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LUKACS, Gyorgy. O Romance Como Epopeia Burguesa. in Arte e Sociedade. Escritos Estéticos, 1932-1967
LUKACS, Gyorgy. O Romance Como Epopeia Burguesa. in Arte e Sociedade. Escritos Estéticos, 1932-1967
LUKACS, Gyorgy. O Romance Como Epopeia Burguesa. in Arte e Sociedade. Escritos Estéticos, 1932-1967
2. Epopeia e romance
medida suficiente para tornar possível, pelo menos, uma certa aceita
ção e um certo reconhecimento deste ordenamento ( Hegel ) . Ne
nhum pensador burguês superou este dilema teórico, nem mesmo,
como seria de prever, no que se refere à teoria do romance. E os
grandes romancistas só podem figurar de modo correto esta contra
dição quando, inconscientemente, deixam de lado suas próprias
teorias românticas ou conciliadoras. A estética clássica alemã iden
tificou a diferença específica entre epopeia e romance; viu, por
exemplo, que, enquanto a objetividade da epopeia antiga é conferida
pelo mito, é a forma específica do romance que lhe fOnfere esta objeti
vidade ( "o romance só é objetivo graças à sua forma", diz Schelling) .
Contudo, tal estética não foi capaz de tratar concretamente estas
características do romance e não foi além de uma contraposição -
ainda que correta em suas grandes linhas - entre romance e epopeia.
As bases para a construção de uma autêntica teoria científica
do romance foram colocadas, pela primeira vez, na doutrina de Marx
e Engels sobre a arte. Marx deu uma explicação materialista da desi
gualdade do desenvolvimento da arte com relação ao progresso ma
terial, bem como da hostilidade do modo capitalista de produção à
arte e à poesia: esta explicação contém a chave para compreender a
desigualdade do desenvolvimento de formas e gêneros literários es
pecíficos. As ideias gerais de Marx sobre a epopeia antiga e sobre sua
contrafação moderna, contidas na Introdução à crítica da economia
política e nas Teorias da mais-valia, bem como o capítulo do livro de
Fngels sobre A origem da família, da propriedade privada e do Estado
dedicado à desagregação da sociedade tribal, trazem à luz a dialética
do desenvolvimento da forma épica, um de cujos momentos mais
importantes é construído pelo romance.
gem do mundo, à tensão épica etc., mas não tem em vista uma
explicação do caráter do herói e de sua relação com a sociedade. No
romance, ocorre precisamente o contrário: o passado é absoluta
mente necessário para explicar geneticamente o presente, o desen
volvimento ulterior do personagem. Mas Byron aborda o problema
sob um aspecto formal: ele exige a forma biográfica como forma do
romance. Ora, sabe-se que grande parte dos romances clássicos ado
tam esta forma biográfica; mas seria incidir no formalismo deduzir
da necessidade para o romance do princípio da explicação genética a
conclusão de que a forma biográfica é igualmente necessária. Balzac,
por exemplo, o grande mestre do desenvolvimento genético, põe ex
pressamente a exigência de começar o romance em qualquer ponto
do desenvolvimento do herói e utiliza também esta variante da figu
ração em sua prática criadora.
Como vimos, ocorre uma contradição entre teoria e prátiéa no
desenvolvimento do romance, que se manifesta no atraso da teoria
com relação à prática da criação romanesca. Disso se poderia concluir
que, para a construção da teoria do romance com suas particulari
dades específicas, poderiam servir como material somente as obras
dos grandes romancistas. Contudo, ao lado da teoria por assim dizer
"oficial" dos grandes poetas e pensadores do período revolucionário
da burguesia, encontramos neles também uma teoria "esotérica", na
qual se manifesta, mais do que em sua teoria propriamente dita do
romance, uma mais clara compreensão das contradições fundamen
tais da sociedade burguesa.
