A Primavera Juvenil No Brasil e No Mundo
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RESUMO
Este artigo propõe uma reflexão a respeito das manifestações juvenis de junho
de 2013 no Brasil, em que analisa seu papel no aprofundamento do sentido
de democracia, inspirando-se nas ideias de Robert Musil sobre o “senso de
possibilidade” e no debate sobre a “pós-história”, tal como propõe Vilém Flusser.
Comparando-as com a Primavera Árabe, procura-se abordar criticamente as
interpretações apresentadas sobre o fenômeno, tanto de intelectuais brasileiros,
como do estrangeiros, tomando como base as ideias desses autores, ou mesmo as
análises sobre o papel das “redes sociais” e das “tecnoimagens” no desencadeamento
de manifestações de massa lideradas por uma juventude ávida por encontrar canais
de participação efetivos. Ressalta-se a atualidade de Flusser para pensar a crise
da experiência, sobretudo em países como o nosso, onde a dominância da cultura
africana confere novos sentidos ao engajamento político e à vida social, pautados
pela estética e a sabedoria ancestral de culturas não ocidentais.
Palavras-chave: Manifestações juvenis. Tecnoimagens. Pós-história e estética
africana.
ABSTRACT
This article proposes a reflection about the protests led by the youth in June
of 2013 in Brazil, analyzing their role in the deepening of the meaning of
democracy. This reflection is inspired by the ideas of Robert Musil on the “sense
of possibility” and debates on “post- history”, such as those proposed by Vilém
Flusser. Comparing these protests with those of the Arab Spring, we seek to look
critically at the interpretations presented on the phenomenon both by Brazilian and
foreign intellectuals, basing our critique on the ideas of these authors, or even on
analyses of the role of “social networks” and “techno-images” in the triggering the
protests of the mass, which were led by the youth, eager to find effective channels
of participation. The article emphasizes the relevance of Flusser in thinking about
the crisis of experience, especially in countries like Brazil, where the dominance
1 Professora Livre-Docente da Faculdade de Educação da USP, Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da FEUSP e Membro Associado da
Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBPSP).
2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da FEUSP, Mestre em Educação pelo mesmo Programa, Bacharel em Ciências Sociais pela
FFLCH-USP.
Publ. UEPG Ci. Soc. Apl., Ponta Grossa, 22 (2): 215 -228, jul./dez. 2014
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of the African culture gives new meaning to political engagement and social life,
guided by the aesthetics and ancient wisdom of non-Western cultures.
Keywords: Youth protests. Techno-images. Post-history and African aesthetics.
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de viver e de se engajar política e esteticamente, algumas cidades na Europa, o fator significativo para
em que se faz presente a força de nossa ancestrali- desencadear os protestos.
dade africana. Outro ponto de contato entre as manifestações
nos EUA no passado e nos subúrbios europeus é
terem se visto acompanhadas por músicas de resis-
A crise dos limites no mundo globalizado: tência e de protesto que clamavam, e ainda clamam,
como ficam as novas gerações? por liberdade e reconhecimento de seus direitos, no
seio do qual nasceu e se desenvolveu o movimento
Em outro artigo (Amaral, 2013) no qual foi hip-hop.
abordada a primavera árabe, sustentamos que logo Observou-se ainda que, assim como ocorreu
após o fogo e a onda de saques que se alastraram no passado, as revoluções da primavera no norte da
pelas ruas dos subúrbios de Londres em 2011, de- África se viram embaladas por movimentos cultu-
sencadeados aparentemente pela morte de um jovem rais de protesto. E, mais do que isso, se o rap do
negro pela polícia, a socióloga holandesa, naturali- movimento hip-hop inaugurou o uso da mídia como
zada americana, Saskia Sassen (2011), estudiosa da forma de criar uma cultura de resistência e de protes-
globalização, em entrevista concedida ao jornal O to, o avanço das redes sociais se tornou fundamental
Estado de São Paulo, comentou que chegáramos a para a série de revoluções desencadeadas no mundo
“um tipping point”, querendo dizer com isto que ha- árabe e, como vimos no ano passado, foi responsá-
víamos chegado a um ponto crítico. A reportagem vel pelas manifestações de massa desencadeadas no
pretendia relacionar a revolta em Londres às revolu- Brasil pelo Movimento do Passe Livre (MPL).
