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(2010) Relatório Final PIBIC
(2010) Relatório Final PIBIC
(2010) Relatório Final PIBIC
PENSAMENTO DE MARIÁTEGUI
Enrico Paternostro Bueno da Silva
1. INTRODUÇÃO
1
FERNANDES, F. “Os ‘Sete Ensaios’”. In: Amayo, E.; Segatto, J. A. (org.), J. C. Mariátegui e o marxismo na
América Latina. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2002, p. 33.
Em geral, seus comentadores convergem ao defendê-lo como um importante
introdutor do pensamento marxista na América Latina. Evidentemente, não foi o único
nem o primeiro a discutir, antes dos anos 30, as questões do subcontinente sob a matriz
teórica do materialismo histórico. Todavia, segundo Aníbal Quijano2, ainda que outros
pensadores tenham ascendido a um marxismo mais profundo que o do Amauta3 nesta
época, é a obra deste que permanece vigente. De acordo com o sociólogo,
“Si Mariátegui fue capaz de dejar una obra en la cual los revolucionarios de América
Latina y de otros países, puenden aún encontrar y reconstruir una matriz de
indiscutible fecundidad para las tareas de hoy, se debe ante todo al hecho de haber
sido, entre todos los que contribuyeron a la implantación del marxismo en América
Latina de su tiempo, el que más profunda y certamente logró apropiarse – y no
importa si e modo más intuitivo que sistemático y elaborado, o cruzado com
preocupaciones metafísicas – aquello que, como Melis apunta, „confiere un valor
autenticamente científico (...) al marxismo‟4. Esto es, su calidad de marco y punto de
partida para investigar, conocer, explicar, interpretar y cambiar una realidad
histórica concreta, desde dentro de ella misma” 5.
2
QUIJANO, A. Introducción a Mariátegui. México: Era, 1982.
3
Na cultura inca, o Amauta era um homem sábio, cuja experiência o fizera alcançar “a ciência do mundo
e a consciência de si” (ESCORSIM, L. J. C. Mariátegui: marxismo, cultura e revolução. Tese (doutorado),
Rio de Janeiro: Escola de Serviço Social – UFRJ, 2004, p. 1). Este era o nome da revista fundada e dirigida
por Mariátegui. Após sua morte, a palavra passou a designar o próprio autor.
4
MELIS, A. apud QUIJANO, A. Op. cit., p. 60.
5
QUIJANO, A. Op. cit., pp. 60-61.
6
MARIÁTEGUI, J. C. “Itinerário de Diego Rivera”. In: Por um Socialismo Indo-Americano. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2005.
7
Idem. “La urbe y el campo”. In: El alma matinal y otras estaciones del hombre de hoy. Lima: Amauta,
1959.
8
Idem. “Esquema de una explicación de Chaplin. In: Literatura y estética. Caracas: Fundación Biblioteca
Ayacucho, 2006.
muita firmeza sobre as questões agrária e indígena em seu país – e este é, precisamente,
o tema desta pesquisa.
Outra razão básica que motiva o estudo desse autor é a inventividade e a
heterodoxia de seu pensamento. Um pensamento que, como bem frisou Quijano, é
dotado de valor científico e revolucionário, mas que, ao mesmo tempo, não se limita a
“aplicar” o aparato conceitual marxista sobre uma dada realidade social. Ou seja: ele
estuda a realidade peruana a partir dela mesma, mas, para interpretar essa realidade, se
vale de contribuições do pensamento europeu, em especial do marxismo.
Diferentemente de muitos pensadores latino-americanos, Mariátegui não faz sua análise
tendo como referência paradigmática os modelos europeu e norte-americano de
economia e sociedade.9 Pelo contrário, ao discutir a identidade nacional peruana, coloca
o indígena, o autóctone, no centro da questão; e ao propor o socialismo, propõe que este
seja “indo-americano”, crendo na contribuição dos valores coletivistas quéchuas para a
efetivação da luta e a construção dessa nova sociedade.
A especificidade do tema aqui estudado – os povos indígenas e a questão agrária
– também tem sua razão de ser. Neste início de século XXI, a América Latina presencia,
talvez mais que nunca, uma forte atuação de movimentos sociais que, formados sobre
suas bases étnicas, reclamam justiça histórica em relação a terras que lhes foram
tomadas10. Observam-se, assim, povos indígenas nos Andes e na Amazônia, e
quilombolas no Brasil que vêm atuando nestas reivindicações. Relembrar Mariátegui,
um pensador que soube muito bem lidar com a convergência entre uma questão étnico-
cultural e outra sócio-econômica, pode vir a colaborar na reflexão sobre essa conjuntura
contemporânea.
Fica, dessa maneira, argumentada a escolha do tema desta pesquisa. Todavia,
para melhor apreensão da produção intelectual do jornalista, é preciso conhecer também
sua ação política, uma vez que, em sua vida, as duas questões aparecem indissociáveis.
Assim, o primeiro capítulo deste relatório busca compreender a vida pessoal e a
9
Octávio Ianni, ao trazer um amplo panorama do pensamento latino-americano, acusa muitos autores
de se espelharem nos modelos estrangeiros para pensarem a América Latina. Assim, esta acaba se
fazendo, a eles, como reflexo, recriação, e até caricatura da modernidade européia e estadunidense.
Mariátegui, para Ianni, se encontra entre os que “realizam produções e criações originais, que se podem
denominar latinoamericanas, pela originalidade dos conceitos, categorias e interpretações, bem como
dos emblemas, metáforas e alegorias” (Ianni, O. “Enigmas do pensamento latinoamericano”. Primeira
Versão – IFCH/Unicamp, nº 125, 2005, p. 42).
10
A luta pela terra, muitas vezes, não constitui a única bandeira desses movimentos. Hoje, muitas
questões políticas também estão em jogo nessa luta como, por exemplo, o Estado Plurinacional,
bandeira erguida, sobretudo, pelos movimentos indígenas nos países andinos.
militância política de nosso autor. Além disso, cremos que seja de suma importância o
entendimento do contexto político, econômico, social e cultural do Peru no curto
período de sua produção.
Esclarecida a vida do autor e o contexto histórico de seu país, o segundo capítulo
se propõe a uma breve introdução teórica ao autor, sobretudo sobre a maneira pela qual
ele se apropria do marxismo, um assunto muito discutido entre seus principais
comentadores. Objetiva, também, apontar alguns problemas em sua formulação teórica,
à luz de Quijano.
Os terceiro e quarto capítulo constituem o centro deste trabalho. Neles são
discutidos os problemas indígena e agrário. Para tal, é inevitável uma revisão histórica
dessas questões no Peru, conforme o próprio autor faz. Nesses dois capítulos,
especialmente, é dada uma atenção maior aos escritos de Mariátegui que a seus
intérpretes.
Em seguida, no quinto capítulo, é exposta a luta de Mariátegui pelo socialismo,
através de textos que revelam sua atuação política na APRA (Alianza Popular
Revolucionaria Americana), na CGTP (Confederación General de los Trabajadores del
Perú) e no Partido Socialista do Peru. Pretende-se entender sua atuação na organização
do proletariado urbano e do campesinato para a construção do “socialismo indo-
americano”.
Por fim, a Conclusão deste trabalho visa defender que se encontra, em
Mariátegui, a elaboração de um marxismo heterodoxo e criativo, porém profundamente
revolucionário, capaz de compreender as principais questões estruturais que atingem até
hoje as comunidades indígenas e camponesas, bem como dotado de potencial político-
militante visando a superação das questões apontadas. Para tal, o esforço desta pesquisa
se dá no sentido de demonstrar a importância e a atualidade deste autor nos temas
estudados.
2. MARIÁTEGUI: SUA VIDA E SEU PAÍS
11
ILLÁN, D. M. José Carlos Mariátegui y su pensamiento revolucionario. Lima: IEP, 1974.
cuenta. Por la misma época comenzaría también a escribir sus primeros versos, de
contenido místico-religioso.”12
12
QUIJANO, op. cit, p. 34. A questão religiosa está bastante presente em toda obra do autor. Mariátegui,
em entrevista publicada em 1926, afirmou que sua alma esteve desde cedo em busca de Deus, e que em
seu caminho encontrara uma fé (MARIÁTEGUI, José Carlos. “Reportajes y encuestas”. In: Obras. Havana:
Casa de las Américas, Tomo II, 1982). Além disso, em sua obra pós-exílio, parece conceber a luta
socialista enquanto luta mística e religiosa e, ao mesmo tempo, profana e secular.
13
MARIÁTEGUI, J. C. apud DE LA OSA, E. “Prólogo”. In: MARIÁTEGUI, op. cit, p. 13. Enrique de la Osa,
autor do prólogo à coletânea cubana dos textos de Mariátegui, não especifica a data desse poema, mas
o situa entre os anos de 1915 e 1916.
14
Leila Escorsim divide a obra de Mariátegui em dois grandes momentos: a “idade da pedra” (até 1918)
e a “idade da revolução” (de 1919 ao fim da vida do autor). Para ela, a “idade da pedra”, definição dada
pelo próprio autor quando se refere a esse período, coincide com a existência de Juan Croniqueur – um
momento da vida do autor em que se destacam a crítica literária, o anti-academicismo e o anti-
conservantismo. Segundo a autora, nesse período Mariátegui ainda está muito ligado a um
“anticapitalismo romântico” que recusa as instituições peruanas. O sociólogo Michael Löwy, por outro
foi eleito vice-presidente do Círculo de Jornalistas, que ajudou a fundar, e no ano
seguinte recebeu um prêmio jornalístico do município de Lima. Seu trabalho no jornal o
aproximou de artistas renomados de seu tempo – com destaque para o poeta Abraham
Valdelomar15 – com os quais fundou a revista Colónida, no início 1916.
A experiência de Colónida foi muito marcante na vida de Mariátegui: trata-se do
auge de seu anticapitalismo romântico. A revista, que durou apenas quatro números, se
voltava contra as instituições peruanas e a política criolla16 por meio de um esteticismo
que trazia traços de misticismo e boemia. O autor, mais tarde, descreveu a revista como
uma insurreição contra o academicismo e as oligarquias.
Em meados do mesmo ano, Mariátegui saiu de La Prensa e passou a integrar
outro jornal, de postura opositora ao governo do então presidente José Pardo. Trata-se
do diário El Tiempo. Neste novo trabalho, Mariátegui acompanhou os debates
parlamentares e a ascensão das lutas populares, em especial do movimento estudantil.
Desenvolveu, assim, grande simpatia por essas lutas, e, gradativamente, deixou sua
postura de mera recusa esteticista à política criolla, passando a desenvolver críticas
concretas à política e às questões econômicas em seu país. Contudo, não parou de
contribuir em outros periódicos, valendo-se de seus pseudônimos – além de Juan
Croniqueur, também escreveu como Jack, Kendalif, Monsieur Camomille, dentre
outros.
Com seu amigo e companheiro de trabalho César Falcón, criou a revista Nuestra
Época, em 1918, impressa nas oficinas de El Tiempo. Embora também tenha sido muito
breve, com somente dois volumes, a revista marcou a aproximação de Mariátegui com
os movimentos populares, já demonstrando alguns indícios de sua futura convicção
socialista. Por esse motivo, a direção de El Tiempo discordou da orientação da revista e
lado, vê traços de romantismo em toda a produção do autor, não realizando essa distinção entre obra
de juventude e obra madura. Vale ressaltar que, na concepção de Löwy, o romantismo, ou
anticapitalismo romântico, é um “protesto cultural contra a civilização capitalista moderna em nome de
valores ou imagens do passado pré-capitalista” (LÖWY, M. “Introdução”. In: MARIÁTEGUI, J. C. Por um
socialismo indo-americano, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005, p. 9).
15
Abraham Valdelomar foi um renomado poeta peruano deste tempo que, embora tenha morrido aos
30 anos, influenciou jovens escritores e artistas de sua geração – dentre eles, Mariátegui. Este afirmaria
mais tarde que Valdelomar jamais conseguiu se definir enquanto artista, mas elogia as inovações do
autor na literatura peruana: “*Valdelomar+ introduziu em nossa literatura elementos de cosmopolitismo,
se sentiu, ao mesmo tempo, atraído pelo criollismo e pelo incaísmo” (MARIÁTEGUI, J. C. Sete ensaios de
interpretação da realidade peruana. São Paulo: Expressão Popular, [1928] 2008, p. 269)
16
Sempre convém lembrar que o termo crioulo ou criollo se refere, nos países hispano-americanos, aos
descendentes de espanhóis nascidos na América.
impediu sua impressão. Mariátegui, em protesto, abandonou o jornal e passou a se
dedicar à organização de um novo diário, novamente ao lado de Falcón.
Em maio de 1919, começou a ser impresso na tipografia do Arcebispado de
Lima o diário La Razón, dedicado a divulgar e alimentar as reivindicações do
proletariado e do movimento estudantil. Neste ano, a luta operária era intensa pela
jornada de oito horas e pelo barateamento dos meios de subsistência. Ao mesmo tempo,
os estudantes de San Marcos reivindicavam a reforma universitária. La Razón foi um
importante veículo de apoio a essas lutas.
Dois meses depois, Augusto Leguía substituiu José Pardo na presidência do país
e se empenhou em calar Mariátegui e Falcón: o Arcebispado deixou de imprimir o
jornal, e, em agosto, a circulação foi interrompida. Como solução para afastá-los de vez
da política peruana, Leguía ofereceu a ambos uma oportunidade17 de estágio na Europa,
para realizarem estudos e atuarem como propagandistas do governo. Caso recusassem,
seriam presos. Assim, partiram em outubro de 1919: Falcón foi à Espanha, onde
permaneceria ainda por muitos anos atuando na vida política; Mariátegui passou a maior
parte de seu exílio na Itália, mas retornou a seu país assim que possível, em 1923.
