Dissertacao Estrada Real
Dissertacao Estrada Real
Dissertacao Estrada Real
2
Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da Divisão de
Biblioteca da Universidade Federal de São João del-Rei.
Referências: f. 309-323.
1. Estrada Real – Teses 2. Índios – Brasil – História - Teses 3. Arte rupestre – Teses 4. Turismo
– Teses I. Minas Gerais – História – Teses I. Resende, Maria Leônia Chaves de (orientadora) II.
Universidade Federal de São João del – Rei Departamento de Ciências Sociais Política e Jurídicas
III. Título
CDU: 981.5
3
Aos meus irmãos, indígenas brasileiros,
e à Beatriz.
4
Agradecimentos
São muitas as pessoas a quem devo agradecer pelo que fizeram para que
este trabalho acontecesse.
Agradeço à minha mãe, que se empenhou a vida inteira por nós, por todo o
cuidado e carinho, e por sempre ter me apoiado em todas as decisões.
6
Fantini, Lucas Fantini, Pedro Decot, Digão Carvalho, Marcinha Bergo, Daiana Vieira e
ao pessoal do curso de Artes Aplicadas da UFSJ.
7
Preciso agradecer também a quem contribuiu localmente, com toda boa-
vontade e entusiasmo, para nosso trabalho.
Aos amigos Luan Sigaud, Atahualpa Chamorro e Ana Sigaud, por terem
sido nossos guias pelos “enigmas” de São Thomé das Letras e pela recepção tão
calorosa.
8
Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM, e também aos estagiários da Universidade Federal
do Piauí - UFPI, por terem compartilhado comigo suas experiências e alguns trabalhos
de campo em Diamantina.
Olha quanta riqueza esses caminhos de Minas trouxeram para minha vida!
Todos vocês são ouro e diamantes pra mim. Muito obrigado.
9
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
10
(autor anônimo)
11
RESUMO
12
ABSTRACT
This study approaches processes of building and re-building that the whole landscape
crossed by the Royal Road has suffered in three distinct periods. The colonial age is
registered in the first part of the study, period that the historiography commonly refers
to say of the royal roads rising. In the second part, I recede in the time, arriving about
8.000 years ago, to show that these roads have an ancestrality grounded on the remote
building of landscape crossed by them. In the third part, forwarding the text to its
closing, I try to incite discussions about the uses and contemporary appropriations of
this patrimony. Throughout the whole argumentation, starting from a really
interdisciplinary speech, using concepts and methodologies from different scientific
fields, as archeology, anthropology and history itself, I tried to highlight the
participation of several indigenous groups as agents in the longue-durée history of the
Royal Road. So, this dissertation constitute a broad Case Study that testifies how the
indigenous element matters to the building of geographical, cultural and historical
scenery of Minas Gerais.
13
Índice
Parte 1:
Caminho ..................................................................................................... 021
Capítulo 1: Caminhos conceituais ......................................................... 028
Capítulo 2 : Territorialização, vida cotidiana e os caminhos coloniais 050
Capítulo 3: Os “caminhos antigos” e a fronteira étnica ....................... 075
3.1 O Caminho Velho ........................................................................ 077
3.2 O Caminho Novo ......................................................................... 085
3.3 O Caminhos dos Diamantes ........................................................ 093
3.4 “Índios coloniais” ....................................................................... 100
Parte 2:
Pedra .......................................................................................................... 114
Capítulo 4: Heranças pré-coloniais
4.1 Os primeiros americanos ............................................................ 120
4.2 Arte Rupestre – conceitos, interpretações e abordagens ............ 127
4.3 Um panorama da arte rupestre brasileira .................................. 146
Capítulo 5: Os caminhos da pesquisa .................................................... 167
5.1 Um mapa da arte rupestre na Estrada Real ................................ 174
5.2 A pesquisa sob um olhar panorâmico: grandes questões ........... 259
Parte 3:
Os caminhos, suas pedras e uma memória ancestral revivida ................ 272
Capítulo 6: Uma estrada idealizada... ................................................... 276
Capítulo 7: Uma estrada “real” ............................................................ 290
14
Considerações finais: Até onde pude chegar............................................... 307
15
Introdução: Preparando a partida
A pedra e o sonho
Penso que tudo começou mesmo na infância. Me lembro muito bem que,
apesar de todas as limitações da vida na minha pequena cidade, periferia do mundo com
nome de aldeia – Inimutaba: “aldeia de tecelões” – meu interesse pelas coisas da
natureza e pelas culturas ancestrais cresceu junto comigo. Andava ávido pelos matos e
quintais à cata de tudo que fosse interessante e levava para meu quarto: penas, pedras,
conchas, peças artesanais, cacos e objetos descartados, que juntava aos desenhos, fotos,
gravuras, maquetes... Enfim, vivia num verdadeiro “gabinete de curiosidades”, como
aqueles espaços que antecederam e prenunciaram o surgimento dos museus pelo mundo.
Nessa época minha mãe precisava desviar parte do seu salário para financiar
meus álbuns de figurinhas, revistas, livros, miniaturas de bichos e de índios, entre tantos
outros itens que compunham minhas coleções. A vida era apertada e, por fim, eu mesmo
comecei a fazer, de massinha ou durepóxi, aquilo que eu não achava ou não podia
comprar. À medida que ia adquirindo informações, estimulado e bancado pela minha
mãe, acabei criando habilidades artísticas. Fui também presenteado por ela com uma
máquina fotográfica com a qual pude, finalmente, registrar meu olhar sobre as coisas.
Tudo isso me introduziu nesse universo da curiosidade pelo mundo.
16
Meu pai, por sua vez, sendo caçador e pescador nas horas vagas, me ensinou
muito sobre os caminhos do mato e a relação respeitosa com os rios. Desenhava para
mim a lápis, em qualquer papel que encontrasse, a fauna da nossa região de origem – os
cerrados do sertão mineiro de Guimarães Rosa. Em traços rústicos, mas precisos, ali
estavam os veados-campeiros, veados-mateiros, tatus, porcos-do-mato, quatis, lobos,
raposas, jacus, seriemas, surubins, matrinchãs e todos os outros bichos que conhecia,
com riqueza de detalhes, me instruindo. É uma pena não ter conservado nenhum
daqueles desenhos... Mas, há pouco tempo me surpreendi quando reconheci muita
semelhança entre o traço do meu pai e algumas figuras rupestres da tradição Planalto.
Uma ancestralidade reencontrada?
Mas antes disso, em meados de 2006, foi que, tal qual Drummond, topei
com uma pedra no meu caminho. Uma pedra especial, que minhas retinas nunca vão
esquecer.
17
Não tardaram a aparecer vestígios também em Curvelo e cidades vizinhas,
incluindo a minha Inimutaba. Mas desta vez eram cacos de cerâmica e machadinhas de
pedra.
18
capítulo 1, exponho, em linhas gerais, as direções metodológicas que adoto e conceitos
essenciais que uso em toda a pesquisa. No capítulo 2, trato dos processos de
territorialização e da vida cotidiana em torno dos caminhos coloniais, buscando revelar
aspectos das relações de poder vivenciadas no período. Já no capítulo 3, procuro
evidenciar especificamente as relações inter-étnicas travadas na “fronteira colonial”, no
processo de construção de três das principais vias reais – Caminho Velho, Caminho
Novo e Caminho dos Diamantes – destacando, por fim, o aparecimento dos “índios
coloniais”, imersos no contexto urbano da colônia.
Na segunda parte recuo no tempo, chegando a mais de 8.000 anos atrás para
mostrar que os caminhos reais têm uma ancestralidade vincada na construção remota da
paisagem que eles cortam. Prosseguindo a exposição, começo, pois, o capítulo 4,
tratando das heranças legadas pelos primeiros humanos que se territorializaram na
paisagem que se tornaria Minas Gerais. Em seguida entro no universo da arte rupestre,
que demarca a atuação de um segundo grande (e diversificado) grupo humano que foi
ocupando esse território. Procuro fazer uma revisão dos conceitos, interpretações e
abordagens relativos ao tema, como uma introdução para um panorama da arte rupestre
brasileira que traço logo depois. No capítulo 5, exponho propriamente os resultados das
nossas pesquisas de campo, retomando as discussões metodológicas para apontar os
caminhos pelos quais optei ao elaborar o mapeamento da arte rupestre na Estrada Real.
Depois de focar cada sítio arqueológico visitado, coloco as grandes questões e
conclusões temporárias a que chegamos, através de um olhar panorâmico sobre tudo
que recolhemos a campo e tudo que estudamos.
Fechando o trabalho, avalio o que foi alcançado e aponto direções para uma
continuidade dos estudos, ciente de que a ciência deve sempre avançar.
19
O estudo de vestígios arqueológicos, como as manifestações de arte
rupestre, sempre me encantou e me impressionou muito. Mas parecia algo tão distante
da minha realidade que eu nem cogitava a possibilidade de um dia ser mais um dos
cientistas que exploraria o tema.
20
Parte 1: Caminho
Serra da Estrela, rumo a Minas. Paisagem do início do século XIX. Aquarela de Thomas Ender.
21
Um palácio é bonito,
um arranha-céu é grande,
o transitório, o inquieto,
o rápido da vida.
a presença da distância,
o convite à caminhada,
a aventura, a fuga.
a estrada anda,
22
Os caminhos, como qualquer outro elemento da vida social dos homens, são
o resultado de uma contínua construção histórica que permitiu, mediante o ensaio e o
erro, através de várias gerações, estabelecer os melhores lugares para o trânsito1. Ao
mesmo tempo, podem ser entendidos como expressões de contextos históricos
específicos, uma vez que, na longa duração, a partir das transformações nas relações
estabelecidas entre diversos grupos culturais com a paisagem, o homem construiu
significações diferentes para essas vias e o seu entorno.
1
DIAZ, Edith O. “Caminos y rutas de intercambio prehispánico”. Arqueología Mexicana. Editorial
Raices S.A. de C.V./ Instituto Nacional de Antropologia e Historia, México. Volume XIV, n° 81, Rutas y
Caminos e nel México Prehispánico, 2006, p. 37-42. MARTÍNEZ, Bernardo Garcia. “Veredas y caminos
em tiempos Del automóvil”. Arqueología Mexicana. Editorial Raices S.A. de C.V./ Instituto Nacional de
Antropologia e Historia, México. Volume XIV, n° 81, Rutas y Caminos em el México Prehispánico,
2006, p.66-69.
2
A escola historiográfica francesa dos Annales surgiu dos debates travados entre os campos das ciências
sociais (especialmente entre a sociologia a antropologia e a história) que se estruturavam no início do
século XX. A partir do seu primeiro manifesto, publicado em 1929, as diversas gerações dos Annales
renovaram o “fazer história” com suas propostas e abordagens variadas, constituindo alternativas aos
modelos positivistas e marxistas até então dominantes no cenário historiográfico. Ver: BURKE, Peter. A
Escola dos Annales. 1929-1989. A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Editora UNESP.
(2ª edição) 1992. REIS, José Carlos. Annales: A Renovação da História. Ouro Preto: Editora UFOP,
1996.
3
FEBVRE, Lucien. “La Terre etl´Evolution Humanine: introduction géographique a l´histoire”. Paris: La
Renaissance du Livre, 1922, apud VENÂNCIO, Renato Pinto. “Caminho Novo: a longa duração”. Varia
História, Belo Horizonte: UFMG - Departamento de História, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, v. 21, 2000, p. 181-189.
4
No cenário dos debates ocorridos entre as ciências sociais na primeira metade do século XX destacou-se
o desafio lançado por Claude Lévi-Strauss, para quem a antropologia seria a única ciência-síntese, capaz
23
elementos centrais nas pesquisas que buscam compreender as relações historicamente
estabelecidas entre as mais diversas culturas, desde a antiguidade5.
de superar a divisão entre ciências humanas e ciências naturais, através dos modelos estruturalistas de
análise (o mesmo estruturalismo que vai marcar a arqueologia brasileira, como mostrarei adiante). Estava
em jogo, na verdade, o interesse pela “hegemonia científica” no estudo da sociedade. Em resposta a Lévi-
Strauss, Fernand Braudel se apropriou das propostas dos Annales das primeiras gerações, reformulando-
as e propôs um modelo renovado da história em princípios estruturalistas. Braudel pluralizou o tempo,
identificando três ritmos históricos diferentes, ou seja, uma tripartição temporal: 1) a curta duração – o
tempo dos acontecimentos, dos fatos, das ações individuais, das mudanças rápidas, da história política;
2) a média duração – o tempo das conjunturas, das mudanças lentas, dos fenômenos econômicos e
sociais, dos grandes ciclos e 3) a longa duração – o tempo estrutural, quase imóvel, a temporalidade que
condiciona os demais ritmos, expressa nas alterações lentíssimas. Tudo estaria subordinado e englobado
na longa duração, toda a história e também todas as demais ciências sociais estariam envolvidas nesse
“meio comum” ao que é humano. Nas palavras de Braudel: “Se a história está obrigada, por natureza, a
prestar uma atenção privilegiada à duração, a todos os movimentos em que esta se pode decompor, a
longa duração parece-nos, neste leque, a linha mais útil para uma observação e uma reflexão comuns às
ciências sociais” (BRAUDEL, Fernand. “História e Ciências Sociais: a longa duração”. Escritos sobre a
História. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 37). Fazendo uso do conceito de longa duração dessa maneira
Braudel recupera ainda as ideias de “história total” – tudo é historicamente situável e, portanto, a história
seria a única ciência capaz de federar as ciências humanas – e “história global” – a soma de todos os
níveis da temporalidade para descrever a história do mundo. Para maiores informações consultar:
BRAUDEL, Fernand. “História e Ciências Sociais: a longa duração”. Escritos sobre a História. São
Paulo: Perspectiva, 1978. BRAUDEL, Fernand. “Prefácios e Conclusão”. O Mediterrâneo e o mundo
mediterrânico à época de Felipe II. Lisboa: Dom Quixote, 1983. Um ótimo resumo do debate entre
Braudel e Lévi-Strauss pode ser encontrado em: DOSSE, François. “O traje novo do presidente Braudel”.
A História à prova do tempo. São Paulo: Ed. Unesp, 2011, p. 151 – 171.
5
BRAUDEL, Fernand. “História e Ciências Sociais: a longa duração”. Escritos sobre a História. São
Paulo: Perspectiva, 1978. BRAUDEL, Fernad. “Prefácios e Conclusão”. O Mediterrâneo e o mundo
mediterrânico à época de Felipe II. Lisboa: Dom Quixote, 1983.
6
Ver: Arqueología Mexicana. Editorial Raices S.A. de C.V./ Instituto Nacional de Antropologia e
Historia, México. Volume XIV, n° 81, Rutas y Caminos en el México Prehispánico, 2006.
7
ABREU, João Capistrano de. Capitulos de Historia Colonial. Caminhos antigos e o povoamento no
Brasil. Brasilia: UnB, 1982. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. São Paulo: Brasiliense, 1990.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. Rio de janeiro: José Olympio Editora, 1957.
24
os estudos centrados nos caminhos, de diversos pesquisadores ocupados em traçar uma
história da paisagem. Estes figuram entre os autores que relacionam a Estrada Real –
objeto desta pesquisa – às rotas indígenas milenares.
25
Falando em “índios” é preciso logo dizer que este termo é demasiadamente
genérico para dar conta da diversidade das populações nativas que viveram no
“território mineiro”. Assim, para falar da história desses caminhos, adotarei uma
divisão didática: nesta primeira parte estarão em foco os grupos indígenas conhecidos
como seminômades e, principalmente, os semissedentários agricultores, que estiveram
por mais tempo em contato com o colonizador. Na segunda parte da dissertação
recuarei a um período que vai, grosso modo, de cerca de 8.000 a 2.000 anos atrás,
marcado pela atuação maciça de culturas seminômades, rumo aos primórdios da
territorialização humana na paisagem que viria a ser Minas Gerais9.
9
No próximo tópico falarei mais detidamente sobre essa categorização dos grupos indígenas.
26
do geógrafo Antonio C. Robert Moraes, uma vez que essa corrente de abordagem situa
mais objetivamente a dimensão conflituosa existente nos processos históricos,
dimensão essa essencial para tratar do meu objeto, como logo ficará explícito.
27
Capítulo 1: Caminhos conceituais
A história, (para mim) a mais “fluida” das ciências e, por isso mesmo,
talvez, a ciência melhor adaptada à instabilidade característica da contemporaneidade,
passou a se servir, sem pudores desnecessários, da produção da geografia, da
arqueologia, da antropologia, da economia e mesmo das ciências naturais e exatas. A
Escola dos Annales surgiu como um marco dessa tendência, uma vez que expressava
literalmente em seus manifestos e programas o propósito de instituir a pesquisa
interdisciplinar na história10. Contudo ela representou apenas uma etapa na vontade real
e expressa de um grupo de historiadores de consolidar esse processo, que já vinha
sendo moldado anteriormente e que continua com todo vigor hoje em dia.
10
Ver BURKE, Peter. A Escola dos Annales. 1929-1989. A Revolução Francesa da Historiografia. São
Paulo: Editora UNESP. (2ª edição) 1992. REIS, José Carlos. Annales: A Renovação da História. Ouro
Preto: Editora UFOP, 1996.
28
Esta pesquisa segue essa tendência devido ao fato de se apropriar de objetos
e metodologias de diversos campos científicos, ainda que delineada pelo viés
historiográfico.
Logo ficará claro que o próprio conceito que a palavra “estrada” carrega é
contextual, ou seja, é próprio de um tempo, e segue mudando. Diante desse fato,
pesquisar o significado da expressão “Estrada Real” vai mostrar de forma ainda mais
clara que o termo genérico “estrada”, como estes nomes de elementos paisagísticos se
inscrevem nas épocas e se transformam. Tratarei mais à frente do surgimento e
utilização do topônimo “Estrada Real”, mas aqui já convém explicar algumas escolhas
e desenvolver mais objetivamente alguns conceitos fundamentais para orientar o
entendimento deste texto.
Primeiro reconheço que seria mais acertado dizer sempre “Estradas Reais”,
no plural para me referir ao objeto da pesquisa, constituído de mais de uma via de
29
trânsito. Entretanto muitas vezes utilizarei “Estrada Real” no singular, uma vez que
essa expressão caiu no uso popular, fato que merecerá uma reflexão crítica que farei na
última parte desta exposição.
11
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1ª edição, s/data.
12
MARTINS, Luciana de Lima. “O Rio de Janeiro dos viajantes”. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2011,
p. 16, apud LINKE SÁLVIO, Vanessa; LIMA, Cláudio; LAGE, Daniela; VALENTE, Polyana.
“Diamantina Rupestre: percepções e construções da paisagem em uma abordagem histórica, geográfica e
arqueológica na região do antigo Distrito Diamantino”. Revista FUNADESP ano 1, n°1, jan. 2006, p. 150.
13
LINKE SÁLVIO; LIMA; LAGE; VALENTE, op. cit., p. 150.
31
“evolucionistas”, “deterministas”, “possibilistas”14... Ao longo dos séculos XIX e XX
se desenvolveu todo um variado arcabouço teórico, em torno do qual percebe-se o lugar
que a abordagem da paisagem ocupou em diferentes correntes desse campo científico.
Mas não é o caso, aqui, de entrar em detalhes sobre todas as etapas da elaboração do
conceito de paisagem na geografia15. O mais importante para esta pesquisa é deixar
claro dois pontos: a historicidade do processo, no qual as diversas correntes geográficas,
na verdade, dificilmente conseguiram romper completamente com as propostas das suas
antecessoras, abrindo espaço para a continuidade dos debates; e a associação entre
cultura e paisagem em diversas construções teóricas, que estabeleceu um diálogo
importante entre geografia e antropologia16. Nessas concepções, surgidas desde a
estruturação da ciência geográfica, a paisagem já passa a ser entendida, pois, como uma
construção cultural.
14
Ver: CHRISTOFOLETTI, Antonio. Perspectivas da geografia. 2 ed. Sao Paulo: Difel, 1985.
JOHNSTON, R. J. Geografia e geógrafos: a geografia humana anglo-americana desde 1945. São Paulo:
Difel, 1986.
15
Um bom resumo sobre o tema pode ser encontrado também em LINKE, Vanessa. Paisagem dos sítios
de arte rupestre da região de Diamantina. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
16
Os geógrafos se apropriaram dos conceitos antropológicos de cultura para compor seus estudos da
“paisagem cultural”, ainda que a geografia tenha insistido em conceitos de cultura que valorizavam o
caráter adaptativo de grupos humanos, associando cultura ao meio, enquanto já se falava, na antropologia,
da cultura como “uma lógica organizativa do pensamento que estrutura as ações e as relações sociais
(LEROI-GOURHAN, 1984; LEVÍ-STRAUSS, 1991), ou como um conjunto de concepções simbólicas
(GEERTZ, 1978).” LINKE, Vanessa. Paisagem dos sítios de arte rupestre da região de Diamantina.
Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
17
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. São Paulo: Edusp, 2002, p. 103.
32
trabalhos e culturas mais antigas). Os contínuos processos de percepção e “produção”
do espaço criam formas eminentemente humanas que vão sendo depositadas na
superfície do planeta ao longo do tempo, moldando paisagens. A durabilidade histórica
das formas de uma paisagem repousa na quantidade e qualidade de valores que lhe são
agregados, no trabalho despendido em sua construção e na constante revivificação das
formas herdadas, quando a estas é atribuída uma funcionalidade diante da organização
social vigente18.
18
MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e História no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005.
19
MORAES, op. cit., p. 22-23.
20
MORAES, op. cit., p. 24.
33
estreita relação entre os campos científicos nessa seara. O autor concebe também a
própria história “(numa ótica geográfica) como uma progressiva e reiterada apropriação
e transformação do planeta, resultando numa cumulativa antropomorfização do espaço
terrestre”, processo no qual “relações cada vez mais complexas se entabulam entre os
grupos sociais e os espaços que os abrigam (...)”21. Percepção, apropriação e
transformação do espaço, bem como fixação e perenização (ou não) de características
na paisagem são situações explicáveis apenas em função do processo que as engendrou
e a forma criada só se revela pelo seu uso social em cada momento histórico. Sintetiza
Moraes:
21
MORAES, op. cit., p. 42.
22
MORAES, op. cit., p. 43.
23
Sobre a evolução do conceito de paisagem na arqueologia ver mais detalhes em: LINKE, Vanessa.
Paisagem dos sítios de arte rupestre da região de Diamantina. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte:
UFMG, 2008. FAGUNDES, Marcelo; PIUZANA, Danielle. “Estudo teórico sobre o uso conceito de
paisagem em pesquisas arqueológicas”. Revista Latino-americana de Ciências Sociais. Juv. 8(1): 205-
220, 2010. (mimeog).
34
elaboração de um quadro geral de sucessão de sociedades identificadas a partir das
diferenças expressas nas suas culturas materiais (artefatos e vestígios arqueológicos).
24
LINKE, Vanessa. Paisagem dos sítios de arte rupestre da região de Diamantina. Dissertação de
Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 16.
35
arqueológicos, que estariam de alguma maneira expressas na distribuição
espacial dos vestígios na paisagem (ZARANKIN, 2002; ZARANKIN &
NIRO, 2006; HABER, 2006).”25
36
comportamentos humanos. São aspectos culturais, que abarcam não somente as relações
de sobrevivência, mas também os fenômenos de percepção e atribuição de significados
aos lugares”28.
O entendimento da paisagem enquanto construção humana, na qual se
relacionam questões do ambiente natural e do ambiente social, deu origem a uma
vertente da arqueologia especialmente interessada em entender as maneiras como as
paisagens se conformaram. Assim surge a “arqueologia da paisagem”29, empenhada em
estudar
“um tipo específico do produto humano (a paisagem), que usa uma dada
realidade (o espaço físico) para criar uma nova realidade (o espaço social:
humanizado, econômico, agrário, habitacional, político, territorial, etc.) por
meio da aplicação de uma ordenação imaginada (espaço simbólico: na qual
[sic] é sentido, percebido, pensado, etc). Esta concepção supõe que a
dimensão simbólica forma uma parte essencial da paisagem social e que,
portanto, é um entendimento integral que deve ser levado em conta.”30
28
LINKE, op. cit., p.20.
29
Mais informações sobre a conceituação e as diretrizes teórico-metodológicas da arqueologia da
paisagem ver: CRIADO BOADO, Felipe. “Límites y posibilidades de la arqueologia del paisaje”. In
SPAL Revista de Prehistoria y Arqueologia. Vol 2. Universidad de Sevilla. 1993 (mimeog).
TRONCOSO, Andrés. “Stilo, arte rupestre y sociedad em la zona central de Chile”. Complutum, 13,
2002, p.135-153. (mimeog.). FAGUNDES, Marcelo; PIUZANA, Danielle. “Estudo teórico sobre o uso
conceito de paisagem em pesquisas arqueológicas”. Revista Latino-americana de Ciências Sociais. Juv.
8(1): 205-220, 2010. (mimeog). ISNARDIS, Andrei e LINKE, Vanessa. “Pedras Pintadas, Paisagens
Construídas: A Integração de Elementos Culturalmente Arquitetados na transformação e manutenção da
paisagem”. Revista de Arqueologia. Vol 23, n° 1, p. 42-59. São Paulo: USP/Sociedade Arqueologia
Brasileira, Julho de 2010. (mimeog.). LINKE, Vanessa. Paisagem dos sítios de arte rupestre da região de
Diamantina. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
30
CRIADO, 1997, apud LINKE, Vanessa. Paisagem dos sítios de arte rupestre da região de Diamantina.
Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p.22.
37
“(...) é pelas práticas de apropriação cultural do mundo material, onde para
além dos modos de apropriação propriamente produtivos movidos pela
dinâmica utilitária da economia e do processo de diferenciação social dos
indivíduos, que o mundo material é objeto de inúmeras atividades de
atribuição de significados. Pois os fatos culturais não restringem-se a simples
epifenômenos das estruturas produtivas da sociedade, mas mostrando-se, ao
contrário, como parte integrante do processo de construção do mundo, dando-
lhe sentidos e ordenamentos, comandando atos e práticas diversas a partir de
categorias mentais, esquemas de percepção e representação coletivas
diferenciadas. Tais operações de significação do espaço biofísico em que se
constrói o mundo social configuram as chamadas formas culturais de
apropriação do mundo material.”31
31
ACSELRAD, Henri. “As Práticas Espaciais e o Campo dos Conflitos Ambientais”. In: ACSELRAD,
Henri (org.). Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Fundação Heinrich Böll,
2004, p. 15. (O referido autor concebe os processos de apropriação e significação da paisagem no campo
da sociologia dos conflitos ambientais).
32
MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e História no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005.
33
MORAES, op. cit., p. 45.
38
Para Moraes, enquanto os processos de valorização do espaço aparecem
como horizonte teórico genérico, a formação territorial desenha-se como objeto
empírico. O autor diz: “Do ângulo epistemológico, transita-se da vaguidade da
categoria espaço ao preciso conceito de território”, que, no seu entender, devido à
historicidade plena, inerente ao seu processo de constituição, oferece a possibilidade de
identificar os agentes desse processo, “os sujeitos concretos da produção do espaço”34.
Isso porque “o desenvolvimento histórico se faz sobre e com o espaço terrestre, e, nesse
sentido, toda formação social é também territorial, pois necessariamente se
espacializa”35.
34
MORAES, op. cit., p. 45.
35
MORAES, op. cit., p. 47.
36
CARNEIRO, Eder Jurandir. O objeto teórico: conflitos ambientais e construção de territórios. 2008, p.
03 (mimeo.).
37
CARNEIRO, op. cit., p. 03.
39
ou permaneceram suspensos o território revela características históricas da sociedade
em foco. É nesse sentido que o estudo das distintas concepções histórico-culturais de
território entre indígenas e colonizadores, concepções essas em choque na constituição
do território brasileiro, descortina importantes aspectos da nossa história.
38
CORRÊA, Dora Shellard. “Descrições de paisagens. Construindo vazios humanos e territórios
indígenas na capitania de São Paulo ao final do século XVIII”. Varia História. Vol 24, n° 39. Belo
Horizonte: UFMG. Jan/jun 2008, p. 135-152. RESENDE, Maria Leônia Chaves de. “Minas dos
Cataguases. Entradas e Bandeiras nos sertões do Eldorado”. Varia História. N° 33. Belo Horizonte:
UFMG, janeiro de 2005, p. 186-202.
40
afirmação da existência de terras vazias, “sertões desertos”, justificava a tomada de
áreas periodicamente utilizadas pelos indígenas, colocados, assim, na condição de
população marginal nesse projeto de ocupação colonial do espaço. Quando destituída
de sinais que os colonos interpretavam como indicativos de domínio territorial (roças,
assentamentos, caminhos...) a paisagem era “naturalizada”, esvaziada de gente, porque
eles assim a decodificavam ou mesmo queriam decodificar. A ausência dos indígenas e
de suas culturas nesses cenários era, portanto, uma ilusão produzida pelo colonizador
devido à sua decodificação da paisagem e tendo em vista seus interesses imediatos em
expandir a fronteira colonial39.
39
CORRÊA, op. cit., p. 135-152.
40
CORRÊA, op. cit., p. 135-152.
41
Ver: CORRÊA, Dora Shellard. “Descrições de paisagens. Construindo vazios humanos e territórios
indígenas na capitania de São Paulo ao final do século XVIII”. Varia História. Vol 24, n° 39. Belo
Horizonte: UFMG. Jan/jun 2008, p. 135-152. RESENDE, Maria Leônia Chaves de. “Minas dos
Cataguases. Entradas e Bandeiras nos sertões do Eldorado”. Varia História. N° 33. Belo Horizonte:
UFMG, janeiro de 2005, p. 186-202
42
RAMOS, Alcida Rita. Sociedades Indígenas. São Paulo: Ática, 1988 (2ª edição).
41
vez que esses grupos têm uma identidade territorialmente referenciada e a
desterritorialização significa a perda dos seus “lugares identitários”.
43
Neste trabalho me sirvo da categorização de Schwartz (ver: SCHWARTZ, Stuart. “Os modos
indígenas”. In: SCHWARTZ, Stuart e LOCKHART, James. A América Latina na Época Colonial. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.53-80.), fundamentada na organização espacial, cultural, política e
econômica dos diferentes grupos indígenas. Mas existem outras classificações, como a tipologia
quadripartite dos povos da América do Sul sugerida por Julian H. Steward e Elman Service, adotada em
outras pesquisas e publicações no Brasil (ver: STEWRAD, Julian H. Steward. Handbook of South
American Indians, Washington: Smithsonian Instituition, 1946-1949. SERVICE, Elman. Primitive Social
Organization: An Evolutionary Perspective. Nova York: Random House, 1962. FAUSTO, Carlos. Os
Índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000). Para os indígenas brasileiros, muitos
estudos utilizam uma classificação que adota fundamentalmente a linguística como critério, dividindo-os
42
1 – Povos “centrais ou imperiais sedentários”: construíram aldeias ou
cidades, muitas vezes repletas de edifícios monumentais, que apresentavam alta
densidade populacional. Urbanizadas, essas culturas dispunham de sofisticados
sistemas de comunicação, distribuição de alimentos e água, agricultura intensiva,
cobrança de tributos e organização político-religiosa. Viveram em torno de seus
grandes centros urbanos no México, Peru e Bolívia. Incas e Astecas são os exemplos
típicos de povos com essas características.
entre os troncos ou famílias linguísticas Tupi-guarani, Jê, Caraíba, Aruaque e outras de expressão regional
(Ver, por exemplo: HEMMING, John. “Os índios do Brasil em 1500”. In: BETHELL Leslie (org.).
História da América Latina: América Latina colonial, 2ª ed. São Paulo: Edusp, 1998, p. 101-127).
43
4 – Grupos “não-sedentários”, “seminômades” ou “caçadores-coletores”: as
três expressões são comumente usadas para definir povos indígenas que podiam ou não
compartilhar componentes culturais com grupos mais sedentários com os quais se
relacionavam historicamente, mas com um estilo de vida muito diverso. Não eram
verdadeiramente nômades, no sentido de vagarem indefinidamente a esmo, mas sim
migravam sazonalmente, seguindo uma lógica de obtenção de recursos de caça e coleta
disponibilizados em um território bem definido, conhecido e dominado por eles. Nessas
sociedades os pequenos bandos formavam acampamentos em vez de aldeias, a
densidade populacional era baixa e a agricultura inexistia, ou era incipiente. Esses
povos ocupavam toda a América, vivendo, sobretudo, nas paisagens mais inóspitas para
os padrões da vida sedentária, como nas florestas mais fechadas e úmidas, nas secas
planícies e nas encostas rochosas. São relacionados nessa categoria a maioria dos
grupos indígenas pré-coloniais autores dos grafismos rupestres brasileiros, bem como
os chichimecas do norte do México, os indígenas dos pampas argentinos, os pueblos e
os apaches das planícies norte-americanas. Os Jê que viviam no Brasil central no
período colonial possuíam raízes seminômades.
44
territórios enfrentariam a ameaça constante da fome, numa paisagem nada atraente e
sem estoques agrícolas a serem subtraídos. Devido à intensa mobilidade em que
viviam, ao profundo conhecimento territorial, e à destreza na confecção e uso de armas
a partir dos recursos naturais, os caçadores-coletores eram ainda mais eficientes do que
os povos semissedentários nas guerras do tipo móvel, apresentando, assim, maior
potencial de resistência e menor disposição para aceitar mudanças em seu modo de
vida45.