ções no norte da África, às lutas sangrentas na Síria, A revolução na Tunísia que inspirou as de-
às manifestações em Tel-Aviv por aluguéis mais mais revoluções e revoltas da Primavera Árabe, foi
baixos e educação gratuita, até às manifestações dos denominada por Manuel Castells (2013), em seu
jovens no Chile pela gratuidade do ensino superior. livro Redes de indignação e esperança, “revolução
E o interessante é que grande parte destas manifesta- da liberdade e da dignidade”. Tudo começou com a
ções eram lideradas por jovens que, segundo a auto- autoimolação de Mohamed Bouazizi, um vendedor
ra, tiveram seu futuro roubado pela economia global ambulante que pôs fogo no seu corpo em frente ao
e pelo esgotamento dos canais de participação po- prédio do governo para protestar contra o confisco
lítica, os quais se encontram, hoje, completamente de sua banca de frutas e legumes pela polícia, depois
limitados. de recusar-se a pagar propina. Último ato de protesto
Embora as situações não sejam totalmente contra a humilhação a que vinha sendo submetido,
equiparáveis, uma vez que para determinadas parce- que acabou desencadeando manifestações contra a
las da população as questões se coloquem de modo corrupção, a especulação financeira, a polícia vio-
mais crítico, a entrevistada sustentara que estávamos lenta e a mídia subserviente. Embalada por canções
experimentando as consequências da “lógica exclu- e slogans contra o governo, o povo reunido na praça
dente da globalização”. promove, finalmente, a derrocada do governo, du-
Desse modo, contrariamente ao que foi veicu- rante a qual a cantora Emil MathLouthi canta seu
lado na imprensa nacional brasileira, os distúrbios Kelmti Horra, uma música de protesto que clama por
em Londres, muito parecidos com aqueles que vi- liberdade de expressão.
mosem Paris em 2009, lembravam, segundo Sassen, No Egito, a revolução de 25 de janeiro de 2011,
os levantes dos jovens americanos, negros e pobres que destronou o “último faraó e seu séquito” em 18
nos anos 1970, que, ao se verem excluídos diante da dias, pondo fim ao regime sangrento de Mubarak,
política recessiva adotada, passaram a quebrar tudo foi desencadeada também por uma série de autoi-
para se fazerem ouvir. Para a autora, a falta de em- molações em protesto contra o aumento da comida,
prego e o corte nos investimentos sociais foram, no que deixara grande parte da população com fome.
passado para os jovens negros americanos e estão Segundo Castells (2013), “muitas mulheres, jovens
sendo no presente para os jovens dos subúrbios de e idosas, várias delas com véus e outras vestidas à
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poderia ser interpretada como demonstração da capaci- Primavera Árabe e mais recentemente atingiram países
dade de inventar mecanismos de democracia direta. São emergentes, como o Brasil e a Turquia, afirmou que os
pessoas que, segundo ele, “adquiriram a consciência de protestos não tinham um alvo específico – contra o ca-
sua força política e que não veem razão para transferir pitalismo global, ou contra o fundamentalismo religio-
tal força para partidos profundamente hierárquicos e so –, mas que refletiam muito mais um mal-estar, um
guiados pelo raciocínio tático” (SAFATLE, 2013). descontentamento fluido que dava sustentação a diver-
Segundo depoimentos de pessoas que par- sas demandas específicas. No entanto, admitiu que esse
ticiparam dessas manifestações, não eram apenas mal-estar era sentido frente a um fundamentalismo que
estudantes de classe média que nada entendiam da atingia a todos, embora acompanhando a singularidade
violência e miséria vivida na periferia que estavam de cada região ou país: o fundamentalismo de mercado
presentes. Havia sim jovens da periferia, muitos deles e a consequente privatização do espaço público.
frequentando universidade, o que teria sido facilitado Assim se explicaria como se desencadearam
pelo Prouni e pelas cotas nas Universidades Federais, grandes manifestações em torno de questões bem es-
que justamente por terem tido acesso a uma formação pecíficas: o fato de o governo islamista, na Turquia,
que, até pouco tempo atrás, lhes fora vedada, passa- querer transformar o parque em torno da praça Taksim,
ram a ter clareza de seus direitos, como cidadãos, ao situada no centro de Istambul, em um shopping cen-
mesmo tempo em que se viam acossados pelas dificul- ter desencadeou manifestações de grandes propor-
dades financeiras. Estas ainda se constituíam em um ções. No Brasil, um pequeno aumento das tarifas de
impeditivo para a melhoria de suas condições de vida, ônibus levou mais de 100 mil às ruas em cada uma
sendo a questão do transporte um item fundamental. de suas principais cidades. Ora, na verdade, a força
Tampouco se tratavam de jovens utópicos ou e extensão de tais manifestações eram devidas a um
guiados pelo pensamento mágico, como deixa claro mal-estar muito mais profundo em relação aos limites
Paulo Arantes, em entrevista concedida ao jornal O da democracia e do próprio avanço do capitalismo.
