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Uma Freguesia Ao Sul de Mato Grosso: Famílias, Ilegitimidade e Compadrio em Santa Rita de Nioac (1877-1892)
Uma Freguesia Ao Sul de Mato Grosso: Famílias, Ilegitimidade e Compadrio em Santa Rita de Nioac (1877-1892)
Uma Freguesia Ao Sul de Mato Grosso: Famílias, Ilegitimidade e Compadrio em Santa Rita de Nioac (1877-1892)
DOURADOS – 2017
LUIZ GABRIEL DE SOUZA NOGUEIRA
DOURADOS – 2017
2
3
LUIZ GABRIEL DE SOUZA NOGUEIRA
BANCA EXAMINADORA:
Presidente e orientador:
2º Examinador:
3º Examinador:
4
Aos meus pais, Douglas Andrea Nogueira e
Nancy Alencar de Souza Nogueira. Pelo exemplo
de vida, por todo cuidado e amor!
5
AGRADECIMENTOS
Dedico estas linhas para expressar minha gratidão. Penso que agradecer nos
humaniza, nos faz ver e reconhecer que nossa vida é construída também por várias pessoas
e situações. Em todo e qualquer processo de autoria, seja ele de um texto escrito – como é
o caso aqui – ou de qualquer outra coisa na vida, devemos considerar a presença sempre
marcante daqueles com os quais nos relacionamos. Assim, sou profundamente grato a cada
um que aqui irei citar, com a ressalva de que a memória muitas vezes não nos permite
lembrar de todos que também foram importantes nesse momento de minha vida.
Agradeço de forma especial a Deus, cuja presença permeia minha experiência de
vida e me faz seguir com esperança em meio as contingências da existência. Sua força e
presença foram importantíssimos nesses dias. Valeu papai!
Também, agradeço aos meus pais, Douglas e Nancy, pelo apoio, incentivo e
confiança. Aos meus irmãos, os quais amo de coração e a toda minha família, que se
estendeu durante estes dias, me trazendo mais alegria. Obrigado Sogro José Libermanio e
sogra Helena Ruth, por todo apoio e confiança. Eu bem sei que vocês confiaram em mim!
Agradeço a minha esposa, Ana Luiza, pelo amor, carinho e cuidado em todos esses
dias. Te conhecer me faz cada dia mais feliz! Te amo!
Sou grato a minha orientadora, professora Nauk Maria de Jesus, pelas correções,
apontamentos, leituras e conselhos que me ajudaram muitíssimo na confecção deste
trabalho. Agradeço ao professor Divino Marcos de Sena, que me ensinou os primeiros
passos na pesquisa em história e me incentivou a continuar nessa atividade. Muito
obrigado!
Da mesma forma, quero agradecer aos demais professores do PPGH/UFGD, Eudes
Fernando Leite, Graciela Chamorro, Fernando Perli, e em especial aos professores Paulo
Roberto Cimó Queiroz e Vanessa dos Santos Bodstein Bivar, que se dispuseram a ler estas
linhas na qualificação, me apontando correções e caminhos que me auxiliaram na escrita.
Também agradeço aos importantes apontamentos e observações feitos pela professora
Patrícia Melo Sampaio, que com leitura atenta contribuiu grandemente na banca de defesa,
juntamente com o professor Paulo Cimó.
Também, quero demonstrar minha gratidão a minha avó Josefina, tia Dulcimeire e
tio Halley, que me receberam gentilmente em Nioaque, e me ajudaram muito durante os
6
momentos iniciais da pesquisa. Agradeço a secretária da paróquia Santa Rita de Cássia em
Nioaque-MS, Bianca Góis Farias, e em especial ao padre Jovenes Galton Elson, que me
permitiu acesso aos arquivos paroquiais. Também ao João Orcidney Xavier que me
recebeu sua casa em Nioaque, e compartilhou muito do que sabia sobre a história da
cidade.
Durante os anos desta pesquisa tive o privilégio também de conhecer novas
pessoas, que se tornaram verdadeiros amigos. Nesse sentido, agradeço a amizade do
Adaldo Vieira e da Paula Sampaio, pelas conversas, risadas e por todo carinho que
demonstram a nós. Lembro aqui também dos amigos Moisés, Lane e o pequeno Natan; do
José Augusto, Fabiane e Arthur; e do Roberto, Mercilene e Felipe. Vocês foram
importantes para mim nestes dias. Muito obrigado pelas conversas, passeios e por
compartilharem conosco parte de suas vidas. Estamos juntos!
Enfim, expresso aqui minha gratidão a cada um de vocês, que de alguma forma
contribuíram neste momento da minha vida. Muito obrigado!
7
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar o processo de constituição da freguesia Santa
Rita de Nioac, e a partir dos Registros de Batismos demonstrar a heterogeneidade
populacional, os arranjos familiares e os apadrinhamentos da população residente nos
limites da freguesia. Ao mesmo tempo, este estudo pretende evidenciar a reorganização
dessa sociedade após a Guerra com o Paraguai (1864-1870) e a importante centralidade
militar e eclesiástica do povoado de Nioac na parte sul da Província de Mato Grosso em
fins do século XIX. Utilizei como fonte principal o Livro nº 1 de Registros de batismos da
paróquia Santa Rita de Nioac, que compreende os anos de 1877 a 1892 e registra batismos
de pessoas livres, escravos e indígenas residentes na freguesia. Também foram utilizados
mapas, relatos de viagem, leis, censos, relatórios de presidente de província e escritos de
memorialistas que foram de suma importância para a construção das análises. Esta
pesquisa vem preencher uma lacuna na historiografia regional, pois aborda uma localidade
pouco estudada, e que ainda carece de trabalhos e produções que a contemplem como
espaço de análise.
Palavras Chave: Registros Paroquiais; Freguesia Santa Rita de Nioac – século XIX;
Famílias; Compadrio.
8
ABSTRACT
The present work has as objective to analyze the constitution process of Freguesia Santa
Rita de Nioac, and based on Baptisms Records to demonstrate the population
heterogeneity, the family structures and the godfathering of the population that lived in the
Freguesia boundary. At the same time this study intends to show the reorganization of this
society after the War with Paruaguay (1864-1870) and the important military and
ecclesiastical centrality of Village of Nioac, in the southern part of the province of Mato
Grosso, at the end of the 19th century. I used as primary source the book number 1 of
baptisms records from Santa Rita de Nioac Parish, which records Baptisms of free people,
slaves and indigenous residing in the parish between the years 1877 and 1892. Were also
used maps, trips reports, laws/legislation, census and reports of provincial presidents and
local writers, which were of paramount importance for the construction of the analysis.
This research aims to fill a gap in the regional historiography, because it deals with an
understudied locality and that still lacks works and productions that contemplate it as space
of analysis.
Key Words: Parish Records, Freguesia Santa Rita de Nioac- 19th century; Families;
Compadrio
9
LISTA DE MAPAS
LISTA DE IMAGENS
10
LISTA DE QUADROS
11
LISTA DE GRÁFICOS
12
SUMÁRIO
Lista de Mapas......................................................................................................................10
Lista de Imagens...................................................................................................................10
Lista de Quadros...................................................................................................................11
Lista de Gráficos..................................................................................................................12
Introdução...........................................................................................................................15
Capítulo 1
A FORMAÇÃO DE UM NÚCLEO POPULACIONAL AO SUL DA PROVÍNCIA DE MATO
GROSSO................................................................................................................................29
Capítulo 2
A CRIAÇÃO DA FREGUESIA SANTA RITA DE NIOAC E SUA CIRCUNSCRIÇÃO..................60
Capítulo 3
PONDO-LHES OS SANTOS ÓLEOS: ANÁLISES SOBRE FAMÍLIAS, ILEGITIMIDADE E
COMPADRIO.........................................................................................................................86
13
3.2.1 As taxas de ilegitimidade na freguesia Santa Rita de Nioac.....................................102
3.2.2 O Compadrio.............................................................................................................111
Capítulo 4
ESCRAVOS E INDÍGENAS NA PIA BATISMAL....................................................................120
Considerações finais.........................................................................................................147
Fontes.................................................................................................................................150
Referências bibliográficas................................................................................................152
14
INTRODUÇÃO
1 O escritor sul mato-grossense Hélio Serejo escreveu duas obras sobre Nioac: SEREJO,
H. Nioaque: um pouco de sua história e SEREJO, H. O Homem mau de Nioaque. Ainda
temos o livro Nioaque: evolução política e revolução de Mato Grosso, de Miguel Palermo.
Escrita ainda em 1896, esta obra pode bem ser considerada como fonte, principalmente no
que diz respeito às divergências políticas ocorridas no período republicano em Mato
Grosso. Além destas obras recorremos ao levantamento bibliográfico feito pelo professor
José Vicente Dalmolin em DALMOLIN, J. V., Nioaque no contexto do século XIX: na
História do Mato Grosso do Sul.
2 Cf. FEBVRE, L. Combates pela História.
16
Lembramos que o uso dos registros paroquiais não é novidade na historiografia
brasileira. O grande acervo criado pela Igreja Católica em seus longos anos de atuação no
Brasil já foi e tem sido objeto de interesse de historiadores de diversas regiões do país e os
registros de eventos vitais (de nascimento, casamento e óbito) têm atraído a atenção de
muitos pesquisadores. Esse corpus documental fora utilizado, inicialmente, no campo da
Demografia Histórica, mas possui grande potencial para ser aproveitado também pela
História Social3. Além disso, por se tratar de uma fonte serial, e ainda graças as novas
abordagens propiciadas pela Micro História, no que diz respeito ao interesse por trajetórias
individuais, essa tipologia documental vem contribuindo para diversas pesquisas que se
apropriam do seu caráter nominativo e acompanham o nome como fio condutor de suas
investigações, como propôs Carlo Ginzburg.4
A partir da década de 1950 começaram a surgir trabalhos que se utilizaram das
informações de batizados, casamentos e óbitos na Europa, principalmente na França, e que
tinham como enfoque análises em demografia histórica e em história da família. Autores
como Louis Henry e Michel Fleury, em 1956, empregaram essas fontes em seus trabalhos,
buscando criar uma metodologia específica de análise5. Mesmo não sendo uma fonte de
caráter censitário, esses autores foram precursores na sua utilização, pois a viram como
fonte alternativa que possibilitava entender aspectos demográficos da população francesa.
No Brasil, a partir da década de 1970, a utilização dos registros paroquiais ganhou
destaque, sobretudo com os trabalhos de Maria Luiza Marcilio (USP) sobre a população de
São Paulo, que aplicou o método de Louis Henry com adaptações à realidade brasileira.
Também temos as importantes pesquisas desenvolvidas pela professora Altiva Pilatti
Balhana, no estado do Paraná (UFPR), que também se tornou um polo importante no
campo da demografia histórica no país.
A produção dos registros paroquiais pela Igreja Católica está ligada ao Concílio de
Trento (1560-1565), que normatizou e universalizou a prática da confecção de registros
para os sacramentos ministrados pela Igreja. Durante os séculos XVI e XVII a política da
Igreja foi de ampliação dessa sistemática de registros que visava, além de conhecer
Portanto, a partir dessa data, com o estabelecimento das normatizações contidas nas
Constituições, a confecção dos registros de batismos, casamentos e óbitos, passaram a se
dar de maneira mais frequente nas paróquias que existiam no Brasil e nas que ainda
haviam de ser criadas. As diretrizes presentes nas Constituições permaneceram em vigor
até o fim do Império. Ademais, no Brasil, esses assentos acabaram por adquirir valor de
registro civil, “já que a Igreja, por intermédio do Padroado Régio, atuava como um
autêntico serviço público”8. Sendo assim, os livros que registravam os batismos,
casamentos e óbitos iam além da mera transcrição de sacramentos religiosos, adquirindo
caráter de registro oficial junto à administração do Estado.
Como afirma Maria Silvia Bassanezi os registros paroquiais podem fornecer ao
menos duas perspectivas de análise, sendo elas a demográfica (percebendo a estrutura e
dinâmica da população); e a sociocultural (relações sociais e de poder, práticas e
mentalidades, etc.)9. Da mesma forma, segundo a autora são temas possíveis o mundo da
infância, da família de livres e escravos, da mulher, assim como outros de interesses da
História Social. Apenas nessa breve constatação podemos visualizar a riqueza dessas
6 BASSANEZI, M. S., Registros paroquiais e civis: Os eventos vitais na reconstituição da
história, p.146.
