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Trivium - Trabalho Acadêmico
Trivium - Trabalho Acadêmico
Trivium - Trabalho Acadêmico
São Carlos
2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS – CECH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
São Carlos
2017
Aos meus pais, Tania Maria Camilo e Juares Carlos Camargo da
Silva pelo apoio incondicional mesmo nos momentos de maior
dificuldade.
Agradecimentos
This dissertation is to analyze the construction and teaching method of the three liberal
arts (grammar, logic and rhetoric) middle age historically known for Trivium. For this
purpose, the dissertation aimed to analyze, at first, historical-philosophical construction
of each of the arts that are part of the method, highlighting its main builders and its
main sources of study throughout the Middle Ages. In a second step, the study sought to
address a specific analysis of the method, highlighting its purpose and its practical
functioning as an educational proposal for a historical period. At this stage, we chose to
highlight the teaching practice of each of the mentioned arts, as well as its relationship
to the organic whole that highlights the method. Finally, the work is a balance between
historical and philosophical construction method and its end result as effective proposal
for human formation, comprising therefore the dialectical unfolding of methodological
construction and its final synthesis.
Introdução ................................................................................................................... 3
1 - A Construção Histórico-filosófica das Artes Sermocinales ................................ 14
1.1 - Contradições gerais e discordâncias curriculares .......................................................... 14
1.1.1 - A Presença do Cristianismo na educação .............................................................. 16
1.2 - O Caminho da Gramática ............................................................................................ 18
1.3 - O Caminho da Retórica ............................................................................................... 28
1.4 - O Caminho da Lógica ................................................................................................. 34
2 – O Encontro dos Três Caminhos .......................................................................... 38
2.1 - Prolegômenos ............................................................................................................. 38
2.1.1 - Sobre a natureza da linguagem no Trivium ........................................................... 45
2.2 - A Arte da Gramática ................................................................................................... 48
2.2.1 - Palavras categoremáticas ...................................................................................... 51
2.2.2 - Palavras sincategoremáticas .................................................................................. 53
2.3 - A Arte da Lógica ......................................................................................................... 61
2.3.1 - Formas proposicionais .......................................................................................... 65
2.3.2 - Conjunção ............................................................................................................ 68
2.3.3 - Oposição .............................................................................................................. 70
2.3.4 - Inferência ............................................................................................................. 71
2.3.5 - Silogismo ............................................................................................................. 72
2.3.6 - Falácias ................................................................................................................ 78
2.4 - A Arte da Retórica ...................................................................................................... 81
3 - A Calmaria dos Caminhos Tortuosos ................................................................. 90
3.1 - Pavimentação dos Caminhos ....................................................................................... 90
3.1.1 – O Conceito de “Clássico”..................................................................................... 94
3.1.1.1 - Categoria Objetivista dos Clássicos ................................................................... 94
3.1.1.2 - Categoria Espiritualista dos Clássicos ................................................................ 98
3.1.2 – A Educação na Filosofia Perene ......................................................................... 102
3.1.3 – A Universidade Medieval .................................................................................. 105
3.2 – A Permanência da Tortuosidade................................................................................ 108
3.2.1 – O Pragmatismo de Miriam Joseph ...................................................................... 108
3.2.2 – A Palavra como Ato Político. ............................................................................. 111
1
Conclusão ................................................................................................................ 113
Referências Bibliográficas ...................................................................................... 116
2
Introdução
3
passadas, encaminhando assim a história em um fluxo contínuo, mas não concêntrico,
entre passado – presente – futuro.
Quando buscamos encaixar a idade média dentro dessas duas perspectivas (de
longa ou curta duração), a primeira salta aos olhos pela própria demarcação temporal
que sofreu a idade média ao longo dos anos de trabalho historiográfico. Comumente
entende-se por idade média o período que vai do século V, com a queda do Império
Romano do Ocidente, e vai até o século XV com a tomada de Constantinopla pelos
Turcos Otomanos. Um período de dez séculos, portanto mil anos, revelaria a
permanência de certas formas estruturais que pouco se alteraram. Essa visão é em parte
verdadeira, mas na tentativa de evitar rotulações e generalizações, um objeto pode se
mostrar muito mais dinâmico quando se desprende de algumas amarras metodológicas.
A própria idade média surge de um período de extremo fervor cultural, uma profusão de
culturas diversas que, no Cristianismo, se reestabelecem de maneira sincrética. É
possível até dizer que a longa duração se estabelece pela realização e manutenção de
uma ordem cultural Cristã, ou seja, que determinadas cosmovisões podem dar ensejo às
permanências estruturais, e que as curtas durações surgem em rompimentos
revolucionários com a ordem, este é o eterno debate e a eterna disputa entre
conservadores e reformadores, reacionários e revolucionários; entretanto, os próprios
movimentos revolucionários podem cair em pontos de constância. O revolucionário que
foge à dialética tornar-se-á um conservador mais cedo ou mais tarde.
A compreensão de que a idade média pode ser dinâmica passa também pela
análise dos processos educativos ao longo dela. Sem dúvida que há certas permanências,
como, por exemplo, o caráter mnemônico de determinadas práticas educativas, ou os
constantes castigos físicos exercidos pela também constante igreja, principal instituição
formativa. Entretanto, mesmo por trás das permanências há um fluxo, e esse fluxo é
perceptível nas artes da mente (Trivium) que eram lecionadas ao longo do período. A
própria constituição das disciplinas sofreu várias alterações ao longo dos séculos,
acompanhadas quase sempre de uma constante revisão filosófica de ordem
patrística/escolástica e de uma intensa disputa pela solidificação da doutrina católica. As
permanências nessa ordem filosófica se dão justamente em meio a grandes disputas
dialéticas e, curiosamente, essas disputas se intensificam gradualmente quanto mais se
encaminha para uma compreensão dialética estabelecida pela escolástica.
Destacar certos pontos específicos de um período pode justamente clarear e
obscurecer outros, e aqui caímos em outro problema historiográfico sobre uma
4
compreensão macro ou micro dos processos históricos. Quando se analisa um
determinado período, e se estabelecendo como homem/pesquisador do século XXI,
deve-se levar em conta que ainda é possível olhar para o passado buscando uma visão
macro do processo. Uma visão holística das civilizações permite uma compreensão total
dos fenômenos socialmente e culturalmente integrados, percebendo assim que a longa
duração não é estática como já dita, e que sua diferença com a curta duração é muito
mais afeccional do que substancial, ou seja, de intensidade. A visão marxista da
história deixa bem claro a natureza da compreensão historiográfica e a análise efetiva
dos processos longevos ao estabelecer que toda realidade social é mutável, e que mesmo
diante de estados de equilíbrio relativo é possível notar que esse equilíbrio provem de
mudanças e darão ensejos a novas mudanças; é percepcionar que a compreensão
epistemológica entre passado, presente e futuro se dá de forma dialética e não
necessariamente contínua, e que a circunstância de não ser fugaz não revela uma
completa estagnação de processos. O motor da história sempre está em movimento e o
ato de olhar para o passado implica uma introspecção de que estamos enxergando algo
do qual somos herdeiros – pelo bem ou pelo mal -, sendo possível também – por que
não? – convocar o passado a depor sobre o nosso presente, afinal a história pode ser
evolutiva, mas uma evolução não necessariamente pressupõe progressos.
A idade média quando tomada pela longa duração e analisada por uma
perspectiva holística será mais bem compreendida através de um exercício dialético, e
os processos educativos seguem essa mesma lógica. Obviamente, compreender todo um
período por um método que implica afirmação e negação recairá em certos recortes
metodológicos, sem os quais demandaria um árduo trabalho de pesquisa, podendo este
permanecer por anos sem com isso encerrar-se ao final de uma vida.
O lançamento da “história problema” com ensaio de hipótese possibilita saltos
explicativos (hipotético-dedutivos) que podem clarificar um determinado período
histórico. Seja por interesse do pesquisador, ou por limitações de outra ordem, o recorte
metodológico e a busca por uma resposta e pela compreensão de determinados
processos recaem na história problema, que foge das proposições positivistas – que
possuem seus totais méritos, principalmente no que tange erudição e delimitação
científica do campo historiográfico. Mesmo os paradigmas que não adotam diretamente
uma história problema (método Weberiano, por exemplo) procuram uma delimitação de
objeto. O próprio Weber na realização de seu método compreensivo, procurando assim
compreender o sentido das ações humanas, toma como “problema” o surgimento do
5
capitalismo. A sequência da análise pode naturalmente abarcar outros métodos e outros
problemas – no caso dele (Weber) qual vertente específica do protestantismo possui o
“ethos” mais propício para as práticas capitalistas? –, mas isso não esconde que
inicialmente houve um problema a ser estudado.
Ao tomarmos a “história problema” como um procedimento metodológico,
podemos passar a ideia de que estamos caindo em análises microtemáticas, cujo
objetivo foge a compreensão geral de um fenômeno, buscando assim compreensões
pontuais de um contexto muito mais amplo e complexo. É obviamente o contrário disto.
Partir de um problema específico pode clarear o todo, mas isso se estabelece em uma
relação dialética em que o todo interfere no pontual, e a análise do pontual necessita
uma compreensão geral.
Os microtemas podem obter sucesso nas pesquisas historiográficas, mas a ênfase
nas análises pontuais nasce com outra perspectiva. Nascida no ambiente pós-moderno
em que tudo é extremante relativo e que a busca pela verdade é mera questão
consensual, caiu-se em uma conclusão de que tudo é estabelecido por vias culturais e
que quaisquer expressões socioeconômicas são meros discursos culturalmente
construídos. Dizer que tudo é cultura é, ao mesmo tempo, dizer que nada é cultura. Se
tudo é uma única coisa, conclusivamente ela não é nada, e estabelecendo essa
perspectiva analítica, a história cultural passa a tomar para si objetos de estudos
fragmentários para assim ter algum objeto concreto passível de análise. Mutatis
Mutandis, a partir de então se visualiza uma profusão de estudos pontuais que
desembocam na mera curiosidade, muitas vezes encerrando-se em si mesmos sem
quaisquer amarrações macroanalíticas. Para além desse resultado pouco profundo, há
certa omissão em relação à própria compreensão do presente histórico, o que leva a um
historicismo agudo que encara toda e qualquer verdade como válida apenas em seu
tempo. A história passa a ser encarada como momentos desconectados cuja
inteligibilidade não faz sentido algum fora dos padrões culturais. Da história se extrai
curiosidades e nada muito além; problema este, porém, que transcende a própria ciência
histórica e recai em outras áreas do conhecimento, não precisando de muitos
argumentos pra demonstrar que inclusive as ciências exatas e suas divulgações caem em
curiosidades ou demandas de mercado.
As análises desses pontos metodológicos circundam todo objeto desta
dissertação. Dentro da idade média é possível estudar objetos fragmentários,
conectando-os ou não com uma visão – e cosmovisão – mais ampla. É possível também
6
vislumbrar uma visão macro do processo, realçando aspectos sociais, culturais ou
econômicos. Potencialmente possível é também ver os ciclos de tensão na longa
duração, que podem ser tratados nos estudos educacionais através dos tipos ideais
weberianos, criando arquétipos analíticos que permitem notar distanciamentos e
aproximações de concepções educativas. Em todas as posturas macroanalíticas, faz-se
necessário o entendimento de que a história está em movimento, e não é um movimento
linear e de um único aspecto (cultural, econômico e etc). A história é complexa em si
mesma, e a escolha metodológica traz consigo ganhos e perdas, e é nesse momento que
o sujeito da pesquisa assume uma postura e arca com suas consequências, sem
demonstrar medo pelo julgamento histórico ou esperança de que um dia a história o
absolverá.
Após essa breve constatação metodológica, cabe revelar como se chegou ao
objeto de pesquisa e como escolhi tratá-lo ao longo das próximas páginas.
Comumente, a definição de um objeto de pesquisa por parte do pesquisador
esbarra em inúmeros problemas metodológicos. Sua determinação, seu tipo específico
de abordagem e o constante contato com o objeto transformam-se em um verdadeiro
processo dialético em que sujeito e objeto relacionam-se de maneira intensa e profícua,
quase sempre criando e recriando as relações e trazendo novas perspectivas tanto sobre
o objeto, quanto sobre o sujeito da pesquisa.
1
Processo pelo qual a consciência individual procura remontar suas experiências sensíveis buscando a origem de
suas ideias.
