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Roda de Conversa Mediação Bakthin
Roda de Conversa Mediação Bakthin
Roda de Conversa Mediação Bakthin
Marcia Bertonceli
Benedita de Almeida (orientadora)
Universidade Estadual do Oeste do Paraná/FBe –
Mestrado em Educação
1
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ – UNIOESTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃOEM EDUCAÇÃO -- MESTRADO/PPGEFB
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: EDUCAÇÃO
MARCIA BERTONCELI
Francisco Beltrão - PR
2016
MARCIA BERTONCELI
Francisco Beltrão - PR
2016
Dedico este trabalho àqueles que sempre estiveram ao
meu lado e acreditaram em mim; ao meu esposo
Ricardo, pelo grande incentivo e paciência; ao meu pai,
Jaime, que sempre me encorajou a lutar pelos meus
ideais, vibrando a cada conquista; a minha mãe Maria
do Carmo, e irmã caçula Maria Luíza, pelo amor
incondicional, aminha irmã gêmea, Mariane, minha
grande parceira e aliada em todos os momentos; e ao
meu irmão, Jailison (in memoriam) que, mesmo estando
ausente, sempre está presente em minha lembrança, pela
saudade que deixou.
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABCTRACT
The language occupies a prominent place in the humanization of the subject, by propelling
aspects of specific and constitutive human consciousness development, and the organization
of higher psychic processes through verbal interactions. The Conversation Wheels are
language activities permanently in early childhood education, in order to develop oral
communication, expression and child interaction. Based on these assumptions, this study
aimed to analyze the formative aspects of educational practices with verbal language, the
conversation wheels made with a group of children from three to five years, in three public
institutions of Early Childhood Education in the municipality of Francisco Beltrao in 2014.
qualitative and ethnographic, was developed through literature reading area, highlighting
works that provided current and relevant data on the subject; analysis of curriculum
documents; audio recordings twenty-four Conversation wheels and semi-structured interviews
with three teachers of the institutions of the research context. Based on dialogue between
studies on childhood, historical-cultural psychology, Vygotsky and the dialogic perspective of
language, Bakhtin, established reflections on the child's possibilities of expression and on the
way children's voices are in the educational process Talk wheel, our research object.
Ressaltamos The basic concept of verbal interaction, by which they give cultural
appropriation, and constitutivity of language as humanization conditions and key elements in
Early Childhood Education, linked to the importance of listening to the children to develop
their linguistic expression. From the study of the theoretical and methodological framework,
the guiding curricular work documents on EI and the data produced in the survey, identify the
categories of analysis - (I) the cultural content in the movement of the wheel, (II) the verbal
interactions drive the wheel: dialogism and polyphony and (III) formative elements of RC -
with which we analyze the Talk Wheels and highlight its educational potential as a space that
promotes dialogue, values the children's uniqueness, calls the dialogue between everyday
knowledge and the know scientific, allows the construction of values, cultural knowledge and
the democratization of knowledge. Within the limit of determinations and contradictions of
historical contexts, their practice points to the challenge of breaking with guidelines
characterized by possibility of rigidity of teaching practices; It points to the need for
restoration of the dialogue with a view to bring children's voices to the movement, allowing
the meeting of dissonant voices in the wheel and consider the integral formation of children.
As crianças a que a canção se refere são também aquelas que frequentama Educação
Infantil(EI),que apresentam respostas inusitadas, criativas, que vivem a infância com humor e
alegria. Aquela criança que descobre o mundo a partir das interações sociais. Crianças, cuja
infância deve ser vivenciada, na EI, como momento único, no qual, como sujeitos em pleno
desenvolvimento, devem ter acessoaos conhecimentos mais elaborados que o gênero humano
já conquistou.
Pensando na EI como espaço privilegiado de aprendizagens, promovidas por inúmeros
mecanismos de interação, cabe destacar, especialmente, a fala da criança como instrumento
pelo qual ela se humaniza, torna-se sujeito social que atua sobre a realidade, transformando-a
e transformando-se.
Foi instigada por esses princípios que, em minha2 caminhada como educadora, desde a
formação inicial, sempre tive grande preocupação em investigar o âmbito da EI,
principalmente, por sentir inquietações em relação a sua desvalorização histórica e suas raízes
assistencialistas, que deixam marcas nas precárias condições de trabalho do professor, na sua
desvalorização profissional e no entendimento das crianças como sujeitos passivos. Entre
essas condições negativas, são várias as contradições presentes na educação da infância, uma
instância que, a meu ver, constitui-se como base para as demais etapas da Educação Básica e
para a formação humana.