7 LOTT, M. M., As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, p.1.
8 BACELLAR, C. Fontes documentais: Uso e mau uso dos arquivos, p.40.
9 BASSANEZI, M. S., Registros paroquiais e civis..., Op. cit., p.143.
18
fontes. Além disso, a sua universalidade é um fator que tem atraído a atenção de diversos
historiadores.
Esses livros incluem de fato todos os setores da sociedade. Homens e
mulheres, ricos e pobres, brancos, negros e índios, nacionais e
estrangeiros, filhos legítimos e ilegítimos/naturais, crianças expostas ou
enjeitadas e também escravos e libertos (antes de 1888) tiveram (e têm)
os seus eventos vitais registrados.10
10 Idem, p.142.
11 As sociedades da América Lusa e do Brasil Imperial, guardadas suas especificidades são, acima de tudo,
católicas “cujas populações eram tementes a Deus, ou o que é o mesmo, cuja disciplina passava pelos
sacramentos da Igreja Católica” (FRAGOSO, J., Apontamentos..., Op. cit., p. 23)
Desde logo é preciso notar que o Livro de batismo em estudo não foi produzido
para ser uma fonte histórica, sendo originalmente pensado para o registro do sacramento do
batismo, tendo peso legal como comprovante civil de nascimento em seu tempo. Os
registros paroquiais de um modo geral “possuíam um caráter religioso com força de um ato
civil para cada indivíduo, servindo, inclusive, de base legal para operações seculares,
como, por exemplo, os processos de herança”23. Antes de tudo, portanto, os Livros de
batismos eram livros oficiais e exclusivos, o que certamente influenciava sua preservação e
confecção.
É necessário ter em mente, que o documento histórico é analisado a partir do
presente, “estabelecendo diálogos entre a subjetividade atual e a subjetividade pretérita”
que conduziu sua criação.24 A fonte em questão foi produzida por várias mãos, em
contextos diferentes e a partir de instrumentos diversos. Porém, sua confecção estava
regida por instrumentos legais que são importantes para a análise destes registros. A norma
Este Livro de batismo, portanto, foi enviado do bispado em Cuiabá para a paróquia
Santa Rita um ano depois da elevação do povoado à freguesia em 1877. Os livros de
registros, como documentos oficias, eram rubricados e numerados, e ainda passavam pelo
aval do vice-presidente da província.25
As prescrições trazidas pela Igreja enfatizavam a importância de cada paróquia ter
um livro exclusivo, insuspeito de falsificações e bem conservado, o qual deveria estar
“sempre fechado na arca, ou caixões da Igreja debaixo de chave”. 26 A forma como os
assentos deveriam ser escritos precisavam seguir o modelo seguinte:
Aos tantos de tal mês, e de tal ano batizei, ou batizou de minha licença o
Padre N. nesta, ou em tal Igreja, a N. filho de N. e de sua mulher N. e lhe
pus os Santos Óleos: foram padrinhos N. e N. casados, viúvos, ou
solteiros, fregueses de tal igreja, e moradores em tal parte. 27
Sendo assim, as informações que deveriam constar nesses registros eram a data do
batismo, o nome do sacerdote que o realizou assim como do indivíduo batizado, o local do
batismo, nome dos pais do batizando e padrinhos com seu respectivo estado civil (se
solteiros, casados e viúvos) e local de residência. De uma forma geral, o Livro de batismo
25 Além disso, eram taxados, sendo que, para a confecção do Livro de batismo de Santa
Rita de Nioac, foi pago uma taxa de 2$500 réis na coletoria em Cuiabá, Livro nº1 de
registros de batismos, op. cit.
26 CONSTITUIÇÕES... TITULO XX, § 70.
27 Idem.
23
em estudo seguiu o modelo trazido nas Constituições, pois seus assentos são bastante
semelhantes ao que dizia o documento. Para se perceber o alcance destas normas também
nos registros da freguesia de Santa Rita de Nioac, abaixo transcrevo um assento do livro,
referente ao ano de 1879:
No dia seis de janeiro de mil oitocentos e setenta e nove, na Igreja
Paroquial de Santa Rita de Levergeria em Nioac, batizei solenemente a
Otilia, nascida a dois de outubro de mil oitocentos e setenta e oito, filha
legítima de João Luiz da Fonseca e Moraes e Elisa Rufino de Fonseca de
Moraes. Foram padrinhos o capitão João Caetano Teixeira Muzi e Santa
Rita. E para constar lavrei este assento em que me assino. Santa Rita de
Nioac, três de março de 1879. O encarregado da paróquia, Simão Moreira
da Rocha, Capelão Tenente.28
Estes registros fornecem uma gama de informações que podem ser utilizadas para
analisar aspectos sociais da população da freguesia, dada a qualidade da abrangência destes
assentos, que não se limitavam apenas a grupos ou classes sociais específicas. Ao alcançar
estratos os mais diversos daquela sociedade, trazendo seus nomes, condição de nascimento,
local e alianças firmadas pelo apadrinhamento, os registros paroquiais de batismos
28
CAPÍTULO 1: A FORMAÇÃO DE UM NÚCLEO POPULACIONAL AO SUL DA
PROVÍNCIA DE MATO GROSSO
A província de Mato Grosso, que se caracterizava, sobretudo, por ser uma região de
fronteira, estava economicamente vinculada à região sudeste do império por vias fluviais
da bacia do Paraná, e também por caminhos terrestres que levavam às províncias de Goiás,
Minas Gerias e São Paulo57. Essa situação viria a mudar apenas no final da década de 1850,
Este projeto do Império que promovia a criação de colônias militares foi respaldado
por três instrumentos legais: a lei orçamentária nº 555 de 1850 que autorizou o Poder
Executivo a investir na construção de colônias militares; a chamada Lei de Terras, de 18 de
setembro de 1850, que previa o uso de terras devolutas como propriedade pública; e o
regulamento nº 1.318, de 1854, que normatizou a execução da Lei de Terras, estabelecendo
regras para a medição das terras das colônias que seriam criadas.74
Somente na década de 1850 foram criadas mais de vinte colônias militares no
Brasil, as quais estavam dispersas em diversas províncias desde o Pará até o Rio Grande do
Sul75. Apesar da recomendação para situar as colônias militares em áreas fronteiriças, a
maioria delas foram criadas “em áreas internas, inclusive em províncias que não se
confrontavam com outros países”76.
80 João da Silva Machado, o Barão de Antonina, promoveu entre 1844 e 1857 nove
expedições de exploração na região meridional da província de Mato Grosso com o
objetivo de estabelecer conexões fluviais entre Curitiba e Cuiabá, ligando a bacia do
Paraná à do Paraguai. Estas expedições estavam sob a direção do sertanista mineiro
Joaquim Francisco Lopes e do norte americano João Henrique Elliott (WISSENBACH, M.
C. C., Desbravamento e Catequese na constituição da nacionalidade brasileira: as
expedições do Barão de Antonina no Brasil Meridional).
81 LOPES, J. F. Itinerario de Joaquim Francisco Lopes, encarregado de explorar a
melhor via de communicação entre a Provincia de S. Paulo e a de Matto Grosso pelo
Baixo Paraguay, p.326.
82 Idem, p. 326.
83 Este varadouro distava cerca de 52 Quilômetros, sendo as cargas e canoas, nesse trecho,
transportadas por terra (MELGAÇO, B. Apontamentos para o Diccionario Chorografico
da Província de Mato Grosso pelo Barão de Melgaço 1884, p.435).
39
obtida a partir de um acordo em 1856, “após a sequência de tentativas malogradas do
império para liberar o caminho fluvial pelo rio Paraguai”84.
87 Idem.
88 O Segundo batalhão de Artilharia a Pé que parece ter iniciado o efetivo processo de
ocupação daquela colônia “viajou do Paraná, pela via fluvial Tibagi – Paranapanema –
Ivinhema – Brilhante – Miranda, sob o comando do então tenente-coronel Alexandre
Gomes de Argolo Ferrão” (PALERMO, M. Nioaque: Evolução política e revolução de
Mato Grosso, p.35).
89 PITANGA, E. C. S. Diário da viagem do Porto do Jatahi à villa de Miranda:
comprehendendo os rios Tibagi, Paranapanema, Paraná, Samambaia, Ivinhema e
Brilhante, o Varadouro do Neoac, e os rios Neoac e Miranda, p.183.
41
pequena povoação, sem maior importância além daquela que lhe dava o ser ponto
fronteiro, e ter uma capelinha, quartel, vários ranchos de particulares e soldados”90.
É interessante notar que esses cronistas que descreveram a localidade, não a
nomearam como colônia militar. Talvez porque careciam da informação ou mesmo pelas
características do local, semelhante a um pequeno povoado, pois além de possuir um
marcante traço militar, por sediar um destacamento que era até então o mais avançado da
fronteira, também possuía “vários ranchos particulares”91, que marcavam a vida civil na
localidade.
Os indícios apontam para um importante papel desempenhado por proprietários de
terras, que já viviam nas imediações do rio Nioaque, para a fixação da colônia na
localidade. Nesse sentido, podemos citar o nome de Inácio Gonçalves Barbosa, paulista de
Franca que rumou para o sul de Mato Grosso a partir da vinda de seu irmão Antônio
Gonçalves Barbosa92. Sendo proprietário da fazenda Urumbeva na região da serra de
Maracaju, Inácio auxiliou na construção da estrutura que servira de quartel e, segundo
sugere o escritor Hélio Serejo, ainda forneceu regularmente provisões para os militares ali
estacionados93.
Os interesses provinciais em criar com a colônia militar um posto de guarda na
fronteira, portanto, parecem ter se unido ao de proprietários de terras que viviam naquela
região de fronteira, distantes da presença do Estado, como é o caso de Ignácio Gonçalves
Barbosa, mas também de indivíduos de outros lugares que rumaram para Nioac.94 A
localidade mais próxima dali, e que concentrava algum ajuntamento populacional era a
então freguesia de Miranda, onde também existia um destacamento militar. Portanto, a
criação de uma colônia às margens do rio Nioaque, que naturalmente traria a vinda de civis
Fonte: CROQUIS da parte da província de Mato Grosso imediata aos limites com a República do
Paraguai, projetada para uma melhor inteligência de uma exposição que o acompanha. 1876.
homens.
123 TAUNAY, A. D., A Retirada... Op. cit., p. 158.
124 FARIA, A. G., Ações militares..., Op cit. p.97.
125 Ficou conhecido, a partir da narrativa de Taunay, que o grande defensor desta ofensiva
sobre o Paraguai era o próprio comandante da expedição brasileira, Coronel Carlos de
Moraes Camisão, que queria se redimir do episódio de fuga ocorrido em Corumbá, no qual
Camisão estava presente. Segundo o autor, Camisão via na invasão sobre o Paraguai “o
modo de se reabilitar perante a opinião pública” (TAUNAY, A. D., A Retirada... Op. cit.,
p. 33).
126 Laguna era uma fazenda de propriedade de Solano Lopez onde os brasileiros
almejavam encontrar alimentos para a tropa que passava por dura privação naquela
empreitada.
51
o Comandante da operação, Coronel Carlos de Moraes Camisão, e o então guia da
expedição por aquelas terras, José Francisco Lopes.127
A retirada da tropa brasileira da região de Laguna não foi menos conflituosa, pois,
em diversos momentos a Cavalaria paraguaia, que os acompanhava de perto, preparava
emboscadas que resultavam em várias mortes. Isso fez com que o processo de retirada das
terras paraguaias se tornasse ainda mais doloroso, dado as dificuldades de resistência da
força brasileira, que permanecia com falta de alimentação e com graves epidemias
vitimando muitos militares.
