveis,
sendo eles separados em duas categorias:

A) Palavras Categoremáticas:
1) Palavras designadoras da substância (Substantivos e Pronomes).
2) Palavras Atributivas (Primárias, Verbos, Adjetivos e Advérbios).

48
B) Palavras Sincategoremáticas:
3) Palavras que se associam a uma outra palavra (Artigos e Dêictios).
4) Palavras conectivas que se associam a uma palavra (Preposições e
Conjunções) (JOSEPH, 2008, p.71).

As palavras categoremáticas (A) simbolizam as formas do ser que possuem


representação nas dez categorias aristotélicas, ou seja, podem representar tanto uma
substância concreta quanto uma substância abstrata. No caso da substância concreta, o
objeto existe em si mesmo, podendo ser algo natural ou criado humanamente, ou seja,
algo artificial. Por sua vez, a substância abstrata é um acidente que se concebe pela
mente humana31. Por esse tipo de representação, as palavras categoremáticas são
passíveis de relação, mas elas mesmas não se relacionam por conta própria – função
esta que cabe às palavras sincategoremáticas.

Na primeira modalidade das palavras categoremáticas, o estudante dirigia sua


atenção paras as ditas “palavras que designam a substância”, no caso as palavras
representadas como substantivos e pronomes. Em que tange os substantivos, cabe
ressaltar seu caráter universal que pode representar tantos indivíduos, quanto espécies e
gêneros:

Quadro 1: Representação dos substantivos

Indivíduo Espécie Gênero


Eleanor Roosevelt Humana Animal
Excalibur Espada Arma
Atlântico Oceano Corpo d’água
Fonte: JOSEPH, 2008, p. 73

Dentro dessas possibilidades de representação simbólica, os substantivos e os


pronomes podem assumir as características gramaticais de: número (podendo designar
um ou mais indivíduos de uma espécie ou gênero, mas não o indivíduo em si mesmo,
pois este é único e nomeado e não representado numericamente por um substantivo);
gênero (podendo representar masculinidade, feminilidade, neutralidade e forma
comum); pessoa (possuindo maior relevância nos pronomes, pois representa o

31
Cabe ressaltar que os acidentes existem na substância e nunca fora dela. Sendo assim, um acidente de
qualidade abstrata torna-se um substantivo (JOSEPH, 2008, p.72).

49
direcionamento da conversação a partir de pessoas singularmente e pluralmente); caso
(representando a relação entre o substantivo ou pronomes com os outros termos
contidos na frase) (JOSEPH, 2008, p.74). Não cabe neste momento aprofundar em todas
as características, mas cabe ressaltar e aprofundar brevemente os “casos” e sua
utilização no latim, principal língua utilizada para a educação na Idade Média.

Para cada função dos termos de uma oração há em latim um caso, ou seja, “[...]
uma maneira de escrever a palavra em latim de acordo com a função que ela exerce na
oração” (ALMEIDA, 2005, p.14)32. A presença dos casos determina tanto a sintaxe da
oração formulada quanto a grafia dos termos utilizados para a sua composição, havendo,
portanto, uma alteração de matéria e forma da expressão simbólica. Os exemplos a
seguir demonstram a utilização do substantivo “Rainha” em orações com sentidos
distintos:

Exemplo 1
Português – A Rainha dá o dinheiro aos marinheiros
Latim – Regina nautis pecuniam dat
Exemplo 2
Português – Damos alegria à rainha
Latim – Reginae laetitiam damus

No Exemplo 1, o substantivo “Rainha” se coloca no caso latino nominativo, o


que na gramática da língua portuguesa conhecemos por sujeito da oração. Nas línguas
flexionais (que é o caso da língua latina) o sufixo flexional contido no final dos
vocábulos é conhecido por desinência, e no caso do substantivo utilizado no exemplo,
Rainha possui como radical “Regin” e como desinência “a”. No Exemplo 2, o
substantivo sai da função de nominativo e realiza a função de dativo, que na gramática
da língua portuguesa é conhecido por objeto indireto. É possível reparar facilmente que
diante de funções distintas, mudam-se as desinências, no caso de “Regina” para
“Reginae”. Já sobre a sintaxe, nota-se também que nas frases latinas, “rainha”
permanece na mesma ordem, no caso como o primeiro termo da oração, já nas frases em
português há uma alteração da ordem.

32
No total temos seis casos latinos, sendo eles: Nominativo (Sujeito), Vocativo, Genitivo (Adjunto
adnominal), Dativo (Objeto indireto), Ablativo (Adjunto adverbial) e Acusativo (Objeto direto)
(ALMEIDA, 2005).

50
No breve exemplo acima é possível ter uma breve noção do quão fundamental é
compreender os casos e as representações de substantivos em orações latinas. Soma-se a
essa importância a complexidade de identificar os casos de substantivos em excertos ou
livros completos da bíblia como foi realçado no primeiro capítulo. Essa tarefa não
poderia passar batida ao estudante de linguagem da idade média, assim como outros
tantos procedimentos que serão apresentados na sequência do texto.

Na segunda modalidade das palavras categoremáticas, o estudante dirigia sua


atenção para as palavras “atributivas”, palavras estas cuja função é a de expressar os
acidentes contidos na substância, principalmente através de verbos, adjetivos e
advérbios.

2.2.1 - Palavras categoremáticas

Nas palavras categoremáticas, o estudante era levado a compreender as quatro


funções primordiais de um verbo, que são: (1) Expressar um atributo com a noção de
tempo, (2) Indicar distinção temporal das ações envolvidas, (3) Expressar o modo da
ação e (4) Afirmar algo (JOSEPH, 2008, p.76).

Na função (1) o estudante tomava contato com a definição de verbo 33 dada por
Aristóteles em seu Organon. Para Aristóteles, verbo é algo que possui um significado
próprio e que nesse significado transmite-se a noção de tempo, sendo o tempo a medida
da mudança, a duração do movimento que é sucessivo. Toda ação é uma mudança, e
mudança envolve tempo; um verbo expressa uma ação, logo envolve tempo 34 (JOSEPH,
2008, p.76).

Sendo a ação verbal uma ação temporal, temos na função (2) um aspecto
importante que revela novamente as características abstratas de um símbolo. Na função
(2) é possível distinguir entre o tempo do ato concreto e a referência ao próprio ato,
como cita a Irmã Miriam Joseph:

33
A definição de Verbo (Do latim Verbum) na idade média foge a nossa dimensão contemporânea do
termo. Por exemplo, o “Verbum” para Santo Tomás de Aquino não possuía apenas um aspecto externo,
mas interno (Verbum mentis) de fundamentação ao exterior, além de representar a segunda pessoa da
santíssima trindade, o Filho (LAUAND, 1993).

34
Mesmo os verbos com sentido de permanência como “existir” revelam uma passagem temporal de
potência ao ato, da não existência para a existência.

51
[...] Se eu falo de uma ação enquanto ela ocorre, uso o tempo presente
(o pássaro voa), se depois da ocorrência, o tempo pretérito (O pássaro
voou), se antes da ocorrência, o tempo futuro (O pássaro voará)
(JOSEPH, 2008, p.77).

Na citação acima, Miriam Joseph não está se referindo propriamente a algo


acidental ao próprio verbo, mas sim ao tempo enquanto medida de mudança. O verbo
no Trivium é um ponto fundamental de descrição da realidade a partir da representação
simbólica. Dizer que o pássaro voa, voou ou voará é descrever a potencialidade e/ou ato
de um ente concreto; é transcrever a ação histórica dos seres afetados pela mudança.

Na função (3), o estudante buscava compreender o modo da relação entre sujeito


e predicado a partir de quatro possibilidades, sendo elas a de:

- Modo Indicativo (Que declara a relação como um fato). Ex: “No princípio,
Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1); “E começou a ensinar-lhes: ‘O Filho do Homem
deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos
escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar” (Mc 8, 31-32).

- Modo Potencial (Que declara a relação como algo possível). Ex: “Não
empreste ao teu irmão com juros, quer se trate de empréstimo de dinheiro, quer de
víveres ou de qualquer outra coisa sobre a qual é costume exigir um juro. Poderás fazer
um empréstimo com juros ao estrangeiro” (Dt 23, 20-21).

- Modo Interrogativo (Que pede ou requer uma resposta). Ex: “Moisés disse a
Deus: ‘Quando eu for aos israelitas e disser: ‘O Deus de vossos pais me enviou até vós’;
e me perguntarem: ‘Qual é o seu nome?’, que direi?’” (Êx 3, 13)

- Modo Volitivo (Requer uma resposta em forma de postura ou ação). Ex: “Não
apresentarás um testemunho mentiroso contra o teu próximo. Não cobiçarás a casa do
teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu escravo, nem a sua
escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu
próximo" (Êx 20, 16-17).

O modo de ação do verbo revelava ao estudante medieval a pluralidade das


possibilidades de ação. O verbo indica, revela, interroga e exige, tornando-se a figura

52
central dentro da oração e das junções simbólicas. E, por fim, a última função do verbo
(4) diz respeito a função primordial e necessária deste para a formação de frases, que
corresponde ao fato dele “afirmar” algo (JOSEPH, 2008, p.78). Esta função é uma
conclusão da função (3) que revela os modos de ação que demonstram afirmações do
verbo.
Outro aspecto importante dos verbos que se estudava na idade média é a sua
classe. Já mencionado anteriormente para outra finalidade, os verbos classificam-se em
dois tipos, podendo ser transitivos ou intransitivos. Os verbos transitivos sempre
requisitam um complemento, portanto, são verbos em que a ação começa no sujeito,
mas se encerra em um objeto revelando, em modo afirmativo, um caráter prático e
utilitarista da ação humana. Já no caso dos verbos intransitivos, a ação começa no
sujeito e nele se encerra, efetuando-se o processo de potencialidade e ato no sujeito da
ação35.

Na sequência das palavras categoremáticas atributivas cabe brevemente definir a


função do adjetivo e do advérbio no estudo da gramática. Enquanto o verbo expressa
um atributo da substância juntamente com a noção de tempo, o adjetivo expressa apenas
o atributo isoladamente sem a noção de mudança 36 (JOSEPH, 2008, p.81). Já o advérbio
expressa um atributo dos atributos, tal como demonstrado na passagem “Amasa jazia ali
no meio do caminho, numa poça de sangue” (IISm 20,12), sendo “no meio do caminho”
uma locução adverbial de lugar.

2.2.2 - Palavras sincategoremáticas

A segunda classe morfológica analisada no estudo da gramática são as das


palavras sincategoremáticas, palavras que possuem significado apenas em relação com
outras palavras.

O enfoque inicial de estudo para a compreensão das palavras sincategoremáticas


se dava pelas ditas “palavras definitivas” que se associam a um nome para “selecionar
ou destacar um indivíduo ou um grupo de indivíduos” (JOSEPH, 2008, p.82). Dentro

35
Há a possibilidade de o verbo intransitivo exigir um complemento, tornando-se assim um verbo
copulativo (verbo de ligação) que liga o sujeito aos seus termos atributivos.
36
As referências a Deus na bíblia são sempre realizadas por adjetivos, pois não há mudanças e
potencialidades em Deus.

53
dessa primeira modalidade, a análise do artigo e do dêitico compunha o estudo das
palavras definitivas.

Em relação ao artigo, poderíamos dizer que sua principal importância no


Trivium é o fato dele designar ou selecionar um indivíduo de forma indefinida ou
definida. Na seleção de forma indefinida não ocorre a designação, mas sim a seleção de
um indivíduo, como, por exemplo, na afirmação “Uma mulher alta”. Já o artigo definido
seleciona e designa um indivíduo em particular, estabelecendo assim uma
singularização e uma certeza referencial, como na expressão “O Escritor” (JOSEPH,
2008, p.82-83). Já a função do Dêictico não se difere demasiadamente do uso do artigo,
pois ele cumpre a proposta de designar algo, mas limitando-o em um nome comum. Nos
três casos, o apontamento de seres contidos na realidade é de suma importância para a
relação entre linguagem e realidade estabelecida pelo Trivium, pois a partir deles será
possível determinar de forma concreta ou abstrata o objeto do qual se fala.

A segunda modalidade das palavras sincategoremáticas visava um estudo de


compreensão das palavras conectivas, palavras estas cuja finalidade é manter os termos
de uma frase conectados, fornecendo assim coerência à interpretação. Um dos principais
tipos de palavras conectivas que fornecem coerência conectiva são as preposições. O
estudante medieval era levado a compreender a importância aglutinadora das
preposições em substâncias específicas que naturalmente não se misturam, mas que
quando analisadas contextualmente, com a presença das proposições, demonstram um
caráter relacional. É possível notar a seguir, por exemplo, a diferença relacional das
substâncias na utilização das preposições “entre” e “em”:

“E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (Jo 1,14)


“Nisto reconhecemos que permanecemos nele e ele em nós: ele nos
deu seu Espírito” (I Jo 4, 13).

A preposição “entre” não transmite uma possibilidade de relação intrínseca entre


substâncias distintas, mas sim a perspectiva extrínseca de que Deus se faz homem e
habita entre outros homens em condição de igualdade material. Em contrapartida, a
reposição “em” revela um vínculo intrínseco entre Deus e homem pelo fato de Deus
estar no homem e o homem em Deus de forma participativa (participio) 37.

37
A problemática de Deus ser ou não uma substância suscita uma discussão de cunho aristotélico-tomista.
Tal debate foge ao propósito do trabalho e, tomando os exemplos mencionados, caberia apenas uma
exemplificação do uso da preposição sem aprofundar demasiadamente em problemas adjacentes.

54
Seguido do estudo das preposições havia o estudo das conjunções cujo objetivo
era compreender a união ou separação de sentido das palavras contidas em uma oração,
tal como observado nos exemplos abaixo:

“[...] destruirá de maneira horrível esses infames e arrendará a vinha a


outros vinhateiros [...]” (Mt.21, 41)

“Por isso é necessário submeter-se não somente por temor de castigo,


mas também por dever de consciência.” (Rm.13, 5)

Assim como as conjunções também exista o estudo da “pura cópula” 38


que,
segundo a Irmã Miriam Joseph, se trata de:

[...] uma palavra estritamente sincategoremática que declara a relação


entre um sujeito e um predicado, os quais ambos são palavras
categoremáticas (JOSEPH, 2008, p.87).

A separação entre morfologia categoremática e sincategoremática colocava o


estudante das artes liberais em um dualismo de palavras que representam substâncias
(ou seus acidentes) e palavras que especificam, selecionam e relacionam os respectivos
símbolos destas. Mais uma vez a representação simbólica da realidade e a função
comunicativa da gramática exige uma série de formulações estruturais para a
aprendizagem da arte. A partir dessas formulações, o estudante aplicava o processo de
análise sintática para compreender os casos da oração e a disposição das palavras
categoremáticas e sincategoremáticas, um trabalho árduo, mas fundamental para a
aprendizagem da gramática clássica.

Mantendo-se na relação entre linguagem e realidade, o aluno compreendia as


possibilidades relacionais de um símbolo, assim como certas características naturais de
seu uso, como, por exemplo, sua possibilidade de expansão e contração.

A possibilidade de expansão de um símbolo é uma regra utilizada para


substituição de um símbolo em seus equivalentes, ou seja, é a possibilidade de converter
um nome próprio em uma descrição empírica (JOSEPH, 2008, p.90), por exemplo,
<Jesus Cristo> em <Verbo encarnado> ou <Deus que se faz homem e habita entre os
homens>. Há também a possibilidade de se converter um nome comum em uma

38
Verbo de ligação

55
descrição geral, como,<Êxodo> em <Deslocamento de um povo de um lugar para o
outro> ou <Saída do povo Hebreu do Egito>.

A possibilidade de expansão de um símbolo funciona como um


“desdobramento” da realidade. Se o símbolo se origina a partir desta, o aluno pode – e
deve – “desdobrar” o símbolo para expandir seu uso. Esta etapa não corresponde ainda a
um processo de definição ou compreensão de uma definição, mas apenas de um relato
empírico de um determinado valor simbólico. Para Miriam Joseph, o processo de
expansão caracteriza uma linguagem dirigida a crianças, pois não dominando o
conteúdo do símbolo contraído, cabe ensiná-lo de forma expandida (JOSEPH, 2008,
p.91).
Da mesma forma que um símbolo pode ser expandido, descrições empíricas ou
gerais podem ser contraídas39, por exemplo, <Uma corrente violenta, estrondosa e
rápida> em <torrente> (JOSEPH, 2008, p.91). Se a expansão de um símbolo caracteriza
uma linguagem dirigida a crianças, a contração envolve uma compreensão sintética e,
portanto, se direciona para adultos (JOSEPH, 2008, p.91).

O conhecimento de expansão e contração de um símbolo se comprova também


como um exercício de suma importância para o estudo da gramática e das demais artes
liberais, mas mais do que isto, se comprova como um esforço do intelecto em sintetizar
ou expandir aspectos da realidade e das experiências vivenciadas, um tratamento
aprofundado de compreensão e uso de um símbolo.

Há em cada uma das artes do Trivium pontos com maior proximidade entre as
demais artes e pontos de maior distância. Quanto mais nos aproximarmos dos pontos de
conexão com as demais artes, mais se tornará perceptível a organicidade do Trivium e
um dos pontos em que isto se torna perceptível é na preparação terminológica da
gramática para o uso da lógica.

Ainda não entrando diretamente na lógica, e permanecendo em grande medida


nas análises gramaticais, a Irmã Miriam Joseph começa a distinguir as funções das
palavras, dos conceitos e dos termos. As palavras são símbolos criados para representar
a realidade, algo já mencionado. Já um conceito é uma ideia que representa a realidade,
e é potencialmente um termo. Ambos, tanto palavras quanto conceitos não são

39
O que entendemos por “contração” na língua portuguesa não corresponde à perspectiva do Trivium. Na
gramática da língua portuguesa, contração se refere à junção de preposições, pronomes, artigos e
advérbios que originam palavras contraídas como “num” (em + um).