Na Europa, Mariátegui encontrou o materialismo histórico enquanto método de
interpretação da realidade e ação revolucionária – encontrou, assim, um grande suporte
para responder a seus anseios em relação à realidade peruana. Esta imersão no
marxismo ocorreu sob a influência de escritores franceses e expoentes do emergente
Partido Comunista Italiano. O autor teve, ainda, acesso às grandes obras da sociologia,
da filosofia e da psicologia da Europa desse tempo e, uma vez que optou por não fazer
estudos formais e que sua estadia européia era subsidiada pelo Estado peruano,
aproveitou a oportunidade de se aprofundar nessas leituras e de aprender acompanhando
o tenso momento político italiano, marcado pela crise pós-guerra, pela desintegração
dos socialistas e pela ascensão do fascismo.
Durante esse período, teve também a oportunidade de conhecer Benedetto
Croce, cuja influência tornou-se marcante em sua obra. Acredita-se que Croce, que
simpatizou com o escritor peruano, teria mediado as conversas com a família de Anna
Chiappe para que a jovem de Siena pudesse se casar com José Carlos. Assim, o autor
retornou a seu país em 18 de março de 1923, com sua esposa e seus novos projetos.
17
Quijano atribui tal “oportunidade” ao fato da esposa de Leguía ser parente do pai de Mariátegui, que
a essa altura já era um escritor de renome no país.
Ainda em 1923, se aproxima de Haya de la Torre, grande líder da oposição ao
governo Leguía, e diretor da Universidad Popular González Prada (UPGP) e da revista
Claridad. Convidado por De la Torre, Mariátegui realiza na UPGP um ciclo de 17
conferências sobre a “História da crise mundial”18. Além disso, passa a escrever na
revista semanal Variedades a seção “Figuras e aspectos da vida mundial”.
A partir de meados do mesmo ano, Leguía inicia uma onda repressiva a seus
opositores e, em outubro, Haya de la Torre é preso e logo após exilado, dando inicio a
uma grande greve operário-estudantil, combatida com forte truculência pela polícia. Em
seguida, Mariátegui e outros colaboradores da UPGP também são encarcerados por
alguns dias. Com o exílio de Haya, Mariátegui assume a direção de Claridad, sendo
novamente detido em janeiro de 1924.
A perna amputada e a vida na cadeira de rodas não impedem o autor de
continuar seu trabalho de contestação do governo peruano e de propagação de seus
ideais socialistas, manifesto também em seus escritos para o periódico El Obrero Textil.
Em 1925 é indicado pela Federação Estudantes do Peru para lecionar na Universidad de
San Marcos. As autoridades acadêmicas, contudo, rejeitam a proposta.
Neste ano, Mariátegui está empenhado em um novo projeto: um periódico que
lhe permitisse expressar-se livremente. Cria, em parceria com seu irmão Julio César, a
Editorial Librería-Imprenta Minerva, cuja primeira publicação é o livro La escena
contemporânea, coletânea de artigos escritos por ele entre 1923 e 1925. Em setembro
do ano seguinte, começa a circular a revista Amauta, ainda muito ligada à APRA.
Segundo Quijano, “a revista Amauta (...) foi, em sua primeira etapa, tribuna intelectual
desse movimento”.19
Gerando repercussão internacional, o periódico constitui-se veículo de debate
com a oligarquia, compondo a frente única nacional-democrática da APRA e estando
atento aos movimentos artísticos e intelectuais de seu tempo. O autor passa a divergir do
movimento quando há a pretensão de transformá-lo em partido político. Durante o ano
de 1928, trava longas divergências com Haya, rompe com a APRA e participa da
fundação do Partido Socialista do Peru, sendo eleito secretário-geral. Sua revista, assim,
prescinde da colaboração aprista.
18
A parte preservada das palestras foi transcrita e reunida em: MARIÁTEGUI, J.C. História de la crisis
mundial. Lima: Amauta, 1973.
19
QUIJANO, A. “José Carlos Mariátegui: teoria e política”. In: AMAYO, Enrique; SEGATTO, José Antonio
(orgs.). J. C. Mariátegui e o marxismo na América Latina. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2002.
No mesmo ano, dedica-se a outro periódico, concomitante a Amauta,
denominado Labor, cujo foco é a organização política do proletariado. A revista dura
quase um ano, mas é proibida pelo governo em setembro de 1929. Antes disso, em
novembro 1928, Mariátegui publicava seu segundo livro: os Sete ensaios de
interpretação da realidade peruana, obra que alcançou grande repercussão, tendo sido
traduzida a oito idiomas e vendido mais de dois milhões de exemplares até 1998.
Em maio de 1929 é que Mariátegui realiza seu último grande empreendimento: a
fundação da Confederación General de los Trabajadores del Perú (CGTP). Ao final
deste ano, muda-se para Buenos Aires, temendo a interdição de Amauta – a revista já
havia sido proibida entre maio e novembro de 1927. Da Argentina, continua publicando
o periódico e trabalhando junto ao movimento revolucionário peruano.
A saúde do autor agrava-se e, em março de 1930 é hospitalizado, renunciando à
Secretaria Geral do PSP e à direção de Amauta. Em 16 de abril de 1930, Mariátegui
morre aos 35 anos. O velório foi em sua própria casa e, no dia seguinte, milhares de
trabalhadores acompanharam o corpo ao cemitério popular Maestro Presbítero, onde
está enterrado sob uma escultura de mármore.
20
QUIJANO, Introducción a Mariátegui, p.11.
21
Entre 1879 e 1883, Peru e Bolívia guerrearam contra o Chile, que saiu vencedor e anexou territórios
de ambos países.
política, permitindo a ascensão do caudilhismo militar, dirigido pelo general Andrés A.
Cáceres, chefe da resistência contra o Chile. Assim, os debilitados núcleos burgueses e a
classe média urbana são obrigados a aliarem-se ao regime militarista-senhorial.
Porém, logo que a economia se reativa e os núcleos de burguesia comercial e
latifundiária da costa voltam a fortalecer seu poder econômico, as elites passam a forçar
seu regresso à direção do Estado, apoiadas no descontentamento popular com o
caudilhismo. Piérola, líder do Partido Democrata, ascende como figura de oposição aos
caudilhos, e acaba por ser apoiado pelo Partido Civilista22, no qual a burguesia costeira
havia se organizado nos tempos de prosperidade. Por meio de uma sublevação popular,
Piérola ascende ao poder em 1895, dando início ao quarto de século de domínio do
“civilismo”.
Nesse momento, estabelece-se uma política destinada a atrair capital estrangeiro:
entre 1895 e 1914 instalam-se as primeiras corporações, que predominaram na extração
mineral, no petróleo, na agricultura de exportação e no transporte pesado. Além disso, o
capital imperialista consegue o domínio bancário, do comércio internacional e da
principal empresa de serviços eletrônicos. A partir da segunda década do século XX, o
capital estrangeiro ocupa e controla as principais indústrias, consolidando seu domínio
sobre os setores onde se implantava o capital como relação social de produção. A
burguesia interna passa a ficar totalmente subordinada e despojada de seus principais
recursos de produção.
Formaram-se assim núcleos capitalistas na costa, industriais e agrários, sob o
controle do capital britânico e estadunidense. Contudo, apesar da formação desses
núcleos, a economia peruana ainda era majoritariamente de matriz pré-capitalista,
fundamentada nas relações, ora servis ora escravistas, que se travavam no interior dos
latifúndios.
Mariátegui, ao analisar esse período nos Sete ensaios..., divide a organização
econômica peruana pós-guerra em oito etapas, as quais vale expor:
1. Aparecimento da indústria moderna: forma-se um proletariado nacional que
tende ao ideário classista, ou seja, um proletariado que poderá vir a se organizar
enquanto classe para liderar a luta política.
22
Partido composto pelos grandes proprietários criollos urbanos e rurais, advogados, médicos e
catedráticos bem sucedidos. Sua cúpula era composta por poucos e influentes homens, muito unidos e
coesos entre sim, ligados por laços de família e parentesco. Dois deles (José Pardo e Augusto Leguía),
somados, ocuparam a presidência por 24 anos.
2. A função do capital financeiro: bancos financiam comércio e indústria, mas
ainda funcionam sob o interesse britânico, estadunidense e dos grandes proprietários
agrários.
3. Diminuição de distâncias: com o Canal do Panamá, o Peru integra-se mais ao
comércio com Estados Unidos e Europa, ingressando de vez na “civilização ocidental”.
4. Gradual superação do poder britânico pelo estadunidense: “A participação do
capital estadunidense na exploração do cobre e do petróleo peruanos, que se convertem
em dois de nossos maiores produtos, proporciona uma larga e durável base para o
predomínio ianque”.23
5. Desenvolvimento de uma classe capitalista: dentro dela, prevalece a antiga
aristocracia; a propriedade agrária conserva seu poder.
6. A “ilusão da borracha”: borracha adquire, temporariamente, um enorme valor
no mercado, levando muitas pessoas à Amazônia peruana. Devido a seu curto período
de prosperidade, a borracha acabou tendo um efeito na imaginação 24 do país maior que
na sua economia.
7. O “superlucro” do período europeu: subida de preços de produtos peruanos
provoca rápido crescimento da fortuna privada; reforça-se a hegemonia da costa na
economia peruana.
8. Política de empréstimos: restabelecimento de crédito levou ao governo
recorrer a empréstimos para execução de obras públicas. Os bancos de Nova Iorque
oferecem melhores condições, fazendo com que o dinheiro fosse investido com lucros
para indústria e comércio norte-americanos.
A burguesia local, nesse processo, tende a se desenvolver somente enquanto
burguesia comercial ou agrária, já que a política econômica bloqueava a possibilidade
de uma “revolução industrial”.
23
MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 44.
24
O alto crescimento da exportação do produto, nos fins do século XIX, gerou uma sensação
generalizada de prosperidade. Contudo, como a ascensão do produto foi ocasionada por circunstâncias
econômicas específicas e momentâneas (o autor não explica quais), sua queda não tardou.
se encontraba colocada em situación de perimitir la continuación del predominio del
precapitalismo y de su clase terrateniente dominante, sino también era incapaz de
diferenciarse de ésta más rápida y plenamente, ni social ni ideológicamente.”25
“Leguía avança na consecução de uma política que combina, por uma parte, um
agressivo plano de investimentos que redimensiona o país, com um enorme
intervencionismo estatal, e, por outra, uma postura repressiva em face de setores
pequeno-burgueses radicalizados e proletários. Quatro anos depois de sua chegada
ao poder, isto é: em 1923, Leguía dispunha de poderes ditatoriais.”27
25
Idem, ibidem, p. 16, grifos meus.
26
Idem, ibidem, p. 19.
27
ESCORSIM, op. cit., pp. 30-31.
No governo de Leguía há uma intensificação da subordinação ao capital
monopolista, mas o presidente começa a abrir mais espaço ao capital norte-americano,
que passa a, gradativamente, substituir o britânico como hegemônico na economia
peruana. É em meio a esse contexto político e econômico do oncênio, precisamente em
1923, que Mariátegui retorna do exílio e exerce intensamente sua atividade político-
jornalística até sua morte, em 1930. De forma inovadora, o autor analisa as contradições
da história econômica peruana sob a matriz marxista e trabalha ativamente, por meio da
construção de uma ampla luta socialista que agrega indígenas campesinos e proletários
urbanos, para a superação do capital monopólico que invade seu país e pela efetivação
de uma nova sociedade.
3. O MARXISMO DE MARIÁTEGUI
28
Mariátegui tinha várias ressalvas no que tange à adesão do partido às orientações da Terceira
Internacional. Seus seguidores fizeram-se, assim, obstáculo à bolchevização do PCP, não mais Partido
Socialista do Peru, conforme fundara Mariátegui. O nome partido mudara em 1930, pouco após a morte
de nosso autor.
alinhamento do PCP com os bolcheviques, via nos mariateguistas um obstáculo, uma
vez que estes se distanciavam do “marxismo oficial” imposto pelo stalinismo
Em 1941, Miroshevski, bolchevique estudioso da América Latina, publicou um
artigo com fortes críticas ao pensamento do autor, denominado O „populismo‟ no Peru:
o papel de Mariátegui na história do pensamento social latino-americano29. Segundo
Escorsim, o texto traz críticas a um suposto Mariátegui que teria atribuído aos
camponeses a direção do processo revolucionário peruano, subestimando o proletariado.
Este seria, de acordo com o russo, um apêndice das massas camponesas indígenas.
Michael Löwy afirma, ainda, que o artigo enfatizava o caráter romântico do autor e que,
aos stalinistas, “bastava acusar Mariátegui deste pecado mortal, o romantismo, para
demonstrar de forma definitiva e irrefutável que seu pensamento era estranho ao
marxismo”.30 Consistindo na interpretação oficial de Mariátegui pela União Soviética,
este texto se fez muito importante politicamente, na recusa do autor pelo stalinismo.
Muitas discussões se seguiram: mais tarde, depois da saída de Ravines (em
1942) da secretaria geral do PCP, o partido voltou a tentar se aproximar da figura de
Mariátegui. Ao mesmo tempo, a APRA também buscava exaltá-la, já não mais o
atacando, mas construindo sua imagem enquanto ilustre aprista.