Schwartz coloca que, apesar das definições em categorias, nenhum povo era
totalmente sedentário ou totalmente nômade. O que ocorreria comumente seria uma
combinação de traços entre um extremo e outro e, daí surgiriam as mais diversas
configurações culturais. Para explicar essa variação o autor se esquiva do
evolucionismo, mas credita à influência do meio a causa dos diferentes modos de
organização das sociedades indígenas, como se vê no trecho transcrito abaixo:
45
RAMOS, Alcida Rita. Sociedades Indígenas. São Paulo: Ática, 1988 (2ª edição).
46
SCHWARTZ, Stuart. “Os modos indígenas”. In: SCHWARTZ, Stuart e LOCKHART, James. A
América Latina na Época Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.53-80.
45
situação, de modo que a mistura nunca era exatamente a mesma em dois
lugares diferentes.”47
47
SCHWARTZ, op. cit., p 58.
48
RAMOS, Alcida Rita. Sociedades Indígenas. São Paulo: Ática, 1988 (2ª edição), p 35.
49
ACSELRAD, Henri. “As Práticas Espaciais e o Campo dos Conflitos Ambientais”. In: ACSELRAD,
Henri (org.). Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Fundação Heinrich Böll,
2004, p. 15.
46
muito os estudos sobre o modo de vida e a cultura dos grupos caçadores-coletores. Vale
a pena seguir a argumentação da arqueóloga Vanessa Linke a respeito:
50
LINKE, Vanessa. Paisagem dos sítios de arte rupestre da região de Diamantina. Dissertação de
Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p.17-18.
51
LINKE, op. cit.
52
LINKE, op. cit., p18.
47
Nessa perspectiva, a transformação no modo de compreender a cultura e a
maneira como ela age no meio natural demanda, também, uma necessária mudança no
entendimento do que é paisagem. A despeito da influência do ambiente sobre os
homens, a paisagem passa a ser entendida não apenas como meio onde estes vivem e
atuam, mas também como produto da ação antrópica. Estabelece-se aqui uma relação
dialética na qual as diferentes paisagens influenciam, mas também são originadas, das
experiências humanas orientadas por questões de naturezas as mais diversas, tais como
relações de produção, de reprodução material, de significações simbólicas, afetivas e
ideológicas.
Enfim, após mostrar como o debate teórico e as construções conceituais
para as quais contribuíram diversos campos científicos se relacionam intimamente, me
resta aqui destacar que qualquer divisão da sociedade humana em tipologias só se
justifica como um artifício necessário à descrição e análise53. A ciência precisa
categorizar para sistematizar o conhecimento, e penso que as categorias explicadas
anteriormente, ainda que limitadas e limitantes, ajudam a compreender didaticamente a
paisagem antropológica ameríndia. Até mesmo o termo genérico “índio”, crivado de
problemas, tem uma utilidade fundamental na medida em que diferencia o conjunto
heterogêneo das populações humanas que primeiro colonizaram as Américas da
segunda leva colonizatória europeia. Apesar da imensa variedade cultural e da ausência
de autoconsciência étnica até iniciar-se o segundo processo de colonização, os povos
indígenas se distinguem, em conjunto, dos europeus, devido ao fato de terem partilhado
por milênios um habitat geográfico e nele terem vivido experiências semelhantes, que
lhes deram algumas características distintas em relação aos povos do resto do mundo.
Seguindo esse raciocínio adotarei sem maiores reservas o termo “índio”, bem como
farei referências às categorias culturais explicadas, quando perceber que esse recurso é
útil para expor as ideias que sistematizo aqui.
De modo geral, historicamente, os colonizadores europeus concentraram
suas atividades de conquista nos territórios de população indígena sedentária, haja vista
que era mais interessante dominar ricos impérios já constituídos. No caso do Brasil,
entretanto, os conquistadores tiveram que se valer do domínio sobre povos
semissedentários para efetivar a colonização e, as tentativas de lidar com grupos
53
RAMOS, Alcida Rita. Sociedades Indígenas. São Paulo: Ática, 1988 (2ª edição).
48
seminômades eram consideradas apenas como último recurso nesse processo, dadas as
características arredias e resistentes desses últimos. No próximo capítulo procurarei
tratar detidamente dos processos históricos acontecidos especificamente nas “minas
gerais” da colônia portuguesa no Brasil.
49
Capítulo 2 : Territorialização, vida cotidiana e os caminhos coloniais
Nos Séculos XVI e XVII a maioria das vilas erguidas no território brasileiro
sob o domínio da coroa portuguesa, se concentrava na região litorânea, devido à
necessidade de defesa contra ataques de outras nações. Entretanto, já em fins do século
XVI alguns colonizadores pioneiros começaram, timidamente, a avançar para o interior.
No que tange à conquista do território que viria a ser Minas Gerais, são recorrentes na
historiografia menções a dois grupos de colonos: os bandeirantes paulistas e os
criadores de gado vindos do nordeste. Estes se destacaram pela persistência e eficácia
nas suas atividades, apesar de hoje sabermos que o mosaico cultural formado pelos
primeiros colonos “mineiros” é mais diversificado.
54
Ver CALMOM, Pedro. História da Casa da Tôrre. Uma dinastia de pioneiros. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora, 1958. (2ª edição).
55
CALMOM, op. cit., p. 21.
51
enfrentou forte resistência indígena, mas recebeu sesmarias que alargavam seus
domínios legais. Alcançou a Bahia e tomou dos jesuítas a colina de Tatuapara56, onde
estes últimos tinham aninhado uma aldeia de tupinambás. Ali, o almoxarife dos
armazéns reais levantou a “Casa da Torre”. “O resto da vida, entre 1563 e 1609,
consumiu naquela construção ciclópica, que lhe permitiria enfrentar, como um conde do
cimo de sua menagem, o corsário do mar e o bugre errante”57. A partir da Casa da Torre
os seus rebanhos desceriam e ocupariam os prados ao norte e ao sul, alcançando as
minas.
“Francisco Dias d´Ávila, como neto do velho Garcia d’Ávila, foi seu
herdeiro. Ficou sobre a custódia de seu procurador – Manuel Pereira Gago,
indicado pelo avô. Manuel era pai do padre Antônio Pereira.”59
56
Carta de concessão de 1° de maio de 52, segundo CALMOM, op. cit.
57
CALMOM, op. cit., p. 26-27.
58
Capistrano de Abreu, Gazeta de Notícias, 21 de novembro de 1882, apud CALMOM, Pedro. História
da Casa da Tôrre. Uma dinastia de pioneiros. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1958. (2ª
edição).
59
CALMOM, op. cit., p. 39-40.
60
CALMOM, op. cit., p. 41.
52
Pelo que se nota nos trechos transcritos acima, o gado era o “motor” do
colonizador pelo nordeste, contudo, estes conquistadores estavam sempre em busca de
tudo que pudessem explorar, principalmente minérios preciosos, como pode ser visto
baixo:
“Os Ávilas, no seu trajeto para o São Francisco, através do Itapicuru e do rio
Real, insensivelmente procuravam Pernambuco, o Ceará-mirim, raias do
Maranhão: eram homens do meridiano. Guedes de Brito cobiçou o ocidente,
o curso superior do S. Francisco, o sertão que confinava com os espigões e as
nascentes dum território misterioso que viria a chamar-se Minas Gerais.”63
61
CALMOM, op. cit., p. 84.
62
CALMOM, op. cit., p. 85.
63
CALMOM, op. cit., p. 83.
53
território e estabelecendo vias de trânsito rumo às terras do sul, onde se constituiria a
sociedade mineradora.
“O gado era uma invasão perseverante, tardo e inevitável, por isso invencível.
Não havia pará-lo. O tupinambá da costa, o caeté ribeirinho, o cariri da
caatinga recuavam. Os bois remoendo, sonolentos, progrediam.
Conquistavam tudo. Em São Paulo, o bandeirante caçava índios; na Bahia,
descortinava pastagens. Era primeiramente o vaqueiro. Precisava do campo,
da cacimba, da largueza, da umidade. O rebanho crescia, caminhando.”64
64
CALMOM, op. cit., p. 58.
65
ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800 & Os caminhos antigos e o
povoamento do Brasil. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 131-132.
54
(...) o recurso só podia partir da bacia do rio S. Francisco. ‘Pelo dito rio pelo
seu caminho [expõe um documento pouco posterior a 1705] lhe entram os
gados de que se sustenta o grande povo que está nas minas, de tal sorte que
de nem uma outra parte lhe vão nem lhe podem ir os ditos gados, porque não
os há nos sertões de São Paulo nem nos do Rio de janeiro. Da mesma sorte se
provêm pelo dito caminho de cavalos para suas viagens, de sal feito de terra
do rio S. Francisco, de farinhas e outras coisas, todas precisas para o trato e
sustento da vida’.”66
66
Trecho transcrito do códice 51-VI-24, fls 460-467, da Biblioteca da Ajuda, mais tarde publicado com
outros três sob o título geral de “Informação sobre as Minas do Brasil” – Anais da Biblioteca Nacional,
vol LVII, 1939, págs. 178, 179, 180. A “informação” compõe-se de quatro documentos distintos, escritos
por pessoas diferentes em épocas diversas, cada um deles constante de códices diferentes da Biblioteca da
Ajuda e não de um único documento, como escreveu Rodolfo Garcia, na explicação que precede a
publicação (nota de Miguel Costa Filho). ABREU, op. cit., p. 137-138.
67
ABREU, op. cit., p.187.
55
pobres, formados por casebres de taipa e adobe recobertos de palha (uma adaptação das
técnicas indígenas de construção de moradias), poucas ruas e vida familiar “semi-
indígena”68.
68
SANTOS, Márcio. As Estradas Reais: introdução ao estudo dos caminhos do ouro e do diamante no
Brasil. Belo Horizonte: Ed. Estrada Real, 2001.
69
SANTOS, op. cit., p. 24.
70
RIBEIRO, Darci. O Povo Brasileiro: Evolução e o Sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
71
SANTOS, op. cit.
56
aclimatação”, sem o qual não poderíamos conceber facilmente a imagem desses
“sertanejos audazes”72.
Para Holanda essa influência indígena seria o elemento essencial que “viria
a animar, senão mesmo tornar possíveis, as grandes empresas bandeirantes”74 às quais
os paulistas são imediatamente associados na historiografia.
72
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.
21.
73
VASCONCELOS, Diogo de. História antiga de Minas Gerais. 3ª Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p.
136.
74
HOLANDA, op. cit., p. 21.
75
O bandeirantismo, entendido com um fenômeno generalizado de exploração territorial, pode ser
decomposto em três tipos de organização – as “bandeiras” propriamente ditas, as “entradas” e as
“monções”. A historiografia geralmente faz a distinção da seguinte maneira: o nome bandeira se aplica
aos grupos de exploradores que avançavam por terra, organizados de forma espontânea e por iniciativa
privada de alguma liderança local, sendo o formato predominante desse tipo de atividade; já as entradas,
se distinguem das bandeiras pelo fato de terem se organizado a serviço de representantes da Coroa, tendo,
portanto, um cunho e aval oficial; as monções, por sua vez apresentavam a mesma organização das
bandeiras, incluindo, neste caso a exploração pelas vias fluviais, processo no qual os expedicionários
lançavam mão de técnicas de navegação que fundiam elementos indígenas e europeus (Ver: HOLANDA,
Sérgio Buarque de. Monções. Brasiliense: São Paulo. 1990. HOLANDA, Sérgio Buarque de.Caminhos e
Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. SANTOS, Márcio. As Estradas Reais: introdução
ao estudo dos caminhos do ouro e do diamante no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Estrada Real, 2001). Ainda
sobre as bandeiras é muito importante assinalar: “Certamente a atividade bandeirante teve outros agentes
que não somente os homens oriundos dos núcleos urbanos paulistas dos séculos XVI e XVII – a
exploração do que hoje é o sul da Bahia e o norte de Minas Gerais pelas entradas baianas, do sertão
nordestino por expedicionários sergipanos e cearenses e da região do rio Doce pelas entradas organizadas
57
selvagens, na visão dos colonos – em busca tudo que pudesse render divisas aos
expedicionários. Os objetivos mais comuns das bandeiras eram a captura de indígenas e
a pesquisa de jazidas minerais.
na capitania do Espírito Santo são bons exemplos disso. Mas foi de São Paulo de Piratininga e das demais
vilas paulistas que se irradiou a maior parte das expedições para a emergência do que podemos chamar de
fenômeno histórico do bandeirantismo”. SANTOS, op. cit., p. 22.
76
Ver: MORAES, Antonio Carlos Robert. Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial
brasileiro no ‘longo’ século XVI. São Paulo: HUCITEC, 2000. MONTEIRO, John Manuel, Negros da
Terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.
77
MONTEIRO, op. cit., p. 189.
78
“Por ‘sertão’ entendia-se, então, tudo o que existia além dos últimos núcleos urbanos paulistas do vale
do Paraíba”. SANTOS, op. cit., p. 36.
58
A prospecção de riquezas minerais era o segundo grande estímulo para a
incursão dos paulistas pelo interior da colônia. Desde os primeiros movimentos das
bandeiras de preação os exploradores buscavam também por ouro, prata e pedras
preciosas. A partir da segunda metade do século XVII se intensificou a atividade
bandeirantista de pesquisa, incentivada por cartas régias nas quais a coroa prometia
prêmios e honrarias aos chefes paulistas que descobrissem reservas de minerais
preciosos. Com o declínio paulatino do comércio de escravos indígenas as bandeiras de
pesquisa mineral, compostas de um contingente menor de exploradores e mais baratas,
ganharam importância.
79
SANTOS, op. cit.
80
HOLANDA, op. cit., p. 12.
59
os quais têm assim um caráter extensivo intrínseco. A existência de fronteiras
de ocupação em movimento é, assim, outro elemento caracterizador da
realidade colonial.”81
“Muitos dos paulistas empregados nas guerras no Norte não tornaram mais a
São Paulo, e preferiram a vida de grandes proprietários nas terras adquiridas
por suas armas: de bandeirantes, isto é, despovoadores, passaram a
conquistadores, formando estabelecimentos fixos. Ainda antes do
descobrimento das minas sabemos que nas ribeiras do rio das Velhas e do S.
Francisco havia mais de cem famílias paulistas, entregues à criação de
gado.”82
81
MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e História no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005, p. 68.
82
ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800 & Os caminhos antigos e o
povoamento do Brasil. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 118.
83
MORAES, Antonio Carlos Robert. Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial
brasileiro no ‘longo’ século XVI. São Paulo: HUCITEC, 2000, p. 386-387.
60
estão entre os movimentos que provocaram uma penetração crescente no interior do
território brasileiro e acabaram resultando na ereção de vilas até a mais de 2000 Km da
costa.
84
No referido modelo de colonização portuguesa o número de cidades e vilas não é parâmetro para
qualificar o grau de urbanização. O Status de cidade implicava em importância religiosa, política ou
militar, tanto em Portugal como em suas colônias. Para que um núcleo urbano viesse a receber uma
diocese (sede de bispado) era necessário que fosse elevado à condição de cidade. Outro aspecto
importante a ser considerado foram os movimentos de concentração/descentralização do poder que
marcavam os vínculos entre colônia e metrópole e se reproduziam nos níveis locais. A ereção de cidades
e vilas representava uma intensificação no esforço de povoamento e implantação de estrutura
administrativa, jurídica, fiscal, militar e territorial, possibilitando maior controle pela Coroa. Disputas de
caráter local, por sua vez, faziam com que as solicitações de emancipação de prósperos núcleos urbanos
fossem negadas, como mecanismo de limitação dos poderes locais, resguardando o domínio da Coroa.
Ver: MORAES, Fernanda Borges. “De arraiais, vilas e caminhos: a rede urbana das Minas coloniais”. In:
RESENDE, Maria Efigênia L. de; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais. As Minas
Setecentistas. Belo Horizonte: autêntica, 2007. v.1, p 55-85.
85
Sobre os descobertos Capistrano de Abreu diz: “De Minas Gerais o nome indica a fartura, a
onipresença dos haveres. Quem os descobriu primitivamente é impossível apurar, tanto se contradizem as
versões; o fato ocorreu pouco antes de 1690. Segundo Antonil-Andreoni, um mulato de Curitiba
encontrou no riacho chamado Tripuí uns granitos cor de aço, que vendeu em Taubaté a Miguel de Sousa
por meia pataca a oitava; levados ao Rio reconheceu-se neles ouro finíssimo. Foi este o primeiro
descoberto. Seguiram-se o de Antônio Dias, a meia légua de Ouro Preto, o de João de Faria, o de Bueno e
Bento Rodrigues pouco mais distantes, os do ribeirão do Carmo e do Ibupiranga, todos nas cercanias de
Ouro Preto e Mariana; parte da bacia do alto rio Doce foi escavada, justificando o nome de minas gerais
primeiramente aplicado a este distrito. Outros centros foram o rio das Mortes nas proximidades de São
João e São José de el-Rei, caminho de São Paulo; o rio das Velhas, revelado por Manuel da Borba Gato,
caminho da Bahia; Caeté e, ainda e sempre no alto rio Doce e na cordilheira do Espinhaço, o serro do Frio
(ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800 & Os caminhos antigos e o
povoamento do Brasil. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 141). Márcio Santos se refere
às “páginas e páginas” gastas pelos cronistas antigos na tentativa de identificar a primeira descoberta do
ouro no sertão dos cataguás (SANTOS, Márcio. As Estradas Reais: introdução ao estudo dos caminhos
do ouro e do diamante no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Estrada Real, 2001, p. 59-60), para, afinal, diminuir
o peso da questão e concordar com o que escreveu Boxer em 1960: “Coligindo as narrativas
contraditórias e fragmentárias que nos vieram ter às mãos, pareceria que o ouro foi encontrado quase
simultaneamente em regiões diversas da zona que hoje é Minas Gerais, e por pessoas diferentes ou
diferentes grupos de paulistas, nos anos entre 1693 e 1695” (BOXER, C. R. A Idade de Ouro do Brasil.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963, p. 49, apud SANTOS, op. cit.).
61
Portuguesa – foi a “introdução do elo que faltava à articulação de um imenso território
colonial até então compartimentado” geográfica e economicamente86.
86
MORAES, Fernanda Borges. “De arraiais, vilas e caminhos: a rede urbana das Minas coloniais”. In:
RESENDE, Maria Efigênia L. de; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais. As Minas
Setecentistas. Belo Horizonte: autêntica, 2007. v.1.
87
Ver: MELLO E SOUZA. Laura de. “Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos,
nas fronteiras e nas fortificações”. In: História da vida privada no Brasil, vol 1. São Paulo: Cia das
Letras, 1997. MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e História no Brasil. São Paulo: Annablume,
2005.
62
Toda esta situação concorreu para configurar um processo de urbanização
crescente em Minas Gerais. Márcio Santos considera que a urbanização nas minas
atingiu tal magnitude, que já em meados do século XVIII, apenas um terço dos
trabalhadores se ocupava da exploração mineral. Os outros dois terços exerciam os
mais variados ofícios – eram comerciantes, taberneiros, burocratas, médicos,
advogados, clérigos, soldados, mestres-escolas, tropeiros, etc. O número de escravos,
por sua vez, chegaria a 100 mil88.
Meio século depois da sua descoberta, a região das Minas já era a mais
populosa e a mais rica da colônia, contando com uma ampla rede urbana.
Nas décadas seguintes, se ativaria com uma vida social brilhante, servida por
majestosos edifícios públicos, igrejas amplas de primorosa arquitetura
88
SANTOS, Márcio. As Estradas Reais: introdução ao estudo dos caminhos do ouro e do diamante no
Brasil. Belo Horizonte: Ed. Estrada Real, 2001, pt. 76.
89
Ver: MORAES, Fernanda Borges. “De arraiais, vilas e caminhos: a rede urbana das Minas coloniais”.
In: RESENDE, Maria Efigênia L. de; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais. As
Minas Setecentistas. Belo Horizonte: autêntica, 2007. v.1, p 55-85.
63
barroca, casas senhoriais assobradadas e ruas pedradas engalanadas com
pontes e chafarizes de pedra esculpida.”90
Seja como for, ainda que se tenham construído diferentes visões acerca da
sociedade mineira na segunda metade do século XVIII, percebe-se que seu
funcionamento já apresentava um quadro crescentemente autônomo em relação à
atividade mineratória, e, nessa época, a própria crise da mineração teria estimulado
outras atividades econômicas92, conforme sintetiza Capistrano de Abreu:
90
RIBEIRO, Darci. O Povo Brasileiro: Evolução e o Sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p. 376-377.
91
MELLO E SOUZA. Laura de. “Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas
fronteiras e nas fortificações”. In: História da vida privada no Brasil, vol 1. São Paulo: Cia das Letras,
1997, p. 75-76. Na sua argumentação a historiadora parece assumir uma postura de “herdeira” da corrente
fisiocrata... No entanto, penso que é preciso reiterar a importância da mineração para a própria
constituição da sociedade mineira. Se Minas Gerais tivesse se constituído em torno apenas das atividades
agropastoris, como era defendido pelos fisiocratas, seu perfil social, cultural, político e econômico
certamente seria totalmente diverso e, não necessariamente, “melhor”... A mineração, inegavelmente,
financiou e deu condições para o estabelecimento de uma sociedade urbana na região, ainda que
socialmente injusta e ambientalmente degradante. Talvez o argumento mais forte e evidente que se pode
evocar para destacar a importância fundamental da mineração pra a constituição da Capitania, depois
Estado, de Minas Gerais seja o próprio nome dessa porção territorial, herança direta da principal atividade
econômica historicamente desenvolvida aqui.
92
Teria havido, inclusive, crescimento demográfico, mesmo da população escrava, o que representaria
um indício de desenvolvimento econômico, na interpretação de Fernanda B. de Moraes (em MORAES,
op. cit., p 55-85).
64
“Na constância da derrama surgiram os primeiros fenômenos da decadência
da mineração. Explicaram-na pelos extravios cada vez mais numerosos,
graças à multiplicidade das vias de comunicação.
(...)
65
Minas seria uma consequência da descoberta do ouro na região, sobre o qual incidia o
direito real do quinto95. Renger concluiu que o termo “Estrada Real” aplicava-se aos
caminhos coloniais onde o interesse e poder do Estado se fizeram presentes nas
decisões, e nos direitos de entrada e cobrança de pedágios e impostos. Assim, as
Estradas Reais nas Minas teriam surgido em decorrência da inserção do interior do
Brasil na política fiscal exercida pela Coroa – o título “Estrada Real” seria, pois, um
conceito fiscal aplicado a alguns caminhos das Minas Gerais dos séculos XVII e
XVIII96.
95
Sobre o “quinto” escreveu Diogo de Vasconcelos: “As minas de qualquer espécie, conforme a
legislação antiquíssima, pertenciam à coletividade representada nos soberanos, municípios ou
imperadores. Quando no Brasil a idéia dos descobrimentos acentuou-se em fatos esperançosos, o Rei
espanhol tratou de reformar o sistema e promulgou o regimento de 1603 a que logo seguiu o de 1618,
mais completo, sob cujas disposições manifestaram-se ainda as minas do Sul, e mais tarde as nossas, dos
Cataguases. O Rei, que então personificava a coletividade, e se reputava o senhor do subsolo, não as quis
explorar por si oficialmente, e mais interessante, julgou dá-las a particulares, que se mostrassem
habilitados e idôneos, mediante, porém, o pagamento de uma porção enfiteuticária do ouro extraído em
salvo as despesas. E foi o quinto.” (Ord. L. 2° Tít. 34, § 4 apud VASCONCELOS, Diogo de. História
antiga de Minas Gerais. 3ª Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 163-164). Já Capistrano de Abreu
coloca: “As ordenações do Reino enumeravam as minas entre os direitos reais. Como a experiência de
quase um século patenteasse a dificuldade de desfrutá-las, triunfou a idéia, sugerida talvez por D.
Francisco de Souza e incorporada no regimento de 1603, de permitir a lavrança, com a ressalva do quinto
para a Coroa. Enquanto o ouro andou por oitavas e libras, a percentagem foi por assim dizer deixada aos
escrúpulos de cada mineiro, mera afirmação de um princípio teórico; com os descobertos de Cataguases
transformou-se em propulsor de todo o mecanismo colonial. (ABREU, João Capistrano de. Capítulos de
história colonial: 1500-1800 & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. Brasília, Editora
Universidade de Brasília, 1982, p.145-146).
96
RENGER, op.cit., p. 127-137. Elementos muito semelhantes definem que é um “camino real” no
contexto da colonização hispânica – vias de interesse público, controladas pela coroa através da legislação
e dos mecanismos administrativos – como se vê no trecho: “Para definir el camino real en América hay
que situar a todos aquellos caminos que a lo largo del período español reciben esta denominación en el
contexto de la integración territorial de toda la América española según las directrices de la Corona.
Dentro de un plan globalmente concebido desde instancias superiores, el camino real es el camino de
interés público desde el punto de vista oficial. Su ruta, como veremos, puede variar o incluso ser
alternativa, pero siempre es una ruta que articula el territorio en su totalidade según las directrices de la
economía de la zona. Cuando se denomina a un camino “real”, subrayando su importancia y su utilidad,
se recoge todo el bagaje legal peninsular y americano: la aspiración tradicional de la Monarquía por
consolidar al unísono el poder real, el estado y los elementos indispensables para sustentarlos. Por esto, el
camino real en América tiene un valor añadido y fundamental: consolida la colonización como uma
empresa real. Y esto es algo que van a aprovechar tanto los beneficiados por las disposiciones reales
como las autoridades que representan a la Corona para ir formando la red de caminos reales.”
(GONZÁLES, María Luisa Pérez. “Los caminos reales de América en la legislación y en la historia”. In:
Anuario de Estudios Americanos. Tomo LVIII, 1. Universidad de Sevilla, 2001, p. 45).
66
para as relações de troca econômicas, culturais, políticas e sociais na Capitania. Aqui os
caminhos são vistos como elementos de conflito pelo domínio espacial/social, que
revelam as relações de poder vividas no cotidiano da colônia.
97
RESENDE, Maria Efigênia Lage de. “Itinerários e interditos na territorialização das Geraes”. In:
RESENDE, Maria Efigênia L. de; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais. As Minas
Setecentistas. Belo Horizonte: autêntica, 2007. v.1, p 25-53.
67
estruturação da sociedade mineradora, considerando a forma como a coroa, os
governadores e os colonos lidavam com as estradas, bem como os diversos interesses
envolvidos na abertura e conservação dessas vias.
98
SCARATO, Luciane C. “Caminhos e descaminhos do ouro nas Minas Gerais Setecentistas: uma
contribuição da documentação oficial”. In: MONTEIRO, Rodrigo (org.). Espelhos deformantes: fontes,
problemas e pesquisa em história moderna. São Paulo: Alameda, 2008. p. 227-248.
99
O “clientelismo” é uma marca característica do modelo de colonização mista português, no qual coroa e
colonos agiam em relativa consonância, mesmo que muitas vezes essa “ação conjunta” se tornasse
conflituosa. Sobre os modelos de colonização Antonio C. Robert Moraes escreveu um texto esclarecedor:
“As particularidades inerentes a cada Estado metropolitano já determinam a variedade dos processos de
colonização e da estruturação dos aparatos coloniais. Cada país colonizador possui a sua geopolítica
metropolitana, a qual orienta a organização do espaço imperial como um todo, numa lógica na qual cada
colônia aparece como parte de uma estrutura que trabalha para o centro do sistema. As características da
organização sociopolítica de cada Estado projetam-se nas instituições coloniais por eles geradas, dando
uma marca dinástica (depois nacional) para cada processo colonizador. Houve empreendimentos
totalmente privados, isto é, criados e sustentados por particulares articulados em grandes empresas de
colonização (sendo paradigmático o caso holandês, no qual o Estado não tem participação direta no
movimento colonial). Por outro lado, houve processos integralmente montados e impulsionados pelo
Estado, o que faz da aventura colonial um empreendimento intrinsecamente estatal (como no caso da
Espanha). E também ocorreram formas mistas, nas quais a delimitação entre a ação privada e a estatal não
ficavam bem demarcadas (tanto Portugal quanto a Inglaterra apresentavam esta plasticidade em suas
expansões coloniais)” MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e História no Brasil. São Paulo:
Annablume, 2005, P. 64.
68
longo dos caminhos100, ofícios que informam sobre a arrematação, condições e
rendimentos de contratos dos Direitos de Entradas101, bem como muitos pedidos de
confirmação de cargos.
“Seu avô [de Pedro Dias] era natural de São Paulo, chamado Fernão Dias,
que foi quem teve a resolução de entrar por estes sertões, descobrir as minas,
e neste descobrimento morreu. E seu filho, Garcia Rodrigues, pai deste
Pedro Dias, também natural de São Paulo, tendo acompanhado seu pai nos
descobrimentos, e pelas notícias da situação em que se achavam, entrou a
abrir este caminho do Rio de Janeiro pelo Couto até as Minas, e por este e
outros mais serviços e os de seu pai lhe fez el-rei dom Pedro II a mercê de
três léguas de terra para cada filho que tivesse na parte do caminho que
descobria (...). Também lhe fez mercê do ofício de guarda-mor das Minas,
100
Ver Inventário dos Manuscritos Avulsos Relativos a Minas Gerais Existentes no Arquivo Ultramarino
(Lisboa). Coordenação de Caio C. Boschi; índices de Júnia F. Furtado. Belo Horizonte: Fundação João
Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1998. Documentos: 125, 154, 3624, 3630, 4335,
4970, 11960.
101
Inventário dos Manuscritos Avulsos Relativos a Minas Gerais Existentes no Arquivo Ultramarino
(Lisboa). Op. cit. Documentos: 218, 425, 451, 493, 780, 858, 883, 947, 1160, 1191, 1472, 1742, 1756,
1854, 2156, 2347, 5981, 9888, 13843.
102
Esta passagem é ilustrada por Vasconcelos da seguinte maneira: “Em seguida aos descobrimentos das
Minas Gerais, saindo do seu Ribeirão em 1702, foi Garcia Rodrigues a Borda do campo, e daí começou
(...) a picada do caminho Novo para o Rio de Janeiro, obra que foi concluída por Domingos Rodrigues da
Fonseca. Por carta de 24 de julho de 1709, o Rei agradeceu a Garcia Rodrigues os serviços prestados
nessa empresa, que atestará perpetuamente a dedicação dos homens antigos. Em remuneração concedeu-
lhe o Rei, por carta de 14 de novembro de 1718, quatro sesmarias, e mais uma a cada filho, escolhidas ao
longo da estrada: e foram as da Borda do Campo (Registro Velho), berço de Barbacena, a de Matias
Barbosa, berço de Juiz de Fora, a de Paraíba do Sul, onde está situada a cidade e a de Macacos, a sopé da
serra, por onde desceu com a estrada, a qual, depois de renovada há poucos anos, tomou o nome de
Presidente Pedreira.” VASCONCELOS, Diogo de. História antiga de Minas Gerais. 3ª Ed. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 220.
69
que ele não queria aceitar dizendo arrogantemente que ele não queria que el-
rei lhe fizesse mercê porque ele é que as queria fazer a el-rei, e levado desta
mesma elevação de paulista deu a el-rei a passagem destes dois rios
[Paraíba e Paraibuna] que no princípio mandava fazer pelos seus escravos,
sem emolumento, e ofereceu a el-rei dizendo podia fazer nela um bom
rendimento.”103
“(...) e por entre arvoredos e caminho apertado, que em partes não cabe mais
que uma besta carregada, vim, e sempre por entre morros, admirando o
denso dos matos e o elevado e grosso de muitas árvores, que bem seria só
poderiam ter com a criação do mundo a sua origem. Era o caminho, por este
respeito, sombrio, e pelas muitas chuvas de trovoadas, que neste tempo de
verão há certas quase todos os dias, estavam impraticáveis os caminhos.”105
103
Códice Costa Matoso. Coord. Luciano R. A. Figueiredo e Maria Verônica Campos. Estudo Crítico
Luciano R. A. Figueiredo. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos Históricos, 1999,
p. 888-889.
104
Mais adiante, quando for tratar da história do Caminho Novo, voltarei a falar de Garcia Rodrigues com
maiores detalhes.
105
Códice Costa Matoso. Op. cit., p. 884.
70
“E entrei a trepar por um morro acima de não pequena altura, e depois dele
se seguiram três igualmente grandes, a que chamam os três irmãos, e neles
não há mais que subir e desder sem demora, nem embaixo nem em cima, e
me foram penosos porque como a trovoada também para este sítio na tarde
antecedente carregou com chuva pôs o caminho incapaz e o mais indigno
que tinha encontrado (...).”106
106
Códice Costa Matoso. Op. cit., p. 890.
107
Sobre este tema diz Capistrano de Abreu: “Levaria longe os pormenores do regime fiscal, imposto a
Minas Gerais e até onde o permitiam as distâncias e a população esparsa, à Bahia, Goiás e Mato Grosso;
a proibição de abrir novas picadas, a proibição de fundar novos engenhos, a proibição de andar com ouro
em pó, a proibição de andar com ouro amoedado, a proibição de exercer o ofício de ourives, os impostos
múltiplos, os donativos implorados por prazo certo e curto e depois exigidos imperiosamente por prazo
muito maior (...). Apenas uma amostra. Divulgada em 1730 a existência de diamantes no Tijuco, logo D.
Lourenço de Almeida, governador de Minas Gerais, estabeleceu a capitação de 5$ por cada escravo
empregado nas lavras; no ano seguinte mandou despejar as minas, expulsar da comarca do Serro negros,
mulatas e mulatos forros, limitar a mineração a certa zona, pagando-se pelo menos 60$ anualmente,
afinal por muito favor reduzidos a 20$, proibiu vendas fora do povoado e só as permitiu na povoação
com o sol de fora; em 1734 a capitação foi elevada a 40$, e logo em seguida vedada a mineração a
mandado que nenhum dos habitantes do distrito pudesse ter bateia, almocrave, alavanca ou qualquer
outro instrumento de minerar. Com o tempo foi-se tornando mais tirânico o regime de modo a permitir
que a Coroa portuguesa ficasse senhora do mercado de diamantes do mundo inteiro.” ABREU, João
Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800 & Os caminhos antigos e o povoamento do
Brasil. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 146.