7
que reproduzi ao longo dos demais anos reduzia-se aos preconceitos de uma
historiografia que enxergava – e ainda enxerga em certa medida – no
renascimento/iluminismo, a superação da inércia medieval e um grande avanço da
cultura civilizacional no ocidente. Sendo assim, a civilização natimorta, ou o período
“tenebroso” do século V ao XIV – recorte popularmente mais utilizado - conhecido
como “idade das trevas” (PERNOUD, 1997), foi secundário em minha formação
enquanto estudante no ensino público, formação esta que priorizava o renascimento
cultural clássico e a suposta “luminosidade” da sociedade moderna. Por consequência,
pessoalmente sempre avaliava e desprezava o período medieval com base em um senso-
comum escolar que enquadrava e impossibilitava a análise de todo um período, caindo
nos lugares comuns e repetindo chavões como “dominação eclesiástica”, “atraso e
obscurantismo educacional” e seus mutualismos com as “estruturas produtivas” ditas
feudais, sem com isso partir para um exame racional da temática. Essa predisposição em
exaltar o renascimento europeu e a retomada da cultura Greco-romana, colocando em
segundo plano – ou por vezes até ocultando – o período medieval é perceptível no livro
“História da Educação na Antiguidade” de Henri-Irénée Marrou, em que ele
desconsidera o período medieval buscando assim uma ligação direta entre antiguidade e
modernidade:
8
período medieval, olhar esse contrário às palavras de Marrou (1966) e que se veem
sintetizadas em um trecho do livro “História da Pedagogia” de Franco Cambi:
[...] a Idade média não pode ser vista como matriz do Moderno e nada
mais, já que, na realidade, é, pelo contrário, uma longa época de
fermentações, de transformações, de rupturas e renovações, de
esfacelamentos e reagrupamentos, que abarca o campo econômico e o
social, o político e o cultural etc., dando a imagem de um fervilhar de
eventos desenvolvimentos em muitas direções, os quais – embora
ocorrendo sob o fundo da ideologia cristã que alimenta e domina a
história daquele mil anos – nos fornecem a visão de uma civilização
vital, aberta em muitas direções e absolutamente não-monolítica ou
bloqueada, antes até inquietamente dedicada a salvaguardar ou impor
instâncias de liberdade dentro das malhas compactas de uma
sociedade aparentemente uniforme. (CAMBI, 1999, p. 154)
10
compreensão do tema. Nessa etapa pude notar que as produções brasileiras sobre o
assunto são extremamente escassas 2, reduzindo-se em poucas produções de livros e
algumas dúzias de artigos que circundam o tema sem abordá-lo diretamente. Encontrei
quatro livros sobre o assunto, dois dos quais são traduções de obras de língua inglesa:
“Trivium Clássico” de Marshall McLuhan e “O Trivium – As artes liberais da lógica,
gramática e retórica” da Miriam Joseph; e outros dois nacionais intitulados:
“Universidade: Do trivium-quatrivium ao ensino-pesquisa extensão numa visão ‘on the
road’” de Eduardo Fonseca e “Trivium e Quadrivium – As artes liberais na idade
média” de coordenação de Lênia Márcia Mongelli.
2
A escassez de estudos sobre períodos longínquos e não nacionais possuí certa justificativa pela ausência
ou dificuldade de acesso às fontes primárias. Longe de ser algo determinante, os “obstáculos” de acesso
às informações ainda dificultam a profusão de determinados estudos no Brasil.
3
O livro cujo título é “Universidade: Do trivium-quatrivium ao ensino-pesquisa extensão” de Eduardo
Fonseca possui um erro de grafia no mínimo estranho, pois o termo correto para se referir as quatro artes
liberais posteriores ao trivium é “quadrivium” derivado do “quad” (quatro) latino e não “quatrivium”
como está no título do livro.
11
Por fim, a única produção brasileira sobre o assunto diz respeito à obra
“Trivium e Quadrivium – As artes liberais na idade média” que consiste em uma série
de estudos escritos e compilados por estudiosos especializados em cada uma das sete
artes liberais. Uma compilação rica em detalhes e fontes, mas que, por suas
características de estudos compilados, apresenta-se de forma fragmentada.
12
Pernoud, Étienne Gilson e Jacques Le Goff que também passam brevemente pelo
Trivium por terem pesquisado o período.
13
1 - A Construção Histórico-filosófica das Artes Sermocinales
14
clássica grega são alguns dos pontos comuns e generalistas que caracterizam o período.
Todavia, toda generalização pode, variavelmente, desembocar no segundo motivo
exposto no início deste capítulo.
15
se em autores que primam pela análise pormenorizada, evitando assim unanimidade de
pensamento, etapa esta predecessora dos julgamentos históricos generalistas. Mais do
que um breve relato contextual, este primeiro passo visa ambientar as exposições
posteriores do verdadeiro objeto deste trabalho assim como a inserção de pequenos
aspectos metodológicos que possuem o objetivo de demonstrar os movimentos
complexos da sociedade feudal.
16
em consonância com a teoria das reminiscências em Fedro 4 (REALE,2014, p. 164 -
168).
Esta nova perspectiva formativa cristã sustentou-se em dois momentos
fundamentais do novo testamento, o primeiro baseando-se nos sermão da montanha do
evangelho de Matheus e Lucas e o segundo nas epístolas paulinas. As recomendações
de Cristo em seu sermão introduziram uma série de novas prerrogativas morais que
demonstram o novo caminho da formação cristã, pautando-se no amor – algo já
mencionado –, e no discernimento para uso da humildade e da caridade em momentos
concretos, como no exemplo abaixo:
4
O Eros do Banquete platônico e o Fedro possuem características particulares que se autocomplementam.
17
perspectivas formativas, mesmo sendo Taciano de Síria um profundo crítico ao
paganismo e a filosofia. Tal como realça Frederick Copleston em seu livro “História da
Filosofia”, os primeiros séculos de cristianismo conviveram na dualidade de criticar o
paganismo e suas vertentes gnósticas se apropriando em grande medida de recursos
filosóficos tipicamente pagãos5.
5
Etienne Gilson em seu livro “O espírito da filosofia medieval” trabalha com a problemática de se definir
uma “filosofia cristã” pelos próprios métodos não teológicos da filosofia clássica.
18
uma compilação de estudos isolados de especialistas sobre cada uma das artes liberais
na idade média, realçando assim de maneira sintética os principais caminhos percorridos
por cada disciplina que integra o currículo medieval. Seria possível realizar, a partir
desta característica compilatória da obra, um trabalho mais específico de cada arte,
destacando pontos com enfoque maior, recortando em demasia o objeto de estudo deste
trabalho. Todavia, tal como mencionado na introdução, o olhar “macro” será o enfoque
deste trabalho, partindo das características gerais de cada arte e seus pontos
contraditórios.
Nesta fase posterior (a fase da leitura) a rapidez da compreensão cedia seu lugar
à precisão. A partir da leitura de poesias e textos de grandes poetas, o aluno era levado a
compreender as “miudezas” da gramática, analisando e percebendo as acentuações
empregadas nos termos, assim como a intensidade de certos termos que provocavam um
efeito peculiar na escrita clássica. Curiosamente, este processo intenso de leitura e
análise possuía como principal faculdade desenvolvida a memorização. A precisão não
estava somente em compreender os aspectos gerais da língua, mas os aspectos
particulares dos poetas clássicos consultados. Mais do que a invenção, caberia neste
momento a compreensão e a imitação das características gramaticais dos textos
clássicos (MONGELLI, 1999, p. 37-38).
Essa característica possuía ainda mais força pelo próprio dualismo que
compunha a classe dos professores de gramática, profissionais estes que não apenas se
dedicavam à gramática, mas também à retórica:
19
Os gramáticos latinos que, desde a origem dessa atividade, ensinavam
também retórica, eram conhecidos por literatti, e, se tomarmos em
consideração o testemunho de Suetônio6, se distribuíam por duas
classes: os que interpretavam criticamente os textos e os que
oficialmente exerciam a profissão de ensinar. [...] estes últimos
recebiam o nome de grammatici (MONGELLI 1999, p.38).
Mais do que uma mera correção do falar e do escrever, a ars recte loquendi
visava uma compreensão e seguimento das regras gramaticais que disciplinam a ordem
das palavras, ou seja, casos de concordância entre sujeito e verbo e a busca constante
pela fuga dos barbarismos e solecismos que descaracterizavam a língua (MONGELLI,
1999, p. 39-40). Tal perspectiva do estudo gramatical possuía justificava no período
6
Caio Suetônio Tranquilo (Gaius Suetonius Tranquillus) - Escritor latino do primeiro século da era cristã.
7
Os menores salários pagos à docência da época se destinavam aos professores das primeiras letras, tal
como destaca Manacorda (2010) e Franco Cambi (1999).
20
inicial da era medieval – e até o período inicial da baixa idade média –, pela alta
profusão cultural/linguística do período. Para uma tentativa efetiva de manutenção da
linguagem, a ars recte loquendi era seguida à risca como forma de critério de qualidade
para o desenvolvimento gramatical. A contradição que se coloca, entretanto, dentro
desta perspectiva de manutenção, é que mesmo diante de muitas tentativas de correção e
coerção da escrita, o baixo nível cultural permanecia constante até o século IX,
alterando a situação no período graças à atuação do Imperador Carlos Magno.
Por sua vez, a enarratio poetarum se caracterizava não pelo regimento e pela
correção típica da natureza da arte gramatical, mas sim por uma característica de
estudos filológicos com o intuito de interpretar obras clássicas da literatura. Mais do que
uma mera leitura das obras, a enarratio poetarum era um estudo profundo do estilo
clássico de escrita, o estilo belo a ser mantido e defendido diante das invasões bárbaras,
característica esta que não poderia ser perdida sendo ela pagã ou não pagã.
8
Marco Fábio Quintiliano (Marcus Fabius Quintilianus) – Professor de gramática e retórica do primeiro
século da era cristã.
21
O primeiro modelo diz respeito a Ars poetica (Ars minor), modelo este que
despertava interesse no gramático por:
9
Élio Donato – Gramático latino dos anos 300 d.C. que influenciou diretamente os estudos da arte
gramatical ao longo da Idade Média.
10
Posteriormente, no segundo capítulo, esta base será melhor apresentada com os estudos
categoremáticos e sincategorimáticos dos termos.
22
retórica. Quando se menciona em partes do discurso, entendem-se as características
11
estruturantes da arte discursiva , ou seja, a composição do discurso desde a invenção
de seus termos (inventio) até as disposições dos mesmos (dispositio). Nesse sentido, a
gramática “municiava” até então a retórica, que ampliaria ainda mais sua força na
terceira parte do estudo da Ars maior.
A Ars grammatica de Élio Donato com sua segregação entre Ars minor e Ars
maior compunha boa parte dos estudos da arte gramatical do período, mesmo que de
maneira totalmente relacional – e até de certa forma confusa – à arte retórica.
Juntamente com Donato, Priscianus Caesariensis, mais conhecido por Prisciano,
também constituía a base de estudos da gramática medieval.
11
A estrutura da arte retórica será delimitada em maior proporção no capítulo seguinte.
23
(570 – 636 d.C.) são os exemplos mais expoentes de que Donato e Prisciano foram
mantidos e constantemente reinseridos no ensino da arte pelo simples aspecto funcional
da linguagem que ambos foram pioneiros em analisar (MONGELLI, 1999, p. 46). Os
ditos “enciclopedistas” – denominação dada aos três intelectuais mencionados acima –
“compuseram obras de natureza enciclopédica destinadas à instrução religiosa,
desejosos de oferecer ao leitor as bases do saber integral da época, onde se incluem
partes relativas à gramática e à retórica” (MONGELLI, 1999, p. 51).
LETRA B
LETRA H
24
114. Humilde (humilis), como que inclinado à terra (humus).
LETRA P
A análise realizada por Isidoro configura-se como uma das grandes obras de
gramática da idade média. Sua preocupação em delimitar a compreensão de cada termo
dentro de uma perspectiva cristã, foram de grande valia à Paideia reformulada, trazendo
mais uma vez o caráter analítico clássico para um viés contextualizado de religiosidade
profunda.
Para além dos enciclopedistas, havia também os ditos “comentadores” de textos
gramaticais. Tais comentadores foram definidos da seguinte maneira por Hugo de São
Vitor (1097 – 1141) em seu Didascalicon:
26
O segundo problema cuja inserção da lógica traz à arte gramatical interfere
diretamente na arte retórica. A compreensão de que um discurso necessita de um Vox,
ou seja, o entendimento de que toda oração ou processos discursivos exige a busca dos
agentes envolvidos, revela que a gramática a partir do séculos XI e XII avança em suas
bases originárias de Donato e Prisciano. O Vox presente a partir da lógica estabelece que
em toda a oração “fala-se ‘algo’ de ‘alguém’ ou ‘alguma coisa’”, complementando
assim os aspectos materiais e semânticos da gramática antiga e passando a encará-la em
aspectos mais formais e funcionais de arte (MONGELLI, 1999, p. 64).
O terceiro e último problema se dá em relação ao uso das palavras ao longo da
composição gramatical e discursiva, ou seja, quais são as categorias adotadas para que
uma palavra se estabeleça em relação a outra e como elas, unidas em um todo lógico,
poderão revelar um conteúdo (MONGELLI, 1999, p. 64)12.