A predominância dos interesses políticos sobre o debate durou ainda muito
tempo, e somente a partir dos anos 60 é que se iniciou um debate teórico acerca do
autor. Aqui, são destacadas as contribuições de Michel Löwy, Aníbal Quijano e José
Aricó31, que estudaram a obra do autor em sua amplitude temática, além de outros
comentadores, nacionais e estrangeiros, que trabalharam sobre temas específicos da
obra de Mariátegui.
29
Não tive acesso a tal artigo.
30
LÖWY, M. “Introdução”, p. 8.
31
ARICÓ, J. “Mariátegui e o surgimento do marxismo latino-americano”. In: ALVATER et. al. História do
Marxismo; o marxismo na época da Terceira Internacional: o novo capitalismo, o imperialismo, o terceiro
munodo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
práticas e intelectuais ligadas à militância e organização partidária, não permitiram a ele
o tempo necessário a um maior aprofundamento. Há de se considerar, ainda, o caráter
pragmático e sócio-analítico de sua produção, incompatíveis com escritos de profunda
abstração filosófica.
De todo modo, é sabido que sua estadia na Itália lhe proporcionou grande
contato com as principais tendências do pensamento social e político europeu desse
período. Além de Marx, destacam-se, em sua obra, as influências de Georges Sorel,
Benedetto Croce (a quem conheceu), Sigmund Freud, Nietzsche, o grupo francês de
Clarté32 – em especial Henri Barbusse33 – e o socialismo italiano, com destaque para a
revista comunista L‟Ordine Nuovo34. Do periódico, Piero Gobetti35 foi o que mais
influenciou o autor, por seu ativismo político. É notável, ainda, sua admiração por Lênin
e Trotski, e sua rejeição à experiência fascista, cuja ascensão presenciou. A partir dessa
base, Mariátegui formula um marxismo original, dinâmico e heterodoxo.
Como se vê na epígrafe, o jornalista concebia a palavra “agonia” em seu sentido
etimológico. O artigo do qual foi retirado o fragmento é uma breve resenha do livro A
agonia do cristianismo, de Dom Miguel de Unamuno36. Em um texto em que,
aparentemente, Mariátegui se ocupa apenas de ilustrar a concepção do filólogo espanhol
acerca do cristianismo, ele acaba revelando sua própria concepção de marxismo. Para
Unamuno, a vida do cristianismo é dada não por seus exegetas estudiosos, mas pelos
que lutam por ele, pelos que o entendem por agonia – e, aqui, São Paulo é trazido como
exemplo. Para Mariátegui, o mesmo se passa com o marxismo:
32
Revista francesa de orientação esquerdista.
33
Novelista francês, sobrevivente da Primeira Guerra, e militante do Partido Comunista.
34
Revista italiana organizada pelos expoentes do comunismo italiano, dentre eles, Gramsci. Embora seja
bastante provável que Mariátegui tenha conhecido e lido alguns escritos de Gramsci, não se pode
considerar este uma influência sobre aquele. De todo modo, Escorsim acredita que a grande influência
de L'Ordine Nuovo sobre o peruano foi em relação à sua maneira de tratar a cultura. “De fato, um cotejo
da prática cultural de Mariátegui com as reflexões posteriormente desenvolvidas por Gramsci (...) revela
uma inteira solidariedade no tratamento da diversidade do “mundo da cultura” e de sua relação com o
‘mundo do trabalho’; revela, especialmente, uma enorme similitude na compreensão do necessário
processo de construção da hegemonia no campo da cultura” (ESCORSIM, op. Cit., pp. 308-309).
35
Liberal italiano, considerado por Mariátegui um “croceano à esquerda”.
36
Filólogo, literato e ensaísta espanhol.
Georges Sorel – outro agonizante, diria Unamuno –, que ousaram enriquecer e
desenvolver as conseqüências da idéia marxista.” 37
37
MARIÁTEGUI, J. C. “A agonia do cristianismo, de Dom Miguel de Unamuno”. In: Por um socialismo
indo-americano.
38
Defensa del marxismo consiste na reunião de artigos publicados na revista Amauta entre os números
17 e 24. Os textos de Defensa se propõem à crítica do revisionismo e, em especial, do que Mariátegui
chama de neo-revisionismo, em que se enquadrariam os dirigentes socialistas belgas Henri de Man e
Emile Vandervelde, e o ex-trotskista Max Eastman.
39
Idem. Defensa del marxismo: polemica revolucionaria. Lima: Biblioteca Amauta, [1959] 1980, pp. 20-
21.
históricos “a partir de baixo”, ou seja, “a partir dos movimentos de constituição e de
fragmentação das massas populares, de suas formas expressivas, de seus mitos e de seus
valores, a fim de determinar e potencializar suas tendências para a construção de uma
autonomia própria”.40 Este modo de enxergar a atuação dos movimentos populares é o
que o fará recusar tanto o projeto partidário da APRA – que é antiimperialista, mas não
propõe uma revolução em sentido socialista que responda diretamente aos anseios
desses movimentos – quanto às pressões da Internacional Comunista para a formação de
um partido comunista organizado a partir dos bolcheviques, ou seja, organizado “pelo
alto”. Florestan Fernandes, nessa mesma linha, enfatiza que Mariátegui não objetivava
ser nem um “criador original” nem um “propagador fanático” do marxismo, uma vez
que teria sido o anseio revolucionário do jornalista peruano que o levou ao marxismo, e
não o contrário. Para o sociólogo brasileiro, essa relação contém implicações teóricas e
práticas relevantes, colocando o elemento político em primeiro plano de duas formas:
indiretamente, “quanto ao significado do materialismo histórico como método para
conhecer a realidade e, nesse caráter, servir de base à consciência social crítica e à ação
política revolucionária”41; e diretamente, no âmbito da organização da luta política
revolucionária, através dos movimentos de massa.
Por fim, é visível, nos dois fragmentos, a exaltação de Sorel, tão estranha ao
marxismo ortodoxo. De fato, essa exaltação é por vezes exagerada, de forma que Löwy
chega a afirmar que Mariátegui “inventou” o Sorel que lhe seria necessário na luta
contra o “amesquinhamento positivista e determinista do materialismo histórico”.42 Para
tal, o Amauta apreende do sindicalista francês sua “interpretação heróica e voluntarista
do mito revolucionário”.43 Nesse sentido, Alfredo Bosi argumenta que, nos artigos de
Defensa del marxismo, não se encontra “um momento de contradição entre a ratio
hegeliano-marxista e o voluntarismo heróico soleriano”44, uma vez que “a tônica dos
textos acaba recaindo sobre o valor maior de uma política prática para a qual a
racionalidade não está dada uma vez por todas”45.
Diego Meseguer Illán, por sua vez, defende que há na obra do autor três grandes
críticas: a “crítica da infraestrutura econômica”, a “crítica da estrutura social” e a
40
ARICÓ, J. Op. Cit, p. 456.
41
FERNANDES, F. Op. cit, p. 35.
42
LÖWY, op. cit., p. 15.
43
Idem, ibidem.
44
BOSI, A. “A vanguarda enraizada: o marxismo vivo de Mariátegui”. Estudos Avançados, 4 (8), Jan./Abr.,
1990, p. 53. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v4n8/v4n8a05.pdf
45
Idem, ibidem.
“crítica das superestruturas política, religiosa e cultural”. O próprio Mariátegui parece
incorporar em sua obra a dualidade marxista infraestrutura/ superestrutura, embora não
o faça tão explicitamente. Contudo, demonstra conhecer o que chama de “metáfora do
edifício”: “A metáfora, que é evidentemente mais uma questão de necessidade que de
gosto, habituou-nos a representar uma sociedade, um Estado, uma economia, etc., como
um edifício. Isso explica a preocupação inevitável com o alicerce”. 46 Todavia, vemos
pela orientação de seu marxismo que este não pode ser acusado, de maneira alguma, de
economicista ou determinista, dada a relevância que é colocada na subjetividade do
revolucionário.
Uma vez que os problemas apresentados pela realidade latino-americana não
podiam ser explicados pelo marxismo tradicional, foi necessário que Mariátegui – ao
lado do grupo que deu vida à revista Amauta – discutisse as bases e os pressupostos
marxianos para, a partir de então, empreender a produção de um marxismo
genuinamente latino-americano. Essa produção é bastante visível na própria revista
Amauta, no periódico proletário Labor e, principalmente, em sua obra que se tornou
mais conhecida: os Sete ensaios de interpretação da realidade peruana.
3.2. Os problemas
A possibilidade de se admitir outras influências, distantes do marxismo – o que
ocasionou a Mariátegui acusações de excessivo ecletismo –, decorre da própria maneira
como o autor concebe o marxismo. Quijano aponta dois problemas fundamentais nessa
concepção: 1) a tensão decorrente de uma concepção de materialismo histórico
enquanto mera forma de interpretar o capitalismo e expor as condições de ação sobre
ele, mas não constituindo uma filosofia da história, fazendo-se assim apto a receber
contribuições de outras vertentes filosóficas; 2) a insistência na centralização da vontade
individual como fundamento da ação histórica, necessitando-se de um fundamento
metafísico para a luta pela restauração de uma moral despojada pela consciência
burguesa.
Em relação ao primeiro ponto, em Defensa de Marxismo nota-se a tensão
mencionada em vários momentos. Mariátegui parece enxergar o marxismo mais como
fruto da confrontação, da luta, que de uma ciência, de um largo esforço teórico
destinado a investigar a história das contradições sociais. O materialismo histórico
46
MARIÁTEGUI, J.C. “Economia Colonial”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 98
constituí-se assim, para Mariátegui, uma forma de interpretação sociedade capitalista,
ao invés de uma filosofia da história, como podemos deduzir do seguinte de Defensa:
47
MARIÁTEGUI, Defensa del marxismo, pp. 40-41, grifos meus.
48
CROCE, B. apud Mariátegui, op. cit., p. 41.
49
BOSI, op cit., p. 53.
y la ciencia de su tiempo: el marxismo – o sus intelectuales – en curso posterior, no
ha cesado de asimilar lo más sustancial y activo de la especulación filosófica e
histórica post-hegeliana o post-racionalista. Georges Sorel (...) ilustró el movimiento
revolucionário socialista (...) a la luz de la filosofia bergsoniana, continuando a Marx
que, cincuenta años antes, lo había ilustrado a la luz de la filosofía de Hegel. (...)
Vitalismo activismo, pragmatismo, relativismo, ninguna de estas corrientes
filosóficas, en lo que podían aportar a la Revolución, han quedado al margen del
movimiento intelectual marxista.” 50
50
MARIÁTEGUI, op. cit., pp. 43-44.
51
MARIÁTEGUI, J.C. “A luta final”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 63.
marxista mariateguiana. Sua proposição fundamental – que norteia sua ação política – é
a construção do socialismo indo-americano. Para tal, Mariátegui crê que é preciso que
proletariado e indígenas se entreguem ao mito revolucionário. Nesse sentido, a cultura
quéchua, por suas tradições agrárias coletivistas, constituiria um solo fértil para tal mito.
A fé, o mito dos que lutam – agonizam – é a oposição ao ceticismo burguês:
“O mito move o homem na história. Sem um mito, a existência do homem não tem
nenhum sentido histórico. Quem faz a história são os homens possuídos e
iluminados por uma crença superior, por uma esperança sobre-humana; os demais
homens constituem o coro anônimo do drama. A crise da civilização burguesa ficou
53
evidente desde o instante em que esta civilização constatou sua carência de mito.”
52
Idem, “O homem e o mito. In: op. cit., pp. 59-60.
53
Idem, ibidem, p. 57
54
LÖWY, op. cit., p. 9.
55
Idem, ibidem, p. 17, grifos do autor.
possível desenvolver críticas pertinentes às concepções marxistas de Gramsci, Lukács e
Lênin, por exemplo. A obra de Mariátegui é dotada de um grande potencial de análise
política e social das principais questões peruanas e latino-americanas de então, muitas
das quais ainda vigentes.
56
Mariátegui, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 156.
Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos57, de 1844, Marx traz o conceito de
estranhamento58 para mostrar esse fenômeno da sociedade capitalista. Trata-se da
exteriorização do trabalhador, da separação do trabalhador dos produtos de seu trabalho.
Mas é um processo que também se dá no próprio ato de produção. A exteriorização do
trabalho consiste em que o trabalhador
“não se afirma, portanto em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem,
mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas
mortifica sua physis e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente, por
conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si
[quando] no trabalho. (...) O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se
exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação” 59.
Embora Mariátegui não atinja em sua obra tal abstração filosófica, a essência
dessa proposição marxiana está presente em sua obra, segundo a qual o trabalho, em sua
origem, consiste em atividade livre e criadora. Porém, passa a ser apenas um meio de
existência que, no trabalho fabril capitalista, desumaniza o homem, pois o separa de sua
57
MARX, K. “*Trabalho estranhado e propriedade privada+”. In: Manuscritos Econômico-Filosóficos. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2004, pp. 79-90.
58
Na obra em questão, Marx define quatro sentidos do estranhamento: o homem é estranhado do
produto do trabalho e da natureza a qual modifica; da sua atividade vital (trabalho), uma vez que vende
sua força de trabalho; da sua humanidade, pois é estranhado do gênero humano; dos outros homens.
59
Idem, ibidem, pp. 82-83.
60
Idem, ibidem, p. 84.
essência, de seu “ser genérico”, nas palavras de Marx. O trabalho passa a ser “auto-
sacrifício” e “mortificação”.