71
Diversos corpus documentais registram as reiteradas ordens da coroa
visando o controle da mineração e dos caminhos. Nos manuscritos do Arquivo
Ultramarino de Lisboa encontrei cartas do rei solicitando providências imediatas dos
seus representantes na colônia para combater “descaminhos” e os salteadores que
infestavam as vias, a fim de evitar as perdas resultantes do contrabando e dos
assaltos108.
108
Ver Inventário dos Manuscritos Avulsos Relativos a Minas Gerais Existentes no Arquivo Ultramarino
(Lisboa). Op. cit. (Documentos: 1165, 1202, 9306).
109
Das Villas de São Paulo para o rio de São Francisco. Do Governo próximo de Portugal, Tomo I, Séc.
XVII-XVIII. Códice com a cota 51-IX-33, fls. 460-467 (15p.), Biblioteca da Ajuda, Portugal. “Desse
documento há uma cópia publicada nos Anais da Biblioteca Nacional, edição de 1935, inclusa numa série
de quatro, reunidos sob o título geral de Informação sobre as Minas do Brasil, com imprecisa referência
arquivística.” RESENDE, Maria Efigênia Lage de. “Itinerários e interditos na territorialização das
Geraes”. In: RESENDE, Maria Efigênia L. de; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas
Gerais. As Minas Setecentistas. Belo Horizonte: autêntica, 2007. Vol. 1.
110
RESENDE, op. cit., p 25-53.
111
“Regimento original do superintendente, guardas-mores e mais oficiais deputados para as minas de
ouro que há nos sertões do Estado do Brasil”. Rei; Lisboa; 19/04/1702. In Códice Costa Matoso. Op. cit.,
p 319.
72
O Códice Matoso contém outras informações que mostram a preocupação
constante da Coroa com os caminhos e descaminhos. A “Coleção abreviada da
legislação e das autoridades de Minas Gerais”, por exemplo, cita o:
“(...) [Com o] sertão do Brasil todo atravessado de caminhos, com [as] portas
francas para o desvio do ouro pelas ilhas e pela costa da Mina, com o trânsito
fácil para muitos estados que na América vizinha com os desta Coroa, parece
que assaz fundamento tem o Conselho para recear que a maior parte do ouro
sairá sem ser quintado e deixará de vir o 1 por 100 e às casas da moeda, e
por conseguinte que será muito maior do que se imagina a perda de Vossa
Majestade.”114
“Não há prevenção, pena, nem cautela que baste (suposta a malícia dos
homens) para se evitarem os desvios do ouro, porque os desertos, sertões,
veredas e caminhos ocultos são infinitos (...).”115
112
“Coleção abreviada da legislação e das autoridades de Minas Gerais”. In Códice Costa Matoso. Op.
cit., p. 360.
113
RESENDE, Maria Efigênia Lage de. “Itinerários e interditos na territorialização das Geraes”. In:
RESENDE, Maria Efigênia L. de; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais. As Minas
Setecentistas. Belo Horizonte: autêntica, 2007. v.1, p 25-53.
114
“Consulta do Conselho Ultramarino sobre o decreto de 3 de dezembro de 1750 que lhe havia mandado
formar a minuta do regimento das casas de fundição e a resolução que Sua Majestade tomou em 4 de
março de 1751”. Conselho Ultramarino; Lisboa; 22/02/1751. In Códice Costa Matoso. Op. cit., p. 587.
115
“Representação da Câmara de Vila Rica contra a Lei Novíssima das Casas de Fundição”. Senado da
Câmara de Vila Rica; Vila Rica; 24/04/1751. In Códice Costa Matoso. Op. cit., p.519. (No mesmo
documento há ainda várias menções à opressão imposta pela coroa com seus quintos e derramas sobre a
população das minas).
73
Partindo dessas constatações já se afirmou que o “descaminho era prática
social constitutiva e instituinte da sociedade colonial”116, uma vez que os
administradores nomeados pela Coroa sabiam que os caminhos ilegais existiam e que
estes eram efetivamente usados pelos contrabandistas. Citando Paulo Cavalcante,
Luciane Scarato reforça a ideia de que “o caminho convida ao descaminho”. Tomando
como fato a existência do contrabando, a autora questiona e investiga as razões da
preocupação da Coroa a ponto de tentar limitar o número de estradas, a ocupação
territorial e o fluxo de pessoas nas Minas, chegando à conclusão de que o medo da
invasão por nações estrangeiras e a criação de uma “sociedade de aparências”, na qual a
existência de leis e ordens daria a impressão de controle exercido pela Coroa, forçavam
esse tipo de atuação por parte da administração colonial.
Dessa maneira, pela observação das formas pelas quais coroa e colonos
lidavam com a abertura e fiscalização dos caminhos, todos estes estudos evidenciam o
movimento pendular entre sujeição ao Estado Português e a relativa autonomia local na
colônia. Revelam um mecanismo de equilíbrio de poder típico do Antigo Regime,
caracterizado por Tocqueville como a combinação entre “uma regra rígida” e uma
“prática flácida”. Como coloca M. Efigênia L. de Resende: na complexidade do
funcionamento do sistema colonial conviviam a teoria, as leis, as normas e as
circunstâncias117.
116
CAVALCANTE, Paulo, Negócios de Trapaça: caminhos e descaminhos na América portuguesa
(1700-1750), São Paulo, Hucitec, 2006, p. 43, apud SCARATO, Luciane C. “Caminhos e descaminhos
do ouro nas Minas Gerais Setecentistas: uma contribuição da documentação oficial”. In: MONTEIRO,
Rodrigo (org.). Espelhos deformantes: fontes, problemas e pesquisa em história moderna. São Paulo:
Alameda, 2008. p. 245.
117
RESENDE, Maria Efigênia Lage de. “Itinerários e interditos na territorialização das Geraes”. In:
RESENDE, Maria Efigênia L. de; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais. As Minas
Setecentistas. Belo Horizonte: autêntica, 2007. v.1, p 51.
74
Capítulo 3: Os “caminhos antigos” e a fronteira étnica
Pelo exposto até aqui fica evidente que a pesquisa histórica sobre as vias de
comunicação nos revela muito sobre as relações sociais e mecanismos de poder
vivenciados no período colonial. Entretanto, um estudo meticuloso das Estradas Reais
pode nos remeter a questões ainda mais profundas, muitas vezes encobertas por uma
historiografia alinhada aos moldes europeus de concepção histórica. Falo
especificamente das relações estabelecidas entre etnias diferentes nos meandros desses
caminhos, desde seus primórdios. A busca pela origem das Estradas Reais suscita o
estudo das “fronteiras étnicas”, uma vez que essas vias foram essenciais para a expansão
de uma “fronteira europeia” – limite da penetração e ocupação do território brasileiro
por uma cultura estrangeira; divisão entre povos de composição racial, étnica, religiosa
e tecnológica diferentes118.
118
Stuart Schwartz, contra-argumentando essa ideia, procura comparar características “originais” das
sociedades indígenas e europeias, elencando diversos elementos de semelhança e aproximação entre elas.
Mostra que, mesmo antes de entrarem em contato, europeus e indígenas não eram “extremamente
diferentes” conforme propõe uma visão “romantizada” da história colonial, criticada pelo autor. Schwartz
considera que os efeitos do isolamento das populações americanas até a colonização teriam se traduzido
em diferenciação drásticas dos índios em relação aos europeus somente nas áreas da epidemiologia e de
alguns processos de evolução tecnológica. No mais, em tudo, esses dois grandes grupos culturais se
assemelhariam. Ver: SCHWARTZ, Stuart. “Os modos indígenas”. In: SCHWARTZ, Stuart e
LOCKHART, James. A América Latina na Época Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002,
p. 52-80.
119
HEMMING, John. “Os índios e a fronteira no Brasil colonial”. In: BETHELL Leslie (org.). História
da América Latina: América Latina colonial, 2ª ed. São Paulo: Edusp, 1998, vol. 2, p. 423-469.
75
Apesar de crivada de juízos de valor, a exposição de Hemming destaca de
maneira muito contundente a caracterização de uma fronteira para além do seu caráter
físico-geográfico, como uma delimitação permeável entre dois grupos culturais distintos
(europeus e índios), mostrando situações de relativização das fronteiras culturais nas
fronteiras geográficas. Desta maneira, o autor destaca o surgimento dos chamados
“homens de fronteira” – colonos europeus “barbarizados”, que incorporaram
características supostamente encontráveis no comportamento dos nativos da América,
levando essa “mistura cultural” a extremos de incivilidade.
76
3.1 O Caminho Velho
Traçados do Caminho Velho. (Fonte: SANTOS, Márcio. As Estradas Reais: introdução ao estudo dos
caminhos do ouro e do diamante no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Estrada Real, 2001)
77
A antiguidade e origem indígena do Caminho Velho é consensual nos
trabalhos publicados a respeito do início do período colonial. Sobre esse fato há
indicações também na documentação histórica que investiguei, como se pode ler neste
trecho anônimo: “(...) o outro registro é de tudo o que entra da parte de São Paulo, a que
chamam o Caminho Velho, e foi o primeiro caminho para estas Minas (...)”120.
120
Anônimo. “Catálogos de Capitanias e donatários e de governadores e vice-reis do Estado do Brasil e
outros apontamentos de leitura”. Local não identificado; ca. 1752. In Códice Costa Matoso. Coord.
Luciano R. A. Figueiredo e Maria Verônica Campos. Estudo Crítico Luciano R. A. Figueiredo. Belo
Horizonte: Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos Históricos, 1999, p. 841.
121
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
122
HOLANDA, op. cit., p. 25.
78
motivo não esclarecido nem esclarecível, condensou a população entre a
Mantiqueira e a cadeia marítima, facilitou a passagem para a bacia do São
Francisco, para os reinos do gado e as terras do ouro. Sua ação até certo
ponto repartiu-se com a do Sapucaí, caminho de Fernão Dias e D. Rodrigo de
Castelo Branco. Gargantas várias fendiam a Mantiqueira, emparelhando
ambos até que a atração fluminense os divorciou. Pelo menos uma garganta,
conhecida dos Guaianases, ligava o Paraíba à marinha. Por ela andou
Knivet; Garcia Pais remeteu as esmeraldas paternas à cidade de São
Sebastião sem passar por Piratininga; por ela explica-se a casa de quintos de
Taubaté contemporânea dos primeiros descobertos auríferos, de Taubaté
saída para o Rio de Janeiro. Ainda hoje a cidade de Cunha recorda a velha
garganta.”123
123
ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800 & Os caminhos antigos e o
povoamento do Brasil. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 336.
124
“(...) A aldeia desapareceu; o nome de Guarulhos persiste e é bem conhecido”. ABREU, op. cit, p.
218.
125
ABREU, op. cit., p. 217.
126
ABREU, op. cit., p. 220.
79
Capistrano destaca a importância do acesso ao conhecimento territorial
desses grupos indígenas para avanço do colonizador, para o processo de colonização:
127
ABREU, op. cit., p. 219.
128
ABREU, op. cit, p. 237.
129
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.
33.
80
detalhadamente o sistema viário das Minas – Caminho Geral do Sertão (estrutura
básica) e incontáveis desdobramentos, caminhos secundários, picadas e veredas. A
autora levanta evidências de que essa via principal teriam se originado de antiga trilha
indígena “descoberta” pelos paulistas e “progressivamente melhorada” em sua
infraestrutura, facilitando o trânsito130.
Não demorou muito a correr a notícia dos descobertos pelas outras regiões
da colônia e até na Europa. Assim começou um movimento de aventureiros que partiam
130
RESENDE, Maria Efigênia Lage de. “Itinerários e interditos na territorialização das Geraes”. In:
RESENDE, Maria Efigênia L. de; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais. As Minas
Setecentistas. Belo Horizonte: autêntica, 2007. Vol. 1.
131
Além do Caminho Geral do Sertão convergiam para a vila de São Paulo várias rotas sertanistas: O
caminho do sul, rumo às missões jesuíticas situadas em terras espanholas do Rio Grande do Sul, de
Sacramento (Uruguai) e do que é hoje o Paraguai; os caminhos do norte, que chegavam às minas de
Goiás, por Mojimirim, atingindo também o sul de Minas, pela região de Atibaia e Bragança; o caminho
fluvial das monções, que partia do Tietê em direção a Cuiabá e o caminho do mar que, via Santos, ligava
São Paulo ao litoral (SANTOS, Márcio. As Estradas Reais: introdução ao estudo dos caminhos do ouro e
do diamante no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Estrada Real, 2001). Sobre essa multiplicidade de caminhos
Sérgio Buarque de Holanda destaca: “A permanência de caminhos numerosos que da vila de São Paulo
conduziam, ora às minas gerais, ora ao sul, onde se estabeleceriam as primeiras reduções de guaranis,
parece ter fixado, muito mais do que o rio Tietê, as direções iniciais da expansão bandeirante.”
(HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.
34).
132
Também chamado de “estrada geral de São Paulo” por Capistrano de Abreu (ABREU, op. cit., p. 333.)
ou ainda de “caminho do vale do Paraíba”, segundo Márcio Santos (SANTOS, op. cit., p. 43).
81
por uma rota mista que começava na cidade de São Sebastião do Rio de janeiro,
seguindo, por terra, até a baía de Sepetiba e daí por mar até Parati, de onde um segundo
trecho terrestre levava, através da serra do Facão, até a mesma “estrada geral de São
Paulo”.
133
ABREU, op. cit., p. 141.
134
SANTOS, op. cit., p. 46.
82
Pelo esclarecedor trecho de Márcio Santos transcrito acima chegamos a um
entendimento de como surge o nome Caminho Velho, já no contexto de formação da
sociedade mineradora, precedida pela penetração bandeirante e pelos primeiros
habitantes do território – os índios.
135
ZEMELLA, Mafalda P. O Abastecimento da Capitania das Minas Gerais no Século XVIII. São Paulo:
Hucitec, s/d, p. 56. Apud SANTOS, op. cit.
136
HOLANDA, op. cit.
83
bastardos e mamelucos, que faziam o mesmo trabalho mediante remuneração),
estabeleceu-se no centro-sul do território colonial uma verdadeira rede de circulação de
tropas. O tropeirismo se firmou como a modalidade de transporte mais eficiente por
aquelas vias ainda em consolidação, criadas unicamente para uso de pedestres, mas que
não ofereciam maior dificuldade ao trânsito dos muares.
137
O Registro do Ouro de Parati foi criado já em 1704 para controlar o fluxo de ouro que, pelo Caminho
Velho, escoava das minas gerais para o litoral. Ainda de 1704 é o Registro do Ouro de Santos, um dos
principais portos por onde, nos primeiros anos da mineração, as riquezas auríferas deixavam a colônia.
Em 1714 é criado o Registro do Caminho Velho, instalado nas proximidades de Parati (SANTOS, op.
cit.).
138
Ver: ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800 & Os caminhos antigos e
o povoamento do Brasil. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982 (p. 267). CARVALHO, Daniel
de. Estudos e Depoimentos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1953. CARVALHO, Daniel de. Novos
Estudos e Depoimentos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1959. SANTOS, Márcio. As Estradas
Reais: introdução ao estudo dos caminhos do ouro e do diamante no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Estrada
Real, 2001 (p. 53).
84
3.2 O Caminho Novo
O Caminho Novo com suas variantes. (Fonte: SANTOS, Márcio. As Estradas Reais: introdução ao
estudo dos caminhos do ouro e do diamante no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Estrada Real, 2001)
85
Para tratar do Caminho Novo, a historiografia, de modo geral, começa por
fazer referência à atuação de Fernão Dias Paes, famoso bandeirante paulista que,
tomando como rota o Caminho Geral do Sertão, devassou a vasta área que viria a ser o
centro-sul de Minas Gerais. Da sua expedição participou Garcia Rodrigues Paes Leme,
seu filho, responsável por dar parte à coroa das “riquezas” encontradas pela bandeira de
seu pai – uma porção de supostas esmeraldas139.
139
Na verdade, como afirma Diogo de Vasconcelos, “nenhum resultado prático se obteve da expedição de
Fernão Dias, terminada pela entrega das esmeraldas a 11 de dezembro de 1681. Apenas ficou
descortinado o sertão do Rio das Velhas, e fundados os primeiros arraiais, fortalezas, que defendiam as
respectivas regiões e guarneciam os caminhos.” (VASCONCELOS, Diogo de. História antiga de Minas
Gerais. 3ª Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 141).
140
VASCONCELOS, op. cit., p. 198.
141
VASCONCELOS, op. cit., p. 199.
86
se o dito Garcia Rodrigues consegue o que intenta, fará grande serviço à
Vossa Majestade, e a este governo grande obra; porque pende o interesse de
se aumentar os quintos pela brevidade do caminho; porque por este donde
agora vão aos Cataguases se porá do Rio não menos de 3 meses e de São
Paulo, 50 dias e pelo caminho que se intenta abrir, conseguindo-se, se porão
pouco mais de 15 dias. Agora se consegue a utilidade dos Campos Gerais, os
quais são tão férteis para os gados que dizem estes homens virão a ser outro
Buenos Aires. Do Rio a estes campos são 7 a 8 dias e daí às Minas pouco
mais de 8.”142
142
VASCONCELOS, op. cit., p. 199-200. O autor não cita a fonte deste ofício.
143
ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800 & Os caminhos antigos e o
povoamento do Brasil. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 141-142.
144
VASCONCELOS, op. cit., p. 200.
87
“Em 1701, o Guarda-mor Garcia Rodrigues Pais tomou a si abrir o caminho
novo de Minas para o Rio de Janeiro, mas no fim de quatro anos de trabalho,
sentiu-se exausto de meios para concluí-lo e teria assim ficado, se o
Coronel Domingos Rodrigues não lhe emendasse a mão, concorrendo com
seus escravos e acabando a obra à custa de grandes cabedais.
Garcia Rodrigues seria hoje aclamado príncipe dos engenheiros, como deverá
sê-lo dos homens generosos, que sem um ceitil dos cofres públicos, realizam
os grandes cometimentos. O traçado do Caminho Novo é com raras variantes
o mesmo da Estrada de Ferro Central, coincidência que se nota igualmente na
Estrada de Ferro Minas e Rio e no ramal de Ouro Preto, linhas ambas, que
perfilaram sobre as picadas dos bandeirantes.”145
145
VASCONCELOS, op. cit., p. 222.
146
O Coronel Domingos Leme, segundo Márcio Santos, era cunhado de Garcia Rodrigues. Ver:
SANTOS, Márcio. As Estradas Reais: introdução ao estudo dos caminhos do ouro e do diamante no
Brasil. Belo Horizonte: Ed. Estrada Real, 2001, p. 82.
88
Caminho Novo à história da Minas colonial. Enquanto boa parte da historiografia
tradicional aceita a ideia de sua construção como resultado exclusivo do esforço de
paulistas e portugueses, mais especificamente de Garcia Rodrigues, o pesquisador faz
referências a indícios arqueológicos que provariam a ancestralidade indígena do
caminho. Venâncio toma como referências obras pioneiras da historiografia brasileira147
que relacionam as Estradas Reais às rotas indígenas e, servindo-se do conceito de
“longa duração”, propõe que “vista por essa ótica a história dos caminhos mineiros deve
ser considerada como a da usurpação de estruturas viárias pré-coloniais por parte dos
povoadores de origem européia.”148
147
No seu trabalho o autor cita, por exemplo, Caminhos e Fronteiras e Monções, de Sérgio Buarque de
Holanda e Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil de Capistrano de Abreu.
148
VENÂNCIO, op. cit., p. 184.
149
BELTRÃO, Maria da Conceição et alli. “Arqueologia e História. Um binômio para a sistematização da
transdisciplinaridade”. Anuário do Staden. Estudos Brasileiros, 1988, n. 36.
89
Venâncio recorre novamente a Maria Beltrão, em diálogo com Capistrano
de Abreu150, para ressaltar que, não só a malha viária, mas também os pontos de
assentamento indígenas constituíram estruturas pré-coloniais usurpadas pelos
conquistadores, originando tanto o eixo fundamental de ligação entre o litoral e a região
aurífera, como os primeiros povoados do Brasil-colônia. Nessa perspectiva, a história
do Caminho Novo muda de configuração – deve ser entendida como a história da
identificação e usurpação de um percurso milenarmente utilizado e, nas palavras de
Venâncio, “não é absurdo supor, portanto, que a utilização da referida rota teve de
superar a resistência indígena. (...) Podemos afirmar que os colonizadores, para
conseguirem atingir o litoral, tiveram de construir primeiramente uma estrada de
sangue, uma estrada de guerra e de dominação das etnias que há muito habitavam Minas
Gerais.”151
150
BELTRÃO, op. cit.
151
VENÂNCIO, op. cit., p. 189.
152
Segundo Vasconcelos, Garcia Rodrigues teria começado a “fazer” o Caminho Novo “em 1702, na
Borda do Campo (Registro Velho) e terminado em 1707.” (VASCONCELOS, Diogo de. História antiga
de Minas Gerais. 3ª Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 243).
90
sofreriam pelo desvio das rotas comerciais chegaram a pedir o fechamento e proibição
da circulação pela nova via153.
153
Ver SANTOS, Márcio. As Estradas Reais: introdução ao estudo dos caminhos do ouro e do diamante
no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Estrada Real, 2001.
154
Este seria o seu grande objetivo empresarial, segundo SANTOS, op. cit., p. 88.
155
Códice Costa Matoso. Coord. Luciano R. A. Figueiredo e Maria Verônica Campos. Estudo Crítico
Luciano R. A. Figueiredo. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos Históricos, 1999,
p. 883-897.
91
Os moradores mais ricos da capitania do Rio de Janeiro não demoraram a
ser aquinhoados com concessões de sesmarias ao longo do novo caminho, o que
configurava um abuso injustificável aos olhos de Garcia Rodrigues e dos colonos
paulistas de maneira geral. A supremacia paulista na região das minas se via em franca
decadência.
156
SIMONSEN, Roberto. C. História Econômica do Brasil. 5 ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1967, p. 362, apud SANTOS, op. cit.
157
SANTOS, op. cit., p. 92.
92
3.3 O Caminhos dos Diamantes
Caminho dos Diamantes. (Fonte: SANTOS, Márcio. As Estradas Reais: introdução ao estudo dos
caminhos do ouro e do diamante no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Estrada Real, 2001)
93
Há poucas referências historiográficas sobre o caminho que dava acesso ao
chamado Distrito Diamantino, que compreendia a demarcação oficial, feita pela
administração colonial, das terras onde se encontravam os diamantes, diferenciando-as
das demais áreas de mineração.
“Na região em que cavalgávamos agora, parecia que todas essas formas se
houvessem harmonizado num todo encantador. Os outeiros e vales
serpeantes, interrompidos por montanhas isoladas, são bordados, ao longo do
sopé delas, e nos vales, animados por claros regatos com mata de folhagem
densa de árvores sempre virentes; junto das encostas estendem-se contínuos
campos verdes, interrompidos por moitas de arbustos de toda espécie, e sobre
as lombadas pouco inclinadas expandem-se as mais bonitas campinas, nas
quais estão distribuídas liliáceas, moitas baixas de arbustos e arvorezinhas
isoladas, enfeitadas com variegadas flores, de modo tão encantador, que se
caminha por meio delas, como se fosse num parque artisticamente
planejado.”158.
“O caminho corre sobre cristas e em torno dos flancos do familiar terreno dos
campos, cuja superfície é arenosa, encascalhada ou seixosa, com pedras
soltas dispersas, coberta de vegetação enfezada, cerrados, capões e matas, ou
158
SPIX, Johann B. von & MARTIUS, Carl. F. P. von. Viagem pelo Brasil – 1817/1820. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1981, p. 27.
94
florestas anãs, isenta de vegetação rasteira, como as encantadoras florestas da
França.”159
159
BURTON, Richard. Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1977, p. 72.
160
BURTON, op. cit., p. 79.
161
BURTON, op. cit., p. 82.
162
BURTON, op.cit., p. 76.
163
LINKE SÁLVIO, Vanessa; LIMA, Cláudio; LAGE, Daniela; Valente, Polyana. “Diamantina
Rupestre: percepções e construções da paisagem em uma abordagem histórica, geográfica e arqueológica
na região do antigo Distrito Diamantino”. Revista FUNADESP ano 1, n°1, jan. 2006, p. 169.
95
publicações ainda são insuficientes para dar conta de milênios de uma riquíssima
história natural e humana acontecida ali.
164
Esse tipo de situação também ocorria entre os caminhos reais da América Hispânica, como mostra
Gonzáles: “Observando la red de caminos reales en América, parece que existan dos tipos dentro de esta
denominación. Unos de muchísima longitud, como el Camino Real de Tierra Adentro, desde la ciudad de
México hasta Santa Fe del Nuevo México, el Camino Real de Chiapas desde México a Guatemala o el
camino Real de Lima a Venezuela, cuya función como integradores del territorio es obvia. Y otros más
cortos pero que abren uma vía de comunicación imprescindible o soportan un tráfico fundamental. Por
ejemplo, los caminos reales de Veracruz y Acapulco.” (GONZÁLES, María Luisa Pérez. “Los caminos
reales de América en la legislación y en la historia”. Anuario de Estudios Americanos Tomo LVIII, 1.
Universidad de Sevilla, 2001, p. 48). Mesmo assim, os caminhos mais curtos ou que atendiam a regiões
muito específicas não perdem a “qualidade real”, uma vez que, como dito, o que os distinguia dos demais
era a incidência do direito real de domínio e fiscalização.
165
SANTOS, Márcio. As Estradas Reais: introdução ao estudo dos caminhos do ouro e do diamante no
Brasil. Belo Horizonte: Ed. Estrada Real, 2001, p. 111.
96
Segundo Santos, as primeiras notícias da descoberta de diamantes na região
são de 1714, na lavra de um faiscador localizada junto à serra da Lapa e também no
córrego do Mosquito, regiões do arraial do Tijuco. Até então a comarca do Serro Frio
vivera da mineração de ouro e os descobertos das “pedrinhas brancas” foram mantidos
em segredo. O próprio Governador e Capitão Geral da Capitania de Minas Gerais, Dom
Lourenço de Almeida, teria acobertado a situação, escondendo da coroa a existência dos
diamantes no Tijuco. Essa atitude foi severamente censurada por ofício do Rei166 que,
após a confirmação da descoberta, promulgou, por decreto, a partir de 1730, uma longa
série de regimentos que instituíam pesadas taxas e impostos sobre a mineração,
procurando também regulamentar a vida cotidiana na região167.
166
O ofício está transcrito em SANTOS, op. cit., p. 103-104.
167
Ver SANTOS, op. cit., p. 102- 114.
97
demais núcleos urbanos da capitania. O controle sobre a circulação mercantil
pela via, certamente o mais severo da colônia no auge da extração
diamantífera, também deve ter contribuído para torná-la menos utilizada que
os demais caminhos coloniais da região das minas.”168
“(...) em toda a comarca [do Serro Frio], que é muita parte grande e
despovoada, têm algumas lavras, em que se acham alguns arraiais,
principalmente na freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Mato Dentro,
em distância de três dias de viagem antes de chegar à vila [do Príncipe], mas
por diverso caminho para a parte de leste do caminho que vai direto à vila.
Tem mais o arraial da Senhora do Pilar, de pouca gente, o arraial dos
Córregos, também pequeno, a Tapera e Itapanhoacanga, também pequenos, e
todos da dita freguesia da Conceição. Tem mais, indo do Sabará para o
Tijuco, e daí para a vila, o arraial da Paraúna, o da Gouveia, o do Milho
Verde, o de São Gonçalo, todos pequenos (...)”169
168
SANTOS, op. cit. p. 112-113.
169
Anônimo, “História da Vila do Príncipe e do modo de lavrar os diamantes e de extrair o cascalho”. In
Códice Costa Matoso, Coord. Luciano R. A. Figueiredo e Maria Verônica Campos. Estudo Crítico
Luciano R. A. Figueiredo. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos Históricos, 1999,
p. 849.
98
está, e hoje com maiores haveres e ínclitas opulências de finíssimos e
preciosíssimos diamantes (...).”170
170
FURTADO, Bento Fernandes. “Notícias dos primeiros descobrimentos das primeiras minas de ouro
pertencentes a estas Minas Gerais, pessoas mais assinaladas nestes empregos e dos mais memoráveis
casos acontecidos desde os seus princípios”. Minas Gerais; ca. 1750. In Códice Costa Matoso. Op. cit., p.
184.
99
3.4 “Índios coloniais”
171
MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e História no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005.
172
MORAES, op. cit., p. 64.
100
“Da existência efetiva dessas vias já com caráter mais ou menos permanente,
antes de iniciar-se a colonização, nada autoriza a duvidar. E ainda hoje, o
traçado de muitas estradas de ferro parece concordar, no essencial, com os
velhos caminhos de índios e bandeirantes, sinal de que sua localização não
seria caprichosa.”173
173
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.
26.
174
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. Brasiliense: São Paulo. 1990, p. 17-18.
101
lugares da América, onde as picadas abertas pelos naturais da terra serviam
mais tarde aos europeus, permitindo sua expansão através do continente
ocorreu igualmente, e em maior escala, entre nós. Há testemunhos desse
aproveitamento e é significativo que em textos coloniais a presença de
alguma trilha indígena se presta, não raro, para determinar a localização de
datas de terras. Assim o caminho dos guaianás, que em fins do século XVI
servira a Martim de Sá em sua expedição às regiões correspondentes ao sul,
ou antes, ao sudeste do atual território de Minas Gerais, é o mesmo que, mais
de três decênios depois, ainda constituía ponto de referência numa petição de
sesmaria apresentada por Miguel Aires Maldonado e filhos (...)”175
A marcha em fileira simples, usual até nossos dias entre caipiras, seria
inevitável nessas primeiras veredas, em regra pouco melhores do que
carreiros de anta. O costume, tradicional entre os naturais do país, tinha a
vantagem de proporcionar maior segurança ao viajante em lugares perigosos
e infestados de gentio brabo. Salvo nos casos excepcionais, como o famoso
Piabiru ou Caminho de São Tomé, no Guairá, que, com seus oito palmos de
largo, não era, nisto, inferior a algumas ruas principais da Lisboa
quinhentista, tais veredas dificilmente permitiam em toda a sua largura mais
de uma pessoa ao mesmo tempo. É possível dizer-se que aqui, como no resto
do Brasil, e em quase todo o continente, a América do Norte inclusive, o
primeiro progresso real sobre as velhas trilhas indígenas só foi
definitivamente alcançado com a introdução em grande escala dos animais de
transporte. Em São Paulo, particularmente, com as primeiras tropas de
muares. Quebrando e varrendo a galharia por entre brenhas espessas, as
bruacas ou surrões que pendiam a cada lado do animal serviam para ampliar
as passagens. Novo progresso surgiria mais tarde com a introdução dos
veículos de roda para jornadas mais extensas. Pode-se ter idéia de como foi
lento esse progresso(...)”176
175
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.
33-34.
176
HOLANDA, op. cit., p. 26.
102
veio à luz”177, ou seja, as fronteiras da Minas colonial constituíam limites móveis,
resultantes da derrota/assimilação de povos indígenas de várias etnias.
177
VENÂNCIO, Renato Pinto. “Antes das Minas: Fronteiras coloniais e populações indígenas”. In:
RESENDE, Maria Efigênia L. de; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais. As Minas
Setecentistas. Belo Horizonte: autêntica, 2007. v.1, p 88.
178
É preciso destacar que algumas pesquisas antropológicas minimizam o papel do avanço sobre
territórios alheios como causa das guerras entre grupos indígenas detentores desses territórios. Segundo
esta corrente de pensamento, as sociedades indígenas se caracterizavam como “sociedades-para-a-
guerra”, ou seja, as guerras constituíam, curiosamente, um elemento estruturante das relações intra e
extra-grupais, cujo motor principal seria a vingança e captura de prisioneiros e a manutenção do status de
guerreiro atribuído às lideranças em torno das quais se formavam os grupos. Ver: KOSHIBA, Luiz. O
índio e a conquista portuguesa. São Paulo: Atual, 1994. FAUSTO, Carlos. Os Índios antes do Brasil. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 79.
179
MORAES, Antonio Carlos Robert. Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial
brasileiro no ‘longo’ século XVI. São Paulo: HUCITEC, 2000, p. 295.
103
social e espacial milenar indígena sofreu intensos processos de mudança para dar lugar
a uma nova situação que, no entanto, dependia desse alicerce indígena.