Ao retornarem, então, tendo como intuito chegar em Nioac, os militares
encontraram o local novamente destruído pela Cavalaria paraguaia que se adiantou aos
brasileiros e alcançou o lugar, que havia sido evacuado contra as ordens do comando da
expedição, pelo oficial encarregado de sua defesa. Nesse episódio, segundo a narrativa de
Taunay, os paraguaios prepararam mais uma emboscada aos brasileiros depositando
pólvora no interior da pequena igreja que existia na localidade, o que provocou uma grande
explosão que fez várias vítimas, quando um soldado decidiu utilizar um isqueiro no interior
do edifício128.
Concordamos com Aluísio Faria, quando o autor afirma que “a Retirada da Laguna
não representou um acontecimento de grandes proporções no contexto da Guerra com o
Paraguai, como também não [foi] decisiva para o desenrolar da guerra” 129, pois de fato esse
episódio não decidiu os rumos do conflito e nem sequer foi responsável pela retomada do
território ao sul da província de Mato Grosso, que era seu objetivo inicial, pois a maior
parte das forças paraguaias já havia se retirado da região. Também para Garcia o episódio
foi uma medida equivocada da coluna brasileira.
Apresentada como um momento de heroísmo e de patriotismo, a retirada
de Laguna pode ser definida como uma somatória de erros cujo resultado
foi um desastre militar, que tornava patente a fragilidade estratégica da
fronteira de Mato Grosso e os riscos, para a própria integridade territorial
do Império, além das dificuldades de acesso terrestre para a província. 130
127 Conhecido como Guia Lopes, José Francisco Lopes era irmão mais novo de Joaquim
Francisco Lopes e proprietário da fazenda Jardim, situada nas proximidades do rio
Miranda onde hoje é o município de Guia Lopes da Laguna.
128 TAUNAY, A. D., A Retirada... Op. cit., p. 161.
129 FARIA, A. G., Ações militares..., Op cit. p.105.
130 GARCIA, D. S. C., Mato Grosso..., Op. cit. 70.
52
No entanto, do ponto de vista local, a passagem da coluna brasileira e os confrontos
com as forças paraguaias, ou seja, as ocorrências da Guerra com o Paraguai na região sul
da província de Mato Grosso, causaram grande impacto para as populações que estavam ali
estabelecidas.131 Como exemplo, podemos visualizar a própria localidade de Nioac que foi
invadida duas vezes pelos paraguaios convertendo-se “num montão de destroços
fumegantes”, o que certamente causou amplas consequências para a pouca estrutura que
até então havia ali132. Ainda, para a população local, o conflito foi drástico, pois muitos
precisaram fugir de suas propriedades e aqueles que ficaram, em sua maioria, foram
tomados como prisioneiros de guerra e levados para o Paraguai, além dos muitos abusos
realizados pelas tropas paraguaias, que destruíram e saquearam também igrejas e capelas,
desorganizando os serviços religiosos133.
Ao descrever a precária situação econômica em que permaneceu a província
durante a guerra, Garcia afirma que:
A produção da província foi duramente afetada durante a guerra, seja
porque foi alvo direto do ataque dos paraguaios, como foi o caso das
fazendas e sítios localizados na região sul da província, como pela
retirada de milhares de agricultores de seu trabalho, deslocados para o
serviço militar, no exército, nos corpos de Voluntários da Pátria e na
Guarda Nacional. Soma-se a isso, a interrupção da ligação fluvial com o
litoral e a Corte, o que provocou a interrupção no fornecimento de
produtos essenciais como o sal, que foi racionado. 134
131 “Mato Grosso teve um terço de seu território ocupado por tropas paraguaias por quase
três anos. A região sul da província esteve em mãos dos paraguaios até meados de 1868”
(GARCIA, D. S. C., Mato Grosso..., Op. cit. 75).
132 TAUNAY, A. D., A Retirada... Op. cit., p. 159.
133 MARIN, J. R.; SQUINELO, A. P., Pela salvação das almas: a presença religiosa nos
campos de batalha da Guerra do Paraguai, p.203.
134 GARCIA, D. S. C., Mato Grosso..., Op. cit. 76.
135 PERARO, M. A., Bastardos..., Op. cit., p.55 – grifos da autora.
53
Imprensa de Cuyabá em 7 de julho de 1865, que criticava o governo imperial pela pouca
atenção dada à província:
Que razões tinha o Governo Imperial para conservar nossas fronteiras no
estado indefeso? Não sabia que Lopez preparava-se para a guerra,
construía fortificações em Assunção, fortalecia o Humaitá, comprava
vapores e municionemos bélicos, que formava tropas e as disciplinava?
Que motivos para cortar os recursos pecuniários à Província, sem fundos
na Tesouraria para as mais insignificantes despesas decretadas por lei?
(...) Mato Grosso teme hoje mais o cortejo, da fome ventura que o próprio
inimigo. Se forças vierem de Minas e S. Paulo e não trouxerem o que
comer nós e elas havemos de perecer, porque o Governo deixou de
ocupar militar e convenientemente as nossas fronteiras, e a Presidência;
para guardar a Província tirou-nos os homens da lavoura, e com isto
meteu-nos a guerra na barriga que é a pior guerra conhecida. 136
137 A alfandega fora reinstalada em Corumbá no ano de 1872, “para suprir a necessidades
de armazenagem e arrecadação de impostos de exportação e importação” (CORRÊA, L. S.,
Corumbá..., Op. cit., p. 60).
138 CORRÊA, L. S., Corumbá..., Op. cit., p. 58.
139 QUEIROZ, P. R. C., Articulações econômicas, Op. cit., p.40.
140 “A pecuária é uma atividade que vai se consolidando progressivamente, se espalhando
principalmente na região sul da província. Começava a trilhar um caminho que fará dela,
durante a República, a principal atividade produtiva de Mato Grosso” (GARCIA, D. S. C.,
Mato Grosso..., Op. cit. 100).
141 GARCIA, D. S. C., Mato Grosso..., Op. cit. p. 88.
55
Do ponto de vista social, a Guerra com o Paraguai acabou legando para a província
um quadro sanitário que se “agravava quando as doenças de caráter epidêmico, como a
varíola, a febre amarela e a cólera se manifestaram de forma violenta, ceifando a vida de
milhares de mato-grossenses”, principalmente na capital Cuiabá.142
A província de Mato Grosso era representada como uma região distante geográfica
e culturalmente dos centros políticos e econômicos do império, tanto por estrangeiros que
passavam em suas terras, como pelos próprios brasileiros vindos principalmente do litoral
em viagens pela região. As imagens de sertão e fronteira eram elaboradas para representar
a província que, segundo Lylia Geletti, era constantemente objeto do discurso depreciador
de viajantes que viam na província um grande atraso material e moral que impedia seu
avanço político e econômico.143
Nesse quadro, e como que internalizando esses discursos, um fator importante foi o
incentivo dado pelo governo provincial à vinda de imigrantes da Europa, que fazia parte de
uma política demográfica que buscava ser eficaz na tarefa de modernizar os meios de
produção da província e implementar novos exemplos de mão de obra, considerados
civilizados144. No entanto, a maior parte dos imigrantes que acabaram adentrando a
província foram os paraguaios, que passavam por sérias dificuldades econômicas em seu
país, e eram pouco desejados pelas elites locais de Mato Grosso, e da mesma forma, pelas
autoridades governamentais145. Segundo Queiroz, nesse contexto do pós-Guerra, a região
sul da província:
Passou por significativas transformações no sentido do desenvolvimento
econômico e populacional. Antigos ramos econômicos são dinamizados e
novos são criados, ao influxo da navegação, beneficiada ainda pela
crescente utilização do vapor como força motriz das embarcações. O
grande estoque bovino da província, até então subaproveitado, atrai
importante investimento em uma indústria de transformação, voltada à
produção de caldo e extrato de carne (Descalvados, 1873) [...] Tanto
Corumbá como outras povoações de Mato Grosso receberam expressivos
contingentes de estrangeiros, sobretudo imigrantes paraguaios. 146
154 PALERMO, M. A., Nioac: Evolução política e revolução de Mato Grosso, p. 38.
Miguel Ângelo Palermo escreveu esta obra ainda em 1896, quando residia em Nioac. Nela
o autor se debruça sobre as divergências políticas ocorridas no período republicano em
Mato Grosso, particularmente sobre os incidentes ocorridos em 1892 na região sul do
estado.
155 CABRAL, J. F., O Município de Nioac, p. 413.
59
CAPÍTULO 2: A CRIAÇÃO DA FREGUESIA SANTA RITA DE NIOAC E SUA
CIRCUNSCRIÇÃO
162 MARIN, J. R., O acontecer..., Op. cit. Na segunda parte deste capítulo discutiremos o
Ultramontanismo, que constituía em uma forte vertente da Igreja Católica no século XIX.
163 Idem, p.100.
164 Anteriormente a essa data Cuiabá era Prelazia, criada em 6 de dezembro de 1746,
MARIN, J. R., O acontecer..., Op. cit. p.94
62
Rosario Nossa Senhora do Rosario do Jacintho Ferreira da Encomendado
Rio Acima Carvalho
Fonte: (Fala com que o Excelentíssimo senhor Hermes Ernesto da Fonseca abrio a 2ª Sessão da
21ª Legislatura da Assemblèia Provincial de Mato Grosso, 1877, p.13)
*Padre “Colado” eram sacerdotes responsáveis pela realização dos serviços religiosos em
determinada paróquia; ** Já os padres “Encomendados” eram escolhidos pelo bispo para
exercer os trabalhos de pároco até a vaga ser provida definitivamente. MORAES, S., O
episcopado de D. Carlos Luiz D’Amour (1878-1923), p.58.
63
Sant’Anna do Paranahyba (atual Paranaíba). Das dezesseis paróquias organizadas na
província naquele ano, quatro estavam sem sacerdotes fixos no local, como apontado no
quadro 4. As dificuldades com que os párocos locais se mantinham em suas respectivas
freguesias foram apontadas constantemente nas falas presidenciais, como em 1878 quando
o presidente João José Pedrosa citou um relatório do cônego Manuel Pereira Mendes 165,
onde este afirmou que a:
Côngrua que o Estado lhes proporciona para sua subsistência nesses
lugares ermos e sem abrigos, onde jazem como exilados, longe da
sociedade sem o menor cômodo de vida – é uma pequena quantia de
300$000 por ano paga pelos cofres gerais; e pela provincial gratificação
de igual soma quase incerta, marcada pela Assembleia, e que, reunida a
primeira, forma a de 50$000 por mês, para todos os misteres da vida.
Pode V. Exc.ª. sem maior esforço, ajuizar mesmo durante o pequeno
espaço de tempo de estada aqui – se porventura um homem nas condições
de um pároco em freguesias paupérrimas, como são as nossas, pode
subsistir com esse mesquinho e diminuto vencimento.166
165 Com a morte do bispo D. José Antonio dos Reis em 11 de outubro de 1876 foi eleito
vigário capitular o cônego Manuel Pereira Mendes (MARIN, J. R. O acontecer e o
desacontecer da romanização na fronteira do Brasil com o Paraguai e a Bolivia. p. 108)
166 Anexo In. Relatório com que o Exm. Sr. Dr. João José Pedrosa presidente da
província de Mato Grosso abrio a Lª Sessão da 22ª legislatura d respectiva
assembleia,1878, p.9
167 Após três meses como presidente da província, João José Pedrosa insere em anexo de
seu relatório as informações recebidas sobre os “negócios eclesiásticos” do cônego Manuel
Pereira Mendes, que estava no momento como procurador do bispo recém nomeado D.
Carlos Luiz D’Amour.
168 Relatório com que o Exm. Sr. Dr. João José Pedrosa... 1878, p.3, grifo meu.
64
Segundo o artigo 1º da Lei provincial nº 506 de 1877 a localidade de Nioac foi
“elevada à categoria de freguesia com a denominação de Levergeria e sob invocação de
Santa Rita”169. Daquele ano em diante a sua jurisdição eclesiástica ficaria desmembrada
territorialmente da vila de Miranda, porém unida à comarca que esta vila constituía desde
1858. O novo patamar adquirido, que é antes de tudo religioso, também deve ser entendido
como sendo de cunho civil-administrativo, já que a nova paróquia passava a concentrar os
registros dos eventos vitais (batismo, casamento, óbito) dos indivíduos residentes na sede
da freguesia e região. O período do pós-guerra (década de 1870), portanto, baliza para a
localidade o estabelecimento efetivo da Igreja, que passou a ser reconhecida pela estrutura
eclesiástica. Este processo também garantiu o estabelecimento de mais uma força, qual
seja, a Igreja, instituição regulamentadora do espaço e das práticas sociais. Ela se
constituiu em unidade administrativo-religiosa ligada ao destacamento militar pela figura
do seu pároco responsável.