Em O Capital, Marx trata da desumanização do homem pela perspectiva da
produção de mais-valia, da apropriação de trabalho alheio não-pago. O salário – valor
da força de trabalho pago pelo capital; quantia necessária para manter o trabalhador
enquanto tal – corresponde apenas a uma parte da jornada de trabalho; uma parte,
portanto, do valor agregado ao produto pelo trabalho humano61. O valor – o mais-valor
– gerado para além desse tempo converte-se em lucro para o proprietário, de forma que
o trabalhador recebe apenas por uma parcela do valor que agrega ao produto. O
capitalista, com sua avidez pelo lucro, busca aumentar esse mais-valor, seja estendendo
a jornada de trabalho – produzindo mais-valia absoluta –, seja reduzindo o tempo de
trabalho necessário para a produção de dado produto – produzindo mais-valia relativa.62
No quinto capítulo do Livro Terceiro de O Capital, denominado “Economia no
63
Emprego do Capital Constante” , Marx demonstra o fanatismo do capitalista pela
economia dos meios de produção64:
61
Marx aponta um duplo caráter no resultado do trabalho: por um lado, este trabalho conserva o valor
dos meios de produção, transferindo-o ao produto; por outro, agrega novo valor ao produto, gerado
pelo trabalho no processo de produção (MARX, K. “Capital constante e capital variável”. In: O Capital.
Crítica da Economia Política. São Paulo: Editora Nova Cultural, livro I, vol. I, col. Os Economistas, 1996,
pp. 317-326).
62
Idem. “O conceito de mais-valia relativa”. In: op. cit, pp. 429-437.
63
Idem. “Economia no emprego de capital constante”. In: O Capital. Crítica da Economia Política. São
Paulo: Civilização Brasileira, livro 3, vol. 4, 1974, pp. 86-116.
64
Quando fala em capital constante, Marx se refere à parte do capital “que se converte em meios de
produção, isto é, em matéria-prima, matérias auxiliares e meios de trabalho”; essa parte “não altera sua
grandeza de valor no processo de produção” (Idem, “Capital constante e capital variável”, p. 325).
Quando fala em capital variável, se refere à “parte do capital convertida em força de trabalho *que+ em
contraposição muda seu valor no processo de produção. Ela reproduz seu próprio equivalente e, além
disso, produz um excedente, uma mais-valia que ela mesma pode variar, ser maior ou menor” (Idem,
ibidem).
65
Idem. “Economia no emprego de capital constante”, p. 92.
produz o equivalente ao valor de sua força de trabalho, aumentando a proporção de
trabalho não-pago que é apropriado pelo capitalista. Isso tudo é feito com o menor custo
possível. Assinala Marx que fazem parte das economias no emprego do capital
constante:
66
Idem, ibidem, p. 97.
67
LUKÁCS, G. “O Trabalho”. In: Para uma Ontologia do Ser Social. Disponível em:
http://www.esnips.com/doc/23e388af-c6cf-4532-b05d-98ecf38eaeae/Gy%C3%B6rgy-Luk%C3%A1cs---
Trabalho-%28Para-uma-Ontologia-do-Ser-social%29.
materialmente a natureza, a questão da liberdade está relacionada com a
intencionalidade de transformação da realidade.
No que tange à influência do meio, Lukács discorda de uma postura que vê
liberdade e determinismos como mutuamente excludentes. Determinadas alternativas
podem gerar determinadas conseqüências, de forma que o ser social pende para algumas
escolhas, tornando seu campo de opções mais restrito devido às conseqüências que estas
podem gerar em relação ao que ele busca. Concomitantemente, a liberdade também é
determinada pela ignorância do individuo sobre as conseqüências de suas escolhas e do
objeto material que deseja transformar. Assim Lukács afirma que “quanto maior for o
conhecimento que o sujeito adquiriu dos nexos naturais em cada momento, tanto mais
facilmente pode ele mover-se no meio material” 68.
Lukács traz, portanto, o surgimento do trabalho como mediação para a
humanização – e com o trabalho, temos a gênese ontológica da liberdade que lhe é
própria.
Pode-se, assim, com as contribuições de Marx e Lukács, indicar um caráter
ambivalente do trabalho: por um lado, origina-se enquanto ato criativo e livre, indo
além da possibilidade de produzir meios de subsistência. Lukács, mais que Marx,
enfatiza o trabalho enquanto categoria fundamental para o entendimento ontológico do
ser social – é central para compreender a humanização o homem. O trabalho é, em sua
origem, portanto, humanizante, e germe da liberdade humana. Por outro lado, o
capitalismo, por meio da avidez do proprietário em se apropriar cada vez mais de
trabalho alheio, visando o lucro, faz do trabalho algo mortificador, degradante,
embrutecedor, auto-sacrificante, negativo, odioso, enfim, desumanizante.
Mariátegui, no fragmento supracitado, demonstra ter compreendido essa
ambivalência, mesmo sem ter tido acesso à obra de Lukács e aos manuscritos de Marx.
Acusou, coerentemente, a “deformação do trabalho em seus fins e sua essência”, uma
vez este nasce com “virtude de criação”. Vemos, desse modo, que seu pensamento
pragmático e militante também nos legou profundas reflexões teóricas, como é próprio
da tradição marxista. É precisamente isso que faz de Mariátegui um clássico.
68
Idem, ibidem, p. 50.
4. O PROBLEMA INDÍGENA
69
O chamado “problema do índio” é o tema abordado no segundo dos Sete
ensaios de Mariátegui, bem como em muitos de seus artigos. Em sua obra-prima,
publicada em 1928, dedica-se a discutir a essência do problema indígena com as
correntes conservadoras que costumam reduzi-la a termos morais, étnicos ou
educacionais. Ao contrário das interpretações até então, o autor coloca a questão no
âmbito econômico e social, apontando as raízes do problema presentes no regime de
propriedade de terra. Segundo ele, qualquer tentativa de resolver a questão indígena sem
a destruição do “feudalismo dos gamonales”70 seria um trabalho superficial, que não
toca na essência da questão.
Mariátegui critica a tendência a se considerar o problema do índio enquanto
problema moral. Segundo ele, “encarna uma concepção liberal, humanitária,
oitocentista, iluminista, que na ordenação política do Ocidente anima e motiva as „ligas
dos Direitos do Homem‟”.71 Assinala, ainda, que na luta antiimperialista já é
praticamente nula a ação de movimentos de solidariedade para com povos coloniais, dos
quais estes não são protagonistas. Ou seja, não se trata apenas de uma questão de “ajuda
humanitária” aos indígenas, pois esta não altera a relação fundamental de seu problema.
No período colonial, a ação religiosa a favor dos indígenas foi muito intensa. Contudo,
isso não inspirou mais que leis que não superavam a vontade dos proprietários.
69
Ainda que hoje o movimento indígena lute contra tal denominação homogeneizante aos diversos
povos indígenas, esta é uma demanda muito recente. Mariátegui, em contexto histórico, utiliza o termo
“índio” mesmo sendo consciente da pluralidade e heterogeneidade dos povos ameríndios. Este
trabalho, igualmente consciente de tal pluralidade, não hesitará em manter, em algumas ocasiões, as
denominações do autor o qual se propõe a estudar.
70
Os gamonales eram os grandes proprietários, que possuíam enorme influência política e submetiam
os indígenas que habitavam suas terras. O gamonalismo, tal como Mariátegui define, é um amplo
fenômeno social, uma vez que vai além dos próprios gamonales, compreendendo toda uma hierarquia
de funcionários, intermediários, agentes, etc.
71
MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 59.
A questão indígena, da mesma maneira, não pode ser reduzida ao problema
educacional. Para o autor, buscar apenas na educação do índio sua solução é ineficaz
uma vez que:
72
Idem, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 60.
73
A questão da persistência de elementos feudais na economia peruana do início do século XX é o tema
do próximo capítulo.
74
Idem, ibidem, p. 57.
artificial. Econômica, social e politicamente, o problema das raças, como o da terra,
é, na sua base, o da liquidação da feudalidade”.75
75
Idem, “O problema das raças na América Latina”. In: Política. São Paulo: Ática, col. Grandes Cientistas
Sociais, 1982a, grifos meus, p. 49.
76
Idem, ibidem, p. 51.
emergir uma nova classe dominante, que se apropriou sistematicamente das terras
indígenas, ocasionando a dissolução moral e material de uma raça de cultura agrária,
para a qual a terra era motivo de alegria e subsistência. “O índio desposou a terra. Sente
que „a vida vem da terra‟ e volta à terra. Finalmente, o índio pode ser indiferente a tudo,
menos à posse da terra que suas mãos e seu alento levantaram e fecundaram
religiosamente”.77
Na época em que Mariátegui escreve já se vê as reivindicações indígenas
pautadas em ideais socialistas. No entanto, todas revoltas indígenas no período
republicano, assim como na Colônia, resultaram em muitas mortes. Ainda assim, o
autor revela sua aposta na luta indígena pela solução de seu próprio problema: “A
solução do problema do índio tem que ser uma solução social. Seus realizadores devem
ser os próprios índios”.78 Não há aqui uma contradição com a afirmação anterior de que
a base da resolução de tal problema encontra-se na superação dos traços sobreviventes
de feudalidade. Pelo contrário, a “solução social” de que Mariátegui fala é a solução
socialista, uma revolução profunda na estrutura econômica. O breve fragmento citado é
um chamado aos povos indígenas para que incorporem essa luta.
Para indicar a possibilidade de luta por parte do índio, Mariátegui realiza uma
leitura socialista da cultura do indígena peruano, sobretudo em relação ao regime
comunitário produção agrícola. Um bom exemplo dessa interpretação mariateguiana
encontra-se no seguinte fragmento, retirado de uma extensa nota do início do ensaio
sobre o “Problema do índio”:
77
Idem, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 63
78
Idem, ibidem, p. 65.
79
Idem, ibidem, pp. 50-51.
conceitual, é uma relação real se tomarmos como parâmetro o sistema de distribuição de
terra e produção agrária no Império Inca; 2) a idéia de “mito revolucionário”, herdada
de Sorel e muito presente em Mariátegui, que valoriza as motivações simbólicas,
passionais do ator revolucionário (no caso, o índio); 3) a necessidade de diálogo e
articulação do movimento indigenista, herdeiro de uma cultura na qual a propriedade
privada era inexistente, com as “correntes revolucionárias mundiais”, ou seja, o
proletariado, tida como vanguarda revolucionária no marxismo-leninismo.
A aposta no potencial revolucionário dos povos indígenas, bem como em sua
capacidade de organizar-se ao lado do proletariado para a revolução, é uma das
principais inovações de Mariátegui, a qual possui uma atualidade impressionante, em
tempos de ascensão do movimento indígena nos Andes. Este é, também, um dos
principais pontos da polêmica em torno deste autor. É importante frisar, todavia, que
autor não coloca os indígenas como vanguarda revolucionária, ainda que tenha sofrido
essa acusação dos bolcheviques e que alguns comentadores, como Michael Löwy,
insinuem este posicionamento. Do contrário, o jornalista, que defende a inclusão do
indígena na militância socialista, não deixa de ver o proletariado como principal
promotor revolucionário:
80
Idem, “O problema das raças na América Latina: IV. Desenvolvimento econômico-político indígena
desde a época Inca até a atualidade”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 144, grifos meus.
Em um artigo da revista Amauta denominado “Indigenismo e socialismo.
Intermezzo polêmico”, o jornalista debate com Luis Alberto Sánchez sobre o
indigenismo81 e, incomodado com os rótulos recebidos por seu interlocutor, pede para
não ser chamado de indigenista, nacionalista ou pseudo-indigenista, mas de socialista.
81
Fernanda Beigel, que estuda as polêmicas indigenistas desse tempo, aponta que o indigenismo de
Mariátegui e do grupo de Amauta está marcado, por um lado, pela dimensão política, relacionada com
as organizações reivindicativas e as distintas posições ideológicas frente à incorporação do índio na
sociedade peruana; por outro, pela valorização da dimensão cultural – o indigenismo artístico, o
passado cultural, a herança incaica. Assim, através da primeira dimensão, a população indígena se
converte em sujeito político; através da segunda, os distintos produtos culturais do vanguardismo
aparecem como vias alternativas de conhecimento (BEIGEL, Fernanda. “Mariátegui y las antinomias del
indigenismo”. Utopia y praxis lationoamericana. Vol. 6, nº 013, Jun., 2001, p. 36-57. Disponível em:
<http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/279/27901303.pdf>.)
82
MARIÁTEGUI, “Indigenismo e socialismo: intermezzo polêmico”. In: op. cit., p. 110.
comunidade formam o patrimônio da coletividade. Nela vivem, mantendo-se
daquilo que cultivam, e seus membros cuidam constantemente de que elas não lhes
sejam arrebatadas pelos poderosos vizinhos ou outras comunidades; isto lhes serve
de suficiente estímulo para estarem sempre organizados, constituindo um só corpo.
As terras comunais pertencem a todo ayllu, ou seja, ao conjunto das famílias que
formam a comunidade(...) Mas o espírito coletivista do indígena não se revela
apenas na existência das comunidades. O costume secular da minka subsiste nos
territórios do Peru, da Bolívia, do Equador e do Chile: o trabalho que um parceiro,
mesmo que não seja da comuna, não pode realizar por falta de ajudantes, por doença
ou outro motivo similar, é realizado com a cooperação e o auxílio dos parceiros
vizinhos, que por sua vez recebem parte do produto da colheita, quando sua
quantidade o permitir, ou outra ajuda manual em uma próxima época. Esse espírito
de cooperação que existe fora das comunidades manifesta-se de forma especial na
Bolívia, onde são estabelecidos acordos mútuos entre indígenas, pequenos
proprietários pobres, para lavrar em comum todas as terras e repartir em comum seu
produto”.83
83
Idem. “O problema indígena na América Latina”. In: O marxismo na América Latina: uma antologia de
1909 aos dias atuais (org. de Michael Löwy). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1999, p. 109.