Estado de São Paulo (Aliás, 23/06/2013, p. E2). O Sem deixar de observar que em cada boom na econo-
entrevistado ponderou sobre a rapidez e perspicácia mia, como os observados no Brasil e na Turquia, há
de suas lideranças, ao demonstrarem por meio de pla- sempre a permanência de bolsões de miséria.
nilhas como “a circulação urbana planejada à luz de Ponderou que tais movimentos podem fazer
uma tarifa zerada, exponenciaria a performance eco- avançar o sentido de democracia quanto mais exi-
nômica de uma cidade, e estenderia o direito à cidade”. girem o impossível, explorando as contradições do
Um raciocínio que aprofunda o sentido de democracia avanço global do capitalismo e, desse modo, indo
e de cidadania ao defender a bandeira do MPL, que, além da dimensão política, em direção a uma demo-
a nosso ver, ampliaria o direito de circulação ao con- cratização social e econômica.
junto da população, além de expor quão fantasiosas Uma discussão interessante a esse respei-
pareciam ser as planilhas dos órgãos governamentais. to, que acreditamos poder contribuir para o avanço
Ampliemos agora o debate para o campo inter- dessa discussão, é feita por Vilém Flusser em duas
nacional, recorrendo a análises de “alguém de fora” obras: Pós-História – vinte instantâneos e um modo
e “de dentro”. de usar (1998) e Fenomenologia do Brasileiro – em
busca de um novo Homem (2011).
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e emigrou para o Brasil, onde viveu por mais de 30 consciência se politizar – o da “intersubjetividade
anos. Foi professor da Universidade de São Paulo e responsável para o outro e pelo outro”.6 No entanto,
colaborador do Estado de São Paulo por longo tem- salienta o autor, o que se observa é uma “despolitiza-
po, onde escrevia sobre Filosofia da Linguagem, e ção massificante”, uma vez que todos os campos de
posteriormente da Folha de São Paulo, além de emis- relações se tornam “ciberneticamente manipuláveis”.
sário do governo brasileiro para assuntos culturais na Tornamo-nos aptos a atar e a desatar as relações e com
Europa e nos EUA. isso, o jogo social se torna o “jogo do absurdo”, uma
Embora tenha vivido grande parte de sua vida vez que a sociedade desmantelou sua dimensão mítica
no Brasil, sua obra passou a ser reconhecida somen- e histórica e as des-existencializou. Não há fidelida-
te depois de sua morte em 1991, com a organização de possível (esta só se realiza entre pessoas), mas há
de diversos encontros internacionais na Europa e jogo. O que passa a existir é a fidelidade sem amor,
a publicação de suas obras em cerca de 13 países. engajamento (ideias, ideologias, etc.). Mas é por meio
No Brasil, no entanto, apenas duas delas foram da consciência do absurdo de nossa existência, que
publicadas: Filosofia da Caixa Preta e este livro, se pode vislumbrar um novo tipo de relacionamento
Fenomenologia do Brasileiro, pela Editora da UERJ. social. É preciso transcender os aparelhos e utilizá-los
Mais recentemente, a Editora ANNABLUME aca- como jogos, com estratégias intersubjetivas.
bou publicando grande parte de suas obras, versan- Ora, recorremos a este autor justamente por-
do muitas delas sobre a era pós-industrial marcada que nos parece que ele fornece outras chaves, para
pelo avanço da cibernética e do pensamento progra- além das categorias históricas, essenciais para se
mático, em que os aparelhos passaram a funcionar compreender as manifestações juvenis que assola-
cada vez mais independentemente dos motivos de ram o nosso país desde junho do ano passado, cujas
seus programadores. Tudo isso tem apontado para reivindicações pareciam apontar para uma crise de
mudanças nos campo da experiência, dos relaciona- confiança não apenas nas instituições, mas em todas
mentos e da comunicação. as formas de representação. É a conversão do dis-
curso em diálogo. Eis a chave do uso que se fez das
redes de comunicação social como estratégia de reu-
No campo da experiência nião e de derrubada das formas de poder e de comu-
nicação hierarquizadas. Constituindo-se em redes de
Flusser (2011), em seu livro Pós-História, sus- indignação e de esperança, como salientara Castells
tenta que se antes percebíamos o mundo no contexto (2013), retomaram a dimensão pública e humana da
de objetos ou de processos, hoje isso se dá no contexto intersubjetividade, ao se reunirem em ruas e praças.