Durante minha formação, no curso de Pedagogia (2009-2012), realizado na
Universidade Estadual do Oeste do Paraná –UNIOESTE, tive a oportunidade de trabalhar
como estagiária em um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI),de Francisco Beltrão-
FB, num bairro periférico da cidade. Essa experiência me propiciou os primeiros contatos
com o ambiente educativo real, que me possibilitaram algumas reflexões sobre como, na
atualidade, apesardos diversos avanços políticos e legais na área, a EI, ainda, está inserida em
um contexto de precarização. Os profissionais que nela atuam situam-se em condições de
desvalorização, em diversos sentidos, pois, infelizmente, há um ideário que reduz o trabalho
do professor dessa etapa às práticas de cuidado, sem assumir que cuidar, também, é educar.
Na formação universitária, as atividades de estágio supervisionado contribuíram para
1
Trecho da letra da música ‘‘O que é o que é’’ (Gonzaguinha). Disponível em
<http://www.vagalume.com.br/gonzaguinha/o-que-e-o-que-e.html>.
2
Trecho escrito em 1ª pessoa do singular, porque se refere a elementos pessoais da trajetória da pesquisadora.
11
que eu pudesse pensar, não somente na EIcomo importante base para a educação, numa
perspectiva emancipatória, mas, também, na necessidade de pesquisas que evidenciem a
importância da educação na tenra infância, como espaço constitutivo da linguagem e do
sujeito. Ou seja, como espaço de humanização (desenvolvimento) da criança e, do mesmo
modo,como um espaço de trânsito de ideologias que servem a classes sociais antagônicas,
com interesses específicos e contraditórios.
Em 2010, prestei concurso para trabalhar na EI, porque já tinha formação no curso de
Formação de Docentes (Magistério/nível médio) e fui convocada no início do ano de 2012.
No final desse mesmo ano, concluí a graduação em Pedagogia, trabalhava em regime de 40
(quarenta) horas semanais, como regente de turma. Dessa maneira, trabalhei com as turmas de
berçário3, maternal e pré-escolar, com crianças em idades de 0 (zero) a 4 (quatro) anos. Essas
atividades docentes despertaram-me indagações muito pertinentes, especialmente, em relação
ao desenvolvimento da linguagem na criança, e ao modo como essa instância é responsável
pelo desenvolvimento psíquico do sujeito e pelo seu processo de humanização, pois é através
das interações culturais, mediadas pela linguagem, que a criança se apropria do mundo social
e de todo conhecimento disponível.
É, portanto, a partir dessas atividades e contextos, que construo minha prática docente,
desde minha imersão no trabalho com a EI. É, também, nesse contexto, que formulo meu
projeto de pesquisa, direcionado a essa etapa escolar, e, quando ingresso no Mestrado em
Educacação da UNIOESTE, proponho a reflexão sobrea prática docente e aprofundo os
estudos sobre EI.
No Brasil, as primeiras instituições de educação infantil foram implantadas no final do
século XIX e no início do século XX. Segundo Rosemberg (2002), a história da EI brasileira
está marcada por um modelo de ‘‘educação para a subalternidade’’, direcionada a políticas
assistencialistas e compensatórias, para suprir as carências sociais e culturais das crianças
advindas da classe trabalhadora, seguindo princípios da ideologia liberal burguesa
relacionados à adaptação e submissão.
Para entender a condição da EI como processo institucionalizado, cabe destacar alguns
elementos históricos dessa relação educativa. Conforme Ariès (1978),a criança pequena, na
antiguidade, foi vista como um ser imaturo, incapaz, cujas falas sempre foram
desconsideradas. Segundo Marchi (2011), com base nos estudos de Benjamin, foi a partir do
século XX, que se inicou uma mudança nas formas de compreender a infância, com a qual a
3
Berçário: turma de bebês, com idade entre quatro meses e um ano.
12
criança passa a ser entendida como um sujeito histórico e social, que se constitui nas
interações humanas.
A compreensão da criança nessa perspectiva e no interior de uma instituição implica
pensarsobre as condições que a EI dá para que a criança possa compartilhar suas ideias,
medos, anseios, alegrias, enfim, para tornar-se sujeito participativo nos processos de ensino e
aprendizagem, e sobre as possibilidades que a escola de EI estabelece para tornar as práticas
de linguagem verbal momentos de verdadeiras interlocuções.