84
Mariátegui, em seu ensaio “Regionalismo e Centralismo”, mostra como se desenrola o debate sobre o
modelo político-administrativo a ser adotado pelo país. Seu argumento principal é de que o debate
entre regionalistas (adeptos do modelo federalista) e centralistas é algo superado. Estaria emergindo,
em contraponto, um “novo regionalismo”, que vai além de refletir uma divisão de atribuições
administrativas e leva a questão indígena e agrária ao foco da discussão. A reflexão do modelo político –
sob a ótica do “novo regionalismo” – não poderia ser feita, assim, sem a reflexão da superação completa
do feudalismo.
Para o autor, a superação do “feudalismo dos gamonales” e a superação
econômica, política e social do problema indígena devem estar na essência da
construção da nacionalidade peruana. Mariátegui, sagazmente, nega que exista uma
“peruanidade” em si, uma formação nacional propriamente peruana. Pelo contrário, a
nação peruana é vista por ele como uma construção, um vir a ser, que clama a inclusão
do autóctone.
Segundo Alfredo Bosi, a desmistificação da idéia de raça que Mariátegui realiza
é uma “limpeza de terreno” para a reflexão da identidade nacional peruana, uma vez que
esse seu pensamento resulta em uma postura, concomitantemente, anti-imperialista –
que permite compreender o valor do índio – e anti-xenófoba – que recusa uma exaltação
cega da cultura indígena e evita um nacionalismo retórico. Quanto a esse segundo
ponto, Mariátegui não deixa dúvidas:
“Temos o dever de não ignorar a realidade nacional, mas também temos o dever de
não ignorar a realidade mundial. O Peru é fragmento de um mundo que segue uma
trajetória solidária. Os povos com mais vocação para aceitar as conseqüências da sua
civilização e da sua época. O que se pensaria de um homem que rechaçasse, em
85
Idem, “O problema das raças na América Latina”, p. 55.
86
Idem, “O nacional e o exótico”. In: Por um socialismo indo-americano, pp. 43-46.
nome da peruanidade, o avião, o rádio, o linotipo, considerando-os exóticos? O
mesmo se deve pensar do homem que assume esta atitude diante das novas idéias e
dos novos fatos humanos. (...) As relações internacionais da intelectualidade devem
ser, forçosamente, livre-cambistas. Nenhuma idéia que frutifique, nenhuma idéia
que se aclimate é uma idéia exótica”
87
Segundo o artigo “A heterodoxia da tradição” (Idem, ibidem, pp. 112-114)
estrutura econômica peruana. Em última instância, trata-se do problema da feudalidade,
tal como sintetiza o autor:
88
Idem, “O problema das raças na América Latina”, p. 51.
5. O PROBLEMA DA TERRA
89
No texto de Mariátegui, a palavra comunidade aparece sempre entre aspas. Acredito que o objetivo
do autor fosse indicar que o termo é trazido em sentido estrito, referindo-se, especificamente, ao
agrupamento familiar indígena dessa região, caracterizado por determinadas relações de parentesco e
por uma forma específica de organização para produção agrícola.
5.1. O ayllu e a terra sob o Império Inca
Desenvolvendo uma de suas principais teses – segundo a qual o problema do
índio é, em última instância, econômico –, Mariátegui realiza um importante estudo da
economia local anterior à Conquista, análise imprescindível à sua crença na
potencialidade revolucionária do índio peruano. Trata-se de uma economia que se
baseia no cultivo comunitário da terra, cujo valor para a cultura indígena daquela região
é dotado de sentido religioso.
O Amauta postula que desde o início do Estado Inca desenvolveu-se entre as
populações aborígenes um regime de propriedade coletiva da terra organizado por
grupos que se constituíam em comunidade. Essa “comunidade” é o ayllu, caracterizado
pela associação de pessoas por relações específicas de parentesco90.
Sob o domínio do império inca, cujas origens remontam, aproximadamente, ao
início do século XIII, as terras continuaram a ser cultivadas e usufruídas coletivamente.
Todas as riquezas pertenciam ao Inca (terras, bosques, gados, minas), não existindo
propriedade privada nem o dinheiro. Sobre o cultivo da terra, Mariátegui faz uma
sucinta descrição:
“As terras dividiam-se em três partes: uma do Sol, outra do Inca e outra da aldeia.
Primeiramente, cuidava-se das terras do Sol. Em seguida, daquela dos anciãos,
viúvas, órfãos e soldados que se achavam no serviço ativo. Depois, era a aldeia que
cultivava suas próprias terras e tinha a obrigação de ajudar aos vizinhos. E depois
disso, cultivavam-se as terras do Inca. (...) Uma diretriz muito sábia determinava que
qualquer déficit nas contribuições para o Inca podia ser coberto com o que estava
guardado no celeiro do Sol. A economia do governo gerava excedente. Este
destinava-se aos depósitos, que, na época de escassez, eram franqueados aos
indivíduos mergulhados na miséria por doença ou desgraça” 91.
90
Cf. PUGA, M. A. “El ayllu: su naturaleza y régimen económico-social”. America Indígena. México, D. F.:
Vol. X, n. 4, outubro de 1950, p. 283-299. Neste artigo, o peruano Mario Alberto Puga traz uma
interessante discussão antropológica sobre a evolução das relações de parentesco no ayllu. Segundo
ele, a comunidade, inicialmente, se pautava pelo matriarcalismo, inclusive com figuras religiosas
femininas. Assim, nesse primeiro momento, a avó era a autoridade máxima e a constituição da
comunidade dava-se pelas mulheres, de forma que, por exemplo, quando os homens se casavam
passavam a integrar a comunidade de suas esposas. Com o tempo, o ayllu teria “evoluído” (termo
empregado pelo autor) ao patriarcalismo, embora em algumas regiões as relações permanecessem
matriarcais ou mistas. Essa passagem é atribuída por certos autores como decorrente da centralização
dos poderes político e militar pelo inca Sinche Roca, em 1228. Com essa medida, a chefia militar da
comunidade, que antes era exercida pela autoridade masculina de forma temporária em casos
excepcionais, passou a ser atribuída ao homem permanentemente.
91
MARIÁTEGUI, “O problema das raças na América Latina: IV. Desenvolvimento econômico-político
indígena desde a época Inca até a atualidade”, p. 139.
As terras eram re-divididas anualmente em lotes individuais e de mesmo
tamanho (regra válida para homens e mulheres). Não se alienavam nem se expandiam as
posses. Quando alguém morria, sua terra voltava ao Inca, que a repartia novamente. Nas
marcas92, desenvolveu-se o costume de ajuda mútua para o cultivo e construção de
habitações, denominado minka.
Em razão dessa tradição agrária coletivista, Mariátegui denomina tal sistema de
“comunismo agrário”, o que ocasionou grande discussão com alguns críticos. O autor
faz questão de esclarecer que não se pode confundir o comunismo agrário dos incas com
o comunismo moderno de Marx. Este trata de uma civilização industrial, em que a
natureza se submete ao homem, enquanto aquele se refere a uma civilização agrária, na
qual o homem se submete à natureza. A principal objeção que lhe é feita ao uso do
termo – a de que o Estado inca era centralizador e, portanto, negava a liberdade
individual, não podendo ser denominado comunista – Mariátegui rebate afirmando que
o conceito de “liberdade individual” foi desenvolvido na Idade Moderna e serviu como
base jurídica para a civilização capitalista liberal. Não se pode, assim, utilizá-lo como
parâmetro para um estudo das sociedades pré-colombianas sem que isto culmine em um
anacronismo etnocêntrico.
Feitas tais restrições e observações, fica justificado o que se entende como
“comunismo agrário” na América pré-colombiana. Todavia, essa sociedade exaltada
pelo autor teve seu fim no ano de 1532, quando a chegada dos espanhóis destruiu o
império inca e sua economia, iniciando um longo processo de extermínio e
marginalização dos antigos donos da terra, que perdura até os dias de hoje.
92
A marca, ou tribo, constituía a “federação de ayllus estabelecidos em torno de uma mesma aldeia”
(ESCORSIM, op. cit., pp. 332-333).
que realizavam o duro trabalho nas minas. Pelo contrário, a cobiça espanhola por metais
fez um povo agrário transformar-se num povo de mineradores, sob a imposição de um
regime de escravidão, como nos fala Mariátegui: “O trabalho agrícola, dentro de um
regime naturalmente feudal, teria feito do índio um servo, vinculando-o a terra. O
trabalho nas minas e nas cidades devia fazer dele um escravo”.93 Além disso, como em
praticamente toda América Latina, para o serviço escravo também foram levados negros
ao Peru, ainda que em pequena escala quando comparada à quantidade de africanos
trazidos ao Brasil ou a Cuba, por exemplo.
A Conquista destruiu todo o modelo econômico inca, e a nação indígena se
dissolveu em comunidades isoladas, de forma que seu trabalho já não mais funcionava
de forma orgânica e solidária como outrora. Os espanhóis buscaram dar uma nova
organização político-econômica às suas colônias, através do cultivo do solo (na costa) e
da extração de ouro e prata (na serra). Esse primeiro momento de organização
econômica peruana é fundamental: o contraste econômico entre o litoral e os Andes
existente até hoje é decorrente da política econômica dos tempos coloniais.
Diego Meseguer Illán aponta um paradoxo fundamental, constatado por
Mariátegui: dentro de um sistema feudal, o índio era mais freqüentemente escravo que
servo. Conforme afirma o próprio Mariátegui, a colonização, incapaz de implantar no
Peru um regime autenticamente feudal, “enxertou nesta os elementos de uma economia
escravista”.94 O comentador vê nesse fragmento uma tripla acusação à colonização:
93
MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 73.
94
Idem, ibidem, p. 72.
95
ILLÁN, op. cit., p. 172.
96
Sarmiento, em seu clássico Facundo, escrito em 1845, é um exemplo de autor que parece partir de
premissas racistas: “Las razas americanas viven en la ociosidad, y se muestran incapaces, aun por medio
de la compulsión, para dedicarse a un trabajo duro y seguido. Esto sugirió la Idea de introducir negros en
América, que tan fatales resultados ha producido” (SARMIENTO, D. F. Facundo. Disponível em:
<http://dc143.4shared.com/download/114744547/605f03bd/Domingo_Faustino_Sarmiento_-
Facundo.pdf>).
Nesse sentido, o professor Javier Prado – cujos conceitos Mariátegui costumava criticar
em seus textos – chega a acusar o regime colonial de ter trazido uma “raça inferior” para
ser escrava, em alusão à importação de negros africanos. O jornalista, em discordância
de tal pensamento, acusa o regime colonial de ter trazido a escravidão como meio de
organização econômica, que consolidava um regime fundado na conquista e na força.
Vale notar que, com esse tipo de afirmação, ele revela novamente que sua análise se
pauta por critérios materialistas, colocando na base do problema peruano a questão do
modo de produção.
Seu estudo, entretanto, não se resume a expor as relações objetivas de produção.
O autor também busca, na caracterização da subjetividade religiosa do colonizador
espanhol, elementos para descrever o tipo de colonização que se desenvolveu na
América Latina: no primeiro ensaio da obra fala da ausência, no empreendimento
espanhol, dos “elementos morais, políticos e psicológicos do capitalismo”.97 Segundo
ele, a colonização espanhola foi um empreendimento mais militar e eclesiástico que
político-econômico. Para a América Hispânica vieram vice-reis, cortesãos, clérigos,
aventureiros, doutores e soldados. Estes não teriam aptidão 98 para criar núcleos de
trabalho, parecendo mais querer exterminar o índio que utilizá-lo.
Vale aqui uma digressão: em diversas passagens, Mariátegui faz alusão à
questão moral-religiosa do colonizador. Uma vez que para ele a subjetividade do ator
político é importante, na medida em que o mito – e a práxis política dele decorrente –
são fundamentais no desenvolvimento histórico, o autor se dedica a compreender que
convicções carregam os sujeitos dos processos históricos que estuda – a colonização
americana, neste caso.
Na América Latina, a colonização foi um empreendimento católico, cuja
mentalidade era ainda feudal, contrária ao desenvolvimento do capitalismo. Para a
América do Norte, por outro lado, vieram colonizadores abertos ao capitalismo
nascente, dotados da ética protestante da qual Weber fala. Esta parece ser uma questão
relevante para autor dos Sete ensaios.
Convém ressaltar que não há menção a Weber em nenhum momento do livro e,
possivelmente, Mariátegui o leu. É nos próprios escritos de Marx e Engels que ele
parece ter se inspirado para a compreensão da relação entre o ethos protestante com o
97
MARIÁTEGUI, op. cit., p.50.
98
Em diversos momentos, neste e nos outros ensaios da obra, Mariátegui dedica-se a caracterizar a
subjetividade do espanhol, que, ausente de elementos liberais e protestantes, seria inapta ao
desenvolvimento capitalista.
capitalismo, tal como se vê nas seguintes passagens cita de Socialismo utópico e
socialismo científico (de Friedrich Engels) e O Capital (de Karl Marx):
99
ENGELS, F. apud MARIÁTEGUI, op. cit., p. 177.
