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Axejun, 09 Gonzaga
Axejun, 09 Gonzaga
Axejun, 09 Gonzaga
divina em Rm 9,19-29
A vessel for honor and another for dishonor: the divine election in Rm 9,19-29
Waldecir Gonzaga
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Brasil
Resumo Palavras-chave
Este artigo se propõe a examinar a perícope de Rm 9,19-29, Vaso.
com vistas a entender se, neste texto bíblico, o apóstolo Honra.
Paulo trataria realmente de predestinação dupla ou absoluta, Desonra.
como foi compreendido pela maioria dos reformadores. O Eleição.
foco se concentra especialmente em expressões de difícil Romanos.
interpretação dos vv.21-23: “Acaso o oleiro não tem
autoridade para fazer [...] um vaso para honra, e outro para
desonra? [...] vasos de ira, que foram preparados para a
destruição, [...] vasos de misericórdia, que Ele preparou de
antemão para a glória”. A exegese é trabalhada com base nos
princípios dos seguintes métodos: Histórico-Crítico, Análise
Retórica Bíblica Semítica e Uso do Antigo Testamento no
Novo Testamento. São levados em conta estudos de autores
antigos e recentes. Paulo não está dizendo que Deus
predestina um para a salvação e outro para a perdição, antes
mesmo de seu nascimento. Isso seria colocar os seres
humanos como simples marionetes, sem nenhuma liberdade
ou possibilidade de conversão. O “horizonte argumentativo”
paulino não é o antropológico, mas sim o teológico. Ele quer
realçar a soberania e a misericórdia de Deus, mesmo diante
dos limites humanos, seja com os judeus, seja como os
gentios.
Abstract Keywords
Introdução
1
PENNA, R. Carta a los Romanos. Navarra: Verbo Divino, 2013, p. 720.
2
ACHTEMEIER, P. J. Romani. Torino: Claudiniana, 2014, p. 174.
3
PATE, C. M. Romanos. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 193; SPROUL, R. C. Romanos.
Cambuci: Cultura Cristã, 2011, p. 303 e 305-307.
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Deus, por cuja origem vem que alguém creia ou não, esteja livre do pecado,
ou não esteja livre disso”4.
4
LUTHER, M. Commentary on Romans. Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1976, p.
xxiii-xxiv.
5
CALVINO, J. Romanos. São Paulo: Parakletos, 2001, p. 355-356.
6
A expressão “vasos de ira” pode ser um eco de Jr 50,25 (para o TH; Jr 27,25, para a LXX), do
oráculo contra a Babilônia, quando o profeta diz: “YHWH abriu seu arsenal e fez sair as armas
de sua ira”.
7
ARMÍNIO, J. Uma Análise de Romanos 9. Vila Graciosa: Reflexão, 2016, p. 39-40.
8
ARMÍNIO, 2016, p. 40.
9
LAGRANGE, M.-J. Saint Paul. Épître aux Romains. Paris: Gabalda, 1950, p. 241.
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10
FITZMYER, J. A. Romans. The Anchor Biblle 33. New York, Doubleday, 1993, p. 569; POHL,
A. Carta aos Romanos. São Paulo: Curitiba, 1999, p. 156; BARBAGLIO, G. As Carta de Paulo
(II). São Paulo: Loyola, 1991, p. 274.
11
WILCKENS, U. La carta a los Romanos. Rom 6-16, vol. II. Salamanca: Sígueme, 1992, p. 248.
12
PENNA, 2013, p. 722; CRANFIELD, C. E. B., Carta aos Romanos. São Paulo: Paulinas, 2009,
p. 221.
13
BARBAGLIO, 1991, p. 271.
14
MAZZAROLO, I. Carta de Paulo aos Romanos. Rio de Janeiro: Mazzarolo, 2006, p. 120.
15
ACHTEMEIER, 2014, p. 175.
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16
μέμτεςαι (v.19b): pres. ind. méd. 3ª sing. do verbo μέμτξμαι = encontrar falta em, acusar,
censurar, anunciar insatisfação com, culpar, reputar como merecedor de culpa, lançar em
rosto, queixar, estar insatisfeito com, reclamar (MOUNCE, W. D. Léxico Analítico do Novo
Testamento Grego. São Paulo: Vida Nova, 2012, p. 407; LIDELL, H. G.; SCOTT, R. A Greek-
English Lexicon. Oxford: Claredon Press, 1996, p. 1101). Como, segundo o contexto
imediatamente anterior, a perícope Rm 9,14-18 indica que esta 3ª pes. sing. é Deus, e o
verbo está na voz média, entende-se que a tradução mais conveniente seria: “se queixa”.
17
v.20c-d: Uma outra tradução mais conceitual, inteligível e possível para esta frase
interrogativa negativa grega seria: “A coisa formada não dirá a quem a formou: „Por que me
fizeste assim?‟ Dirá?”