Vejamos um exemplo. Já na Fenomenologia do Espírito, Hegel
indicou a oposição entre o período heroico e o período prosaico da
burguesia, ou seja, a oposição entre a atividade humana espontânea
e a dominação de forças sociais abstratas. Essa indicação serve para
iluminar o caminho que leva da epopeia e da tragédia gregas ao mun
do da prosa ( Roma). Mas os leitores atentos da Fenomenologia cer
tamente observaram que esta passagem aparece duas vezes, inicial
mente nos capítulos que tratam da transição à sociedade burguesa
moderna, ou seja, nos capítulos sobre o "reino humano espiritual" e
sobre "o espírito alienado de si mesmo, a cultura". Estes capítulos
mostram uma atividade espontânea e uma autonomia do homem,
204 + GvôRGY LuKAcs
4 . O nascimento do romance
encontra no início desta decadência; e é por isso que suas obras, num
grande número de episódios apaixonantes, ainda estão próximas das
grandes tradições do romance. Mas as linhas fundamentais de sua
criação já abrem caminho para uma nova orientação. Basta comparar
a cena de uma corrida de cavalos em seu romance Naná e aquela
contida em Ana Karênina de Tolstoi. Em Tolstoi, trata-se de uma cena
épica viva, na qual tudo é épico, desde a sela do cavalo até o público,
ou seja, onde tudo é construído através das ações dos homens em
situações para eles significativas. Em Zola, temos uma descrição
esplêndida de um evento da vida da sociedade parisiense, evento que,
do ponto de vista da ação, não tem nenhuma ligação com o destino da
protagonista do romance, e a que os demais personagens assistem
apenas na condição de espectadores interessados, mas não envolvi
dos. Em Tolstoi, a cena da corrida é um episódio épico na ação do
romance; em Zola, é uma simples descrição. Tolstoi, portanto, não
tem necessidade de' " inventar" uma "relação" entre os elementos
objetivos deste episódio e os protagonistas do romance porque a
corrida é parte essencial da própria ação. Zola, ao contrário, é obrigado
a ligar a corrida ao resto do conteúdo de seu romance de modo
simbólico, ou seja, mediante a coincidência casual dos nomes do
cavalo vencedor e da protagonista do romance.
Este uso do simbolismo, que Zola recolheu como herança em
Victor Hugo, atravessa toda sua obra: a grande loja, a Bolsa etc., são
símbolos da vida moderna elevados a uma gigantesca dimensão,
como a igreja de Notre-Dâme ou o canhão em Victor Hugo. O falso
objetivismo de Zola se manifesta do modo mais claro nesta coexis
tência inorgânica de dois princípios criativos inteiramente heterogê
neos: o detalhe apenas observado e o símbolo puramente lírico. Este
caráter inorgânico atravessa toda a composição: já que o mundo des
crito em cada romance não é construído com base em ações concretas
de homens concretos em situações concretas, mas é uma espécie de
recipiente, de ambiente abstrato no qual os homens são inseridos a
posteriori, desaparece a ligação necessária entre o personagem e a ação;
para o mínimo de ação indispensável, basta algum traço recolhido
dos casos médios. Contudo, a prática de Zola é, também aqui, melhor
do que sua teoria, ou seja, as características de seus personagens são
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 233
mais ricas do que os enredos que ele concebe; mas, precisamente por
isso, eles não se transformam em ações, permanecendo objeto de
simples observações e descrições. Portanto, o número de tais descri
ções pode aumentar ou diminuir à vontade. A cientificidade do méto
do de Zola, cujo objetivismo mal oculta o empobrecimento da ima
gem do mundo social que ele constrói, não pode assim nem levar a
um reflexo exato das contradições da sociedade capitalista, no plano
do conhecimento, nem à criação de obras narrativas acabadas, no
plano artístico. Lafargue mostra corretamente que, apesar da exatidão
de suas observações singulares, Zola aborda temas dos quais não vê as
determinações sociais decisivas (o alcoolismo dos operários em O
matadouro, a oposição entre velho e novo capitalismo em O dinheiro).
Por outro lado, n o que s e refere a o desenvolvimento d o romance, não
têm tanta importância os erros de fato cometidos por Zola na inter
pretação dos fenômenos sociais ( embora os velhos realistas, por
participarem pessoalmente das lutas sociais de seu tempo, intuíssem
a verdade nas questões decisivas) , mas sim o fato de que tais erros fa
voreceram a aceleração da dissolução da forma romanesca. Os gran
des "historiadores da vida privada" tiveram por sucessores tão somente
cronistas líricos ou jornalísticos dos eventos do dia a dia.