A colônia militar dos Dourados, por exemplo, que estava localizada ao sul dessa
região perfazendo limite com o Paraguai, tinha em seu território várias famílias ali
residentes sob direção do comandante da colônia. Havia ali instalado uma agência fiscal
que tinha por objetivo primordial arrecadar tributos provinciais de boiadeiros que
exportavam gado e passavam pela região. No ano de 1876 o capitão Rogaciano Monteiro
de Lima conseguiu “arrecadar até o mês de outubro a quantia de 1:107$000”. Por
predominar o descaminho e a fuga desses boiadeiros por outras regiões esta agência fiscal
foi transferida para o destacamento de Bela Vista175.
Dessa forma, o olhar do autor do diário estava inclinado aos objetivos daquela
viagem e demonstra, dentre outros fatos, a distância do ideal religioso proposto pela
diocese daquele encontrado nas visitas às paróquias. Vários casos de irreverência e falta de
familiaridade aos rituais litúrgicos católicos foram relatados no diário 177. No entanto, o que
nos interessa neste momento é levantar informações sobre o território que compreendia a
freguesia Santa Rita de Nioac, no qual existiam diversas propriedades e alguns
aglomerados populacionais.
Segundo o cônego Bento Severiano da Luz, na sede da freguesia de Nioac residiam
aproximadamente 300 pessoas, e “estas reunindo-se a dos campos adjacentes, das colônias
e das serras ter-se-á uma população de 3000 almas” 178. Apesar da evidente imprecisão
desses números, fica claro, a partir do testemunho do Cônego Bento Severiano, que a
maior parte dos indivíduos residentes na freguesia estavam localizados nos campos
adjacentes. Essa informação é importante para termos uma visão panorâmica do recorte
espacial em questão, pois para o compreendermos, como já foi dito, é preciso considerar
que sua população estava dispersa na freguesia.
179 LUZ, B. S., Visita..., Op. cit., p.165. O capitão Muzi acabou por se tornar um líder
político na região, criando, inclusive um partido denominado Autonomista, no período
republicano.
180 LUZ, B. S., Visita..., Op. cit., p.173.
181 ROSA, P. A., Resenha histórica de Mato Grosso: fronteira com o Paraguai.
182 LUZ, B. S., Visita..., Op. cit., p.176.
69
É interessante observar a referência feita por Muzi em seu discurso ao bispo sobre
os vacarianos, como que identificando os indivíduos que viviam naquelas cercanias como
um povo. Essa mesma identificação é feita pelo autor do diário quando diz que a saudação
ao prelado seria feita em nome dos vacarienses. Em outro momento, quando da passagem
da visita pastoral pela região da fazenda Canta Galo, em cerimônia de recepção “com
alguns foguetes, salvas de ronqueira e bacamarte” além de sinos de festejos, o proprietário
Gustavo Adolfo Ferreira Machado fez uma eloquente alocução em que afirmava sua
gratidão com a presença do bispo àquelas paragens e ainda enfatizava que o povo serrano
estava por demais orgulhoso com a visita do Augusto Pastor183. A alusão ao povo serrano,
certamente se refere às diversas fazendas existentes na área compreendida pela serra de
Maracaju, nas proximidades da sede da freguesia de Nioac.
A ênfase nas falas de Muzi e Gustavo Machado com relação aos vacarianos e ao
povo serrano, e mesmo a própria referência do autor do diário da visita pastoral,
evidenciam a existência de microrregiões com certa concentração populacional que
estavam inseridas no território da freguesia de Nioac. Em um desses locais, inclusive,
existia uma “escola de instrução elementar sustentada por alguns pais de família, que
cotizam-se para esse fim, dando ao professor, além do sustento, a gratificação mensal de
20$000”184. Embora essa característica seja verificada na freguesia, estes locais não
parecem estar totalmente desvinculados da sede estabelecida no povoado de Nioac, pois
como visto em citação anterior o próprio capitão Muzi comercializava mercadorias trazidas
do Paraguai com o povoado de Nioac.
Em Campo Grande, povoado que teve início com a vinda de famílias provenientes
de Minas Gerais no início da década de 1870, havia 86 casas e uma Igreja cujo padroeiro
era Santo Antônio, e que foi construída em 1876 por “José Antônio Pereira, a quem o povo
auxiliou com serviços e esmolas, não entrando nessas obras um aceno ao menos do
governo provincial”185. Na pequena povoação de Campo Grande, aliás, foram realizados
“um sem números de batizados”, e ainda 420 crismas, em sua maioria de mulheres, e 37
casamentos. Esses números assinalam para a dinamização populacional que ocorria
naquele momento no povoado de Campo Grande, e da mesma forma, em diversos pontos
no interior da freguesia. Dois anos depois, em outra visita a Campo Grande, desta vez
Como podemos ver, existiam muitas propriedades apenas no caminho que ligava a
fazenda Boa Esperança ao povoado de Campo Grande, onde residiam muitas famílias. Os
indivíduos ali afazendados mantinham contato pelos caminhos terrestres existentes que
cortavam o território, ligando também à sede da freguesia, em Nioac.
A sede da freguesia de Santa Rita de Nioac estava localizada próximo ao
entroncamento do rio Nioaque com o córrego Urumbeva, alguns metros acima do local em
que o povoado estava instalado no momento anterior à Guerra e onde atualmente está
localizada a cidade de Nioaque.
A extensão da citação é justificada por sua importância, pois este relato se constitui
em um dos únicos documentos encontrados que faz uma descrição, mesmo que breve, de
características do povoado de Nioac no período pós-Guerra. Neste e em outros trechos do
relato, os apontamentos feitos sugerem que a localidade era de tamanho reduzido, ainda
com estrutura incipiente e marcada por um estilo de vida predominantemente rural, cujos
membros da elite local eram produtores rurais, proprietários de fazendas na região e o
oficialato do exército, cujo expoente principal era o comandante do 7º Regimento de
Cavalaria. Miguel Palermo sublinha que a figura do comandante era de maior relevância
200 DECRETO nº 747, de 24 de dezembro de 1850, Artigo 12. Rio de Janeiro. II Império.
Acessado em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-747-24-
dezembro-1850-560178-publicacaooriginal-82804-pe.html>.
201 Artigo 9º do DECRETO n. 747, de 24 de dezembro de 1850.
202 MARIN, J. R; SQUINELO, A. P., Pela salvação das almas..., Op. cit., p.199.
203 BUENO, F. A. P. Memórias Justificativas dos trabalhos... 1880, p.53.
76
O segundo desafio era mesmo o de lidar com uma população heterogênea do ponto
de vista cultural, composta por migrantes vindos de outras províncias, sobretudo Minas
Gerais e São Paulo, também de outros países como Paraguai, escravos, e ainda indígenas
de diferentes etnias que estavam em contato com a população não indígena da freguesia.
Dando seguimento em nossa intenção de circunscrever a freguesia Santa Rita de
Nioac, a seguir trataremos de explorar propriamente os registros de batismos, que também
nos ajudam nessa tarefa. Os batismos realizados em oratórios privados pelos párocos locais
auxiliam-nos a entender aspectos da composição espacial da freguesia Santa Rita de Nioac,
pois apresenta a existência de muitas fazendas e localidades, os quais correspondem aos
locais que eram considerados pertencentes àquela jurisdição eclesiástica.
204 O sentido do oratório como altar para prática da fé doméstica e comunitária, pode ser
identificado com a prática cristã primitiva que era marcada por celebrações de culto em
casas particulares, RUSSO, S. M. T., Espaço doméstico, devoção e arte: a construção
histórica do acervo de oratórios brasileiros, séculos XVIII e XIX, p.10.
205 RUSSO, S. M. T., Espaço doméstico, Op. cit., p.174.
77
Imagem 1. Oratório de Mesa em Madeira – Cuiabá século XVIII
BATIZADOS
LOCAL ANO
REALIZADOS
Oratório Privado de Lucio Cândido de Oliveira 15 1878
80
Oratório de José Luiz, Vacaria 1 1889
Oratório de Belchior de Souza, Vacaria 1 1889
Oratório de José Caetano, Lageado 1 1889
Oratório do Sr. Diodado Ananias/São Bento 3 1891
Oratório do Sr. Hermenegildo Alves Pereira (Gigi) 2 1891
Oratório de Francisco Pereira Martins, capeçera de vacaria 3 1891
Oratório de Barbara Francisca Pereira, no Potreiro 8 1891
Oratório de Thobias Antonio Neves, Mbirosu 14 1891
Oratório do Sr. Henrique José Pires Martins, Faz. do Campeiro 17 1891/1892*
Oratório do Sr. Antonio Gonçalves Barbosa Marques, Alegrete da
27 1891
Vacaria
Oratório do Sr. João Gonçalves Barbosa Marques, Ar Novo 11 1891/1892*
Oratório do Sr. Gustavo Adolpho Ferreira Machado, Canta Galo 10 1891
81
na localidade em que estavam inseridas, não sendo, portanto, pelo único desejo dos
proprietários dos oratórios de levarem seus filhos ao batismo. Por outro lado, em todos
esses casos os proprietários dos oratórios apadrinharam crianças, sejam com suas esposas
ou parentes, o que enfatiza o interesse em laços relacionais de compadrio com estes
indivíduos.
Outro fator que chama atenção nesses dados é a expressividade dos nomes
masculinos como proprietários dos oratórios que, entre outras coisas, demonstra a chefia
familiar do homem na propriedade e a proeminência desses indivíduos na comunidade que
estava inserido. Em apenas dois casos aparecem mulheres como proprietárias de oratório,
Barbara Francisca Pereira e Maria Joana de Melo. Como os outros casos citados, Barbara
Francisca e Maria Joana de Melo não levaram filhos ao batismo, o que nos leva a inferir
que poderiam ser senhoras viúvas proprietárias de fazenda, pois além disso o pároco
acrescentou o adjetivo Dona ao se referir a elas.208
As diversas propriedades relacionadas no quadro acima compunham a freguesia
Santa Rita de Nioac, e como é possível observar em muitas delas ocorreram mais de uma
dezena de batismos. Certamente não participavam destas cerimônias apenas os
proprietários e seus familiares. Vizinhos, amigos e parentes se dirigiam para estes locais
que se tornavam espaços comunitários de fé e sociabilidades. Dessa forma, podemos
considerar algumas fazendas da freguesia como locais que adquiriram alguma importância
em sua região e que acabavam por consolidar a influências de alguns indivíduos,
sobretudo, os proprietários de terras.
Como procuramos enfatizar até aqui, o povoado de Nioac, que surgiu a partir de
movimentos de ocupação não indígena e forte atividade militar ocorridos na porção sul da
província de Mato Grosso em meados do século XIX, foi elevado à freguesia no período
pós-guerra com o Paraguai, momento que a região passou a receber diversas levas de
migrantes. Indivíduos que combateram na guerra e receberam terras como recompensa do
império, famílias animadas com as potencialidades que a região oferecia e diversos
estrangeiros rumaram, novamente ou pela primeira vez, para o sul da província de Mato
Grosso e ali se estabeleceram. O período subsequente à Guerra com o Paraguai, portanto,
208 O adjetivo Dona aparece no Livro de batismo de forma recorrente para várias
mulheres. Não é possível descobrir qual critério específico que o escritor utilizou, se para
descrever mulheres abastadas, com idade adulta, etc. Porém, certamente ele se referia a
mulheres casadas ou que já foram casadas, pois ao descrever as mães de filhos naturais, ou
seja, as mães solteiras, o adjetivo nunca aparece.