das relações. Não nos deparamos mais com eventos
ou situações, mas com um campo de relações, o que
acarreta mudanças tanto no plano do conhecimento, A consciência pós-histórica e as
quanto da experiência. Ou seja, a mudança dos mo- tecnoimagens
delos de conhecimento e da experiência se reflete na
transformação da estrutura das relações, que passam De acordo com Flusser (2011), o século XIX
a abstrair o “eu” e se basear numa rede que prende foi palco da crise da historicidade, tal como anun-
o sujeito à sociedade, qual um gancho “sobre o qual ciara W. Benjamin e outros autores no início do sé-
as relações que sou estão dependuradas”, 5 De onde culo XX, na medida em que a consciência histórica
se depreende a vacuidade, não apenas dos objetos e foi perdendo o chão da experiência, “o contato que
processos como da própria existência do mundo. os textos estabelecem com o mundo da experiência
Deriva dessa leitura uma ontologia relacional concreta”. 7 É o momento em que a escrita vai sendo
que leva, por sua vez, à ética e a comportamentos paulatinamente substituída pela fotografia, filmes,
altruísticos. É como se esse fosse o caminho para a
6 OP. CIT, p. 174.
5 IBIDEM, p. 174. 7 IBIDEM, p. 117.
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– para sustentar que, para além do significado usual preocupado e o quanto não passa de euforia passa-
ligado a uma carência acentuada do ponto de vista geira. Uma discussão bastante pertinente para se
econômico, pode-se pensar que o termo miséria pensar sobre a seriedade e o alcance das manifesta-
pode muito bem se referir à miséria humana, ou seja, ções desencadeadas pelo MPL.
“como resultado da autoentrega alienada a coisas Levanta, no entanto, outra dimensão especifi-
que passam a ser acumuladas para reencontrar-se camente brasileira, oriunda de sua cultura e diver-
nelas” (FLUSSER, 1998, p. 113). Nesse sentido, sidade étnica, que pode fazer com que se enfrente
pode-se deduzir que assim como há miséria ligada a angústia em face da miséria de modo distinto de
à carência, há também miséria ligada ao excesso. outras partes do mundo. Considera que até então fo-
Neste caso, produz-se uma verdadeira reversão da ram identificadas três formas de enfrentamento da
relação homem-coisa, segundo a qual “o homem miséria: a primitiva, a ocidental e a oriental. Ocorre
deixa de possuir coisas e passa a ser possuído e que no Brasil é possível identificar-se uma quarta
possesso por elas”.11 A alienação se faz presente em reação. A primeira aborda o modo como as cultu-
ambos os casos. No caso da carência, o homem se vê ras melanésia e maia enfrentaram a miséria, tomada
coisificado pelo que lhe falta. E no caso do excesso, como um dado ecológico da natureza. A ocidental se
é coisificado pela posse de coisas em excesso. Em originou há 8000 anos e tornou-se consciente a partir
ambos os casos, a escravidão está presente. do Renascimento, apresentando uma tal aceleração
Recorrendo a uma abordagem existencial- do progresso que sofre muito mais por excesso do
fenomenológica, opõe-se à visão historicista que que por escassez. É o caso da Europa Ocidental e dos
tende a ver a miséria apenas no primeiro caso, EUA. Já a oriental foi construída pela Índia há mais
considerando que falar em miséria por excesso de 4000 anos. Segundo este ponto de vista, miserável
significa querer minimizar a miséria por carência. A é aquele que se assume enquanto tal, fazendo com
seu ver, debruçar-se sobre os dois significados aponta que o progresso não seja medido segundo critérios
para uma reflexão de outra ordem, ao se referir a uma considerados objetivos, como calorias ou número de
maneira de ser que se rende ao mundo e se aliena carros produzidos, mas levando em conta também a
progressivamente de si, que Heidegger teria chamado dimensão subjetiva.
de “decadente”. Dar-se conta de sua existência
miserável, pode desencadear uma angústia, que pode
tanto aprisionar o sujeito no isolamento coisificado, Ora, e no Brasil, como essa questão se coloca?
quanto fazê-lo experimentar a liberdade, ou seja, “a
possibilidade de existir no indeterminado, portanto, Embora a miséria brasileira seja comparável
no futuro”.12 em muitos aspectos à miséria hindu, do ponto de vis-
A partir destas ideias, perguntamo-nos em que ta de seu enfrentamento, são bem distintas, pois aqui
medida seria verdadeira a afirmação de que o “Brasil não há uma posição fatalista em relação à miséria
é um país do futuro”. Para ele é falsa, do ponto de como de algum modo pode ser identificado na Índia.
vista histórico, uma vez que nada aponta nesse senti- Em primeiro lugar, porque aqui as misérias são in-
do. Mas pode ser verdadeira, se pensada existencial- comparáveis: há a miséria do caboclo que vive à
mente. Quando o país começa a se preocupar com beira do Rio São Francisco, a miséria da família nor-
sua miséria e se vê tomado de angústia, coloca-se destina em São Paulo, a miséria da mulher proletá-
“não apenas como país de seu próprio futuro, como ria, a da mãe proletária, para mencionar algumas das
do futuro da humanidade”.13 Mas, como pensador mais importantes. Há a miséria causada por causas
capaz de duvidar, põe em questão essa ideia, propon- naturais e outra, por questões econômicas e culturais.