56
instrumentos principais da lógica, mas sim o terceiro equivalente gramatical que são os
termos (JOSEPH, 2008, p.97).

Os termos são dinâmicos e podem ser comunicados por serem significados, ou


seja, por serem formas de conteúdos lógicos das palavras (JOSEPH, 2008, p.97). A
Irmã Miriam Joseph exemplifica analogamente essas distinções:

O café na cafeteira só pode chegar a mim por meio de um


transportador, tal como uma xícara. Uma ideia [um conceito] pode ir
de uma mente a outra também somente por meio de um transportador,
de um símbolo. A ideia é análoga ao café; o símbolo, à xícara. A
palavra usada como transportadora torna-se um termo quando o
pensamento é efetivamente comunicado (JOSEPH, 2008, p.97).

O principal elemento de ligação entre gramática e lógica são os termos. Por ser
um “pensamento efetivamente comunicado”, ele é o elemento do qual a lógica tomará
proveito, pois se entende que a ideia e a representação simbólica estão contidas
corretamente no termo, fazendo-o uma forma representativa unívoca da realidade.
Entretanto, o que pode variar na aplicação de um termo é o fato de o símbolo gramatical
empregado para representá-lo ser ambíguo, e a melhor ilustração para esta variedade são
os vários significados possíveis para uma palavra contida em um dicionário (JOSEPH,
2008, p.98).
Por representarem a realidade, o estudo da gramática exigia uma classificação
dos termos para melhor compreendê-los, sendo eles divididos em termos empíricos,
gerais, contraditórios, concretos, abstratos, absolutos, relativos, coletivos e distributivos.

Quadro 2: Classificação dos termos


Termos Característica Símbolo Exemplo

Paulo de Tarso; Um
Designa um indivíduo ou Nome próprio ou
Empíricos pássaro voou pela
um agregado de indivíduos descrição empírica
minha janela

Gerais Significa uma essência (de Nome comum ou Árvore; A dança é


(Universais) uma espécie ou gênero) descrição geral uma forma de arte

57
Quadro 2: Classificação dos termos (Continuação)

Termos Característica Símbolo Exemplo

Representar presença e Palavras com Inconsciente


Contraditórios ausência de algo na correspondentes (Ausência de
realidade negativos ou positivos consciência)

Palavras que expressam


Representar realidades como concretude na ordem Veloz, comprido,
Concretos
elas realmente são do ser (Substantivos suave
concretos)

Palavras que expressam


Representar uma substância
abstrações da realidade Velocidade,
ou um acidente mentalmente
Abstratos e tornam-se objetos de comprimento,
abstraído da realidade
pensamento suavidade
concreta
(Substantivos abstratos)

Palavras que designam


Compreensível por si
substâncias ou Homem, cachorro,
Absolutos mesmo sem o auxílio de
acidentes vermelho
outro termo
(Nome comum)

Palavras que expressam


Compreensível com Causa,efeito; Marido,
Relativos correlação (Presença na
referência a outro termo mulher; Maior, menor
categoria relação 40)

Palavras que expressam


Designar um grupo Exército, júri,
Coletivos coletividade (Uso do
considerado como tal tripulação
termo no singular)

Palavras que façam


Homem – Pode ser
referência à
Designar membros aplicado tanto ao
Distributivos coletividade, mas que
individuais de um grupo indivíduo concreto
destacam um indivíduo
quanto à espécie
isolado
Fonte: JOSEPH, 2008, p. 99-102 (adaptado).

40
Categoria Aristotélica

58
É importante notar a pluralidade de regras e sentidos que o termo carrega para
seu uso efetivo no início da atuação lógica. Essa preparação, entretanto, não é realizada
pela própria lógica, mas sim pela gramática que classifica o termo (“resultados” finais
da representação simbólica) pelo seu uso e símbolo gramatical. Mais do que esta
diferença “prática”, o estudante era levado a compreender as diferenças de natureza de
cada termo estudado se assim ocorressem, fossem elas de cunho categórico, pois cada
termo gramatical possui referência a uma das dez categorias aristotélicas, fossem elas de
cunho genérico, pertencentes na mesma categoria, porém em gêneros distintos, ou
fossem de ordem específica ou individual. Os exemplos a seguir deixam essas
diferenças ainda mais claras:

Diferenças categóricas: maçã (Substância), grande (Relação)41, vermelho


(Qualidade).

Diferenças genéricas: Redondo, liso, azedo; pedra, árvore, animal


(Permanência da categoria em gêneros distintos)42.

Diferenças específicas: Vermelho, azul, amarelo (Permanência da categoria e


do gênero, mas em espécies distintas).

Diferenças individuais: Rio Amazonas, Rio Paraná, Rio Tietê (Permanência da


espécie, mas indivíduos distintos) (JOSEPH, 2008, p.102).

Ao aprofundar em tais análises, o estudante do trivium medieval passava a


desenvolver o importante estudo da extensão e da intensão dos termos, conceitos
definidos pela Irmã Miriam da seguinte forma:

Todo termo tem tanto extensão quanto intensão. Extensão de um


termo é a sua designação: o conjunto total de objetos ao qual o termo
pode ser aplicado. [...] Por exemplo: a extensão de amigo é o conjunto
de pessoas que são amigas de um indivíduo. [...] A intensão do termo
é o seu significado, a soma das características essenciais que o termo
implica. [...] Por exemplo: a intensão de amigo é a soma das
qualidades que fazem um amigo [...] (JOSEPH, 2008, p. 104-105).

41
O termo “grande” para Aristóteles deve ser encarado categoricamente como relação e não como
quantidade. Por ser uma quantidade indeterminada, “grande” só pode ser mencionado em referência a
outra coisa que possibilite um exercício comparativo, por exemplo, um homem é grande em relação a
uma formiga, mas não em relação a um elefante. Por essa indeterminação, a quantidade não admite
contrariedade em si mesma, pois algo não pode ser grande e pequeno ao mesmo tempo.
42
Entretanto, há em Aristóteles a possibilidade de alteração substancial, como, por exemplo, uma planta
que muda de cor ao receber luz solar (mudança qualitativa) (BARNES, 2005, p.79).

59
A intensão43 e a extensão de um termo possuem relação com o processo de
abstração mental que a mente faz dos objetos concretos. A imagem mental dos objetos
diz respeito à extensão, e a ação do intelecto sobre a imagem mental diz respeito à
intensão (JOSEPH, 2008, p.105).

A importância do estudo da intensão e extensão de um termo ganha ainda mais


importância quando se estabelece uma relação de funcionalidade entre ambas. A cada
momento que um termo cresce em intensão, se aproxima da
especificidade/individualidade (infima species) e se afasta do gênero maior (summum
genus), decrescendo em extensão; inversamente, quando um termo cresce em extensão,
se aproxima da generalidade maior e se afasta da especificidade/individualidade,
decrescendo em intensão. A árvore do filósofo neoplatônico Porfírio ilustra
perfeitamente a relação entre extensão e intensão de um termo:

Figura 1: Árvore de Porfírio

Substância

Material

Corpo

Animado

Organismo

Sensível

Animal

Racional

Homem

Fonte: JOSEPH, 2008, p.106

No aspecto relacional é possível perceber pela árvore que o summum genus


(Substância) possui a maior extensão possível, pois seu termo pode ser aplicado a corpo,

43
Diferente de “intenção”, conceito que será discutido posteriormente.

60
organismo, animal e homem, entretanto, sua intensão é mínima, pois o que pode
caracterizar a sua essência no exemplo citado é apenas o aspecto material e estrutural44.
O atributo “animado”, por sua vez, está relacionado mais diretamente ao corpo, que é
gênero do organismo e que por espécie é animado.

Cabe notar também que os termos intermediários são relativos conforme a


posição que se quer determinar. Animal é gênero de homem, mas é também espécie de
organismo. Organismo que é gênero de animal, por sua vez é espécie de corpo pelo
acréscimo qualitativo da animação. Apenas o summum genus e a infima species não
sofrem os relativismos de posição. A infima species possui a maior intensão possível,
como no caso de homem que possui como característica de sua essência o fato de ser
racional, sensível, animado e material, entretanto, sua extensão é mínima, pois o termo
homem só pode ser aplicado em homens individuais.

O estudo da extensão é fundamental para a passagem da análise gramatical à


lógica, porém ainda mais fundamental é o estudo da intensão do termo. Essa
importância justifica-se nos estudos medievais pela principal finalidade do termo para o
campo lógico: sua transmissão de uma definição. A definição de algo revela a intensão
ou significado de um termo e, por conter em si todas as características essenciais de um
termo, a intensão é a fonte correta de busca para a definição de um objeto (JOSEPH,
2008, p.106).

2.3 - A Arte da Lógica

Mais do que uma mera sequência de estudos encadeados, a atividade lógica se


manifesta como um impulso e uma expressão da própria vida humana de forma a
revelar uma ordem do pensamento, tal como o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos
Santos afirma em seu livro “Lógica e Dialética”; mas mais do que isto, revela uma
ordem estruturante da própria realidade inteligível.

Ao se falar da posição da lógica no Trivium é preciso levar em total


consideração o excerto acima, de maneira que a conclusão de que a lógica é uma
ferramenta de compreensão e validação analítica da realidade torna-se essencial para a

44
Aristóteles, como exemplo, concebe a substância por matéria e forma, ou seja, por um aspecto material
e outro estrutural. Entretanto, tanto matéria quanto forma não são componentes físicos da substância, mas
sim componentes lógicos. O aspecto material (ou formal da substância) só poderá ser encontrado no
objeto concreto de forma unida, afinal não é possível separar matéria e forma de substâncias concretas
(BARNES, 2005).

61
compreensão de seu uso no Trivium. Assim como foi desenvolvido na escrita sobre arte
gramatical, cabe também na lógica focar menos no aspecto histórico – aspecto esse já
analisado no primeiro capítulo – e mais no conteúdo e na forma com o qual os
estudantes do Trivium tomavam contato para o estudo da lógica.

O primeiro ponto a se destacar diz respeito ao funcionamento e conteúdo da


estrutura da arte lógica do Trivium. A base para a compreensão lógica se estabelece pela
presença de uma proposição, ou seja, pela possibilidade da afirmação de uma relação
existente entre termos. Nesse primeiro momento, o estudante era levado a compreender
a natureza da proposição, diferenciando-a entre uma proposição modal e uma
proposição categórica, e como elas se correspondem perante a realidade referida.

A proposição modal destaca-se pela sua possibilidade ou não de afirmar um


modo relacional, isto é, a condição de afirmar a relação entre os termos como
necessária, sem a qual não exista uma possibilidade alternativa, ou contingente, que a
expresse. Essa necessidade de uma relação entre termos pode expressar-se de quatro
formas distintas, podendo ser de ordem metafísica, física, moral ou de pura lógica
(JOSEPH, 2008, p.117-119).

No caso da ordem metafísica, a relação entre os termos de uma proposição será


metafisicamente necessária, de forma que sua existência de outra maneira é
inconcebível e altamente contraditória, pois nem mesmo uma ordem superior (Deus)
pode concebê-la diferente por representar uma ordem estruturante45. A Irmã Miriam
Joseph cita alguns exemplos de proposições que expressam necessidades metafísicas:

Um triângulo equilátero é necessariamente equiangular.

O efeito não pode ser maior que sua causa.

Um ser é necessariamente ele mesmo e não um outro (JOSEPH,2008,


p.118).

45
Essas ordens estruturantes do universo são temas de longos e constantes debates filosóficos que fogem
a proposta deste trabalho. Cabe, entretanto, como manifestação da problemática, destacar o livro “Para
uma nova interpretação de Platão” de Giovanni Reale. A partir das “doutrinas não-escritas” de Platão, o
autor faz uma análise hermenêutica das interpretações sobre o filósofo grego, doutrinas estas que revelam
uma estrutura “intermediária” ante a visão dualística clássica atribuída a Platão.

62
Da mesma forma que um círculo não pode ser quadrado, pois é metafisicamente
impossível, um efeito não pode ser maior que sua causa. A atividade criadora e sua
ordem estabelecida possuem certas “regras” que, quando abaladas (embora não sejam),
levariam a uma desestruturação total da realidade.

Há também uma necessidade proposicional física que os estudantes precisavam


considerar na análise inicial. Essa necessidade está diretamente ligada as leis naturais,
entretanto, diferentemente das leis metafísicas, podem ser suspensas por uma atuação
divina, como, por exemplo, no caso dos milagres bíblicos (JOSEPH, 2008, p.118).

Por sua vez, a proposição de necessidade moral provém de uma ordem


normativa que pode ser quebrada pelo exercício do livre arbítrio. A proposição moral
poderia ser contingente e não necessária exatamente pela liberdade moral das ações
humanas, entretanto, levando em consideração a moral judaico-cristã e a ética
aristotélica que se unem no Trivium entende-se o motivo da necessidade e não da
contingência46. Por fim, há a necessidade lógica de que uma proposição deva se
constituir em referências às espécies, gêneros, diferenças, definições, propriedades e
acidentes (JOSEPH, 2008, p.119).

Ao não afirmarem relações, as proposições modais tornam-se contingentes, ou


seja, não necessárias. Esta não necessidade relacional revela uma possibilidade
metafísica ou natural da relação, ou seja, não infringe regras estruturantes, como nos
exemplos de que “Um pássaro pode ser amarelo” ou “Um triângulo pode ser escaleno”.
Uma proposição contingencial requer uma atenção maior nos termos para não haver
contradições terminológicas.

Diferentemente das proposições modais, os estudantes compreendiam que as


proposições categóricas afirmavam suas relações não pelo modo, mas por totalidades ou
seleções ditas como verdades, como, por exemplo, “Todos os leões são animais” ou
“Alguns leões são mansos”. Sua afirmação estabelecida em forma indicativa se difere
também do modo potencial das proposições contingentes (JOSEPH, 2008, p.119).

Além das modalidades de proposição, havia ainda no estudo sobre a natureza


desta uma análise mais aprofundada sobre suas características. Essas características

46
A busca pela felicidade através do pleno exercício das virtudes e dos controles das paixões na Ética a
Nicômaco e os exemplos de santidade do Cristianismo fundamentam a concepção da proposição moral
por necessidade e não por contingência.

63
eram divididas em quatro prerrogativas distintas de representação, além da já
mencionada “Modalidade” (Proposições Modais ou categóricas), sendo elas: (I)
Referência à realidade, (II) Quantidade, (III) Qualidade e (IV) Valor (JOSEPH, 2008,
p.120-123).

Em que tange a (I), o estudante teria que desenvolver a compreensão de que


uma proposição pode se referir à realidade tanto de maneira generalista, simbolizando-a
com um nome comum ou uma descrição geral, como de forma empírica, simbolizando-a
por um nome próprio ou uma descrição empírica. Exemplos: “Um leão é um animal”
(Proposição geral), “Estes Homens são filósofos” (Proposição empírica).

Na (II), a atenção de ensino estava voltada para a extensão do sujeito da


proposição, ou seja, se o sujeito é usado de forma total ou parcial na sentença. No
primeiro caso, a proposição inclui ou exclui todos os sujeitos possíveis da preposição
através de palavras como “Todos” ou “Nenhum”. Há também a possibilidade da
proposição ser total se ela for geral, utilizando assim seu termo em extensão completa
tal como citado no exemplo da característica (I). Já na afirmação parcial, é utilizada
apenas parte de sua extensão, expressando-se assim por palavras seletivas como
“Alguns” ou “Nem todos”. Exemplos: “Nenhum homem é cachorro” (Proposição
Total), “Alguns homens são belos” (Proposição Parcial).

Na característica (III), o estudo se voltava para a qualidade da sintaxe, mais


propriamente para a sua afirmação ou negação. Se um sujeito é incluído no predicado,
seja de forma total ou parcial, a proposição será afirmativa, do contrário, se o sujeito é
totalmente excluído do predicado, a proposição será negativa. Exemplos: “Algumas
mulheres são loiras” (Proposição afirmativa), “Nenhum cachorro é cavalo” (Proposição
negativa).

A última característica (IV) de uma proposição é uma propriedade aferida ao


final da sentença propositiva. Toda proposição revela-se em veracidade ou falsidade
após uma análise concreta de seu conteúdo, seja ela realizada de forma investigativa,
pela experiência ou pela mera visualização de fatos discordantes, sendo assim, toda
proposição deverá ater-se ao campo das possibilidades para definir-se como verdadeira
ou falsa.

64
2.3.1 - Formas proposicionais

A influência dos escritos de Aristóteles nos séculos X-XI foi determinante para
uma “revigoração” das artes liberais de ensino, algo já mencionado anteriormente. No
campo da lógica, a influência foi fundamental e um dos “resquícios” 47
dessa influência
foram as formas proposicionais.

De acordo com suas características, Aristóteles, em seu Organon, classificou as


proposições em quatro formas representativas possíveis, formas estas conhecidas por A
E I O.

Essas formas, quando retomadas a partir de exercícios mnemônicos em Latim, possuem


correspondência em vogais das palavras affirmo e nego. De affirmo, destacam-se as
vogais A e I, que representam proposições afirmativas; de Nego, destacam-se as vogais
E e O, que representam proposições negativas (JOSEPH, 2008, p.125).