82
foi bastante dinâmico do ponto de vista social. Nesse aspecto, podemos entender a
elevação de Nioac à freguesia em 1877 como forma de melhorar a administração do Estado
imperial e da Igreja sobre a população que ali se estabelecia e estava até o momento
apartada de serviços elementares de ordem religiosa e civil. As dimensões do território de
responsabilidade da freguesia, que cobriam grande parte da porção sul da província de
Mato Grosso, demonstram as dificuldades em se oferecer o devido suporte público e
religioso aos moradores daquela extensa região.
Com o predomínio de diversas propriedades rurais, aglomerados populacionais e
destacamentos militares a freguesia de Santa Rita de Nioac se constituiu em caso peculiar
na província de Mato Grosso em fins do século XIX. A forte presença militar, tendo a
própria Igreja matriz “encravada no quartel”209 e a responsabilidade pelos serviços da
paróquia a cargo de um capelão tenente, sinalizam características importantes do local e a
relevante participação do exército, materializado no 7º Regimento de Cavalaria, no
processo de constituição da freguesia. Da mesma sorte, o crescimento populacional
verificado na região do planalto sul da província de Mato Grosso, a partir da década de
1870, parece ter sido também um dos fatores que motivou a elevação de Nioac à freguesia.
Essa escolha, a nosso ver, guarda relação com a história de constituição do povoado que,
desde a segunda metade do século XIX, teve importante centralidade na região em função
do comando do distrito militar estabelecido na localidade em 1859.
O estabelecimento da freguesia em Nioac, portanto, anuncia a dinamicidade da
localidade no pós-guerra, bem como sua importância no cenário regional no fim do século
XIX. Neste aspecto, é relevante destacar que foi nesse momento que começou a se formar
o que podemos chamar de uma nova ‘elite local’ constituída de famílias vindas de outras
províncias do Império, sobretudo Rio Grande do Sul e Minas Gerais, ligada às
propriedades rurais, e de militares oficiais que se tornaram comandantes do 7º Regimento
de Cavalaria ou também proprietários de terras obtidas a partir de honrarias oferecidas pelo
governo imperial por lutarem na Guerra com o Paraguai.210
É também no período posterior a 1870 que é possível verificar na localidade maior
estrutura urbana, com construções de casas residenciais de alvenaria, comércio e
Essa descrição, apesar de cômica e marcada pela visão do autor sobre aquela
população, evidencia o conflito entre vivências distintas, uma permeada pelo dogmatismo
e hierarquização dos papéis religiosos e outra pela proximidade relacional, que rejeitava a
distância imposta pela rigidez do clero. Este conflito entre paradigmas religiosos e
comportamentais distintos muito provavelmente permeava a população da freguesia e ficou
apenas patente quando da presença do bispo naquelas terras, levando em consideração a
heterogeneidade cultural dos sujeitos residentes na freguesia. No caso citado quem adverte
a irreverência do sujeito é mesmo outro paroquiano, capitão Alencar, que se sentiu
incomodado com aquela atitude. Nesse sentido, segundo Marin:
A situação fronteiriça e a heterogeneidade social e cultural dela
decorrente geraram uma especificidade na inserção do catolicismo na
sociedade mato-grossense e no processo de romanização da Igreja
Católica[...] Ali o catolicismo ocupava uma posição de lateralidade,
tornando a presença da igreja católica fluida e o controle da sociedade
pouco eficaz.242
239 ARAUJO, J. C., Igreja Católica no Brasil: um estudo de mentalidade ideológica, p.22.
Apud. MARIN, J. R., O acontecer... Op. cit., p. 12.
240 MARIN, J. R., O acontecer... op. cit.
241 LUZ, B. S., Visita..., Op. cit. 192-193.
242 MARIN, J. R., O acontecer...Op. cit., p. 26-27.
92
O autor conclui ainda que a formação histórica da região fronteiriça na porção sul
da província de Mato Grosso colaborou para uma postura de indiferença perante as
normatizações eclesiásticas, fomentando um sentimento anticlerical. 243 Marin aponta para
as características materiais e culturais da região que influenciaram fortemente o viver
religioso daquela população. Era marcante a presença da vida campeira e extrativa, de
indivíduos acostumados a lidar com animais e com as peculiaridades da vida rural que
enfatizava a valentia, a bravura, a altivez, permeada pela cultura masculina que
predominava.244 Aliás, a afirmação de papéis propriamente masculinos também levou o
autor a considerar as diferenciações de tarefas exercidas por homens e mulheres no que
tange ao universo religioso.
Nas religiosidades populares, havia uma distinção dos papéis sexuais e o
homem ocupa, sem ameaçar sua masculinidade, o espaço central.
Atitudes mais contemplativas e devocionais estavam reservadas as
mulheres e crianças. Nas folias do divino, por exemplo, a tarefa de
percorrer as fazendas e casas para coleta de donativos, levantar mastros
para a bandeira do divino, carregar andores, soltar foguetes, participar
dos leilões, jogos, cavalhadas e rodeios eram eminentemente
masculinas.245
243 Idem, p.73. O autor fundamenta sua análise principalmente em relatos de viagens e
memorialistas que descrevem características da religiosidade na região em destaque.
244 MARIN, J. R., O acontecer...Op. cit., p. 70.
245 Idem, p. 72.
246 Os números gerais apresentam uma população de 92.827 pessoas, sendo 47.196
homens e 45.631 mulheres.
93
Quadro 6. População geral das paróquias ao sul de Mato Grosso dividida por
gênero – 1890
jan. fev. mar. abr. mai. jun. jul. ago. set. out. nov. dez.
255 BARBOSA, E. G. Panoramas do sul de Mato Grosso. p.9 Apud. MARIN, J. R., O
acontecer...Op. cit., p. 76.
256 MORAES, S., A visão Ultramontana... Op. cit. p.120.
97
consensuais duradouras e esporádicas inseridas no
universo normativo da Igreja Católica. 257
264 Esse conceito apareceu, fundamentalmente, nas obras clássicas de Gilberto Freyre,
sobretudo em Casa Grande e Senzala, e de Oliveira Viana em Populações meridionais.
265 SAMARA, E. M.; A Constituição da família na população livre (São Paulo no século
XIX).
266 SCOTT, A. S. V., “Descobrindo” as famílias no passado brasileiro: uma reflexão
sobre a produção historiográfica recente. p.15.
100
Neste sentido, a condição de fronteira e a retirada de homens do interior
de suas famílias podem ter forjado uma reorganização e substituição de
papéis entre homens e mulheres. Podem ter forjado também na população
características de vida maleáveis e amoldadas às circunstâncias do
imprevisto e do imediato. Nesse aspecto, as condições de privacidade não
podiam ser diferentes, estando sempre sujeitas aos embates do
cotidiano.267
268 LOPES, E. C., O revelar do pecado; os filhos ilegítimos na São Paulo do século
XVIII.
102
Quadro ‘8. A Ilegitimidade em diversas paróquias brasileiras – Séculos XVIII e XIX
24
2%
402
32%
836
66%
250
200
150
100
50
0
1878 1879 1881 1882 1886 1888 1889 1890 1891 1892
Legítimos Ilegítimos
274 Apesar de não analisarmos aqui neste trabalho, sabemos da existência de um Livro de
Registros de Casamentos que traz assentos cerimônias realizadas na freguesia Santa Rita
de Nioac durante os anos de 1878 a 1896. Esta fonte pode nos ajudar, em trabalhos futuros,
a entender outros aspectos acerca da temática das famílias na região durante fins do século
XIX.
107
na maior parte dos registros de filhos naturais, apontam para a existência dessa realidade
na sede em Nioac, nos povoados, nas fazendas e nas colônias militares pertencentes à
freguesia de Nioac. Lembramos que se trata de um registro importante, que possuía valor
oficial e, portanto, implicava responsabilidades aos progenitores que ali eram inseridos.
Muitos eram os casos de mães que reiteradamente levavam filhos naturais ao
batismo, e nos quais eram suprimidos a identificação do pai. Foram registradas 37 mães
que levaram mais de um filho ilegítimo ao batismo.275 Este é o caso de Dorotea Jara, que
no ano de 1889 levou 4 filhos ao batismo: Pascal (7 anos), Frutuoso (3 anos), Ramão (1
ano) e Remigio (7 meses).276 Esses batismos citados foram realizados na colônia militar de
Miranda, local de presença marcante de militares. Nessa mesma oportunidade, outras 3
mães levaram filhos naturais ao batismo, Ana de Souza Ribeiro, Joana da Cruz Nunes e
Ana Claudina.277
Como já tratamos em capítulo anterior a freguesia Santa Rita de Nioac possuía
diversos espaços onde existiam aglomerados populacionais. As regiões da Vacaria, Campo
Grande, colônia de Miranda e colônia dos Dourados compunham parte significativa da
população da freguesia. A seguir temos um quadro com as taxas de ilegitimidade nesses
respectivos locais.
275 Nestes números estão suprimidas as mães indígenas e escravas que levaram mais de
um filho ilegítimo ao batismo.
276 Livro de Batismos, fólios 113 e 114.
277 Idem.
108
*Este quadro foi confeccionado a partir da seleção dos assentos em que constam os locais de
realização da cerimônia. Como já dissemos aqui, em muitos assentos não aparece descrito o local
do batismo, o que torna difícil a localização.
Como é possível perceber há grande diferença nas taxas de ilegitimidade nos locais
da freguesia. O aglomerado populacional que possuía a menor taxa de filhos ilegítimos era
Campo Grande (12,5%), e isso se deve, possivelmente, pelas características de ocupação
do lugar, que foi realizado predominantemente por famílias vindas da província de Minas
Gerais. Ao que tudo indica, a maior parte destas famílias eram compostas por progenitores
que já se deslocaram para a região unidos pelo matrimônio ou que casaram-se na freguesia,
o que fez declinar os índices de filhos ilegítimos.
A região denominada de Vacaria, que compreendia várias propriedades rurais,
algumas, inclusive, de indivíduos proeminentes na região, possuía índices de filhos
ilegítimos em torno de (23,7%), portanto, maiores do que o povoado de Campo Grande.
Aliás, nesta região da Vacaria, foi possível notar a presença importante de paraguaios, em
sua maioria mulheres. Os assentos trazem um total de 10 nomes de pessoas descriminadas
como paraguaio (a), e deste número 9 eram mulheres 278. Provavelmente existiam mais
pessoas vindas do país vizinho e que viviam na freguesia, pois é possível notar muitos
nomes em espanhol que não trazem a nacionalidade, sobretudo de mães. As 9 mulheres
paraguaias foram mães de filhos ilegítimos e o que chama a atenção é a idade da maioria
dos seus filhos que tinham apenas meses de vida, o que indica que foram gerados a partir
de relacionamentos construídos na própria freguesia.
Contudo, as maiores taxas de ilegitimidade foram encontradas nas colônias
militares. Embora a quantidade de batismos seja pequena, a proporção de nascimentos
ilegítimos é bastante significativa e compõe um cenário em que boa parte das famílias ali
estabelecidas eram informais. O traço marcante da localidade era justamente a presença
militar, que consistia em sua maioria de homens destacados ali para servirem nos serviços
da colônia.
Ao considerar distintamente os locais da freguesia, torna-se importante também
enfatizar a sede da freguesia em Nioac, onde havia uma significativa presença de militares
servindo no 7º Regimento de Cavalaria. Ademais, o maior número de batismos registrados
no livro foi realizado na Igreja matriz, que na época estava localizada dentro daquele
Quadro 10. Condição dos nascimentos na sede da freguesia Santa Rita de Nioac 1878-
1892
110
3.2.2 O Compadrio
Para que se tenha uma visão mais clara do contexto estudado é importante
concentrarmos nas informações dadas pelas fontes, procurando enxergar as
ressignificações da doutrina católica sobre o compadrio na realidade da freguesia Santa
Rita de Nioac. Nesse aspecto, em alguns casos é possível notar o distanciamento do
modelo trazido nas Constituições.