18
Os vv.22-23 constituem uma frase com um paralelismo adversativo, como podemos ver pela
presença de καί e καὶ ἵμα, e se correspondem entre si (WILCKENS, 1992, p. 248). Este
adversativo também tem função de continuativo (SCHLIER, H. La lettera ai Romani. Brescia:
Paideia, 1982, p. 490).
19
ἔρςαι (v.26a): fut. ind. méd. 3ª sing. do verbo εἰμί = ser, estar, haver, existir. Quando for
impessoal, como neste caso, tem o sentido de “é possível” (MOUNCE, 2012, p. 278; LIDELL;
SCOTT, 1996, p. 488). Como o verbo εἰμί está no fut. e foi traduzido como tal, não faria
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Crítica Textual
A presente crítica textual usa como base o Novum Testamento
Graece, 28ª ed., de Nestle-Aland (NA28). Quanto ao aparato crítico, consulta-
se também o de O Novo Testamento Grego, 5ª ed., de Aland e Aland,
Karavidopoulos, Martini e Metzger. As variantes escolhidas e analisadas são as
mais significativas para o texto e o contexto da perícope; são aquelas que
poderiam fazer alguma diferença na tradução e que contam com um
considerável número de testemunhas de peso. Porém, embora denso de
variantes, é importante frisar que nenhuma delas causaria mudanças
semânticas fundamentais no texto de Rm 9,19-29.
v. 20a - ⸂ Substituição da exclamação “ὦ ἄμθοωπε, μεμξῦμγε/Oh
homem, pelo contrário”, no início da frase, por apenas “ὦ ἄμθοωπε/Oh,
homem”. Como se pode perceber pela análise do aparato crítico, a decisão
neste caso não é simples. Pelos critérios externos, a forma reduzida ὦ
sentido em português traduzir o fut. passivo κληθήρξμςαι literalmente, pois ficaria: “E será
possível... serão chamados...”. Fica mais inteligível: “E será possível... serem chamados...”
20
Uma tradução mais literal poderia ser: “pois uma palavra que cumpre e que completa o
Senhor fará sobre a terra”. Como os dois verbos estão no particípio (ρσμςελῶμ e ρσμςέμμωμ),
podem ser traduzidos como advérbios, como: “completamente” e “em breve” (BLASS, F.;
DEBRUNNER, A. A Greek Grammar of the New Testament. Chicago: The University of Chicago
Press, 1961, p. 215-220).
21
Uma boa tradução para a língua portuguesa seria: “o Senhor cumprirá a palavra sobre a
terra”. Mas, traduziu-se literalmente como “fará”, para ser coerente com a regra do Método
da Análise Retórica Bíblica Semítica, de procurar traduzir da mesma maneira os mesmos
vocábulos (MEYNET, R. Retorical Analysis: an introduction to biblical rhetoric. Bath,
Inglaterra: Sheffield Academic Press, 1998, p. 337-340). Nas duas ocorrências anteriores do
verbo πξιέω aqui, o traduzimos como “fazer” (vv.20d.21b).
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ἄμθοωπε consta num papiro do séc. II (𝔓46)22. Entretanto, nos unciais mais
antigos, ela só aparece em D*, que é mais tardio (sécs. V-VI) do que *א, B
(sécs. IV) e A (séc. V), que trazem o advérbio “μεμξῦμγε/pelo contrário”,
tendo força adversativa23; ainda que em B esteja ausente a terminação γε,
que mais parece ter sido um erro de copista. Pelo critério interno, a leitura ὦ
ἄμθοωπε é a mais breve e deveria ser a preferível24. Contudo, como as
evidências externas têm maior peso do que as internas25, a escolha vai para a
forma segundo a NA28: ὦ ἄμθοωπε, μεμξῦμγε. No entanto, embora bem
fundamentada nos critérios externos, essa decisão não tem a pretensão de ser
conclusiva.
v. 25a - Omissão da prep. ἐμ, ficando o texto: “ὡπ καὶ ςῷ Ὡρηὲ
λέγει/como (Ele) também diz a Oseias”; no papiro do séc. II, 𝔓46
(provavelmente, mas não com toda certeza) e no uncial B, do séc. IV. Ambos
estão entre os de maior peso para Romanos, são de primeira categoria26 e
oferecem a leitura mais breve. Mas, além de esta omissão ser um pouco
duvidosa no 𝔓46, as outras testemunhas todas estão a favor da forma presente
na NA28: “ὡπ καὶ ἐμ ςῷ Ὡρηὲ λέγει/como (Ele) também diz em Oseias”. Não
obstante o 𝔓46 e o B pertencerem a uma mesma família (Alexandrina) e
oferecerem uma leitura mais breve, a omissão de ἐμ não se sustenta diante
dos critérios externos. James Dunn afirma que a omissão da preposição ἐμ no
𝔓46 e no Códice B foi proposital, devido ao fato de este tipo de fórmula (“ἐμ
ςῷ Ὡρηὲ λέγει/diz em Oseias”) não ser usual27. Diante disso, mantem-se a
leitura segundo NA28.