Tomando como princípio que todas as preposições possuem qualidade, o


primeiro nível de classificação para as formas A E I O diz respeito à própria divisão
entre proposições modais e proposições categóricas. A Irmã Miriam Joseph faz um
ótimo resumo dessas formas representativas a partir de suas divisões no quadrado
lógico:

Quadro 3: Formas proposicionais

Formas A E I O Quantitativas (As proposições são categóricas)


A Tot.afirm. SaP Todo S é P Todos os leões são animais
E Tot. neg. SeP Nenhum S é P Nenhum leão é cavalo
I Parc.afirm SiP Algum S é P Alguns leões são mansos
O Parc.neg SoP Algum S não é P Alguns leões não são mansos
Formas A E I O (As proposições são explicitamente Modais)
A Nec.afirm SaP S precisa ser P Um leão precisa ser um animal
E Nec.neg SeP S não pode ser P Um leão não pode ser um cavalo
I Cont.afirm SiP S pode ser P Um leão pode ser manso
O Cont.neg SoP S pode não ser P Um leão pode não ser manso
Fonte: JOSEPH, 2008, p.124

47
Falar apenas em resquícios é incorreto e impreciso, pois herdamos muito do filósofo Estagirita tal como
demonstra Richard E. Rubenstein em seu livro “Herdeiros de Aristóteles”.

65
1° coluna – Termos proposicionais (Símbolos)

2° coluna – Características proposicionais: Total (Tot.), Parcial (Parc.), Afirmativa


(Afirm.),Negativa (Neg.), Necessária (Nec.) e Contingente (Cont.)

3° coluna – Relação Sujeito/Predicado a partir das formas.

4° coluna – Significado da relação Sujeito/Predicado.

5° coluna – Exemplo

É importante notar que I e O são sempre proposições indefinidas, pois nunca


negam ou afirmam com veemência, já A e E são contundentes na afirmação e na
negação. Todavia, a veracidade e a falsidade das formas só poderão ser verificadas após
o exame de seu conteúdo, algo já mencionado.

Mais do uma classificação, as formas proposicionais forneciam ao estudante


medieval uma compreensão mais ampla da relação entre sujeito e predicado a partir da
distribuição dos termos, ou seja, a partir do uso da extensão completa de cada termo da
proposição. Pela compreensão da quantidade/modalidade de uma proposição é possível
compreender a distribuição do sujeito, já pela sua qualidade é possível compreender a
distribuição de seu predicado. Mirim Joseph realça quatro regras fundamentais para
compreender o funcionamento dessa distribuição:

1. Uma proposição Total (ou necessária) distribui o seu sujeito [Ou seja,
utiliza o sujeito em extensão completa].

2. Uma proposição parcial (ou contingente) tem o seu sujeito não-


distribuído [Ou seja, utiliza o sujeito em extensão menor].

3. Uma proposição negativa distribui o seu predicado (porque este se


exclui todo do sujeito).

4. Uma proposição afirmativa tem seu predicado não distribuído (porque o


predicado é normalmente um termo mais amplo em extensão do que o
sujeito) (JOSEPH, 2008, p.125).

Na quarta e última regra é possível salientar uma exceção fundamental: Se a


proposição for uma definição haverá a distribuição de sujeito e predicado, pois o
predicado, por definir o sujeito, se iguala a este em extensão e intensão.

66
Na aplicação direta das regras às formas proposicionais é possível obter um
panorama das relações entre sujeito e predicado e qual termo é ou não distribuído a
partir das relações formais:

Quadro 4: Regras proposicionais e distribuição dos termos


Relação Distribuição Exemplo
1 SaP S (d) / P (nd) Todos os leões são animais
2 SeP S (d) / P (d) Nenhum leão é cavalo
3 SiP S (nd) / P (nd) Alguns leões são mansos
4 SoP S (nd) / P (d) Alguns leões não são mansos
Fonte: JOSEPH, 2008, p.126 (adaptado).

A primeira relação expressa uma totalidade (quantitativa) e uma afirmação


(qualitativa). Por ser total, o sujeito está sendo utilizado em sua extensão completa, por
isso é distribuído, já o predicado, por ser afirmativo, não possui extensão completa e
não é distribuído.

Para uma verificação correta da possibilidade de distribuição, os estudantes de


lógica utilizavam um método analítico conhecido como teste de conversão. Tal
procedimento consistia na troca entre sujeito e predicado de uma proposição para
verificar a correspondência lógica do enunciado, por exemplo, na primeira relação, o
sujeito é distribuído, pois todos os leões correspondem ao gênero animal e logo sua
extensão está completa. Trocando-se o predicado pelo sujeito e deixando a proposição
afirmativa como “Todos os animais são leões”, nota-se uma não distribuição do sujeito
que outrora fora predicado, pois nem todos os animais são leões, então a extensão de
“animais” não é completa na forma proposicional A48.

No caso da segunda relação, tanto sujeito quanto predicado são distribuídos, pois
uma proposição Total distribui seu sujeito e sendo negativa distribui também seu
predicado. Pelo teste de conversão é possível comprovar a distribuição de ambos, pois
da mesma forma que “Nenhum leão é cavalo” também “Nenhum cavalo é leão”.

Na terceira relação, sujeito e predicado não são distribuídos. Em uma proposição


parcial/afirmativa não há distribuição possível para ambos. Entretanto, na quarta
relação, há distribuição do predicado mesmo com a proposição sendo parcial. Isso

48
Essa tentativa de conversão total do predicado torna-se ilícita. Para se evitar uma conversão ilícita é
preciso alterar a quantidade ou a modalidade de uma proposição. Na proposição mencionada, por
exemplo, a conversão ideal seria a de que “Alguns animais são leões” (JOSEPH, 2008, p.152).

67
ocorre pois toda proposição negativa tem seu predicado distribuído. A negação coloca o
predicado em sua extensão completa, portanto, distribuída.

Além das formas proposicionais e das regras de distribuição, outro importante


campo de estudos desenvolvido pelos estudantes de lógica diz respeito às relações
estabelecidas entre proposições e não somente entre seus termos, campo este anterior ao
pensamento silogístico. Há quatro possibilidades de relações entre proposições, sendo
elas: conjunção, oposição, inferência e o silogismo.

2.3.2 - Conjunção

A conjunção é a junção de duas ou mais proposições que podem estar unidas


tanto de forma explícita como de forma implícita (JOSEPH, 2008, p.138). No caso da
forma explícita é possível identificar duas ou mais proposições claramente em uma
mesma frase declarativa, tal como no exemplo: “Ele me conduziu são e salvo, libertou
minha mulher, resgatou o dinheiro e ainda curou o senhor” (Tb 12, 3). No caso da forma
implícita é possível notar que em uma mesma declaração há implicitamente mais de
uma proposição, como no exemplo de uma Hipocatástase49 no evangelho segundo São
João: “Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29).

Ambos os exemplos citados demonstram a união “material” de proposições, ou


seja, são conjunções que possuem relação real ou lógica. Esta união pode se expressar
de maneira que una partes com um todo, um lugar, um tempo, uma causa, um efeito e
uma comparação entre cada uma das possibilidades elencadas (JOSEPH, 2008, p.138).
Em “A Divina comédia” de Dante é possível tomar contato com uma conjunção
material que expressa uma relação de causa e efeito estabelecida pela descrição das
portas do inferno:

Por mim se vai das dores à morada,


Por mim se vai ao padecer eterno,
Por mim se vai à gente condenada.

Moveu Justiça o Autor meu sempiterno,


Formado fui por divinal possança,

49
Forma de figura de linguagem.

68
Sabedoria suma e amor supremo.

No existir, ser nenhum a mim se avança,


Não sendo eterno, e eu eternal perduro:
Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!50

A Irmã Miriam Joseph realça que, por uma proposição expressar por finalidade
uma veracidade ou falsidade afirmativa é possível determinar regras a priori a fim de
aferir os resultados de uma conjunção. Sendo três as regras mencionadas por ela:

Regra1. Uma conjunção de proposições é verdadeira apenas quando


toda proposição associada é verdadeira.

Regra2. Uma conjunção de proposições é falsa quando qualquer uma


das proposições associadas for falsa.

Regra3. Uma conjunção de proposições é provável se pelo menos uma


das proposições associadas for meramente provável e se nenhuma for
falsa (JOSEPH, 2008, p.140).

Essas regras geram nove possibilidades de combinação, que podem ser


visualizadas no quadro a seguir que representa a veracidade por “1”, a falsidade por
“0” e a probabilidade por “.n”:

Quadro 5: Valores na conjunção de proposições


Regra Prop. X Prop. Y Prop. X e Y
1 1 1 1
2 0 1 0
2 1 0 0
2 0 .n 0
2 .n 0 0
2 0 0 0
3 1 .n .n
3 .n 1 .n
3 .n .n .n x.n
Fonte: JOSEPH, 2008, p.140

50
Trecho retirado do Canto III - Inferno da tradução de José Pedro Xavier Pinheiro de 1955 da editora
Atena.

69
2.3.3 - Oposição

Assim como a conjunção, a oposição é uma forma de relacionar proposições.


Nas oposições, o estudante era levado a compreender que a presença de proposições
com matérias iguais (sujeito e predicado), mas com distinções formais, isto é, diferenças
proposicionais características, acarretava em uma oposição proposicional (JOSEPH,
2008, p.142). Pelas formas proposicionais os estudantes conseguiam identificar quais
proposições eram opostas entre si, podendo estas ser expressas em forma de
contradição, que apresenta uma diferença qualitativa e quantitativa, ou qualitativa e de
modalidade sem conter meio-termo, ou pode ser expressa em forma de contrariedade,
apresentando uma diferença na qualidade e em quantidade (sendo totais) ou de
modalidade (sendo necessárias) (JOSEPH, 2008, p. 143). A título de exemplificação, a
delimitação abaixo demonstra as oposições em proposições categóricas (Quantitativas):

- A e O são contraditórias, pois (A) afirma que “Todo S é P” e uma segunda


proposição indefinida (O) expressa uma falsidade ao dizer que “Algum S não é P”,
revelando assim uma diferença de quantidade e qualidade.

- E e I são contraditórias, pois (E) afirma que “Nenhum S é P” e uma segunda


proposição indefinida (I) expressa que “Algum S é P”, revelando assim uma diferença
de quantidade e qualidade.

- A e E são contrárias, pois (A) afirma que “Todo S é P” e uma segunda proposição
(E) afirma que “Nenhum S é P”, revelando assim uma diferença na qualidade e na
quantidade por serem proposições totais.

- I e O são subcontrárias, pois (I) afirma que “Algum S é P” e uma segunda


proposição (O) afirma que “Algum S não é P”, revelando assim uma diferença na
qualidade e na quantidade por serem proposições parciais (JOSEPH, 2008, p.142-148).

Em regras gerais, A e O/ E e I são contraditórias porque uma das proposições


deve ser potencialmente verdadeira, e a outra necessariamente falsa. Já A e E são
contrárias porque as duas proposições não podem ser verdadeiras em ato, mas podem

70
ser falsas. Por fim, I e O são contrárias51 pois as duas não podem ser falsas, mas podem
ser verdadeiras. Já A e I/ E e O não estabelecem uma relação de oposição, pois não há
diferença de qualidade entre elas, mas a diferença de quantidade(ou modalidade) cria
entre elas uma relação subalterna de (I )para(A) e de (O) para (E)52.

2.3.4 - Inferência

A possibilidade de inferência entre as relações proposicionais diz respeito ao


processo de tornar explícito tudo que está implícito em uma determinada proposição, ou
seja, se trata da exploração de um conteúdo já fornecido sem com isso avançar em
conhecimento, pois ambos os processos para obtenção de formas edutivas que são a
obversão e conversão (sendo esta já mencionada anteriormente, como sendo de grande
importância para a verificação da distribuição) não possuem alteração de valor lógico
(JOSEPH, 2008, p.149).

Na aplicação do processo de obversão, o estudante era levado a converter tanto a


qualidade, que é determinada pela cópula (verbo de ligação), quanto o predicado para
seu oposto, porém mantendo o significado da proposição (JOSEPH, 2008, p.150).
Entretanto, o ponto chave do processo de obversão está no fato de que ao obverter uma
proposição, se obverte também sua forma proposicional, isto é, a forma atual passa a
operar em sua forma contrária. Por exemplo, “Todos os cavalos são animais” se
expressa na forma (A), com a aplicação da obversão, a proposição se torna (E) pela
sequência “Nenhum cavalo é não-animal”. Da mesma maneira, uma forma (I) de
“Alguns cavalos são mansos”, ao ser obvertida, se expressa em “Alguns cavalos não são
agitados” tornando-se uma proposição de forma (O). Apesar de secundária, a obversão
era um exercício comum para os estudantes aprofundarem o uso das formas
proposicionais e suas contrariedades. Se o método mnemônico era a base para a fixação
do conhecimento, é de se salientar que a obversão possuía grande importância nesse
processo.

51
O termo “subcontrário” foi posto anteriormente para expressar uma distinção entre a contrariedade de
proposições totais e parciais.
52
Seria possível representar a problemática da oposição proposicional pelo conhecido “Quadrado das
oposições” de Aristóteles. Entretanto, é importante dizer que o objetivo deste capítulo está em realçar o
conteúdo e o funcionamento do Trivium em linhas gerais. Uma vez que um assunto foi desenvolvido
dentro do contexto geral da dissertação, não há motivos para aprofundar em demasia em explicações e
exemplo que poderiam facilmente demandar um novo texto.

71
Em caráter geral, nota-se que o conteúdo até aqui apresentado para o ensino da
lógica no Trivium é extremamente sistematizado e coeso. A ordenação do pensamento
para a busca da verdade é o grande objetivo formativo do Trivium e o ensino da lógica
possui alta relevância para esta finalidade.

2.3.5 - Silogismo

A última possibilidade relacional de duas ou mais proposições é


reconhecidamente a mais importante de todas: o silogismo. Por um reconhecimento da
organicidade do Trivium, a Irmã Miriam Joseph define o silogismo a partir de sua
funcionalidade no caráter intransitivo das artes liberais, afirmando que:

O silogismo é o ato de raciocínio pelo qual a mente percebe que, de


uma relação entre duas proposições (chamadas premissas) que têm um
termo em comum, necessariamente emergirá uma nova e terceira
proposição (chamada conclusão), na qual aparece o termo, este
chamado de termo médio (M) (JOSEPH, 2008, p. 159).

Para além de um conhecimento intuitivo, há na proposta silogística uma análise


das proposições – e por consequência também dos termos de uma proposição – que o
estudo da gramática e da lógica contidas no Trivium contribuem para seu exercício.

Estruturalmente, como já mencionado na citação, um silogismo possui três


proposições, sendo a última originada pela conclusão obtida após relacionar as duas
primeiras. As duas primeiras são conhecidas como premissas53, e possuem entre si um
termo comum, ou seja, um termo contido em ambas. Um das premissas possui um
termo conhecido como termo maior, de quantidade geral e caracteristicamente
universal, já a outra premissa contém um termo menor de característica particular. O
exemplo a seguir ilustra melhor a composição de um silogismo:

- Todo homem é mortal

- Sócrates é homem

- Sócrates é mortal

53
Uma proposição se torne uma premissa pela relação estabelecida com outra preposição a partir de um
termo comum.

72
O predicado da conclusão é conhecido como termo maior, que no exemplo
acima é o termo “mortal”. Já o sujeito da conclusão é reconhecido pelo termo menor,
que no caso acima corresponde a “Sócrates”. O termo comum (médio) entre ambos é a
termo “homem”, que aparece nas duas premissas, mas se ausenta na conclusão. Por essa
composição, o silogismo será sempre analisado a partir da sua conclusão, pois somente
ela fornecerá o entendimento e o posicionamento correto dos termos nas premissas.

Algumas regras escolásticas apontadas pelo filósofo Mário Ferreira dos Santos
em seu livro “Lógica e Dialética” demonstram perfeitamente a estrutura de um
silogismo:

1) O silogismo, para se fazer como tal, exige a existência de três termos: Um


termo maior (majorque), um médio (medius) e um menor (minorque).

2) Deve haver ausência do termo médio na conclusão.

3) O termo médio deve ser tomado em sua extensão total.

4) A extensão de um termo na conclusão não pode ser maior do que nas


premissas.

5) Em duas premissas negativas não há conclusão.

6) Duas premissas afirmativas não podem resultar em uma conclusão negativa.

7) A conclusão deve seguir sempre a parte mais fraca (limitada em quantidade


ou qualidade) das premissas (SANTOS, 1959, p.49-50)54.

Cabe ressaltar alguns pontos importantes das regras. Na terceira regra, o termo
médio deve ser tomado em sua extensão total, pois ele trabalha de forma comparativa
com duas possibilidades extremas expressadas nas premissas. Por sua vez, a quarta
regra deriva da primeira, pois sua violação alteraria completamente a estrutura do
silogismo e, por fim, a sétima regra possui correspondência na quarta, pois se uma das
premissas expressarem particularidade ou negatividade, a conclusão deverá segui-las.

54
A irmã Miriam Joseph acrescenta em sua análise três regras adicionais às regras escolásticas apontadas
por Mário Ferreira possivelmente por entender um avanço das regras silogísticas em outras épocas, ao
ponto desses acréscimos serem úteis aos alunos do St. Mary College. Para manter uma maior
aproximação com o primeiro capítulo, opto por seguir apenas nas regras escolásticas clássicas.

73
Independente das regras, o estudante de lógica possuía a possibilidade de
representar um silogismo das mais variadas maneiras a partir da posição do termo
médio. Além de despertar o intelecto para construções e identificações de possibilidades
silogísticas, essa variação introduzia quatro possibilidades representativas através de
figuras, como ilustra a Irmã Miriam Joseph:

Quadro 6: Figuras de um silogismo


Figura I Figura II Figura III Figura IV
S--------M S--------M M--------S M--------S
M--------P P--------M M--------P P--------M
S--------P S--------P S--------P S--------P
Fonte: JOSEPH, 2008, p.164

A partir da identificação das figuras e relacionando-as com as regras


escolásticas, os estudantes possíveis dezenove tipos de combinações silogísticas
possíveis :

1° figura: A-A-A; E-A-E; A-I-I

2° figura: E-I-O; E-A-E; A-E-E; E-I-O; A-O-O

3° figura: A-A-I; E-A-O; I-A-I; A-I-I; O-A-O; E-I-O

4° figura: A-A-I; A-E-E; I-A-I; E-A-O; E-I-O (SANTOS, 1959, p.51-54).