Tais estudos, todavia, não se encerravam apenas nos aspectos lógicos da
linguagem, mas também havia a presença de outros textos de Aristóteles em relação a
linguagem e os estudos gramaticais. Tanto o “De animo”, quanto a Física e a Metafísica
de Aristóteles unidas às doutrinas árabes de Alfarabi, Aviceno e Averróis trouxeram
novamente a gramática de uma maneira totalmente relacional à retórica a partir dos
ditos “gramáticos modistas”. Os modistas ampliaram a relação entre gramática e
retórica a partir de uma ampliação da análise discursiva tendo o foco na construção,
congruência e perfeição da arte gramatical. Todavia, o movimento dos gramáticos
modistas que se originou em Bolonha por volta de 1275, não se estabeleceu com força,
sofrendo várias críticas de Guilherme de Ockham e João Aurifaber por seu excesso
analítico. Sem dúvida tais críticas já revelavam um possível retorno à gramática mais
tradicionalista e clássica, ou seja, um renascimento da gramática antiga.
12
A relação apontada se estabelece pela junção das ditas palavras categoremáticas e sincategoremáticas.
Dualidade esta que será explicada no segundo capítulo deste trabalho.
27
1.3 - O Caminho da Retórica
13
Esta exigência de Sócrates revela o nascimento de uma cultura de uma prática escrita em Platão. A
cultura oral cedendo lugar à cultura escrita.
28
atrelado ao conhecimento da verdade e a busca por esta. Diante desta busca, o orador
deverá saber com exatidão o objeto de seu discurso para “persuadir” as pessoas ao
acerto (Bem), pois a retórica é, em síntese, a arte de conduzir as almas por meio de
palavras. Esta condução de almas requer uma série de regras de aplicabilidade da arte
que Sócrates expõe a Fedro, regras estas que, em linhas gerais, permanecem inalteráveis
ao longo de quase dois mil anos 14.
A primeira regra essencial expressa por Sócrates diz respeito ao conhecimento
dos dois caminhos que permeiam o assunto: o caminho concordante e o discordante.
Haverá sobre todo e qualquer assunto a dualidade de opiniões e caberá ao orador
conhecer esses dualismos e distingui-los em seu discurso. Por conseguinte, caberá ao
orador distinguir com exatidão o gênero de seu assunto, sem avançar as cegas para
pronunciá-lo.
Após a compreensão do gênero, ficará a cargo do orador a primordial definição
do objeto tratado. O orador precisa ter muito claro a natureza do que se esta falando
para assim evitar problemas e falhar em sua persuasão, levando as almas para caminhos
incorretos. Nesta recomendação em especial, Sócrates traz a conclusão, a titulo de
exemplificação, que Lísias desconhece a definição de Eros (amor) e por isso comete
sérios erros em seu discurso, afinal, sem a clara compreensão da definição do objeto,
não será possível dar o passo seguinte que diz respeito à disposição correta do discurso
em início, meio e fim. Ao desconhecer a natureza do que está a ser dito, torna-se
impossível dispor um discurso coerente, seguindo uma linha expositiva clara e correta.
14
A estrutura exigida para construção de um discurso na Idade média segue, em grande medida, as
recomendações Socráticas da arte. Muito embora haja o acréscimo de algumas partes, tal como será
mencionado no capítulo seguinte, é possível notar que a retórica manteve-se de maneira mais perene que
as outras duas artes triviais.
29
Sendo assim, a eloquência é precedida por um trabalho altamente filosófico que dará
plena sustentação ao discurso retórico. A retórica não é redutível para Sócrates como
uma mera arte de persuasão, mas sim como arte que acompanha o exercício filosófico a
partir de sua busca pela verdade.
Essa busca pela verdade prossegue com o Estagirita Aristóteles e a relação que este
traça entre retórica e dialética a partir de “Arte Retórica”. Para Aristóteles, a relação
estabelecida entre as duas artes se dá pela apresentação das provas e de seus contrários,
tal como exposto na tradução da Arte Retórica de Aristóteles por Antônio Pinto de
Carvalho:
[...] ora, nenhuma das outras artes conclui os contrários por meio do
silogismo, a não ser a dialética e a retórica, porque uma e outra têm
por objeto os contrários. Todavia, as matérias que lhes dizem respeito
não apresentam o mesmo valor, porque o que é verdadeiro e
naturalmente superior presta-se melhor ao silogismo e é mais fácil de
persuadir, absolutamente falando. [...] é manifesto que o papel da
retórica se cifra em distinguir o que é verdadeiramente suscetível de
persuadir do que só o é na aparência, do mesmo modo que pertence à
dialética distinguir o silogismo verdadeiro do silogismo aparente
(ARISTÓTELES, 1964, p.21).
30
caracterizava propriamente como a arte persuasiva a quem a convém, algo também já
mencionado.
A retórica em Roma possui um capítulo importante de sua história com o
15
primeiro tratado de retórica, o Rhetorica ad Herennium de Marco Túlio Cícero .A
partir deste primeiro tratado, a retórica passa a sair da mera vulgaridade e persuasão
negativa, vinculando-se de maneira mais direta com a gramática e a poesia
(MONGELLI, 1999, p. 86).
Cícero se caracteriza como a fonte mais importante para o estudo da retórica ao
longo da idade média. Além de sua obra Rhetorica ad Herennium, escreveu De oratore,
De inventione, De optime genere oratorum, Topica, De fato, Paradoxa Stoicorum, De
Partitione Oratoria, Brutus e Orator (MONGELLI, 1999, p. 87). Em especial no De
invetione, Cícero analisa um dos aspectos mais importantes, quiçá fundamentais, da
estrutura retórica que diz respeito à invenção e disposição correta dos termos para a
construção discursiva, assim como no De Oratore em que a elocução e enunciação
discursiva são tratadas de maneira aprofundada (MCLUHAN, 2012, p.88). Tanto a
invenção como a enunciação se caracterizam como as etapas primordiais para a
efetivação da arte retórica e exatamente por esta importância que tais obras foram
fundamentais para o estudo da retórica até o período da renascença (MONGELLI,
1999).
Até então apartada de um estudo mais conectado, a arte retórica romana se vê
modificada com a figura de Cícero. O estudante de retórica a partir de então passa a
realizar leituras mais extensas visando a repetição dos modelos clássicos discursivos, a
compreensão de sua composição e as possibilidades de refutação de seu conteúdo.
A prática da refutação e da retórica ganha ainda mais força com outro importante
intelectual , Marco Fábio Quintiliano. Junto a Cícero, Quintiliano constituiu um dos
autores fundamentais para o estudo da retórica ao longo da idade média. Com a junção
da retórica grega , filosofia e a poesia ciceroniana, Quintiliano consegue incluir no
currículo romano de ensino o estudo da retórica desde muito cedo. A partir de sua obra
Institutio oratória, Quintiliano aprofunda a perspectiva de imitação dos clássicos e
desenvolve ferramentas mnemônicas que mais tarde foram utilizadas pela Igreja para a
compreensão e reprodução a partir da memória dos saltérios bíblicos. De maneira
contraditória, mais uma vez, as ferramentas utilizadas para o ensino medieval derivam
15
Marco Túlio Cícero – Cônsul da república romana em 63 a.C .
31
em grande parte de autores pouco mergulhados – para não dizer pagãos – no
Cristianismo (MONGELLI, 1999, p. 88 - 89).
A relação da retórica com o Cristianismo passa sem dúvida a se estabelecer de
maneira mais direta com Santo Agostinho (cuja base de estudo para retórica fora
ciceroniana). A retórica passa a ser encarada a partir de Agostinho como forma de
doutrinação e argumentação para a salvação dos Cristãos. O discurso coerentemente
ordenado com as sagradas escrituras permitiria o convencimento e a salvação de almas,
trazendo finalmente a retórica para um campo fora de sua possível prática passível de
erros morais. Para Agostinho era de fundamental importância que o professor Cristão
estimulasse as artes liberais em seus alunos a partir dos estudos apologéticos,
defendendo a verdadeira fé e refutando o erro herético e pagão.
No excerto abaixo é possível acompanhar um breve discurso (sermão) de
Agostinho quando Roma fora saqueada em 430 por Alarico, o Visigodo. Agostinho
aplica as invenções e as disposições Ciceronianas de uma maneira cristã, realizando seu
discurso e atingindo seu objetivo junto ao público: alertar sobre a devastação do
império:
“Ah! Se nossos olhos pudessem ver as almas dos santos que nessa
guerra foram mortos, veríeis como Deus poupou a cidade. Pois
milhares de santos descansam em paz, felizes, e dizem a Deus: "Nós
Vos damos graças porque nos livrastes das tribulações da carne e dos
tormentos. Nós Vos damos graças porque já não tememos os bárbaros,
nem o diabo, nem a fome, nem a tempestade, nem os inimigos, nem os
tribunais perseguidores da fé, nem os opressores. Estamos mortos na
terra, mas imortais ante Vós, salvos no Vosso reino, por graça Vossa e
não por mérito nosso".
Ouvi dizer que ainda há certos homens e mulheres tão assolados pelo
diabo que, às quintas-feiras, não fazem eles seus trabalhos nem elas
fiam. Diante de Deus e de seus anjos, nós os admoestamos: todo
aquele que persistir nessas observâncias, e não expiar por dura e longa
penitência esse grave sacrilégio, será condenado ao fogo em que arde
o demônio. Esses infelizes e miseráveis que não trabalham às quintas-
33
feiras, em honra de Júpiter, são os mesmos, não duvido, que não
temem nem se envergonham de trabalhar aos domingos. Se
conhecerdes algum desses tais, repreendei-o duramente e, se ele não
quiser se emendar, não o admitais em vossa mesa nem em vosso trato.
Se são vossos escravos, castigai-os com o açoite: que temam a chaga
do corpo, já que não se preocupam com a salvação de sua alma
(LAUAND, 2013, p. 47 - 48).
Mesmo nos séculos XI, XII, XIII já com o surgimento das universidades, foi
possível perceber apenas um revigoramento dos clássicos da arte retórica já
mencionados. Muito embora a gramática ainda se veja em grande debate no período,
não havia na retórica a mesma dinâmica dialética. Se houve, neste sentido, uma arte
constante e perene do Trivium ao longo da antiguidade e idade média, esta arte foi sem
dúvida a retórica. A arte que anuncia verdades, verdades estas obtidas em um período
bem especifico a partir da terceira e última arte do Trivium: a arte lógica.
34
em destaque. O conteúdo da lógica aristotélica será tomado em maiores detalhes no
segundo capítulo deste trabalho, cabendo agora apenas apontar os caminhos gerais dessa
arte que compõem uma das artes triviais.
Os estudos de lógica que compuseram o Trivium ingressaram na idade média
através Boécio16 e Martianus Capella17. Ambos, sendo apreciadores de Aristóteles e
importantes membros de ensino das artes liberais, retransmitiram a arte dentro de uma
perspectiva cristã a partir do estudo das formas de pensamento e de argumentação. Por
essa transmissão, na idade média entendia-se a lógica como a arte de pensar
corretamente, seguindo um conjunto de regras e operações que permitiam realizar
afirmações com clareza, sobretudo as afirmações divinas (MONGELLI, 1999, p. 117-
118).
Todavia, por estas afirmações, nota-se que até o século IX a lógica fazia-se
diluída na gramática e na própria retórica, ora tomada por Alcuíno, Martianus e
Cassiodoro em relação ao todo conjuntural do ensino cristão, ora tomado
exclusivamente como ferramenta de discernimento retórico. A individualidade propícia
à lógica seria visualizada com o tempo a partir do avanço das traduções Aristotélicas
somadas aos comentários de Boécio ao Organon do estagirita18.
Diante dessa propagação, o que se visualiza é uma transmissão de um legado
clássico baseado profundamente na lógica aristotélica até o século XII com Pedro
Abelardo e Santo Anselmo, dentro de um contexto pré- escolástico. Do caminhar do
século IX de Carlos Magno até o século doze, se visualiza a cada medida uma maior
inserção da lógica nas artes liberais, cada vez mais presente, mesmo que de maneira
relacional – embora já se desvinculando –, na gramática e na retórica (MONGELLI,
1999, p. 120).
A lógica ainda está atrelada à finalidade dialética de separação e identificação de
termos corretos e incorretos para a efetivação do discurso retórico. Há ainda no período
pré-escolástico uma força retórica que sobrepuja as demais artes para seu ambiente,
16
Anício Mânlio Torquato Severino Boécio – Filósofo romano que traduziu obras de Porfirio e
Aristóteles ao longo do século V - VI d.C.
17
Martianus Minneus Felix Capella – Filósofo latino que estudou e estruturou de maneira geral as artes
liberais no século V d.C.
18
Há nessa transmissãoda lógica certas minuciosidades de influência estoicas e neoplatônicas que sem
dúvida não podem deixar de ser mencionadas. Todavia, este capítulo se propõe a expor de maneira geral
os aspectos principais de cada arte, cabendo ao terceiro e último capítulo deste trabalho um fechamento
de certas particularidades dos caminhos do método Trivium e sua composição fina.
35
ampliando ainda mais seus recursos. Tal situação se vê representada no sermão de
Bernardo de Claraval19 sobre o Conhecimento e a Ignorância:
36
Essa organicidade que a lógica proporcionou será mais bem visualizada no próximo
capítulo que terá como objetivo demonstrar o funcionamento do Trivium a partir dos
aspectos gerais apontados nesse capítulo introdutório.