22
Para a datação dos manuscritos, recorreu-se aos manuais: PAROSCHI, W. Crítica Textual do
Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 44-73; PAROSCHI, W. Origem e Transmissão
do Texto do Novo Testamento. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2012, p. 41-80; ALAND,
K.; ALAND, B. O Texto do Novo Testamento: introdução às edições científicas do Novo
Testamento Grego, bem como à teoria e prática da moderna crítica textual. Barueri:
Sociedade Bíblica do Brasil, 2013, p. 101-140, 148-168, 179-180, 183-188, 191-222.
23
WILCKENS, 1992, p. 247.
24
GONZAGA, W. A Sagrada Escritura, a Alma da Sagrada Teologia. In: Mazzarolo, I.;
Fernandes, L. A.; LIMA, M. L. C. (Orgs.). Exegese, Teologia e Pastoral: relações, tensões e
desafios. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Santo André: Academia Cristã, 2015. p. 221: “a leitura
curta é preferível”.
25
GONZAGA, 2015. p. 221.
26
Para a lista de classificação por categorias, ver: ALAND; ALAND, 2013, p. 169-173.
27
DUNN, J. D. G. Romans 9–16. Word Biblical Commentary. Dallas: Publisher Word Books,
1988. v. 38B, p. 569.
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28
Para a identificação dos textos por famílias, recorreu-se aos manuais: PAROSCHI, 2007, p.
83-93; PAROSCHI, 2012, p. 92-103; WEGNER, U. Exegese do Novo Testamento: manual de
metodologia. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 1998, p. 42-46; SCHNELLE, U.
Introdução à Exegese do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 2004, p. 33-34.
29
Para as listas das testemunhas de peso por livro do NT, ver: NESTLE-ALAND. Novum
Testamento Graece. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018. 28ª Ed., p. 65.
30
LIDELL; SCOTT, 1996, p. 897, 1887; GINGRICH, F. W. Shorter Lexicon of the Greek New
Testament. Chicago: The University of Chicago Press, 1979, p. 103, 207.
31
PITTA, R. Lettera ai Romani. Milano: Paoline, 2014, p. 354.
32
LÉGASSE, S. L’épître de Paul aux Romains. Paris: CERF, 2002, p. 617.
33
GONZAGA, 2015, p. 222.
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dois. Mas a LXX traz καςαλειμμα. Por isso, pode-se dizer que a leitura da NA28
(ὑπόλειμμα) é a mais difícil, sendo a preferível34. Além disso, esse fato abre a
possibilidade para um entendimento de que os primeiros copistas que
escreveram καςαλειμμα, talvez o tenham feito para harmonizar o escrito de
Paulo com o texto da LXX, a principal versão veterotestamentária usada pelos
primeiros cristãos. Dunn também defende esta possibilidade como sendo a
mais plausível35. Por estas questões, a escolha vai em favor de se manter o
substantivo ὑπόλειμμα. Entretanto, esta decisão também não é fácil de ser
tomada.
v. 28b-c - ⸆ Inserção da expressão “ἐμ δικαιξρύμῃ, ὅςι λόγξμ
ρσμςεςμημέμξμ/com justiça, porque a palavra rapidamente” (Is 10,23). Tanto
esta variante quanto a forma da NA28, contam com muitas testemunhas (e
algumas de peso) e com considerável distribuição geográfica. No entanto,
nenhum dos três manuscritos mais antigos que contêm esse texto (os unciais
*א, A e B) traz a inserção. O fato de ela aparecer em muitos mansucritos mais
tardios, parece indicar que foi feita uma interpolação, sendo uma tentativa
de se harmonizar o texto de Romanos com a LXX. Além disso, a leitura da NA 28
é a mais breve, sendo a preferível36. Por estas razões, a mantemos. Omanson
comenta:
34
GONZAGA, 2015, p. 221: “a leitura mais difícil é a mais provável”.
35
DUNN, Romans 9-16, 1988, p. 569.
36
GONZAGA, 2015, p. 221.
37
OMANSON, R. L. Variantes Textuais do Novo Testamento. Barueri: SBB, 2010, p. 315. B.
Metzger argumenta a mesma coisa em seu A Textual Commentary on the Greek New
Testament. Stuttgart, Alemanha: Deutsche Bibelgesellschaft, 1994, p. 462.
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44
PENNA, 2013, p. 741; LÉGASSE, 2002, p. 607.
45
SCHLIER, 1982, p. 481.
46
ACHTEMEIER, 2014, p. 170.
47
LÉGASSE, 2002, p. 606; LAGRANGE, 1950, p. 236; PRATER, R. C. Romanos. Brasília: Palavra,
2005, p. 241.