Para a proposta deste trabalho, mais vale a ilustração e a exemplificação do


conteúdo estudado e analisado a partir de sua relação com o todo, do que
necessariamente uma explicação aprofundada sobre lógica. Até aqui nota-se como há
uma relação direta, e por isso orgânica, de cada conteúdo interno do Trivium. Não se
chegava ao estudo da validade entre formas proposicionais e figuras representativas sem
antes compreender o funcionamento correto dos termos e suas finalidades, algo
estabelecido pela gramática. No Trivium havia – e há ainda - uma constante retomada de
conteúdos e conhecimentos, e por isso justifica-se sua preocupação de ser uma proposta
formadora de caráter intransitivo, pois esses conhecimentos não podem nunca se
ausentar do sujeito. Esse caráter orgânico e intransitivo pode ser representado por um
dos exercícios mais trabalhosos e fundamentais da educação medieval: o teste de
validade de um silogismo.

74
Além das regras dos silogismos apontadas acima, o estudante tinha que levar em
consideração as regras de distribuição também já mencionadas anteriormente, não sem
antes seguir uma série de passos para validar ou não um silogismo, como demonstra a
Irmã Miriam Joseph a partir do seguindo exemplo:

- Um morcego é um mamífero
- Nenhum pássaro é um mamífero
- Um morcego não é um pássaro (JOSEPH, 2008, p.165) 55.

1) O primeiro passo da análise consiste em encontrar a conclusão e identificar o


termo do sujeito (S) e seu predicado (P):

Ex: Um morcego (S) não é um pássaro (P).

2) Na sequência identificava-se também o sujeito e o predicado das premissas:

Ex: Um morcego (S) é um mamífero; Nenhum pássaro (P) é um mamífero.

3) Na terceira etapa identificava-se o termo médio em cada premissa com a


letra (M):

Ex: Um morcego é um mamífero (M); Nenhum pássaro é um mamífero (M).

4) Na quarta etapa era preciso determinar o modo (a sequência das formas


proposicionais) e a figura do silogismo. A identificação do modo passava
pela análise de cada proposição, reconhecendo nelas uma forma
proposicional específica. Para a identificação da figura do silogismo era
preciso identificar a posição do termo médio em cada uma das premissas:

Ex: - Um morcego é um mamífero

55
A irmã Miriam Joseph sempre trabalha ao longo de sua análise com a primeira premissa baseada no
termo menor, em contrariedade a prática comum de se posicionar o termo maior sempre na primeira
premissa. Essa escolha se dá pelo fato de o pensamento, para a irmã Miriam, sempre parte do
individual/concreto e quase nunca do geral/abstrato, algo já mencionado anteriormente acerca da criação
simbólica.

75
- Nenhum pássaro é um mamífero Modo AEE
- Um morcego não é um pássaro. Figura II

5) Na sequência marcava-se a distribuição ou não-distribuição dos termos de


cada proposição a partir das modo proposicional encontrado:

Ex: - Um morcego (d) é um mamífero (nd) – S a M


- Nenhum pássaro (d) é um mamífero (d) – P e M
- Um morcego (d) não é um pássaro (d) –SeP

6) A etapa seis consistia em testar o silogismo por completo, aplicando as


regras de distribuição e de construção silogística para averiguar se havia ou
não falácias56.

7) Se alguma fosse descoberta, o silogismo era considerado inválido e a falácia


devidamente explicada, caso contrário o silogismo teria sua validade
confirmada; o exemplo trabalhado foi a de um silogismo válido (JOSEPH,
2008, p. 165-167).

Como sequência de estudos do silogismo, os estudantes aprofundavam também


no conhecimento dos ditos entinemas. Um entinema consiste na omissão de uma das
premissas, sem assim afetar a conclusão do silogismo (SANTOS, 1959, p.53). Embora,
pela definição pareça que um entinema é pouco usual e, portanto, sem importância, a
Irmã Miriam Joseph destaca que os silogismos que aplicamos na vida cotidiana são
principalmente através de entinemas (JOSEPH, 2008, p. 173), visto que os debates e as
exposições discursivas se desenvolvem principalmente por esse modelo lógico, não
havendo razão para pensarmos que todos os debates desenvolvidos ao longo da
humanidade seguiam caminhos diferentes, pois Aristóteles, já em sua retórica,
considerava um entinema um “silogismo retórico”. A Irmã Miriam Joseph traz um
exemplo de entinema para compreendermos melhor seu funcionamento:

56
As falácias serão explicadas em maiores detalhes logo a seguir.

76
Entinema: Um carvalho é uma planta porque é uma árvore.

Expansão em um silogismo completo: Um carvalho é uma árvore;


Uma árvore é uma planta; Um carvalho é uma planta (JOSEPH, 2008,
p.169).

No exemplo acima, nota-se que o entinema já expressa a conclusão diretamente


omitindo a segunda premissa, mas o mais importante é a sua aproximação com a nossa
forma de expressão oral. Para se evitar a exposição completa de um silogismo,
tornando-a enfadonha, aplica-se um entinema com a finalidade de atingir rapidamente a
conclusão, sem com isso afetar a validade do silogismo. A organicidade encontra mais
um ponto de conexão com a próxima arte, a arte retórica.

Havia também a possibilidade de se estudar o sorites, que consiste em uma série


encadeamento de entinemas de maneira a ligar a conclusão de um silogismo a uma
premissa posterior. Nesse conteúdo, os estudantes tomavam maior contato com os
exemplos aristotélicos de sorites, exemplos estes que partiam de uma premissa menor
para encadear-se com premissas maiores:

Sócrates é um homem
Um homem é um anima
Um animal é um organismo
Um organismo é um corpo
Um corpo é uma substância
Sócrates é uma substância (JOSEPH, 2008, p.173-174).

É importante ressaltar o desenvolvimento de extensão e intensão contido no


sorites. A premissa menor, no exemplo acima, amplia-se até chegar à premissa maior e
consolidar uma conclusão, tal como uma escalada na árvore de Porfírio, diferentemente
do epiquerema, que consiste é um encadeamento de proposições em extensão limitada.

Outros três estudos fundamentais que compõem a lógica do Trivium são os


estudos das proposições hipotéticas e disjuntivas, assim como o estudo das falácias.

No estudo das relações hipotéticas o estudante compreendia a possível relação


de dependência entre as proposições, ponto este de definição das proposições
hipotéticas. Neste estudo, a atenção estava voltada para a análise de proposições
77
hipotéticas de três termos, cuja representação é a de “Se S é M, então é P”, ou a de
quatro termos, representada pela fórmula de “Se B é C, então D é E” (JOSEPH, 2008,
p.195-196). Diferentemente das proposições categóricas, as hipotéticas requerem uma
condição para a ocorrência da conclusão, sem com isso revelar veracidade ou falsidade,
mas apenas dependências das proposições de maneira afirmativa. Ex: “Se você parar de
comer, morrerá” (JOSEPH, 2008, p.197).

Havia também a possibilidade de se estudar as proposições disjuntivas, isto é,


proposições que utilizam suposições para afirmar algumas possibilidades de veracidade
a partir da incorporação do termo “ou”, devidamente representada por “S é P ou Q ou
R” como no exemplo: “Um Triangulo é equilátero, ou isóscele, ou escaleno” (JOSEPH,
2008, p.198).

2.3.6 - Falácias

Um dos principais estudos do Trivium no período escolástico diz respeito a


identificação de erros falaciosos em proposições silogísticas. Em definição geral, uma
falácia consiste em um tipo de pensamento vicioso que infringe regras fundamentais do
pensamento silogístico (SANTOS, 1959, p.55), mesmo se com isso não intencionar 57
um silogismo falso, pois a origem da falácia se dá na relação errônea das proposições e
não nos termos que podem determinar a validade ou não dos silogismos completos
(JOSEPH, 2008, p.217). Os estudantes analisavam os dois tipos possíveis de falácias: a
formal e a material.

Uma falácia formal surge da infração a regras que determinam as relações


formais das proposições, tais como supor a validade de uma proposição a partir da
possível falsidade de outra sem com isso se dar conta da possibilidade do valor ser
desconhecido. Em caráter geral é uma falácia que acompanha os descumprimentos das
regras básicas de um silogismo pela não distribuição do termo médio e pela
possibilidade de haver duas premissas negativas, assim como outras regras já
mencionadas anteriormente (JOSEPH, 2008, p.217-218).

57
Todo termo (símbolo) transmite um significado que pode possuir duas intencionalidades: 1) Uma
referência à realidade tal qual na primeira imposição; 2) Uma para referir-se a si mesmo como termo ou
conceito lógico. Exemplo: “Quadrado [segunda intenção] é um conceito [primeira intenção]” (JOSEPH,
2008, p.60).

78
Por sua vez, as falácias materiais originam-se de problemas nos termos
(símbolos) em si mesmos, antecedendo assim um problema nas relações proposicionais.
Dentro dessas falácias é possível separa-las em dois grandes blocos denominados in
dictione e extra dictionem.

As falácias in dictione possuem relação com ambiguidades da linguagem


estabelecida, ou seja, consistem na ausência de clareza dos termos utilizados para a
construção propositiva, podendo acarretar nas seguintes possibilidades falaciosas:

Quadro 7: Falácias in dictione e suas características


Tipo de falácia Natureza Exemplo
P1)Feathers are light.

P2)Light is the opposite of


Possui ambiguidade por simbolizar dois
Equívoco darkness.
ou mais termos diferentes.
C)Feathers are the opposite of
darkness.

Possui ambiguidade de sintaxe ou Ele disse a seu irmão que ele tinha
Anfilobia
estrutura gramatical. ganhado o prêmio. (Quem ganhou?)

P1)Sódio e cloro são elementos


tóxicos.
Estabelece-se pela falsa conjunção, ou
Composição seja, quando as partes predicam
P2)Elementos tóxicos são nocivos.
ilicitamente o todo.
C) Cloreto de sódio é nocivo.
P1)Nove mais sete é igual a
dezesseis.
Oposto a composição, ou seja, ocorre
Divisão quando o todo predica ilicitamente as
P2)Dezesseis é um número par.
partes.
C)Nove e sete são números pares.
A presença ou ausência de acentuação
em uma palavra pode afetar em seu
Acentuação58 Ela pode. Ela pôde.
significado, assim como na ideia que
quer ser transmitida.

58
A falácia in dictione de acentuação pode ocorrer tanto graficamente como oralmente a partir de uma
tonalidade empregada na expressão, como em caso de uso de um tom irônico (JOSEPH, 2008, p.220-
221).

79
Falácia:
P1) Aquele que dorme menos está
mais sonolento.
P2) Aquele que está mais sonolento
dorme mais.
C) Aquele que dorme menos dorme
Ocorre pela suposição de similaridade mais.
Forma verbal correspondente entre formas de
linguagem e significado propositivo. Correto:
P1) Aquele que dormiu menos está
mais sonolento.
P2) Aquele que está mais sonolento
dormirá mais.
C) Aquele que dormiu menos
dormirá mais.
Fonte: JOSEPH, 2008, p.218-223 (adaptado).

Acerca das falácias extra dictionem, o estudante de lógica compreendia a


falsidade de certas suposições ocultas por não possuírem correspondência correta entre
ideias e expressão concreta, falácia essa que poderia ocorrer entre cinco casos dos mais
principais:

Quadro 8: Falácias extra dictionem e suas características


Tipo de falácia Natureza Exemplo
Comunicar conhecimento
Dá-se pela falsa suposição de que é louvável.
Falácia do acidente59 tudo que foi predicado do sujeito Mexericar é comunicar
será predicado do seu acidente conhecimento.
Mexericar é louvável.

Dá-se pela falsa suposição de que


“Não matarás”. Portanto,
Confusão do Relativo uma proposição verdadeira em
matar animais para obter
com o Absoluto determinado aspecto será também
alimento é errado.
absolutamente verdadeira.

Dá-se pela falsa suposição de que Um homem é um animal.


Ignorância do
uma proposição pode ser convertida Bucéfalo é um animal.
consequente
quando não na verdade não pode. Bucéfalo é um homem.

59
A irmã Miriam Joseph alerta para o fato de a falácia do acidente assemelhar-se ao equívoco, entretanto,
o problema desta falácia se estabelece pela mudança da imposição do termo e não do termo em si mesmo,
como no exemplo a seguir: 1)Penas são leves; 2) Leve é um adjetivo; 3) Penas são adjetivos. Leve na
primeira premissa está na primeira imposição (como referência direta à realidade), já na sequência se
coloca na segunda imposição (com referência à gramática).

80
Afirmação: O presidente
dos Estados Unidos
Dá-se pela falsa suposição de que
governa o país inteiro.
60 um argumento foi refutado ou
Ignorância da questão Falsa refutação: O
desmentido, quando na verdade não
presidente dos Estados
o foi.
Unidos não foi eleito pela
maioria dos americanos.

Corridas de cavalo são


Dá-se quando o acidente de uma
nocivas porque algumas
Causa falsa coisa é utilizado para determinar sua
pessoas apostam dinheiro
natureza.
demais nos resultados.
Fonte: JOSEPH, 2008, p. 223 -236 (adaptado).

É possível perceber a relação concreta entre as artes da gramática e a de lógica


pelas falácias in dictione. O erro estabelecido gramaticalmente, seja pelos termos
tomados individualmente, ou seja, pela sintaxe propositiva, refletem diretamente em
uma falácia silogística, ocasionando que o erro de execução em uma das artes ecoará
fatalmente nas demais pela organicidade natural que é própria ao Trivium.

2.4 - A Arte da Retórica

Por fim – mas não menos importante – temos a arte retórica, a arte final da
expressão da linguagem e da coesão orgânica do Trivium. Como nas artes anteriores,
cabe também nesta não retomarmos aspectos históricos abordados no primeiro capítulo,
pois se tornaria repetitivo e fora de propósito para os objetivos deste segundo capítulo.
Todavia, há de se salientar antes do adentro ao conteúdo consolidado da retórica no
Trivium, que esta arte é única tanto em sua constituição histórica como em sua
finalidade. A conclusão quase pejorativa da retórica como uma forma de persuasão
negativa – algo já mencionado – somada aos constantes debates com autores
reconhecidos das outras artes poderiam ter afastado sumariamente a retórica do
“cruzamento dos três caminhos”. Apesar de aparentemente ser a mais perene das três

60
A ignorância da questão pode se manifestar de seis formas, sendo elas: argumentum ad hominem (que
confunde o ponto argumentativo com as pessoas interessadas), argumentum ad populum (que substitui a
prática do raciocínio por um apelo às paixões e preconceitos do público), argumentum ad misericordiam
(que substitui a razão por um apelo emocional, uma compaixão), argumentum ad baculum (que substitui a
argumentação por um apelo à força ou ameça), argumentum ad ignorantiam(que se aproveita da
ignorância dos ouvinetes para ser convincente) e argumentum ad verecundiam (que abandona a
argumentação e parte para o prestigio ou autoridade atribuída a algo ou alguém).

81
artes no contexto medieval, a retórica foi a mais instável e a mais problemática das três
artes e, curiosamente, a mais utilizada também.

A instabilidade transforma-se em estabilidade – e por consequência em


organicidade com as três artes liberais – quando os escritos de Aristóteles sobre a
retórica passam a influenciar diretamente na concepção orgânica do Trivium medieval.
A arte retórica em Aristóteles se transforma em um instrumento de anúncio da verdade e
não mais na mera persuasão desprovida de virtude, passando assim a se comunicar
constantemente com a dialética.

Essa relação direta com a dialética se estabelece pela construção discursiva e seu
conteúdo. A verdade é naturalmente superior à mentira, mas não cabe à retórica
percorrer os caminhos da veracidade e da falsidade, mas sim à dialética. Para a retórica
basta os caminhos percorridos pela dialética mesmo não sendo estes resultantes em
verdades absolutas. Com o objetivo de uma melhor afirmação discursiva, cabe à retórica
se apropriar tanto das provas dialéticas como dos seus contrários, a fim de fundamentar
melhor o discurso e torná-lo ainda mais convincente (MONGELLI et all., 1999, p.77).

Nessa linha argumentativa, Aristóteles considerava que a retórica era uma:

[...] contraparte, ou a outra face, da dialética, e o entinema retórico é a


outra face do silogismo dialético. Ambas essas artes, retórica e
dialética lidam com opinião, com probabilidade e não com certeza
absoluta. Portanto, essas duas artes, e somente elas, são capazes de
produzir argumentos que sustentam dois ou mais lados de uma mesma
questão (JOSEPH, 2008, p.261).

Por essa compreensão de que a retórica se define como “[...] a arte de descobrir
em qualquer assunto dado, os meios de persuasão disponíveis” (JOSEPH, 2008, p.261),
os estudantes de retórica tinham que possuir um ótimo domínio da lógica/dialética 61
para ampliar seu poder de persuasão por meio das três formas possíveis: logos, pathos e
ethos.

61
Cabe tomar nesse momento “dialética” como um conhecimento provável passível de mudanças em
detrimento do conhecimento demonstrável (lógico) já finalizado.

82
O logos62 consiste na exigência de que o emissor convença os receptores com
provas de veracidade acerca daquilo que está anunciando (JOSEPH, 2008, p.261). Neste
sentido não basta apenas anunciar algo, é preciso encaminhar o discurso com
sustentações que convençam o público sobre a validade do que está sendo anunciado.
Para essa empreitada, o exercício dialético contínuo e a busca pela verdade são passos a
priori fundamentais para o exercício retórico, pois o anúncio da verdade averiguada
passo a passo fornece uma sustentação real ao discurso.