Flaubert e Zola constituem a última inflexão no desenvolvi
mento do romance. Por isso, tornou-se necessário examinar mais
detalhadamente suas obras, já que as tendências à dissolução da
forma do romance manifestam-se neles, pela primeira vez, de uma
forma quase �lássica. O desenvolvimento ulterior do romance, apesar
de toda a sua variedade, transcorre nos quadros dos problemas já
delineados em Flaubert e Zola, ou seja, no quadro do falso dilema
entre subjetivismo e objetivismo, que leva inevitavelmente a uma
série de outras antíteses igualmente falsas, como, por exemplo, a
perda cada vez mais irremediável da verdadeira tipicidade das
situações e dos personagens, substituída pelo falso dilema entre a
banalidade da média e o que é puramente "original" ou "excêntrico".
Em consequência deste falso dilema, o desenvolvimento do romance
moderno oscila entre os dois extremos igualmente falsos da "cienti
ficidade" e do irracionalismo, entre o fato bruto e o símbolo, entre o
documento da "alma" ou da "atmosfera': Decerto, não faltam nem
234 • GYôRGY LUKÁCS
Notas
7
Ibid.
8 F. Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, em K.
Marx e F. Engels, Obras escolhidas, Rio de Janeiro, Vitória, v. 3, 1 963, p. 63.
9 Engels, carta a M. Harkness, ed. cit., p. 1 96.
10
Hegel, Fenomenologia do Espírito, ed. cit., parte I, p. 2 1 5.
" Ibid.
12
K. Marx, Para a questão judaica, Lisboa, Avante! , 1 997, p. 89. Modificamos
a tradução.
13
K. Marx, Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro,
Lisboa, Presença, 1 972, p. 88.
14
Honoré de Balzac, A comédia humana, Rio de Janeiro-Porto Alegre-São
Paulo, Globo, v. 1, 1 959, p. 14.
15
Personagens, respectivamente, de O vermelho e o negro e de Ressurreição.
16
K. Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, São Paulo, Boitempo, 2005,
p. 52.
17
A expressão é de Hegel na Fenomenologia do Espírito, ed. cit., parte I,
p. 246 e ss.
" Personagens, respectivamente, de Lesage, Fielding e Defoe.
19
Cf., supra, nota 1 7.
"' K. Marx, O 18 brumário de Luís Bonaparte, em K. Marx e F. Engels, Obras
escolhidas, ed. cit., v. l , 1 956, p. 225.
21
Lukács se refere ao fato de que, em junho de 1 848, no seio do processo
revolucionário ocorrido na França, o proletariado francês promoveu uma
insurreição que foi esmagada pelas forças burguesas. Em toda a sua obra,
Lukács situa neste episódio o início do que vai chamar de "decadência
ideológica da burguesia".
22 Victor Hugo, Quatre-vingt-treize, primeira parte, livro II, tomo IV.
23 Cândido é uma novela de Voltaire.
24
G. W. F. Hegel, Estética. A arte clássica e a arte ro mân tica, Lisboa,
Guimarães, 1 958, p. 30 1 .
25 Lukács cita o artigo de Lenin, "Tolstoi, espelho da revolução russa'', publicado
em Proletari, 1 1 de setembro de 1 908.
'li> Gogol se refere a personagens do seu romance Almas mortas.
v E. Zola, Le roman expérimental, Paris, Garnier-Flammarion, 1 979, p. 2 14-2 1 5.
28 Lukács desenvolve este argumento, inclusive a comparação entre Naná e
Ana Karênina, em seu ensaio "Narrar ou descrever?", em id., Ensaios sobre
literatura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1 968, p. 47-99.
zi Carta a J. Van Santen Kolff, de junho de 1 886.
Ü ROMANCE COMO EPOPEIA BURGUESA + 243
" K. Marx e F. Engels, A sagrada família, São Paulo, Boitempo, 2003, p. 48.
A tradução está modificada.
31 Ibid, p. 49.
32 K. Marx, "Teses sobre Feuerbach", em K. Marx e F. Engels, A ideologia
alemã, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 6 1 1 - 6 1 2 .
33 V. I. Lenin, A doença infantil do "esquerdismo" n o comunismo, e m id., Obras
escolhidas em três tomos, Lisboa-Moscou, Avante ! -Progresso, t. 3, 1 979,
p. 332.