100
MARX, K. apud MARIÁTEGUI, op. cit., p. 178.
101
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 26.
mercado internacional, suas terras absorviam a mão de obra e as terras indígenas, por
meio da encomienda, desintegrando os agrupamentos autóctones.
Entender o conceito legal e as implicações práticas da encomienda é
fundamental para assimilar o processo de “enfeudamento” da terra peruana.
Legalmente, o encomendero era o encarregado pela cobrança de impostos dos nativos
de uma determinada área e pela organização catequética dos tributários. Na realidade
efetiva, diz Mariátegui ao citar um longo trecho da obra de Cesar Ugarte, era um senhor
feudal que dispunha da força de trabalho dos índios e se apossava de suas terras. A
encomienda foi, dessa forma, uma instituição essencial do regime agrário colonial para
a substituição de grandes áreas de comunidades agrárias por latifúndios, nos quais o
cultivo era realizado pelos índios sob uma organização feudal.
Em relação às “comunidades”, o autor ressalta que não faltaram defensores
humanitários de relevância – como o frade Bartolomé de Las Casas – nem mesmo leis
que as protegessem. As Leis das Índias, por exemplo, reconheciam e amparavam sua
organização comunista. A Coroa bem sabia que o comunismo agrário do ayllu, sem o
Estado Incaico, não era incompatível nem com o espírito religioso nem com o caráter
político da Colônia. Pelo contrário, a organização comunitária indígena foi aproveitada
pelos jesuítas em alguns lugares para fins de catequização. Na grande maioria dos casos,
porém, essas leis não eram aplicadas. Na prática colonial, era quase impossível defender
a propriedade indígena e o cultivo da terra comum frente ao poder político e econômico
dos espanhóis e criollos que compunham a classe latifundiária. Os proprietários,
encomenderos, expandiam violentamente seu território, destruíam a comunidade e
submetiam os indígenas, criando um regime de trabalho forçado dentro de imensas
propriedades de terra.
Para explicar mais detalhadamente esse processo de expropriação da terra e
submissão do índio, o autor traça uma comparação com o feudalismo russo, onde os
senhores, que respondiam pelos impostos, distribuíam a mesma quantidade de terras a
todos camponeses a fim de que cada um, com seu trabalho, contribuísse para o
pagamento. Quando variava o número de servos, um novo reparte acontecia. Dessa
forma, o feudalismo transformava a propriedade comunal em meio de exploração, pois a
propriedade disponibilizada ao camponês possibilitava cada vez menos sua sustentação,
enquanto garantia sempre para o proprietário braços para o trabalho.
“Quando em 1861 a servidão foi abolida [na Rússia], os proprietários encontraram
um meio de substituí-la, reduzindo os lotes concedidos a seus camponeses a uma
extensão que não lhes permitia subsistir de seus próprios produtos. A agricultura
russa conservou, desse modo, seu caráter feudal. O latifundiário usou a reforma em
seu proveito. Havia percebido que era de seu interesse outorgar uma parcela aos
camponeses, desde que esta não bastasse para sua subsistência e a de sua família.
Não havia meio mais seguro para vincular o camponês à terra, limitando assim, ao
mesmo tempo, ao mínimo, sua emigração. O camponês se via forçado a prestar seus
serviços ao proprietário, o qual contava para obrigá-lo a trabalhar em seu latifúndio
– se não bastasse a miséria a que a ínfima parcela o condenava – com o domínio dos
prados, bosques, moinhos, águas, etc.” 102.
Em suma, manter o camponês com sua pequena parcela de terra, desde que esta
seja insuficiente para satisfazer suas necessidades, é uma maneira de prendê-lo ao local
(pois terá dificuldades em conseguir outro lote de terra) e, ao mesmo tempo, do
latifundiário valer-se da exploração de seu trabalho, pois não lhe há outra opção de
obter o sustento familiar. Na concepção de Mariátegui, o processo peruano foi análogo.
No Peru, assim como na Rússia, a comunidade não era amparada, mas sim tolerada;
sobrevivia dentro de um regime de servidão.
102
MARIÁTEGUI, op. cit., p. 80.
103
Idem, “A unidade da América Indo-Espanhola”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 80.
104
Idem, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 36.
de que a análise de Mariátegui sobre a independência nada tem de histórico-materialista.
Impressão negada pelo seguinte fragmento:
De todo modo, Mariátegui acredita que, uma vez que foi inspirada nas
revoluções burguesas européias, a organização republicana na América Latina deveria
representar a ascensão do capitalismo liberal. Contudo, a classe criolla latifundiária que
a efetivou foi incapaz de se livrar de seu caráter aristocrático, e os princípios liberais
foram apenas parcialmente implantados, mantendo-se os traços feudais da economia
peruana.
Segundo o Amauta, para que a revolução democrático-liberal resultasse na
liquidação do feudalismo e do absolutismo eram necessárias duas condições:
No Peru, menos ainda que nos outros países, não havia essas condições
amadurecidas. A revolução, na interpretação do autor, ocorreu pela solidariedade
continental dos povos que se rebelaram contra o domínio espanhol, dentro de um
contexto internacional favorável. “O nacionalismo continental dos revolucionários
hispano-americanos juntou-se a essa convivência forçada de seus destinos, para nivelar
105
Idem, ibidem, pp. 36-37.
106
Idem, ibidem, p. 82.
os povos mais avançados em sua marcha rumo ao capitalismo com os mais atrasados
nessa mesma via”.107
Um novo regime deveria representar uma nova política agrária. Porém, por um
lado, a solução liberal típica para a questão da terra – que consistiria na divisão do
latifúndio para a criação da pequena propriedade – era irrealizável devido ao caráter da
burguesia peruana.; por outro, os postulados liberais serviram para atacar a
“comunidade”, que contrariava a propriedade privada. Assim, enquanto o
individualismo liberal-democrático destruía a economia tradicional indígena, os
gamonales tinham condições de se colocarem acima das leis que protegiam os índios,
conseguindo tomar suas terras sem grandes dificuldades. De nada adiantava a abolição
formal da encomienda nem a promulgação de leis para emancipação indígena e as
tentativas de transformar o índio em pequeno proprietário se o poder do latinfúndio
feudal era capaz de invalidar qualquer medida de amparo à pequena propriedade e seu
trabalhador.
De acordo com o ensaio sobre o “Problema da Terra”, o período do caudilhismo
militar peruano, instituído no momento imediatamente posterior à independência, foi de
grande relevância para a manutenção das estruturas coloniais. Em primeiro lugar
porque, naturalmente, os militares não realizaram a reforma agrária; depois, porque a
violência policial foi intensificada, negando os princípios do novo direito que se
defendia; e, por fim, porque o caudilho, ainda que ocasionalmente se proclame inimigo
da propriedade, costuma sustentar o latifúndio, acabando ele mesmo como fazendeiro
em muitos casos. O autor sintetiza essa idéia ao citar José Vasconcelos: “o poder militar
traz fatalmente consigo o delito de apropriação exclusiva da terra; chame-se soldado,
caudilho, rei ou imperador: despotismo e latifúndio são termos correlacionados”.108
Mariátegui vê a ascensão do caudilhismo como resultado de uma classe
burguesa incipiente e incapaz de organizar um Estado que correspondesse a seus
interesses. Para ele, só uma classe consolidada poderia gerar uma nova ordem jurídica e
econômica: não era o caso da burguesia peruana naquele momento. Contudo, assim que
o militarismo deixasse de ser indispensável, seria substituído. Para tal, de acordo com o
destaque dado pela obra, o governo militar de Ramón Castilla constituiu um momento
essencial.
107
Idem, ibidem.
108
VASCONCELOS, J. apud MARIÁTEGUI, op. cit., p. 85.
Castilla, percebendo que os liberais não constituíam uma classe, se preocupou
em travar boas relações com os conservadores. Ao mesmo tempo, teve atitudes
progressistas, como a abolição da escravatura negra e da contribuição dos indígenas. O
Código Civil do Peru, promulgado em seu governo, iniciou a decadência do
militarismo. Foi inspirado nos primeiros decretos republicanos sobre a terra e reforçou a
política de desvinculação e mobilidade da propriedade agrária. Ou seja, tratava-se de
eliminar a “comunidade” indígena e incentivar a pequena propriedade. Até mesmo essa
intenção de se democratizar o acesso privado à terra não trouxe grandes resultados, já
que a legislação buscava a divisão por meios negativos, abolindo os entraves, e não
propiciando aos agricultores condições positivas. Segundo Mariátegui, “em nenhuma
parte a divisão da propriedade agrária, ou melhor, sua redistribuição, foi possível sem
leis especiais de expropriação que transferisse o domínio do solo à classe que o
trabalha”.109 Assim, como previsto, o latifúndio se consolidou e se estendeu no período
republicano.
Esse período constitui-se como um momento de fortalecimento político da
aristocracia rural: uma vez que o comércio e as finanças se concentravam em mãos
estrangeiras – inglesas, a princípio – era impossível que uma burguesia urbana local
ascendesse e se consolidasse. O autor mostra que sem uma burguesia urbana peruana
em condições de se tornar classe dominante, a aristocracia latifundiária assumiu esse
papel, conservando seu domínio político e associando-se a capital comercial estrangeiro.
Assim, consolidava-se uma classe dominante, num sistema capitalista, com traços
aristocráticos.
Enquanto isso, mantinha-se a condição de exclusão social e política dos
indígenas, de maneira que estes não faziam oposição consistente aos interesses dos
latifundiários. Não havia, assim, obstáculos à manutenção e desenvolvimento da grande
propriedade. Em meio a esse contexto nos lembra Mariátegui que o ayllu – instituição
cara às culturas quíchua e aymara – está inscrito numa tradição camponesa. Não se
podia esperar que os indígenas, antes cultivadores da terra comunitária, se
transformassem espontaneamente em pequenos proprietários, mesmo que lhes fossem
dadas condições efetivas – e não apenas legais – para tal, o que não ocorreu.
A fim de se evitar generalizações em relação à formação econômica peruana
como um todo, o ensaísta trata de esclarecer a dualidade existente entre costa e serra. A
109
MARIÁTEGUI¸ op. cit., p. 87.
origem do latifúndio na costa remonta ao início do período colonial: naquele momento,
a região fora despovoada devido ao foco nos minérios andinos. Com braços escassos, o
proprietário recorreu, num primeiro momento, ao escravo negro e, mais tarde, à
imigração chinesa. Na República, o desenvolvimento da agricultura na costa para
exportação apareceu subordinado ao imperialismo britânico, que se interessou pela
exploração dessas terras assim que viu a possibilidade de dedicá-las ao açúcar e ao
algodão. Com a queda da exportação de minérios e o auge do guano e do salitre, a
economia costeira se consolidou como eixo nacional. Desenvolveu-se nos latifúndios
dessa região a técnica capitalista, fazendo desaparecer definitivamente a “comunidade”
indígena da costa.
Como a terra estava refém do capital monopolista, a produção nesses núcleos
capitalistas passou a ser ditada por interesses estranhos às necessidades peruanas, e os
próprios incentivos governamentais favoreciam a cana e o algodão. Como resultado, os
gêneros alimentícios destinados ao mercado interno eram geralmente produzidos por
pequenos proprietários ou arrendatários, quando não importados. O autor nos dá o
exemplo do trigo, cuja produção é compatível com o clima peruano, mas precisava ser
comprado do exterior, e critica a dependência e a subordinação da economia de seu país.
110
Idem. “Economia colonial”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 89.
feudais” peruanos ainda enxergavam seus trabalhadores sob critérios escravistas,
considerando-se superiores aos camponeses até mesmo etnicamente. Ou seja, o Peru
adotou a técnica capitalista, mas não sua mentalidade.
O autor não vê a sobrevivência dos caracteres feudais apenas na yaconagem111 –
que vincula a população local à terra, impedindo-a de emigrar – e no enganche112 – que
assegura à agricultura da costa braços da serra –, mas em todo ambiente da fazenda: as
leis não são válidas dentro do latifúndio sem o consenso do proprietário; os transportes,
comércios e costumes estão sujeitos a ele; os ranchos, em que a população trabalhadora
mora, se assemelham muito às senzalas. Evidentemente, isso não ocorre com aprovação
legal, mas a condição de classe dominante permite aos latifundiários um poder
incontrolável.
Na serra, onde também se encontram as práticas mencionadas, o latifúndio
conservou quase integralmente seu caráter feudal, consistindo uma resistência ao
desenvolvimento capitalista ainda maior que a “comunidade” – esta, ao articular-se com
o comércio, transformou-se em cooperativa113. Mariátegui mostra, com dados de seu
tempo, que a produtividade do trabalho coletivo indígena superava muitas vezes à do
latifúndio serrano. Para explicar tal fenômeno, o autor, primeiramente, discorre sobre os
estímulos morais provenientes do sentido religioso que o trabalho comunitário tem ao
indígena. Em seguida, toca na essência da questão: na serra, o regime de salário livre
ainda não se desenvolveu. O fazendeiro se preocupava mais com a rentabilidade que
com a produtividade, conforme podemos ver neste longo fragmento:
“Os fatores de produção se reduzem para ele [latifundiário] a quase que unicamente
dois: a terra e o índio. A propriedade da terra permite que explore de maneira
ilimitada a força de trabalho do índio. A usura praticada sobre essa força de trabalho
– que se traduz na miséria do índio – soma-se à renda da terra, calculada ao tipo
usual de arrendamento. O fazendeiro se reserva as melhores terras e reparte as
menos produtivas entre seus braceiros índios, os quais se obrigam a trabalhar de
111
Imposição de obrigações pessoais em regimes de parceria com terríveis condições.