Por sua vez o pathos (paixão) consiste na condição de que o emissor coloque os
receptores a seu favor e em uma determinada condição favorável que possibilite a
persuasão (JOSEPH, 2008, p.261). Consideravelmente, este trabalho de mobilização
mental de um receptor consiste no trabalho das emoções (paixões) do público alvo.
Convencer alguém que está emocionalmente predisposto a ser convencido auxilia
determinantemente a efetividade da persuasão. O apelo às emoções mesmo podendo se
constituir como uma falácia pode e deve ser de grande valia para o anúncio da verdade.
A persuasão não se dá apenas pelo anúncio da verdade estabelecida em exercícios
dialéticos, mas também pelo apelo emocional que ela pode implicar nos ouvintes, sem
com isso, entretanto, perder sua validade de enunciado verídico.

Em terceiro e último temos o ethos. O ethos consiste na condição de que o


emissor desperte no público confiança em sua postura e em seu discurso, respeitando
assim sua reputação, bom caráter e bom senso (JOSEPH, 2008, p.261). O ethos
inegavelmente é um fator importante no anúncio do discurso e no contato com o
ouvinte. Alguém que possua credibilidade perante um público estará em melhores
condições de anunciar seu discurso, pois sua reputação despertará no ouvinte interesse e
respeito para ouvi-lo. Sem respeito e prestígio, o emissor terá que investir
profundamente nas duas formas persuasivas anunciadas anteriormente, de maneira que
isto dificulta seu sucesso. O caminho para alguém que não goze de ethos respeitável
pelo público terá de ser conquistado.

É possível notar que as três formas persuasivas estão susceptíveis à falácia, e o


quanto as artes lógica e retórica estão intimamente conectadas. O logos está suscetível a
todas as falácias, pois corre-se o risco de substituir o discurso que leve à veracidade por
qualquer outro que fuja das práticas da racionalidade reta e coerente. Isto não consiste,

62
O conceito de logos possui inúmeras acepções (JAPIASSÚ, 2001), mas neste caso cabe tomá-lo como
um discurso provido de verdade ou falsidade.

83
entretanto, que a utilização de outras formas persuasivas tire a validade do logos, mas
sim que a forma perfeita e correta de persuasão não pode se privar desta.

Já na forma persuasiva pathos há a possibilidade de se cair na falácia do


argumentum ad populum e do argumentum ad misericordiam, apelando para aspectos
sentimentais e emocionais dos receptores do discurso e secundarizando assim o
argumento racionalmente construído. Mais uma vez o apelo ao lado emocional não
caracteriza uma falácia na aplicação retórica quando somado ao logos e ancorado no
prestígio que se manifesta pelo ethos. Por fim, o ethos pode acarretar na falácia do
argumentum ad verecundia que substitui a argumentação racional pelo mero
enaltecimento de títulos e posições. Este tipo de falácia, quando aplicado na retórica,
revela imediatamente uma falta de logos e pathos na persuasão, de maneira que só resta
apelar para o anúncio da autoridade, visto que quando o ethos se manifesta no anúncio
do argumento de maneira correta e orgânica com as duas formas persuasivas anteriores,
engrandece se autoafirmando.

Embora a retória seja vista até os tempos atuais como um discurso falacioso
sempre com intenções não manifestadas, através do uso correto das formas persuasivas
é possível notar uma definição menos maniqueísta da terceira e última arte do Trivium.
O cruzamento entre três caminhos devem levar à verdade e não à mentira, e qualquer
uma das três artes que fuja a esse propósito estaria faria do funcionamento orgânico e
coeso do Trivium.
Além da atenção especial para os meios de persuasão, o estudante de retórica
dirigia também sua atenção para a elaboração e composição de um discurso, de maneira
a identificar os aspectos fundamentais de um bom discurso, cujo cinco fatores
determinantes foram expressos por Quintiliano, algo já mencionado no primeiro
capítulo.
Nesse estudo compreendia-se em um primeiro momento a invenção (Inventio)
do discurso. Nesta fase a atenção se voltava para os argumentos a serem utilizados na
persuasão de maneira atingir os objetivos finais (JOSEPH, 2008, p. 262). O
estabelecimento de um bom conteúdo argumentativo a partir de termos coerentes e
logicamente sustentáveis caracterizava esta etapa do estudo da retórica, visto que sem
um bom preparo no encontro de conteúdo e na clara escolha dos termos, o discurso
poderia desembocar em falácias ou em falhas na recepção.

84
Na sequência dos estudos a atenção se voltava para a organização dos
argumentos no discurso (Dispositio) (JOSEPH, 2008, p.262). Todo o conteúdo reunido
na etapa da inventio seria agora organizado e estruturado em um discurso coerente, com
sequência expositiva delimitada pelo completo ordenamento das palavras. Comumente,
o discurso dividia-se em seis partes pela composição ciceroniana, sendo elas:

1) Um exordium (exórdio), em que o orador procura captar a atenção do


auditório;

2) a narratio (narração), ou exposição dos factos que se presumem ter


acontecido;

3) a divisio (divisão), parte em geral breve, em que o orador se limita a


explicitar a planificação a que vai obedecer o discurso;

4) a confirmatio (comprovação), enumeração dos argumentos que


sustentam a tese que o orador vai defender;

5) a confutatio (refutação), ou contestação dos argumentos aduzidos pelo


adversário;

6) a conclusio (conclusão), também designada por peroratio (peroração),


em que o orador resume as suas posições e termina com um apelo à
benevolência dos juízes 63.

Pelas partes da Dispositio é possível notar que a estruturação do conteúdo


começa por uma organização do discurso que capte de imediato a atenção do ouvinte.
Sem essa apreensão da atenção, toda a sequência da apresentação poderá ser
comprometida pelo desinteresse inicial na exposição, exigindo com isso um esforço
ainda maior do emissor para o sucesso nas etapas posteriores do discurso.

Na sequência da organização do discurso há a exposição inicial do conteúdo


(narratio) que revela a temática que será tratada e a posição do autor perante ela de
maneira clara e consistente. Por vezes a narratio é seguida da divisio, etapa em que
orador anuncia como será feita a sequência do discurso para a confirmação dos fatos
anunciados através da argumentação, dando assim uma organização ainda mais coesa ao
discurso.

A confirmatio e a Confutatio consistem na etapa da argumentação.


Primeiramente apresentam-se os argumentos que validam as informações emitidas nas
etapas anteriores, sustentando assim a tese fornecida. Na sequência contestam-se,

63
Trecho retirado da introdução da tradução brasileira dos “Tópicos” de Aristóteles, edição da Imprensa
Nacional-Casa da Moeda de 2007.

85
através da refutação, os argumentos que potencialmente invalidariam a confirmatio,
reafirmando ainda mais toda a sequência discursiva desenvolvida (MONGELLI et all.,
1999, p. 106).

Por fim, tem-se a conclusio ou perotatio,que consiste no fechamento do discurso


com retomada das posições anunciadas e defendidas de forma sintética, encerrando com
um apelo para a aceitação dos ouvintes ao discurso proferido.

De maneira geral a dispositio poderá determinar o sucesso ou o fracasso do


conteúdo escolhido na inventio, pois de nada adianta tratar de uma temática importante
por uma ordem discursiva que não expressa esta relevância.

Após o estudo da dispositio a atenção se voltava para a última parte da


composição estrutural do discurso, a Elocutio. Esta etapa visava a preparação final do
discurso já inventado e estruturado nas etapas anteriores. Neste momento, o aluno de
retórica preparava seu discurso visando uma boa estrutura gramatical, compondo-o num
ritmo agradável de ser ouvido através de uma linguagem clara, coerente e rica
(JOSEPH, 2008, p.262).

Por fim, o estudante se encaminhava para a parte final do exercício retórico


memorizando o discurso preparado (memoria) e partindo para sua apresentação final
(actio). Ao longo do actio, cabe ressaltar que o emissor alterava e variava o uso de sua
voz e de sua expressão corporal conforme o ritmo e a intensidade estabelecida na
elocutio (MONGELLI et all., 1999, p. 106); reforçando assim a conclusão de que a
retórica também se estabelece como arte liberal rigorosa em suas etapas e orgânica em
si mesma, pois a falha de uma etapa poderia interferir drasticamente na execução das
demais.

Aprofundando um pouco mais na etapa Elocutio, cabe destacar o estudo das


linguagens figuradas desenvolvido para um maior enriquecimento do estilo a ser
adotado no discurso. O estudo das linguagens figuradas dividia-se na compreensão dos
esquemas e tropos linguísticos. Os esquemas consistiam em “arranjos de linguagem ou
pensamento fora do padrão comum, os quais eram divididos em esquemas gramaticais e
retóricos” (JOSEPH, 2008, p.276).

Os esquemas gramaticais versavam sobre a variação gramatical e a alteração


morfológica dos termos, enriquecendo assim a variedade dos estilos adotados no

86
discurso. Já os esquemas retóricos correspondiam aos já mencionados logos, pathos e
ethos. Tais meios persuasivos eram frequentemente treinados pela repetição de letras e
palavras com a finalidade de se enfatizar o ritmo e a estrutura de cada meio retórico
persuasivo, aguçando assim a prática para a execução retórica (JOSEPH, 2008, p.276-
277).

O Tropo, segundo a Irmã Miriam Joseph, consiste na:

[...] mudança de uma palavra do seu significado comum e próprio para


um outro significado, não próprio, a fim de aumentar sua força e
vivacidade. É um uso imaginativo próprio das palavras, em contraste
com os seus usos prático e trivial. (JOSEPH, 2008, p.278).

Para exemplificar um tropo, ela utiliza a frase “Suas mentes estão enferrujadas”,
expressando a palavra “enferrujada” por um sentido figurado, ou seja, não próprio, mas
eficaz em sua aplicação ao relacioná-la com a palavra “mente” (JOSEPH, 2008, p.278).

Alguns tropos possuem maior aplicabilidade na arte da gramática, entretanto,


outros são fundamentais para a retórica, sendo os principais:

1) Símile 64- Este tropo tem por característica expressar a comparação entre
objetos distintos com a finalidade de realizar comparações através das
palavras: como, assim, qual, do mesmo modo que, tal como, tão, igualmente
ou assemelha-se (JOSEPH, 2008, p.278). É possível encontrar vários
exemplos de símile e de outros tropos na bíblia, por exemplo: “E disse o
Senhor: Se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis a esta amoreira:
Desarraiga-te daqui; e planta-te no mar; e ela vos obedeceria” (Lc 17, 6).

2) Metáfora - A metáfora possui as mesmas características de comparação da


símile, mas, diferente desta, não utiliza uma palavra especial para efetuar a
conexão (JOSEPH, 2008, p.278). “O senhor é meu pastor, nada me faltará”
(Sl 23, 1).

64
A símile conceitualmente não é um tropo, entretanto, sua semelhança com a metáfora a coloca nesta
categoria (JOSEPH, 2008, p.278).

87
3) Prosopopeia - Este tropo tem por objetivo: “atribuir vida, sensações e
qualidades humanas a objetos de uma ordem mais baixa ou a ideias
abstratas” (JOSEPH, 2008, p.280). Exemplo: “Aquele foi um dia triste”
(JOSEPH, 2008, p.280).

4) Antonomásia - A antonomásia possui duas funcionalidades: A primeira visa


a substituição de um nome próprio por um nome comum e secundariamente
uma conversão que substitui uma expressão por um nome próprio. Exemplo:
“Deusa dos olhos cinzas” e “Filha de Zeus” se referem a Deusa Atenas
(JOSEPH, 2008,p.281).

5) Ironia – A ironia é um tropo que visa a demonstração dos contrários, quando


ao anunciar uma coisa o efeito que se pretende estabelecer é o seu próprio
contrário. Exemplo: “Pelo meio-dia, Elias começou a zombar deles: Gritem
mais alto; Baal é deus, mas pode ser que esteja ocupado. Quem sabe teve que
se ausentar. Ou então, está viajando. Talvez esteja dormindo e seja preciso
acordá-lo” (I Rs 18, 27).

O estudo dos tropos sem dúvida ampliava a variedade de execução retórica dos
estudantes das artes liberais, fornecendo assim mais uma ferramenta de anúncio da
verdade. Em suma este era o papel da retórica no Trivium coeso e orgânico: anunciar
toda a verdade descoberta a partir dos passos rigorosos desenvolvidos na gramática e na
lógica, não havendo mais nesse objetivo a profunda tensão entre a arte anunciante e as
demais artes do Trivium.

O encontro dos três caminhos se estabelece justamente na busca pela verdade e


as três se encontram na própria verdade. Gramática, lógica e retórica não se relacionam
entre si sem o objetivo primário e estruturante, e a verdade representa este objetivo
envolto à consciência humana, tal como representa o diagrama do “Shield of the
Trinity” em referência ao Trivium:

88
Figura 2 – A união das artes liberais

Fonte: Página de firstboynton.com65

Cada arte fornece seus instrumentos para a consciência operar em direção à


verdade, e elas as próprias se constituem e se estruturam nessa relação como um
caminho inverso em que a verdade sustenta cada arte.

Eis que das contradições estabelecidas historicamente emerge um método


totalmente orgânico, racionalizado e com objetos educativos bem delimitados,
relacionamento que será traçado de forma ainda mais prática no terceiro e último
capítulo deste trabalho.

65
Disponível em <http://www.firstboynton.com/2012/05/07/the-lost-tools-of-learning/> Acesso em Fev.
2016.

89
3 - A Calmaria dos Caminhos Tortuosos
Após analisar de maneira geral a construção das artes liberais, sua estrutura e
funcionamento enquanto possibilidade de ensino, caberá neste terceiro e último capítulo
um fechamento entre as decorrências históricas esboçadas no primeiro capítulo e a
organicidade das artes de ensino que reúne lógica, gramática e retórica em um todo
denominado de Trivium, tornando-a um conjunto de artes coesas. Esse capítulo final
terá como objetivo uma análise da “calmaria” das ditas artes liberais, e o motivo pelo
qual elas podem ser orgânicas e coesas correspondendo a uma proposta efetiva de
ensino.

Para não repetir o que já foi mencionado anteriormente, retrocedendo assim em


análises já desenvolvidas, este capítulo se propõe a analisar brevemente também os
espaços de ensino influenciados pela cultura cristã e, mais do que isto, o espaço de
ensino influenciado diretamente – ou indiretamente – pelo Trivium, ou seja, a
Universidade medieval. A justificativa para se realçar tal aspecto se dá justamente pela
importância em analisar a educação de um período não apenas de maneira teórica,
analisando aspectos abstratos de um determinado método, mas sim pelo aspecto prático
do ato de ensino.

3.1 - Pavimentação dos Caminhos

O conteúdo desenvolvido no primeiro capítulo deste trabalho procurou revelar


de maneira sintética parte do desenvolvimento histórico do Trivium, caracterizando
assim os aspectos gerais da “pavimentação” de seu caminho, aspectos estes em grande
medida conflituosos e contraditórios. Sendo assim, por que então denominar a
construção de um método envolto em conflitos pelo termo “calmaria”? Se muitos
processos ocorrem no desenvolvimento histórico, poucos são os casos em que
poderemos definir por termos que revelam tranquilidade e calmaria, todavia, a
“calmaria” que aqui surge como hipótese se estabelece mais do que um termo adequado
para a representação da construção das artes liberais de ensino, pois se coloca, em maior
profundidade, em posição de representar os desenlaces histórico-filosóficos da história
da educação do período até aqui analisado.

Embora possa parecer pretensioso o julgamento das temporalidades em


dualismos de calmarias e tensões, afinal a História – e principalmente a História da

90
Educação – não permite dicotomias, é possível, e de certa maneira necessário,
reconhecer os movimentos que caracterizam o campo da história.

O desenvolvimento da história humana se caracteriza predominantemente pelo


conflito. Desde as limitações naturais da existência humana até suas contradições mais
profundas em aspectos econômicos, políticos e sociais, a de se destacar que a mola
propulsora da história não se revela na maior parte do tempo calma e linear, mas sim
intensamente conflituosa em retrocessos e avanços, dando sentido assim à presença
humana em sua atuação temporal. Esse operar dialético da história pode revelar em um
primeiro momento a instabilidade tanto para a atuação dos sujeitos históricos em
questão, como para o próprio pesquisador que se propõe a analisá-los; logo, os
primeiros enquanto sujeitos se deparam com as suas próprias contradições de momento,
já, pela perspectiva do segundo, além de se deparar com as suas próprias contradições
de homem presente, terá que se deparar com os conflitos do período analisado,
intensificando-os tanto mais recuar ou se aproximar de seu tempo 66.

Entretanto, alguns conflitos são pretensamente amenizados quando se coloca em


análise os processos verificados e os resultados finais obtidos considerando hipóteses
longínquas de como seria um determinado processo em condições diferentes dos quais
historicamente se efetivou. Os “se’s” da história obviamente não são passíveis de
análise, mas evidenciam a importância da compreensão do processo concreto e seus
desdobramentos. Por essa via é possível compreender que diante das invasões bárbaras
dos séculos iniciais da era cristã, o Cristianismo promoveu uma aglutinação sem
precedente de aspectos potencialmente contraditórios em uma unidade civilizacional
reconhecida até os tempos atuais por civilização ocidental (WOODS JR., 2008). Como
isto foi possível de uma maneira macro é um questionamento que foge aos propósitos e
ao alcance deste trabalho, mas em referência aos processos educativos é possível
elencar respostas a partir do próprio Trivium.

Mediante contexto conflituoso, envolto às disputas bélicas, ideológicas e


políticas, o currículo de ensino se formula lentamente assimilando aspectos desses
mesmos conflitos. Os Bárbaros que até meados do século VIII ainda representavam uma
ameaça à destituição total da cultura clássica Greco-romano foram silenciosamente

66
O recuo na história poderá intensificar a dificuldade pelo acesso as fontes de estudos, todavia, quanto
mais se analisa temáticas próximas do tempo do autor, maior se demonstra a necessidade de uma
compreensão processual da história.