37
2 – O Encontro dos Três Caminhos
2.1 - Prolegômenos
A obra chave utilizada para este capítulo é o livro “O Trivium: As artes liberais
da lógica, gramática e retórica” da Irmã Miriam Joseph (1898-1982), obra publicada
originalmente nos Estados Unidos com o título “The Trivium in College Composition
and Reading”, em 1937, e com tradução para a língua portuguesa realizada em 2008
pela editora ÉRealizações. O livro na verdade é um “texto-guia” desenvolvido pela
própria Irmã Miriam Joseph nos vinte e cinco anos em que esta lecionou o Trivium no
Saint Mary’s College em South Bend, Indiana.
20
Mortimer Jerome Adler (1902-2001) foi o principal expoente da liberal education nos Estados Unidos,
tendo escrito vários livros sobre educação na paideia grega e o ensino a partir da leitura dos clássicos da
literatura.
38
curricular do Saint Mary’s College, tendo como objetivo principal preparar
intelectualmente os estudantes ingressantes da universidade.
Com fins práticos e pedagógicos, Miriam Joseph escreve a obra de “The Trivium
in College Composition and Reading” em 1937, fornecendo um estudo aprofundado
sobre o funcionamento das artes liberais de ensino e buscando melhorar a capacidade de
leitura, fala e escrita dos alunos participantes da disciplina. A prática obteve êxito
imediato, de tal forma que o curso “The Trivium” foi sendo lecionado ano após ano pela
irmã Miriam Joseph ao longo de vinte e cinco anos ininterruptos, e permanecendo,
mesmo após sua saída do college e seu falecimento em 1982, como curso introdutório
obrigatório da instituição 21.
O livro “The Trivium” em suas várias edições após a primeira publicação possui
uma característica até então inédita, pois enquanto a maioria das obras que falam sobre
o Trivium se apegam há uma narração histórica, quase que predominantemente
descritiva, tratando a temática de forma longínqua22 e de pouca influência em nossa
contemporaneidade, ele busca revitalizar o que há de mais permanente e coeso nas três
artes liberais com a finalidade de reaplicá-las enquanto proposta de formação
intelectual. Há implícito na proposta da irmã Miriam um esforço em realçar uma
organicidade do Trivium com fins exatamente práticos.
21
Até o momento de escrita desta dissertação, tanto o Trivium, quanto o Quadrivium continuam sendo
cursos obrigatórios a todos os ingressantes do Saint Mary’s College. Cabe salientar também que outras
instituições, a partir da prática iniciada no Saint Mary’s, passaram também a incorporar o ensino das artes
liberais em suas dependências.
22
Essa questão possui relação com a breve análise desenvolvida acerca das produções historiográficas e
as concepções de escrita da História na introdução deste trabalho.
39
for possível, seja por ausência referencial e documental, ou para não fugir da coesão e
da clareza do exemplo citado no livro, tentarei apresentar os aspectos gerais (essenciais)
do método, pois o intuito desde capítulo é exatamente este: revelar o funcionamento do
método de ensino e seu conteúdo de forma sintética e o quanto este se torna coeso em
unidade mesmo após os conflitos históricos e epistemológicos demonstrados no
primeiro capítulo.
Ainda nessa primeira análise preliminar, cabe destacar que a partir dessas
características, o presente capítulo possui a potencialidade de tornar-se uma breve aula
de gramática, lógica e retórica. Se esta percepção vier a ser verdadeira ao leitor, o
objetivo do capítulo também terá sido obtido. Em linhas gerais, o nosso estudo
contemporâneo de gramática e lógica foge muito pouco dos apresentados pelo Trivium,
e isso revela o quanto ainda somos influenciados pela cultura clássico-medieval.
A segunda análise preliminar a ser realizada diz respeito à natureza das artes
liberais enquanto proposta formativa humanizadora. Há no Trivium uma concepção de
estudos de caráter “intransitivo”, ou seja, que centraliza seus esforços
predominantemente no sujeito, em seu pensamento e relacionamento com a realidade.
Essa centralização no indivíduo demarca uma separação fundamental entre as
perspectivas educacionais na idade média, no caso entre uma educação para fins
práticos e uma outra educação para fins intelectuais, cada uma delas em espaços e
contextos sociais distintos como já mencionado no primeiro capítulo. A Irmã Miriam
Joseph utiliza a seguinte analogia para esclarecer melhor as distinções entre essas
perspectivas formativas: “O carpinteiro aplaina a madeira [caráter transitivo]. A rosa
floresce [caráter intransitivo]” (JOSEPH, 2008, p.23).
23
Essa concepção utilitarista não possui uma relação direta com a problemática da apropriação do
trabalho na perspectiva marxiana. A ação da qual fala a irmã Miriam Joseph não possui uma preocupação
inicial com a dita “atividade vital” humana, embora seja possível aprofundar nessa análise.
40
corporações de ofício originadas na Baixa Idade Média (MANACORDA, 2010, P.199),
denotando claramente os polos contrários estabelecidos para cada tipo de formação:
uma para o trabalho manual e outra para vida clerical/intelectual.
24
Quando se fala em “conhecimento permanente” no Trivium há um apego inegável aos conhecimentos e
aos autores clássicos. Como já mencionado no primeiro capítulo, mesmo em contradição, os cristãos
medievais assimilarem os clássicos gregos e romanos incorporando-os ao Trivium.
25
Nas próprias sete artes liberais há uma distinção entre as consideradas “artes da mente” e as “artes da
matéria”. Enquanto o Trivium (gramática, lógica e retória) se refere ao treinamento da mente, o
Quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia) se refere ao treinamento do corpo para uma
atuação material, porém atuação distinta da concepção utilitarista (JOSEPH, 2008, p.21).
41
A gramática é a ciência do falar sem erro. A dialética é a disputa
aguda que distingue o verdadeiro do falso. A retórica é a disciplina
para persuadir sobre tudo o que for conveniente (HUGO DE SÃO
VÍTOR, 2001, p.129).
Socrates: Perhaps you mean this, Cratylus, that when you know what
a name is like, and it is like the thing it names, then you also know the
thing, since it is like the name, and all like things fall under one and
the same craft. Isn´t that why you say that whoever knows a thing’s
name also knows the things?
[...] Socrates: So, If things cannot be learned except from their names,
how can we possibly claim that the name-givers or rule-setters had
knowledge before any names had been given for them to know?
26
Trechos extraídos das Obras completas de Platão (Plato - Complete Works) editado por John Madison
Cooper.
42
O desenrolar do diálogo entre Sócrates e Crátilo culmina na crítica do primeiro
aos princípios Heraclatianos manifestados por Crátilo, entretanto, o objetivo neste
momento não é o de aprofundar na sequência do diálogo, mas sim o de demonstrar
apenas parte da problemática. Nota-se a importância dada à linguagem na compreensão
da realidade, mais propriamente no nomeamento dos objetos da realidade. Crátilo
compreende que o conhecimento do nome de algo permitirá também o conhecimento de
sua essência (caindo em contradição por ser Heraclitiano 27). Procedendo em busca da
verdade, Sócrates levanta o problema da ordem do conhecimento sabendo que a
presença de um nome requer um nomeamento inicial a partir de um conhecimento
anterior ao próprio processo de conceituação, apontamento este respondido com um
argumento metafísico por Crátilo.
A criação coube a Deus, mas houve para o homem uma participação efetiva
nesse processo através do reconhecimento da natureza das coisas e da possibilidade de
nomeá-las e assim desvendar o mundo criado por Deus. Segundo Marshall Mcluhan
(2012, p.30), quando Deus permite a Adão o poder de nomear as coisas este já possuía
um alto grau de conhecimento metafísico que só veio a perder com sua queda. Após a
queda pelo dito “pecado original”, coube à humanidade a tarefa de retomar pelas artes
esse poder de nomeamento, leitura e tradução da criação divina. Este é um dos
pressupostos do Trivium: é preciso conhecer o mundo que já está posto e não criar um
novo mundo com intenções pedagógicas, mas este empreendimento exige determinadas
27
O devir de Heráclito estabelece que a essência é fluída mesmo que a aparência de algo
permaneça(ANTISERI; REALE, 1990 , p. 35-36). Conhecer a essência para um Heraclitiano como
Crátilo é cair em contradição.
43
“chaves” ou preparo intelectual que somente uma perspectiva intransitiva de educação
possibilitará. O fato de o homem tender ao conhecimento, tal como Aristóteles anuncia
em sua Metafísica, está também atrelada à busca do Trivium pelo conhecimento da
natureza manifestada, e essa tentativa de compreensão não pode partir do homem e
terminar em algo exterior a ele, mas deve sim partir dele e nele permanecer, pois o
conhecimento verdadeiro em momento algum deve sair do homem – ou sequer deveria
ter saído tal como ocorreu com Adão. O fato de o homem ter que viver de seu próprio
trabalho a partir da queda revela que a busca pelo conhecimento deverá ser feita em
caminhos árduos e tortuosos, pois ao perder pecaminosamente seu alto grau de
conhecimento, o caminho de reconquista também deverá ser um caminho de
reconciliação com Deus28. Essa nova preocupação de existência material do homem faz
com que exista uma concepção de conhecimento utilitarista requerida para a
subsistência material do homem. Uma forma de conhecimento nem correta e nem
incorreta, mas apenas distinta do conteúdo que caracteriza o Trivium, ou do tipo de
conhecimento do qual Aristóteles comenta. Um conhecimento de apreensão e
compreensão da natureza a partir do uso da linguagem.
28
Embora não possua relação direta com a temática tratada, cabe lembrar o problema da patrística em
relação às seitas gnósticas dos primeiros séculos da era cristã. A substituição da fé em Jesus Cristo pelo
conhecimento (gnosis) foi a característica principal dos movimentos de Cerinto, Basílides e Valentino
(COPLESTON, 1971, p.25-32). A aquisição do conhecimento proposta pelo Trivium medieval é uma
contemplação consciente, concepção distinta, em linhas gerais, ao gnosticismo dos séculos iniciais.
44
Há muito a se destacar em relação ao Trivium nesse trecho. O primeiro ponto diz
respeito entre a relação da metafísica com as artes da linguagem. A realidade já está
dada e o não conhecimento de algo contido nela faz parte do reino metafísico. O fato do
homem não conhecer Plutão antes de 193029 não implica na não existência do mesmo.
Além de um erro metafísico, esta concepção poderia atribuir ao homem o poder de
criador de todas as coisas, trazendo à existência coisas antes inexistentes, e a linguagem
não possui este poder no Trivium tal como possui nas análises linguísticas mais
contemporâneas. O Trivium passa a operar a partir de um determinado tipo de
conhecimento (isto será mais bem exposto adiante) e a partir desse momento as artes
começam a operar de forma dinâmica e coesa. Quando se descobre a existência de algo,
este cai no campo lógico-dialético em que será possível averiguá-lo trabalhando-o com
a finalidade de determinar sua natureza. Após essa etapa, virá o processo de definição
ou conceituação em que a entidade lógica torna-se gramatical e, por fim, quando se tem
uma entidade gramatical torna-se possível sua anunciação.
29
O Planeta foi descoberto em 18 de fevereiro de 1930 por Clyde Tombaugh, um astrônomo norte-
americano.
45
[...] Uma vez que somos racionais, pensamos; porque somos sociais,
interagimos com outras pessoas; sendo corpóreos, usamos um meio
físico. Inventamos símbolos para expressar a gama de experiências
práticas teóricas e poéticas que constroem a nossa existência. Palavras
permitem deixar um legado de nossa experiência para deleitar e
educar aqueles que nos sucederem. Por usarmos a linguagem,
engajamo-nos num diálogo com o passado e com o futuro (JOSEPH,
2008, p.17).
No Trivium, essência é: “aquilo que faz o ser ser o que ele é, e sem o quê, não
seria o que é” (JOSEPH, 2008, p. 37). A pavimentação dos caminhos que levam à
essência e à verdade corresponde às três artes da mente e através delas reconhece-se –
46
ou tenta-se reconhecer – os objetos contidos na realidade. Essa constituição do ser e sua
representação simbólica podem ser expressas de quatro formas distintas: Por um nome
próprio e por uma descrição empírica, ou por um nome comum e uma descrição geral.
Na análise das artes (da gramática em especial) essas formas de expressão simbólica
serão analisadas mais profundamente, pois são a “matéria-prima” das artes liberais. O
importante a se ter em mente como condição preliminar de compreensão do Trivium é o
fato de que nele a linguagem pode representar essências específicas, genéricas e
individuais sempre tomando como base o indivíduo, e que a linguagem humana é a
grande fonte de estudos para a gramática, lógica e retórica.
30
Essa variedade representativa da substância diz respeito às categorias aristotélicas, sendo elas:
substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, estado, hábito, ação e paixão. Todo termo
presente na realidade deve representar uma ou mais categorias destas citadas.