112
Sistema de recrutamento e exploração do trabalho por dívida. É uma prática comum em vários países
da América Latina, inclusive no Brasil, onde perdura até os dias atuais.
113
No artigo “O futuro das cooperativas”, Mariátegui estuda a situação das cooperativas no Peru e
indica a possibilidade da “comunidade” indígena converter-se em cooperativa. Para o autor, trata-se do
país latino-americano em que a cooperação encontra raízes mais espontâneas. “As comunidades
indígenas reúnem o maior número possível de faculdades morais e materiais para transformarem-se em
cooperativas de produção e de consumo. Castro Pozo estudou com precisão esta capacidade das
‘comunidades’, nas quais reside, indubitavelmente, contra o ceticismo interessado de alguns, um
elemento ativo e vital de realizações socialistas” (Idem, ibidem, p.187)
preferência gratuitamente as primeiras e contentar-se com as segundas para obter os
frutos com que se sustenta. O arrendamento do solo é pago pelo índio em trabalhos
ou frutos, muito raramente em dinheiro (por ser a força do índio o que mais de valor
existe para o proprietário), mais comumente em formas combinadas ou mistas” 114.
114
Idem, ibidem, p. 105.
115
Idem, “Resposta à pergunta nº4 do Seminário de Cultura Peruana”. In: Por um socialismo indo-
americano, pp. 145-146.
116
Ver capítulo 2.
são expostas de forma clara, sucinta e brilhante nos Sete ensaios, bem como em muitos
de seus artigos.
117
Idem, “Indigenismo e socialismo: intermezzo polêmico”, p. 111.
118
MARIÁTEGUI, J. C. “Princípios de política agrária nacional”. In: Política. São Paulo: Ática, 1982, pp.
108-111.
119
Idem, ibidem, p. 109.
participação revolucionária seria indispensável na construção do socialismo americano,
ou melhor, indo-americano.
Embora parta de pressupostos marxistas, o estudo mariateguiano da terra
peruana não se volta a uma análise economicista e fria, tampouco filosófica ou abstrata.
É um escrito que em suas linhas – e, muitas vezes, em suas notas de rodapé – se exibe a
esperança de uma nova Indo-América, cuja construção se daria por uma aliança entre
proletários urbanos estranhados nas fábricas citadinas – a classe revolucionária por
excelência no pensamento marxiano – e índios campesinos que, mesmo explorados e
agredidos por séculos nos latifúndios, não teriam perdido sua propensão à propriedade
comunitária e aos costumes coletivistas. Dessa maneira, o autor quer mais que
demonstrar o “problema” da terra: busca refletir também sua solução, de forma original
e esperançosa, mas, ao mesmo tempo, material e efetiva.
Essa solução, contudo, não viria com reformas graduais, mas com a revolução
socialista, na qual Mariátegui vê a possibilidade de participação dos povos indígenas.
Acreditando em tal feito, o autor empreende um trabalho intenso nos breve sete anos de
vida depois que retorna do exílio. Como visto, através dos Sete ensaios de interpretação
da realidade peruana e da revista Amauta, realizou seu trabalho intelectual de reflexão
da realidade peruana. E através das organizações que ajudou a criar – a APRA, o
Partido Socialista do Peru, e a CGTP – se empenhou na efetivação da luta que acreditou
ser necessária.
6. A CONSTRUÇÃO DO SOCIALISMO INDO-AMERICANO
“O movimento classista, entre nós, ainda é muito incipiente, muito limitado, para
que pensemos em fracioná-lo e cindi-lo. Antes de chegar a hora, talvez inevitável, de
uma divisão, cabe-nos realizar muita obra comum, muito trabalho solidário. Temos
de empreender em conjunto muitas e amplas jornadas. Cabe-nos, por exemplo,
suscitar consciência de classe e sentimento de classe na maioria do proletariado
peruano. Este esforço pertence por igual a socialistas e a sindicalistas, a comunistas
e a libertários. (...)Formar uma frente única significa ter uma atitude solidária diante
de um problema concreto, diante de uma necessidade urgente. Não significa
renunciar à doutrina a que cada um se filia nem à posição que cada qual ocupa na
vanguarda”.120
120
Idem. “O 1º de maio e a frente única”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 166.
utopias, ideologias, mas sim de unir forças em lutas e projetos que atingem a todos,
como a formação de uma consciência de classe no proletariado.
A formação de consciência de classe é o principal tema abordado no texto
“Mensagem ao Congresso Operário”, escrito por ocasião do II Congreso Obrero de
Lima, em 1927. No documento, Mariátegui insiste que o debate no congresso não se
perca em divagações teóricas e definição de etiquetas. Não se deve, segundo ele, buscar
princípios num proletariado em que os princípios têm raízes frágeis. O objetivo deve ser
a organização do proletariado, e sua unidade.
121
Idem. “Mensagem ao Congresso Operário”. In: op. cit., p. 105
APRA. Exilados no México, Haya e outros apristas propuseram que o movimento se
tornasse um partido nacionalista no Peru, aproveitando a estrutura organizativa, já
consolidada. Conforme relata Luiz Bernardo Pericás:
“Quando recebe a notícia, Mariátegui fica indignado. Escreve uma carta para Haya
de la Torre e para a célula mexicana da APRA que havia feito a sugestão, afirmando
que aquilo era uma atitude eleitoreira detestável, ao estilo do velho regime, e que
isso transformava um movimento antiimperialista numa mentira”.122
De fato, Mariátegui não via sentido que um movimento de frente única – que,
por definição, abrigava dentro de si correntes diversas – se transformasse em um
partido. Além disso, o Amauta via-se em discordâncias teóricas com Haya, sobretudo
no que tange às concepções relativas ao marxismo. O fundador da APRA defendia que a
proposta do movimento era se valer das contribuições de Marx, mas superando-as e
adaptando-as a América Latina e à realidade imperialista. A revolução socialista, nessa
interpretação não estava em pauta: era necessária a união de todas as correntes
contrárias ao capital monopólico para, antes de pensar em revolução, superar essa
conjuntura de dominação econômica estrangeira. Essa postura foi veementemente
contestada pelo comunista cubano Julio Antonio Mella123. Mariátegui, da mesma
maneira, discorda desse posicionamento e solidifica sua posição de defesa do marxismo
enquanto interpretação da realidade latino-americana e ação política. A revolução
socialista era, para ele, uma necessidade e uma possibilidade perfeitamente compatível
com a realidade peruana. Assim, esse momento marca uma ruptura de Mariátegui com a
APRA e a revista Amauta deixa de erguer a bandeira do movimento.
Convém ressaltar que, não obstante seu rompimento com Haya e sua suposta
frente única, Mariátegui não deixa de se colocar politicamente contrário ao
imperialismo. Em um texto de 1929 denominado “Ponto de vista antiimperialista”, o
autor deixa clara essa sua posição após iniciar explicando sua ruptura com a APRA:
“Para nós [Partido Socialista do Peru], o antiimperialismo, por si só, não constitui
nem pode constituir um programa político, um movimento de massas voltado para a
conquista do poder. O antiimperialismo, supondo-se que possa mobilizar, junto com
122
PERICÁS, L. B. “Introdução: José Carlos Mariátegui e o marxismo”. In: MARIÁTEGUI, José Carlos. Do
sonho às coisas: retratos subversivos. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 23.
123
Um dos fundadores do Partido Comunista Cubano, responsável pela Liga Antiimperialista da America
Latina, organismo animado pela Internacional Comunista.
as massas operárias e camponesas, a burguesia e a pequena burguesia nacionalistas
(já negamos terminantemente essa possibilidade), não anula o antagonismo entre as
classes, não suprime a diferença de interesse entre elas. (...) A tomada de poder por
parte do antiimperialismo, como movimento demagógico populista, se fosse
possível, não representaria nunca a conquista do poder pelas massas proletárias, pelo
socialismo. A revolução socialista teria como inimigo mais encarniçado e perigoso –
perigoso por causa do seu confusionismo, da demagogia – a pequena burguesia
estabelecida no poder, mediante suas palavras de ordem”. 124
124
MARIÁTEGUI, J.C. “Ponto de vista antiimperialista”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 133.
125
Idem, ibidem.
relação „autônoma‟ com a Internacional Comunista; 3) as exigências políticas e
organizativas do movimento de massa”.126
“Mas isto, tanto quanto o estímulo que se conceda ao livre ressurgimento do povo
indígena, à manifestação criadora das suas forças e do seu espírito nativo, não
significa absolutamente uma romântica e anti-histórica tendência de ressurreição
do socialismo inca, que correspondeu a condições históricas completamente
superadas e do qual só restam, como fator aproveitável, dentro de uma técnica de
produção perfeitamente científica, os hábitos de cooperação e socialismo dos
camponeses indígenas”.128
126
ARICÓ, op. cit, p. 458.
127
MARIÁTEGUI, J.C. “Princípios programáticos do partido socialista”. In: op. cit., p. 123.
128
Idem, ibidem, pp. 123-124, grifos meus.
Em suma, para Mariátegui, é preciso efetivar a superação dos traços feudais
prevalecentes na economia peruana, cuja resolução o capitalismo liberal prometeu
efetivar mas revelou incapaz e desinteressado em fazer acontecer. Este feito, bem como
a democratização da educação, seriam tarefas de uma etapa ainda democrático-burguesa
da revolução socialista. Cumprida essa etapa, a revolução tornar-se-ia proletária, na
prática e doutrina. “O partido do proletariado, capacitado na luta pelo exército do poder
e pelo desenvolvimento do próprio programa, realiza nesta etapa as tarefas de
organização e defesa da ordem socialista”.129
Ademais, o documento também enumera uma série de reivindicações imediatas
do partido, que inclui; direito de associação e greve dos trabalhadores; estabelecimento
de seguro social e assistência social pública; cumprimento das legislações trabalhistas,
com destaque para a jornada máxima de 8 horas diárias na agricultura; estabelecimento
da jornada de 7 horas para trabalhos insalubres, como é realizado nas minas; abolição
efetiva do trabalho forçado; entrega de terras de latifúndios e congregações religiosas às
comunidades; direito dos arrendatários obterem a posse definitiva das terras em que
trabalharam por mais de três anos, “mediante pagamentos anuais não superiores a 60%
do valor atual do arrendamento”130; implantação do salário mínimo; gratuidade do
ensino em todos os níveis.
O texto é levado a I Conferência Comunista Latinoamericana, da qual
participam, representando o PSP, Hugo Pesce e Julio Portocarrero. Na ocasião, os
documentos expostos pelo partido – além dos “Princípios programáticos” também são
levados “O problema das raças na América Latina” e “Ponto de vista antiimperialista” –
são contestados veementemente pela cúpula stalinista, ao ponto de alguns afirmarem
que o partido misturava elementos de comunismo e de aprismo. Vale ressaltar que,
nesse momento, a orientação da Internacional já abandonara o incentivo à consolidação
da frente única. De todo modo, a crença de Mariátegui no potencial revolucionário
indígena e sua relativa “rebeldia” em relação ao stalinismo ocasionaram uma forte
pressão bolchevique na ocasião.
Nesse momento, a saúde do Amauta piora, e o autor se afasta da secretaria-geral
partido, em favor de Eudocio Ravines, que acabara de voltar do exílio em Paris.
Ravines, pouco após a morte de Mariátegui, cede às pressões da Terceira Internacional e
muda o nome do partido para Partido Comunista do Peru, se comprometendo em afastar
129
Idem, ibidem, p. 124.
130
Idem, ibidem, p. 125.
os resquícios de “amautismo” do interior do partido. Com as cisões resultantes dessa
mudança, o partido enfraquece. Enquanto isso, a APRA consolida-se enquanto partido
nacionalista, tornando-se a principal referência partidária dos trabalhadores do país por
muitos anos.
131
ILLÁN, op. cit., p. 218.
No ano seguinte, em maio, Mariátegui propõe a formação de uma Central
Sindical Nacional, visando a unidade proletária sob uma concepção socialista
revolucionária. Ao fim do mesmo mês, constituí-se o comitê organizador da CGTP, que
já havia sido representada no Congresso Sindical Latino-Americano, articulado pela III
Internacional. Finalmente, em 1º de setembro de 1929, são publicados os estatutos da
CGTP. Segundo Löwy, no ano seguinte, a Confederación já contaria com 58 mil
trabalhadores da indústria e 30 mil indígenas que se agrupavam na Federação
Indígena.132
Em 16 de abril de 1930, quando falece Mariátegui, os membros da CGTP, e
milhares de trabalhadores, estudantes, artistas e intelectuais, levam o corpo do pensador
militante pelas ruas de Lima, homenageando-o com canções e erguendo bandeiras
vermelhas. A história justificaria o tamanho da homenagem: a CGTP existe ainda hoje,
sendo uma importante entidade combativa e socialista do proletariado peruano; e o
pensamento do autor ainda traz contribuições de relevância aos trabalhadores da cidade
e do campo.
132
Cf. LÖWY, M. “Introdução”, p. 28.
7. CONCLUSÃO: A IMPORTÂNCIA E A
ATUALIDADE DE MARIÁTEGUI
Apesar de seu pouco tempo de vida, e sua saúde precária, Mariátegui conseguiu
realizar um trabalho vasto e profundo, deixando um grande legado aos seus seguidores:
a construção do socialismo indo-americano. Através de um marxismo criativo e
herético, pôde trazer grandes inovações ao pensamento social de seu tempo, agregando
seguidores e conquistando adversários políticos e teóricos.