91
assimilados por esta, e isto se deu por uma obra fundamentalmente católico-cristã. O
catolicismo medieval, diante de profusões culturais conflitantes conseguiu, seja dito, por
uma maneira também educacional, criar uma unidade formativa nutrindo-a de sentido
sem descartar aspectos conflitantes com seus próprios dogmas (que ainda estavam
sendo formulados), ensinando povos pagãos através de fontes pagãs, sem com isso abrir
mão de seu projeto de Paideia Cristã (CAMBI, 1999).

A calmaria dos caminhos tortuosos, mediante a atuação da Igreja Católica, ora se


revela como uma consequência natural dos processos engendrados, ora como atuação
consciente para “conquistar” a força, a calmaria para execução de determinados
processos. A consciente relação entre figuras reconhecidas da igreja, ou relacionadas a
ela com as castas imperiais bárbaras revelam uma consciente atuação para se obter a
calmaria em meio de revoltas e conflitos de duração secular. Alguns exemplos ilustram
concretamente esta relação.

O já mencionado Flávio Magno Aurélio Cassiodoro Senador, historicamente


conhecido por Cassiodoro, foi o conselheiro pessoal do rei Ostrogodo Teodorico, o
Grande, assim como de seu filho Atalarico nos séculos V – VI. Grande conhecedor dos
clássicos Gregos e Romanos, sendo também aluno de Boécio, Cassiodoro atuou
profundamente no reinado Ostrogodo, ensinando ao próprio Teodorico o valor das artes
clássicas liberais (MONGELLI, 1999, p. 47).

Talvez o exemplo mais pertinente e determinante para a relação entre Cristãos e


o poder secular se faz presente no Sacro Império Romano-Germânico de Carlos Magno.
O próprio processo de coroação de Carlos Magno, sob legitimação da Igreja Católica,
demonstra a relação já estabelecida e consolidada entre poder secular e poder espiritual.
A relação se intensifica ainda mais quando, para elevar o nível educacional do império e
do próprio clero, Carlos Magno recorre a homens reconhecidamente religiosos e
conhecedores dos clássicos pagãos como Pedro de Pisa, Paulino de Aquilenia e,
principalmente, Alcuíno de York (MONGELLI, 1999, p. 47-48). Ambos os poderes se
auxiliando mutuamente para a promoção e manutenção da cultura clássica através de
caminhos ainda assim tortuosos, mas acompanhados de uma calmaria silenciosa. Os
conflitos resultantes entre o antigo e o novo, entre o clássico e o bárbaro são aglutinados
por uma instituição inicialmente intermediária no processo, mas que se coloca
hegemônica ao longo dos avanços seculares: a Igreja Católica.

92
Por essa tentativa de “acalmar” um contexto que em si mesmo não possui ares
calmos, ganhou o Trivium a possibilidade de se formular de maneira orgânica e sem
grandes interrupções mesmo quando o contexto não lhe fora favorável. Seja nas
dinastias dos Godos, Ostrogodos, Francos ou outros povos que compuseram o período,
havia a presença das artes liberais sob a tutela católico-cristã. O método pudera ainda
não estar plenamente formulado, algo que ocorreu, tal como já mencionado, no período
da Baixa Idade Média, mas permanecia-se o ensino das artes liberais em meio às outras
disciplinas desconectadas ao longo de quase todo o período (MONGELLI, 1999, p. 47-
48).
O outro ponto da calmaria a ser destacado é o já outrora mencionado caráter
orgânico das artes triviais. Embora boa parte do período tenha ocorrido conflitos entre
os ensinos de cada uma das três artes, o embate se revela algo muito mais próprio das
figuras históricas atuantes no estudo/ensino de cada uma das matérias do que
propriamente uma contradição essencial entre elas. Como já analisado ao longo do
segundo capítulo, gramática, lógica e retórica possuem suas especificidades próprias
enquanto artes, mas também possuíam aspectos necessariamente relacionais entre si que
culminam em um método de ensino orgânico e inteiramente coeso em que uma única
arte não dá conta de todo o processo, mas apenas as três artes em caráter unívoco
levaram à verdade.

A organicidade em questão, mais do que mencionada, procurou ser demonstrada


no segundo capítulo deste trabalho, todavia, diante de uma análise unicamente das artes
poderá surgir os seguintes questionamentos: Os clássicos que se constituem como fontes
para o Trivium, são eles mesmos orgânicos com o método? Ou, para sintetizar, por que
o Trivium67 se apoia em autores clássicos e não em outros?

A resposta para tais questionamentos exige a análise de dois pontos que não
correspondem ao Trivium em si mesmo, mas que certamente auxiliam na compreensão
da “Calmaria dos Caminhos Tortuosos”: O conceito de “Clássico” e a Filosofia Perene
da Educação.

67
Em alguns momentos deste trabalho o Trivium foi atribuído como sujeito, e neste momento a
ocorrência se repete. Considera-se obviamente que o Trivium não se auto-formulou, todavia, ao
mencionar o Trivium subentende-se toda sua construção histórico-filosófica desenvolvida até então neste
trabalho como fruto dos sujeitos históricos do período.

93
3.1.1 – O Conceito de “Clássico”

Muitas das vezes ouvimos uma definição tautológica ou imprecisa sobre o que é
um clássico. “Clássico é um clássico por ser reconhecido como tal” ou “clássico é
aquilo que demarca uma época”. Quase sempre há uma dúvida conceitual sobre o que
seja um clássico nos dizeres cotidianos, acabando-se por definir o termo com
subjetividades e relativismos que acabam por desmerecer o próprio conceito.

Entretanto, essa imprecisão conceitual está presente mesmo nas tentativas mais
objetivas de definição. No dicionário Ediouro de língua portuguesa de 1998, aplica-se a
seguinte definição para clássico: “1. Relativo à cultura, às artes e/ou à literatura da
antiguidade Greco-romana. 2. Relativo aos grandes autores europeus dos sécs. XVII e
XVIII. 3. Que segue o padrão clássico (1) em artes, letras ou na cultura. 4. Tradicional.
5. Exemplar, modelar. 6. Autor (de livro, música, etc.) ou obra clássica ou consagrada.
7. Fut. Partida entre clubes importantes e rivais”; poderia citar outras definições
contidas nos mais diversos dicionários para comprovar a imprecisão conceitual e a
presença do adjetivo “relativo” em muitos deles, mas não há essa necessidade visto que
apenas em uma citação já fica exposto que o termo “clássico” titubeia em delimitação.
Diante da dificuldade conceitual, se faz necessária uma tentativa de definição mais
objetiva do termo, pois compreendendo de maneira efetiva seu conceito será possível
compreender o motivo de seu uso e o quanto o “clássico” se faz fundamental para o
estudo do Trivium, revelando assim mais uma forma de calmaria em meio aos caminhos
tortuosos.

Para realização desta etapa defini duas categorias analíticas para a tentativa de uma
compreensão acerca da natureza do que venha a ser um clássico: uma categoria de
caráter objetivista e uma segunda categoria com caráter espiritualista. A primeira se
baseia nos pontos argumentativos de Italo Calvino da leitura dos clássicos e a segunda
em um aspecto transcendental específico dos clássicos que foge da primeira categoria: a
beleza.

3.1.1.1 - Categoria Objetivista dos Clássicos

Em seu livro “Por que ler os clássicos”, Italo Calvino, importante literato
italiano reconhecido internacionalmente, enuncia quatorze teses do motivo para um
clássico ser considerado como tal e a justificativa para lê-los ao longo da vida. Muito

94
embora o livro tenha um enfoque preponderantemente em obras escritas (livros
clássicos) é possível aplicar as teses anunciadas para outras obras que não sejam
somente escritas. A essência de um clássico nas argumentações de Calvino não se
restringe a um determinado tipo de obra, pois parece ser possível aplicar sua reflexão
em outras esferas da produção cultural, trazendo assim um caráter universalista do
termo sem cair em relativismos. Na sequência trarei as teses do livro “Por que ler os
clássicos” analisando-as posteriormente em seu caráter objetivista.

Tese 1 – Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer:
“Estou relendo...” e nunca “Estou lendo”.

Tese 2 – Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para
quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se
reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.

Tese 3 – Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando
se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória,
mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.

Tese 4 – Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a


primeira.

Tese 5 – Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.

Tese 6 – Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha
para dizer.

Tese 7 – Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as
marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na
cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos
costumes).

Tese 8 – Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de


discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe.

Tese 9 – Os clássicos são livros que, quando mais pensamos conhecer por ouvir
dizer, quando são lidos de fato se revelam novos, inesperados, inéditos.

95
Tese 10 – Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do
universo, à semelhança dos antigos talismãs.

Tese 11 – O “seu” clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve
para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele.

Tese 12 – Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem
leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia.

Tese 13 – É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de


barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.

Tese 14 – É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a
atualidade mais incompatível.

A partir das teses enunciadas por Italo Calvino, se evidencia uma categoria
objetivista do clássico, entendendo pelo termo “objetivista” o que se restringe a análise
de um objeto em contraposição a uma análise metafísica dos clássicos. O nome dessa
categoria aqui se estabelece mais por uma contraposição a segunda categoria (essa sim
de cunho metafísico), que irei tratar posteriormente, do que necessariamente seja ela
mesma uma compreensão essencialmente objetivista, embora seja possível concluir que
o clássico na concepção de Italo Calvino, exposta na obra citada acima, retenha-se na
posição de objeto.
Ao longo das teses é possível notar e estabelecer esse fator categórico objetivista
em cada uma delas. Percebe-se que o clássico se estabelece e se define em si mesmo,
independente da interação com o interpretador da obra, e isto caracteriza sua utilização
inicial para o Trivium. É como se o clássico possuísse um altíssimo valor intrínseco
(tese dois) que não dependesse em momento algum de uma perspectiva extrínseca; ele é
próprio, particular e se estabelece por possuir as características descritas por Calvino. O
clássico é um “clássico” por demonstrar, em pequenos atos, uma potência quase infinita.
Há nesse aspecto um caráter “utilitarista” do clássico, sendo este algo que pauta e
determina as mais variadas discussões sem com isso esgotar-se, mas esse caminho pode
ser um tanto subjetivo e os clássicos não são relativos – ou pelo menos não deveriam
ser.
É importante destacar também que, embora o termo clássico possua um valor em
si mesmo, esse valor não é estanque, imutável e, portanto, compreendido em um único

96
momento. Os clássicos possuem relevância intemporal na concepção de Calvino,
revelando sempre algo único e novo a cada nova interpretação tal como citado nas teses
quatro e nove. Essa constante atualidade se dá por uma permanência estabelecida nas
teses três, seis, treze e quatorze que revelam um grande dinamismo do termo clássico.

Na tese três é possível também notar um dos pontos fundamentais na definição


de um clássico: sua capacidade de permanência consciente ou inconsciente nos
indivíduos. O clássico possui a potencialidade de permanecer no indivíduo mesmo sem
este se dar conta de sua presença, e isso se fez presente principalmente nas fontes
principais do Trivium. Seu conteúdo e sua forma se estabelecem dentro de universos –
tal como a tese dez anuncia – sistematizados que buscam expressar valores objetivos. O
clássico é um clássico, nessa perspectiva, por criar certas unidades analíticas que são
intemporais e, portanto, permanentes. Esse caráter perene do clássico justifica sua
atualidade nas teses treze e quatorze demonstrando que, estando ou não em primeiro
plano, ele sempre se faz presente, pois sempre tem algo novo a dizer (tese seis). Essas
unidades analíticas do clássico são tão profundas que podem nos definir tal como
exposto na tese onze, ao ponto de nos nossos atos e postura possuírem correspondência
assertiva ou excludente a partir de seus pressupostos, realçando assim aspectos
ideológicos de nossa própria formação.

Nas teses sete e doze se estabelece um ponto importante de um clássico: sua


existência e seu constante debate a partir de outro clássico. Clássicos “debatem” entre si
ao ponto de estabelecerem um enlace existencial/sequencial que em certo sentido os
define, principalmente no caso clássico escrito que costuma carregar em si um problema
de outro clássico ou de um determinado estilo literário. Essa sequência é altamente
perceptível no que poderíamos chamar de “clássicos da filosofia”. Antes de se
compreender Aristóteles, por exemplo, se faz necessário a compreensão de certos
aspectos da filosofia Platônica e, antes de Platão, da revolução filosófica socrática.
Desse enlace, compreendem-se os traços deixados historicamente por um clássico,
assim como sua posição tal como exposta na tese doze. Entretanto, essa ligação
histórico-formal dos clássicos não exige que para se compreender um assunto do século
XXI seja preciso passar por todas as ações humanas desde o início da história, porém, se
tal procedimento alguém objetivar iniciar, certamente encontrará nos clássicos de cada
época uma resposta e um encadeamento lógico entre elas, de maneira que o presente se
estabelece em consequência do passado.

97
Em linhas gerais, Italo Calvino define o clássico em si mesmo, sem com isso
desembocar em uma explicação tautológica do termo. Ao revelar a riqueza e a natureza
de um clássico em vários aspectos, fica claro que o termo se relaciona em si e determina
seu intérprete, mas nunca sendo determinado por ele. Independente de quem tomar
contato com ele, o clássico revela-se um talismã antigo com equivalência universal.
(CALVINO, 1993, p. 13)

3.1.1.2 - Categoria Espiritualista dos clássicos

A segunda categoria analítica para se compreender o conceito de clássico possui


um caráter mais espiritualista-metafísico em relação ao caráter objetivo da primeira
categoria. Para esta segunda etapa, a base a ser utilizada é um texto em espanhol do
medievalista brasileiro Ricardo da Costa que trata dos clássicos conceitualmente e
historicamente a partir de um ponto específico de sua natureza: a beleza. Em seu texto
intitulado “Los clásicos que hacen clásicos. La importancia de los clásicos y de la
tradición clásica en la configuración del canon de la cultura medieval” de 2013, o autor,
que trabalha com a História da beleza na antiguidade e no período medieval, analisa o
conceito de clássico em uma perspectiva não comum, porém não menos importante, ao
eleger um aspecto do clássico e dele desenvolver uma compreensão universal do
conceito que permite identificar ainda mais a importância do uso de obras clássicas no
Trivium.
Para exercer um complemento conceitual à categoria objetivista, optei por
utilizar uma segunda categoria menos utilitarista e mais contemplativa, metafísica, e o
texto de Ricardo da Costa vai ao encontro desse objetivo: analisar o conceito de clássico
por uma categoria pouco usual e utilitarista, no caso pela sua beleza formal.
A princípio cabe uma colocação fundamental para a compreensão do conceito de
clássico: O fato de sua tradição estar vinculada a uma cultura. A concepção de um
clássico a partir de sua exposição estética está vinculada a um determinado período
histórico, no caso o mundo Greco-romano:

Por lo tanto, en su acepción más sublime, un clásico, además de su


vinculación directa o indirecta con el mundo greco-romano, es el fruto
más hermoso de una civilización bajo aquella influencia, fruto que es
de la plenitud de aquella cultura que vivió en un tiempo histórico
específico. (COSTA, 2013, p. 2)

98
Essa vinculação direta ou indireta do clássico com o mundo greco-romano se
estabelece em dois níveis: 1) Uma busca consciente pela sequência dos pensamentos
antigos nas diversas esferas culturais, sem que isso signifique necessariamente
imutabilidade de pensamento; 2) Uma reprodução inconsciente dos padrões antigos
nessas mais variadas esferas culturais, ao ponto do clássico pós-antigo inteligir com
padrões clássicos greco-romanos sem assim se dar conta. Em ambos os casos cabe à
frase atribuída tanto a Alfred North Whitehead como a Arthur O. Lovejoy para ilustrar
essa vinculação direta e indireta no campo da filosofia, de que “A história da filosofia é
uma coleção de notas-de-rodapé a Platão e Aristóteles” 68.
Além desse vínculo intelectual-cultural com a civilização greco-romana, um
clássico é um produto da plenitude de uma determinada cultura estabelecida em um
tempo histórico, isto é, o clássico é ligado a uma base cultural antiga que se cria – ou se
recria – em seu próprio tempo, corroborando dessa forma com a tese doze de Italo
Calvino sobre a genealogia do clássico.
Esse vínculo estabelecido com a cultura Greco-romano e a sua gênese temporal
própria revelam que o clássico se faz por uma categoria que em si mesma é atemporal
no sentido de ser perene, isto é, o clássico se faz clássico por expressar a beleza a partir
da busca humana por essa:

[...] el filósofo debe siempre elevarse hacia la belleza (La República,


V, 476b)2– en la obra De lo sublime (περἰ ὓψoυς), el Pseudo-Longino
(siglos III-I a. C.) afirmó que nuestra alma, por su propia naturaleza
intrínseca, se eleva ante lo que es verdaderamente sublime, y ese
sentimiento es un exuberante arrebato del pensamiento, o sea, una
expresión sentimental que contiene grandes y nobles pasiones,
traducidas a través de un lenguaje elevado –por eso, la importancia de
la belleza de los clásicos, pues siempre tienen un lenguaje elevado.
(COSTA, 2013, p.3)

No trecho é possível concluir que o clássico é belo e se faz desse modo pela
alma humana de seu criador elevando-a aos mais sublimes sentimentos que resultam na
busca por um modelo esteticamente belo (COSTA, 2013, p.3). Esse modelo possibilita
aos clássicos serem:

[...] universalmente considerados dignos de aprecio por su valor


estético, que significa belleza de la forma, emoción y verdad humana

68
Não há um consenso sobre quem proferiu a frase mencionada, ao ponto de ela ser atribuída também a um terceiro
autor, no caso Bertrand Russel. Entretanto, utilizo a frase apenas para efeito ilustrativo, sem ter a preocupação inicial
de referenciá-la em vista da imprecisão.

99
que sus palabras son capaces de expresar. Por lo tanto, tratase de una
belleza ontológica, es decir, belleza en sí de aquellas palabras, belleza
que la razón puede no solo sentir, sino sobre todo aprender en su
juicio(COSTA, 2013, p.4).