48
STOTT, J. A Mensagem de Romanos. São Paulo: ABU, 2007, p. 171; JEWETT, R.; KOTANSKY,
R. D. Romans: a commentary. Hermeneia. Minneapolis: Fortress Press, 2006, p. 587;
HENDRIKSEN, W. Romanos. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 431.
49
BARBAGLIO, 1991, p. 276.
50
ACHTEMEIER, 2014, p. 170.
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19
Então me dirás:
“Por que [então] (Ele) ainda se queixa?
Pois quem resistiu à sua vontade?”
20
Oh homem, pelo contrário, quem és tu
Para discutires com DEUS?
A coisa formada não dirá a quem a formou:
“Por que me fizeste assim?”
21
Acaso o oleiro não tem autoridade
para fazer do barro da sua massa
um vaso para honra e outro para desonra?
22
E se DEUS, querendo
demonstrar a ira
e tornar conhecido o seu poder,
51
MEYNET, 1998, p. 317-350.
52
PITTA, 2014, p. 351; MOO, 2014, p. 677-678.
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53
JEWETT; KOTANSKY, Romans: 2006, p. 589-590
54
CRANFIELD, 1992, p. 226-227.
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sua misericórdia, não dependendo das ações humanas, até mesmo porque “no
âmbito histórico-salvífico reina soberana a graça acolhedora de Deus” 55.
De acordo com Schlier56, Paulo quer afirmar que com Deus não se
pode questionar, com a pretensão de ser juiz e julgador de Deus; segundo
Pate, Paulo quer dizer que não se pode colocar em xeque “os propósitos de
Deus”57, como se fosse possível julgar o Criador58. Mais ainda, Deus é “o que
forma” e o homem é “a coisa formada”. Neste sentido, Paulo não nega a
possibilidade de a criatura levantar questionamentos, no sentido de
perguntar, mas sim, no sentido de alvorar-se de juiz acerca dos caminhos
traçados pelo Criador59, querendo reter as ações de Deus60.
Como nos recorda Mazzarolo, “a soberania do oleiro sobre a argila é a
soberania de Deus sobre todas as criaturas, e, por isso, ainda que o ser
humano possa arguir, a resposta será do jeito de Deus e não do jeito do ser
humano”61. Ele também recorda que “a argila usada para ser transformada em
vaso não pode escolher o que vai ser, isto independe dela, tudo está no
projeto do oleiro”62. Para Lagrange, “é absurdo da parte de um homem acusar
a Providência e Deus de injustiça” e colocar-lhe “uma questão insolente”,
como a do v.1963.
Enfim, o midrash seria constituído pelas respostas baseadas em
textos-prova do AT que o autor assume e traz para sua refutação: Rm 9,20c.d
(Is 29,16); Rm 9,25 (Os 2,25); Rm 9,26 (Os 2,1); Rm 9,27-28 (Is 10,22-23); Rm
9,29 (Is 1,9)64. A ideia de que Paulo emprega uma “interpretação midráshica”
aqui em Rm 9 é defendida também por Aletti65.
Gênero Literário
O Sitz im Leben desta passagem é o mesmo de toda a Carta aos
55
BARBAGLIO, 1991, p. 273.
56
SCHLIER, 1982, p. 486-487.
57
PATE, 2015, p. 192.
58
PRATER, 2005, p. 235.
59
MOO, 2014, p. 667.
60
BARTH, K. Carta aos Romanos. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 548.
61
MAZZAROLO, 2006, p. 120.
62
MAZZAROLO, 2006, p. 120.
63
LAGRANGE, 1950, p. 237.
64
JEWETT; KOTANSKY, 2006, p. 589-590.
65
ALETTI, J.-N. Israël e la Loi dans la Lettre aux Romains. Paris: CERF, 1998, p. 184.
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Romanos. Foi escrita entre os anos 55 e 59 d.C., no período dos três meses
nos quais o Apóstolo Paulo esteve na cidade de Corinto, na província da Acaia
(At 20,2-3), em sua terceira viagem missionária66. A carta revela claros sinais
de que havia conflitos na Igreja de Roma entre cristãos de origem judaica e
gentílica, em torno de temas como a posição de Israel no plano de Deus e o
papel da lei na justificação do pecador (Rm 2,17-29; 3,9; 4,1-3). Na seção de
Rm 9–11, essas duas questões em debate estão latentes (9,4-13.27-33; 10,3-
4.9-13.19-21; 11,1-2.5-7.11-32).
O gênero amplo aqui é epistolar67. De um ponto de vista mais
específico, quanto ao estilo que Paulo emprega, o texto de Rm 9,19-29 se
encaixa perfeitamente dentro do gênero diatribe68, com um interlocutor
fictício, que é parecido com a argumentação exortativa, mas dela diferindo-
se, com perguntas e respostas, e “porque fala diretamente ao destinatário e o
interpela, sublinhando a personalidade de quem fala”69. Lima cita a subseção
Rm 9,14-33 como exemplo de diatribe no NT70. A diatribe lida com perguntas
e respostas. E neste caso é o próprio Paulo quem as coloca. Mesmo deixando
algumas questões abertas, ele progride em seu raciocínio, do olhar
antropológico ao teológico, procurando ajudar no crescimento da “verdade-
fidelidade de Deus”71.