do-se a analisar o quanto o brasileiro está realmente Embora haja uma crença de que o progresso deva ser
alcançado no Brasil nos moldes ocidentais, o autor
sustenta que se deva visualizar uma solução supra-
11 IDEM, p.113.
-histórica, convertendo o ideal de progresso em uma
12 IBIDEM, 1998, p. 115.
13 OP. CIT. P.115. meta não progressista que só seria alcançável se “o
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método do progresso fosse aplicado até certo ponto” vida do homem e dão sentido ao ambiente humano,
(FLUSSER, 1998, p. 125). que transforma em ambiente de vida” (1998, p. 135).
E parece ser este o projeto brasileiro, que em- Essa dimensão integrada de tudo que constitui o hu-
bora esteja impregnado de ideologias, supõe uma mano – a arte, a religiosidade e o cotidiano – acabou
meta sui generis: mesmo que se admita a necessi- sendo fundamental para a cultura brasileira. E justa-
dade de liquidar a miséria econômica, há certa ten- mente esse penetrar sorrateiro da força dessa cultura
dência a se pensar que o progresso é necessário, mas nas camadas profundas de nosso inconsciente nos
até certo ponto, uma vez que se prioriza o jogo, a faz romper com um modo de pensar linear, causal
religiosidade e a cultura. Embora seja apenas um es- ou mesmo frio e pragmático, como tem predomina-
boço de projeto, no momento em que este se torna do entre a burocracia governamental, criando, em
consciente, poderia ser de extrema importância para oposição a este último, a possibilidade de um novo
toda a humanidade. Ou seja, o aspecto lúdico da cul- homem. Este, segundo o autor, seria capaz de romper
tura brasileira que advém da herança negra, de nossa por dentro, pela língua, a reificação, a objetivação e
ancestralidade afro-brasileira, diz o autor. a alienação. “Um novo homem com a chance, pro-
priamente linguística, portanto existencial, de supe-
rar a discursividade linear indogermânica e semíti-
De onde vem a dominância negra de nossa ca, reconhecendo-se não mais unidimensional, justo
cultura? por que vive para além da historicidade do discurso
que formou o Ocidente judaico-cristão, ou seja, jus-
A despeito das diferenças étnicas, culturais to porque se pode admitir vivendo na pós-história”
e sociais entre os negros que foram trazidos para o (1998, p.27). Tais afirmações não se coadunam com
Brasil com o tráfico negreiro, ignorada em grande o debate sobre a pós-modernidade, que considera
parte e até mesmo banida pelos escravocratas, a força pouco sério, mera “balela”.
de suas línguas, costumes e concepções de mundo, as-
sim como da linguagem indígena, com todo o seu rico
matizado linguístico e cultural, penetrou de tal modo Contextualização da ideia de pós-história a
na língua e visão de mundo dominantes, que acabou partir das manifestações de junho
criando as condições de surgimento do novo homem.
Segundo o autor, as gerações de afrodescendentes, O que ocorreu no dia 17 de junho de 2013 na
em particular, embora tivessem sido esvaziadas no região da Faria Lima foi um marco para os habitantes
passado de seus modelos e tradições, mantiveram em da metrópole paulistana. Ali houve a concentração
sua memória corporal e rítmica sua identidade cul- de um grande ato contra o aumento da passagem de
tural e seus modelos. Uma forma de transmissão en- ônibus e contra a violência policial. O clima divulga-
tre as gerações foi a garantia de sua dominância, não do pela mídia era assustador, pois ficou subentendido
apenas no Brasil, mas nas Américas: uma Paideia que a polícia militar não interferiria nos eventuais
que transmitia modelos, garantindo o essencial, mas problemas ocorridos no trajeto da manifestação, em
deixando às novas gerações a liberdade de recriar os vista da repercussão negativa da atuação policial no
detalhes. A consequência dessa particularidade em ato precedente, ou que tal atuação recrudesceria.