180
Diogo de Vasconcelos trata dessa questão da seguinte maneira: “Denominação geral, que se desse ao
território, nenhuma houve; eis que denominações gerais também faltaram; e nem os índios demoravam-se
nas regiões o tempo necessário para perpetuarem o nome de seus efêmeros reinos. Entretanto, como a
parte mais conhecida foi a limítrofe de São Paulo e pertencia à nação dos cataguá, o nome deles
generalizou-se para todo o sertão ao norte da Mantiqueira, e sem limites apontados sobre o interior do
continente. O nome Cataguá dado a princípio ao sertão serviu até 1710 para designar também as minas
dos Cataguases, inclusive o distrito das Minas Gerais. Antonil, no capítulo ‘Primeiro Descobridor’, diz:
‘Há poucos anos que se começaram a descobrir as Minas Gerais dos Cataguases’. E no da ‘Abundância
de Ouro’, diz: ‘Das Minas Gerais dos Cataguases as melhores e de mais rendimento foram até agora, as
do Ribeiro de Ouro Preto; as do Ribeiro de N. S. do Carmo; e as do Ribeiro de Bento Rodrigues. Também
o Rio das Velhas é abundante.’ Por estas citações vemos que não houve distinção alguma de distritos para
a denominação geral do país. Com o povoamento, o âmbito de Ouro Preto, Mariana e Sabará chamou-se
Distrito do Ouro, a fim de se não confundir com os demais distritos de outros produtos, como foi o dos
diamantes, e o dos couros, nome este que se dava à região pastoril. Em conseqüência dos conflitos e
discórdias de paulistas e emboabas, o governo régio destacou da capitania do Rio os distritos de São
Paulo e Minas para formarem uma nova capitania (alvará de 9 de novembro de 1709).”
VASCONCELOS, Diogo de. História antiga de Minas Gerais. 3ª Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p.
138-140.
181
Cataguases ou cataguás são termos genéricos utilizados pelos conquistadores para se referirem às
“perigosas” e desconhecidas tribos estabelecidas nos vales dos rios Grande e das Velhas. Em comum
essas tribos tinham a descendência e a língua do tronco Gê. Eram chamados genericamente de “tapuias”
pelos tupis-guaranis, como a todos os outros povos majoritariamente habitantes do interior da colônia,
que não compartilhavam do seu tronco linguístico. As terras habitadas por estes grupos indígenas bravios
foram chamadas pelos paulistas de “sertão dos cataguás” e, com os descobertos, de “minas dos
Cataguases”, tornando-se estas expressões muito comuns para os cronistas da época. O mesmo se aplica
aos outros nomes de tribos associadas aos territórios por elas habitados, como os Guaiases e Araxás.
104
indígenas. Inicia-se, assim, um longo processo de guerras de extermínio aos índios do
sertão.
“Escusado é dizer que a máxima parte das tribos tupi foram as primeiras que
desapareceram. As nações organizadas resistiram mais tempo. Dos ferozes
182
Quando falo em processo de extermínio me refiro ao extermínio voluntário, que se dava através do
assassinato de indígenas pelos colonos. Mas é preciso lembrar que a propagação de doenças transmitidas
pelos europeus, para as quais os índios não apresentavam defesas imunológicas também contribuiu
decisivamente para sua mortandade em massa. É impossível quantificar a extensão do despovoamento
provocado por essas situações em conjunto. “Quaisquer que tenham sido os dados reais, não pode haver
dúvida de que ocorreu uma tragédia demográfica de grande magnitude”, conforme afirma HEMMING,
John. “Os índios e a fronteira no Brasil colonial”. In: BETHELL Leslie (org.). História da América
Latina: América Latina colonial, 2ª ed. São Paulo: Edusp, 1998, vol. 2, p. 423-469.
105
restam os botocudos, a família decadente dos aimorés, e os puchichá em
pequeno número. A varíola nas tribos foi o princípio mais violento do exício.
183
VASCONCELOS, Diogo de. História antiga de Minas Gerais. 3ª Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974,
p. 136-137.
184
VASCONCELOS, op. cit., p. 137.
185
VASCONCELOS, op. cit., p. 137.
106
arraiais e vilas em Minas sugerindo, implicitamente, o seu desaparecimento, o que não
corresponde à realidade.
“No final do período colonial, os poucos índios que viviam sob o domínio
português eram criaturas patéticas no extrato mais baixo da sociedade, meio
aculturados, despojados da maioria das suas tradições e orgulho tribal, mas
totalmente incapazes de adaptar-se aos costumes europeus ou de
compreender qualquer dos pontos mais refinados da civilização européia.
Aquelas tribos que resolveram retira-se para o interior antes do avanço dos
portugueses, para evitar a destruição ou a absorção pelo Brasil português, não
eram mais que uma vaga ameaça numa fronteira distante.”186
186
HEMMING, John. Os índios e a fronteira no Brasil colonial. In: BETHELL Leslie (org.). História da
América Latina: América Latina colonial, 2ª ed. São Paulo: Edusp, 1998, vol. 2, p. 469.
187
Ver: ESPINDOLA, Haruf Salmen. Sertão do Rio Doce. Bauru: Edusc, 2005. RESENDE, Maria
Leônia Chaves de. “Minas dos Cataguases: Entradas e Bandeiras nos sertões do Eldorado”. Varia
Historia. Belo Horizonte: UFMG - Departamento de História, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, v. 33, 2005, p. 186-202. RESENDE, Maria Leônia Chaves de. “‘Brasis coloniales’: índios e
mestiços nas Minas Gerais Setecentistas”. In: RESENDE, M. E. e VILLALTA, L. C. As Minas
Setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. v. 1, p 221-251. LANGFUR, Hal e RESENDE, Maria
Leônia Chaves de. “Minas Expansionista, Minas mestiça: a resistência dos índios em Minas Gerais do
século do ouro”. Anais de História do Além-Mar. Lisboa, n.9, 2008. p. 78-103. MORAES, Antonio
Carlos Robert. As bases da formação territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no ‘longo’
século XVI. São Paulo: HUCITEC, 2000. MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e História no
Brasil. São Paulo: Annablume, 2005.
107
constituíram sim agentes da sua própria história quando não aceitavam a dominação e
guerreavam contra os colonizadores e mesmo quando, à força ou espontaneamente, se
uniram a estes últimos, passando a viver imersos na sociedade colonial.
188
VASCONCELOS, Diogo de. História antiga de Minas Gerais. 3ª Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974,
p. 138
189
Refiro-me aos filhos de pai e mãe indígena, independentemente da etnia. Na realidade sabemos que,
em se tratando da raça humana, nunca existiu uma “raça pura”. Mesmo os grupos étnicos evidenciam
processos de mestiçagem com seus pares mais próximos.
108
De acordo com o trabalho de pesquisa desenvolvido por Maria Leônia C. de
Resende190, fontes diversas demonstram que os índios na sociedade colonial
compunham um percentual entre 0,5 e 3,5 % da população. Depois de catequizados e
batizados com nomes cristãos esses índios passavam a ser tratados como mestiços e
muitas vezes, como já dito, eles mesmos assumiam essa situação social forjada para
escapar da discriminação. Contudo, a legislação da época era flácida, permitindo a
escravização de mestiços, no caso, quando estes procediam de linha matriarcal negra, e
os colonos se aproveitavam dessas brechas da lei, impingindo a escravidão também
sobre os indígenas. Quando perceberam essa armadilha arquitetada pelos colonos, os
índios passaram a acionar a justiça colonial para provar sua identidade indígena e
reclamar seu direito à condição jurídica de homens livres. Esta deve ter sido a primeira
situação de ressurgência étnica ocorrida no Brasil, processo contemporaneamente
chamado de “etnogênese”, no qual os indígenas instrumentalizaram a sua condição
étnica como mecanismo de luta pelo direito à liberdade, assegurado pela Lei da
Liberdade de 1755.
190
Ver: RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Minas dos Cataguases. “Entradas e Bandeiras nos sertões
do Eldorado”.Varia História. N° 33. Belo Horizonte: UFMG, janeiro de 2005, p. 186-202. RESENDE,
Maria Leônia Chaves de. “‘Brasis coloniales’: índios e mestiços nas Minas Gerais Setecentistas”. In:
RESENDE, M. E. e VILLALTA, L. C. As Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. v. 1, p
221-251. LANGFUR, Hal e RESENDE, Maria Leônia Chaves de. “Minas Expansionista, Minas mestiça:
a resistência dos índios em Minas Gerais do século do ouro”. Anais de História do Além-Mar. Lisboa,
n.9, 2008. p. 78-103. SIQUEIRA, Humberto. “Índios de Minas”. Jornal Estado de Minas, caderno Gerais,
19 de abril de 2008. A historiadora tem se dedicado especialmente à pesquisa da “inquisição indígena” –
denúncias contra os índios feitas ao Tribunal do Santo Ofício no Brasil – e também esses estudos
comprovam a resistência indígena na sociedade colonial, conforme pode ser visto nas seguintes
publicações: RESENDE, Maria Leônia Chaves de. “Devassas gentílicas: inquisição dos índios coloniais
nas Minas Gerais do século XVIII”. In: Maria Leônia Chaves de Resende; Sílvia Maria Jardim Brügger.
(Org.). Caminhos Gerais: Estudos históricos sobre Minas (sec. XVIII - XIX). 1 ed. São João del-Rei:
Editora da UFSJ, 2005, v. 1, p. 9-47. RESENDE, Maria Leônia Chaves de. “Inquisição indígena em
Minas Gerais no século XVIII”. Anais Eletrônicos do XV Encontro Regional de História (Anpuh - MG) e
Cadernos de resumo e programação XV Encontro Regional de História (Anpuh - MG), São João del-Rei.
UFSJ, 2006. RESENDE, Maria Leônia Chaves de. “Brasil, brasis: Os índios e a inquisição nos tempos de
Vieira”. Anais do IV Centenário do nascimento do Padre António Vieira: 1608-2008 Congresso
Internacional - ver, ouvir, falar: o grande teatro do mundo, Lisboa, 2009. RESENDE, Maria Leônia
Chaves de. “Terra Brasilis: Indios y Mestizos en la Inquisición Portuguesa (siglo XVIII)”. XIII Congreso
latinoamericano sobre religión y Etnicidad. Dialogo, Ruptura y Mediación en contextos religiosos, 2010,
Granada: Ed. da Universidad de Granada, 2010. p. 1-20.
109
Diante de tudo isso, conclui Resende: “Não é o silêncio dos documentos que
explica a ausência dos indígenas na história de Minas Gerais, mas o fato de os
historiadores não terem reconhecido essa presença no contexto urbano.”191
191
Declaração de Maria Leônia C. de Resende, conforme citada em SIQUEIRA, Humberto. Índios de
Minas. Jornal Estado de Minas, caderno Gerais, 19 de abril de 2008.
192
VENÂNCIO, Renato Pinto. “Antes das Minas: Fronteiras coloniais e populações indígenas”. In:
RESENDE, Maria Efigênia L. de; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais. As Minas
Setecentistas. Belo Horizonte: autêntica, 2007. v.1, p 100.
193
Ver PAIVA, Eduardo França. Povos das Minas no Século XVIII. Transcrição de palestra e debate do
Ciclo de Palestras Formação do Povo Mineiro. Belo Horizonte: Cad. Esc. Legisl., v. 11, n.16, 2009, p. 23-
55.
194
PAIVA, Eduardo França. “Bateias, Carumbés, Tabuleiros: mineração africana e mestiçagem no Novo
Mundo”. In ANASTASIA, Carla M. J. e PAIVA, Eduardo F. (orgs.) O trabalho mestiço: maneiras de
pensar e formas de viver – séc. XVI a XIX. São Paulo, 2002, p. 187-207.
110
de construção de um espaço, no caso, uma via de passagem, que se transforma de antiga
trilha indígena em caminho tomado pelo colono “europeu” e estruturado pela força do
negro.
Trecho remanescente do “Caminho dos Escravos” na região de Gouveia, Minas Gerais. Foto: Cristiano
Lima, 1998.
195
BOAS, Franz. 1920. In Antropologia Cultural. (Organização e tradução Celso Castro). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2004.
111
processos de hibridação, já que a própria noção de cultura deve ser considerada um
sistema dinâmico, cuja existência se deve tanto à criação interna quanto à relação
externa.”196
196
BARTOLOME, Miguel Alberto, “As Etnogêneses: velhos atores e novos papéis no cenário cultural e
político”. MANA 12(1), 2006, p 41.
197
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 2002, p.201.
198
Em Caminhos e Fronteiras, Sérgio Buarque de Holanda nos deixou um exemplo muito nítido nesse
sentido, quando se refere, à medicina colonial nos seguintes termos: “Não faltam, finalmente, aspectos de
nossa medicina rústica e caseira que dificilmente se poderiam filiar, seja a tradições europeias, seja a
hábitos indígenas. Aspectos surgidos mais provavelmente das próprias circunstâncias que presidiram ao
amálgama desses hábitos e tradições. A soma de elementos tão díspares gerou muitas vezes produtos
imprevistos e que em vão procuraríamos na cultura dos invasores ou na dos vários grupos indígenas. Tão
extensa e complexa foi a reunião desses elementos, que a rigor não se poderá dizer de nenhum dos
aspectos da arte de curar, tal como a praticam ainda hoje os sertanejos, que é puramente indígena (...) ou
puramente europeu” (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994, p. 78-79).
112
étnicas, que viveram e construíram de fato essa história, desde o período pré-colonial.
Convém à historiografia contemporânea estar atenta para não reproduzir a cegueira de
que padeceu boa parte de nossos estudos ao não enxergar a participação decisiva dos
indígenas na dinâmica da Minas colonial, nem mesmo no que eles deixaram de mais
concreto – os caminhos que desenharam a geografia mineira.
199
FAURE, Elie. A Arte Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 53.
113
Parte 2: Pedra
Grafismo rupestre na região do Camelinho, Serra do Espinhaço. Foto: Cristiano Lima, 2006.
114
A antiquíssima amizade entre alma e pedra é fundamental
para a história da humanidade. Uma é toda substância;
outra, imaterial. A pedra guardou para a posteridade o
registro das primeiras imagens da alma. A pintura rupestre
e os artefatos líticos são a certidão de nascimento da
imaginação.
(Roberto Gambini)
115
As comemorações pelo aniversário de “500 anos” do país parecem ter
excitado os ânimos e estimulado debates que, somados à inegável evolução da pesquisa
arqueológica “nacional”, questionaram ideias cristalizadas pela produção historiográfica
tradicional200. Vejamos o que têm a dizer algumas profissionais das ciências sociais a
respeito:
Para que a história seja bem contada, cada vez mais vozes têm-se levantado
para registrar que quando os portugueses aqui aportaram, o que houve foi
apenas o ‘contato’, o encontro de dois mundos: o mundo dito civilizado
europeu e uma cultura nativa milenar. Negligenciar tudo o que aconteceu
antes de 1500 representa, no mínimo, um bloqueio ao direito de informação.
200
Leia-se, tradicionalmente delineada pela perspectiva do europeu colonizador.
201
HETZEL, Bia; NEGREIROS, Silvia; GASPAR, Madu e GUIMARÃES, B. (orgs.). Pré-história
brasileira. Rio de Janeiro: Manati, 2007, p 20.
116
“cultura nacional”, que integra aspectos econômicos, políticos e sociais, entre outros,
mas falo também da paisagem geográfica – cenário e, por que não, “personagem” da
rica história vivida aqui.
Os painéis pintados e/ou gravados desde milênios atrás foram tratados pela
equipe de pesquisa como verdadeiros documentos de pedra, que podem efetivamente ser
“lidos” e interpretados, para contar parte importante da história da ocupação da região.
Constatamos que essa Minas antes de ser Minas é um espaço/tempo já marcado
profundamente pela presença de uma rica diversidade de sociedades indígenas, por
grupos humanos de variadas expressões culturais. Já estamos, portanto, pisando em
terreno histórico. As mensagens, executadas voluntariamente nas pedras marcam, de
maneira indiscutível, um processo de domesticação da paisagem e expressam a
intencionalidade desses povos em registrar, em comunicar, em deixar um legado. Não é
porque nossa ignorância atual quanto ao significado inerente aos signos rupestres não
permite que decifremos literalmente essas mensagens que podemos engessá-las no
rótulo de “pré-históricas”.
117
Alguns pesquisadores propõem a substituição do termo por outros mais adequados,
como, por exemplo, “história pré-colonial” ou mesmo “história antiga da América”.
Por outro lado, falar em História Antiga da América não significa, de modo
algum, transpor para cá o conceito de Antiguidade, é de uma outra História
Antiga que está se falando. Significa sim, romper conceitos como “pré-
história”, como “pré-colombiana”, significa entender que um processo
histórico já se desenvolvia neste continente antes da chegada do europeu e
que estes povos foram fundamentais em nossa formação histórica. Significa
dar o direito à História a estes povos.”203
203
SEDA, Paulo. Arqueologia e história indígena: por uma História Antiga da América. In: OLIVEIRA,
Ana Paula de P. Loures de. (org.). Arqueologia e Patrimônio de Minas Gerais. Juiz de Fora: Editar, 2007.
204
SEDA, op. cit.
118
Em outras palavras, chamar “pré-história” o período anterior à colonização
contribui para manter o mito etnocêntrico, de origem europeia, fundado na noção de que
as sociedades indígenas americanas seriam atrasadas ou pouco evoluídas, ao ponto de se
situarem “fora da história”, aproximando, de forma perigosa, a etno-história e/ou a
história indígena de um pensamento evolucionista que marcou a segunda metade do
século XIX, hoje em franca superação. Apesar do uso corrente, que consagrou a
expressão, seria preferível substituí-la por outras mais adequadas, considerando que
história da América começa muito antes de 1492.
119
Capítulo 4: Heranças pré-coloniais
205
O Boqueirão da Pedra Furada, no Piauí, escavado pela equipe da Drª Niège Guidon, está entre os
locais que forneceram estas supostas datações bastante recuadas, gerando polêmica internacional. Ver:
NEVES, Walter Alves; PILÓ, Luiz Beethoven. O Povo de Luzia – em busca dos primeiros americanos.
São Paulo: Globo, 2008, p. 79-82.
120
pesquisadores voltaram a trabalhar na região e, com a Missão Franco-brasileira206, a
partir da década de 1970, as pesquisas ganharam sistematização e continuidade.
206
Falarei mais a respeito da Missão Franco-brasileira adiante. Ver também: BAETA, Alenice Motta.
“Arte Rupestre do Centro Mineiro: A região Arqueológica de Lagoa Santa”. LPH – Revista de História,
V.2, n° 1, 1991. PROUS, André; BAETA, Alenice; RUBBIOLI, Ezio. O patrimônio arqueológico da
região de Matozinhos: conhecer para proteger. Belo Horizonte: Ed do autor, 2003. NEVES, Walter
Alves; PILÓ, Luiz Beethoven. O Povo de Luzia – em busca dos primeiros americanos. São Paulo: Globo,
2008.
207
Esta teoria defende a ideia de que a primeira população humana no continente - a “Cultura Clovis” -
teria se instalado na América do Norte por volta de 11,4 mil anos atrás. O “Modelo Clovis-first”, como
seria de se esperar, é defendido majoritariamente pela comunidade arqueológica norte-americana, e hoje é
esbatido pelo avanço das pesquisas arqueológicas em diversas outras regiões da América, como na Terra
do Fogo, na Patagônia, no norte da Venezuela, no Sul do Chile (sítio Monte Verde), na Colômbia (sítios
El Abra e Tibitó), na Argentina (sítio Piedra Museo), na Amazônia brasileira (abrigo Pedra Pintada, no
Pará), em Mato Grosso (abrigo Santa Elina), no Piauí (Boqueirão da Pedra Furada) e, por fim, em Minas
Gerais. A partir de tantas evidências mais antigas descobertas em outras áreas, a Cultura Clovis seria já
um episódio secundário da ocupação territorial da América. Um excelente resumo sobre esse debate pode
ser encontrado em NEVES, Walter Alves; PILÓ, Luiz Beethoven. O Povo de Luzia – em busca dos
primeiros americanos. São Paulo: Globo, 2008, p. 65-86.
208
A.P. quer dizer “antes do presente”, tendo o ano de 1950 como referência do tempo presente. É uma
forma padrão na arqueologia para definição de temporalidade.
121
estimulando novos estudos e teorizações sobre o processo migratório do homem para a
América, como os desenvolvidos por Walter Alves Neves e a equipe sediada no
Museu209.
O que se sabe sobre o “homem americano” de antes de dez mil anos atrás210
é que ele teria uma morfologia mais próxima dos “negroides”211 que dos
“mongoloides”212, ancestrais atestados da maioria dos grupos indígenas atuais. Há
achados de indivíduos semelhantes ao “povo de Lagoa Santa” em outras regiões do
Brasil, como no estado da Bahia, e da América do Sul (na Colômbia, por exemplo).
Muito se especula se essa “raça negroide” teria sido extinta, havendo hipóteses de uma
persistência racial isolada213, de “derrota” por assimilação genética frente aos
209
Maiores informações sobre a antiguidade do homem em território mineiro e sobre “o povo de Luzia”
podem ser encontradas em: FUNARI, Pedro Paulo; NOELLI, Francisco Silva. Pré-história do Brasil. São
Paulo: Contexto, 2002 (Ed. 2005). NEVES, Walter Alves. “A primeira descoberta da América”. Ciência
Hoje, n° 15, 1992, p. 38-48. NEVES, Walter Alves; PILÓ, Luiz Beethoven. O Povo de Luzia – em busca
dos primeiros americanos. São Paulo: Globo, 2008. PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília:
Ed. UNB, 1992. PROUS, André. “As Primeiras Populações do Estado de Minas Gerais”, In: Pré-história
da Terra Brasilis. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000, p. 101-114. PROUS, André; BAETA, Alenice;
RUBBIOLI, Ezio. O patrimônio arqueológico da região de Matozinhos: conhecer para proteger. Belo
Horizonte: Ed do autor, 2003.
210
“Não há nenhuma figura rupestre que seja comprovadamente datada desta época – nem em Lagoa
Santa, nem na Serra do Cipó. Obviamente, isto não significa que os ‘homens de Lagoa Santa’ não sabiam
pintar; (...) [eles] produziam tintas vermelhas para colorir as covas e sepultamentos. Podiam tanto ter
pintado suportes (corpo humano, entrecasca ou couro), quanto desenhado algumas das inúmeras pinturas
rupestres que não foram ainda datadas. Mas o fato é que nenhum dos sítios datados desta época (...)
apresenta grafismos pintados ou gravados nas suas paredes” (PROUS, André; BAETA, Alenice;
RUBBIOLI, Ezio. O patrimônio arqueológico da região de Matozinhos: conhecer para proteger. Belo
Horizonte: Ed do autor, 2003). Dessa maneira, pelo que se sabe até os dias de hoje, essa prática cultural
seria um marcador da chegada e proliferação de uma segunda grande leva populacional, mongoloide, na
América.
211
O termo “negroide”, adotado aqui, é uma convenção usada para se referir à morfologia aproximada
dos negros atuais: neurocrânio alongado e estreito, bem como face estreita, baixa e projetada e narinas
dilatadas - características das populações da Austrália e África, compartilhadas com a “raça de Lagoa
Santa” (NEVES, Walter Alves; PILÓ, Luiz Beethoven. O Povo de Luzia – em busca dos primeiros
americanos. São Paulo: Globo, 2008). Na verdade seria mais apropriado utilizar a expressão “austro-
melanésio”, uma vez que, pelas teorias antropológicas recentemente propostas, o “povo de Luzia” seria
mesmo aparentado aos ancestrais das populações australianas, que teriam habitado a Ásia continental e
migrado tanto para o norte (Beríngia e América) quanto para o sul (Austrália), antes de serem
substituídos, na Ásia, pelas atuais raças amarelas. (http://revista.fapemig.br/materia.php?id=175, acessado
em agosto de 2011).
212
Os traços físicos que caracterizam os mongoloides são os encontrados nas “raças amarelas”, ou seja,
nos asiáticos e na maioria dos índios atuais: neurocrânios curtos e largos associados a faces altas, largas e
retraídas, maçãs do rosto dilatadas e olhos amendoados.
213
Walter Neves refere-se a pesquisas (das quais ele participou) realizadas sobre a antropologia física dos
grupos botocudo de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo, que guardariam afinidades com os não
mongoloides. Alguns autores destacam que poderiam mesmo existir tribos ainda vivas no país,
122
mongoloides e, depois, aos europeus ou mesmo de dizimação através de combate físico.
O fato é que essa primeira vaga humana que iniciou a exploração e ocupação territorial
de “Minas”, e que já utilizava os abrigos naturais das rochas para se proteger e enterrar
seus mortos, cedeu espaço a novos grupos humanos de compleição mongoloide que
penetraram e dominaram, pouco a pouco, a região. Esse processo, segundo evidências
arqueológicas, teve início há aproximadamente oito mil anos, quando começaram a
ocorrer transformações culturais na relação dos homens com o meio214.
descendentes dos primeiros americanos, que não teriam recebido aporte genético significativo dos
mongoloides. “Nesta última categoria destacam-se os Nhambiquara, do Mato Grosso, e os Kaingang, do
Sul do Brasil, povos tradicionalmente caçadores-coletores. Mas essas conclusões estão pautadas sobre um
número muito pequeno de crânios, o que torna a associação desses povos com os paleoíndios
extremamente questionável” (NEVES, Walter Alves; PILÓ, Luiz Beethoven. O Povo de Luzia – em
busca dos primeiros americanos. São Paulo: Globo, 2008). Informações gerais sobre outras pesquisas que
relacionam os botocudo aos paleoíndios de Lagoa Santa podem ser encontradas também em
BERNARDO, Danilo Vicensotto. “O Nome da tribo”. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 6,
n° 71. Rio de Janeiro: SABIN, 2011, p 34-35.
214
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992; PROUS, André; BAETA, Alenice;
RUBBIOLI, Ezio. O patrimônio arqueológico da região de Matozinhos: conhecer para proteger. Belo
Horizonte: Ed do autor, 2003.
123
dinâmico de diversas sociedades consolidadas e “extintas”215 ao largo do extenso
período pré-colonial.
215
Não parece correto falar em extinção total de uma determinada cultura. O que normalmente ocorre é
um processo de desestruturação e fragmentação de grupos culturais que, ainda assim, deixam um legado
cultural e mesmo genético que é apropriado por novos grupos que se consolidam. Dessa maneira traços
do grupo aparentemente extinto quase sempre se preservam indefinidamente, ainda que reelaborados e
transformados pelo novo contexto.
216
Betty Meggers fala em evidências conhecidas de domesticação de plantas no planalto mexicano entre
cerca de 7.000 a 4.000 a. C. (MEGGERS, Betty J. América Pré-histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979). Já Walter Neves coloca que a agricultura teria surgido no “Velho Mundo” por volta de 10.000
anos atrás e na América, de forma independente ou autóctone, “pouco mais tarde”, só se generalizando
pelo continente nos últimos 4.000 anos (NEVES, Walter Alves; PILÓ, Luiz Beethoven. O Povo de Luzia
– em busca dos primeiros americanos. São Paulo: Globo, 2008).
217
Existe uma diferença crucial entre itinerância e nomadismo. No nomadismo os grupos vagam a exmo,
deslocando-se sempre sem um destino, ou seja, falta-lhes uma “noção de territorialidade”. O termo
“itinerância” é útil para diferenciar e caracterizar o modo de vida dos americanos pretéritos, uma vez que
estes grupos se deslocavam dentro de uma determinada macrorregião já conhecida e muito bem mapeada,
seguindo uma lógica de acesso aos recursos naturais sazonalmente disponíveis e fundamentais para a
sobrevivência dos grupos “detentores” daqueles territórios. O conhecimento detalhado do meio é o bem
mais precioso de um grupo de caçadores-coletores itinerantes, que procura, inclusive, vigiar seu território
para evitar que outros grupos se apropriem dos recursos ali encontrados. Eles também estabelecem uma
“relação mítica” com suas áreas de trânsito, criando marcos, construindo a paisagem, “simbolizando”
seus territórios – relação esta construída e herdada de tempos imemoriais (Ver NEVES, Walter Alves;
PILÓ, Luiz Beethoven. O Povo de Luzia – em busca dos primeiros americanos. São Paulo: Globo, 2008).
124
para percorrê-los218. O estudo dessas antigas vias de comunicação é importante nas
investigações arqueológicas, por se tratar de evidências que permitem reconstruir
múltiplos aspectos relacionados com o desenvolvimento social e a interação cultural
entre povos pretéritos. Senderos, caminhos e rotas são expressões de formas pelas quais
os grupos humanos organizaram o espaço social a partir do geográfico, constituindo
autênticos veículos para o intercâmbio. Por essas vias trafegavam pessoas que, por sua
vez, eram portadoras de objetos e tradições, de bens e ideias, todos esses articuladores
de processos históricos219.
218
MARTÍNEZ, Bernardo Garcia. “Veredas y caminos en tiempos del automóvil”. Arqueología
Mexicana. México: Editorial Raices S.A. de C.V./ Instituto Nacional de Antropologia e Historia. Volume
XIV, n° 81, Rutas y Caminos en el México Prehispánico, 2006, p.66-69.
219
DIAZ, Edith Ortiz. “Caminos y rutas de intercambio prehispánico”. Arqueología Mexicana. México:
Editorial Raices S.A. de C.V./ Instituto Nacional de Antropologia e Historia. Volume XIV, n° 81, Rutas y
Caminos en el México Prehispánico, 2006, p. 37-42. FOURNIER, Patrícia. “Arqueología de los caminos
prehispánicos y coloniales”. Arqueología Mexicana. México: Editorial Raices S.A. de C.V./ Instituto
Nacional de Antropologia e Historia. Volume XIV, n° 81, Rutas y Caminos en el México Prehispánico,
2006, p.26-32.
125
maneira como ocorreu em todos os rincões do planeta os grupos culturais que viveram
no território brasileiro também foram agentes do surgimento das primeiras
manifestações caracteristicamente “artísticas” da nossa espécie. Ao explorarem a
paisagem rupestre, que lhes oferecia alimento, abrigo e proteção, constituindo elemento
fundamental na sua organização social e cosmológica, deixaram ali registros
enigmáticos e encantadores do seu universo mental, simbólico e cultural na forma de
grafismos rupestres, que participaram, desde então, da construção dessa paisagem que
hoje é nosso objeto de estudo.
126
4.2 Arte Rupestre – conceitos, interpretações e abordagens
No caso das pinturas, é provável que muitas tintas utilizadas tenham sido
preparadas com pigmentos vegetais221 mas devido à sua constituição orgânica, estas
tintas teriam desaparecido rapidamente. Mesmo alguns pigmentos minerais, como as
argilas brancas, que se desprendem facilmente da rocha, não se conservam por muito
tempo. Sendo assim, aceitava-se a ideia de que a maioria das pinturas que ainda vemos
teria sido produzida com gorduras vegetais e/ou animais, acrescidas de pigmentos
minerais222; por exemplo, o dióxido de manganês, que fornecia uma cor marrom escura,
quase preta e óxidos de ferro, que proporcionavam diversos tons de vermelho, amarelo e
ocre223. Entretanto, com a evolução das técnicas de análise físico-química de materiais
arqueológicos, sabe-se hoje que as tintas usadas nas pinturas remanescentes têm uma
composição basicamente mineral, ou seja, apresentam muito raramente, e apenas em
poucos casos, algum vestígio orgânico. Logo, aventam-se duas hipóteses: ou foram
220
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992. GASPAR, Madu. A Arte Rupestre
no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003.
221
Vermelho do urucum, preto azulado do jenipapo, entre outros pigmentos.
222
PROUS, André; BAETA, Alenice; RUBBIOLI, Ezio. O patrimônio arqueológico da região de
Matozinhos: conhecer para proteger. Belo Horizonte: Ed do autor, 2003. PROUS, André. Arte Pré-
histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
223
“Ambos os elementos são facilmente encontrados nas crostas lateríticas e couraças ferruginosas,
comuns em ambientes tropicais” (PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed.
C/Arte, 2007).
127
preparadas apenas a partir de substâncias de origem mineral ou o material orgânico
(vegetal e animal) supostamente presente nessas tintas se perdeu definitivamente.
224
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
225
PROUS, op. cit.
128
resultando num acabamento mais liso e eventualmente brilhante. Muitas gravuras
podem também ter sido pintadas, como fica evidente em algumas ocorrências que
preservaram tintas nos sulcos gravados. Entretanto, na maioria dos sítios a céu aberto
esse acabamento em pintura desapareceu em razão do intemperismo.
É importante que fique explícito que os painéis de arte rupestre que vemos
hoje são apenas parte do que foi construído originalmente pelos grupos pretéritos.
Diversos agentes naturais (chuva, sol, vento, ação de insetos, fungos e liquens que
utilizam os suportes para viver, entre outros) e a própria atuação antrópica (destruição
de suportes, vandalismo...) provocaram uma gradual e inevitável perda de conjuntos de
grafismos. Como destaca Anne-Marie Pessis, vê-los ainda hoje é um privilégio, e o
trabalho do arqueólogo é recuperar esse produto gráfico final e reconstruir o perfil
cultural dos grupos que foram os autores226.
226
PESSIS, Anne-Marie. “A arte de ser humano”. Nossa História. Agosto/2005.
227
GASPAR, Madu. A Arte Rupestre no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003.
228
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
129
natural229. Seguindo esse raciocínio, a arte rupestre precisa ser estudada em sua
totalidade. Sua pesquisa não pode privilegiar a análise artística, negligenciando aqueles
grafismos considerados “não bonitos”, julgando-os primitivos em termos estéticos,
quando seus autores estariam, na verdade, menos preocupados com a beleza das
representações do que com o real sentido das mesmas para sua sociedade.
229
GASPAR, Madu. A Arte Rupestre no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003. PESSIS, Anne-
Marie. “A transmissão do saber na arte rupestre”. In: Antes: História da Pré-história. Rio de Janeiro:
MINC/Centro Cultural Banco do Brasil, 2004, p. 142-165. PROUS, André. Arqueologia Brasileira.
Brasília: Ed. UNB, 1992.
230
PESSIS, Anne-Marie. A transmissão do saber na arte rupestre, In: Antes: História da Pré-história. Rio
de Janeiro: MINC/Centro Cultural Banco do Brasil, 2004, p. 142-165.
231
GASPAR, Madu. A Arte Rupestre no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003.