66
BRUCE, F. F. Romanos. São Paulo: Vida Nova, 2002, p. 9-10; DUNN, J. D. G. Romans 1-8.
Word Biblical Commentary. Dallas: Publisher Word Books, 1988. v. 38A, p. 30; GONZAGA, W.
O Corpus Paulinum no Cânon do Novo Testamento. Atualidade Teológica. v. 21, n. 55, p. 19-
41, jan./abr.2017, p. 22, 36; CRANFIELD, 2009, p. 11-13; HENDRIKSEN, 2001, p. 24-26.
67
WEGNER, 1998, p. 169-170.
68
FITZMYER, 1993, p. 568; PITTA, 2014, p. 348; LÉGASSE, 2002, p. 606; PENNA, 2013, p. 741;
MOO, 2014, p. 665.
69
LIMA, M. L. C. Exegese Bíblica: teoria e prática. São Paulo: Paulus, 2017, p. 198.
70
LIMA, 2017, p. 198.
71
LÉGASSE, 2002, p. 606; PITTA, 2014, p. 348; ESLER, P. F. Conflicto e identidad en la carta a
los Romanos: el contexto social de la carta de Pablo. Estella: Verbo Divino, 2005, p. 386.
72
SEIFRID, M. A. Romanos. In: BEALE, G. K.; CARSON, D. A. (Orgs.). Comentário do Uso do
Antigo Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 759; ROBERTSON, A.
W. El Antiguo Testamento en el Nuevo. Buenos Aires: Nueva Creación, 1996, p. 142.
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veterotestamentárias (sem falar nas formas indiretas, como alusões aos feitos
patriarcais ou ao Êxodo, e no repertório de imagens, demonstrando o “grande
papel”73 dessas Escrituras na vida de Paulo e da Igreja Primitiva, como “se
Paulo quisesse fazer um sumário de toda a história da salvação”74, passando
pelos patriarcas, por Moisés e pelos profetas, chegando a ter a visão de uma
“Igreja de judeus e de gentios”75. O AT tem um fator determinante nesta
parte da argumentação do apóstolo76, que se fundamenta nas Escrituras
Sagradas de Israel, para tecer seu raciciocínio e oferecer suas respostas.
Neste sentido, Belli afirma que:
73
SCHLIER, 1982, p. 481.
74
SCHLIER, 1982, p. 482.
75
SCHLIER, 1982, p. 482.
76
BELLI, F. et. al. Vetus in Novo: el recurso a la Escritura en el Nuevo Testamento. Madri:
Ediciones Encuentro, 2006, p. 161.
77
BELLI, 2006, p. 161.
78
SCHLIER, 1982, p. 495. Paulo introduz várias argumentações, inclusive com os nomes dos
profetas e, às vezes, reúne várias passagens para formar uma única argumentação, como no
caso de Oseias e de Isaías.
79
ACHTEMEIER, 2014, p. 171.
80
PENNA, 2013, p. 722.
81
ESLER. 2005, p. 387; MAZZAROLO, 2006, p. 121; CRANFIELD, 1992, p. 225; BARBAGLIO,
1991, p. 269-270.
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45,9
Πξῖξμ βέλςιξμ
καςερκεύαρα ὡπ
πηλὸμ κεοαμέωπ;
μὴ ὁ ἀοξςοιῶμ
ἀοξςοιάρει ςὴμ
γῆμ ὅλημ ςὴμ
ἡμέοαμ; μὴ ἐοεῖ ὁ
πηλὸπ ςῷ κεοαμεῖ
Τί πξιεῖπ, ὅςι ξὐκ
ἐογάζῃ ξὐδὲ ἔυειπ
υεῖοαπ;
O interrogar a Deus sobre o que acontece com o ser humano está na
pauta do dia, ainda hoje: “Porque para mim? Por que comigo?” Um relutante
reconhecimento da impossibilidade de a criatura questionar o Criador aparece
na reclamação de Jó (Jó 9,2-4.12). Em Gn 2,7 aparece o Criador
82
POHL, 1999, p. 161; PITTA, 2014, p. 351.
83
LÉGASSE, 2002, p. 611; PENNA, 2013, p. 722; MOO, 2014, p. 676; ALETTI, 1998, p. 182;
ESLER. 2005, p. 387; CRANFIELD, 1992, p. 225.
84
PITTA, 2014, p. 351.
85
BEALE, G. K. Manual do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento: exegese e
interpretação. São Paulo: Vida Nova, 2013, p. 68-69; HAYS, R. B. Echoes of Scripture in the
Letters of Paul. New Heaven e Londres: Yale University Press, 1989, p. 29-32.