suas formas de transmissão, segundo o autor, “é que Mas a célebre avenida havia sido amplamente
as culturas africanas têm estrutura rígida (não históri- ocupada. Os jornais contabilizavam cerca de 60 mil
ca), mas grande abertura para a articulação de fortes manifestantes, mas este número soava inverossímil
individualidades” (FLUSSER, 1998, p. 135). para os que participaram do ato. Esta manifesta-
Além disso, sua arte, expressa na música e na ção teve proporções tão grandes que diversos gru-
dança, não são obras a serem contempladas como é pos se dispersaram ao longo da enorme caminhada
usual no mundo ocidental, mas fazem parte, ao con- e, mesmo assim, as vias continuavam tomadas por
trário, da vida religiosa e do cotidiano. Com isso, “as uma multidão. De modo que era muito difícil fazer
culturas africanas a um tempo articulam o sentido da uma estimativa da quantidade de pessoas presentes
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e difícil de imaginar que um dia uma mobilização somente deixará de ser programado ao se abrir ao
como essa fosse acontecer. O que houve foi uma ver- imponderável e ao engajar-se no programa cujas re-
dadeira entropia. gras são estabelecidas coletivamente, no sentido de
Vilém Flusser (2011) já havia proposto a en- promover a intersubjetividade e o diálogo. Trata-se
tropia como um elemento metafórico para a com- de um jogo criado e jogado por todos, cujas regras
preensão do conceito de pós-história. Este conceito são permanentemente transformadas pelos próprios
consiste na ideia de que a práxis do homem que vive jogadores em prol deles mesmos, trazendo à cons-
o período pós-Auschwitz não é mais predominante- ciência as arbitrariedades destas regras. Esta seria a
mente orientada pela linearidade histórica transmiti- virtualidade positiva inscrita na pós-história.
da pelos discursos político, religioso e científico na
tradição do pensamento ocidental. Diferentemente
da pós-história, a práxis do homem histórico tem Retomando a discussão sobre as
exacerbados os sentidos finalístico – religião e polí- manifestações de rua lideradas por jovens no
tica – e causalístico – ciência. Brasil e no mundo
Os sentidos finalístico e causalístico são
insuficientes para orientar o homem atual em meio A juventude tem conseguido, com essas mani-
à atordoante realidade pós-histórica, que requer um festações de massa, provocar abalos na velha tendên-
tipo de conhecimento dialógico, e não apenas dis- cia, apontada por Vilém Flusser, a produzir “fusões
cursivo. As boas perguntas que se colocam hoje não estéticas [e políticas] de espíritos alheios”, presentes
dizem respeito ao “para que” finalístico e nem ao não apenas na burguesia, mas também nas esquerdas,
“por que” causalístico do sentido de viver, mas ao ao importar modelos de fora, transpondo para o Brasil
“como” viver em uma realidade programática do o embate de “forças históricas externas”, acreditando
mundo codificado. que o único campo de batalha possível seja entre o
Ao contrário do conhecimento discursivo, o “neocapitalismo” (referindo-se ao capitalismo tardio)
conhecimento dialógico reconhece o acaso e o ab- e o “socialismo”. Ou seja, projetos e categorias de
surdo dos programas que codificam o mundo. Ocorre análise em um país em defasagem (em relação às re-
que a barbárie exemplificada por Auschwitz se deve voluções burguesas históricas, como a americana e
justamente ao fato que os programadores ignoram a francesa), que sob o manto de uma única língua, o
que eles mesmos são programados pelos programas português, deixa-se penetrar por elementos da língua
que julgam ter criado. O sujeito no mundo codifica- tupi e de línguas africanas, como o bantu. E desse
do toma os signos como realidades dadas, transfor- modo, a estrutura arcaica de uma língua é enrique-
mando-se em funcionário a serviço de uma razão de- cida por heranças indígenas e africanas, para depois
sumana. A imagem emblemática de tal funcionário é dialogar com a onda sucessiva de influências de mi-
a figura do tecnocrata. grantes europeus, “de terreno linguístico o mais va-
Neste fim da história indesejável, grande par- riado possível – por exemplo, o polonês, o árabe, o
te da população global tenderia a assumir a postura japonês, o alemão, o italiano, o ídiche” (FLUSSER,
do tecnocrata que faz a manutenção de um aparelho 1998, p. 27); de onde se deduz que não há uma única
autônomo e desumano. De todo modo, o programa língua – mas várias línguas e vários mundos.