O clássico é belo, e seu valor e sua admiração se dão pelo fato de suas palavras
expressarem belezas formais com as quais a razão humana pode não apenas sentir, mas
aprender e absorver todas as emoções e verdades expressadas em sentenças. Essa
relação estabelecida entre um clássico e seu leitor a partir da beleza se traduz com uma
forma de experiência transcendental (COSTA, 2013, p.6) em que o leitor capta a beleza
oriunda de algo superior, ao ponto da busca pelo belo e seu contato direto ou indireto
serem consideradas experiências transcendentais na concepção grega de beleza.
Entretanto, poderia nesse momento indagar-se sobre a validade da argumentação
transcendental na beleza a partir de uma compreensão relativista do padrão estético.
Essa objeção teria sua sustentação em uma visualização mais “material” da beleza que
se fundamenta nas oscilações estéticas perceptíveis em cada época. Todavia, o conceito
de beleza ao ser relacionado com as concepções clássicas se coloca em um âmbito
preponderantemente transcendental, de forma que belo, bom, verdade e justiça são
termos relacionais que dominam as aspirações humanas. A beleza revela-se como algo
divino, e o bom e divino só podem ser buscados a partir dos atos virtuosos que
enaltecem a alma, e o homem é alma e não corpo, pois o corpo, já em Sócrates, torna-se
apenas instrumento da alma (ANTISERI; REALE, 2007, p.95). Na fuga dos atos
virtuosos têm-se os vícios que obscurecem a alma e ressoam esteticamente no corpo69.
Pela expressão estética derivar da alma, conclui-se que a beleza não é de origem
material, portanto perecível e relativa temporalmente, mas sim transcendental por ser
atribuído a Deus e o homem desejá-la virtuosamente.
Nota-se que por essa linha dedutiva não há clássicos relativos, ou um clássico
que seja clássico apenas em seu tempo. Ao possuir um atributo perene que o define
enquanto tal, o clássico torna-se eternamente contemporâneo, pois a beleza não pode ser
temporalmente restringida, caso contrário, se assim proceder, não haverá critérios
objetivos do belo na estética, assim como do justo na ética. Ao lembrarmos que o belo é
o bom, a verdade e o justo, temos a contribuição intemporal de um clássico.

69
O termo estética tanto em Platão como em Aristóteles está relacionado com a lógica e a ética. Nesse
sentido, a existência da estética está vinculada a ética pertencente à alma, por isso a beleza perceptível
(estética) em Platão possui caráter pedagógico pois eleva o homem à beleza imaterial. (COSTA, 2013, p.
8)

100
Ao possuir um caráter espiritualista-metafísico, o atributo da beleza coloca o
clássico em uma posição universal que revela toda sua importância. Tomar contato com
algo clássico é experimentar o que há de mais belo, tornando a experiência do contato
algo espiritual. Por essa perspectiva houve até o renascimento europeu uma tendência
de se imitar certos aspectos dos clássicos. Imitar o clássico é ter domínio sobre o belo, e
esse pensamento refletiu indiretamente nos processos de ensino desenvolvidos até o
final do período70.
A partir da compreensão da natureza do conceito de clássico é possível
estabelecer mais uma possibilidade para a hipótese da calmaria dos caminhos tortuosos:
o uso dos clássicos e seu caráter atemporal que elevam a alma individual à alta reflexão.

O uso dos clássicos greco-romanos como base para o ensino do Trivium revela
tanto as teses de Italo Calvino para considerar-se o clássico como um objeto a ser
analisado em si mesmo, assim como sua potencialidade de revelar uma beleza que
possibilitava ao estudante das artes uma contemplação de textos de maneira única. Não
por mera casualidade, o caráter mnemônico e imitativo de alguns momentos da
educação medieval se fez presente, pois imitar o clássico é imitar e compreender o que
há de mais sublime no caráter da produção literária humana, caminhando assim em
direção a transcendência.

Cabe também ressaltar que organicamente os aspectos apontados nas duas


categorias se relacionam diretamente com as artes liberais de ensino. A disposição dos
aspectos gramaticais, lógicos e retóricos em uma obra clássica condiz em essência à
aplicação consciente ou inconsciente das artes liberais. Um clássico se sustenta
gramaticalmente, e sustentando-se gramaticalmente consegue uma clara composição
lógico-dialética que possibilitará sua enunciação final no discurso retórico. Um clássico
se constrói pela a composição do Trivium, e o Trivium se constrói pelo clássico.

70
A imitação de certos conteúdos clássicos foi bem comum no renascimento europeu como bem relata a
medievalista francesa Regine Pernoud em seu livro “Idade média: O que não nos ensinaram”.

101
3.1.2 – A Educação na Filosofia Perene 71

Ao se falar necessariamente da composição e do funcionamento das artes


liberais como proposta efetiva de ensino e o uso dos clássicos como suporte para esta
finalidade, se faz necessário também uma análise sobre a perspectiva de educação a qual
corresponde o Trivium.
Por ser tratar de um método de ensino, o Trivium abarca em si uma concepção
muito própria e restrita de educação: a educação concebida por um modo perene. Ao se
falar de uma filosofia perene da educação, compreende-se de maneira imediata certas
características naturais de uma perspectiva formativa realista, que pressupõe que:

1) Os princípios básicos da educação humana são imutáveis, pois a natureza


humana é imutável.
2) Se a natureza do homem é constante, assim também será a educação.
3) A educação deve-se basear na razão, já que a característica peculiar do
homem é esta.
4) A adaptação do ensino deverá sempre levar à verdade, que é universal e
imutável, e não à vida.
5) A educação não é a vida, mas sim a preparação para esta.
6) Contínua leitura dos clássicos (KNELLER, 1972, p.142).

Além da compreensão do caráter intransitivo da atividade intelectual, ponto este


que é inicial ao Trivium, cabe compreender também cada uma das características
mencionadas acima, pois elas revelarão não somente a divergência do modelo
educacional em questão pela comparação a outras filosofias modernamente concebidas,
como também dará sentido ao todo exposto até aqui sobre os princípios filosóficos do
próprio Trivium.

As características 1 e 2 realçam a base da compreensão perene da educação: a


imutabilidade do ser e do processo educativo. Sendo a natureza humana imutável, afinal
o homem é homem em todo o momento de sua existência, nem menos, nem mais,
quando há a presença de sua distinção específica – razão -, deverá também a educação

71
O conceito analisado neste momento de “Filosofia Perene” se restringe à análise de uma filosofia da
educação realista. Tradicionalmente, o conceito de filosofia perene é aplicado à dita “Escola Perenialista”
de René Guénon e Frithjof Schuon, cujos estudos ocorrem na esfera de religião comparada. De imediato,
a escola perenialista não possui relação direta com a filosofia da educação exposta neste momento.

102
humana ser constante. O ser “constante” da educação acompanha dois pontos
fundamentais da natureza humana:

I) O princípio Aristótelico do homem potencialmente tender ao


conhecimento e ser através deste impelido sempre a conhecer.
II) Ao ato contínuo de ensino que requer paciência e disciplina.

A tendência natural ao conhecimento é considerada em potencial, por isso há a


necessidade da constância nos processos formativos. Por este motivo, a concepção de
educação no Trivium nunca será relativa, de maneira que ora siga uma metodologia, ora
outra, ou priorize uma determinada arte em detrimento de outra matéria. A constância é
uma condição sine qua non para a aplicação do método e por ela se manifesta a
necessidade individual da paciência e da disciplina.

A paciência é uma exigência própria do processo formativo. Pela complexidade


do método, pelo nível de profundidade analítica exigida e, por fim, pelo caráter não
utilitarista da formação pelas artes liberais, a paciência deveria acompanhar estudantes e
professores ao longo de toda a formação (KNELLER, 1972, p.142 - 144). A busca pela
verdade é um processo lento, gradual e que exige a priori certas práticas corriqueiras,
práticas estas que conduziam a uma disciplina para os estudos.

Disciplinar condutas é um aspecto presente em vários momentos da história da


educação, e na educação medieval isso também se faz presente. Muito embora o
“disciplinar” no Trivium corresponda à necessidade de uma postura intelectual atenta de
maneira a limitar os espaços e momentos de distração ao longo dos estudos, fazia-se
presente uma disciplinarização corpórea, em alguns momentos acompanhadas de
castigos físicos (MANACORDA, 2010). Há nessa concepção a ideia de que mesmo
sendo racional, o homem tende aos exercícios de suas paixões que o leva à rebeldia
instintiva tirando seu foco em decorrência de sua natureza caída. A queda pelo pecado
original exige do homem uma disciplinarização para retomar seu conhecimento com as
verdades divinas. Liberdade e disciplina, nesse sentido, devem andar juntas na
concepção perene, a partir da disciplina o homem retoma sua liberdade de atuação para
viver uma plenitude.

103
Nas características 3 e 4 têm-se a sequência do resultado a partir da constância
educacional. Tendo controlado suas paixões, o homem é retomado de razão e por essa
baseia sua educação. Através dela, ele buscará a verdade a partir do conhecimento e as
decorrências da busca desta em sua vida serão consequências naturais. Neste sentido,
não há no Trivium uma compreensão de ensino para a vida como em outras concepções
educacionais, pois através de sua essência intransitiva, o ensino inicia-se no sujeito e
neste permanece sem a princípio se concretizar em um ganho prático-material. A busca
pela verdade em primazia é um dos pressupostos para a organicidade das artes liberais
até aqui analisadas. Gramática, lógica e retórica se relacionam entre si com base na
consciência, encaminhando-a assim à verdade que liberta, e que, por consequência,
controla as emoções humanas ao identificar a posição do homem perante a estrutura da
realidade.

Por fim, a sexta e última característica da educação retoma a análise realizada no


tópico anterior para a compreensão da calmaria dos caminhos tortuosos. O clássico é
presente e constante na educação perene e não haveria maneiras de proceder de outra
maneira. Sua utilização se explica tanto pela sua importância intrínseca como
extrínseca; o clássico deve ser imitado, pois o clássico é o exemplo da aplicação da
concepção perene nos estudos.

Se a concepção perene revela o “espírito” da concepção educativa no Trivium,


trazendo-a para a calmaria filosófica, há de se considerar que os caminhos ainda assim
continuam tortuosos e nada é realizado de maneira unânime. Todavia, a calmaria
metodológica medieval levou a uma das grandes criações da história da humanidade: A
universidade. Universidade esta que não somente representa um espaço de ensino em si
mesmo, mas que consolida em grande medida a aplicação do Trivium como currículo de
formação.

104
3.1.3 – A Universidade Medieval

Este subcapítulo em especial analisará brevemente o caráter relacional do


Trivium e sua base na origem da universidade medieval, não aprofundando desta
maneira na estrutura de funcionamento da instituição.

A instrução na Idade Média e, por extensão, a aplicação direta ou indireta das


artes liberais ocorreu em demasia nos espaços de ensino dualísticos que caracterizaram
boa parte do período histórico aqui analisado. A partir dos espaços rurais e urbanos –
em alguns momentos com predominância do primeiro, em outros com predominância
do segundo -, ocorria a formação básica do homem medieval. Tanto as escolas
cenobiais, como as escolas paroquiais (realçando o caráter ora rural, ora urbano da
instrução) corroboraram para a constante análise e reanálise das artes liberais por serem
os espaços efetivos de ensino no período, cada qual com as suas características
particulares, entretanto, permeadas pela concepção do ensino cristão.

A perspectiva da Paideia cristã realçada no capítulo inicial deste trabalho trouxe


a ideia de formação nas escolas medievais. Voltadas principalmente para uma formação
eclesiástica, as escolas através da atuação do clero medieval recrutavam nas famílias
novos alunos para compor suas castas, centralizando assim o ensino em suas mãos e
reforçando sua atuação enquanto poder espiritual (MANACORDA, 2010, p.160).

Pela base originada em tais espaços de ensino, surge uma filosofia e uma cultura
escolar com ares rigorosos que, diante da urbanização quase ininterrupta da Europa,
culmina na origem de uma instituição inédita e com características próprias de
funcionamento: a Universidade.

Caracterizada inicialmente por um espaço livre de ensino em que mestres e


alunos se reuniam por iniciativa própria em locais cedidos pela Igreja católica para a
livre discussão de questões filosóficas e teológicas, a universidade surge como um locus
de iniciativa coletiva. Professores famosos eram convidados para lecionar em tais
espaços para quem os ouvisse, tudo inicialmente estabelecido de maneira precária e com
o auxílio dos moradores da região que cediam suas moradias e estabelecimentos para
estudantes e professores.

Posteriormente, as reuniões regulares ganham espaços físicos de ensino


financiados em grande medida pela Igreja. A partir dessas estruturas físicas, conhecidas

105
até hoje por campus, os jovens que vislumbrassem uma profissão futura podiam
ingressar nas universidades a partir dos 14 anos (WOODS JR., 2008, p.50), formando-
se inicialmente em artes liberais (Trivium e Quadrivium) e, posteriormente, se assim
escolhessem, em medicina, direito ou teologia.

Nesses espaços, o aluno estudava constantemente as artes liberias, além de


realizar e participar de outras atividades:

O graduando ou artista (isto é, o estudante das artes liberais), assistia


a conferências, participava dos debates que eventualmente se
organizavam nas aulas e assistia aos que eram entabulados por outros.
As preleções versavam geralmente sobre textos importantes, muitas
das vezes dos clássicos da Antiguidade. Além dos comentários sobre
esses textos, os professores passaram a incluir gradualmente uma série
de questões que deviam ser resolvidas pelo recurso ao pensamento
lógico. Com o tempo, a análise dessas questões substituiu basicamente
os comentários de textos. Esta foi a origem do método escolástico de
argumentação por meio da discussão de argumentos contrapostos
(WOODS JR., 2008, p.51).

A aplicação do Trivium, além de ser o curso formador, pois os estudantes se


graduavam nas artes liberais, permeava todas as atividades desenvolvidas no espaço. As
preleções sobre os clássicos expunham não somente seu conteúdo, mas a construção
feita pelo autor nos aspectos gramaticais, lógicos e retóricos. Nessas etapas de estudo, o
mestre:

[...] designava alunos para defenderem aspectos contrários de uma


questão. Quando acabava a interação entre as partes, cabia ao
professor “definir” ou resolver a questão. Para obter o diploma de
bacharel em artes, o aluno devia resolver satisfatoriamente uma
questão perante os examinadores, depois provar, naturalmente, que
possuía a preparação adequada e que estava apto para ser avaliado
(WOODS JR., 2008, p.52).

No processo de ensino-aprendizagem o aluno exercia um caráter ativo nas


atividades desenvolvidas. O mestre em exercício acompanhava todo o processo e, ao
final, resolvia o problema do enunciado estudado. Este procedimento era
constantemente realizado e, embora possa parecer enfadonho aos olhos do estudante

106
moderno, era caracterizado por disputas intensas e acaloradas, permitindo que a busca
pela verdade nutrisse o espírito universitário 72.

A titulação ao final dos estudos seguia o mesmo modus operandi das disputas
ocorridas em aula, mas cabendo dessa vez ao aluno a resolução da questão diante de
outros mestres para obter o título. Na sequência, se assim optasse, o aluno poderia
conquistar as titulações de mestre e doutor com uma estimativa que variava em torno de
seis meses até três anos. Muitos, entretanto, obtiveram a titulação em questão de dias,
pois os graus eram atingidos mediante exames de leituras clássicas com as quais muitos
já estavam familiarizados pelas artes triviais (WOODS JR., 2008, p.53).

Pelo trecho mencionado, compreende-se que o Trivium não somente forneceu a


base para os estudos universitários como o compunha quase em totalidade. Propiciando
a formação básica inclusive para o acesso aos níveis de pós-graduação. Dessa maneira a
organicidade do Trivium atinge níveis extrínsecos, fornecendo não somente a formação
individual do ser, mas a estruturação de um sistema educacional que perdura até os
tempos atuais em grande medida.

As calmarias dos caminhos tortuosos recaem aqui de forma conclusiva.


Mediante o currículo de ensino estabelecido na idade média há a formulação de um
modelo progressivamente estável de ensino. Os conflitos mencionados são aglutinados e
organicamente inseridos no Trivium em uma síntese educacional que revela uma
operação minuciosamente operada em principio pela Igreja Católica.

Todavia, toda síntese engendra novas contradições e novos movimentos


dialéticos. A preparação fornecida pelas artes liberais e a origem das universidades,
culminará, séculos depois, em um modelo de ensino que contraditoriamente foge às
práticas intransitivas do próprio Trivium. A função da educação ao final da Idade média
e início do Renascimento passa a se compor por uma forma utilitarista, transitiva, em
que se estuda para uma finalidade que se encerrará em um objeto. Não estranhamente,
uma classe social com caráter prático, não mais contemplativo, se beneficia dos estudos
desenvolvidos e iniciados na idade média. As pesquisas universitárias e o
estabelecimento da ciência moderna proporcionarão avanços materiais e reformulações
gerais e profundas no modo de vida ocidental. O motor da história não cessa, e mesmo

72
É possível visualizar parte dessas disputas no conhecido filme “Em nome de Deus” de Clive Donner.
O filme narra a história de Pedro Aberlado, reconhecido professor de lógica do século XII que lecionou
na Catedral de Notre Dame.

107
diante das calmarias dos caminhos, uma qualidade se faz constantemente presente: Os
caminhos ainda são tortuosos.

3.2 – A Permanência da Tortuosidade

O presente trabalho se encaminha para sua conclusão, todavia, antes de sua


finalização, cabe esclarecimentos sobre determinados pontos até aqui analisados e que
não poderiam ficar sem respostas, pois certamente realçam as tortuosidades presentes no
caminho da educação ocidental.
Tais análises pontuais poderão fugir do recorte temporal realizado até então,
caindo assim em análises de temas contemporâneos sobre educação e filosofia da
educação. Não há como ser diferente. A educação mais do que processual é um campo
que exige uma anamnese própria e constante, afinal, ela não se encerra na Idade Média,
mas permanece em constante conflito nos tempos atuais exigindo mesmo que uma
breve menção dos sujeitos contemporâneos atuantes. Antes de mencioná-la em
conclusão será preciso esclarecer dois pontos que poderão suscitar dúvidas sobre o que
foi dito até aqui. E os pontos as serem esclarecidos forneceram ainda mais subsídios
para a finalização deste trabalho.