86
PENNA, 2013, p. 743; MAZZAROLO, 2006, p. 120.
Fronteiras, Recife, v. 4, n. 1, p. 201-230, jan./jun., 2021
Waldecir Gonzaga & Ygor Almeida de Carvalho Silva | 218
87
SEIFRID, 2014, p. 804.
88
PITTA, 2014, p. 349.
89
PITTA, 2014, p. 349.
90
POHL, 1999, p. 159.
91
LÉGASSE, 2002, p. 608.
92
POHL, 1999, p. 159.
93
ACHTEMEIER, 2014, p. 171.
94
PENNA, 2013, p. 744; MOO, 2014, p. 668; PATE, 2015, p. 193. Vários autores defendem que
estes ecos vêm da LXX, que concorda com o TH, a exemplo de FITZMYER, 1993, p. 568-569;
SCHLIER, 1982, p. 487; LÉGASSE, 2002, p. 607, entre outros.
95
MOO, 2014, p. 668-669; MAZZAROLO, 2006, p. 119; PATE, 2015, p. 192. Segundo Lagrange,
ao usar o termo “vaso de barro”, Paulo “adota um termo simbólico para falar da criatura
racional” (LAGRANGE, 1950, p. 236).
Fronteiras, Recife, v. 4, n. 1, p. 201-230, jan./jun., 2021
219 | Um vaso para honra e outro para desonra: a eleição divina em Rm 9,19-29
Segundo Pitta, Paulo deixa claro que “a mobilidade ou vulgaridade dos vasos é
determinada das ações humanas e não do desígnio originário de Deus”96. Para
Paulo, o que conta é a exousia, a autoridade de Deus, que é soberana97.
3 28 Rm 9,25
NA LXX Os 2,25 Tradução NA28 Análise
καὶ ἐλεήρω ςὴμ
ξὐκ-ἠλεημέμημ
καὶ ἐοῶ ςῷ ξὐ como (Ele) Alusão/citação
ὡπ καὶ ἐμ ςῷ Ὡρηὲ λαῷ μξσ λαόπ também diz em livre de Os 2,25
λέγει· καλέρω ςὸμ μξσ εἶ ρύ καὶ Oseias: na LXX e/ou no
ξὐ λαόμ μξσ λαόμ αὐςὸπ ἐοεῖ κύοιξπ “Chamarei „o não TH.
μξσ καὶ ςὴμ ξὐκ ὁ θεόπ μξσ εἶ ρύ. meu povo‟, „meu A citação sofre
ἠγαπημέμημ ֙ ּוז ְַרעְ ִּ֤תיהָ ליpovo‟, e „a não influência da
ἠγαπημέμημ· בָ ָ֔ ָא ֶרץ וְ ִֽרחַ ְמ ִּ֖תי אֶ ת־ ֹ֣ל ֹאamada‟, LXX, que tem a
( רֺ ָ ָ֑חמָ ה וְ אָ מַ ְר ִּ֤תי לְ ִֽל ֹא־chamarei) ver com a forma
י־אתָ ה וְ ִּ֖הּוא ַ ָ֔ „ עַ מי֙ עַ מamada‟.” de Os 1,9 e 2,198.
ֹלהי׃ ִֽ ָ ֱֹאמר א
ַ֥ ַ י
“A passagem compreensivelmente aparece na afirmação rabínica da
misericórdia de Deus para com Israel (esp. b. Pesah. 87b; Midr. de Nm 2.15,
em que Os 2,1 e 2,25 aparecem juntos) e na discussão a respeito de Israel
continuar a ser filho de Deus mesmo na desobediência (e.g., b. Qidd . 36a; v.
Str-B 3:272-4). A referência de Paulo a Oseias é, tanto um resumo da
mensagem do livro, quanto uma citação”99. O apóstolo une Os 2,25 a 2,1 de
tal maneira que parecem uma única referência. Segundo Pitta, aqui Paulo
segue a regra da gezerah shawah: chamado a se tornar povo (Os 2,25) e filhos
de Deus (Os 2,1)100 embora use com liberdade a citação de Os 2,25101. Ele os
maneja de maneira própria, não usando literalmente, pois, propositalmente
inverte a ordem que está no livro do profeta. Paulo se reporta aqui à
atribuição de um nome à filha de Oseias (Os 1,9), e ressalta o caráter
eficiente da palavra do Senhor que faz de “não meu povo”, o povo de Deus.
Ele deixa claro que à rejeição e ao juízo, seguem-se o amor e a misericórdia
de Deus. É “não meu povo” que o Senhor chama de “meu povo”, e é “a não
amada”, que ele chama de “amada”. Deus faz, daquele que fora rejeitado,
um escolhido102. A “não amada” passa a ser “amada”, ou seja, o “não eleito”
passa ser “eleito”, já que “„amar‟ é palavra suplente para „eleger‟”103,
fazendo com que os “não eleitos” se tornem “eleitos”. Mas o inverso também
se constitui numa porta aberta.