e os programadores não são redutíveis à explicação É justamente dessa variedade de universos e
causalística ou finalística, embora sejam também in- línguas que pode surgir o que o autor chama de um
formados por ambas. A humanização das relações na “novo homem”, com uma discursividade capaz de
sociedade pós-industrial requer a abertura para ou- romper com a linearidade “indogermânica e semíti-
tras experiências de viver que podem ser buscadas ca” e com o homem unidimensional. Eurocêntrico,
na estética e na sabedoria ancestral de culturas não diríamos, acompanhando o debate sobre o multicul-
ocidentais, sobretudo a africana. turalismo, que pretende justamente fazer emergir es-
Portanto, a transformação do mundo codifica- sas línguas e mundo submersos. Um discurso múl-
do pressupõe o engajamento estético. O programador tiplo, perspectivista, que se abre para o que o autor
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considera ser a pós-história, ou seja, para além da Embora, na revolução da primavera árabe, te-
historicidade do discurso que formou o Ocidente ju- nhamos nos deparado com rappers e seus cantos fa-
daico-cristão. Embora não identifique uma tendência lados embalando as manifestações de rua, aqui no
messiânica no brasileiro, acredita encontrar-se aqui Brasil, não houve a presença do rap ou do movimento
a possibilidade de transcendência do absurdo que hip hop. E não se pode esquecer que o rap tem sido
constitui a era atual. E isso desde que não se iluda voz solitária nas denúncias sobre a desigualdade ra-
com as promessas da globalização. Eis o que nos pa- cial, que na esteira das letras das músicas de capoeira e
rece emergir das ruas sob a liderança da juventude do samba tem denunciado algo que ainda não foi tema
que arrisca lutar até mesmo contra as “vantagens da dessas manifestações juvenis que se alastraram no
copa e das olimpíadas no Brasil”, claramente ilusó- Brasil desde junho deste ano, denunciando não apenas
rias, uma vez que vêm acompanhadas de obras fara- o preconceito e a discriminação que pesam sobre o ne-
ônicas e desnecessárias. gro, mas principalmente o genocídio praticado contra
Levando em consideração as ideias de autores os mesmos nas periferias, particularmente de metró-
como Flusser e Zizek, parece-nos que os jovens conse- poles, como o Rio de Janeiro e São Paulo, pela polícia.
guiram captar essa dimensão do humano identificada Mas não se pode deixar de considerar que,
primeiramente na fenomenologia do homem brasilei- embora esse debate racial não estivesse em pauta, a
ro, o fundamentalismo de mercado, como denominara juventude nas ruas impôs um debate para a esquerda
Zizek, o estágio atual do capitalismo, bem como os e as classes dominantes em relação aos velhos mo-
nossos governantes, mesmo que ancorados em parti- delos e ao histórico embate entre o neoliberalimo e o
dos historicamente de esquerda, têm passado ao largo. socialismo, sugerindo ser possível decifrar nas redes
Flusser deixa claro que não é possível com- de comunicação social algo que está além delas e,
preender esse novo homem que se forja como pos- ao mesmo tempo, nelas se apoiar para romper com
sibilidade de superação dos modelos ocidentais ou as relações hierarquizadas de poder e conhecimento.
mesmo orientais, recorrendo a categorias históricas Um debate que pode nos servir de guia para “res-
como insistem os partidos de esquerda. As catego- taurar a dignidade” do humano perante a lógica do
rias marxistas, de luta de classes, por exemplo, são absurdo instaurada não apenas pela globalização e
apropriadas para os países históricos, europeus e até a mundialização da cultura, mas por uma existência
norte-americanos, mas não para o Brasil. que se desexistencializou, ao se tornar cibernetica-
A recusa dos jovens aos partidos parece fazer mente manipulável. A felicidade pública comemora-
ecoar justamente essa defasagem que não fora capta- da nas praças e ruas das cidades deste país, a despeito
da pelos partidos de esquerda e que de algum modo da forma violenta com que foi recebida pela polícia e
foi capitalizada pelo movimento liderado pelo MPL. pela mídia, se deu recorrendo aos recursos da inter-
Mas o que os une às revoluções desencadea- net como jogo – jogo de contrapoderes –, tornando
das pela Primavera Árabe, a despeito das diferenças possível que a intersubjetividade fosse reconectada
de contexto econômico, político e religioso? Estão na praça, nas ruas e nas vielas; e, quem sabe, liberan-
lutando pelo aprofundamento do sentido da demo- do da dominância de uma língua as várias línguas e
cracia e contra toda forma de fundamentalismo, ao mundos que a constituem. E no Brasil, reinstaurando
mesmo tempo em que exigem modelos de desenvol- a dimensão integrada de tudo que constitui o humano
vimento e de “progresso” no ritmo e forma consoan- – a arte, a religiosidade e o cotidiano – tão presente
tes com as necessidades e costumes de cada povo. E nas culturas afro-indígenas que acabou sendo funda-
assim, ressignificam o espaço e o interesse públicos. mental para a cultura brasileira.
Uma luta que vem sendo empreendida nos úl-
timos 30 anos pelo movimento hip hop por todo o
globo, como sustentamos em artigos e pesquisa re- À guisa de conclusão
alizada sobre o potencial de formação para as no-
vas gerações, propiciada pela dimensão estética e de O que se observou nos protestos de junho
contestação do movimento. de 2013 em São Paulo são traços de diferentes
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A primavera juvenil no Brasil e no mundo: o “senso de possibilidade” e o sentido da “pós-história”...