Um caso exemplar foi o que ocorreu no dia vinte e nove de agosto de 1879, quando
foi levada a pia batismal numa visita em desobriga a menina Adelina, de dois anos e filha
legítima de José Elias de Almeida e Benedicta Maria da Conceição. Seus padrinhos foram
Vicente Lopes de Azambuja e Joaquim Silverio Ornellas.285
O estudo das relações firmadas na pia batismal via compadrio, busca reconstruir
parte das relações sociais tecidas pelos sujeitos que viviam na freguesia. Ainda que
houvesse exceções, a maior parte dos compadres convidados era de estratificação social
igual ou superior à dos pais das crianças. Além disso, as análises das redes de compadrio
podem “acessar as relações de reciprocidade vertical e horizontal que formavam parte
importante dos caminhos por onde circulavam recursos e se estruturavam hierarquias,
naquelas sociedades préindustriais”.292
Contudo, é importante lembrar, como salienta Luís Augusto Farinatti, que o
batismo não tornava todos os compadres e todos os afilhados igualmente próximos, sendo
uma dentre as diversas formas de relação social.293 Ainda assim, o estudo das alianças de
compadrio serve-nos como um quadro parcial que revela, por exemplo, aspectos
relacionados a hierarquia social vigente.
Tendo em vista a importância do padrinho/madrinha nesse contexto, os sujeitos que
desfrutavam de certo prestígio social costumam aparecer de forma recorrente nos assentos
sendo, portanto, compadres preferenciais. Ao pensar em indivíduos que eram considerados
como compadres preferenciais, estamos afirmando que esses sujeitos eram buscados como
padrinhos/madrinhas pela influência que tinham na região em que viviam. Assim, esses
atores sociais possuíam determinados recursos que levavam seus vizinhos, parentes e
amigos a convidá-los como compadres.
A seguir, trazemos dois quadros com os compadres e as comadres preferenciais, e
para isso, arbitramos um número de no mínimo 6 afilhados, ou seja, todos os nomes
291 GUDEMAN, S. SCHWARTZ, S., Purgando o pecado original: compadrio e batismo
de escravos na Bahia no século XVIII, p.37.
292 FARINATTI, L. A., espada e a capela: relações de compadrio dos oficiais de milícia
na fronteira meridional do Brasil (1816-1835), p. 296.
293 Idem, p.296.
115
constantes nos quadros abaixo foram escolhidos como compadres e comadres no mínimo 6
vezes.
116
Quadro 12. Comadres preferenciais
Os nomes trazidos nos quadros acima não devem ser considerados como os
‘melhores’ padrinhos/madrinhas ou os mais ‘ricos’ moradores da freguesia. Aliás, alguns
nomes que mantinham uma conhecida influência e prestígio na região não aparecem nestas
relações, como é o caso de Thomaz Laranjeira. Thomaz aparece apadrinhando quatro
afilhados em locais diferentes, um na colônia dos Dourados, outros dois na fazenda
Dependência e mais um na Igreja Matriz em Nioac. Certamente estes não eram os únicos
afilhados de Thomaz, que segundo descrito por Astúrio Monteiro de Lima anteriormente,
se utilizou largamente do compadrio como estratégia de formação de uma rede de
influências na região.
Portanto, guardados os devidos cuidados, os quadros acima expõem de alguma
forma os indivíduos que mais apadrinharam. Alguns são nomes já conhecidos pela
literatura histórica regional e outros ainda desconhecidos, mas que tiveram real
importância naquele contexto. Um total de 21 homens e 8 mulheres foram convidados em
pelo menos 6 vezes ao compadrio. Esses sujeitos residiam em diferentes lugares da
freguesia e possuíam algo em comum: eram todos casados, com exceção do pároco local.
Com exceção de apenas dois nomes, os compadres e comadres constantes nos dois quadros
acima eram casados entre si, porém não participaram em conjunto de todos os batismos.
Também, não foi registrado mulher solteira como comadre por mais de 6 vezes, nem
mesmo homem. Apesar de que em vários momentos os casais apadrinharam
separadamente é preciso considerar o que afirma Luís Augusto Farinatti. Para este autor
117
não é possível tomar esta informação como evidência de relacionamentos individualistas
mantidos por um dos cônjuges sem o consentimento do outro, pois:
Se o casal não apadrinhava junto, também se deve ter em conta que,
naquela sociedade, o individualismo estava pouco presente e a família
tinha grande importância em termos de reconhecimento social. O convite
para que um dos cônjuges se fizesse presente à pia batismal significava
prestígio e estabelecimento de relações para a sua família e não apenas
para si próprio.294
294 FARINATTI, L. A., espada e a capela: relações de compadrio dos oficiais de milícia
na fronteira meridional do Brasil (1816-1835), p. 297.
295 PALERMO, M. A. Nioaque... op. cit. p.73.
296 Ao que parece a região considerada como Vacaria por Miguel Palermo incluía as
propriedades dispersas entre os rios Vacaria e Dourados (ver mapa 3). Nossa afirmação
sobre a região da Vacaria se baseia na identificação feita no Livro de batismo pelo pároco
local que, de uma forma geral, coincide com a região citada por Palermo.
118
O nome citado por Palermo neste escrito de 1896, como patriarca das famílias
vacarianas, foi convidado ao menos 8 vezes como compadre conforme o quadro acima.
Nesse sentido, Joaquim Barbosa Marques como compadre preferencial construiu seu
prestígio também por meio do compadrio, tendo inclusive poder de influência política
sobre diversas famílias da região.
Alguns sujeitos foram compadres/comadres em 10 ocasiões ou mais, Emerenciana
de Souza Marques, Francelino Rodrigues Ramos, Misael José de Souza, Francisco de
Paula e Souza e José Antônio Pereira. Este último é figura conhecida, sendo considerado
por muitos como o ‘fundador’ de Campo Grande. José Antônio Pereira era casado com
Maria Carolina de Oliveira, residia na província de Minas Gerais e se dirigiu para a região
sul da província de Mato Grosso na década de 1870 297. Estabeleceram-se na localidade que
denominaram Campo Grande juntamente com outras famílias, que foram animadas pelas
notícias das potencialidades que o local oferecia para criação de gado e agricultura de
subsistência. Segundo o relato da passagem do bispo de Cuiabá pela localidade em 1886,
José Antônio Pereira era pessoa proeminente e de prestígio no povoado. Além de discursar
em nome do povoado ao bispo, ele preparou uma casa especialmente para a hospedagem
daquela comitiva.298 Também lhe foi atribuída a construção de uma pequena Igreja que
existia no local, em honra a Santo Antônio.
Considerando os dados aqui trazidos é possível visualizar que José Antônio Pereira
construiu alianças e relações sociais com diversos indivíduos que ali residiam, via
compadrio. Nesse sentido, não é possível naturalizar seu prestígio social, considerando
como frutos de aptidões ‘heroicas’ e ‘arrojadas’ deste sujeito histórico. Pelo contrário, sua
associação a outros sujeitos que viviam na localidade foi construída a partir de estratégias,
tendo o compadrio como uma delas. Isso demonstra a importância das redes de compadrio
para as sociabilidades na freguesia, e ainda reforça o caráter, muitas vezes vertical, das
relações firmada na pia batismal.
No capítulo seguinte passaremos a analisar os temas aqui propostos tratando
especificamente da população escrava e, da mesma forma, os indígenas.
A realidade social da freguesia Santa Rita de Nioac era permeada também pela
escravidão, que àquele período estava legalizada e disseminada em todo o Império. O
recorte temporal que analisamos aqui está inserido num período importante de declínio da
oferta de mão de obra escrava. Aliás, esse processo já pode ser notado a partir de meados
do século XIX, quando em 1850 foi promulgada a lei de proibição do tráfico de escravos
africanos para o Brasil. A partir dessa data foram promulgadas também uma sequência de
medidas legais que atingiram de forma gradativa a instituição da escravidão no Império,
com destaque para a chamada Lei do Ventre Livre, de 1871, que declarava livre todas as
crianças filhos (as) de mães escravas.
Após 1850 a maior parcela da população escrava passou a concentrar-se nas mãos
de grandes senhores, de indivíduos abastados, sobretudo, das províncias cafeeiras, que se
utilizavam largamente do braço escravo nas atividades do campo. 299 Como assinala Hebe
Matos de Castro, com a diminuição do número de escravos por conta da proibição do
tráfico africano e a consequente dificuldade de reposição de mão de obra africana, houve
um recrudescimento do tráfico interno, a partir de um processo de migrações de escravos
entre as províncias.300
No que tange a escravidão na província de Mato Grosso algumas características
precisam ser salientadas. Segundo Luiza Volpato, em seu importante estudo sobre os
cativos do sertão, havia grande dificuldade de obtenção da mão de obra escrava na
província, e isso mesmo antes da proibição do tráfico e do crescimento negativo da
população escrava.301 No entanto, segundo a autora, a escravidão continuou sendo a forma
de exploração do trabalho preponderante em Mato Grosso, pois os proprietários
mantiveram-se arraigados à escravidão. A utilização da mão de obra cativa na província de
Mato Grosso se deu em diferentes atividades. Muitos cativos especializaram-se nas
funções de carpinteiro, lavrador, tropeiro ou ainda realizavam as tarefas de vaqueiros,
curtidores, remadores, etc., sendo que a presença dos escravos permeava os espaços sociais
327 WEIGERT, D., Compadrio e família escrava em palmas, província do paraná (1843-
1888), p.48.
328 Idem, p. 72.
329 Livro de Batismo, fólio 79.
330 Livro de Batismo, fólio 81.
132
visualizar no Livro de batismo algumas mães solteiras que levaram mais de um filho à pia
batismal, o que indica a possibilidade de relações informais estáveis entre estas mães e os
pais daquelas crianças. Este é o caso da escrava Graciana, que no dia 20 de novembro de
1879 levou dois filhos ao batismo, Joaquim e Isidoro, de 3 e 2 anos, respectivamente. 331
Lamentavelmente, o não registro da paternidade destas crianças torna difícil precisar as
relações mantidas por estas escravas.
Dedicamos estas linhas, na intenção de demonstrar as múltiplas relações mantidas
por escravos na freguesia Santa Rita de Nioac. As diversas trajetórias construídas por estes
sujeitos demonstram que a escravidão permeava diversos espaços daquela sociedade,
sendo impossível entendê-la sem considerar a presença dos sujeitos cativos que ali viviam.
A seguir trataremos de analisar a presença da população indígena na freguesia,
considerando que sujeitos de diversas etnias também viviam nessa região, e da mesma
forma mantiveram múltiplos laços de sociabilidades naquela sociedade.
331Além de Graciana, detectamos outras quatro mães solteiras que tiveram mais de 1
filho, Maria, Eufrosina, Lucila e Justina.
332 Nesse sentido verificar os relatos já aqui citados de Joaquim Francisco Lopes e
Epifanio Candido de Sousa Pitanga, ambos exploradores da região na primeira metade do
século XIX.
133
conhecimento da região em favor dos ‘primeiros ocupantes’. Ademais, o destaque para as
populações indígenas como bandoleiros, hostis e violentos é comum nas narrativas
construídas pelo escritor Hélio Serejo. Dando um caráter secundário e paralelo à
participação indígena, seus escritos citam em diversos momentos alguns nomes de
personagens indígenas que ficaram pejorativamente na memória popular da localidade,
como um dito Lixagates, que era capitão dos Kadiwéu e “costumava beber o sangue de
suas vítimas, logo após a degola”, e ainda “era senhor e dono de mais de quarenta
mulheres, possuindo aproximadamente setenta filhos”.333
Da mesma forma, na construção do autor sobre o processo de ocupação da região, a
narrativa é construída procurando enfatizar o caráter paternalista e zeloso dos indivíduos
que chegavam àquelas terras, que sempre se propunham a evitar conflitos. Ao descrever o
momento de entrada das primeiras famílias que propunham se afazendar na região do
córrego Urumbeba, Serejo afirma que “o índio bateu o pé firme” e que “muitas vezes os
brancos se retiraram a fim de evitar a carnificina certa”.334 O tratamento dado pelos escritos
de Hélio Serejo é característico de uma visão acerca dos indígenas, considerados
selvagens, não afeitos a moral religiosa e às práticas consideradas civilizadas.