232
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
130
Ainda assim muitas das metodologias e abordagens usadas na Europa se
mantêm como referência central nos estudos em outras áreas do mundo, em função,
principalmente, das origens e formação dos pesquisadores.
“(...) não existe uma arte pré-histórica, mas muitas. Não há uma evolução
linear da arte primitiva, mas sucessão de tendências múltiplas, por vezes
mantendo-se certas tradições, por vezes ocorrendo rupturas completas. Desta
forma, nenhuma chave permitiria interpretar todas as artes para as quais não
dispomos de informações escritas ou orais.”234
233
PROUS, op. cit.
234
PROUS, op. cit.
131
pesquisas ganharam impulso em Minas Gerais235 e no Piauí e logo surgiram trabalhos
em outros estados, como Goiás (Schmitz e Moehlecke, Simonsen, Mendonça de Souza,
Mills), Mato Grosso (D. Vialou) e estados do nordeste (Gabriela Martin, Ruth de
Almeida). Capitaneadas por nomes como Annette Laming-Emperaire, André Prous
(Minas Gerais) e Niède Guidon (Piauí), as pesquisas da Missão Francesa procuraram
mapear os conjuntos rupestres brasileiros observando e comparando as regularidades e
singularidades entre os painéis. A partir desses primeiros esforços esboçou-se um
quadro geral preliminar que permitiu determinar algumas das grandes unidades
estilísticas regionais da arte rupestre brasileira.
235
As pesquisas da Missão Arqueológica Francesa com a arte rupestre brasileira começaram em 1971 (em
Minas Gerais) e tinham por objetivos a determinação estilística cronogeográfica, a caracterização dos
temas e composições gráficas, e propostas de interpretação da arte rupestre, através das caracterizações
próprias dos sítios através da iconografia e mitologia indígenas (LAMING-EMPERAIRE, 1974, apud
RIBEIRO, Loredana. “Repensando a tradição: a variabilidade estilística na arte rupestre do período
intermediário de representações no alto-médio rio São Francisco”. Revista do Museu de Arqueologia e
Etnologia. N° 17. São Paulo: MAE/USP, 2007, p. 127-147).
236
Conforme citado em GASPAR, Madu. A Arte Rupestre no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
2003.
237
RIBEIRO, op. cit., p. 127-147.
132
Pressupunha-se que, através da análise do caráter estético ou formal das
figuras rupestres, seria possível, por exemplo, hipotetizar a dispersão, a localização
geográfica e as rotas de migração dos diversos grupos que as produziram, bem como os
contatos ou sobreposições culturais, evidenciados na semelhança e/ou contraste
estilístico dos grafismos.
238
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992. GASPAR, Madu. A Arte Rupestre
no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003.
133
Mapa (editado em cores) contendo algumas das mais representativas Tradições da arte rupestre brasileira (fonte:
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992).
Madu Gaspar pondera que esse mapa preparado por Prous fornece uma boa
ideia da distribuição espacial das várias tradições de arte rupestre no território brasileiro,
destacando o fato de que muitas regiões ainda não foram alvo de pesquisas sistemáticas,
o que permite supor que as manifestações rupestres sejam muito mais diversificadas e
fascinantes do que se imagina239.
239
GASPAR, op. cit.
134
deve resultar um panorama bem mais completo e bastante ilustrativo da complexidade
cultural desse período pré-colonial brasileiro.
240
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
135
1) Determinações estilísticas – que fornecerão, numa fase mais avançada,
meios para comparações e estabelecimento das características dos vários complexos
regionais que ocorrem em todo o país;
241
GASPAR, Madu. A Arte Rupestre no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003. PESSIS, Anne-
Marie. “A transmissão do saber na arte rupestre”, In: Antes: História da Pré-história. Rio de Janeiro:
MINC/Centro Cultural Banco do Brasil, 2004, p. 142-165.
136
Maria Beltrão na região de Central (BA), que tenta relacionar os grafismos rupestres
com representações de fenômenos celestes.
242
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992.
243
Registros complementares são aqueles conjuntos gráficos e/ou figuras que observamos hoje como
resultado de momentos diferentes de execução, ou seja, são grafismos reutilizados. Tratando do acervo
gráfico da Lapa do Gigante, em Montalvânia (MG), Loredana Ribeiro esclarece situações das quais
surgem esse tipo de resultado gráfico:
“As interferências provocadas por reutilização de grafismos anteriores estão sendo identificadas como
reforço, retoque e reinterpretação, termos que referem-se, obviamente, a abstrações do pré-historiador.
Os reforços, refrescamento do contorno da figura ou de seu preenchimento, são tidos como reafirmação
do significado através da restauração do significante. Permanecem inalteradas forma e, provavelmente,
conteúdo.
Os retoques, refrescamento parcial da figura, podem ou não alterar o significado do grafismo, já que o
significante sofrerá uma interferência parcial. Pode corresponder a uma modificação de conteúdo,
impossível de ser determinado.
As reinterpretações, utilização de grafismos para compor nova figura, adulteram o significante original
transformado-o em outro, dando-lhe uma nova significação. A modificação alteraria ambos, forma e
conteúdo.
Os reforços e retoques podem ser um ‘complemento’, feito logo após a elaboração da figura e cuja função
poderia ser tanto a de ressaltar a figura ou o tema no conjunto do sítio, quanto de corrigi-la ou completá-
la. Mas também podem ser resultado de uma interferência não imediata sobre o grafismo, pelo mesmo
autor ou por outra pessoa ou grupo que não os originais. Neste caso, podem indicar tanto a reutilização do
espaço pelo mesmo grupo cultural responsável pelo grafismo original quanto a presença de outro grupo
137
criar representações ou “estilos” diferentes em tempos e lugares diferentes. Dessa
maneira há que se ter um cuidado minucioso no estudo desses registros gráficos245.
que partilha ou tem acesso ao significado da figura. Em conformação com o significado do grafismo, os
reforços e retoques refletiriam sua atualização ou reafirmação.
Já as reinterpretações podem espelhar, através da ressignificação, uma ruptura cultural (negação) ou a
ausência de significado do tema para o novo grupo (neutralidade). Um grafismo reinterpretado pode estar
afirmando um novo signo sobre um antigo ou, simplesmente, ser fruto de um ‘aproveitamento’ de formas
preexistentes” [PROUS, André e RIBEIRO, Loredana (orgs.) Arqueologia do Alto Médio São Francisco.
Tomo 1. Região de Montalvânia. Arquivos do Museu de História Natural. Vol. XVII/XVIII. Belo
Horizonte: UFMG, 1996/7].
244
Registros substitutivos são caracterizados pela intencionalidade de apagar os grafismos (significantes)
anteriores, “liberando” o suporte para intervenções mais recentes, que expressam novos valores e
significados, próprios, supõem-se, de um novo grupo cultural que venha a reutilizar o espaço. Nesses
casos acontece, por exemplo, de os grafismos antigos serem cobertos por uma camada de tinta, ou mesmo
raspados.
245
VITRAL, José R. C. Pinturas Rupestres no Alto Rio Grande – Toca do Índio. Monografia –
Universidade Federal de São João del-Rei, 2008. (mimeo).
246
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
247
ISNARDIS, Andrei. Entre as Pedras. As ocupações pré-históricas recentes e os grafismos rupestres
da região de Diamantina, Minas Gerais. Tese de doutoramento. São Paulo: Museu de Arqueologia e
Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP), 2009.
138
“Desta forma, não sabemos com certeza como interpretar a extensão
geográfica das tradições (seriam o resultado de uma migração de pessoas, da
expansão de ideologias, ou uma combinação dos dois processos?), nem a
substituição de uma por outra. Seu ‘reconhecimento’ apenas abre pistas para
as interpretações e nossas classificações podem se esgotar com o progresso
da pesquisa, levando a novas propostas: as ‘tradições’ não existem em si,
são apenas hipóteses de trabalho, embora elas apontem características
inquestionáveis.”248
248
PROUS, op. cit.
249
RIBEIRO, Loredana. “Repensando a tradição: a variabilidade estilística na arte rupestre do período
intermediário de representações no alto-médio rio São Francisco”. Revista do Museu de Arqueologia e
Etnologia. N° 17. São Paulo: MAE/USP, 2007, p. 127-147.
139
em uso corrente na comunidade quando nasce o indivíduo, e permanecendo após sua
morte. Esse sistema simbólico seria constantemente atualizado com periódicas
modificações das quais o indivíduo poderia ou não participar. Nessa concepção há mais
espaço para a criação individual do novo, de novas expressões ou padrões, embora estes
sejam sempre submetidos a um sistema simbólico público, compartilhado
250
socialmente .
250
RIBEIRO, op. cit., p. 127-147.
251
RIBEIRO, op. cit., p. 127-147.
252
RIBEIRO, op. cit., p. 143.
253
RIBEIRO, op. cit., p. 127-147.
140
Do ponto de vista da arqueologia da paisagem – corrente arqueológica que
extrapola as descrições e tipologias dos motivos usados pelos artistas rupestres,
priorizando os aspectos socioculturais e a participação dos grafismos na construção das
paisagens nas quais eles se inserem – Andrés Troncoso Meléndez254 fala sobre as
possibilidades de explorar o estilo na arte rupestre, ressaltando que diversos autores que
trabalham o tema preferiram focar aspectos usuais, ou pragmáticos, supostamente
associados ao estilo, escapando, assim, da sua definição.
254
TRONCOSO MELÉNDEZ, Andrés. Stilo, arte rupestre y sociedad em la zona central de Chile.
Complutum, 13, 2002, p.135-153. (mimeog.).
255
TRONCOSO MELÉNDEZ, op. cit., p.138. (tradução livre do autor).
141
mesmo que numa lógica de inovação domesticada pelo mesmo sistema de saber-poder
que regula a produção”256.
Troncoso postula:
256
TRONCOSO MELÉNDEZ, op. cit., p.138. (tradução livre do autor).
257
TRONCOSO MELÉNDEZ, op. cit., p.139. (tradução livre do autor).
258
Ver: RIBEIRO, Loredana. “Repensando a tradição: a variabilidade estilística na arte rupestre do
período intermediário de representações no alto-médio rio São Francisco”. Revista do Museu de
Arqueologia e Etnologia. N° 17. São Paulo: MAE/USP, 2007, p. 127-147. LINKE, Vanessa. Paisagem
dos sítios de arte rupestre da região de Diamantina. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG,
2008. ISNARDIS, Andrei. Entre as Pedras. As ocupações pré-históricas recentes e os grafismos
rupestres da região de Diamantina, Minas Gerais. Tese de doutoramento. São Paulo: Museu de
Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP), 2009. ISNARDIS, Andrei e
LINKE, Vanessa. “Pedras Pintadas, Paisagens Construídas: A Integração de Elementos Culturalmente
Arquitetados na transformação e manutenção da paisagem”. Revista de Arqueologia. Vol 23, n° 1, p. 42-
59. São Paulo: USP/Sociedade Arqueologia Brasileira. Julho de 2010. (mimeog.). FAGUNDES, Marcelo;
PIUZANA MUCIDA, Danielle e MORAIS, Marcelino Santos. “Paisagens Pré-históricas – O Patrimônio
Arqueológico no Alto Jequitinhonha, Brasil”. Anais do Congresso Rotas do Patrimônio. Diamantina,
2010. (mimeog.).
142
usos da paisagem, ou seja, para chegar a processos de construção da paisagem em
foco259.
259
ISNARDIS, Andrei e LINKE, Vanessa. “Pedras Pintadas, Paisagens Construídas: A Integração de
Elementos Culturalmente Arquitetados na transformação e manutenção da paisagem”. Revista de
Arqueologia. Vol 23, n° 1, p. 42-59. São Paulo: USP/Sociedade Arqueologia Brasileira. Julho de 2010.
(mimeog.).
260
LINKE, Vanessa. Paisagem dos sítios de arte rupestre da região de Diamantina. Dissertação de
Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p.23.
261
ISNARDIS e LINKE, op. cit., p. 45-46.
143
inequivocamente a ideia de que padrões gráficos distintos seriam expressões de grupos
culturais também distintos. Analisando o registro rupestre do alto-médio vale do Rio
São Francisco, a autora propõe reorganizar expressões gráficas anteriormente atribuídas
a dois conjuntos diferentes – Tradição São Francisco e Complexo Montalvânia262 –
associando-os num mesmo sistema de representações visuais, baseando-se em uma
argumentação que extrapola a análise cronoestilística, recorrendo especialmente à
espacialização dos grafismos na paisagem.
262
A seguir apresentarei caracterizações desses conjuntos gráficos.
263
RIBEIRO, Loredana. Repensando a tradição: a variabilidade estilística na arte rupestre do período
intermediário de representações no alto-médio rio São Francisco. Revista do Museu de Arqueologia e
Etnologia. N° 17. São Paulo: MAE/USP, 2007, p. 144.
264
RIBEIRO, op. cit.
144
Enfim, as milhares de figuras identificadas tornam possível, a partir de
variados pontos de vista, pensar a “história da pré-história”. E, pelo que se percebe
através do que foi dito até aqui, há muito que descobrir e teorizar acerca do hábito
humano de executar símbolos nas rochas. No caso do estudo da arte rupestre brasileira,
o cenário atual parece apontar para “a passagem de uma fase pioneira, marcada
principalmente por ensaios pouco sistemáticos e/ou simples descrições, para uma fase
de produção de trabalhos com propósitos mais interpretativos”265.
É por isso que, no próximo tópico, sigo o caminho aberto por esses
pioneiros, traçando, em linhas gerais, uma exposição sobre a diversidade estilística já
descrita no território brasileiro, introduzindo, a seguir, a nossa pesquisa nesse cenário.
265
RIBEIRO, Loredana e PROUS, André. “O Setor de Arqueologia da UFMG e as pesquisas sobre arte
rupestre brasileira em grandes linhas: um balanço crítico”. In: OLIVEIRA, Ana Paula de Paula Loures de
(Org.). Arqueologia e Patrimônio de Minas Gerais. Juiz de Fora: Editar, 2007, p. 33-50.
145
4.3 Um panorama da arte rupestre brasileira
A maior parte das ocorrências da arte parietal até hoje identificada no Brasil
concentra-se no Planalto Central e na região Nordeste, áreas favorecidas pela existência
de grandes maciços calcários, quartzíticos ou areníticos que proporcionam abrigos
naturais e amplos suportes adequados para receber intervenções na forma de grafismos.
Mas os matacões e abrigos do sul e da Amazônia também apresentam variadas
expressões de arte rupestre.
266
Dessa maneira não abordarei aqui a totalidade de tradições e estilos já descritos no país, o que seria
uma tarefa impossível de ser executada no prazo estipulado para esta pesquisa.
267
Ver: PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992. PROUS, André; BAETA,
Alenice; RUBBIOLI, Ezio. O patrimônio arqueológico da região de Matozinhos: conhecer para
proteger. Belo Horizonte: Ed do autor, 2003. PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo
Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
146
Tradição Meridional: Ocorre no sul do país e é composta por gravuras de
temática pobre – figuras “tridátilas”, “rastros” de aves e outros animais, “cupules”268 –
encontradas em blocos isolados de arenito, matacões e abrigos naturais. Provavelmente
bastante recentes (menos de 2.000 anos), essas manifestações aparecem, sobretudo, no
Rio Grande do Sul, prolongando-se até a Argentina, ao sul; pelos vales dos rios Paraná e
Paraguai, a oeste, alcançando a Bolívia meridional; e ao norte, ao longo do rio Araguaia,
chegando até o estado de Goiás.
Grafismos da T. Meridional (Fonte: PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992).
268
“Cupules” são pequenas depressões hemisféricas, em forma de meia-calota, ou semicírculo gravadas
nas pedras.
269
Utilizo aqui o termo “geométrico”, como se usa correntemente nos estudos de arte rupestre, para fazer
referência aos grafismos que nos parecem não-figurativos, os quais diversos outros autores chamam,
também, de “grafismos puros”.
270
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992
147
Desenhos da T. Litorânea (Fonte: PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992).
271
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992.
148
(Fonte: PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992).
149
menos, 7.000 anos AP272. Os sítios apresentam grafismos pintados, caracterizados pela
presença quantitativamente marcante de representações zoomórficas, sobretudo de
cervídeos, na cor vermelha e mais raramente em preto, amarelo e branco.
Grafismos da T. Planalto (fonte: PROUS, André; BAETA, Alenice; RUBBIOLI, Ezio. O patrimônio arqueológico da
região de Matozinhos: conhecer para proteger. Belo Horizonte: Ed do autor, 2003).
272
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992. PROUS, André. Arte Pré-histórica
do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
150
Grafismos da T. Planalto (Fonte: PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992).
273
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
274
“(...) no Peruaçu a Tradição Nordeste encontra-se entre os conjuntos mais ‘recentes’, posterior à
unidade estilística Piolho de Urubu e sem relações claras com a unidade estilística Desenhos” [RIBEIRO,
Loredana e ISNARDIS, Andrei. “Conjuntos Gráficos do Alto-Médio São Francisco (Vale do Peruaçu e
Montalvânia)”. In: PROUS, André e RIBEIRO, Loredana (orgs.) Arqueologia do Alto Médio São
Francisco. Tomo 1. Região de Montalvânia. Arquivos do Museu de História Natural. Vol. XVII/XVIII.
Belo Horizonte: UFMG, 1996/7].
152
A sexualidade e a reprodução são temas bastante representados em certos
estilos da tradição. André Prous propõe que, talvez, “conjuntos reunidos sob a
denominação geral de tradição Nordeste merecessem ser divididos em várias tradições.
Isto seria particularmente justificado para o estilo Seridó, que apresenta temáticas e
técnicas muito originais e ao qual se atribui uma idade bem mais recente que as demais
unidades estilísticas deste complexo gráfico”275.
Tradição Nordeste em Minas Gerais (Fonte: PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed.
UNB, 1992).
275
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
153
Tradição Nordeste (Fonte: PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992).
276
Estudada por A. Aguiar e G. Martins (PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte:
Ed. C/Arte, 2007).
154
brasileiro, especialmente no norte e centro de Minas Gerais e sul de Goiás, quando
surge posteriormente, associada a outras tradições (Planalto e São Francisco), dividindo
os mesmos painéis, sendo, por vezes, difícil separar seus grafismos dos demais. É
caracterizada pelas grandes figuras, especialmente biomorfos estáticos, grosseiramente
desenhados, que dominam os painéis e podem ser rodeados por outros grafismos
menores (sinais “geométricos”, conjuntos de pontos, figuras “carimbadas”, impressões
de mãos...). Geralmente as figuras são monocrômicas e toscamente desenhadas, mas
apresentam detalhes anatômicos – os antropomorfos, por exemplo, podem ter a cabeça
radiada, pés e mãos com dedos representados, joelhos e cotovelos marcados por
círculos.
Decalque de grafismos da T. Agreste em Diamantina, Minas Gerais. Fonte: ISNARDIS, Andrei e LINKE, Vanessa.
Pinturas Rupestres de Diamantina e Municípios Vizinhos (Porção Meridional da Serra do Espinhaço, Minas
Gerais). Campo Grande: SAB, 2005.
277
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
278
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992.
155
Tradição São Francisco: Descrita no vale do rio homônimo, onde aparece
em profusão e de onde deve ter se dispersado, ocorre nos estados de Minas Gerais,
Bahia, alcançando Tocantins, Goiás e Sergipe. Parece ocorrer também na Bolívia e pode
ter influenciado os grafismos de Sete Cidades, no Piauí. É caracterizada pela abundância
de grafismos “geométricos” elaborados, superando amplamente as representações
antropozoomórficas, com notável ausência dos cervídeos. Em algumas regiões o
repertório temático inclui representações de armas, objetos utilitários, “sauros”,
quelônios e “sóis”279. A utilização da bicromia ou policromia é intensa nessa Tradição.
279
Estes últimos estão em estudo, levando em conta a ideia de serem figurações de uma suposta
“Tradição Astronômica”, como veremos adiante.
280
O estilo ou “fácie Caboclo” chama a atenção pelos maravilhosos conjuntos de figuras, cobrindo
amplas superfícies nos suportes, formando espécies de redes policrômicas (PROUS, André. Arqueologia
Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992).
281
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
156
Grafismos da T. São Francisco no norte de Minas Gerais (Fonte: PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília:
Ed. UNB, 1992).
282
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992.
157
Assim, é provável que os grafismos ainda visíveis ali não sejam anteriores aos dois
últimos milênios283.
Como a região foi ainda pouco prospectada novas tradições ou estilos locais
serão certamente descritos.
283
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
284
PROUS, op. cit.
158
Grafismos da T. Amazônica (Fonte: PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992).
159
unidades definidas nos anos 70 e 80 do século XX”285. O autor cita como exemplos os
sítios decorados com antropomorfos lineares (filiformes) acompanhados de figuras
geométricas, investigados por A. Baeta, no Vale do Rio Doce; os sítios de grafismos
geométricos simples que ocorrem na divisa entre Minas e São Paulo e as representações
de vegetais (raízes e tubérculos) associadas a instrumentos tais como machados
semilunares – arma atribuída à cultura Aratu-sapucaí, mais recente – que surgem no
centro mineiro.
285
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992.
286
“Sóis” (Círculos concêntricos simples ou radiados, em mono ou bicromia), “luas” (semicírculos),
estrelas (“asteriscos”) e cometas (“asteriscos com cauda”).
287
“armas”, “cestas”...
288
“grades”, “pentes”, linhas em zigue-zague e pontos, que evidenciariam “conhecimentos calendáricos”.
289
Pigmentos nas cores vermelho, branco, laranja, amarelo e preto.
290
Ver SEDA, Paulo. “A Arte Rupestre de Unaí, Minas Gerais”. Arquivos do Museu de História Natural
– UFMG, 1981/2.
160
(centro de Minas, onde, no abrigo de Caieiras, uma figura semicircular remete à imagem
de lua crescente), e no Alto Rio Grande (Andrelândia)291.
291
Essa ocorrência será melhor detalhada adiante, no tópico sobre a cidade de Andrelândia.
292
RIBEIRO, Loredana. As Figurações de “Corpos Celestes” do Norte de Minas: Manifestação da
“Tradição Astronômica?” In: PROUS, André e RIBEIRO, Loredana (orgs.). Arqueologia do Alto Médio
São Francisco. Tomo 1. Região de Montalvânia. Arquivos do Museu de História Natural. Vol.
XVII/XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1996/7.
293
RIBEIRO, op. cit.
294
RIBEIRO, op. cit.
161
Partindo desse quadro cronológico, a arqueóloga coloca que a “temática
astronômica” parece ter aparecido originalmente no Norte de Minas, dentro da Tradição
São Francisco, sendo, posteriormente compartilhada por outros conjuntos estilísticos.
Existe, portanto, uma relação sugerida (e intrincada) entre as três expressões gráficas –
São Francisco, Montalvânia e “Astronômica” – uma vez que seus grafismos aparecem
imiscuídos nos suportes em vários momentos decorativos.
Exemplo de painel com desenhos “Astronômicos” (Lapa do Sol, Montalvânia - M.G). Fonte: PROUS,
André e RIBEIRO, Loredana (orgs.) Arqueologia do Alto Médio São Francisco. Tomo 1. Região de
Montalvânia. Arquivos do Museu de História Natural. Vol. XVII/XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1996/7.
295
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
162
gravuras e pinturas” nas grutas de Montalvânia, em Minas Gerais296, é um conjunto
temático e estilístico muito presente também na região noroeste do estado (vales do rio
Cochá e Peruaçu). Seus temas mais comuns são armas (propulsores e dardos, que
aparecem também, em menor número, na T. São Francisco), “cestas” e outros objetos,
figuras zoomórficas (“aracniformes”, “tartarugas”, etc) e biomorfas, além de numerosos
antropomorfos297 contorsionados exaustivamente representados, algumas vezes com
membros ondulados, sugerindo movimento.
296
PROUS, op. cit.
297
Lembram as figuras humanas da T. Nordeste, embora sejam executados de maneira bastante distinta.
298
JÁCOME, Camila. Laudo de Avaliação sobre Estado de Conservação do Patrimônio Arqueológico do
Conjunto Natural, Paisagístico e Arqueológico da Serra dos Milagres. 2009. (mimeog.).
299
RIBEIRO, Loredana e ISNARDIS, Andrei. “Conjuntos Gráficos do Alto-Médio São Francisco (Vale
do Peruaçu e Montalvânia)”. In: PROUS, André e RIBEIRO, Loredana (orgs.). Arqueologia do Alto
Médio São Francisco. Tomo 1. Região de Montalvânia. Arquivos do Museu de História Natural. Vol.
XVII/XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1996/7.
163
do holoceno), do que como estilos de tradições culturais distintas. “Abordar estas
expressões a partir de dois repertórios temático-culturais distintos mascara a
complexidade e a intensidade da prática de arte rupestre que pode ser observada no
período.”300
Desenhos atribuídos ao Complexo Montalvânia. Fonte: PROUS, André e RIBEIRO, Loredana (orgs.) Arqueologia do
Alto Médio São Francisco. Tomo 1. Região de Montalvânia. Arquivos do Museu de História Natural. Vol.
XVII/XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1996/7.
300
RIBEIRO, Loredana. “Repensando a tradição: a variabilidade estilística na arte rupestre do período
intermediário de representações no alto-médio rio São Francisco”. Revista do Museu de Arqueologia e
Etnologia. N° 17. São Paulo: MAE/USP, 2007, p. 143.
301
Ver RIBEIRO, op. cit., p. 127-147.
164
Baseado nessas conclusões, Ribeiro chega mesmo a propor uma revisão
geral do estudo da arte rupestre brasileira:
302
RIBEIRO, op. cit., p. 139.
303
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
304
PROUS, op. cit.
165
Urubu. É possível que a primeira corresponda a um estilo tardio da segunda, realizada
com técnica diferenciada.
Grafismos “Piolho de Urubu” (à esquerda) e “Desenhos” (à direita). Fonte: PROUS, André e RIBEIRO, Loredana
(orgs.) Arqueologia do Alto Médio São Francisco. Tomo 1. Região de Montalvânia. Arquivos do Museu de História
Natural. Vol. XVII/XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1996/7.
A partir desse quadro introdutório acerca do que já está posto sobre o estudo
da arte rupestre brasileira, cujo recorte aqui utilizado procurou focar especialmente as
ocorrências do estado de Minas Gerais e regiões vizinhas, passo, finalmente, a expor no
próximo capítulo, as discussões levadas a cabo e as considerações pensadas como
resultado desta pesquisa.
166
Capítulo 5: Os caminhos da pesquisa
305
VASCONCELOS, Diogo de. História antiga de Minas Gerais. 3ª Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
167
“artísticas”, os objetos e as intervenções na paisagem executados pelos indígenas podem
hoje ser interpretados, tornando possível a escrita da história dessas sociedades que
primeiro estabeleceram-se na região “mineira”.
306
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
307
Não é por acaso que a atual malha rodoviária de Minas Gerais é a mais extensa e complexa do país. A
região sempre foi crucial na constituição de redes de trânsito e transporte, assimilando as inovações nesse
âmbito e, nos dias de hoje, detém importantes rodovias (principal modalidade de transporte
contemporâneo) que possibilitam o fluxo de mercadorias e pessoas para todas as regiões do Brasil.
168
algumas das primeiras vias abertas na paisagem “natural”, construídas pela ação de
diversos grupos culturais indígenas que atuaram e transitaram nesse território308.
Mapa utilizado para divulgar o Circuito Turístico Estrada Real (Fonte: www.descubraminas.com.br).
www.descubraminas.com.br
308
Ver também RESENDE, Maria L. Chaves de; SALES, Cristiano Lima; ROCHA, Leonardo Cristian;
FONSECA, Bráulio Magalhães.lhães. “Mapeamento da arte rupestre na Estrada Real”. Revista do Arquivo
Público Mineiro.. Belo Horizonte: Rona Editora Ltda. Ano XLVI, n° 2, julho-Dezembro
julho Dezembro de 2010.
169
Desde o início da pesquisa ficou claro que o mapeamento das manifestações
de arte rupestre nesse roteiro daria a oportunidade de acessar vestígios arqueológicos
que demarcam intervenções culturais das mais variadas em toda a área, possibilitando, a
partir daí, a elaboração um “corte ou perfil cultural” atravessando o estado, semelhante
aos perfis comuns nos estudos da geografia, geologia e topografia.
Sabíamos que assim seria possível entrar em contato com vestígios típicos
de diferentes grupos culturais. Atravessaríamos áreas pouco conhecidas, mas também
“regiões culturais” já estudadas, o que resultaria num mapa bastante representativo da
diversidade das manifestações rupestres presentes em Minas. Contudo, sabíamos
também que a “exagerada” dimensão do recorte geográfico e o volume de informações
que seriam recolhidas a campo durante a pesquisa representaria um grande desafio na
fase de organização e interpretação do material. Ainda assim optamos por manter a
proposta, pois estava claro que faltava um estudo dessa dimensão em Minas Gerais.
170
fronteiras geopolíticas que utilizamos hoje são uma convenção contemporânea, e em
nada influenciaram as atividades dos grupos pretéritos, autores dos grafismos rupestres).
309
Esses sítios arqueológicos também não constam nos registros do IPHAN (http://portal.iphan.gov.br).
171
No nosso entendimento, esses pressupostos estruturalistas foram assumidos
como, talvez, os mais adequados para dar conta da grande dimensão da área abarcada e
do volume de manifestações rupestres encontradas. Registre-se, novamente, o fato de
que muitos desses conjuntos de grafismos até então não haviam sido sequer
catalogados, o que também justifica a opção de fazer desta maneira esta etapa inicial da
pesquisa para, numa futura oportunidade, poder avançar nos estudos.
Para proceder à análise estilística dos sítios visitados, além de observar suas
características gráficas in loco, fizemos um registro fotográfico o mais detalhado
possível das ocorrências. Estas imagens foram continuamente comparadas entre si e
com ilustrações de diversas publicações sobre o tema, durante toda a pesquisa. Não foi
possível pesquisar a fundo as informações sobre a inserção cronológica de cada sítio,
uma vez que os processos de datação são lentos e dispendiosos, e não dispusemos dos
recursos necessários para executá-los. Além disso a análise de materiais arqueológicos
para datação está muito mais vinculada a estudos específicos da arqueologia,
envolvendo processos físico-químicos. Em uma pesquisa delineada pelo viés
historiográfico como esta, me limitarei a repassar informações e estimativas pensadas a
partir de estudos arqueológicos já realizados e publicados. Procederei da mesma
maneira quando me referir às características geográficas e geológicas dos sítios.
172
Optei também por dividir didaticamente a apresentação do mapeamento
realizado, de sul para norte e pelo nome atual das cidades onde ocorrem os sítios
arqueológicos. Apesar do risco de parecer anacrônico, uma vez que as fronteiras de hoje
não correspondem às diferenças culturais das sociedades pré-coloniais, esta escolha
pode facilitar a observação contemporânea da distribuição estilístico-espacial das
manifestações de arte rupestre. Contribui também para esta visualização o mapa
preparado e apresentado no último capítulo desta parte da dissertação.
173
5.1 Um mapa da arte rupestre na Estrada Real
Andrelândia
310
A. PROUS (et alli). As Pinturas rupestres da Toca do Índio. Disponível em: http://www.npa.org.br/
174
um paredão rochoso com aproximadamente 60 metros de largura majoritariamente
coberto por pinturas de motivos “geométricos” típicos da tradição sanfranciscana. Os
desenhos, isolados ou sobrepostos, evidenciando o fato de terem sido executados em
diferentes momentos, formam um painel policrômico no qual aparecem pigmentos
vermelhos, amarelos, branco e azulado.
Serra de Santo Antônio, à esquerda (foto: Nathanael Andrade) e Pinturas da “Toca do Índio, à direita (foto: José R.
Vitral).
Figurações “Astronômicas” presentes na Toca do Índio (“sóis” à esquerda e “cometa” à direita). Fotos: José R. Vitral.
175
Representações de répteis, “objetos” (“seta”) e “geométricos” da Toca do Índio. Fotos: C. Lima.
176
Parte da possível representação de aspectos da geografia do entorno da Toca do Índio no painel rupestre (em
destaque: “um pico da serra e o sol nascente”). Foto: C. Lima.
311
Informação passada por membros do Núcleo de Pesquisas Arqueológicas de Andrelândia.
312
RIBEIRO, Loredana e ISNARDIS, Andrei. “Conjuntos Gráficos do Alto-Médio São Francisco (Vale
do Peruaçu e Montalvânia)”. In: PROUS, André e RIBEIRO, Loredana (orgs.). Arqueologia do Alto
Médio São Francisco. Tomo 1. Região de Montalvânia. Arquivos do Museu de História Natural. Vol.
XVII/XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1996/7.
313
Os autores distinguiram pelo menos quatro conjuntos com características peculiares no interior das
manifestações são-franciscanas do vale do Rio Peruaçu. A fácie Caboclo talvez seja o mais
impressionante conjunto, em termos gráficos e crômicos, identificado nesse complexo. RIBEIRO e
ISNARDIS, op. cit.
178
pesquisas desenvolvidas até então na região de Montalvânia reconhecem a existência de
grafismos São Francisco, mas não como forma predominante (como ocorre no Peruaçu).
Em alguns sítios locais as “figurações ‘astronômicas’ foram representadas em maior
número que as figuras geométricas pelos autores da tradição São Francisco. Apesar de
encontrarmos, no Peruaçu, representações ‘celestes’ entre as figuras ‘São Francisco’,
elas não aparecem de forma tão numerosa como em Montalvânia”314.
314
RIBEIRO e ISNARDIS, op. cit.