3.2.1 – O Pragmatismo de Miriam Joseph

Alguns questionamentos podem surgir naturalmente após o breve relato da vida


da Irmã Miriam exposto no primeiro capítulo, dúvidas estas que podem ser analisadas
sob a luz da natureza do próprio Trivium.

A principal questão a ser pontualmente analisada diz respeito ao possível


pragmatismo da autora e professora em relação a suas concepções pedagógicas, e o
quanto isto pode ter influenciado sua atuação docente e sua análise do Trivium medieval
como pessoa atuante no século XX.

Esse questionamento poderia ter sido analisado nos prolegômenos do segundo


capítulo justamente pela proximidade textual com a biografia da Irmã Miriam, todavia,
alguns aspectos aqui analisados irão demonstrar uma contraposição entre o Trivium e
outros modelos educativos, e poderão ressaltar algumas condições naturais para
aplicação das artes liberais, tornando-se pretensos pavimentos à “calmaria dos

108
caminhos”; poderão também, em certo grau, acrescentar “doses” de tortuosidade,
reforçando a síntese que em si mesma engendra novas contradições.

O questionamento sobre o possível pragmatismo surge principalmente pelo


contexto político-econômico da autora e pelas características do ensino universitário em
seu país. Em síntese, a Irmã Miriam aplicou o ensino das artes liberais em um ambiente
educacional profundamente estruturado no pragmatismo Deweyano. Um ensino clássico
que ocorre em uma nação pragmática, prática, que se constituiu como a principal
potência econômica mundial ao longo dos séculos.

Tal como mencionado na introdução deste trabalho, parte-se da hipótese que


propostas educativas formulam potencialmente civilizações de maneira aglutinadora,
resolvendo contradições com resultantes unívocas e gerando uma síntese que talvez,
sem processos formativos, resultaria em contextos altamente conflituosos. O
pragmatismo Deweyano sem dúvidas operou de maneira determinante para o avanço do
capitalismo no contexto norte americano, seja pelo seu aspecto prático de atuação – algo
facilmente receptível para o modelo econômico em questão –, mas mais precisamente
pela sua capacidade de formar gerações inteiras em uma mentalidade pró-capitalista.

Entretanto, se há uma postura pragmática na atuação da Irmã Miriam, tais


resquícios não se estendem para o Trivium em si, ou, para não cair em anacronismos,
não há diretamente aspectos do Trivium que influenciaram posteriormente o modelo de
progressismo educacional.

Em síntese, o pragmatismo de John Dewey possui cinco características e resultantes


gerais que fogem da natureza do Trivium enquanto proposta formativa:

1) Sua compreensão de que a realidade está em constante mudança.


2) Pelo fato de a realidade estar em constante mudança, os princípios axiológicos
serão sempre relativos.
3) Há uma predominância da concepção de homem em aspecto social.
4) Formação com propósito claramente político para atuação em um modelo
democrático.
5) O valor da inteligência crítica na conduta humana (KNELLER, 1972, p.65 - 66).

109
A natureza do pragmatismo educacional choca-se em contraposição direta com
as perspectivas perene de formação.

A realidade que outrora fora constante na concepção perene torna-se no


pragmatismo um espaço de contínua mudança heraclitiana. Nada é fixo, e a contínua
mudança afetará não somente a própria estrutura da realidade como também os
princípios educativos que dela poderá se extrair.

Pela predominância de valores relativos, o homem na concepção pragmática não


é encarado de maneira intransitiva e individual, mas sim de uma maneira transitiva que
o leve para a melhor forma de convívio social dentro de parâmetros democráticos de
atuação. Este ponto em especial não se coloca diretamente contrário à concepção
perene, pois o que se entende por democracia no pragmatismo não possui
correspondência direta na compreensão pedagógica do século XII, XIII; e seria
anacrônico se assim de fato ocorresse.

A formação pragmática possui um claro fim utilitarista que foge às concepções


perenes e a proposta do Trivium de formação humana. Em tese, não haveria como a
própria Irmã Miriam alterar a essência do método em sua característica para favorecer
este ou aquele sistema político e econômico em específico. Entretanto, se não há a
deliberação direta, certamente poderão ocorrer movimentações dialéticas que levem
algo essencialmente “conservador” a se transmutar e auxiliar indiretamente propostas
contrárias a si mesmo.

O Trivium se constitui como uma base sólida de formação inicial, algo


historicamente comprovado com a base de ensino nas universidades medievais e nos
espaços anteriores a ela. Sendo assim, o Trivium não só permite uma compreensão
intelectual coesa de certos aspectos da realidade como também gera uma autodisciplina
no indivíduo para seguir com foco e coerência em seus estudos. Tais preceitos são
claramente usuais para a sociedade moderna e, mais ainda, para o contexto norte
americano em que viveu a Irmã Miriam Joseph. Sendo assim, ao ministrar o curso de
forma introdutória em universidades, a Irmã certamente preparou o estudante para uma
profundidade maior em quaisquer áreas do conhecimento humano, e se esse curso
auxiliava um sistema econômico diretamente ou indiretamente, melhor a esse sistema.

110
Esse aspecto de auxílio consciente ou inconsciente de propostas educacionais
para sistemas políticos e econômicos leva para um segundo ponto a ser analisado antes
da conclusão deste trabalho: a palavra como ato político.

3.2.2 – A Palavra como Ato Político.

Um termo pode revelar em grande medida a práxis da atuação humana em suas


mais variadas esferas. Diante disto, caberá neste momento uma reflexão sobre o
caráter ativo da palavra, assim como sobre a intencionalidade contida no uso de cada
termo que pode transmitir pressupostos que fogem da neutralidade discursiva.

A "palavra" possui um peso fundamental tanto nas características individuais de


cada arte trivial, como em sua organicidade no todo metodológico. A palavra é o centro
de cada arte, assim como é o centro do método totalizado. Não existe essencialmente o
Trivium sem a centralização da análise nos termos categoremáticos e
sincategoremáticos. Gramática, lógica e retórica utilizam palavras e por elas se
constituem. Por essa constituição essencial, deve se considerar a força intrínseca das
palavras enquanto símbolos representativos da realidade, mas, mais do que isto, como
formas ativas e intencionais de atuação humana.

Por esta força manifesta das palavras é de importante compreensão reconhecer


que todas as análises realizadas nesta dissertação expressam não somente
intencionalidades do período e do próprio Trivium, mas também do presente autor. Em
referência à primeira menção (das intencionalidades do período) cabe o já tão bem
destacado conteúdo católico-cristão das fontes de estudo. Obviamente, utilizar-se de
palavras religiosas de teor cristão em um método historicamente modificado pelo
cristianismo demonstra que o direcionamento das ações educativas do período possuía
uma finalidade política e um objeto concreto: a formação intelectual do cristão para
atuação em uma "Paideia Cristã". Os termos empregados, seja em contexto individual
(interno em cada arte), seja em contexto universal (dentro da cosmovisão do período)
visavam uma perspectiva formativa essencialmente cristã. Obviamente isso não
denuncia de forma alguma uma falha ou limitação do método e do processo formativo.
Concretamente poderiam ocorrer falhas, mas estas falhas não derivam da essência
intencional das palavras, muito pelo contrário, pois talvez sua força esteja exatamente
nisto.

111
Poucos compreenderam a palavra como os medievais, assim como poucos – para
não expressar quantitativos nulos – compreenderam a relação direta entre realidade e
palavra, relação esta não reduzida ao caráter simbólico da representação, mas que
abrange toda intencionalidade concreta que o uso de um termo pode representar. Os
exemplos mencionados nos sermões do primeiro capítulo revelam o funcionamento
deste procedimento.

As formas persuasivas mencionadas em tais exemplos em referência à arte


retórica possuem relação com a intencionalidade da palavra. Tanto o logos, quanto o
pathos e o ethos revelam o aspecto não neutro do termo, e o quanto o direcionamento
discursivo faz parte do uso dos termos empregados. Todavia, independente do uso
intecional ou não dos termos e da prática retórica, a palavra continua a possuir uma
finalidade intencional que dela certamente não derivou. Entretanto, mesmo essa
intencionalidade naturalmente inserida na palavra, não retira desta as contradições
naturais que cercaram o método Trivium, ao contrário, intensifica e revela ainda mais
que os caminhos foram - e continuam - tortuosos pela própria “matéria-prima” das artes
liberais: a própria palavra.

Em respeito à segunda menção realizada no início deste último subcapítulo, cabe


ressaltar que obviamente existem intencionalidades altamente concretas no próprio
autor do trabalho. Desde a escolha do objeto, até as palavras ditas neste momento
revelam intenções e predisposições claras. O uso de uma palavra em detrimento de
outra, a escolha encadeada de termos que reforcem uma ideia para causar certas
impressões são parte da potencialidade das palavras e do recurso retórico como um
todo.

Sendo a educação uma tarefa com início, meio, porém sem fim, há escolhas a
serem feitas, e a partir de tais escolhas não há outra postura a ser realizada senão a
revisão constante dos processos. Ao lado da revisão certamente caminhará a consciência
de que tudo leva a algo e a de que o mínimo termo empregado isoladamente em algum
momento possui a potencialidade de revelar calmarias, mas que certamente também
possui a mesma potencialidade de revelar tortuosidades.

112
Conclusão

Em toda conclusão se faz necessário uma apresentação dos aspectos gerais de


um trabalho de maneira a conduzir para um fechamento formal dos retornos obtidos a
partir de toda construção desenvolvida nos enlaces e desenlaces da aplicação
metodológica. Tal exigência permanece também neste trabalho, afinal, a necessidade de
uma posição final diante das afirmações realizadas nos três capítulos desenvolvidos até
aqui não poderia resultar em mero silêncio.

Os “caminhos” são traçados possuindo um início, meio e necessariamente um


fim. Estes mesmos aqui demonstrados são frutos de uma tradição cultural que remonta a
uma unidade civilizacional que nos possibilita a identificação enquanto homens
ocidentais. Os caminhos do ocidente são gregos e romanos, caminhos estes que em um
determinado momento da história se depararam com um marco histórico capaz de
alterar plenamente todas as demarcações temporais anteriores, mas, mais do isto, a
capacidade de unificar os caminhos colocando também seus pavimentos para formar
uma nova unidade consciente de homem.

A herança clássica sintetizada a uma religiosidade encarnada; os caminhos


pagãos, que ganham força e preservação nas mãos cristãs, e a formação de uma
identidade cultural são marcas de um período caracterizado por uma visão
modernamente deturpada. Os caminhos foram tortuosos, mas ainda assim foram
unificantes e fundamentais para a sequência dos movimentos históricos. Não houve
espaço vazio, obscuridades e atrasos, houve apenas o desenvolvimento do fluxo
temporal com suas contradições e resultados, curiosamente, por vezes unívocos.

Neste sentido, o presente trabalho analisou os conflitos característicos de um


período a partir de sua base educacional, ou seja, do ensino herdado de gregos e
romanos segregado em artes de ensino. Em meio aos conflitos, o Trivium consegue se
manter enquanto proposta formativa mesmo que de forma desconectada e em constante
alteração, até culminar em um método organicamente funcional e coeso.

Há uma calmaria dos conflitos, há um silêncio que se encaminha para uma


síntese das tortuosidades, e o Trivium revela esta possibilidade. Silenciosamente as artes
se comunicavam e o processo formativo se encaminhava para uma coesão. Esse
movimento foi demonstrado neste trabalho e a justificativa para o resultado se coloca de

113
maneira intrínseca e extrínseca ao próprio currículo de ensino. Intrinsecamente pela
natureza das artes que compõem o método e extrinsecamente pela ação consciente das
instituições e sujeitos históricos. O método se constitui de maneira orgânica e com uma
proposta formativa clara, proposta esta que nos faz inevitavelmente pensar a educação
contemporânea com ares de julgamento a partir dos contrastes históricos.

A história da educação instiga uma avaliação contemporânea sobre os


movimentos desse campo em contexto nacional e internacional. Não é preciso apelar
para as comparações históricas – que por vezes são indevidas – para verificar o sucesso
ou fracasso de um modelo, ou tendências a serem seguidas, basta uma percepção e um
reconhecimento de que algo mudou e a mudança não necessariamente pressupõe
progresso e avanço.

Ao se analisar o Trivium com a nossa base curricular atual, se contrasta as


diferenças dos propósitos formativos. É o intransitivo em contraposição ao ultra-
transitivo73, o “em algo” e o “para algo”. A apologética do ensino funcional ganhando
ares de solução nacional.

Essa constatação pode demonstrar um saudosismo de um período não


vivenciado, e um exagero das qualidades de algo que praticamente se extinguiu em
contexto nacional, todavia, mediante o esvaziamento do sentido de formação humana do
contexto atual, qualquer forma de ensino minimamente organizado de outrora
proporcionará saudades.

Não me proponho aqui a citar números e estatísticas do fracasso da educação


atual, afinal não é este o propósito de uma conclusão, mas apelo para a demonstração de
que talvez a obscuridade de outrora seja profundamente mais luminosa que a claridade
dos tempos recentes. Saudosismos não correspondidos se revelam mais uma vez, mas
cabe diante disto uma indagação natural ao se olhar para a história: Olhamos para o
passado com olhar costumeiramente julgador, mas o que será que o passado teria a dizer
sobre nós, homens do século XXI? Adoraria saber o que Aristóteles, Santo Tomás de
Aquino e tantos outros diriam ao entrar em uma sala de aula atual, seja em uma escola
pública, privada ou até em uma universidade. Adoraria saber pela mera curiosidade,

73
A inserção do ensino técnico em ampla escala e o esvaziamento das disciplinas clássicas na reforma do
ensino médio proposta recentemente revela este caráter ultra utilitário do ensino contemporâneo
brasileiro.

114
mas haveria também o temor natural do reconhecimento de que talvez todos nós
tenhamos realmente que “apertar parafusos”.

A descida ao buraco se intensificou nas últimas décadas e talvez tenhamos de


retomar outros caminhos, caminhos que podem certamente ser tortuosos, mas ainda
assim caminhos.

115
Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Napoleão Mendes De. Gramática Latina. 29ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras. 17ed. São
Paulo: Loyola, 2012.
ANTISERI, Dario & REALE, Giovanni. História da Filosofia: 1) Filosofia pagã antiga.
3ed. São Paulo: Paulus, 2007.
ARISTÓTELES. Arte retórica, arte poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São
Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964.
ARISTÓTELES. Das Categorias (Órganon). Tradução de Mário Ferreira dos Santos.
2ed. São Paulo: Matese,1965
BARNES, Jonathan. Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2005.
BÍBLIA – Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
BONI, A. de; PICH, Roberto H. A recepção do pensamento Greco-romano árabe e
judaico pelo ocidente medieval. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
BUFFA, Ester. A questão das fontes de investigação em História da Educação. Série-
Estudos. Campo Grande: Editora da UCDB. n. 12, p. 79-86, 2001.
CALVINO, Italo. Por que ler clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: Unesp, 1999.
COOPER, J. M.; HUTCHINSON, D. S. Plato Complete Works. Indianapolis /
Cambridge: Hackett Publishing Company, 1997
COSTA, Ricardo da. Los clásicos que hacen clásicos: La importancia de los clásicos y
de la tradición clásica en la configuración del canon de la cultura medieval. Costa
Rica: UCR-UNA, 2013. v.1. 74p.

DE PAULA. Eurípedes Simões. As Universidades Medievais. Revista de História


(USP), v. XV, p.3-12, 1957.
FONSECA, Eduardo. Universidade: Do Trivium-quatrivium ao ensino-pesquisa
extensão numa visão “on the road”. São Paulo: Alexa Cultural, 2007.
GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
HUGO DE SÃO VÍTOR. Didascálicon – Da arte de ler. Tradução Antonio
Marchionni. Petrópolis: Vozes, 2001.

JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de


Janeiro: Zahar, 2001.
JOSEPH, Miriam. O Trivium: as artes liberais da lógica, gramática e retórica. São
Paulo: É Realizações, 2008.

116
KNELLER, George F. Introdução à Filosofia da Educação. 4ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1972.
KOSMINSKY, E. A. História da Idade Média. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1960.
LAUAND, Luiz Jean. Cultura e educação na idade média. 2ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2013.
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1986.
MANACORDA, Mario A. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 13ed.
São Paulo: Cortez, 2010.
MARROU, Henri-Irinée. História da educação na antiguidade. São Paulo: EPU, 1966.
MCLUHAN, Marshall. O Trivium Clássico. São Paulo: É Realizações, 2012.
MONGELLI, Lênia M. et al. Trivium e Quadrivium: as artes liberais na idade média.
Cotia, SP: Íbis, 1999.
MONROE, Paul. História da educação. São Paulo: Editora Nacional, 1985.
PERNOUD, Régine. Luz sobre a idade média. Portugal: Europa-América, 1997.
PERNOUD, Régine. Idade média: o que não nos ensinaram. Rio de Janeiro: Agir;
1979.
REALE, Giovanni. Metafísica de Aristóteles - Vol.1. São Paulo, Loyola: 2001.
REALE, Giovanni. O Saber dos Antigos: terapia para os tempos atuais. 4ed. São
Paulo: Loyola, 2014.
REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão. 2ed. São Paulo: Loyola,
1997.
RUBENSTEIN, Richard E. Herdeiros de Aristóteles. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
SANTOS, Mário Ferreira dos. Lógica e dialética. São Paulo: Logos, 1954.
WOODS Jr., Thomas E.. Como a igreja católica construiu a civilização ocidental. São
Paulo: Quadrante, 2008.

117

Você também pode gostar