4 28 Rm 9,26
NA LXX Os 2,1 Tradução NA28 Análise
E será possível, Rm 9,26 faz
96
PITTA, 2014, p. 349.
97
MAZZAROLO, 2006, p. 120.
98
FITZMYER, 1993, p. 573; PENNA, 2013, p. 751; ALETTI, 1998, p. 186-187; ESLER. 2005, p.
387-388.
99
SEIFRID, 2014, p. 807.
100
PITTA, 2014, p. 353; ALETTI, 1998, p. 182.
101
LÉGASSE, 2002, p. 618.
102
SEIFRID, 2014, p. 808.
103
POHL, 1999, p. 161.
Fronteiras, Recife, v. 4, n. 1, p. 201-230, jan./jun., 2021
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104
PENNA, 2013, p. 752; LAGRANGE, 1950, p. 242.
105
LÉGASSE, 2002, p. 619.
106
FITZMYER, 1993, p. 573; LÉGASSE, 2002, p. 620; PENNA, 2013, p. 754-755; MOO, 2014, p.
680; ALETTI, 1998, p. 190; LAGRANGE, 1950, p. 243.
107
Silva afirma que “Uma vez e outra, porém, as citações paulinas parecem refletir um texto
heterogêneo”, não seguindo nem a LXX e nem o TH, podendo ser um outro texto ou uma
junção de textos, usando de liberdade no manejo dos textos bíblicos do AT, segundo suas
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221 | Um vaso para honra e outro para desonra: a eleição divina em Rm 9,19-29
120
ACHTEMEIER, 2014, p. 166.
121
DUNN, Romans 9-16, 1988, p. 565.
122
ACHTEMEIER, 2014, p. 165.
123
CRANFIELD, 1992, p. 221.
124
LÉGASSE, 2002, p. 608; ACHTEMEIER, 2014, p. 172; PENNA, 2013, p. 752; BARTH, 2005, p.
547.
125
SCHLIER, 1982, p. 488.
126
SCHLIER, 1982, p. 489.
127
DUNN, Romans 9-16, 1988, p. 566.
Fronteiras, Recife, v. 4, n. 1, p. 201-230, jan./jun., 2021
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não foi o problema de Paulo. Pelo contrário, eles não deram à perícope a
intenção expressada e nem sequer a interpretação veterotestamentária
desejada por Paulo.
Considerações finais
O foco do apóstolo Paulo permanece fixo sobre a problemática da
rejeição de Israel ao Evangelho. Porém, no final da perícope Rm 9,19-29,
“Paulo deixa em suspense ou permanece em silêncio sobre o status e a sorte
futura de Israel, tendo rejeitado o Evangelho”128.
Dunn esclarece que a chave para a correta compreensão dos difíceis
vv.22-24 vai numa dupla direção: a) o reconhecimento de que Paulo não está
tratando da problemática da parcialidade ou imparcialidade de Deus no juízo;
b) a admissão de que ele simplesmente usou a história de Israel para iluminar
o propósito de Deus na história da salvação129.
A expressão “para honra e para desonra” é usada também em 2Tm
2,20-21, mas para se referir aos utensílios de uma casa e “de forma alguma
quer falar de destruição ou condenação”130. Ali, os utensílios para honra, são
de ouro e prata; e os que são para a desonra, de madeira e barro. Os
utensílios que são “para a desonra” são simplesmente empregados para fins
menos nobres ou ornamentais (não necessariamente menos úteis), do que
aqueles que são para a honra.131 Daí, pode-se compreender mais bíblica e
coerentemente o v.21: Deus, da mesma humanidade, prepara e chama cada
pessoa para diferentes responsabilidades, umas para “maiores” e outras para
“menores”, mas todas sumamente importantes para a comunidade toda.
Isso explica o que estava sendo comentado no início do capítulo 9, nos
vv.6-13. Ismael e Esaú foram vasos colocados e usados numa posição “mais
simples”. Já Isaque e Jacó foram postos e usados numa posição “mais
elevada”, do ponto de vista da linhagem do povo escolhido e do Messias.
Porém, isso não significa, de forma alguma, que o Criador tenha preferido um
ao outro para a vida eterna. Pelo contrário, Deus não escolhe uns e rejeita
128
ALETTI, 1998, p. 198.
129
DUNN, Romans 9-16, 1988, p. 566.
130
FITZMYER, 1993, p. 569.
131
BRUCE, F. F., 2002, p. 94.
Fronteiras, Recife, v. 4, n. 1, p. 201-230, jan./jun., 2021
225 | Um vaso para honra e outro para desonra: a eleição divina em Rm 9,19-29
outros, mas escolhe um por causa dos outros. A eleição aqui era para
desempenhar uma função específica no plano da redenção. Assim foi com
Abraão, Isaque, Jacó e com o povo de Israel.