315
“‘Quelônios’ e sauros são bem mais numerosos entre as gravuras, enquanto que os “sóis” surgem mais
em pintura”. RIBEIRO e ISNARDIS, op. cit.
316
Conforme visto em RIBEIRO e ISNARDIS, op. cit.
317
Sobre a relação entre a tradição São Francisco e o Complexo Montalvânia, L. Ribeiro e A. Isnardis
sugerem a possibilidade de que os autores dos dois conjuntos gráficos seriam grupos culturais distintos.
Quando se referem a alguns sítios da região de Montalvânia, cuja cronologia já pôde ser melhor estudada,
falam, por exemplo, em “ocupações alternadas dos mesmos sítios por portadores de unidades estilísticas
diferenciadas” (RIBEIRO e ISNARDIS, op. cit.). Entretanto, os autores mostram também uma grande
proximidade entre esses supostos dois grupos de artistas pré-coloniais, fato que teria resultado, inclusive,
na convergência de repertório gráfico e em influências mútuas. No caso de Andrelândia pode-se,
179
Acima: Semelhanças morfológicas entre elementos isolados do painel da Toca do Índio e grafismos Montalvânia.
Fotos: C. Lima. Reproduções dos desenhos Montalvânia extraídas de PROUS, André e RIBEIRO, Loredana (orgs.)
Arqueologia do Alto Médio São Francisco. Tomo 1. Região de Montalvânia. Arquivos do Museu de História Natural.
Vol. XVII/XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1996/7.
igualmente, supor a ação de mais de um grupo ou (talvez mais acertadamente) que um único grupo, autor
das pinturas, já teria incorporado repertório Montalvânia ao “seu estilo” São Francisco, lembrando que,
pela grande quantidade de sobreposições, que o painel da Toca do Índio é, evidentemente, resultado do
acúmulo de pinturas feitas em momentos diferentes.
180
Quando observamos a situação geral da gestão do patrimônio arqueológico
na rota da Estrada Real, destaca-se a importante iniciativa do Núcleo de Pesquisas
Arqueológicas (NPA) de Andrelândia - uma ONG criada por membros da comunidade,
voltada para a proteção do patrimônio natural e cultural da cidade. O NPA adquiriu a
área onde se localiza a Toca do Índio, maior sítio arqueológico atribuído à Tradição São
Francisco no sul de Minas. Em 2001 o terreno foi transformado em Parque
Arqueológico/Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), reconhecido pelo
IBAMA, ganhando o status de Unidade de Conservação Federal. Desde a fundação da
ONG, em 22 de julho 1986, o entorno do sítio arqueológico tem sido reflorestado e o
local recebeu projetos de infraestrutura, vigilância e recepção orientada aos turistas que
inclui disponibilização de guias locais, sinalização das trilhas e estabelecimento de
regras de visitação. Desta maneira a paisagem local, que antes era uma pastagem com
poucas árvores, tem sido manejada e encontra-se em franca recuperação de sua biota -
processo evidenciado no crescimento de uma matinha vigorosa e pela observação, na
área, de espécies raras da fauna regional (incluindo grandes felinos, como onças),
indicadores de boas condições ambientais. A mata recuperada contribui para a
conservação do sítio arqueológico, uma vez que o resguarda de impactos naturais como
insolação excessiva, vento e chuva, entre outros.
Carrancas
181
No pequeno paredão, localizado a pouca distância da margem direita do Rio
Capivari, figura um painel de cerca de 4 metros com pinturas que se aproximam do
“traço geométrico” característico da Tradição São-Francisco, embora seus grafismos
possam ser interpretados também como figurativos. Os desenhos são poucos, mas
representativos no contexto regional, levantando questões importantes.
318
RIBEIRO e ISNARDIS, op. cit.
319
Conforme observado em RIBEIRO e ISNARDIS, op. cit.
320
Há também, segundo informação colhida entre os conselheiros do Núcleo de Pesquisas Arqueológicas
(NPA) de Andrelândia, presença de manifestações rupestres semelhantes no município de Nazareno,
cortado pelo “Caminho Velho”, ao norte de Carrancas (divisa com São João del-Rei, a leste). Não foi
possível visitar essa(s) ocorrência(s), contudo, se a informação for confirmada, os sítios atribuíveis à
Tradição São Francisco na região descreveriam um arco no sentido noroeste-norte, dominando o centro
desse trecho sul da Estrada Real.
183
Foto de Carrancas (C. Lima) e prancha com os momentos do Complexo Montalvânia extraída de PROUS, André e
RIBEIRO, Loredana (orgs.) Arqueologia do Alto Médio São Francisco. Tomo 1. Região de Montalvânia. Arquivos
do Museu de História Natural. Vol. XVII/XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1996/7.
184
vegetação de mata densa nas áreas de terra argilosa, associada ao campo rupestre ralo
que cresce sobre as rochas e partes arenosas dos morros.
321
O “Projeto Itaguatiara”, entre outras ações referentes ao patrimônio local, procurou identificar e
registrar os sítios com arte rupestre no município de São Thomé das Letras. Maiores informações sobre
esse projeto podem ser encontradas em RESENDE, Marco A. Penido e D’ AURIA, Carla Alfonsina.
Projeto pedra são tomé: valoração regional por meio da revitalização da paisagem e da identidade
cultural (Relatório Parcial). São Thomé das Letras, 2009 (mimeog.). Luan Ariel Sigaud Vasconcellos dos
Santos, aluno do curso de Geografia e Atahualpa Yupanqui Lobo Chamorro, aluno do curso de História,
ambos da Universidade Federal de São João del-Rei, participaram do referido projeto desde julho de
2008, cedendo informações e nos acompanhando nas visitas aos sítios de São Thomé durante a execução
da nossa pesquisa.
185
As “letras” na “Gruta de São Tomé” (esquerda) e bastonetes no sítio Shangrilá 1(direita). Fotos: C. Lima.
186
“Toca do Leão” e seus grafismos. Foto: C. Lima.
Devido à diversidade de representações, São Thomé das Letras pode ter sido
uma região de intensos contatos, de domínio sucessivo de diferentes grupos ou, ainda,
de significativas transformações culturais. A datação das pinturas poderia esclarecer
muitos aspectos relativos à etno-história local, no entanto, é um procedimento
dispendioso, dificultado, além do mais, pelos intensos processos de deterioração aos
quais os sítios arqueológicos locais têm sido submetidos.
322
Ver: Códice Costa Matoso. Coord. Luciano R. A. Figueiredo e Maria Verônica Campos. Estudo
Crítico Luciano R. A. Figueiredo. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos Históricos,
1999, p. 374-382. ROMEIRO, Adriana e RAMINELLI, Ronald. “São Tomé nas Minas: a trajetória de um
mito no século XVIII”. Varia Historia. Belo Horizonte: Departamento de História, Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, UFMG. N. 21. Julho de 1999.
187
painéis... Entre todas essas as ações destrutivas devemos destacar a espantosa
degradação ambiental imposta pela mineração323, atividade que tem provocado uma
perda irreversível e crescente de áreas com sítios arqueológicos, muitos ainda sequer
descritos, da Serra de Itaguatiara.
Superfície com pintura rupestre aplicada a fachada de uma edificação no centro de São Thomé e detalhe do painel.
Fotos: C. Lima.
Itutinga
189
No alto:: impressões de mãos infantis em bloco abatido no piso do sítio.. Acima: marcas de mãos do teto do sítio ao
lado de foto de sítio atribuído ao estilo
est “Cariris Velho”, T. Agreste, do Piauí (apenas para efeito de comparação)
(fonte: http://www.fumdham.org.br.). Fotos: C. Lima.
Seria
ia importante a realização de prospecções na área para buscar por outras
possíveis ocorrências, dadas as características insólitas da paisagem e do próprio
conjunto de grafismos que ocorrem ali.
ali
190
São João del-Rei
324
RESENDE, Maria Leônia Chaves de; TÔRRES, Moisés Romanazzi; MATOS, Vanuza Vieira. Arte
rupestre em terras barrocas: um estudo de caso do sítio pré-histórico da Serra do Lenheiro. Vertentes, São
João del-Rei:UFSJ, n° 27, jan./jun 2006, p. 07-15.
191
No alto: Serra do Lenheiro e os desenhos de cervídeos. Acima: Blocos caídos na base do sítio arqueológico e
grafismos (antropomórficos e bastonetes). Fotos: C. Lima.
325
RESENDE, Maria Leônia Chaves de; TÔRRES, Moisés Romanazzi; MATOS, Vanuza Vieira. Arte
rupestre em terras barrocas: um estudo de caso do sítio pré-histórico da Serra do Lenheiro. Vertentes, São
João del-Rei:UFSJ, n° 27, jan./jun 2006, p. 07-15.
192
acesso à área326, os painéis estão relativamente preservados de maiores depredações e
vandalismos. A vegetação nativa protege, em certa medida, o local, embora o grande
número de blocos e lascas sedimentados no piso da base do paredão indique um
processo erosivo natural intenso da rocha.
Carmópolis de Minas
326
É preciso conseguir uma autorização expressa para visitar o sítio, ainda assim, na companhia de um
guia indicado pela Divisão.
193
O trabalho de campo no município revelou a existência de pequenos sítios
arqueológicos caracterizados pela presença exclusiva de gravuras. Segundo informações
colhidas entre os moradores, conhece-se três sítios na cidade, todos localizados nas
proximidades de cursos d’água. Visitamos apenas o Sítio Lagoa, situado numa região
acidentada de “mar de morros”, cortada por pequenos fluxos fluviais e constituída
majoritariamente de solo argiloso, relativamente rico em matéria orgânica, do qual
afloram blocos rochosos de tamanho variado. Certamente devido às características
pedológicas locais notamos a ausência de espécies vegetais de campo rupestre,
predominando o campo limpo, cerrado e matas.
327
Ao observar a expressão rupestre do sítio e a morfologia da paisagem local foi tentador interpretar o
conjunto como sendo um “mapa pré-histórico” no qual constaria a localização de aldeias (os desenhos
“circulares”), situadas em relação aos meandros de rios e córregos (as linhas gravadas entre os “círculos”)
que formam a malha fluvial local. Logicamente podemos “pecar” por anacronismo ao supor essa ideia, já
que, na verdade, desconhecemos o significado e a intenção de quem gravou ali aqueles signos. Entretanto,
a hipótese não é tão absurda assim se recordarmos dados etnográficos que informam sobre a capacidade
de orientação geográfica e de representação “cartográfica” de sociedades indígenas. Mesmo entre
historiadores brasileiros, autores consagrados como Sérgio Buarque de Holanda se referem a esse fato
(Ver, por exemplo, vários casos relatados em HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras.
São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p 22-24). Outra ideia importante a se observar quando
comparamos o desenho do sítio (interpretado como um mapa) e as características da paisagem atual onde
ele se insere é que os grafismos circulares (“aldeias”?) do conjunto rupestre aparentemente coincidiriam
com a localização das habitações de moradores atuais. Segundo a guia que nos levou ao local, ali estes
sitiantes recolhem, até os dias de hoje, instrumentos líticos e restos de cerâmica no entorno de suas casas.
Além disso as espécies cultivadas pelos moradores crescem sobre quintais de solo rico, escuro, que
também pode indicar, como sabemos, a existência de antigas aldeias indígenas. Seria interessante
produzir (ou adquirir) uma imagem aérea da área do Sítio Lagoa para ser utilizada como mais um
elemento de análise do espaço atual em relação à expressão gráfica do sítio arqueológico. A comparação
dos dois “documentos” poderia reforçar ou contradizer a ideia de que o sítio seria um mapa.
194
Imagens do Sítio Lagoa e suas gravuras. Fotos: C. Lima
195
em toda a área vizinha, entre São João del-Rei e Barão de Cocais), imaginamos que o
Sítio Lagoa seja representante da atuação de um grupo cultural distinto daqueles que
viveram tanto a sul quanto a norte desse espaço cortado pela Estrada real. Pode-se supor
que o grupo autor das gravuras teria se estabelecido ali em período mais recente – em
torno de, no máximo, 2.000 anos atrás, conforme as datações de vestígios líticos e
cerâmicos similares encontrados em muitas outras áreas do estado de Minas Gerais.
Assim, pelo que se observa em outros sítios semelhantes, esta cultura já poderia dispor,
inclusive, de um domínio técnico mais avançado da agricultura, embora saibamos que
entre os vestígios típicos de povos agricultores não se têm notícia da existência de
gravuras rupestres329 (as gravuras estariam mesmo associadas aos outros vestígios?)330.
329
Existem sim registros de pinturas rupestres (por exemplo, na Gruta Rei do Mato, em Sete Lagoas,
como veremos adiante) que representariam vegetais supostamente cultivados pelos indígenas. Estes
vestígios pintados são tidos como expressões tardias de arte rupestre – as “últimas pinturas realizadas”,
conforme expressa A. Prous em PROUS, André; BAETA, Alenice; RUBBIOLI, Ezio. O patrimônio
arqueológico da região de Matozinhos: conhecer para proteger. Belo Horizonte: Ed do autor, 2003.
330
Se essa conjectura for confirmada, a ideia de que o sítio representa um mapa pode ganhar força, uma
vez que a geografia local não teria tempo para ter se alterado tanto entre a época do auge da aldeia
indígena ali estabelecida e a atualidade.
196
Pains
Pelo que sabíamos até então o sítio ainda não teria sido alvo de pesquisas
acadêmicas – mais um motivo para incorporá-lo ao nosso estudo. Há pouco tempo,
entretanto, soubemos que a região tem sido objeto dos estudos mais recentes
desenvolvidos por pesquisadores vinculados ao Museu de História Natural da UFMG332
331
Segundo a caracterização de C Jácome e L. Panachuck esta área localiza-se, estrategicamente, próxima
ao divisor de duas grandes bacias hidrográficas - ao norte, do rio São Francisco e, ao sul, do rio Grande -
apresentando alto potencial arqueológico [atestado pela grande quantidade de sítios localizados durante as
pesquisas realizadas pelo Instituto de Arqueologia Brasileira (1969/1974), pelo Setor de
Arqueologia/UFMG (1978/1979) e pelas próprias arqueólogas (1998/2003)]. Entretanto as autoras
destacam a escassez de sítios arqueológicos com registros pictóricos na região, em comparação às duas
áreas cársticas vizinhas - região de Lagoa Santa e a do alto-médio São Francisco - bem conhecidas
arqueologicamente. JÁCOME, Camila e PANACHUCK, Lílian. Arte Rupestre no Alto Rio São
Francisco: Aportes Iniciais. SAB, 2003. (mimeog.).
332
Maiores informações estão disponíveis em: http://revista.fapemig.br/materia.php?id=175 (consultado
em 21 de junho de 2011)
197
e tivemos acesso a um texto333 das arqueólogas C. Jácome e L. Panachuk que trata dos
resultados preliminares da análise de sítios rupestres localizados no sudoeste do estado
de Minas Gerais, exatamente nos municípios de Arcos, Pains e Pimenta. Este artigo foi
apresentado na Reunião da Sociedade Brasileira de Arqueologia, em 2003, e serve como
fonte importante para nossa abordagem.
333
JÁCOME, Camila e PANACHUCK, Lílian. Arte Rupestre no Alto Rio São Francisco: Aportes
Iniciais. SAB, 2003. (mimeog.).
198
amarelo. O conjunto se constitui de dois antropomorfos e três grafismos
geométricos. Tanto a bicromia vermelho/amarelo, quanto a temática
aproximam este conjunto da Tradição São Francisco. Houve sobreposição
somente por figuras do Conjunto C.
Momentos intermediários
334
JÁCOME e PANACHUCK, op. cit.
199
Prancha com reprodução do painel da Lapa da Posse Grande (cedida por Camila Jácome).
“(...) parecem retratar uma mescla dos padrões estilísticos definidos para a
Tradição Planalto, muito bem documentada na região do Centro Mineiro, e
para a Tradição São Francisco, tão presente no Alto-médio São Francisco.
Para a região do alto curso do rio Prous afirma que ‘Em regiões de fronteiras
há existência de influências externas (figuras bicrômicas, perto do vale do
São Francisco)’ (1992:521) nos grafismos atribuídos à Tradição Planalto.”336
335
As arqueólogas executaram descrições preliminares de outros quatro sítios arqueológicos [Lapa das
Abelhas I, Lapa do Antônio Vitalino, Abrigo de Guardar Carro de Boi (grafismos pintados) e Gruta do
Marinheiro (grafismos gravados)] entre os 13 já identificados na região.
336
JÁCOME e PANACHUCK, op. cit.
337
JÁCOME e PANACHUCK, op.cit.
200
análise técnica dos grafismos e também da inserção espacial dos conjuntos rupestres na
região (“escolhas” e “desperdícios” de suportes utilizáveis).
338
A figura, executada com pigmento amarelo contornada de vermelho, é bem delineada e apresenta, por
exemplo, os dedos das mãos e pés.
201
Painel da Lapa da Posse Grande e figura antropomórfica bicrômica em destaque (à direita). Fotos: C. Lima.
339
Há informações sobre a existência de mais de uma centena de sítios arqueológicos na região entre
sítios cerâmicos (Dias, 1971, 1974, 1975; Dias & Carvalho, 1982) e pré-cerâmicos (Henriques, Costa &
Koole, 2001) na região. JÁCOME e PANACHUCK, op. cit.
340
JÁCOME e PANACHUCK, op. cit.
341
JÁCOME e PANACHUCK, op. cit.
202
Como se percebe, o estudo de todo o “pacote arqueológico” do Alto São
Francisco encontra-se em fase preliminar. É urgente que as pesquisas na área se
intensifiquem, pois os sítios arqueológicos têm sofrido intensos processos de
degradação. O estado de conservação das raras e insólitas ocorrências de arte rupestre
locais, por exemplo, é péssimo. O desmatamento aumenta a exposição dos conjuntos às
intempéries, acelerando o descamamento dos suportes, o esmaecimento das pinturas e o
recobrimento das gravuras. A exploração predatória do calcário pelas grandes empresas
mineradoras instaladas na área causa uma intensa desagregação da rocha. “Cabe dizer
que, segundo relatos de moradores locais, há algumas décadas atrás era possível
encontrar pedaços de rocha caídos com vestígios de pinturas”342. As visitações
irresponsáveis aos sítios também causam danos a esse patrimônio, especialmente pelas
ações de vandalismo (pichações, rabiscos, raspagem de grafismos...) e acúmulo de lixo
nos locais.
Sete Lagoas
203
Matozinhos, Confins, Funilândia, Vespasiano, São José da Lapa e Prudente de Morais,
mas também parte dos municípios de Sete lagoas, Capim Branco, Santa Luzia,
Jaboticatubas e Taquaraçu de Minas”343.
A Gruta Rei do Mato344 tem 235 metros de extensão e possui salões cujas
formações de espeleotemas são bastante raras no mundo. A vegetação do entorno é
mista, com espécies de mata (predominantes), cerrado e campo rupestre, especialmente
cactáceas e aráceas.
Quanto aos grupos de artistas rupestres que deixaram suas impressões nessa
grande área, nota-se um predomínio da Tradição Planalto. A Gruta Rei do Mato,
contudo, encerra um conjunto de expressões peculiar. Na base do paredão aparecem
incisões do tipo “afiador”, algumas das quais formando “padrões tridáctilos, lembrando
pisadas de aves”346. No teto do conduto de entrada da “Grutinha” figura um cervídeo de
dimensão mediana, em tinta vermelha e com o corpo tracejado, que remete à Tradição
Planalto, enquanto que, no interior (especificamente na parede do fundo) do abrigo
343
PROUS, André; BAETA, Alenice; RUBBIOLI, Ezio. O patrimônio arqueológico da região de
Matozinhos: conhecer para proteger. Belo Horizonte: Ed do autor, 2003.
344
A tradição oral afirma que a gruta teria sida habitada por um homem solitário, louro, forte e cabeludo,
de identidade ignorada, possivelmente fugitivo da Revolução de 1930, que foi chamado de "Rei do
Mato". Daí o nome dado ao local.
345
PROUS, BAETA e RUBBIOLI, op. cit.
346
As incisões costumam ser incluídas entre as manifestações gráficas de “arte rupestre” pois, ainda que
possam ser fruto do desgaste da rocha usada para polir objetos de osso ou madeira (“afiadores”), “a
localização destas marcas sugere que teriam provavelmente mais valor simbólico e estético”. (PROUS,
BAETA e RUBBIOLI, op. cit.).
204
encontra-se um conjunto de pinturas definidas como pertencentes à Tradição Nordeste,
Fácie Ballet. Como é característico desse estilo em Minas Gerais, o painel foi pintado
numa área sombria do abrigo, e é composto por figuras antropomórficas, algumas das
quais agrupadas em suposta cena de sexo, com “bicos de pássaro”, sexo evidente e
braços erguidos. Compõem o mesmo conjunto representações de “peixes” em cardume,
um grafismo “geométrico”347 na extremidade inferior direita da parede e uma grande
raiz com tubérculos pendentes, que atravessa horizontalmente o painel. Partindo das
sobreposições das figuras e da análise das tintas usadas A. Prous obteve uma cronologia
relativa para o sítio, sendo que os peixes (em “vermelho 1”) teriam sido executados num
primeiro momento, seguido dos antropomórficos e do “geométrico” (em “vermelho 2”)
e, por fim dos tubérculos (em amarelo)348.
347
“Tudo indica que há um tipo de figura geométrica que compõe esta fácie; trata-se de grafismos
formados por círculos concêntricos, dos quais sai um traço comprido, lembrando a forma de um pirulito.
Esta composição foi identificada nos sítios Gruta Rei do Mato e Mato Seco”. (PROUS, BAETA e
RUBBIOLI, op. cit.).
348
Ver PROUS, BAETA e RUBBIOLI, op. cit.
205
Na página anterior e acima: imagens das pinturas encontradas na Gruta Rei do Mato. Fotos: Cássia Resende.
349
PROUS, BAETA e RUBBIOLI, op. cit.
206
Reprodução de painel da Gruta Rei do Mato. Fonte: PROUS, André; BAETA, Alenice; RUBBIOLI, Ezio. O
patrimônio arqueológico da região de Matozinhos: conhecer para proteger. Belo Horizonte: Ed do autor, 2003.
Barão de Cocais
207
uma maneira mais precisa, que essa formação se estenderia de Ouro Preto (MG), ou de
Caeté (Serra da Piedade) até Juazeiro (BA)350. De qualquer modo, o Rio São Francisco e
a Serra do Espinhaço constituem as principais referências geográficas de toda essa área,
e, enquanto o rio demarca uma “rota fluvial” cujas margens e correntezas suportaram
um fluxo intenso de grupos culturais desde milênios atrás, a Serra do Espinhaço
também se configurou como roteiro de passagem de culturas pretéritas que foram se
territorializando na vastidão dessa paisagem e criando “caminhos rupestres”.
350
PENHA; BAETA; BRITO 2002, apud JÁCOME, Camila e PANACHUCK, Lílian. Arte Rupestre no
Alto Rio São Francisco: Aportes Iniciais. SAB, 2003.
351
ISNARDIS, Andrei e LINKE, Vanessa. Pinturas Rupestres de Diamantina e Municípios Vizinhos
(Porção Meridional da Serra do Espinhaço, Minas Gerais). Campo Grande: SAB, 2005.
208
“Todas essas características são de grande importância para as ocupações
humanas, (...) principalmente se combinadas à relevância hidrológica da
região, que corresponde a um grande divisor de águas das bacias dos rios
Jequitinhonha, São Francisco e Doce e importante aqüífero que as abastece.
Deste modo, a serra apresenta-se intensamente drenada, com um imenso
número de pequenos cursos d’água perenes, uma enormidade de terraços
fluviais e vales profundos (construídos pela ação fluvial combinada às falhas
estruturais).”352
352
ISNARDIS e LINKE, op. cit.
353
ISNARDIS e LINKE, op. cit.
354
Abordaremos melhor essa região logo a seguir.
355
A Serra do Cabral é objeto de pesquisa de Paulo Seda e sua equipe, encontrando-se fora do nosso
roteiro. Mais informações sobre a área podem ser obtidas em SEDA, P. e ANDRADE, G. “As
representações zoomorfas da arte rupestre da Serra do Cabral: uma tentativa de identificação e
classificação taxionômica”. Dédalo. Publicações Avulças. São Paulo: MAE-USP, 1989, p. 343-261.
SEDA, Paulo. A caça e a arte: os caçadores-pintores da Serra do Cabral, Minas Gerais. Tese de
Doutorado em História Social. Rio de Janeiro: IFCS, UFRJ, 1998. SEDA, P., PANGAIO, L. e DINIZ, K.
“Artistas da pedra: pinturas pré-históricas da Serra do Cabral, Minas Gerais”. In LEMOS, M. T.T.B.
(org.). América plural: caminhos da latinidade. Rio de Janeiro: ABE Graph Ed., 2003, p. 205-248.
SEDA, Paulo. “Arte Rupestre do centro, norte e noroeste de Minas Gerais, Brasil”. In OLIVEIRA, Ana P.
de P. Loures (org.). Aqueologia e Patrimônio de Minas Gerais. Juiz de Fora: Editar, 2007, p. 11-32.
356
Planalto Diamantino é a designação geomorfológica usada para a região do Alto Jequitinhonha,
formada por Diamantina e municípios vizinhos [SAADI, 1998 apud ISNARDIS, Andrei e LINKE,
Vanessa. Pinturas Rupestres de Diamantina e Municípios Vizinhos (Porção Meridional da Serra do
Espinhaço, Minas Gerais). Campo Grande: SAB, 2005]. Trataremos de algumas manifestações rupestres
dessa região no final deste capítulo.
209
Em termos de arte rupestre, diante do que já foi estudado, é possível afirmar
que:
357
PROUS, 1992; PROUS e JUNQUEIRA, 1995; SEDA, 1998; PROUS, BAETA e RUBBIOLI, 200,
apud ISNARDIS e LINKE, op. cit.
210
desenhadas “grosseiramente”, completamente chapadas, esmaecidas (possivelmente as
mais antigas do conjunto), que lembram manifestações Agreste. Essa enorme
quantidade de representações de animais é envolvida por um igualmente impressionante
número de pontos e pequenos traços que formam verdadeiras “nuvens”, dando um
aspecto de pintura “impressionista” ou “pontilhista” especialmente ao conjunto do
grande painel principal.
Vista geral do painel principal do sítio Pedra Pintada e grafismos ilustrando as situações descritas na nossa análise:
predomínio de zoomorfos, sobreposições, policromia, “pontilhismo” e figuras que remetem à T. Agreste (na última
foto). Fotos: C. Lima.
211
No repertório gráfico dos painéis aparecem ainda alguns desenhos que
parecem representar utensílios como armas e chocalhos e composições geométricas
policrômicas mais complexas (“cartuchos”, “redes”, conjuntos de linhas em zigue-zague
e círculos concêntricos) que lembram manifestações da Tradição São Francisco. É
preciso destacar que todos os grafismos, incluindo os zoomórficos e pontilhados, foram
executados com tintas das mais variadas cores – diversos tons de vermelho, amarelo,
laranja, vinho, rosa, branco e preto – resultando em painéis multicoloridos excepcionais.
Além disso, os padrões “geométricos” algumas vezes penetram nas expressões
figurativas, como preenchimento interno, por exemplo. A maestria no uso da cor e das
expressões geométricas (simples e complexas) associadas aos desenhos figurativos
lembram situações observadas em sítios sanfranciscanos.
212
Combinação de “geométricos” e zoomórficos no painel da Pedra Pintada. Fotos: C. Lima.
Exemplos de grafismos antropomórficos que aparecem nos painéis da Pedra Pintada. Fotos: C. Lima.
213
Na imagem acima observa-se a citada “cena de parto” Foto: C. Lima.
214
Além das pinturas, também foram encontrados vestígios líticos no abrigo,
indicando a produção de objetos utilizados em atividades cotidianas, como na caça e no
trabalho sobre outros materiais (lascas e instrumentos retocados utilizados no
tratamento da madeira e do couro, por exemplo).
Todo este rico patrimônio tem sido gerido, há três gerações, pela família
proprietária do terreno onde se localiza o sítio, e que, neste momento procura melhorar a
estrutura física da sede para receber os turistas. A visitação ao local é controlada,
precisando ser previamente agendada e se faz na presença de alguém da família –
momento no qual são passadas informações sobre a região e especialmente sobre o sítio
arqueológico, incluindo um folder produzido pelos proprietários. O resultado do
cuidado com o local é evidente na preservação do sítio. Os impactos mais significativos
detectados foram os naturais – intemperismo, afloramento de substâncias minerais sobre
as pinturas e recobrimento destas por ninhos de insetos, musgos e líquens, além do
descolamento e queda de placas da rocha.
358
Todas as informações sobre o sítio localizado nesse município foram extraídas de JÁCOME, Camila.
Laudo de Avaliação sobre Estado de Conservação do Patrimônio Arqueológico do Conjunto Natural,
Paisagístico e Arqueológico da Serra dos Milagres. 2009.
215
À esquerda: crista onde se encontra o abrigo do Sítio da Serra dos Milagres, à frente as cabeceiras do rio homônimo
correndo sobre o afloramento de quartzito. À direita: imagem do abrigo. Fotos: C. Jácome.
359
JÁCOME, op. cit.
360
JÁCOME, op. cit.
216
vermelha) e o descamamento da rocha dificultam a visualização das figuras, a
identificação das sobreposições e a comparação das diferentes tintas.
De modo geral, a figuração rupestre da Serra dos Milagres não foge ao que
predomina no contexto da Serra do Espinhaço – é composta majoritariamente por
grandes zoomorfos (de 50 a 80 cm), principalmente cervídeos e outros quadrúpedes, a
maioria com o corpo preenchido por linhas, ou mesmo chapado, totalmente cheio pela
tinta. Peixes, figuras antropomórficas, bastonetes, linhas, pontos e geométricos
aparecem em menor escala. Grafismos desse tipo são associados à Tradição Planalto,
entretanto, como destaca C. Jácome, algumas pinturas da Serra dos Milagres se
diferenciam do estilo e da temática Planalto, especialmente as representações de répteis
com o corpo completamente preenchido de tinta, de tamanho mediano (cerca de 50 cm,
em contraste com os grandes cervídeos da T. Planalto) associados a figuras
“geométricas” (“asteriscos” ou “sóis”). Esse conjunto gráfico inclui ainda
representações de setas e possivelmente de um arco. Figuras com essa temática e jogo
de associação são mais comuns no conjunto gráfico do Complexo Montalvânia, típico
do noroeste de Minas Gerais e sudoeste baiano.
217
Figurações da Serra dos Milagres: zoomórficos, “Geométricos”, “setas” e desenhos “astronômicos”. Fotos: C.
Jácome.
218
A cópia das pinturas pela técnica do decalque, realizada em 2009, revelou
alguns dados e questões importantes sobre a cronologia relativa do sítio, como relatado
por C. Jácome:
361
Maiores informações sobre a abordagem e a terminologia aplicada à análise do sítio são encontradas
em JÁCOME, Camila. Laudo de Avaliação sobre Estado de Conservação do Patrimônio Arqueológico
do Conjunto Natural, Paisagístico e Arqueológico da Serra dos Milagres. 2009.
219
“Uma forma de melhor compreender as questões postas pelas pinturas do sítio da Serra
dos Milagres seria o decalque das pinturas de Cabeça de Boi. Isto permitiria a
comparação entre os dois acervos e a elaboração prévia de interpretações sobre a
ocupação pré-histórica da região de Itambé do Mato Dentro”362.
O sítio da Serra dos Milagres está sujeito a ações naturais e antrópicas que já
destruíram parcialmente as pinturas, e os agentes destrutivos (incidência solar,
descamamento da rocha, escorrimento mineral, insetos e pichações) continuam ativos.
O “turismo” não controlado ameaça o local, bem como as queimadas e o desmatamento,
que agrava a exposição dos painéis ao sol. As variações térmicas ao longo do dia,
intensificadas pelo impacto da atividade humana na área, causam rachaduras e
descamação das partes superficiais da rocha. Se as medidas necessárias para a
conservação do sítio não forem tomadas a tendência é que ele sofra desgastes
irremediáveis e se apague figuras importantes para a compreensão dos padrões de
pintura da região sul da Serra do Espinhaço.
Santana do Riacho
362
JÁCOME, op cit.
363
Outros estudos propõem uma separação “didática” entre a Serra do Cipó e Cordilheira do Espinhaço,
argumentando pelas especificidades geo-ambientais da primeira em relação à segunda. Não há ainda um
consenso sobre a questão.
220
Lagoa Santa, que lhe é vizinho, e daí resultaram a caracterização de uma das mais
antigas populações da América (o “povo de Luzia”, ou “raça de Lagoa Santa”), análises
sobre indústria lítica de referência para o Brasil Central, bem como caracterizações
consistentes no que tange aos estudos de grafismos rupestres364. Como frutos de todo
este trabalho, já constam dos registros do IPHAN365 24 sítios, com presença de pinturas,
vestígios líticos, em concha e sepultamentos humanos, mas o cadastro de sítios do
IPHAN está em processo de atualização e o número de sítios é superior366.
364
ISNARDIS, Andrei e LINKE, Vanessa. Pinturas Rupestres de Diamantina e Municípios Vizinhos
(Porção Meridional da Serra do Espinhaço, Minas Gerais). Campo Grande: SAB, 2005.
365
http://portal.iphan.gov.br
366
Segundo JÁCOME, Camila. Laudo de Avaliação sobre Estado de Conservação do Patrimônio
Arqueológico do Conjunto Natural, Paisagístico e Arqueológico da Serra dos Milagres. 2009.
367
PROUS, 1992/1993, apud JÁCOME, op. cit.