47
2.2 - A Arte da Gramática
Todo aluno inserido nesse contexto educacional iniciava seus estudos pelos
aspectos morfológicos da gramática, cujo objetivo fundamental era o de compreender e
classificar todas as palavras existentes dentro de quatro quadros morfológicos possíveis,
sendo eles separados em duas categorias:
A) Palavras Categoremáticas:
1) Palavras designadoras da substância (Substantivos e Pronomes).
2) Palavras Atributivas (Primárias, Verbos, Adjetivos e Advérbios).
48
B) Palavras Sincategoremáticas:
3) Palavras que se associam a uma outra palavra (Artigos e Dêictios).
4) Palavras conectivas que se associam a uma palavra (Preposições e
Conjunções) (JOSEPH, 2008, p.71).
31
Cabe ressaltar que os acidentes existem na substância e nunca fora dela. Sendo assim, um acidente de
qualidade abstrata torna-se um substantivo (JOSEPH, 2008, p.72).
49
direcionamento da conversação a partir de pessoas singularmente e pluralmente); caso
(representando a relação entre o substantivo ou pronomes com os outros termos
contidos na frase) (JOSEPH, 2008, p.74). Não cabe neste momento aprofundar em todas
as características, mas cabe ressaltar e aprofundar brevemente os “casos” e sua
utilização no latim, principal língua utilizada para a educação na Idade Média.
Para cada função dos termos de uma oração há em latim um caso, ou seja, “[...]
uma maneira de escrever a palavra em latim de acordo com a função que ela exerce na
oração” (ALMEIDA, 2005, p.14)32. A presença dos casos determina tanto a sintaxe da
oração formulada quanto a grafia dos termos utilizados para a sua composição, havendo,
portanto, uma alteração de matéria e forma da expressão simbólica. Os exemplos a
seguir demonstram a utilização do substantivo “Rainha” em orações com sentidos
distintos:
Exemplo 1
Português – A Rainha dá o dinheiro aos marinheiros
Latim – Regina nautis pecuniam dat
Exemplo 2
Português – Damos alegria à rainha
Latim – Reginae laetitiam damus
32
No total temos seis casos latinos, sendo eles: Nominativo (Sujeito), Vocativo, Genitivo (Adjunto
adnominal), Dativo (Objeto indireto), Ablativo (Adjunto adverbial) e Acusativo (Objeto direto)
(ALMEIDA, 2005).
50
No breve exemplo acima é possível ter uma breve noção do quão fundamental é
compreender os casos e as representações de substantivos em orações latinas. Soma-se a
essa importância a complexidade de identificar os casos de substantivos em excertos ou
livros completos da bíblia como foi realçado no primeiro capítulo. Essa tarefa não
poderia passar batida ao estudante de linguagem da idade média, assim como outros
tantos procedimentos que serão apresentados na sequência do texto.
Na função (1) o estudante tomava contato com a definição de verbo 33 dada por
Aristóteles em seu Organon. Para Aristóteles, verbo é algo que possui um significado
próprio e que nesse significado transmite-se a noção de tempo, sendo o tempo a medida
da mudança, a duração do movimento que é sucessivo. Toda ação é uma mudança, e
mudança envolve tempo; um verbo expressa uma ação, logo envolve tempo 34 (JOSEPH,
2008, p.76).
Sendo a ação verbal uma ação temporal, temos na função (2) um aspecto
importante que revela novamente as características abstratas de um símbolo. Na função
(2) é possível distinguir entre o tempo do ato concreto e a referência ao próprio ato,
como cita a Irmã Miriam Joseph:
33
A definição de Verbo (Do latim Verbum) na idade média foge a nossa dimensão contemporânea do
termo. Por exemplo, o “Verbum” para Santo Tomás de Aquino não possuía apenas um aspecto externo,
mas interno (Verbum mentis) de fundamentação ao exterior, além de representar a segunda pessoa da
santíssima trindade, o Filho (LAUAND, 1993).
34
Mesmo os verbos com sentido de permanência como “existir” revelam uma passagem temporal de
potência ao ato, da não existência para a existência.
51
[...] Se eu falo de uma ação enquanto ela ocorre, uso o tempo presente
(o pássaro voa), se depois da ocorrência, o tempo pretérito (O pássaro
voou), se antes da ocorrência, o tempo futuro (O pássaro voará)
(JOSEPH, 2008, p.77).
- Modo Indicativo (Que declara a relação como um fato). Ex: “No princípio,
Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1); “E começou a ensinar-lhes: ‘O Filho do Homem
deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos
escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar” (Mc 8, 31-32).
- Modo Potencial (Que declara a relação como algo possível). Ex: “Não
empreste ao teu irmão com juros, quer se trate de empréstimo de dinheiro, quer de
víveres ou de qualquer outra coisa sobre a qual é costume exigir um juro. Poderás fazer
um empréstimo com juros ao estrangeiro” (Dt 23, 20-21).
- Modo Interrogativo (Que pede ou requer uma resposta). Ex: “Moisés disse a
Deus: ‘Quando eu for aos israelitas e disser: ‘O Deus de vossos pais me enviou até vós’;
e me perguntarem: ‘Qual é o seu nome?’, que direi?’” (Êx 3, 13)
- Modo Volitivo (Requer uma resposta em forma de postura ou ação). Ex: “Não
apresentarás um testemunho mentiroso contra o teu próximo. Não cobiçarás a casa do
teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu escravo, nem a sua
escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu
próximo" (Êx 20, 16-17).
52
central dentro da oração e das junções simbólicas. E, por fim, a última função do verbo
(4) diz respeito a função primordial e necessária deste para a formação de frases, que
corresponde ao fato dele “afirmar” algo (JOSEPH, 2008, p.78). Esta função é uma
conclusão da função (3) que revela os modos de ação que demonstram afirmações do
verbo.
Outro aspecto importante dos verbos que se estudava na idade média é a sua
classe. Já mencionado anteriormente para outra finalidade, os verbos classificam-se em
dois tipos, podendo ser transitivos ou intransitivos. Os verbos transitivos sempre
requisitam um complemento, portanto, são verbos em que a ação começa no sujeito,
mas se encerra em um objeto revelando, em modo afirmativo, um caráter prático e
utilitarista da ação humana. Já no caso dos verbos intransitivos, a ação começa no
sujeito e nele se encerra, efetuando-se o processo de potencialidade e ato no sujeito da
ação35.
35
Há a possibilidade de o verbo intransitivo exigir um complemento, tornando-se assim um verbo
copulativo (verbo de ligação) que liga o sujeito aos seus termos atributivos.
36
As referências a Deus na bíblia são sempre realizadas por adjetivos, pois não há mudanças e
potencialidades em Deus.
53
dessa primeira modalidade, a análise do artigo e do dêitico compunha o estudo das
palavras definitivas.
37
A problemática de Deus ser ou não uma substância suscita uma discussão de cunho aristotélico-tomista.
Tal debate foge ao propósito do trabalho e, tomando os exemplos mencionados, caberia apenas uma
exemplificação do uso da preposição sem aprofundar demasiadamente em problemas adjacentes.
54
Seguido do estudo das preposições havia o estudo das conjunções cujo objetivo
era compreender a união ou separação de sentido das palavras contidas em uma oração,
tal como observado nos exemplos abaixo:
38
Verbo de ligação
55
descrição geral, como,<Êxodo> em <Deslocamento de um povo de um lugar para o
outro> ou <Saída do povo Hebreu do Egito>.
Há em cada uma das artes do Trivium pontos com maior proximidade entre as
demais artes e pontos de maior distância. Quanto mais nos aproximarmos dos pontos de
conexão com as demais artes, mais se tornará perceptível a organicidade do Trivium e
um dos pontos em que isto se torna perceptível é na preparação terminológica da
gramática para o uso da lógica.
39
O que entendemos por “contração” na língua portuguesa não corresponde à perspectiva do Trivium. Na
gramática da língua portuguesa, contração se refere à junção de preposições, pronomes, artigos e
advérbios que originam palavras contraídas como “num” (em + um).
56
instrumentos principais da lógica, mas sim o terceiro equivalente gramatical que são os
termos (JOSEPH, 2008, p.97).
O principal elemento de ligação entre gramática e lógica são os termos. Por ser
um “pensamento efetivamente comunicado”, ele é o elemento do qual a lógica tomará
proveito, pois se entende que a ideia e a representação simbólica estão contidas
corretamente no termo, fazendo-o uma forma representativa unívoca da realidade.
Entretanto, o que pode variar na aplicação de um termo é o fato de o símbolo gramatical
empregado para representá-lo ser ambíguo, e a melhor ilustração para esta variedade são
os vários significados possíveis para uma palavra contida em um dicionário (JOSEPH,
2008, p.98).
Por representarem a realidade, o estudo da gramática exigia uma classificação
dos termos para melhor compreendê-los, sendo eles divididos em termos empíricos,
gerais, contraditórios, concretos, abstratos, absolutos, relativos, coletivos e distributivos.
Paulo de Tarso; Um
Designa um indivíduo ou Nome próprio ou
Empíricos pássaro voou pela
um agregado de indivíduos descrição empírica
minha janela
57
Quadro 2: Classificação dos termos (Continuação)
40
Categoria Aristotélica
58
É importante notar a pluralidade de regras e sentidos que o termo carrega para
seu uso efetivo no início da atuação lógica. Essa preparação, entretanto, não é realizada
pela própria lógica, mas sim pela gramática que classifica o termo (“resultados” finais
da representação simbólica) pelo seu uso e símbolo gramatical. Mais do que esta
diferença “prática”, o estudante era levado a compreender as diferenças de natureza de
cada termo estudado se assim ocorressem, fossem elas de cunho categórico, pois cada
termo gramatical possui referência a uma das dez categorias aristotélicas, fossem elas de
cunho genérico, pertencentes na mesma categoria, porém em gêneros distintos, ou
fossem de ordem específica ou individual. Os exemplos a seguir deixam essas
diferenças ainda mais claras:
41
O termo “grande” para Aristóteles deve ser encarado categoricamente como relação e não como
quantidade. Por ser uma quantidade indeterminada, “grande” só pode ser mencionado em referência a
outra coisa que possibilite um exercício comparativo, por exemplo, um homem é grande em relação a
uma formiga, mas não em relação a um elefante. Por essa indeterminação, a quantidade não admite
contrariedade em si mesma, pois algo não pode ser grande e pequeno ao mesmo tempo.
42
Entretanto, há em Aristóteles a possibilidade de alteração substancial, como, por exemplo, uma planta
que muda de cor ao receber luz solar (mudança qualitativa) (BARNES, 2005, p.79).
59
A intensão43 e a extensão de um termo possuem relação com o processo de
abstração mental que a mente faz dos objetos concretos. A imagem mental dos objetos
diz respeito à extensão, e a ação do intelecto sobre a imagem mental diz respeito à
intensão (JOSEPH, 2008, p.105).
Substância
Material
Corpo
Animado
Organismo
Sensível
Animal
Racional
Homem
43
Diferente de “intenção”, conceito que será discutido posteriormente.
60
organismo, animal e homem, entretanto, sua intensão é mínima, pois o que pode
caracterizar a sua essência no exemplo citado é apenas o aspecto material e estrutural44.
O atributo “animado”, por sua vez, está relacionado mais diretamente ao corpo, que é
gênero do organismo e que por espécie é animado.
44
Aristóteles, como exemplo, concebe a substância por matéria e forma, ou seja, por um aspecto material
e outro estrutural. Entretanto, tanto matéria quanto forma não são componentes físicos da substância, mas
sim componentes lógicos. O aspecto material (ou formal da substância) só poderá ser encontrado no
objeto concreto de forma unida, afinal não é possível separar matéria e forma de substâncias concretas
(BARNES, 2005).
61
compreensão de seu uso no Trivium. Assim como foi desenvolvido na escrita sobre arte
gramatical, cabe também na lógica focar menos no aspecto histórico – aspecto esse já
analisado no primeiro capítulo – e mais no conteúdo e na forma com o qual os
estudantes do Trivium tomavam contato para o estudo da lógica.
45
Essas ordens estruturantes do universo são temas de longos e constantes debates filosóficos que fogem
a proposta deste trabalho. Cabe, entretanto, como manifestação da problemática, destacar o livro “Para
uma nova interpretação de Platão” de Giovanni Reale. A partir das “doutrinas não-escritas” de Platão, o
autor faz uma análise hermenêutica das interpretações sobre o filósofo grego, doutrinas estas que revelam
uma estrutura “intermediária” ante a visão dualística clássica atribuída a Platão.
62
Da mesma forma que um círculo não pode ser quadrado, pois é metafisicamente
impossível, um efeito não pode ser maior que sua causa. A atividade criadora e sua
ordem estabelecida possuem certas “regras” que, quando abaladas (embora não sejam),
levariam a uma desestruturação total da realidade.
46
A busca pela felicidade através do pleno exercício das virtudes e dos controles das paixões na Ética a
Nicômaco e os exemplos de santidade do Cristianismo fundamentam a concepção da proposição moral
por necessidade e não por contingência.