Certamente, relações de conflitos, tensões e disputas ocorreram com frequência
entre indígenas e não indígenas na região do planalto sul da província de Mato Grosso. A
própria Guerra com o Paraguai foi um fator de importante impacto para diversas etnias que
viviam na região, como os Terena e Kaiowa, que tiveram sua cultura profundamente
marcada pelo conflito.335 Portanto, deve-se levar em conta os efeitos históricos desse
processo também para as etnias que viviam na região, pouco mencionadas até este
momento.
Ao analisarmos os indígenas nos registros de batismos da paróquia Santa Rita de
Nioac, temos o interesse de demonstrar que o contato com as famílias não indígenas que se
instalaram na freguesia também foi marcado por relações de convivência e
apadrinhamento.
Foram registrados 113 batizados de indígenas em todo o livro. 336 É importante
lembrar que esses assentos não foram descritos em local específico do livro, mas inserido
333 SEREJO, H., Nioaque um pouco de sua história, p. 255.
334 Idem, p.257.
335 No que se refere aos Terena ver: MOURA, N.; Acçolini, G., Os Terena em Mato
Grosso do Sul, p.250. Para o caso dos Kadwéu, SILVA, G. S., De Mbayá-Guaikurú a
Kadiwéu: uma sociedade de artistas e guerreiros, p. 278.
134
juntamente com os registros de livres. Também, cabe enfatizar, que a quantidade de
indígenas aqui descrita representa apenas um número parcial da totalidade que residia nos
limites da freguesia. Pelo menos 7 etnias distintas foram descritas como sendo Terena,
Kaiowa, Guaicuru, Coroado337, Guarani, kinikinau e Chamacoco. Os registros
contemplando nascimentos de Terena são os predominantes perfazendo um total de 65
indivíduos batizados.
No quadro abaixo apresentamos os dados gerais em porcentagem da presença das
etnias no livro de batizados em análise.
6%
78%
338 MOURA, N.; Acçolini, G., Os Terena em MS, Op. cit. p.251.
339 VARGAS, V. L. F., A dimensão sócio-política do território para os Terena: As
aldeias nos séculos XX e XXI, p.65.
340 MOURA, N.; Acçolini, G., Os Terena em MS, Op. cit. p.251.
136
Nioac nove de junho de 1879. O Pro-párocho Simão Moreira da Rocha,
Capelão Tenente341.
SEXO SITUAÇÃO DO
QUANTIDADE
ANO NASCITURO
DE BATIZADOS
INDÍGENAS
F M Ilegítimos Legítimos
1878 5 2 3 5
1879 14 10 4 14
1881 9 4 5 9
1882 20 10 10 20
1886 11 3 8 11
1888 13 8 5 13
1889 26 8 18 23 3
1890 4 3 1 4
1891 11 8 3 4 7
Como pode ser visto no quadro acima os dados mostram uma paridade quanto ao
gênero dos batizados, não existindo, portanto, maior incidência de homens ou mulheres. Os
registros de filhos indígenas legítimos só ocorrem a partir do ano de 1889, ou seja, apenas
12 anos após a instalação da paróquia em Nioac, o que pode ter facilitado o processo de
casamento de homens e mulheres indígenas. É importante frisar que 8 dos 10 batismos de
filhos legítimos foram realizados na Igreja matriz em Nioac, o que indica que estes casais
138
residiam naquela localidade. Os outros 2 batizados foram feitos em oratórios privados em
desobriga na freguesia.
Esses casais privilegiaram a escolha de padrinhos não indígenas. Assim,
considerando que muitos retornaram para a região após a guerra supomos que existia
considerável número de indígenas vivendo na sede da freguesia em Nioac e que conviviam
cotidianamente com a população local e procuravam firmar laços de amizade,
camaradagem e reconhecimento social por meio do apadrinhamento de seus filhos.
Este parece ser o caso do índio Terena João de Oliveira, casado com Luisa, também
Terena. Ao levar seus dois filhos, Manuel e Seliano, ao batismo em janeiro de 1888, o
casal escolheu por padrinhos de seus dois filhos outro casal, porém de não indígenas, o Sr.
José Alvares de Sanjes Surga e sua esposa Margarita Alvares de Sanjes Surga. O casal
Sanjes Surga residia em uma “bonita chácara situada nos suburbios de Nioac, precisamente
na bifurcação do Urumbeva com o rio Nioac”. 344 Dessa forma, entendemos a escolha de
José Surga e Margarita Surga como compadres dos indígenas João de Oliveira e Luisa
como estratégia de construção de alianças por meio do parentesco espiritual, visando maior
inserção na comunidade ou mesmo como forma de retribuir favores prestados pelo casal
Surga.
A escolha de indígenas como compadre quase não existiu. Apenas três casos foram
registrados, sendo que nos três a criança batizada também era filho(a) de indígena. A
prática do compadrio entre indígenas, portanto, não foi usual, o que parece confirmar a
hipótese de que a escolha do padrinho, no caso dos indígenas presentes no Livro de
batismo, se dava em função de múltiplos interesses que giravam em torno da sobrevivência
e contato destes sujeitos que buscavam angariar reconhecimento social junto a população
não indígena.
Nos casos aqui analisados, os indícios apontam para uma certa perspectiva
paternalista por parte dos não indígenas, principalmente quando se trata de proprietários de
terras. Como já sublinhado, a baixa escolha de padrinhos indígenas, além de indicar um
344 Além desta descrição o autor ainda aponta sobre a propriedade que: “foi
primeiramente do alferes ajudante Elias de Alexandria, por concessão que lhe fizera o
comandante militar Leverger no tempo em que Nioac era simples colônia militar. Por
morte deste oficial, a chácara, em virtude de doação do mesmo, passou a dona Maria
Conceição, que vendeu ao seu atual possuidor depois de tê-la ocupado temporariamente o
Rvdo. Padre Simão. O Sr. Surga a melhorou consideravelmente, e está edificando uma boa
morada e outra para engenho de açucar”. LUZ, B. S., Visita... Op. cit. p.165.
139
processo de interação e convivência entre indígenas e não indígenas, parece indicar a
presença de uma perspectiva que procurava colocar os indígenas em posição inferior, como
sujeito que necessitava de amparo e ajuda. Essa relação poderia resultar em práticas como
o pedido de tutela, que será descrito logo em seguida, quanto na utilização da mão de obra
indígena para serviços em fazendas, que observaremos mais adiante.
Caso exemplar é o de Gustavo Adolpho Ferreira Machado, proprietário da fazenda
Canta Galo, localizada na Serra de Maracaju. Gustavo apadrinhou em 1879 os indígenas
Terena Manuel, adulto, e Adolpho de 9 anos.345 Três anos depois, em outubro de 1882, na
visita do pároco em sua fazenda, Gustavo apadrinhou mais três crianças indígenas, Luiza
de 9 anos, Joana de 2 meses e Francisca de 4 meses. 346 Já no ano de 1891, o mesmo
Gustavo Adolpho, juntamente com sua esposa, Theodora Maria dos Santos, apadrinharam
mais três indígenas, Benedicto de 4 anos, Celestina da mesma idade, e Antonio de 6
anos347.
É difícil caracterizar, com as informações que possuímos, qual tipo de relação era
mantido por estes indivíduos ao longo desses anos, porém a frequência com que o
apadrinhamento de indígenas ocorria aponta para uma convivência permanente dos
membros da família de Gustava Adolpho com indígenas. Aliás, o irmão de Gustavo
Adolpho, Gustavo Cesário Ferreira Machado também apadrinhou duas crianças indígenas
no ano de 1891.
A fazenda Canta Galo, de propriedade de Gustavo Adolpho Ferreira Machado
constituía-se como um dos núcleos populacionais da freguesia Santa Rita em fins do século
XIX. Sua localização, relativamente próxima a sede em Nioac, facilitava o acesso de seu
proprietário e das pessoas que viviam ali ao povoado. Além disso, Gustavo Adolpho tem
seu nome ligado a atividades políticas na localidade no início do período republicano. Ele
recebeu o bispo de Cuiabá, em 1886, em nome do povo serrano, oferecendo em sua
propriedade festejos comemorativos e uma “lauta ceia”, procedida de um discurso
eloquente onde enfatizava o local como “inóspito sertão” e “tão remoto município”.348
Uma importante informação levantada durante a pesquisa ajuda a entender a
relação mantida entre indígenas e não indígenas em Nioac, na direção de uma prática
345 Livro de Batismo, fólio 29. Note-se a semelhança do nome Adolpho, segundo nome de
Gustavo, atribuído ao indígena.
346 Livro de Batismo, fólios 67v e 68. As três crianças eram filhas de mães diferentes.
347 Livro de Batismo, fólio 163.
348 LUZ, B. S, Visita..., p.171.
140
paternalista e pretensamente solidária, vinculada ao ato do batismo. Em 1891, o cidadão
Joaquim Augusto de Oliveira Cesar, casado e residente em Nioac, pediu junto ao Juízo de
Órfãos a tutela de Roque, filho da índia Coroado Inocência. Joaquim Augusto havia sido
padrinho de batismo do pequeno Roque e justificava sua petição para poder oferecer a ele a
“educação precisa”, pois segundo ele, não havia quem lhe oferecesse. O curioso é que o
Juiz de Órfãos, Pio José Rufino, nomeou como curador do pequeno Roque, Gustavo
Adolpho Ferreira Machado, sendo que por este cargo somente ele poderia conceder a tutela
ao suplicante.349 O processo foi aberto em 19 de janeiro de 1891 e no dia seguinte a
sentença foi pronunciada pelo juiz Pio concedendo a tutela a Joaquim Augusto.
Esse processo constitui um dos poucos processos cíveis que restaram deste período
referente a Nioac no arquivo do Tribunal de Justiça de MS. Sua citação se faz necessária,
pois demonstra as relações imbricadas entre o apadrinhamento pelo batismo e a guarda
paternalista para com filhos de indígenas. Assim, é possível concluir que na maioria dos
batizados indígenas registrados no Livro de batismos, o que parece ocorrer com maior
frequência é o prestígio e a valorização do papel de padrinho, porém não o de compadre,
por parte dos não indígenas. Além disso, o processo revela a participação do proprietário
de terras Gustavo Adolpho em decisões cíveis, que merecem ser investigadas a partir da
consulta de outras tipologias documentais.
Nesse aspecto, é necessário salientar, como demonstra Adilson Garcia em sua
dissertação sobre a participação dos índios Guaná, ou Terena, no processo de
desenvolvimento econômico do sul de Mato Grosso, que nesse período do pós-guerra, com
o processo de expansão agropastoril de propriedades rurais voltadas à criação de gado,
muitos Terena foram obrigados a trabalhar em fazendas em regime de semiescravidão,
como camaradas de conta, sendo uma situação que se estendeu pelo menos até os anos
inicias do século XX.350 Adilson Campos ainda enfatiza que muitos indígenas viviam como
‘agregados’, entendendo-se por isso aquele indivíduo que residia na fazenda, porém,
349 O curador era o possuidor da guarda, o único responsável por conceder a guarda ao
suplicante, com a necessária aprovação do Juiz de Órfão. “O Juízo de Órfãos era o tribunal,
ou foro, em que se tratava e decidia tudo o que dizia respeito a um menor de idade, ou
pessoas incapacitadas, como os pródigos (pessoas que gastam seu capital ou destroem seus
bens), os furiosos (pessoas com as faculdades mentais debilitadas) e os indígenas”.
CARDOZO, J. C. S.; FLECK, L. C. D.; SCOTT, A. S. V., O juízo dos órfãos em Porto
Alegre, p.4.
350 GARCIA, A. C., A participação dos índios Guaná no processo de desenvolvimento
econômico do sul de Mato Grosso (1845-1930).
141
apenas por prestar serviços avulsos sem ser, necessariamente, empregado. 351 A atividade
das mulheres indígenas também foi enfatizada pelo autor, sendo que a “mão-de-obra
feminina nas fazendas foi de importância considerável para a sociedade não índia –
fazendeiros, gerentes, capatazes, empreiteiros”.352 Segundo Lenir Ximenes, esse período
ficou na memória oral dos Terena como tempo de cativeiro, tempo de servidão, ou
escravidão, pois caracterizava, para eles, uma condição de trabalho compulsório.353
Note-se também a proximidade entre mulheres indígenas e escravas na freguesia.