368
JÁCOME, op. cit.
369
http://revista.fapemig.br/materia.php?id=175
370
JÁCOME, op. cit.
221
Para André Prous371 não há evidências que sugiram que o abrigo foi
ocupado permanentemente, pois os vestígios de fogueiras e restos alimentares são
esparsos ao longo do tempo. Entretanto é fácil supor que o local teria sido uma espécie
de marco topográfico importante, devido ao grande número de pinturas (com muitas
sobreposições e variações gráficas, dados indicativos de uso e reuso do espaço do sítio)
e à presença do cemitério dentro do contexto da Serra do Cipó, onde tantos outros
abrigos foram utilizados com menor intensidade.
371
PROUS, 1992/1993, apud JÁCOME, op. cit.
372
http://revista.fapemig.br/materia.php?id=175
222
Imagens do Grande Abrigo - entorno do sítio, pinturas no paredão e blocos abatidos com pinturas. Fotos: C. Lima.
223
Acima: Pranchas mostrando os momentos de execução de painel do Grande Abrigo (extraída de PROUS, André. Arte
Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007. Abaixo: fotografia do local (C. Lima).
224
Os estudos realizados no Grande Abrigo foram fundamentais para inscrever
a Tradição Planalto no mapa da arte rupestre brasileira. Como se vê nos trechos
transcritos abaixo, o sítio forneceu oportunidades únicas de datação e de associação
entre pinturas e outros vestígios arqueológicos:
373
ISNARDIS, Andrei. Entre as Pedras. As ocupações pré-históricas recentes e os grafismos rupestres
da região de Diamantina, Minas Gerais. Tese de doutoramento. São Paulo: Museu de Arqueologia e
Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP), 2009.
374
JÁCOME, Camila. Laudo de Avaliação sobre Estado de Conservação do Patrimônio Arqueológico do
Conjunto Natural, Paisagístico e Arqueológico da Serra dos Milagres. 2009.
375
Tidos como as expressões rupestres das mais recentes do “pacote” local.
376
Idem ao anterior.
225
sanfranciscanas, além de “figuras astronômicas” como algumas representações
“solares” significativas.
226
Outros desenhos antropomórficos do Grande Abrigo: “bonecões” atribuídos à T. Agreste e cena de sexo atribuída à T.
Nordeste (última figura). Fotos: C. Lima.
227
pesquisa. Já na Lapa do Gentio, sítio que atualmente apresenta a maior área abrigada, as
manifestações rupestres – zoomórficos Planalto e “geométricos” – aparecem em muito
menor quantidade.
228
Figuras do paredão da Lapinha: antropomórficos estilizados atribuídos à T. Planalto (no alto) e outros mais
detalhados (acima) que remetem às expressões das Tradições Agreste e Nordeste.
Abaixo: trama gráfica do sítio Lapinha e figura geométrica encontrada no paredão (à direita). Fotos: C. Lima.
229
Imagens da Gruta do Gentio, com suas pinturas em destaque. Fotos: C. Lima.
230
Conceição do Mato Dentro
231
algumas representações mais detalhadas que lembram outros estilos como a Tradição
Nordeste e um “boneco” certamente atribuível à Tradição Agreste.
Acima: paisagem do “Salão de Pedra” e pinturas vestigiais no sítio Grupo 1. Abaixo: imagens do sítio Colina com
suas pinturas zoomórficas (“felino” e “peixe”). Fotos: C. Lima.
232
Imagens do sítio Rupestre 2 destacando as combinações de grafismos zoomórficos. Fotos: C. Lima.
233
“Bonecos” atribuíveis à T. Agreste presente no painel do sítio Rupestre 2. Fotos: C. Lima.
Pelo que fomos informados o local ainda não tinha sido objeto de nenhuma
visita acadêmica e nossa equipe identificou duas ocorrências na área.
234
Acima: vista do paredão onde se localiza o sítio Tijucal 1. Abaixo: parte do “Painel 1”. Fotos: C. Lima.
Antropomórficos do “Painel 1”, semelhantes às expressões Montalvânia, como se vê na reprodução ao lado, extraída
de PROUS, André e RIBEIRO, Loredana (orgs.) Arqueologia do Alto Médio São Francisco. Tomo 1. Região de
Montalvânia. Arquivos do Museu de História Natural. Vol. XVII/XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1996/7.
235
Acima: séries de bastonetes, “pentes” e zoomórficos do “Painel 1”. Fotos: C. Lima.
236
Imagens do “Painel 2”: zoomórficos (cervídeos em destaque), objetos (“seta”) e outros grafismos. Fotos: C. Lima.
237
Já o “Painel 3”, que se estende pelo terceiro e mais alto patamar da rocha, é
constituído por uma literal confusão de estilos e sobreposições: zoomórficos Planalto,
como o recorrente “par de peixes” típico dos sítios planalto (muito comuns, por
exemplo no Distrito Diamantino), dentre outras representações feitas, em geral, com
tinta amarela; um grupo de “geométricos” em vermelho claro (linhas retas, linhas
pontilhadas, linhas em zigue-zague, bastonetes e outros conjuntos mais complexos
como círculos ligados formando “correntes”) que sobem da parede para o pequeno teto
do “abrigo”, e remetem a expressões gráficas da Tradição São Francisco, juntos de
desenhos aparentemente feitos com a mesma tinta, que lembram animais miriápodes
(lacraias); logo à esquerda desse conjunto “geométrico”, dando continuidade ao painel,
surgem mais zoomórficos Planalto e grandes “pentes”, associados a antropomórficos
com o corpo dilatado, muito semelhantes aos apresentados por L. Ribeiro e A.
Isnardis377 para os sítios Montalvânia do vale do Peruaçu, todas estas figuras em
vermelho-vinho, sobrepostas ao que parece ser um fundo residual de pinturas em
vermelho claro; mais à esquerda ainda, em uma área onde a rocha sofreu intenso
descamamento figuram resíduos de grafismos em vermelho possivelmente da T.
Planalto, sobrepostos por pinturas em vermelho-vinho, entre as quais se destacam um
antropomórfico “contorcido” e “em queda livre” (Complexo Montalvânia?) e uma ave
muito bem conservada cuja filiação estilística, por si só já é um desafio, pois, ao mesmo
tempo que lembra manifestações Planalto da região de Diamantina, remete também a
grafismos da Tradição Nordeste, do Complexo Montalvânia e até da unidade Piolho de
Urubu. Estes grafismos em vermelho-vinho quase sempre se sobrepõem às demais
pinturas, aparecendo inclusive nas partes descamadas da rocha, sendo, muito
provavelmente, os mais recentes do conjunto.
377
RIBEIRO, Loredana e ISNARDIS, Andrei. Conjuntos Gráficos do Alto-Médio São Francisco (Vale do
Peruaçu e Montalvânia). In: PROUS, André e RIBEIRO, Loredana (orgs.). Arqueologia do Alto Médio
São Francisco. Tomo 1. Região de Montalvânia. Arquivos do Museu de História Natural. Vol.
XVII/XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1996/7.
238
Imagens do 3° patamar do sítio Tijucal 1. Fotos: C. Lima.
Grafismos do “Painel 3”: Zoomórficos (“par de peixes” e “miriápodes”) e “geométricos”. Fotos: C. Lima.
239
Figuras incomuns do “Painel 3”: 1- antropomórfico “em queda livre”; 2 - “ave” de difícil identificação estilística.
Comparação morfológica entre a figura da ave isolada na foto e as características de zoomórficos de Montalvânia –
Unidade Piolho de Urubu no alto, à direita e T. Nordeste acima. Pranchas extraídas de PROUS, André e RIBEIRO,
Loredana (orgs.). Arqueologia do Alto Médio São Francisco. Tomo 1. Região de Montalvânia. Arquivos do Museu de
História Natural. Vol. XVII/XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1996/7. Fotos: C. Lima.
240
A pouca distância (cerca de 300 metros) encontra-se outro sítio, que
denominamos “Tijucal 2”. Formado por um maciço rochoso de grandes dimensões, o
local apresenta uma grande e elevada área abrigada, voltada para oeste, de onde se tem
uma visão panorâmica da paisagem do entorno. Este grande abrigo, no entanto, recebeu
poucas pinturas que se encontram em acelerado processo de desgaste.
Face oeste do sítio “Tijucal 2”. Área abrigada e pinturas vestigiais. Fotos: C. Lima.
241
Acima: face leste do sítio Tijucal 2 e suas pinturas. Abaixo: A longa “procissão” de antropomórficos estilizados ao
lado de prancha com associações de antropomórficos da região de Montalvânia. Fonte: PROUS, André e RIBEIRO,
Loredana (orgs.) .Arqueologia do Alto Médio São Francisco. Tomo 1. Região de Montalvânia. Arquivos do Museu de
História Natural. Vol. XVII/XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1996/7. Fotos: C. Lima.
242
Conceição do Mato Dentro representou o nosso maior “problema” durante a
pesquisa. A complexidade dos conjuntos rupestres locais, muito diferentes entre si e
certamente resultado da atuação de diferentes grupos de artistas, merece uma
investigação muito mais profunda do que a que nós pudemos realizar. Estamos
conscientes de que novos estudos na área podem tanto revelar novos dados que não
percebemos, quanto contradizer algumas de nossas proposições. Para nossa equipe
chegou a ser angustiante tentar fazer uma análise estilística dos seus grafismos
rupestres, sem a utilização de metodologias próprias da arqueologia (como o decalque,
por exemplo) ou sem publicações especializadas sobre eles. Entretanto, não podíamos
deixar de propor esta abordagem inicial, dadas as características inusitadas e instigantes
dos conjuntos locais.
Estes sítios têm sido visitados por “turistas”, algumas pinturas já foram
danificadas pelos visitantes e é urgente a realização de outros estudos científicos no
município, pois o desgaste natural dos suportes também está acelerando a perda de
grafismos que podem revelar uma etno-história das mais ricas. Fica o convite, ou
melhor, o apelo aos colegas arqueólogos.
Gouveia
243
região, num movimento dialético no qual percepção significa também intervenção,
construção, da paisagem378.
378
Ver LINKE SALVIO, Vanessa; LIMA, Cláudio; LAGE, Daniela e VALENTE, Polyana. “Diamantina
Rupestre: Percepções e Construções da Paisagem em uma abordagem Histórica, Geográfica e
Arqueológica na Região do Antigo Distrito Diamantino”. Revista FUNADESP: Revista da Fundação
Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular. Vol 1, n° 1. Brasília: A Fundação, 2006.
LINKE, Vanessa. Paisagem dos sítios de arte rupestre da região de Diamantina. Dissertação de
Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
379
LINKE, op. cit.
380
Como na Lapa do Caboclo, segundo ISNARDIS, Andrei. Entre as Pedras. As ocupações pré-
históricas recentes e os grafismos rupestres da região de Diamantina, Minas Gerais. Tese de
doutoramento. São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo
(USP), 2009.
381
ISNARDIS e PESSOA, 2007, apud JÁCOME, Camila. Laudo de Avaliação sobre Estado de
Conservação do Patrimônio Arqueológico do Conjunto Natural, Paisagístico e Arqueológico da Serra
dos Milagres. 2009.
244
identificar também, pontualmente, grafismos atribuíveis ao Complexo Montalvânia382, à
Tradição Agreste383 e pelo menos uma “influência” da Tradição Nordeste em certas
temáticas adotadas (cenas de sexo) e nas características gráficas de algumas figuras
antropomórficas.
382
Os desenhos Montalvânia aparecem sempre dividindo os painéis com as figuras Planalto, algumas
vezes se sobrepondo a elas, mas, em sua maioria, ocupando a periferia dos suportes. ISNARDIS, Andrei e
LINKE, Vanessa. Pinturas Rupestres de Diamantina e Municípios Vizinhos (Porção Meridional da Serra
do Espinhaço, Minas Gerais). Campo Grande: SAB, 2005.
383
A presença de figuras Agreste no Planalto Diamantino – grandes antropomorfos “estáticos”, isolados e
grosseiramente desenhados, que evitam se sobrepor a outros desenhos – reforça a ideia de uma ampla
distribuição dessa unidade estilística pela Serra do Espinhaço. ISNARDIS e LINKE, op. cit.
384
FAGUNDES, Marcelo; PIUZANA MUCIDA, Danielle e MORAIS, Marcelino Santos. Paisagens Pré-
históricas – O Patrimônio Arqueológico no Alto Jequitinhonha, Brasil. Diamantina: Anais do Congresso
Rotas do Patrimônio, 2010.
385
Fases estas também facilmente perceptíveis nos painéis Planalto do Alto Jequitinhonha, segundo
FAGUNDES, PIUZANA e MORAIS, op. cit.
386
Mais detalhes sobre essa cronologia relativa podem ser acessados em ISNARDIS, Andrei e LINKE,
Vanessa. Pinturas Rupestres de Diamantina e Municípios Vizinhos (Porção Meridional da Serra do
Espinhaço, Minas Gerais). Campo Grande: SAB, 2005. LINKE SALVIO, Vanessa; LIMA, Cláudio;
LAGE, Daniela e VALENTE, Polyana. “Diamantina Rupestre: Percepções e Construções da Paisagem
em uma abordagem Histórica, Geográfica e Arqueológica na Região do Antigo Distrito Diamantino”.
Revista FUNADESP: Revista da Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular.
Vol 1, n° 1. Brasília: A Fundação, 2006. LINKE, Vanessa. Paisagem dos sítios de arte rupestre da região
de Diamantina. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2008. ISNARDIS, Andrei. Entre as
Pedras. As ocupações pré-históricas recentes e os grafismos rupestres da região de Diamantina, Minas
Gerais. Tese de doutoramento. São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de
São Paulo (USP), 2009.
245
figurativos (zoomorfos) ou geométricos, sempre sobrepostos a todas as
demais figuras. (...) há grafismos pintados em bicromia, resumidos a
bastonetes alternados em tinta vermelha e amarela. Figuras zoomorfas
chapadas, em tinta vermelha, aparecem em alguns sítios, mas por enquanto
não podemos tratá-las como um conjunto, pois não são recorrentes nos e
entre os sítios. Alguns antropomorfos não permitem, por enquanto, uma
definição segura entre as diferentes unidades estilísticas encontradas na
região. E, além disso, diversos zoomorfos que podemos atribuir à Tradição
Planalto não foram ainda relacionados com segurança aos subconjuntos
apresentados.”387
387
ISNARDIS, Andrei e LINKE, Vanessa. Pinturas Rupestres de Diamantina e Municípios Vizinhos
(Porção Meridional da Serra do Espinhaço, Minas Gerais). Campo Grande: SAB, 2005.
246
Imagens do sítio Pedra do Tatu: Área abrigada e pinturas na face leste. Fotos: K. Hernandes e C. Lima.
Mais à frente, na mesma estrada que margeia a serra encontra-se outro sítio,
a “Lapa do Giovanni”, constituído por dois painéis maiores entre os quais localiza-se a
entrada de um abrigo complexo, formado por um bloco acomodado sob o qual está a
entrada de uma fenda que leva a estreitas galerias no interior do maciço rochoso. O piso
deste abrigo é composto por rochas e sedimentos argilosos e orgânicos trazidos pelas
águas de chuva que penetram no local. No painel à esquerda do abrigo, se destaca um
conjunto formado por três grandes cervídeos, um deles flechado e, no da direita aparece
247
uma composição de outras figuras zoomórficas e sinais como bastonetes e “nuvens de
pontos”.
Acima, as estreitas galerias da área abrigada e algumas pinturas no paredão frontal da “Lapa do Giovanni”. Fotos: C.
Lima.
248
Pinturas no paredão frontal da “Lapa do Giovanni”. Fotos: C. Lima.
388
Possui aproximadamente 16 metros de desenvolvimento linear e quatro de profundidade. Sendo sua
altura em alguns pontos superior a 5 metros, segundo V. Linke.
249
No alto, à esquerda, paredão onde se insere o abrigo (indicado pelas chaves) e as pinturas que aparecem na Lapa do
Camelinho. Fotos: K. Hernandes.
250
Pinturas da Lapa do Camelinho em detalhe. Fotos: K. Hernandes.
251
visitados em Gouveia, contudo, “não são poucos os casos de atribuição duvidosa”,
destaca A, Isnardis389.
Diamantina
389
ISNARDIS, Andrei. Entre as Pedras. As ocupações pré-históricas recentes e os grafismos rupestres
da região de Diamantina, Minas Gerais. Tese de doutoramento. São Paulo: Museu de Arqueologia e
Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP), 2009.
390
Amplitude térmica é a medida da variação climática de uma determinada área ao longo de um dia.
Existem locais nos quais a temperatura alcança picos extremos de calor e de frio durante o período de 24
horas, apresentando, assim, uma grande amplitude térmica.
252
desde 2004 por uma equipe do Setor de Arqueologia da UFMG e, a partir de 2009,
professores e alunos da Faculdade de Humanidades da Universidade Federal dos Vales
do Jequitinhonha e Mucuri passaram a atuar na região, fundando o Laboratório de
Arqueologia e Estudo da Paisagem da referida Universidade. A equipe da UFVJM,
coordenada pelo arqueólogo Prof. Marcelo Fagundes, optou por estudar a história da
ocupação do espaço no Alto Vale do Jequitinhonha em região vizinha às áreas
abrangidas pelas pesquisas sediadas na UFMG, desenvolvendo projetos de
levantamento, prospecção, registro e escavação de sítios arqueológicos, bem como
trabalhos de análise em laboratório e de educação patrimonial391.
391
Podemos citar como exemplos da atuação da UFVJM os projetos A área arqueológica de Campo das
Flores: a escavação do sítio Itanguá 02, Senador Modestino Gonçalves/ Itamarandiba, MG (Marcelo
Fagundes, Danielle Piuzana, Marcelino Morais); Arte Rupestre no Alto Jequitinhonha: o sítio Serra dos
Índios, Diamantina, Minas Gerais (Eliane Ferreira, Marcelo Fagundes); Educação patrimonial e
arqueologia: as vivências na Escola Estadual Leopoldo Miranda, Diamantina, Minas Gerais (Fernanda
Conceição a. Tameirão, Alcione Rodrigues Milagres, Patrícia Silva Lima, Janderson Rubens Tameirão,
Marcelo Fagundes), dentre outros já publicados (ver: Caderno de Resumos do 4° Simpósio de
Arqueologia e Patrimônio de Minas Gerais/ 3ª Reunião da SABSUDESTE, Ouro Preto: 2010).
253
Sítio Mendes II e suas pinturas residuais. Fotos: C. Lima.
392
FAGUNDES, Marcelo; PIUZANA MUCIDA, Danielle e MORAIS, Marcelino Santos. Paisagens
Pré-históricas – O Patrimônio Arqueológico no Alto Jequitinhonha, Brasil. Diamantina: Anais do
Congresso Rotas do Patrimônio, 2010.
393
LINKE, Vanessa. Paisagem dos sítios de arte rupestre da região de Diamantina. Dissertação de
Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2008. ISNARDIS, Andrei. Entre as Pedras. As ocupações pré-
históricas recentes e os grafismos rupestres da região de Diamantina, Minas Gerais. Tese de
doutoramento. São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo
(USP), 2009.
394
“(...) vê-se que, ao invés de desordem, há um cuidado para fazer com que as figuras se encaixem, umas
tocando os limites das outras ou inserindo-se dentro deles”. ISNARDIS, Andrei e LINKE, Vanessa.
Pinturas Rupestres de Diamantina e Municípios Vizinhos (Porção Meridional da Serra do Espinhaço,
Minas Gerais). Campo Grande: SAB, 2005.
395
ISNARDIS, 2009, apud FAGUNDES, PIUZANA, e MORAIS, op. cit.
254
Decalque da Lapa do Voador, Painel I. A imagem mostra como figuras se encaixam umas nos limites das outras.
(fonte: ISNARDIS, Andrei e LINKE, Vanessa. Pinturas Rupestres de Diamantina e Municípios Vizinhos (Porção
Meridional da Serra do Espinhaço, Minas Gerais). Campo Grande: SAB, 2005).
396
FAGUNDES, PIUZANA e MORAIS, op. cit.
397
“Os sítios arqueológicos da Serra do Cipó [Santana do Riacho, Conceição do Mato Dentro, etc..], Grão
Mogol e da Serra do Cabral oferecem um contexto de diálogo bastante promissor para os conjuntos
rupestres de Diamantina, pois parece haver semelhanças e distinções significativas, em contextos
ambientais bastante semelhantes. Lagoa Santa também oferece uma forte referência para nossas análises
(...), uma vez que ali se definiu a Tradição Planalto e dali dispomos de uma bibliografia que inclui
análises de um grande números de sítios”. ISNARDIS e LINKE, op. cit.
398
ISNARDIS, Andrei. Entre as Pedras. As ocupações pré-históricas recentes e os grafismos rupestres
da região de Diamantina, Minas Gerais. Tese de doutoramento. São Paulo: Museu de Arqueologia e
Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP), 2009.
255
ventre. As figuras zoomórficas em tinta vermelha parecem combinar elementos de mais
de uma espécie, aparecendo, por exemplo, cervídeos estilizados em forma de ave.
Acima: Inserção do sítio Mendes I e o início do seu decalque pela equipe da UFVJM e estagiários da Universidade
Federal do Piauí - UFPI. Abaixo: imagens dos grafismos do sítio. Fotos: C. Lima.
256
No alto, pinturas e crayon nos painéis do sítio Mendes I. Acima, uma “rede” em crayon envolvendo um “peixe”
executado anteriormente com tinta. Fotos: C. Lima.
257
Pinturas e exemplos da utilização do crayon nos painéis do sítio Mendes I: “peixes” em crayon de variadas
espessuras. Fotos: C. Lima.
258
5.2 A pesquisa sob um olhar panorâmico: grandes questões
Para dar conta dessa primeira grande questão adotei a prática de fazer uma
análise geral de cada sítio arqueológico visitado, observando especialmente o estilo dos
grafismos e outras situações ou características pontuais que julgamos (eu e a equipe de
trabalho) importantes. Esta análise já foi apresentada nos tópicos anteriores, e resta
agora tratar do panorama da arte rupestre mapeada em conjunto.
259
Mapa da arte rupestre na rota turística da Estrada Real (Fontes base: IBGE, NASA. Elaboração: Bráulio M. Fonseca)
260
Não há como explicar os porquês dessas escolhas entre representar “a
natureza” (se é que essa era mesmo a intenção dos artistas rupestres) ou criar painéis
com grafismos “abstratos”, ou melhor, que nós, hoje, interpretamos como abstratos. Em
alguns estudos arqueológicos chegou-se a pensar que estas escolhas estariam
relacionadas a questões de gênero, como se vê no texto transcrito abaixo:
399
DIAS, Maria Geralda Moreira. “A arte rupestre em Minas Gerais”. 7 Faces – Revista da Fundação
Comunitária de Ensino Superior de Itabira. Vol. 3, nº 2 (julho a dezembro de 2002). Itabira: FUNCESI,
2002.
400
Aqui vale lembrar duas situações distintas: primeiro que os animais representados nos painéis de arte
rupestre na maioria das vezes não coincidem com as espécies encontradas nos resíduos alimentares
identificados nas escavações arqueológicas, ou seja, muitos dos animais caçados e consumidos não
aparecem entre as representações rupestres, e vice-versa, tornando “fraca” a ligação entre caça e
representação figurativa. Em segundo lugar, por outro lado, é preciso destacar a geometrização que
prevalece na decoração da cerâmica, uma atividade majoritariamente feminina nas sociedades indígenas
tardias, fato que sugere uma associação entre o gênero feminino e a expressão esquemática.
401
PROUS, André. Arte Pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2007.
261
Acredito que possa até haver alguma lógica nesta associação figuração/
expressão masculina X geometrização/expressão feminina, contudo, prová-la me parece
impossível e seria um caminho simplista demais, que reduziria a diversidade cultural
das expressões rupestres a uma fórmula perigosa e crivada de “variáveis” e exceções.
402
Um bom resumo sobre estas teorias pode ser encontrado em CASADO, Jesús Medina; GONZÁLES,
Juan F. Torrecillas; RUS, Ernesto Carrasco e RUS, Javier Carrasco. El fenómeno rupestre esquemático
en la Cuenca Alta del Guadalquivir I: Las Sierras Subbéticas. Granada: Ed dos autores, 1985. Ver
especialmente os capítulos 6 – El problema de las interpretaciones y el estancamento en la investigación
(p. 89-96) e 7 – Los códigos en el esquematismo rupestre (p. 99-104).
262
vestígios de ocupação mais recente, que corresponde à região central das Estradas
Reais, onde se encontram todos seus caminhos.
4º) Por outro lado é preciso destacar, tornando a análise cada vez mais
complexa, que na grande maioria das manifestações ou conjuntos gráficos aparecem o
que chamei de “grafismos universais”. O termo “universal” é um pouco forte, mas
resolvi adotá-lo para identificar os sinais ou desenhos que perpassam todas as tradições,
surgindo, inclusive entre as manifestações rupestres estilisticamente não filiadas.
Identifiquei como “universais” especialmente sinais “geométricos” de diferentes níveis
de complexidade: pontilhados, séries de bastonetes monocrômicos, séries de bastonetes
bicrômicos403, “zigue-zagues”, séries de “X” (interpretados muitas vezes como grupos
antropomórficos estilizados), círculos concêntricos (simples ou radiados, interpretados
como figuras “solares”) e geométricos concêntricos em geral. Estes sinais, que
aparecem tão abundantemente em quase todos os conjuntos rupestres no Brasil (e no
exterior) chamaram nossa atenção nos trabalhos de campo, uma vez que visitamos
muitas manifestações em um período relativamente curto de tempo gasto na pesquisa.
Como pensar essa recorrência? Como entender o compartilhamento de certos sinais
403
Bastonetes alternados em vermelho e amarelo, por exemplo, são bastante recorrentes em todos os
conjuntos, de várias regiões do país.
263
gráficos por grupos culturais que, pelo conjunto de suas manifestações rupestres, seriam
certamente bastante diferentes? Estes sinais (significantes) teriam o mesmo “valor”
(significado) para todos os grupos que os utilizaram?
1 2 3
4 5
6 7
Séries de bastonetes bicrômicos e monocrômicos que aparecem em muitos sítios: 1- Toca do Índio/ Andrelândia; 2 e
3- Shangrilá/ São Thomé das Letras; 4- Serra do Lenheiro/ São João Del-Rei; 5-Pedra Pintada/ Cocais; 6- Tijucal 1/
Conceição do Mato Dentro; 7- Mendes 1/ Diamantina. Fotos: C. Lima.
264
1 2 3
Linhas em zigue-zague: 1- Toca do Índio/ Andrelândia (sul de Minas); 2- Pedra Pintada/ Cocais (centro de Minas) ;
3- Lapa do Camelinho/ Gouveia (norte de Minas). Fotos: C. Lima e K. Hernandes.
1 2 3
4 5 6
Círculos e geométricos concêntricos em geral: 1 e 2- Toca do Índio/ Andrelândia; 3- Grande Abrigo/
Santana do Riacho; 4- Carrancas; 5 e 6- Toca do Índio/ Andrelândia. Fotos: C. Lima e J. R. Vitral.
A primeira hipótese que nos ocorreu para responder a essas questões surgiu
da leitura de publicações oriundas de congressos que uniram profissionais renomados da
psicologia, filosofia, antropologia, e arqueologia404. Para este conjunto de autores a
404
Trata-se das coletâneas BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. (org.). Moitará I: O simbolismo nas
culturas indígenas brasileiras. São Paulo: Paulus, 2006 e CALLIA, Marcos e OLIVEIRA, Marcos F. de.
(orgs.). Terra Brasilis: pré-história e arqueologia da psique. São Paulo: Paulus, 2006. Publicadas pelo
grupo Moitará, estas obras são compostas por ensaios de autores ligados ao desenvolvimento do
pensamento de Jung no Brasil, especialmente ao estudo da Teoria dos arquétipos. (O termo Moitará foi
adotado pelos autores numa referência aos índios do Alto-Xingu, que o usam para designar o encontro
para trocas entre suas tribos).
265
existência de tais símbolos compartilhados pelas mais diferentes culturas ancestrais
remeteria à ideia do “inconsciente coletivo”, das “imagens arquetípicas” ou
“primordiais” – teoria fundamental na psicologia Junguiana, que, por sua vez, “bebeu”
do pensamento filosófico de Platão, Kant, Hegel e Schopenhauer. Não seria o caso de
detalhar todas essas teorias aqui, uma vez que este trabalho já foi feito e publicado nos
volumes aos quais me referi, entretanto não pude deixar de citar esta hipótese que me
pareceu, no mínimo, atraente. Essa linha de raciocínio tem algo em comum com o
pensamento estruturalista de Lévi-Strauss, quando o antropólogo se refere às “estruturas
inconscientes e universais do pensamento humano”405.
405
LÉVI-STRAUSS, C. Tristes tropiques. Paris: Plon, 1955, apud RIBEIRO, Loredana. “Repensando a
tradição: a variabilidade estilística na arte rupestre do período intermediário de representações no alto-
médio rio São Francisco”. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. N° 17. São Paulo: MAE/USP,
2007, p. 127-147.
406
http://revista.fapemig.br/materia.php?id=175, acessado em agosto de 2011.
266
“Todo o processo era dinâmico e recebia a influência das diferentes culturas
e gerações, o que torna qualquer generalização sobre os grupos duvidosa. As
formas gráficas e temáticas de pinturas rupestres compartilhadas por
populações de diferentes regiões servem para definir tradições
arqueológicas. As semelhanças nos grafismos evidenciam influências
culturais entre grupos, mesmo distantes um do outro.”407
5º) Como fica claro no que expus nos itens anteriores, os resultados do
nosso estudo reforçam a complexidade e a dificuldade em abordar o universo gráfico-
pictórico do Brasil pré-colonial. Devido ao avanço das pesquisas, tanto sobre sítios já
estudados quanto sobre aqueles recém-descobertos, e à adoção de novas metodologias e
pressupostos teóricos, reconhece-se, hoje, a necessidade de reconsiderar o “mapa
clássico” da arte rupestre brasileira proposto por A. Prous em 1992408. A própria
categorização parece limitadora de um entendimento mais amplo das ocorrências. Penso
que não seria o caso de abandonar a metodologia estruturalista de classificação da arte
rupestre em conjuntos estilísticos – tradições, estilos, fácies – mas, talvez, de pensar
essas classificações por outras perspectivas e agregar o maior número possível de
informações ao estudo, como as escolhas e o modo de inserção e localização de cada
manifestação na paisagem, a organização das figuras nos painéis, as possíveis relações
entre conjuntos distantes uns dos outros e até mesmo o exame das substâncias presentes
nos pigmentos remanescentes para comparar os materiais utilizados nos diferentes
conjuntos. Seria importante não só classificar o resultado final construído, pronto nos
painéis de arte rupestre que pesquisamos, mas, principalmente, pensar a própria
construção desses painéis, no âmbito social, cultural e histórico das sociedades que os
produziram. Como colocam Isnardis e Linke, o interessante seria investigar não
somente a relação entre signos ou buscar uma compreensão dos grafismos em si, mas
também buscar penetrar nos universos culturais que os produziram, no sistema
simbólico em que todos eles estão envolvidos, expresso nos comportamentos e escolhas
humanas. São esses comportamentos que estes, dentre outros pesquisadores
contemporâneos, consideram arqueologicamente abordáveis a partir dos vestígios409.
407
http://revista.fapemig.br/materia.php?id=175, acessado em agosto de 2011.
408
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1992.
409
Ver ISNARDIS, Andrei e LINKE, Vanessa. Pedras Pintadas, Paisagens Construídas: A Integração de
Elementos Culturalmente Arquitetados na transformação e manutenção da paisagem. In: Revista de
267
A análise puramente estilística, baseada nas tipologias já descritas, como
nos propusemos a fazer aqui, é um caminho introdutório importante para o estudo da
arte rupestre, uma vez que o estilo pode ser considerado “um dos comportamentos que
integram os sistemas simbólicos pelos quais agem os homens”410, mas não é suficiente
para chegarmos a conclusões fechadas a respeito dessa prática cultural. Infelizmente não
houve tempo necessário para usar outros elementos de análise no nosso estudo, mas fica
o caminho aberto e sugerido para novas pesquisas que certamente acontecerão nos sítios
que percorremos.
Arqueologia. Vol 23, n° 1, p. 42-59. São Paulo: USP/Sociedade Arqueologia Brasileira. Julho de 2010.
(mimeog.).
410
ISNARDIS e LINKE, op. cit.
411
http://revista.fapemig.br/materia.php?id=175, acessado em agosto de 2011.
268
compreendê-lo. Tal ‘exigência de ordem está na base do pensamento que
chamamos primitivo, mas somente na medida em que está na base de
qualquer pensamento’ (LÉVI-STRAUSS, 1970).”412
412
JÁCOME, Camila e PANACHUCK, Lílian. Arte Rupestre no Alto Rio São Francisco: Aportes
Iniciais. SAB, 2003.
413
PROUS, André; BAETA, Alenice; RUBBIOLI, Ezio. O patrimônio arqueológico da região de
Matozinhos: conhecer para proteger. Belo Horizonte: Ed do autor, 2003.
269
indeléveis, que atestam a atuação dos grupos indígenas, seus autores, na construção
dessa paisagem e desse marco geográfico414.