63
eram divididas em quatro prerrogativas distintas de representação, além da já
mencionada “Modalidade” (Proposições Modais ou categóricas), sendo elas: (I)
Referência à realidade, (II) Quantidade, (III) Qualidade e (IV) Valor (JOSEPH, 2008,
p.120-123).
64
2.3.1 - Formas proposicionais
A influência dos escritos de Aristóteles nos séculos X-XI foi determinante para
uma “revigoração” das artes liberais de ensino, algo já mencionado anteriormente. No
campo da lógica, a influência foi fundamental e um dos “resquícios” 47
dessa influência
foram as formas proposicionais.
47
Falar apenas em resquícios é incorreto e impreciso, pois herdamos muito do filósofo Estagirita tal como
demonstra Richard E. Rubenstein em seu livro “Herdeiros de Aristóteles”.
65
1° coluna – Termos proposicionais (Símbolos)
5° coluna – Exemplo
1. Uma proposição Total (ou necessária) distribui o seu sujeito [Ou seja,
utiliza o sujeito em extensão completa].
66
Na aplicação direta das regras às formas proposicionais é possível obter um
panorama das relações entre sujeito e predicado e qual termo é ou não distribuído a
partir das relações formais:
No caso da segunda relação, tanto sujeito quanto predicado são distribuídos, pois
uma proposição Total distribui seu sujeito e sendo negativa distribui também seu
predicado. Pelo teste de conversão é possível comprovar a distribuição de ambos, pois
da mesma forma que “Nenhum leão é cavalo” também “Nenhum cavalo é leão”.
48
Essa tentativa de conversão total do predicado torna-se ilícita. Para se evitar uma conversão ilícita é
preciso alterar a quantidade ou a modalidade de uma proposição. Na proposição mencionada, por
exemplo, a conversão ideal seria a de que “Alguns animais são leões” (JOSEPH, 2008, p.152).
67
ocorre pois toda proposição negativa tem seu predicado distribuído. A negação coloca o
predicado em sua extensão completa, portanto, distribuída.
2.3.2 - Conjunção
49
Forma de figura de linguagem.
68
Sabedoria suma e amor supremo.
A Irmã Miriam Joseph realça que, por uma proposição expressar por finalidade
uma veracidade ou falsidade afirmativa é possível determinar regras a priori a fim de
aferir os resultados de uma conjunção. Sendo três as regras mencionadas por ela:
50
Trecho retirado do Canto III - Inferno da tradução de José Pedro Xavier Pinheiro de 1955 da editora
Atena.
69
2.3.3 - Oposição
- A e E são contrárias, pois (A) afirma que “Todo S é P” e uma segunda proposição
(E) afirma que “Nenhum S é P”, revelando assim uma diferença na qualidade e na
quantidade por serem proposições totais.
70
ser falsas. Por fim, I e O são contrárias51 pois as duas não podem ser falsas, mas podem
ser verdadeiras. Já A e I/ E e O não estabelecem uma relação de oposição, pois não há
diferença de qualidade entre elas, mas a diferença de quantidade(ou modalidade) cria
entre elas uma relação subalterna de (I )para(A) e de (O) para (E)52.
2.3.4 - Inferência
51
O termo “subcontrário” foi posto anteriormente para expressar uma distinção entre a contrariedade de
proposições totais e parciais.
52
Seria possível representar a problemática da oposição proposicional pelo conhecido “Quadrado das
oposições” de Aristóteles. Entretanto, é importante dizer que o objetivo deste capítulo está em realçar o
conteúdo e o funcionamento do Trivium em linhas gerais. Uma vez que um assunto foi desenvolvido
dentro do contexto geral da dissertação, não há motivos para aprofundar em demasia em explicações e
exemplo que poderiam facilmente demandar um novo texto.
71
Em caráter geral, nota-se que o conteúdo até aqui apresentado para o ensino da
lógica no Trivium é extremamente sistematizado e coeso. A ordenação do pensamento
para a busca da verdade é o grande objetivo formativo do Trivium e o ensino da lógica
possui alta relevância para esta finalidade.
2.3.5 - Silogismo
- Sócrates é homem
- Sócrates é mortal
53
Uma proposição se torne uma premissa pela relação estabelecida com outra preposição a partir de um
termo comum.
72
O predicado da conclusão é conhecido como termo maior, que no exemplo
acima é o termo “mortal”. Já o sujeito da conclusão é reconhecido pelo termo menor,
que no caso acima corresponde a “Sócrates”. O termo comum (médio) entre ambos é a
termo “homem”, que aparece nas duas premissas, mas se ausenta na conclusão. Por essa
composição, o silogismo será sempre analisado a partir da sua conclusão, pois somente
ela fornecerá o entendimento e o posicionamento correto dos termos nas premissas.
Algumas regras escolásticas apontadas pelo filósofo Mário Ferreira dos Santos
em seu livro “Lógica e Dialética” demonstram perfeitamente a estrutura de um
silogismo:
Cabe ressaltar alguns pontos importantes das regras. Na terceira regra, o termo
médio deve ser tomado em sua extensão total, pois ele trabalha de forma comparativa
com duas possibilidades extremas expressadas nas premissas. Por sua vez, a quarta
regra deriva da primeira, pois sua violação alteraria completamente a estrutura do
silogismo e, por fim, a sétima regra possui correspondência na quarta, pois se uma das
premissas expressarem particularidade ou negatividade, a conclusão deverá segui-las.
54
A irmã Miriam Joseph acrescenta em sua análise três regras adicionais às regras escolásticas apontadas
por Mário Ferreira possivelmente por entender um avanço das regras silogísticas em outras épocas, ao
ponto desses acréscimos serem úteis aos alunos do St. Mary College. Para manter uma maior
aproximação com o primeiro capítulo, opto por seguir apenas nas regras escolásticas clássicas.
73
Independente das regras, o estudante de lógica possuía a possibilidade de
representar um silogismo das mais variadas maneiras a partir da posição do termo
médio. Além de despertar o intelecto para construções e identificações de possibilidades
silogísticas, essa variação introduzia quatro possibilidades representativas através de
figuras, como ilustra a Irmã Miriam Joseph:
74
Além das regras dos silogismos apontadas acima, o estudante tinha que levar em
consideração as regras de distribuição também já mencionadas anteriormente, não sem
antes seguir uma série de passos para validar ou não um silogismo, como demonstra a
Irmã Miriam Joseph a partir do seguindo exemplo:
- Um morcego é um mamífero
- Nenhum pássaro é um mamífero
- Um morcego não é um pássaro (JOSEPH, 2008, p.165) 55.
55
A irmã Miriam Joseph sempre trabalha ao longo de sua análise com a primeira premissa baseada no
termo menor, em contrariedade a prática comum de se posicionar o termo maior sempre na primeira
premissa. Essa escolha se dá pelo fato de o pensamento, para a irmã Miriam, sempre parte do
individual/concreto e quase nunca do geral/abstrato, algo já mencionado anteriormente acerca da criação
simbólica.
75
- Nenhum pássaro é um mamífero Modo AEE
- Um morcego não é um pássaro. Figura II
56
As falácias serão explicadas em maiores detalhes logo a seguir.
76
Entinema: Um carvalho é uma planta porque é uma árvore.
Sócrates é um homem
Um homem é um anima
Um animal é um organismo
Um organismo é um corpo
Um corpo é uma substância
Sócrates é uma substância (JOSEPH, 2008, p.173-174).
2.3.6 - Falácias
57
Todo termo (símbolo) transmite um significado que pode possuir duas intencionalidades: 1) Uma
referência à realidade tal qual na primeira imposição; 2) Uma para referir-se a si mesmo como termo ou
conceito lógico. Exemplo: “Quadrado [segunda intenção] é um conceito [primeira intenção]” (JOSEPH,
2008, p.60).
78
Por sua vez, as falácias materiais originam-se de problemas nos termos
(símbolos) em si mesmos, antecedendo assim um problema nas relações proposicionais.
Dentro dessas falácias é possível separa-las em dois grandes blocos denominados in
dictione e extra dictionem.
Possui ambiguidade de sintaxe ou Ele disse a seu irmão que ele tinha
Anfilobia
estrutura gramatical. ganhado o prêmio. (Quem ganhou?)
58
A falácia in dictione de acentuação pode ocorrer tanto graficamente como oralmente a partir de uma
tonalidade empregada na expressão, como em caso de uso de um tom irônico (JOSEPH, 2008, p.220-
221).
79
Falácia:
P1) Aquele que dorme menos está
mais sonolento.
P2) Aquele que está mais sonolento
dorme mais.
C) Aquele que dorme menos dorme
Ocorre pela suposição de similaridade mais.
Forma verbal correspondente entre formas de
linguagem e significado propositivo. Correto:
P1) Aquele que dormiu menos está
mais sonolento.
P2) Aquele que está mais sonolento
dormirá mais.
C) Aquele que dormiu menos
dormirá mais.
Fonte: JOSEPH, 2008, p.218-223 (adaptado).
59
A irmã Miriam Joseph alerta para o fato de a falácia do acidente assemelhar-se ao equívoco, entretanto,
o problema desta falácia se estabelece pela mudança da imposição do termo e não do termo em si mesmo,
como no exemplo a seguir: 1)Penas são leves; 2) Leve é um adjetivo; 3) Penas são adjetivos. Leve na
primeira premissa está na primeira imposição (como referência direta à realidade), já na sequência se
coloca na segunda imposição (com referência à gramática).
80
Afirmação: O presidente
dos Estados Unidos
Dá-se pela falsa suposição de que
governa o país inteiro.
60 um argumento foi refutado ou
Ignorância da questão Falsa refutação: O
desmentido, quando na verdade não
presidente dos Estados
o foi.
Unidos não foi eleito pela
maioria dos americanos.
Por fim – mas não menos importante – temos a arte retórica, a arte final da
expressão da linguagem e da coesão orgânica do Trivium. Como nas artes anteriores,
cabe também nesta não retomarmos aspectos históricos abordados no primeiro capítulo,
pois se tornaria repetitivo e fora de propósito para os objetivos deste segundo capítulo.
Todavia, há de se salientar antes do adentro ao conteúdo consolidado da retórica no
Trivium, que esta arte é única tanto em sua constituição histórica como em sua
finalidade. A conclusão quase pejorativa da retórica como uma forma de persuasão
negativa – algo já mencionado – somada aos constantes debates com autores
reconhecidos das outras artes poderiam ter afastado sumariamente a retórica do
“cruzamento dos três caminhos”. Apesar de aparentemente ser a mais perene das três
60
A ignorância da questão pode se manifestar de seis formas, sendo elas: argumentum ad hominem (que
confunde o ponto argumentativo com as pessoas interessadas), argumentum ad populum (que substitui a
prática do raciocínio por um apelo às paixões e preconceitos do público), argumentum ad misericordiam
(que substitui a razão por um apelo emocional, uma compaixão), argumentum ad baculum (que substitui a
argumentação por um apelo à força ou ameça), argumentum ad ignorantiam(que se aproveita da
ignorância dos ouvinetes para ser convincente) e argumentum ad verecundiam (que abandona a
argumentação e parte para o prestigio ou autoridade atribuída a algo ou alguém).
81
artes no contexto medieval, a retórica foi a mais instável e a mais problemática das três
artes e, curiosamente, a mais utilizada também.
Essa relação direta com a dialética se estabelece pela construção discursiva e seu
conteúdo. A verdade é naturalmente superior à mentira, mas não cabe à retórica
percorrer os caminhos da veracidade e da falsidade, mas sim à dialética. Para a retórica
basta os caminhos percorridos pela dialética mesmo não sendo estes resultantes em
verdades absolutas. Com o objetivo de uma melhor afirmação discursiva, cabe à retórica
se apropriar tanto das provas dialéticas como dos seus contrários, a fim de fundamentar
melhor o discurso e torná-lo ainda mais convincente (MONGELLI et all., 1999, p.77).
Por essa compreensão de que a retórica se define como “[...] a arte de descobrir
em qualquer assunto dado, os meios de persuasão disponíveis” (JOSEPH, 2008, p.261),
os estudantes de retórica tinham que possuir um ótimo domínio da lógica/dialética 61
para ampliar seu poder de persuasão por meio das três formas possíveis: logos, pathos e
ethos.
61
Cabe tomar nesse momento “dialética” como um conhecimento provável passível de mudanças em
detrimento do conhecimento demonstrável (lógico) já finalizado.
82
O logos62 consiste na exigência de que o emissor convença os receptores com
provas de veracidade acerca daquilo que está anunciando (JOSEPH, 2008, p.261). Neste
sentido não basta apenas anunciar algo, é preciso encaminhar o discurso com
sustentações que convençam o público sobre a validade do que está sendo anunciado.
Para essa empreitada, o exercício dialético contínuo e a busca pela verdade são passos a
priori fundamentais para o exercício retórico, pois o anúncio da verdade averiguada
passo a passo fornece uma sustentação real ao discurso.
Por sua vez o pathos (paixão) consiste na condição de que o emissor coloque os
receptores a seu favor e em uma determinada condição favorável que possibilite a
persuasão (JOSEPH, 2008, p.261). Consideravelmente, este trabalho de mobilização
mental de um receptor consiste no trabalho das emoções (paixões) do público alvo.