A linguagem verbal é, na EI, a principal forma de expressão da criança. É por meio da
linguagem que ela conhece o mundo e interage com ele. Por isso, percebo a importância de
possibilitar momentos para que a criança desenvolva sua expressão linguística, com vistas a
potencializarsua formação como sujeito no processo de conhecimento. Nesse movimento, a
Roda de Conversa (RC) diária é um importante instrumento utilizado na EI para o
desenvolvimento da expressão, como prática de formação humanaque pode levar à
emancipação.
Como educadora, compreendo as atividades de RC como uma atividade permanente4
na EI, uma prática que propicia o trabalho com a linguagem verbal, que estimula as
capacidades interlocutivas das crianças, a troca de ideias, a representação do universo infantil
e possibilita a transmissão de saberes escolares – elementos destacados nas pesquisas de
Alessi (2011), Brito (2006), Bombossaro (2010) e Ryckembach (2011).
Dessa visada, decorre a necessidades de nós, professores da EI, promovermos espaços
para compreensão e questionamentos das práticas antidemocráticas e das contradições
presentes na realidade, no trabalho com a educação na EI. É nessa perspectiva que poderemos
atuar a favor da classe trabalhadora, para a formação de crianças criativas5, que tenham
compreensão do mundo em que vivem, que saibam se posicionar e seconstituam sujeitos
conscientes e inquietos com as condições de desigualdade.
Enquanto educadora, percebo a importância da perspectiva histórico-cultural e
dialógica da linguagem como uma teoria que responde às questões e necessidades da
realidade do trabalho educativo porque se pauta em pressupostos teóricos que explicam o
desenvolvimento do sujeito a partir das relações socioculturais.
De acordo com Sirgado (1990), a psicologia histórico-cultural é fundamentada na
4
Atividade que faz parte da rotina da EI, ocorre com frequência e que alia o ensino, o cuidado e a educação.
5
Consideramos o conceito de criatividade que, a partir de Vigotski, fundamenta-se na ideia de atividade
criadora, no sentido de que a criação é condição necessária da existência humana e que ‘‘não emerge do nada,
mas requer um trabalho de reconstrução histórica e participação da criança na cultura’’(VIGOTSKI, 2009, p.
18).
13
abordagem dialética e distancia-se das demais correntes da psicologia que propunham analisar
o objeto sem investigar o processo de transformação histórica. A constituição da consciência
humana é fruto de um processo de incorporação histórica da cultura, realizada a partir da
linguagem e do trabalho.
Por compreendermos o relevante papel da linguagem no desenvolvimento humano,
explicado a partir da psicologia histórico-cultural (VYGOTSKY, 2009) e da teoria dialógica
da linguagem (BAKHTIN, 2006), pressupomos a RC como um importante instrumento
didático-metodológico que pode conduzir à organização de espaços de diálogo, partilhas de
ideiase debates. Na EI, se for trabalhada em prol da educação emancipatória, essa
atividadepoderá criar condições para que as crianças, de forma coletiva, discutam
problemáticas, exponham opiniões, sentimentos, angústias, superações, como, também,
possibilitará, de forma sistematizada,a constituição de conhecimentos.
O domínio teórico-metodológico do professor é condição fundamentalpara que ele
possa conduzir o diálogo, de forma a valorizar a singularidade infantil, sem negar a
importância do ensino e a transmissão dos saberes escolares, desde a infância.
A partir do exposto, nosso objetivo de pesquisa é analisar os elementos formativos das
práticas educativas com a linguagem verbal, nas RCs realizadas com um grupo de crianças de
três a cinco anos, de três instituições de EI do município de FB. Pretendemos, por meio da
pesquisa, contribuir para uma análise crítica e reflexiva sobre as práticas de linguagem na EI e
as possibilidades que são oferecidas às crianças para desenvolverem sua expressão.
Para tanto, temos, como objetivos específicos, analisar as RCs dirigidas pelas
professoras com as crianças de três a cinco anos, nas instituições contexto da pesquisa;
investigar como as práticas educativas com a linguagem verbal são concebidas, organizadas e
propostas nos documentos orientadores do trabalho com a EI, nessas instituições; analisar a
atuação do professor ante a apropriação da linguagem e o desenvolvimento linguístico da
criança, nesse contexto; e identificar os elementos formativos nas interações das RCs.
Para a abordagem do objeto e realização desta pesquisa, selecionamos alguns
conceitos dispostos pela teoria histórico-cultural, de Vigotski, e pela perspectiva dialógicada
linguagem do Circulo de Bakhtin6, dentre os quais destacamos como principais: signo,
mediação semiótica, interação verbal, ideologia,dialogismo, responsividade, gêneros do
discurso,enunciado/enunciação, por serem constitutivos da linguagem e do sujeito sócio-
6
O Círculo de Bakhtin integrado por Mikhail Bakhtin (1895-1975), Valentim Volochínov (1894-1938) e Pável
Medviédev (- - 1938) entre outros intelectuais, ocorreu entre 1919 e 1929, na Rússia, com estudos de
temáticas sobre: linguagem, filosofia, ética, estética.