Entre os cristãos, o chamado atualiza o que Deus fizera aos Patriarcas
e a todo o Israel. Ele chama inclusive “meu povo” aquele que “não era
amado”, ou seja, os gentios132.
Definitivamente, Paulo não está dizendo que o Senhor predestina um
para a salvação e outro para a perdição, antes mesmo do nascimento. Se
assim fosse, todos não passaríamos de marionetes nas mãos de um ventríloquo
e o plano da salvação seria um grande jogo de cartas marcadas. Isso, de forma
alguma, corresponde ao que o “apóstolo dos gentios” (Rm 11,13) defende e
prega, pois seria em vão a evangelização e o processo de conversão não teria
sentido.
Assim, os vv.22-23, embora recheados de anacolutos133, com frases um
pouco soltas, ajudam a tornar a compreensão mais fácil, indicando que Deus é
longânime e paciente134: Deus, em seu infinito amor, mesmo querendo
mostrar sua ira e tornar conhecido o seu poder, carregou com muita paciência
uns “vasos de ira”, que foram preparados para a ruína, pois Deus é
misericordioso135, até mesmo com aqueles que são rebeldes136. Quem seriam
esses vasos? Tanto os israelitas, que rejeitaram a salvação, como os gentios,
que ainda não entraram na salvação.
O “horizonte argumentativo” paulino não é o antropológico e, sim, o
teológico. O acento não recai sobre os vasos, mas, sobre o oleiro. Assim
sendo, “do desígnio divino fazem parte não apenas os vasos de misericórdia,
mas também aqueles de ira, porque, através destes, se manifesta a glória de
Deus”137, e sua ira não se manifesta apenas sobre os gentios (como se pensava
132
WILCKENS, 1992, p. 253.
133
PITTA, 2014, p. 350; LAGRANGE, 1950, p. 238.
134
BARTH, 2005, p. 553; PRATER, 2005, p. 239; CRANFIELD, 1992, p. 229.
135
SCHLIER, 1982, p. 491; SPROUL, 2011, p. 309.
136
ACHTEMEIER, 2014, p. 173. Segundo Pr 16,4, Deus não criou seus filhos maus, mas lhes
permite até mesmo viver o dia de sua desgraça (MAZZAROLO, 2006, p. 120).
137
PITTA, 2014, p. 350.
Fronteiras, Recife, v. 4, n. 1, p. 201-230, jan./jun., 2021
Waldecir Gonzaga & Ygor Almeida de Carvalho Silva | 226
em Israel, julgando que os não judeus já estavam perdidos), mas sobre “todos
os que amam e praticam a mentira” (Ap 22,15)138.
E quanto aos “vasos de misericórdia”, preparados de antemão para a
glória? Interessante que o texto não diz que foi Deus quem preparou os “vasos
de ira” para a ruína, mas afirma que foi ele quem preparou os “vasos de
misericórdia” para a glória, ou seja, o apóstolo não atribui a ruína ou a
destruição ao Criador; assim como Jeremias não diz que o oleiro jogou o vaso
no chão, mas simplesmente que ele se estragou nas suas mãos (Jr 18,4). Mas
Deus, por meio de seus vasos, quis manifestar a sua misericórdia àqueles que
ele ama. O chamado de Deus é em vista de algo, como que um futurum
propheticum anunciando o chamado dos gentios139.
Podemos dizer que os “vasos de misericórdia” são aqueles que
aceitaram a misericórdia divina. E, através destes, o Senhor revela aos outros,
que ele carregou “com muita paciência”140, a riqueza da sua glória, que é seu
próprio poder salvífico através de Jesus Cristo (Ef 1,18; 3,16; Cl 1,27), para
que eles possam ser refeitos.
Enfim, como afirma Schlier: “Deus é Deus e o seu agir soberano
admite a misericórdia”141, chamando a si judeus e gentios, “justos” e
“injustos”, visto que Ele tem o poder de justificar a todos em sua justiça e
gratuidade142, fazendo de todos um só povo (Gl 3,28)143.
Referências
138
MAZZAROLO, 2006, p. 121.
139
FITZMYER, 1993, p. 570.
140
LÉGASSE, 2002, p. 609; MOO, 2014, p. 672.
141
SCHLIER, 1982, p. 497.
142
POHL, 1999, p. 161.
143
MAZZAROLO, 2006, p. 121.
Fronteiras, Recife, v. 4, n. 1, p. 201-230, jan./jun., 2021
227 | Um vaso para honra e outro para desonra: a eleição divina em Rm 9,19-29
ALETTI, J.-N., Israël e la Loi dans la Lettre aux Romains. Paris: CERF, 1998.
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LAGRANGE, M.-J. Saint Paul. Épître aux Romains. Paris: Gabalda, 1950.
WILCKENS, U. La carta a los Romanos. Rom 6-16, vol. II. Salamanca: Sígueme,
1992.
Waldecir Gonzaga