Convencer alguém que está emocionalmente predisposto a ser convencido auxilia
determinantemente a efetividade da persuasão. O apelo às emoções mesmo podendo se
constituir como uma falácia pode e deve ser de grande valia para o anúncio da verdade.
A persuasão não se dá apenas pelo anúncio da verdade estabelecida em exercícios
dialéticos, mas também pelo apelo emocional que ela pode implicar nos ouvintes, sem
com isso, entretanto, perder sua validade de enunciado verídico.
62
O conceito de logos possui inúmeras acepções (JAPIASSÚ, 2001), mas neste caso cabe tomá-lo como
um discurso provido de verdade ou falsidade.
83
entretanto, que a utilização de outras formas persuasivas tire a validade do logos, mas
sim que a forma perfeita e correta de persuasão não pode se privar desta.
Embora a retória seja vista até os tempos atuais como um discurso falacioso
sempre com intenções não manifestadas, através do uso correto das formas persuasivas
é possível notar uma definição menos maniqueísta da terceira e última arte do Trivium.
O cruzamento entre três caminhos devem levar à verdade e não à mentira, e qualquer
uma das três artes que fuja a esse propósito estaria faria do funcionamento orgânico e
coeso do Trivium.
Além da atenção especial para os meios de persuasão, o estudante de retórica
dirigia também sua atenção para a elaboração e composição de um discurso, de maneira
a identificar os aspectos fundamentais de um bom discurso, cujo cinco fatores
determinantes foram expressos por Quintiliano, algo já mencionado no primeiro
capítulo.
Nesse estudo compreendia-se em um primeiro momento a invenção (Inventio)
do discurso. Nesta fase a atenção se voltava para os argumentos a serem utilizados na
persuasão de maneira atingir os objetivos finais (JOSEPH, 2008, p. 262). O
estabelecimento de um bom conteúdo argumentativo a partir de termos coerentes e
logicamente sustentáveis caracterizava esta etapa do estudo da retórica, visto que sem
um bom preparo no encontro de conteúdo e na clara escolha dos termos, o discurso
poderia desembocar em falácias ou em falhas na recepção.
84
Na sequência dos estudos a atenção se voltava para a organização dos
argumentos no discurso (Dispositio) (JOSEPH, 2008, p.262). Todo o conteúdo reunido
na etapa da inventio seria agora organizado e estruturado em um discurso coerente, com
sequência expositiva delimitada pelo completo ordenamento das palavras. Comumente,
o discurso dividia-se em seis partes pela composição ciceroniana, sendo elas:
63
Trecho retirado da introdução da tradução brasileira dos “Tópicos” de Aristóteles, edição da Imprensa
Nacional-Casa da Moeda de 2007.
85
através da refutação, os argumentos que potencialmente invalidariam a confirmatio,
reafirmando ainda mais toda a sequência discursiva desenvolvida (MONGELLI et all.,
1999, p. 106).
86
discurso. Já os esquemas retóricos correspondiam aos já mencionados logos, pathos e
ethos. Tais meios persuasivos eram frequentemente treinados pela repetição de letras e
palavras com a finalidade de se enfatizar o ritmo e a estrutura de cada meio retórico
persuasivo, aguçando assim a prática para a execução retórica (JOSEPH, 2008, p.276-
277).
Para exemplificar um tropo, ela utiliza a frase “Suas mentes estão enferrujadas”,
expressando a palavra “enferrujada” por um sentido figurado, ou seja, não próprio, mas
eficaz em sua aplicação ao relacioná-la com a palavra “mente” (JOSEPH, 2008, p.278).
1) Símile 64- Este tropo tem por característica expressar a comparação entre
objetos distintos com a finalidade de realizar comparações através das
palavras: como, assim, qual, do mesmo modo que, tal como, tão, igualmente
ou assemelha-se (JOSEPH, 2008, p.278). É possível encontrar vários
exemplos de símile e de outros tropos na bíblia, por exemplo: “E disse o
Senhor: Se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis a esta amoreira:
Desarraiga-te daqui; e planta-te no mar; e ela vos obedeceria” (Lc 17, 6).
64
A símile conceitualmente não é um tropo, entretanto, sua semelhança com a metáfora a coloca nesta
categoria (JOSEPH, 2008, p.278).
87
3) Prosopopeia - Este tropo tem por objetivo: “atribuir vida, sensações e
qualidades humanas a objetos de uma ordem mais baixa ou a ideias
abstratas” (JOSEPH, 2008, p.280). Exemplo: “Aquele foi um dia triste”
(JOSEPH, 2008, p.280).
O estudo dos tropos sem dúvida ampliava a variedade de execução retórica dos
estudantes das artes liberais, fornecendo assim mais uma ferramenta de anúncio da
verdade. Em suma este era o papel da retórica no Trivium coeso e orgânico: anunciar
toda a verdade descoberta a partir dos passos rigorosos desenvolvidos na gramática e na
lógica, não havendo mais nesse objetivo a profunda tensão entre a arte anunciante e as
demais artes do Trivium.
88
Figura 2 – A união das artes liberais
65
Disponível em <http://www.firstboynton.com/2012/05/07/the-lost-tools-of-learning/> Acesso em Fev.
2016.
89
3 - A Calmaria dos Caminhos Tortuosos
Após analisar de maneira geral a construção das artes liberais, sua estrutura e
funcionamento enquanto possibilidade de ensino, caberá neste terceiro e último capítulo
um fechamento entre as decorrências históricas esboçadas no primeiro capítulo e a
organicidade das artes de ensino que reúne lógica, gramática e retórica em um todo
denominado de Trivium, tornando-a um conjunto de artes coesas. Esse capítulo final
terá como objetivo uma análise da “calmaria” das ditas artes liberais, e o motivo pelo
qual elas podem ser orgânicas e coesas correspondendo a uma proposta efetiva de
ensino.
90
Educação – não permite dicotomias, é possível, e de certa maneira necessário,
reconhecer os movimentos que caracterizam o campo da história.
66
O recuo na história poderá intensificar a dificuldade pelo acesso as fontes de estudos, todavia, quanto
mais se analisa temáticas próximas do tempo do autor, maior se demonstra a necessidade de uma
compreensão processual da história.
91
assimilados por esta, e isto se deu por uma obra fundamentalmente católico-cristã. O
catolicismo medieval, diante de profusões culturais conflitantes conseguiu, seja dito, por
uma maneira também educacional, criar uma unidade formativa nutrindo-a de sentido
sem descartar aspectos conflitantes com seus próprios dogmas (que ainda estavam
sendo formulados), ensinando povos pagãos através de fontes pagãs, sem com isso abrir
mão de seu projeto de Paideia Cristã (CAMBI, 1999).
92
Por essa tentativa de “acalmar” um contexto que em si mesmo não possui ares
calmos, ganhou o Trivium a possibilidade de se formular de maneira orgânica e sem
grandes interrupções mesmo quando o contexto não lhe fora favorável. Seja nas
dinastias dos Godos, Ostrogodos, Francos ou outros povos que compuseram o período,
havia a presença das artes liberais sob a tutela católico-cristã. O método pudera ainda
não estar plenamente formulado, algo que ocorreu, tal como já mencionado, no período
da Baixa Idade Média, mas permanecia-se o ensino das artes liberais em meio às outras
disciplinas desconectadas ao longo de quase todo o período (MONGELLI, 1999, p. 47-
48).
O outro ponto da calmaria a ser destacado é o já outrora mencionado caráter
orgânico das artes triviais. Embora boa parte do período tenha ocorrido conflitos entre
os ensinos de cada uma das três artes, o embate se revela algo muito mais próprio das
figuras históricas atuantes no estudo/ensino de cada uma das matérias do que
propriamente uma contradição essencial entre elas. Como já analisado ao longo do
segundo capítulo, gramática, lógica e retórica possuem suas especificidades próprias
enquanto artes, mas também possuíam aspectos necessariamente relacionais entre si que
culminam em um método de ensino orgânico e inteiramente coeso em que uma única
arte não dá conta de todo o processo, mas apenas as três artes em caráter unívoco
levaram à verdade.
A resposta para tais questionamentos exige a análise de dois pontos que não
correspondem ao Trivium em si mesmo, mas que certamente auxiliam na compreensão
da “Calmaria dos Caminhos Tortuosos”: O conceito de “Clássico” e a Filosofia Perene
da Educação.
67
Em alguns momentos deste trabalho o Trivium foi atribuído como sujeito, e neste momento a
ocorrência se repete. Considera-se obviamente que o Trivium não se auto-formulou, todavia, ao
mencionar o Trivium subentende-se toda sua construção histórico-filosófica desenvolvida até então neste
trabalho como fruto dos sujeitos históricos do período.
93
3.1.1 – O Conceito de “Clássico”
Muitas das vezes ouvimos uma definição tautológica ou imprecisa sobre o que é
um clássico. “Clássico é um clássico por ser reconhecido como tal” ou “clássico é
aquilo que demarca uma época”. Quase sempre há uma dúvida conceitual sobre o que
seja um clássico nos dizeres cotidianos, acabando-se por definir o termo com
subjetividades e relativismos que acabam por desmerecer o próprio conceito.
Entretanto, essa imprecisão conceitual está presente mesmo nas tentativas mais
objetivas de definição. No dicionário Ediouro de língua portuguesa de 1998, aplica-se a
seguinte definição para clássico: “1. Relativo à cultura, às artes e/ou à literatura da
antiguidade Greco-romana. 2. Relativo aos grandes autores europeus dos sécs. XVII e
XVIII. 3. Que segue o padrão clássico (1) em artes, letras ou na cultura. 4. Tradicional.
5. Exemplar, modelar. 6. Autor (de livro, música, etc.) ou obra clássica ou consagrada.
7. Fut. Partida entre clubes importantes e rivais”; poderia citar outras definições
contidas nos mais diversos dicionários para comprovar a imprecisão conceitual e a
presença do adjetivo “relativo” em muitos deles, mas não há essa necessidade visto que
apenas em uma citação já fica exposto que o termo “clássico” titubeia em delimitação.
Diante da dificuldade conceitual, se faz necessária uma tentativa de definição mais
objetiva do termo, pois compreendendo de maneira efetiva seu conceito será possível
compreender o motivo de seu uso e o quanto o “clássico” se faz fundamental para o
estudo do Trivium, revelando assim mais uma forma de calmaria em meio aos caminhos
tortuosos.
Para realização desta etapa defini duas categorias analíticas para a tentativa de uma
compreensão acerca da natureza do que venha a ser um clássico: uma categoria de
caráter objetivista e uma segunda categoria com caráter espiritualista. A primeira se
baseia nos pontos argumentativos de Italo Calvino da leitura dos clássicos e a segunda
em um aspecto transcendental específico dos clássicos que foge da primeira categoria: a
beleza.
Em seu livro “Por que ler os clássicos”, Italo Calvino, importante literato
italiano reconhecido internacionalmente, enuncia quatorze teses do motivo para um
clássico ser considerado como tal e a justificativa para lê-los ao longo da vida. Muito
94
embora o livro tenha um enfoque preponderantemente em obras escritas (livros
clássicos) é possível aplicar as teses anunciadas para outras obras que não sejam
somente escritas. A essência de um clássico nas argumentações de Calvino não se
restringe a um determinado tipo de obra, pois parece ser possível aplicar sua reflexão
em outras esferas da produção cultural, trazendo assim um caráter universalista do
termo sem cair em relativismos. Na sequência trarei as teses do livro “Por que ler os
clássicos” analisando-as posteriormente em seu caráter objetivista.
Tese 1 – Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer:
“Estou relendo...” e nunca “Estou lendo”.
Tese 2 – Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para
quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se
reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.
Tese 3 – Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando
se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória,
mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.
Tese 6 – Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha
para dizer.
Tese 7 – Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as
marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na
cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos
costumes).
Tese 9 – Os clássicos são livros que, quando mais pensamos conhecer por ouvir
dizer, quando são lidos de fato se revelam novos, inesperados, inéditos.
95
Tese 10 – Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do
universo, à semelhança dos antigos talismãs.
Tese 11 – O “seu” clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve
para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele.
Tese 12 – Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem
leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia.
Tese 14 – É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a
atualidade mais incompatível.
A partir das teses enunciadas por Italo Calvino, se evidencia uma categoria
objetivista do clássico, entendendo pelo termo “objetivista” o que se restringe a análise
de um objeto em contraposição a uma análise metafísica dos clássicos. O nome dessa
categoria aqui se estabelece mais por uma contraposição a segunda categoria (essa sim
de cunho metafísico), que irei tratar posteriormente, do que necessariamente seja ela
mesma uma compreensão essencialmente objetivista, embora seja possível concluir que
o clássico na concepção de Italo Calvino, exposta na obra citada acima, retenha-se na
posição de objeto.