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virtualidades. Nessas manifestações, puderam ser linear/causal informava uma realidade que colocava
verificados tanto elementos promissores quanto ele- as pessoas em planos diferentes, quando estavam to-
mentos de alienação e defasagem – outros dois con- dos pisando o mesmo asfalto e, em certa perspectiva
ceitos formulados por Flusser (1999) – na atuação (que é a mesma do helicóptero ou do drone), estavam
de grupos radicais de esquerda e de direita. A sim- formando um único e mesmo fenômeno de massas.
patia do filósofo de origem tcheca pendia mais para Além disso, o diálogo é difícil para quem pensa de
a esquerda, mas isso não o impediu de ser crítico dos acordo com um paradigma estritamente político.
procedimentos dos jovens revolucionários durante a Nesse contexto não há abertura para o diálogo e para
ditadura no Brasil. Ainda hoje se observa alguns dos compreender quem são aquelas pessoas que debuta-
anacronismos que o autor identificou no tocante à ten- vam em um ato político.
tativa de reprodução dos mesmos métodos políticos Torna-se difícil para alguém com visão excessi-
que abstraiam a realidade concreta dos brasileiros. vamente política e finalista notar a existência de pes-
Alienação e defasagem descrevem a miséria soas alheias aos grupos organizados que, não obstante,
material ou espiritual de sujeitos de diferentes origens fizeram parte da manifestação tanto quanto qualquer
socioeconômicas e a insuficiência de modelos teóricos outro manifestante. À margem daquela movimenta-
da tradição histórica europeia para a transposição da ção intensa na avenida havia muitos moradores de rua
realidade brasileira. Na manifestação, o exemplo mais indiferentes e gente pobre que queria protestar, mas
patente de defasagem da abordagem política de parti- não se juntava à massa e permanecia parada como es-
dos de esquerda foi a utilização das mesmas catego- pectadores de um desfile. No alto dos imponentes pré-
rias de seus opositores para classificá-los e rotulá-los. dios da Faria Lima, funcionários acenavam em apoio
Deste modo, aqueles que gritavam “o gigante acordou” aos manifestantes ou permaneciam atônitos com a
de modo contrário aos partidos políticos eram vistos impossibilidade de deixar seus estabelecimentos para
como despolitizados e, em última instância, massa de voltar para casa em vista das ruas ocupadas. Para cada
manobra que atrapalharia o ato contra o governo. Foi um dos milhares – quiçá milhões – de pessoas que
comum observar nas redes sociais as palavras “medo” estiveram envolvidas com a manifestação havia um
e “frustração” de quem se considerava politizado de- tipo diferente de engajamento. O único denominador
vido à massificação do movimento. Os prognósticos comum era justamente a participação e a ação que,
do movimento eram catastróficos, mesmo com toda a não importa em que sentido, transformou a cidade e a
mobilização inédita da atual geração de jovens. percepção de seus habitantes sobre a mesma.
Isso não anula a também organização da dita Paradoxalmente, a promessa de efetiva trans-
direita e sua aderência à manifestação. É possível di- formação do jogo em prol dos jogadores consiste
zer até mesmo que alguns dos pioneiros na adesão justamente na não idealização destes. A alteridade é
da direita eram os próprios policiais infiltrados, cha- de difícil admissão para quem tem uma visão fina-
mados de “P1”. Outros foram intencionalmente tra- lística exacerbada. Mas isso não implica na cessão
jados com o verde e amarelo e outros símbolos que de um posicionamento político. Trata-se, isto sim,
remetem aos integralistas. Eles também incitaram de reconhecimento. Este reconhecimento é o que
brigas e a violência contra os que estavam trajados Flusser (2011) diz faltar à “nossa ciência”, se referin-
de vermelho, de modo que sua intenção era desviar do à ontologia dominante que separa sujeito e objeto.
a revolta dos outros manifestantes para todos aque- De modo que as virtualidades de um novo ho-
les que ameaçavam o Estado, a começar pelo próprio mem que vive a pós-história não são captáveis por
governo do partido vermelho, o PT. programas que normatizam a atuação política. É vã
Contudo, eles não eram a maioria, nem a mi- a tentativa de classificar os manifestantes ou anun-
noria. Apenas coexistiram ao lado de tantas outras ciar os melhores rumos para o movimento segundo
causas, revoltas e engajamentos. Tanto a esquerda um discurso fechado em si mesmo. Nem sequer é
quanto a direita tinham dificuldades para classificar válida a tentativa de decifrar as causas comuns a
o que ocorreu porque realçavam somente os aspectos todos ou a grande parte dos envolvidos, visto que
que lhes eram mais convenientes. A visão de mundo essas causas são meramente abstrações científica
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