Dois casos foram registrados no ano de 1882, em que mulheres escravas apadrinharam
filhos de indígenas, e isso juntamente com familiares de seu proprietário. No dia 26 de
julho de 1882 Catharina, de aproximadamente 1 ano, filha da índia Clara, foi levada à pia
batismal por Alexandre de Arruda Fialho e Innocencia, escrava de José Francisco Fialho.
Três meses depois, no dia 4 de outubro de 1882 a pequena Marcelina, de 3 anos de idade,
filha da índia Terena Eliza, foi também levada à pia batismal por Izidoro Gabriel de Sousa
e Gertrudes, escrava de Emerenciana de Sousa. Esses dois casos revelam uma relação de
proximidade entre escravas e mulheres indígenas reconhecida na pia batismal através do
instituto do apadrinhamento. A escolha das escravas para se tornaram madrinhas de suas
filhas só pôde ser efetuada, pois havia uma convivência prévia com aquelas mães
indígenas. Ao que parece essa convivência se deu, nos dois casos expostos acima, em meio
ao ambiente familiar dos proprietários das escravas, se levarmos em conta os nomes dos
padrinhos escolhidos, que certamente eram parentes dos respectivos proprietários de
escravos. É importante enfatizar também que esses são os únicos casos em que escravos
aparecem apadrinhando pessoas livres, o que se torna sintomático e pode evidenciar uma
relação social simétrica entre escravos e indígenas.
Em relação às demais etnias presentes nos registros da freguesia Santa Rita de
Nioac, é preciso pontuar que as relações de convivência e contato também ocorreram. O
quadro abaixo traz a relação dos nomes, idades e locais de batismos destes indígenas. É
preciso lembrar que a descrição da etnia ao preencher o assento era toda de
responsabilidade do pároco, e ele poderia receber essa informação da mãe do batizando, do
próprio batizando, dos padrinhos ou atribuí-la a partir de traços que ele considerava
Idade na data do
Etnia Nome Local de batismo
batismo
Galdina 7 anos Faz. Passa Tempo
Zacharias X* Idem
Coroados Florinda 2 anos Idem
Inocencia 10 anos Idem
Bonifácio 7 anos Campo Grande
Kinikinau Francisco 4 meses Faz. Forquilha
Tereza 7 meses Igreja Paroquial
Guaicuru
Vitalina 11 meses Idem
Antonio 9 anos Igreja Paroquial
João José 20 anos Colônia de Dourados
Ambrósio 4 anos Faz. Dependência
Kaiowa
Rita 2 anos Faz. Santa Gertrudes
Pedro 3 anos Faz. Santa Rosa
Amancio 3 anos Colônia de Dourados
Augusta 5 anos Igreja Paroquial
Chamacoco
Maria 8 meses X*
Guarani Candida Adulta Desobriga
Fonte: Livro de batismos. *A informação não está presente no assento de batismo.
354 Ver CHAMORRO, G.; COMBÈS, I. Povos indígenas em Mato Grosso do Sul:
história, cultura e transformações sociais.
143
demonstra que o rito era realizado mesmo sem a presença dos pais, que não eram
registrados por não estarem presentes na cerimônia ou mesmo pela ignorância por parte do
pároco e dos padrinhos acerca da filiação do batizado. Também é importante notar a
distribuição espacial destas etnias que aparecem, de uma forma geral, mais associadas a
fazendas e a colônia de Dourados do que à sede da freguesia em Nioac.
A convivência de indígenas com não indígenas na porção sul da província de Mato
Grosso, foi destacada por Lúcia Salsa Corrêa em artigo no qual a historiadora transcreve e
comenta fontes documentais que tratam da temática indígena, encontradas no arquivo
público de Mato Grosso em Cuiabá. Esses documentos destacam o papel desempenhado
por indígenas de diversas etnias, fundamentalmente das citadas acima, “na agricultura de
abastecimento interno de alimentos e de artefatos (cerâmicas, redes tecidos rústicos e
outros) fornecidos à população que se dedicava a pecuária e que se estabeleceu na
região”.355 Os documentos ainda apontam para a utilização da mão de obra indígena nessa
região de fronteira, onde havia escassez de braços para a lavoura. Em ofício datado de 3 de
fevereiro de 1874, o comandante do corpo de Cavalaria estacionado em Nioac, Tenente
Coronel José Diogo dos Reis, ressaltou a necessidade de se atrair e reunir indígenas que se
apresentavam, segundo ele, espontaneamente.
Já neste acampamento se me tem apresentado por diferentes vezes um
número de 20 a 30 índios e de diferentes nações acompanhados de seus
capitães a quem tenho feito melhor agasalho mandando distribuir não só
comedorias pelo tempo que aqui se tem demorado, como alguma
ferramenta e mais utensílios que os mostram desejos de possuir com o
intuito de o chamar estabelecer em suas aldeias, quando não neste
acampamento ao menos próximo e mostram ainda estarem possuídos de
terror dos paraguaios aos quais tenho feito tranquilizar a tal respeito.
[...] os auxílios de tantos braços até hoje inúteis; os serviços que devem
prestar a lavoura e indústria desta parte [a fronteira] talvez a mais rica
desta majestosa Província são incalculáveis. 356
355 CORRÊA, L. S., A fronteira indígena no sul de Mato Grosso – século XIX: fontes
comentadas, p.159.
356 Idem, p.161. Fonte: Lata 1874- Mss., Documentos Avulsos - APEMAT. Cuiabá-MT.
144
Aparece de forma clara também, a preocupação com a população indígena por parte
do comandante do destacamento, tratada em termos de sanar a necessidade de mão de obra,
inserindo o aldeamento das potenciais forças de trabalho que eles representavam como
alvo das ações do governo provincial. Ao que parece essa já era uma prática dos
proprietários rurais que se estabeleceram na região, pois como enfatiza Lúcia Salsa, a falta
de recursos de capital desses fazendeiros, aliado ao estado de pobreza que muitos
indígenas, expropriados de suas terras, se encontravam, favoreciam tal prática. No mesmo
ofício citado acima, o comandante José Diogo dos Reis, citou o pedido de um proprietário
rural:
Passo às mãos de V Ex. o Oficio incluso o qual me foi dirigido pelo
cidadão Pedro Ferreira Ribeiro em serra acima distante deste
acampamento oito léguas em que me pede auxílio para atrair os Índios
chegados a fazenda do mesmo denominada Santa Gertrudes e com o fim
de os aldear nas margens do rio Brilhante.357
357 Idem, p.162. Fonte: Lata 1874- Mss., Documentos Avulsos - APEMAT. Cuiabá-MT.
358 Idem, p.162.
359 Livro de Batismo, fólio 39.
145
matriz a 6 de junho de 1889, padrinhos Angelo Candia e Maria da Costa
Maranhão360.
Como o local da aldeia não foi citado neste e no outro caso em que o pároco
registra o nascimento em aldeia, não foi possível saber onde se localizava, ou mesmo se o
que o pároco se referia era realmente um aldeamento indígena ou apenas o local tradicional
onde viviam.
Enfim, estes indícios apontam para a perspectiva da relação destes sujeitos com a
população indígena, que parece, girava em torno de aproveitá-los como mão de obra. Esta
possibilidade parecia plausível àqueles proprietários certamente porque mantinham
contatos e relações com muitos indígenas, que os colocavam em uma posição de
submissão, e isso, possivelmente ocorreu também através do compadrio.
147
mesmo por ser o registro oficial de nascimentos da época, nos permitiu ter uma visão
abrangente da população, enfatizando também os escravos, indígenas, e os sujeitos
comuns, muitas vezes esquecidos da literatura histórica regional.
O batismo católico constituía um sacramento muito importante para aquela
sociedade. Segundo as leis do Império, o registro oficial de nascimento de todo brasileiro
deveria ser feito pelos sacerdotes católicos em livro específico e após a realização daquela
celebração religiosa. Assim, foi preciso considerar que, ao buscar o rito católico do
batismo, aqueles sujeitos não estavam em busca apenas de obedecer aos preceitos
religiosos.
Ao propor algumas leituras e interpretações dos temas da família, ilegitimidade e
compadrio, procuramos demonstrar que a população da freguesia Santa Rita de Nioac era
heterogenia, possuía arranjos familiares distintos, confirmados pelas taxas de ilegitimidade,
que nos indicam formas de convivências e relacionamentos entre aqueles sujeitos que não
se enquadravam nas normatizações da Igreja.
Foi possível verificar que as relações de apadrinhamento foram importantes naquele
contexto, tanto para livres e indígenas quanto para escravos. A trama de relações firmadas
na pia batismal pelos sujeitos que viviam na freguesia ainda está por ser melhor
investigada. Por não ser o interesse principal deste trabalho reconstruir as redes de
relacionamento entre aqueles indivíduos, optamos somente por apontar e indicar alguns
caminhos que nos parecem profícuos para futuras análises e realizar algumas leituras que
consideramos relevantes.
Registramos índices de ilegitimidade diversos nos distintos locais que compunham
a freguesia Santa Rita de Nioac. Comparando os dados da sede com outros lugares da
freguesia foi possível supor que um dos fatores predominantes para a existência de filhos
ilegítimos em meio a população livre era a presença militar, pois as taxas mais elevadas
aparecerem precisamente nos locais onde a vivência militar era marcante.
Entre a população escrava foi possível verificar que predominou a escolha por
pessoas livres para servirem como padrinhos/madrinhas de seus filhos nascidos sob a égide
da lei do ventre livre. Estes dados demonstram o caráter estratégico das composições de
compadrio firmadas pelos cativos, pois eles claramente procuravam criar laços sociais com
indivíduos livres. Constatamos também a existência de casais escravos unidos pelo
matrimônio católico, sendo que a família escrava era uma realidade na freguesia Santa Rita
148
de Nioac. Ademais, os assentos de batismos permitiram-nos visualizar que a maior parte
dos cativos estavam em fazendas, sendo poucos os casos em que ocorrem batismo de filhos
de escravas na sede da freguesia em Nioac. Identificamos o apadrinhamento de filhos de
escravas por indivíduos ligados ao senhor, seja parentes ou compadres, e as relações entre
escravos de donos distintos que se tornavam compadres uns dos outros. Este último
aspecto, evidencia a mobilidade destes cativos entre propriedades de outros senhores, o
quais eram ligados aos seus proprietários, em muitos casos, também pelo compadrio.
Também, procuramos demonstrar que é fundamental considerar a presença
indígena na freguesia, os quais aparecem de forma significativa nos registros batismais
daquela paróquia. Indígenas de diversas etnias estavam presentes na freguesia.
Identificamos ao menos sete etnias, sendo os Terena, Kaiowa, Kinikinau, Guarani,
Chamacoco, Coroados e Guaikuru. Como apontamos, os Terena tiveram presença mais
significativa nos assentos, constituindo a grande maioria dos indígenas presentes na
freguesia. A idade de batismo avançada de muitos indígenas indica que o contato com a
doutrina e práticas católicas era recente. A maior parte dos apadrinhamentos de filhos de
indígenas eram realizados por não indígenas, o que nos leva a pensar que o compadrio
podia ter uma função estratégica de inclusão social e cultural destes indivíduos na
sociedade não indígena. Além disso, o número majoritário de apadrinhamentos de filhos
indígenas por não indígenas, aliado a algumas referências encontradas em outras fontes,
nos indicaram a existência de certa perspectiva paternalista por parte dos não indígenas.
A proposta de investigar esta freguesia de fronteira, socialmente diversa, a partir
desta tipologia documental foi um desafio. As possibilidades que a fonte abre durante a
pesquisa são por demais interessantes e nos convidam a prosseguir em uma investigação
mais detalhada. No entanto, as escolhas e recortes aqui tomados tiveram o objetivo de
iniciar o debate, apontando caminhos para futuros trabalhos que se dediquem ao
conhecimento histórico daquela sociedade.
Neste sentido, vale lembrar que esta pesquisa possui ineditismo tanto no uso da
fonte para essa região quanto no estudo de uma localidade ainda pouco analisada, mas que
se constituiu, como procuramos apresentar nessas linhas, de fundamental importância para
a região do planalto sul de Mato Grosso em fins do século XIX.
149
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