270
portanto, imaginar que o próprio traçado desses caminhos possa ter derivado mesmo da
movimentação desses grupos pretéritos, ainda que seus mecanismos de apropriação
territorial tenham sido muito distintos. Nossa hipótese atualizada é que o
seminomadismo, exercitado num âmbito territorial genericamente delimitado,
implicando certa recorrência nos itinerários das migrações, acabou por definir
“caminhos indígenas”, apropriados pelos diversos grupos culturais que se sucederam e
que seriam, mais tarde, utilizados como rotas de exploração e ocupação do território
pelos colonos. Na história da apropriação de espaços pelos humanos sempre há, no
mínimo, alguma assimilação de informações entre os grupos que convivem ou se
sucedem numa mesma paisagem. E, embora não seja possível provar cabalmente,
parece correta a ideia de que toda uma cultura espacial construída ao longo de milênios
pelos povos seminômades, passando pelos autores das pinturas e gravuras rupestres,
tenha influenciado diretamente seus sucessores semissedentários, reverberando mesmo
na espacialização da sociedade colonial instalada ao longo dos caminhos rupestres.
271
Parte 3: Os caminhos, suas pedras e uma memória ancestral revivida.
Figura indígena sustentando a legenda de um mapinha vendido como “lembrança da Estrada Real” em
postos da Rede Graal ao longo do roteiro turístico
272
Alertem todos alarmas
E a cabeça rodava
E até mesmo a fé
273
Até aqui percorri um longo caminho buscando entender diferentes formas
culturais de apropriação e construção, historicamente efetivadas, da paisagem
referenciada pela Estrada Real. Já me referi à atuação cumulativa de povos indígenas
pré-coloniais, do caldeirão cultural multiétnico do Brasil colonial, dos naturalistas que
percorreram os caminhos reais no século XIX, entre outros agentes. Mas a história
dessas vias não termina por aqui, pelo contrário, vem sendo revivificada, ganhando
novas nuances culturais na contemporaneidade. Comprovando o que diz V.Linke:
415
LINKE, Vanessa. Paisagem dos sítios de arte rupestre da região de Diamantina. Dissertação de
Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p.19.
416
P. Fournier destaca a importância desses elementos no segmento turístico-cultural: “Los ‘itinerarios
culturales’ – como el proyecto de cooperacíon México-Estados Unidos em torno al Camino Real de
Tierra Adentro, así como los parejes y el paisage de por los que atraviesa – forman parte de iniciativas
para conservar y promover el patrimonio cultural representado por esas rutas, por las que fuyeron bienes e
ideas durante varios siglos. La constitución de rutas culturales turísticas parte del estudio de los
asentamientos asociados com los caminos, sus características funcionales y arquitectónicas, su historia –
reconstruida mediante fuentes documentales y evidencias arqueológicas, según corresponda – tomando en
cuenta, además, la recuperacíon del patrimonio intangible, que incluye las lenguas, las expressiones
religiosas, las fiestas, la gastronomía, así como la promoción de su conservación.” (FOURNIER, Patrícia.
“Arqueología de los caminos prehispánicos y coloniales”. Arqueología Mexicana. Editorial Raices S.A.
de C.V./ Instituto Nacional de Antropologia e Historia, México. Volume XIV, n° 81, Rutas y Caminos en
el México Prehispánico, 2006, p. 31).
274
Nas últimas décadas os roteiros temáticos vêm se tornando cada vez mais
importantes dentro da atividade turístico-cultural. Essa modalidade, baseada no
interesse do turista pela diversidade cultural, desenvolve-se a partir de uma complexa
teia de experiências vividas nos destinos, que os tornam únicos, por implicar na
combinação entre lazer e conhecimento417.
417
CANDELA, 2005, apud FERREIRA, Luís e PINTO, Jorge. Itinerários Turísticos e Imaginário
Turístico nos Países de Língua Portuguesa. ISCET – Instituto Superior de Ciências Empresariais e do
Turismo / CIIIC – Centro de Investigação Interdisciplinar e de Intervenção Comunitária. Lisboa, 2008.
(mimeo).
275
Capítulo 6: Uma estrada idealizada
418
SANTOS, M. As Estradas Reais: introdução ao estudo dos caminhos do ouro e do diamante no
Brasil. Belo Horizonte: Ed. Estrada Real, 2001, p. 157.
276
Estradas Reais, percorridas por eles na primeira metade do século XIX419. Santos
questiona se essas referências são suficientes para corroborar a existência da expressão
“Estrada Real” designando as vias públicas de propriedade do governo imperial do
início do século XIX, ou, se o fato de não se encontrarem documentos oficias em que a
denominação “Estrada Real” seja utilizada poderia indicar que se tratava de uma
expressão de uso meramente popular e, daí, teria migrado para os relatos dos viajantes
estrangeiros. Seja qual for a solução desse impasse sobre a nomenclatura das vias
oficiais, não há dúvidas de que dos caminhos coloniais do século XVIII nasceram as
estradas reais do século XIX, e o topônimo “Estrada Real”, dado seu caráter chamativo,
prevaleceu até os dias de hoje.
419
Ver SANTOS, op. cit., p. 157-158.
420
Jornal Minas Gerais. 21/01/ 1999, Diário do Executivo, p. 10. Também disponível em http://
www.almg.gov.br - banco de dados da Legislação Mineira.
277
Embora seja difícil situar historicamente, de forma precisa, o surgimento da
expressão “Estrada Real”, este “emblema” hoje serve de mote para as mais diversas
idealizações e fantasias. Já foi, inclusive, tema da Escola de Samba Mangueira no
carnaval de 2004, conforme ilustra seu samba-enredo transcrito abaixo.
Mangueira,
Me fez encontrar
A estrada do sonho,
(Teu chão)
Oh Minas!
278
És um berço de cultura, és raiz,
Eu vou embarcar
Na Estrada Primeira
Em Minas Gerais foi criado o Programa Estrada Real, por meio da Lei 13.
173, de 1999 e do Decreto 41.205, de 2000 – um esforço para estimular o turismo na
área cortada pelos caminhos reais. Neste intuito têm atuado entidades públicas e
privadas, como o Instituto Estrada Real (criado pela Federação das Indústrias do Estado
de Minas Gerais – FIEMG), a Secretaria de Turismo de Minas Gerais, o Senac-MG, o
Sebrae e a Embratur, entre outras, contando com aporte financeiro do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) e apoio técnico do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento, sustentado pela Organização das Nações Unidas
(ONU)422.
421
MARTONI, Rodrigo Meira e VARAJÃO, Guilherme Fortes D. Chicarino. Caminhos Opostos.
Turismo nas Estradas Reais de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2009, p. 13.
422
MARTONI e VARAJÃO, op. cit. SANTOS, op. cit.
279
De acordo com as colocações dos pesquisadores Guilherme Varajão e
Rodrigo Martoni, no contexto do capitalismo neoliberal no qual os projetos turísticos
referentes à Estrada Real foram elaborados, várias entidades privadas, em especial o
Instituto Estrada Real, ocuparam paulatinamente o lugar do Estado como gestoras
desses projetos.
423
MARTONI e VARAJÃO, op. cit., p. 55.
280
aparência, mas dificilmente é verificada na essência, justamente porque o que
influencia fortemente os encaminhamentos é o capital.”424
424
MARTONI e VARAJÃO, op. cit., p. 14.
425
SANTOS, op. cit., p. 14.
281
Também Guilherme Varajão e Rodrigo Martoni fizeram, de bicicleta, parte
substancial do caminho Novo entre Ouro Preto e Petrópolis, e declaram: “O olhar do
viajante que percorre um trajeto de bicicleta é completamente diferente dos que utilizam
carro ou moto, pois as dimensões tempo e espaço são distintas. Assim, foi possível
identificar detalhadamente a infraestrutura, suas deficiências e necessidades.”426
426
MARTONI e VARAJÃO, op. cit., p. 16.
427
MARTONI e VARAJÃO, op. cit., p. 16.
428
MARTONI e VARAJÃO, op. cit., p. 17-18.
282
Exemplo de mapa usado em material de divulgação do roteiro da Estrada Real
283
Sobre os marcos instalados ao longo das vias Martoni e Varajão colocam:
429
MARTONI e VARAJÃO, op. cit., p. 69.
430
Ver MARTONI e VARAJÃO, op. cit., 2009.
431
Ver ASSIS, Adriana Paiva de; SOUZA, Mariana Oliveira e; MACHADO, Luciana Angélica de Sá.
Arqueologia da Estrada Real: as estruturas viárias. Florianópolis: SAB, 2007. (mimeog.).
432
ALMEIDA, Anaeli Queren Xavier. Arquitetura e Poder. Um olhar sobre a “Estrada Real”.
Monografia apresentada ao Curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
284
“Entendendo a cultura material como um elemento social repleto de
símbolos, a escolha desses padrões é analisada do ponto de vista de seus
significados, não descartando o caráter funcional da arquitetura. Portanto, as
estradas não apenas definiam um território de controle, mas também
expressavam a ideologia do Estado imperial brasileiro de uma Nação
estabelecida, comprometida com o progresso e a civilização.”433
Nossa pesquisa, por sua vez, não teve como objetivo identificar vestígios
arqueológicos da Estrada Real em si, sendo direcionada, ao invés disso, justamente pela
rota turística da Estrada Real. Nossa preocupação foi tratar dos antecedentes pré-
coloniais da rota, especialmente das intervenções dos “artistas rupestres” nessa
285
paisagem, relacionando o legado das sociedades indígenas ao contexto turístico
contemporâneo.
Ficou facilmente evidente para nós que o roteiro turístico é uma idealização
que não segue necessariamente os vestígios materiais originais da rota colonial, como
apregoa. Ao contrário, prioriza estradas acessíveis ao trânsito nos moldes
contemporâneos. Foram inúmeras as situações, em diferentes localidades, em que os
guias locais nos apontaram vestígios originais dos caminhos reais que não coincidiam
com o itinerário turístico, mas que se situavam nas proximidades. Nós mesmos
identificamos, por exemplo, trechos calçados com pedras do antigo Caminho dos
Diamantes na região da Serra do Espinhaço, localizados ao lado de estrada asfaltada
(BR 259), esta sim, indicada no roteiro turístico.
435
Atualment e os roteiros estão bem melhor detalhados no site: http://www.estradareal.tur.br/
436
Utilizamos o Track Maker-PRO para extrair as coordenadas coletadas em campo com o GPS supra.
Para a elaboração dos mapas foi usado o AUTO CAD 2008, que permitiu a manipulação de imagens do
Google Earth, a inclusão de fotos, o acabamento em cores e a utilização de grades de coordenadas UTM.
437
Depois de terminados os trabalhos de campo achei que seria importante registrar com maior riqueza de
detalhes o testemunho de Ricardo Couto, numa entrevista que o mesmo concordou em me conceder, via
e-mail, e que segue anexada, ao final deste trabalho.
286
projeto turístico em relação à história, uma vez que a Secretaria de Turismo salienta que
os 1.032 marcos foram instalados “no trajeto histórico original”438, o que seria uma
inverdade.
438
GOVERNO DE MINAS GERAIS. Plano Setorial de Turismo de Minas Gerais: diretrizes, programas
e ações 2007/2010. 2006, p. 74, apud MARTONI, Rodrigo Meira e VARAJÃO, Guilherme Fortes D.
Chicarino. Caminhos Opostos. Turismo nas Estradas Reais de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Livre
Expressão, 2009.
439
MARTONI e VARAJÃO, op. cit., p. 78-79.
440
MARTONI e VARAJÃO, op. cit., p. 80.
287
Os autores traçam um detalhado histórico441 em torno do qual constroem
uma crítica contundente onde querem mostrar que mecanismos políticos foram usados
de modo a transformar esse projeto turístico de interesse público em oportunidades para
exploração privada, distorcendo os fatos históricos em função do “espetáculo turístico”.
O turismo, sem dúvida, pode fazer com que os caminhos reais sejam
alavancas para o desenvolvimento econômico regional. A gama a ser explorada pelo
projeto é bem ampla, uma vez que a região demarcada oferece um variado potencial
turístico, abrangendo os setores histórico, arqueológico, cultural, de negócios,
gastronômico, rural, religioso, de ecoturismo, de saúde e esportivo. É imprescindível,
porém, salientar alguns pontos que devem ser observados na execução de programas
turísticos que se dizem promotores do bem-estar social e da valorização de bens
naturais, históricos e culturais.
441
Ver MARTONI e VARAJÃO, op. cit.
288
chegou ao que é a Estrada Real hoje, é preciso que os projetos não percam de vista o
enfoque municipal. Sem o envolvimento das comunidades do entorno das vias muito
pouco se fará.
289
Capítulo7: Uma estrada “real”
É importante recapitular
443
MORAES, op. cit.
444
Dora Corrêa coloca, muito oportunamente que: “A quase inexistência, até recentemente, de obras
historiográficas que descrevessem a paisagem da fronteira como humanizada explica que, apesar da
crítica à idéia de um vazio social e cultural, essa representação continue a se reproduzir no imaginário do
brasileiro.” (CORRÊA, Dora Shellard. Descrições de paisagens. “Construindo vazios humanos e
territórios indígenas na capitania de São Paulo ao final do século XVIII”. Varia História. Vol 24, n° 39.
Belo Horizonte: UFMG. Jan/jun 2008, p.135-136). Tributária da “história ambiental” a autora destaca
ainda que, por também enfocar o meio ambiente por meio do estudo da paisagem (uma construção
291
característico do período colonial (mas que acabou mesmo extrapolando esse contexto
temporal), o estabelecimento do espaço territorial do Estado brasileiro, segundo Ivan T.
M. Oliveira, procurou também se legitimar pela doutrina das fronteiras naturais.
antropológica e histórica), esse ramo historiográfico tem muito a contribuir para a recomposição da
memória social brasileira.
445
OLIVEIRA, Ivan Tiago Machado. Imaginação geográfica, território e identidade nacional no Brasil.
Revista Urutágua. N° 15, Maringá. abril/maio/junho/julho de 2008, p. 55. Disponível em:
http://www.urutagua.uem.br/015/1oliveira.pdf.
446
MAGNOLI, Demétrio. O Corpo da pátria. São Paulo: Moderna/EDENESP, 1997, p. 21. Apud
OLIVEIRA, Ivan Tiago Machado. Imaginação geográfica, território e identidade nacional no Brasil.
Revista Urutágua. N° 15, Maringá. abril/maio/junho/julho de 2008.
292
estabelecidas. Aqui a geografia emerge como instância explicativa das motivações,
estruturas e práticas históricas447. “A expansão territorial – despovoadora na perspectiva
dos índios, povoadora na do colonizador – marcou o desenvolvimento histórico do
Brasil. O país foi construído consoante com a apropriação de terras, tendo na conquista
espacial forte elemento de identidade e coesão sociais.”448
447
MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e História no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005.
448
MORAES, op. cit., p. 138.
449
MORAES, op. cit.
293
ser operacionalizada em função da elaboração de uma identidade nacional, os
argumentos de índole geográfica vão possibilitar a criação de discursos legitimadores
nos quais o país é visto como um espaço a ser conquistado e ocupado. Moraes destaca:
“É no contexto de países de passado colonial, mais do que em quaisquer outros, que a
geografia e a história se amalgamam na construção das identidades nacionais”450. Em
países da América Latina, com o Brasil, o território e o Estado presidem, pois, a ideia de
Nação. O conceito de território brasileiro antecipou-se à emergência do nosso Estado
Nacional451.
450
MORAES, op. cit., p. 78.
451
OLIVEIRA, op. cit.
294
Marco do roteiro da Estrada Real em Cocais, fazendo referência ao Sítio arqueológico da Pedra Pintada.
Foto: C. Lima.
Para discutir essa utilização dos conjuntos de arte rupestre somos levados a
pensar uma série de conceitos e questões.
295
ampla). O turismo cultural efetiva-se quando da apropriação de algo que possa ser
caracterizado como bem cultural. Um conjunto de bens com suas características únicas
e particulares, geralmente associado a lugares específicos, forma o patrimônio
cultural452. O patrimônio arqueológico integra esse cenário patrimonial dos lugares,
podendo ser conceituado como o conjunto de expressões materiais remanescentes das
culturas indígenas pré-coloniais, bem como dos outros diversos segmentos da sociedade
nacional (inclusive das situações de contato interétnico), potencialmente incorporáveis à
memória local, regional e nacional, compondo parte da herança cultural brasileira453.
452
FUNARI, Pedro Paulo e PINSKY, “Introdução”. In: Jaime FUNARI, Pedro Paulo e PINSKY, Jaime
(orgs.). Turismo e Patrimônio Cultural. São Paulo: Contexto, 2003 (3ª Ed.).
453
ALMEIDA, Márcia Bezerra de. “O público e o patrimônio arqueológico: reflexões para a arqueologia
pública no Brasil”. Habitus: Revista do Instituto Goiano de Pré-história e Antropologia da Universidade
Católica de Goiás. Vol. 1, n° 1. Goiânia: Ed. UCG, 2003.
454
A autora traça um bom histórico do processo de patrimonialização no Brasil em RODRIGUES, Marly.
“Preservar e consumir: o patrimônio histórico e o turismo”. In: Jaime FUNARI, Pedro Paulo e PINSKY,
Jaime (orgs.). Turismo e Patrimônio Cultural. São Paulo: Contexto, 2003 (3ª Ed.).
296
patrimônio arqueológico, presente no universo patrimonial das comunidades e
entendido como bem de uso especial, comum ao povo brasileiro.
297
paisagem. A sua presença em um lugar, inegavelmente, reverbera no tempo presente,
constituindo símbolos de identificação identitária nacional e local.
457
ALMEIDA, Márcia Bezerra de. “O público e o patrimônio arqueológico: reflexões para a arqueologia
pública no Brasil”. Habitus: Revista do Instituto Goiano de Pré-história e Antropologia da Universidade
Católica de Goiás. Vol. 1, n° 1. Goiânia: Ed. UCG, 2003, p. 281.
458
CHAUÍ, 2000; FUNARI, 1995; FUNARI, 1999, apud ALMEIDA, op. cit.
298
obrigação, sujeição. A discordância em relação a essa condição de subserviência traduz-
se num sentimento de desobrigação que faz com que o cidadão não se perceba como
responsável pelo que, a seu ver, não lhe pertence. E mais, quando desobedece ou burla
as regras estabelecidas pela legislação estatal o indivíduo demonstra sua insatisfação,
exercendo, mesmo que equivocadamente, uma atitude de resistência459.
459
ALMEIDA, op. cit.
460
ALMEIDA, op. cit.
461
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 25ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. FREIRE, Paulo.
Pedagogia do oprimido. 32ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
299
arqueológico. Se os objetos e sítios arqueológicos não forem significados como
emblemas de resistência, da transformação e da identidade, não podemos esperar que
tenham valor para a sociedade.”462
Aqui o meio acadêmico surge como importante agente para tentar corrigir
essa incômoda situação. As discussões e encaminhamentos acerca do patrimônio
cultural e arqueológico, seu uso social e suas mídias têm na Universidade seu ambiente
adequado. Além da docência e das pesquisas que devem criar o alicerce para quaisquer
ações nesse âmbito, compete às universidades promover a extensão de seus trabalhos às
comunidades.
462
ALMEIDA, op. cit., p. 287.
463
ALMEIDA, op. cit., p. 275-276.
464
ALMEIDA, op. cit.
300
produzido pela arqueologia precisa ser franqueado a todos, superando, nos termos de
Bourdieu, as complexas e desiguais relações estabelecidas dentre a posse de capital
econômico e de capital cultural, simbólico465.
465
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.
466
JUNQUEIRA, Paulo Alvarenga. “A arqueologia de contrato no estado de Minas Gerais”. In:
OLIVEIRA, Ana Paula de Paula Loures de (Org.). Arqueologia e Patrimônio de Minas Gerais. Juiz de
Fora: Editar, 2007, p. 161.
301
impondo-nos uma memória e uma história da qual não participamos e com a qual não
nos identificamos.”467
467
ALMEIDA, op. cit., p. 290.
468
É nesse sentido que Patrícia Palma Santos, integrante da nossa equipe de pesquisa, vem trabalhando
projetos de Educação Patrimonial em algumas localidades cortadas pela Estrada Real. A historiadora
apresentou um trabalho intitulado "A percepção do patrimônio arqueológico do Parque Arqueológico da
Serra de Santo Antônio - Andrelândia, Minas Gerais - pela população local" no XVI Congresso da
Sociedade de Arqueologia Brasileira - SAB e XVI World Congress of UISPP, em Florianópolis, trabalho
este em vias de publicação. E, atualmente, desenvolve, no mestrado em História pela Universidade
Federal de São João del-Rei e projeto “O passado no presente: a importância da Educação Patrimonial e
do Arqueoturismo para a preservação do patrimônio arqueológico da Estrada Real”, cujo objetivo é o
estudo da relação das comunidades locais com os sítios arqueológicos Toca do Índio (Andrelândia),
Lenheiro (São João del-Rei), Pedra Pintada (Barão de Cocais), Mendes I e Mendes II (Diamantina).
302
deslocamentos, torna-se importante instrumento de formação de uma cidadania crítica e
de conscientização social469.
469
FUNARI, Pedro Paulo e PINSKY, “Introdução”. In: Jaime FUNARI, Pedro Paulo e PINSKY, Jaime
(orgs.). Turismo e Patrimônio Cultural. São Paulo: Contexto, 2003 (3ª Ed.).
470
MORAIS, José Luiz de. “A arqueologia e o turismo”. In: Jaime FUNARI, Pedro Paulo e PINSKY,
Jaime (orgs.). Turismo e Patrimônio Cultural. São Paulo: Contexto, 2003 (3ª Ed.).
471
A legislação brasileira referente ao patrimônio cultural, incluindo o arqueológico, pode ser acessada
em: http://www.iphan.gov.br. Textos críticos referentes a essa legislação: BAETA, Alenice. “Patrimônio
arqueológico e licenciamento ambiental em Minas Gerais”. In: OLIVEIRA, Ana Paula de Paula Loures
de (Org.). Arqueologia e Patrimônio de Minas Gerais. Juiz de Fora: Editar, 2007, p. 145-151. MORAIS,
José Luiz de. “A arqueologia e o turismo”. In: FUNARI, Pedro Paulo e PINSKY, Jaime (orgs.). Turismo
e Patrimônio Cultural. São Paulo: Contexto, 2003 (3ª Ed.).
303
A mesma preocupação devem ter os proponentes de circuitos turísticos
regionais: atender à legislação da União, dos estados e dos municípios, para utilizar
adequadamente um patrimônio que é da Nação e não pode ser submetido apenas às
demandas econômicas, muito menos quando voltadas para atender a interesses privados.
472
ALMEIDA, Márcia Bezerra de. “O público e o patrimônio arqueológico: reflexões para a arqueologia
pública no Brasil”. Habitus: Revista do Instituto Goiano de Pré-história e Antropologia da Universidade
Católica de Goiás. Vol. 1, n° 1. Goiânia: Ed. UCG, 2003, p. 280.
473
Denys Cuche ressalta que “o Estado moderno tende à mono-identificação”, pela “necessidade” de
definir e reconhecer apenas uma identidade cultural, “a única verdadeiramente legítima”, como referência
de “identidade nacional”. O autor nos lembra que “a ideologia nacionalista é uma ideologia de exclusão
das diferenças. Sua lógica é a da ‘purificação étnica’, ainda que admita um certo pluralismo cultural no
interior da nação” (CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 2002.). É
preciso ter clareza de que essa mea culpa assumida por alguns Estados Nacionais, encarnada nas políticas
de compensação, no mais das vezes “cheira” a concessão, o que, na realidade, não garante a autonomia e
não muda a situação de domínio sobre os grupos étnicos submetidos ao regime estatal ocidental.
304
grupos tradicionalmente submetidos a relações de dominação”474 são conhecidos, no
jargão antropológico, como “etnogêneses contemporâneas”475.
474
HILL, 1996, apud. BARTOLOME, Miguel Alberto, “As Etnogêneses: velhos atores e novos papéis no
cenário cultural e político”. MANA 12(1), 2006.
475
“Tem-se chamado de etnogênese o desenvolvimento de novas configurações sociais, de base étnica,
que incluem diversos grupos participantes de uma mesma tradição cultural. Também já se qualificou de
etnogênese o ressurgimento de grupos étnicos considerados extintos, totalmente ‘miscigenados’ ou
‘definitivamente aculturados’ e que, de repente, reaparecem no cenário social, demandando seu
reconhecimento e lutando pela obtenção de direitos ou recursos”. BARTOLOME, op. cit.
476
RAMOS, Alcida Rita. Sociedades Indígenas. São Paulo: Ática, 1988, p. 92.
305
nosso lugar nesse mundo globalizado477. O enfoque histórico-geográfico, associado às
constatações e proposições de outros campos científicos como a arqueologia, a
antropologia e a sociologia, abre-se como possibilidade explicativa necessária para a
construção de uma realidade socialmente mais justa, para a construção de um Brasil
mais democrático, onde o território seja de fato um bem comum, onde os direitos civis,
políticos e sociais sejam, de fato, extensivos a todos os habitantes do país, em benefício
do conjunto da Nação.
477
MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e História no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005.
306
Considerações finais: Até Onde pude chegar.
307
Acima, maciço rochoso onde ocorre o sítio arqueológico descoberto em Conceição do Mato Dentro e
figurações da Tradição Planalto (cervídeos) no sítio. Abaixo, detalhes do conjuto rupestre: figuras
antropofórmicas que evocam a Tradição Nordeste e um “peixe” típico da Tradição Planalto. Fotos: José
Rodrigues Filho.
Diante de mais uma descoberta, que dessa vez ficará apenas mencionada
aqui, eu penso: isso não vai ter fim? E eu sei que não... Quanto mais se investiga, mais
há para investigar e as novas descobertas não cessarão.
308
Além da nova ocorrência em Conceição do Mato Dentro hoje sabemos da
existência de manifestações de arte rupestre pelo menos também em Luminárias, São
Brás do Suaçuí, Santa Luzia, Jaboticatubas, Congonhas do Norte, Datas, Couto
Magalhães de Minas e Serro – todas cidades ligadas ao roteiro da Estrada Real.
309
Do processo de pesquisa em si, destaco a dificuldade de lidar com objetos e
métodos próprios da arqueologia sem uma formação profunda para tal empreitada, me
valendo de estudos autônomos e orientações “extraoficiais”, justamente neste momento,
em que várias teorias estão em choque, sendo revistas, enquanto outras estão sendo
propostas pela comunidade arqueológica em debates intensos.
Reconheço que, sem dúvida, “tudo pode ser melhorado” (como dizia
rotineiramente meu caro ex-professor da graduação em geografia, Geraldo Rodrigues
Álvares). Mas acredito ter contribuído para a história de Minas Gerais com este
trabalho, principalmente no sentido de trazer a atuação das sociedades indígenas para o
primeiro plano nos processos histórico-culturais de construção da paisagem referenciada
pela Estrada Real. A história indígena que muitas vezes fica à sombra na nossa
historiografia, aqui foi iluminada todo o tempo.
310
Entre tantas outras possíveis influências fui buscar nas pedras a herança
indígena plasmada pelos caminhos de Minas e, apesar do risco de parecer um tanto
clichê, o poema de Drummond, que usei no início como epígrafe, caiu, “como uma
luva”, para expressar meu sentimento de transcendência ao lidar com essa matéria. A
também poeta (e mineira) Adélia Prado, em uma palestra transmitida certa vez por um
canal de TV, perguntou ao público qual era a transcendência do poema de Drummond,
que à primeira vista parecia tão desprovido de sentido, por só falar na tal “pedra no
meio do caminho”... Ela mesma respondeu: “É o susto de alguém que tropeça numa
pedra. A transcendência é exatamente o sentimento de estranhamento que a coisa
concreta te dá. Pedra é pedra, não é?... E você perde a poesia quando você olha a pedra
e vê só pedra mesmo... Mas quanto a pedra te diz alguma coisa ela está fazendo o que?
Ela é um veículo para que você transcenda as coisas para uma instância maior, mais
alta. Não é mais que isso. Porque é tudo isso.”
311
FONTES DOCUMENTAIS DIRETAMENTE CONSULTADAS
312
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326
ANEXOS
327
Anexo 1: TABELA DOS DADOS ESTUDADOS A CAMPO
Pinturas.
Tradição São
Complexo da Carrancas Afloramento Francisco, (sem dados)
Zilda quartzítico possivelmente
associada a
elementos do C.
Montalvânia
Pinturas.
Grafismos
Gruta de São São Thomé (sem dados) (“letras”) não (sem dados)
Tomé das Letras filiados
Pinturas.
Grafismos
Shangrilá I São Thomé (sem dados) “geométricos” (sem dados)
das Letras não filiados
Pinturas.
Grafismos
Shangrilá II São Thomé (sem dados) “geométricos” (sem dados)
das Letras não filiados
Pinturas.
Grafismos
Toca do Leão São Thomé (sem dados) figurativos não (sem dados)
das Letras filiados – T.
Planalto?
Pinturas
vestigiais e de
Boqueirão Itutinga (sem dados) “mãos”. (não (sem dados)
filiados)
328
Pinturas.
Desenhos
Serra do São João del- Paredão de figurativos e (sem dados)
Lenheiro Rei quartzito geométricos não
filiados
Gravuras.
Grafismos
Lagoa Carmópolis de Bloco de “geométricos”(?) (sem dados)
Minas granito não filiados (T.
Geométrica”?)
Pinturas. Fusão
das Tradições
Lapa da Posse Pains Paredão Planalto e São Datação
Grande (Corumbá) calcário Francisco (?). relativa: três
Intrusão de momentos
elementos da T. cronoestilísticos
Agreste (?)
Incisões e
Pinturas. Figuras
Gruta Rei do Sete Lagoas Abrigo da Tradição Datação
Mato calcário Noreste/Fácie relativa: três
(grutinha) ballet momentos
(dominantes), T. cronoestilísticos
Planalto e
grafismos não
filiados mais
recentes.
Pinturas. Datação
Tradição Planalto relativa: pelo
Pedra Pintada Barão de Grande (dominante) com menos quatro
Cocais abrigo muitos grafismos momentos
(povoado de quartzítico “geométricos”; T. decorativos
Cocais) Nordeste
Pinturas. Datação
Tradição Planalto relativa: pelo
Serra dos Itambé do Abrigo de (dominante) com menos três
Milagres Mato Dentro quartzito intrusão de momentos de
elementos do C. decoração
Montalvânia
Pinturas. Datação
Tradição Planalto relativa:
Grande Abrigo Santana do Abrigo de (em grande provavelmente
Riacho quartzito dominância e em mais de quatro
vários momentos
329
momentos); T. decorativos.
Agreste; T.
Nordeste. Datações
absolutas: entre
quatro mil e
oito mil anos
AP
Pinturas.
Tradição Planalto
Lapinha Santana do Abrigo de (em grande Datação
Riacho quartzito dominância e em relativa: vários
vários momentos
momentos); T. decorativos.
Agreste; T.
Nordeste.
Pinturas. Datação
Tradição Planalto relativa: pelo
Rupestre 2 Conceição do Abrigo de (dominante); T. menos três
(Salão de Mato Dentro quartzito Nordeste; T. momentos de
Pedra) Agreste. decoração
Pinturas. T. Datação
Planalto; relativa: pelo
Tijucal 1 Conceição do Abrigo de Complexo menos três
Mato Dentro quartzito Montalvânia (?) momentos de
e, possivelmente decoração
outros estilos,
dividindo os
mesmos painéis
330
Lapa do Gouveia Abrigo de Pinturas. (sem dados)
Giovanni (Camelinho) quartzito Tradição Planalto
Datação
relativa: pelo
Lapa do Gouveia Abrigo de Pinturas. menos cinco
Camelinho ou (Camelinho) quartzito Tradição Planalto momentos de
Lapa da Janela (dominante) decoração
Datação
relativa: pelo
Mendes II Diamantina Abrigo de Pintura residual menos dois
(Mendes) quartzito de difícil momentos de
identificação intervenção
331
Anexo 2: ENTREVISTA
Ricardo Couto diante do marco da Estrada Real em Cocais, no qual ele implantou a placa informativa
anos antes. Foto: C. Lima
Relate a forma pela qual você ficou sabendo sobre a possibilidade de prestar
serviço para o Instituto Estrada Real e como foi o processo até sua contratação.
Fomos convidados pelo próprio IER para participar da licitação, o que, inicialmente,
achamos bem estranho. Mesmo assim, corremos bastante para arrumar toda a
332
documentação para a licitação, apresentamos um orçamento e, depois de algumas
críticas e questionamentos, entramos no serviço.
Durante a execução do trabalho de campo e em campo correu tudo bem, como já era de
esperar, devido ao alto grau de satisfação da equipe em trabalhar em campo e pela
beleza cênica dos percursos. Porém, com relação à logística e administração financeira
por parte do IER, ficávamos sem saber quanto e quando receberíamos as parcelas;
parcelas estas que já estavam comprometidas com nossos credores na compra de
equipamentos, colas, e cerca de 8 mil parafusos e buchas metálicas, o que não era
barato. E quanto às datas previstas anteriormente ao projeto, não foram cumpridas.
Parcialmente não, porém, por ser um produto turístico para um público tão eclético, tais
adaptações tiveram que acontecer, senão o produto seria somente para cavalos, motos e
veículos 4X4.
Qual a sua visão a respeito do roteiro turístico Estrada Real? Aponte críticas
(positivas e/ou negativas) a respeito, de acordo com sua experiência pessoal.
Quanto à implantação dos marcos, vários estão do lado errado da estrada, o que
acarretou a colocação das placas certas, nos marcos certos. Mas se estão no lado errado
da estrada, o turista está com um erro de 180° em relação à direção certa a seguir, pois
as placas já estavam prontas e indicam, com setas à direita ou à esquerda, para onde e
333
quantos kilômetros faltam para o próximo destino, e, estando do lado errado, as setas
estão também erradas.
334