Ao longo das teses é possível notar e estabelecer esse fator categórico objetivista
em cada uma delas. Percebe-se que o clássico se estabelece e se define em si mesmo,
independente da interação com o interpretador da obra, e isto caracteriza sua utilização
inicial para o Trivium. É como se o clássico possuísse um altíssimo valor intrínseco
(tese dois) que não dependesse em momento algum de uma perspectiva extrínseca; ele é
próprio, particular e se estabelece por possuir as características descritas por Calvino. O
clássico é um “clássico” por demonstrar, em pequenos atos, uma potência quase infinita.
Há nesse aspecto um caráter “utilitarista” do clássico, sendo este algo que pauta e
determina as mais variadas discussões sem com isso esgotar-se, mas esse caminho pode
ser um tanto subjetivo e os clássicos não são relativos – ou pelo menos não deveriam
ser.
É importante destacar também que, embora o termo clássico possua um valor em
si mesmo, esse valor não é estanque, imutável e, portanto, compreendido em um único
96
momento. Os clássicos possuem relevância intemporal na concepção de Calvino,
revelando sempre algo único e novo a cada nova interpretação tal como citado nas teses
quatro e nove. Essa constante atualidade se dá por uma permanência estabelecida nas
teses três, seis, treze e quatorze que revelam um grande dinamismo do termo clássico.
97
Em linhas gerais, Italo Calvino define o clássico em si mesmo, sem com isso
desembocar em uma explicação tautológica do termo. Ao revelar a riqueza e a natureza
de um clássico em vários aspectos, fica claro que o termo se relaciona em si e determina
seu intérprete, mas nunca sendo determinado por ele. Independente de quem tomar
contato com ele, o clássico revela-se um talismã antigo com equivalência universal.
(CALVINO, 1993, p. 13)
98
Essa vinculação direta ou indireta do clássico com o mundo greco-romano se
estabelece em dois níveis: 1) Uma busca consciente pela sequência dos pensamentos
antigos nas diversas esferas culturais, sem que isso signifique necessariamente
imutabilidade de pensamento; 2) Uma reprodução inconsciente dos padrões antigos
nessas mais variadas esferas culturais, ao ponto do clássico pós-antigo inteligir com
padrões clássicos greco-romanos sem assim se dar conta. Em ambos os casos cabe à
frase atribuída tanto a Alfred North Whitehead como a Arthur O. Lovejoy para ilustrar
essa vinculação direta e indireta no campo da filosofia, de que “A história da filosofia é
uma coleção de notas-de-rodapé a Platão e Aristóteles” 68.
Além desse vínculo intelectual-cultural com a civilização greco-romana, um
clássico é um produto da plenitude de uma determinada cultura estabelecida em um
tempo histórico, isto é, o clássico é ligado a uma base cultural antiga que se cria – ou se
recria – em seu próprio tempo, corroborando dessa forma com a tese doze de Italo
Calvino sobre a genealogia do clássico.
Esse vínculo estabelecido com a cultura Greco-romano e a sua gênese temporal
própria revelam que o clássico se faz por uma categoria que em si mesma é atemporal
no sentido de ser perene, isto é, o clássico se faz clássico por expressar a beleza a partir
da busca humana por essa:
No trecho é possível concluir que o clássico é belo e se faz desse modo pela
alma humana de seu criador elevando-a aos mais sublimes sentimentos que resultam na
busca por um modelo esteticamente belo (COSTA, 2013, p.3). Esse modelo possibilita
aos clássicos serem:
68
Não há um consenso sobre quem proferiu a frase mencionada, ao ponto de ela ser atribuída também a um terceiro
autor, no caso Bertrand Russel. Entretanto, utilizo a frase apenas para efeito ilustrativo, sem ter a preocupação inicial
de referenciá-la em vista da imprecisão.
99
que sus palabras son capaces de expresar. Por lo tanto, tratase de una
belleza ontológica, es decir, belleza en sí de aquellas palabras, belleza
que la razón puede no solo sentir, sino sobre todo aprender en su
juicio(COSTA, 2013, p.4).
O clássico é belo, e seu valor e sua admiração se dão pelo fato de suas palavras
expressarem belezas formais com as quais a razão humana pode não apenas sentir, mas
aprender e absorver todas as emoções e verdades expressadas em sentenças. Essa
relação estabelecida entre um clássico e seu leitor a partir da beleza se traduz com uma
forma de experiência transcendental (COSTA, 2013, p.6) em que o leitor capta a beleza
oriunda de algo superior, ao ponto da busca pelo belo e seu contato direto ou indireto
serem consideradas experiências transcendentais na concepção grega de beleza.
Entretanto, poderia nesse momento indagar-se sobre a validade da argumentação
transcendental na beleza a partir de uma compreensão relativista do padrão estético.
Essa objeção teria sua sustentação em uma visualização mais “material” da beleza que
se fundamenta nas oscilações estéticas perceptíveis em cada época. Todavia, o conceito
de beleza ao ser relacionado com as concepções clássicas se coloca em um âmbito
preponderantemente transcendental, de forma que belo, bom, verdade e justiça são
termos relacionais que dominam as aspirações humanas. A beleza revela-se como algo
divino, e o bom e divino só podem ser buscados a partir dos atos virtuosos que
enaltecem a alma, e o homem é alma e não corpo, pois o corpo, já em Sócrates, torna-se
apenas instrumento da alma (ANTISERI; REALE, 2007, p.95). Na fuga dos atos
virtuosos têm-se os vícios que obscurecem a alma e ressoam esteticamente no corpo69.
Pela expressão estética derivar da alma, conclui-se que a beleza não é de origem
material, portanto perecível e relativa temporalmente, mas sim transcendental por ser
atribuído a Deus e o homem desejá-la virtuosamente.
Nota-se que por essa linha dedutiva não há clássicos relativos, ou um clássico
que seja clássico apenas em seu tempo. Ao possuir um atributo perene que o define
enquanto tal, o clássico torna-se eternamente contemporâneo, pois a beleza não pode ser
temporalmente restringida, caso contrário, se assim proceder, não haverá critérios
objetivos do belo na estética, assim como do justo na ética. Ao lembrarmos que o belo é
o bom, a verdade e o justo, temos a contribuição intemporal de um clássico.
69
O termo estética tanto em Platão como em Aristóteles está relacionado com a lógica e a ética. Nesse
sentido, a existência da estética está vinculada a ética pertencente à alma, por isso a beleza perceptível
(estética) em Platão possui caráter pedagógico pois eleva o homem à beleza imaterial. (COSTA, 2013, p.
8)
100
Ao possuir um caráter espiritualista-metafísico, o atributo da beleza coloca o
clássico em uma posição universal que revela toda sua importância. Tomar contato com
algo clássico é experimentar o que há de mais belo, tornando a experiência do contato
algo espiritual. Por essa perspectiva houve até o renascimento europeu uma tendência
de se imitar certos aspectos dos clássicos. Imitar o clássico é ter domínio sobre o belo, e
esse pensamento refletiu indiretamente nos processos de ensino desenvolvidos até o
final do período70.
A partir da compreensão da natureza do conceito de clássico é possível
estabelecer mais uma possibilidade para a hipótese da calmaria dos caminhos tortuosos:
o uso dos clássicos e seu caráter atemporal que elevam a alma individual à alta reflexão.
O uso dos clássicos greco-romanos como base para o ensino do Trivium revela
tanto as teses de Italo Calvino para considerar-se o clássico como um objeto a ser
analisado em si mesmo, assim como sua potencialidade de revelar uma beleza que
possibilitava ao estudante das artes uma contemplação de textos de maneira única. Não
por mera casualidade, o caráter mnemônico e imitativo de alguns momentos da
educação medieval se fez presente, pois imitar o clássico é imitar e compreender o que
há de mais sublime no caráter da produção literária humana, caminhando assim em
direção a transcendência.
70
A imitação de certos conteúdos clássicos foi bem comum no renascimento europeu como bem relata a
medievalista francesa Regine Pernoud em seu livro “Idade média: O que não nos ensinaram”.
101
3.1.2 – A Educação na Filosofia Perene 71
71
O conceito analisado neste momento de “Filosofia Perene” se restringe à análise de uma filosofia da
educação realista. Tradicionalmente, o conceito de filosofia perene é aplicado à dita “Escola Perenialista”
de René Guénon e Frithjof Schuon, cujos estudos ocorrem na esfera de religião comparada. De imediato,
a escola perenialista não possui relação direta com a filosofia da educação exposta neste momento.
102
humana ser constante. O ser “constante” da educação acompanha dois pontos
fundamentais da natureza humana:
103
Nas características 3 e 4 têm-se a sequência do resultado a partir da constância
educacional. Tendo controlado suas paixões, o homem é retomado de razão e por essa
baseia sua educação. Através dela, ele buscará a verdade a partir do conhecimento e as
decorrências da busca desta em sua vida serão consequências naturais. Neste sentido,
não há no Trivium uma compreensão de ensino para a vida como em outras concepções
educacionais, pois através de sua essência intransitiva, o ensino inicia-se no sujeito e
neste permanece sem a princípio se concretizar em um ganho prático-material. A busca
pela verdade em primazia é um dos pressupostos para a organicidade das artes liberais
até aqui analisadas. Gramática, lógica e retórica se relacionam entre si com base na
consciência, encaminhando-a assim à verdade que liberta, e que, por consequência,
controla as emoções humanas ao identificar a posição do homem perante a estrutura da
realidade.
104
3.1.3 – A Universidade Medieval
Pela base originada em tais espaços de ensino, surge uma filosofia e uma cultura
escolar com ares rigorosos que, diante da urbanização quase ininterrupta da Europa,
culmina na origem de uma instituição inédita e com características próprias de
funcionamento: a Universidade.
105
até hoje por campus, os jovens que vislumbrassem uma profissão futura podiam
ingressar nas universidades a partir dos 14 anos (WOODS JR., 2008, p.50), formando-
se inicialmente em artes liberais (Trivium e Quadrivium) e, posteriormente, se assim
escolhessem, em medicina, direito ou teologia.
106
moderno, era caracterizado por disputas intensas e acaloradas, permitindo que a busca
pela verdade nutrisse o espírito universitário 72.
A titulação ao final dos estudos seguia o mesmo modus operandi das disputas
ocorridas em aula, mas cabendo dessa vez ao aluno a resolução da questão diante de
outros mestres para obter o título. Na sequência, se assim optasse, o aluno poderia
conquistar as titulações de mestre e doutor com uma estimativa que variava em torno de
seis meses até três anos. Muitos, entretanto, obtiveram a titulação em questão de dias,
pois os graus eram atingidos mediante exames de leituras clássicas com as quais muitos
já estavam familiarizados pelas artes triviais (WOODS JR., 2008, p.53).
72
É possível visualizar parte dessas disputas no conhecido filme “Em nome de Deus” de Clive Donner.
O filme narra a história de Pedro Aberlado, reconhecido professor de lógica do século XII que lecionou
na Catedral de Notre Dame.
107
diante das calmarias dos caminhos, uma qualidade se faz constantemente presente: Os
caminhos ainda são tortuosos.
108
caminhos”; poderão também, em certo grau, acrescentar “doses” de tortuosidade,
reforçando a síntese que em si mesma engendra novas contradições.
109
A natureza do pragmatismo educacional choca-se em contraposição direta com
as perspectivas perene de formação.
110
Esse aspecto de auxílio consciente ou inconsciente de propostas educacionais
para sistemas políticos e econômicos leva para um segundo ponto a ser analisado antes
da conclusão deste trabalho: a palavra como ato político.
111
Poucos compreenderam a palavra como os medievais, assim como poucos – para
não expressar quantitativos nulos – compreenderam a relação direta entre realidade e
palavra, relação esta não reduzida ao caráter simbólico da representação, mas que
abrange toda intencionalidade concreta que o uso de um termo pode representar. Os
exemplos mencionados nos sermões do primeiro capítulo revelam o funcionamento
deste procedimento.
Sendo a educação uma tarefa com início, meio, porém sem fim, há escolhas a
serem feitas, e a partir de tais escolhas não há outra postura a ser realizada senão a
revisão constante dos processos. Ao lado da revisão certamente caminhará a consciência
de que tudo leva a algo e a de que o mínimo termo empregado isoladamente em algum
momento possui a potencialidade de revelar calmarias, mas que certamente também
possui a mesma potencialidade de revelar tortuosidades.
112
Conclusão
113
maneira intrínseca e extrínseca ao próprio currículo de ensino. Intrinsecamente pela
natureza das artes que compõem o método e extrinsecamente pela ação consciente das
instituições e sujeitos históricos. O método se constitui de maneira orgânica e com uma
proposta formativa clara, proposta esta que nos faz inevitavelmente pensar a educação
contemporânea com ares de julgamento a partir dos contrastes históricos.
73
A inserção do ensino técnico em ampla escala e o esvaziamento das disciplinas clássicas na reforma do
ensino médio proposta recentemente revela este caráter ultra utilitário do ensino contemporâneo
brasileiro.
114
mas haveria também o temor natural do reconhecimento de que talvez todos nós
tenhamos realmente que “apertar parafusos”.
115
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