A importância e atualidade desse autor revelam-se em três sentidos: 1) na
antecipação de certas concepções que seriam posteriormente desenvolvidas por outras
correntes ligadas ao marxismo; 2) na leitura inovadora das questões indígena e agrária,
que ainda hoje encontra ecos nas mais variadas lutas políticas dos diversos povos
indígenas latino-americanos; 3) no seu entendimento do marxismo que, não obstante
suas limitações, coloca o autor entre os grandes pensadores do marxismo ocidental.
Em relação ao primeiro ponto, é possível verificar diversas concepções ou idéias
que se encontram em Mariátegui antes mesmo de grandes movimentos intelectuais e
políticos no ocidente. Um exemplo é a grande importância dada à subjetividade do
sujeito revolucionário, de sua fé, suas crenças, suas motivações simbólicas. Tal
concepção, inserida em uma proposição socialista, converge não acidentalmente com
alguns preceitos da Teologia da Libertação, movimento cristão-marxista que emergiu a
partir dos anos 60 em todo subcontinente. Michael Löwy credita à influência de
Mariátegui, dentre outras, a crença na possibilidade de convergência entre o marxismo e
uma crença extraterrena133, apontando para a constante citação do autor na obra
Teologia da Libertação – Perspectivas (1971), de Gustavo Gutierrez, tida como um dos
textos fundantes da nova teologia.
Mariátegui também antecipa, de certa maneira, algumas concepções que mais
tarde seriam caras à chamada Teoria da Dependência. Tal fato ocorre, sobretudo, na
forma pela qual o autor compreende, muitos anos antes do mencionado movimento
intelectual, o termo “dependência” e sua implicação para a caracterização das relações
econômicas dos países latino-americanos para com as grandes potências. Diversas
passagens de sua obra poderiam ser utilizadas para justificar tal ponto de vista, mas nos
atemos, aqui, a apenas duas, mais expressivas:
133
Cf. LÖWY, M. “Mariátegui e a religião”. Estudos Avançados, n.19 (55), 2005, pp. 105-116.
“Por causa das deficiências de sua posição geográfica, de seu capital humano e de
sua educação técnica, está vedado ao Peru sonhar em se converter, em curto prazo,
em um país manufatureiro. Sua função na economia mundial tem que ser, por
longos anos, a de um exportador de matérias-primas, gêneros alimentícios, etc. No
sentido contrário ao surgimento de uma indústria fabril importante, atua, além disso,
atualmente, sua condição de país de economia colonial, feudalizada aos interesses
comerciais e financeiros das grandes nações industriais do Ocidente” 134.
134
MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 217, grifos meus.
135
Idem. “Economia colonial”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 94, grifos meus.
que as relações da América Latina com os centros capitalistas europeus se inserem
em uma estrutura definida: a divisão internacional do trabalho, que determinará o
sentido do desenvolvimento posterior da região. Em outros termos, é a partir de
então que se configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação
entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção
das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução
ampliada da dependência”.136
Não se pretende, de modo algum, insinuar que Mariátegui tenha sido altamente
influente ou decisivo na obra desses autores, ainda que Galeano revele-se, na mesma
obra, seu admirador. Ou seja, não é o caso de enxergar nesses dois autores, e muito
menos na Teoria da Dependência, uma decorrência ou continuidade da obra do Amauta:
trata-se apenas de ilustrar o olhar inovador, à frente de seu tempo, que possuía o autor,
uma vez que proposições próximas às suas se consolidariam anos mais tarde.
Em relação ao segundo item enumerado, pudemos visualizar, durante todo este
trabalho, a inovação trazida por Mariátegui na leitura da ocorrência de uma intersecção
entre um problema étnico-cultural e outro sócio-político-econômico. Ou seja, a
convergência entre o problema indígena e o problema da sobrevivência de traços
feudais na economia peruana, predominantemente agrária. O autor, também aqui de
136
MARINI. R. M. “Dialética da dependência”. In: Trespaldini, R.; Stédile, J. P. (orgs). Ruy Mauro Marini:
vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005, pp. 140-141.
137
GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008, p. 17
forma inovadora, contesta a forte tendência de seu tempo a mascarar, por meio de uma
“tergiversação casuística”, este caráter sócio-político-econômico da questão indígena
por meio da racialização.
Esta análise, precisamente, revela-se extremamente relevante na atual conjuntura
política da América Latina, sobretudo no que tange a emergência e consolidação de
movimentos sociais, indígenas inclusive, que se fortalecem em pautas que decorrem de
tal convergência. É interessante notar que estes movimentos – muitos dos quais se
formaram ou se consolidaram a partir da inserção dos países do subcontinente na
política econômica neoliberal, em negação aos efeitos devastadores às economias e
populações locais – não se organizam institucionalmente na esfera política, ou seja, não
se compõem em partidos ou sindicatos, e não visam ocupar o Estado diretamente.
Andréia Galvão, defendendo que esses movimentos possuem, todavia, uma
dimensão política, justifica-se por dois ângulos: “de um lado, [possuem dimensão
política] porque se constituem em contraposição a instituições, projetos e medidas
políticas; de outro, porque ao resistirem a essas instituições, projetos e medidas
produzem um impacto político de monta”.138 No mais, relacionam-se com os
movimentos mais institucionalizados, como os sindicatos e partidos, de diversas
maneiras. A respeito do movimento indígena, Galvão nos mostra este entrecruzamento
de demandas, já presente em Mariátegui: o reconhecimento de uma composição étnica
historicamente marginalizada e a luta político-econômica – no caso citado pela autora, a
luta é contrária ao avanço neoliberal e na contestação da própria concepção de Estado,
visando a constituição legal da plurinacionalidade, como se observa atualmente na
Bolívia e no Equador, principalmente.
Esta reivindicação, em especial, revela novamente a importância atual do autor
aqui estudado. Aníbal Quijano estuda a atuação indígena nos países em que esta
população é majoritária e mais organizada, e define da seguinte maneira a luta pelo
Estado plurinacional:
“Se trata de que la estructura institucional del Estado sea modificada en sus
fundamentos, de modo que pueda representar efectivamente a más de una nación. Es
decir, se trata de una múltiple ciudadanía, ya que en la existente los «indígenas» no
tienen, no pueden tener, plena cabida. Es también cierto, sin embargo, que ese no es
aún el horizonte de la mayoría de las poblaciones que se re-identifican como
138
GALVÃO, A. “Os movimentos sociais da América Latina em questão”. Revista Debates, Porto Alegre,
v. 2, n. 2, jul.-dez. 2008, p. 9.
«indígenas» en América Latina. Pero esa demanda implica, de todos modos, el final
del asimilacionismo político y cultural en América, ya que, después de todo, nunca
fue plena y consistentemente practicada por los dominantes no-indios o «blancos».
Y si eso logra abrirse realmente paso, si no es simplemente reprimida y derrotada,
ese es también el fin del espejismo eurocéntrico de un Estado-Nación donde unas
nacionalidades no han dejado de dominar y de colonizar a otras, además,
mayoritarias.”.139
139
QUIJANO, A. El «Movimiento Indígena» y las cuestiones pendientes en América Latina. Disponível
em: <http://sisbib.unmsm.edu.pe/BibVirtualData/publicaciones/san_marcos/n24_2006/a01.pdf>, p. 37
140
Idem, ibidem, p. 33.
peruana, o autor demonstra a necessidade da reflexão e inclusão do autóctone em
qualquer projeto de “peruanização” do Peru.
A respeito do terceiro ponto mencionado – o enquadramento de Mariátegui
dentre os grandes pensadores do marxismo ocidental – é possível traçar paralelos,
comparações e cotejos da obra do autor com grandes clássicos dessa corrente de
pensamento. É sabido que Mariátegui, em sua concepção agônica de marxismo e em seu
estreito período produtivo, não se ocupou em desenvolver novos conceitos e teorias a
partir de Marx – preocupou-se, principalmente, em estudar a América Latina pelo viés
marxista e em promover, a partir de tal análise, a atuação socialista dos trabalhadores
urbanos e rurais em seu país.
Todavia, uma leitura atenta dos textos do autor culmina na observação de suas
concepções de fundo mais teórico, ainda que estas não sejam externadas em formas de
teses gerais e abstratas. Demonstramos, no decorrer dessa pesquisa, alguns pontos de
convergência acerca da concepção de trabalho entre Mariátegui, Lukács e Karl Marx.
Este tema, muito relevante a qualquer autor marxista, poderia ser debatido em uma
pesquisa posterior, uma vez que é alvo de grande polêmica – Moishe Postone, por
exemplo, aponta que Lukács desenvolve concepções de trabalho e de capitalismo
diferentes do próprio Marx.141
Outro tema que poderia levar a uma discussão a respeito de Mariátegui e o
marxismo é a concepção de cultura, a qual pode ser comparada com aquela
desenvolvida por Gramsci. Conforme foi apontado nesse trabalho, pode ser equivocado
apontar uma influência de Gramsci sobre Mariátegui, sendo mais razoável admitir a
influência dos principais escritores de L‟Ordine Nuovo no início do anos 20 sobre
ambos.
141
Segundo Moishe Postone, a concepção de trabalho, em Marx, não é universal e trans-histórica, tal
como interpretou Lukács na Ontologia. Essa postura fica bastante clara em “Repensando a crítica de
Marx ao capitalismo”: “(...) a análise de Marx não se refere ao trabalho como ele é concebido em geral e
transhistoricamente – uma atividade social direcionada para um objetivo que estabelece a
intermediação entre o homem e a natureza, criando produtos específicos a fim de satisfazer
determinadas necessidades humanas – mas atribui-lhe um papel peculiar que desempenha na
sociedade capitalista” (POSTONE, M. Repensando a crítica de Marx ao capitalismo. [Versão portuguesa
do primeiro capítulo do livro Time, Labor and Social Domination, divulgada no Seminário Internacional
"A Teoria Crítica Radical, Superação do Capitalismo e a Emancipação Humana", Fortaleza, Ceará,
29.10.2000]. Disponível em: <http://www.krisis.org/2000/repensando-a-critica-de-marx-
aocapitalismo>) Este autor, ao contrário de Lukács, entende que a teoria marxiana não deve ser
entendida como universal, mas como uma teoria da sociedade capitalista, e suas especificidades
históricas.
De toda maneira, ao olhar para o trabalho jornalístico e intelectual empreendido
por Mariátegui – através de Amauta, Labor e seus dois livros publicados em vida – não
é exagero afirmar que o autor empreendeu um verdadeiro trabalho de “organização da
cultura”, passível de comparação com as concepções desenvolvidas por Gramsci
posteriormente. 142
Mariátegui realizou também um grande trabalho de crítica literária sob uma ótica
marxista, ainda que este tópico não tenha sido muito estudado nesta pesquisa. Assim
como faz em outros temas de estudo, o autor não se preocupou em definir sua
concepção de estética, e até se recusa a delimitar um conceito fechado. Contudo,
demonstra alguns preceitos de suas análises, de forma sutil, ao longo de sua obra.
Escorsim destaca três pontos: 1) “a recusa da identificação imediata entre a posição
143
política de um artista ou intelectual e sua obra” ; 2) “a recusa da arte como esfera
144
pura, produto de uma „torre de marfim‟” ; 3)”a recusa de uma crítica de arte
„objetiva‟, „imparcial‟ ou „estritamente artística‟”145. A autora enfatiza, ainda, a
aproximação do Amauta a Lukács em relação à crítica do “anticapitalismo romântico”
que, paradoxalmente, Löwy enxerga na produção do próprio Mariátegui.
Vemos, em suma, a dupla face do trabalho marxista de Mariátegui: por um lado,
é criativo, inovador, heterodoxo e, até certo ponto, eclético, sendo alvo de críticas por
parte do emergente stalinismo; por outro, é uma concepção agônica, revolucionária e
combativa, que recusa o academicismo e desenvolve um trabalho de conscientização de
classe e organização proletária junto às bases.
O autor, cujo exílio europeu lhe rendeu a possibilidade de levar ao Peru um novo
ponto de vista para a superação da dominação capitalista estrangeira, foi, se não
pioneiro, um grande destaque teórico e prático nas origens do marxismo latino-
americano. A “criação heróica” do marxismo indo-americano, proposta por ele,
encontra ecos e novas possibilidades neste início de século XXI, em que os povos
autóctones reivindicam novos direitos políticos e acesso à terra historicamente
usurpada, ao mesmo tempo em que alguns autores proclamam a morte do
142
Vide: GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1982
143
ESCORSIM, op. cit., p. 236
144
Idem, ibidem, p. 237
145
Idem, ibidem.
campesinato146 – seja enquanto categoria investigativa, seja enquanto realidade
empírica.
A obra de Mariátegui, nesse contexto, é enriquecedora na compreensão da
cultura e das questões sócio-político-econômicas dos povos ameríndios e colaborativa
para ação dos movimentos em que se organizam, sobretudo no que tange à cultura
agrária “comunista”, relevante a uma proposição socialista para o subcontinente.
Embora ainda pouco conhecida no Brasil, a vida e obra de Mariátegui revelam-se, por
tudo isso, merecedoras de lembrança e estudo diante de tal cenário político.
146
Ver ALMEIDA, M. W. B. “Narrativas agrárias e a morte do campesinato”. Ruris – Revista do Centro de
Estudos Rurais do IFCH. Vol.1, nº2, set. 2007.
BIBLIOGRAFIA