14
histórico.
A linguagem, na perspectiva da psicologia histórico-culturale teoria dialógica, situa-se
como elemento primordial para o desenvolvimento do sujeito, com base na interação
comooutro, o meio social e a cultura. Assim, a corrente teórica aponta caminhos sobre o
processo de humanização pautado na interação entre os indivíduos.
O método que nos permitirá refletir sobre nosso objeto de pesquisa, nas suas relações e
determinações é o materialismo histórico dialético, perspectiva teórico-metodológica pela
qual a realidade é prática social e é resultado de um processo de transformação histórica,
permeado por diversas relações de poder ocultas ideologicamente.
De acordo Lefebvre (1995), que se fundamenta em Marx, o método dialético procura
captar a ligação, a unidade, os movimentos que engendram os contraditórios, que os opõem,
que fazem com que se choquem, que os quebram ou os superam. Para Frigotto (1991, p.75),
‘‘A dialética situa-se, então, no plano da realidade, no plano da história, sob a forma de
tramas de relações contraditórias conflitantes, de leis de construção, desenvolvimento e
transformação de fatos’’.
Dessa maneira, pesquisar a partir do método dialético significa, em nosso estudo,
refletir sobre a realidade, a escola, o ensino, e, principalmente, sobreo papel da educação na
humanização da criança da EI e como vem sendo oferecida à classe trabalhadora, para que ela
venha a se liberar das condições históricas de opressão e submissão. O materialismo histórico-
dialético permite fazermos questionamentos sobre o real, com base numa perspectiva
histórica, repleta de contradições e determinações sociais, e cabe a nós, como educadores,
posicionarmo-nos como classe trabalhadora a favor da escola pública que tem o papel de
transmitir o conhecimento.Não qualquer conhecimento, mas, sim, o conhecimento
clássico,elaborado e acumulado durante milhares de anos pelas gerações precedentes.
Com base no método dialético, utilizaremos uma abordagem metodológica
qualitativa de cunho etnográfico, por se tratar de uma metodologia de pesquisa que permite
maior proximidade com a realidade e inserção no ambiente pesquisado. A pesquisa de tipo
etnográfico propõe como elemento primordial ao pesquisadora observação e análise das
interações. Delgado (2005),em estudo sobre a metodologia de pesquisa com crianças,
salienta a etnografia como metodologia (de pesquisa)que visaa compreender a realidade,
através das interpretações dos sujeitos e, assim, conduz a um novo olhar sobre as crianças,
como capazes de dar diversos significados às relações que vivenciam culturalmente com os
adultos e com outras crianças. A pesquisa de cunho etnográfico permite refletir sobre os
15
aspectos simbólicos e culturais da ação social, que são fundamentais na análise dos
enunciados das crianças, nas RC (DELGADO, 2005).
Pelos instrumentos da pesquisa etnográfica, procuramos analisarcomo vêm sendo
desenvolvidas as práticas de linguagem na Educação Infantil, e quais os espaços e tempos
destinados para interação verbal da criança de três a cinco anos, em três
instituiçõeslocalizadas na Cidade Norte7de Francisco Beltrão-PR, uma no bairro
Pinheirinhoeduas no Bairro Jardim Floresta.
Buscamos registrar as RC e analisar, a partir do referencial teórico apontado, se as
práticas de interação verbal possibilitam ao sujeito-criança interagir verbalmente ao
expressar suas ideias, sentimentos, angústias e seus saberes ou se prevalece o discurso
fechado, mascarado de diálogo em que práticas não contribuem para uma aprendizagem com
significado pela criança.Na análise, consideramos que os enunciados da RCs não são
desvinculados do embate ideológico, mas convergem para um modo de produção social em
que se evidenciam visões de mundo dos sujeitos em confronto nas interações verbais.
A coleta de dados foi realizada a partir de gravação de áudio das RCsrealizadas em
turmas8 do Maternal II, Pré-I e Pré-II, no município de FB, com crianças entre 3 e 5 anos,
das escolas selecionadas; entrevista semiestruturada com professores da EI das respectivas
turmas; eanálise de documentos das propostas pedagógicas e curriculares dos âmbitos
educativos.
A apresentação da pesquisa está organizada em três capítulos. No primeiro, intitulado
‘‘A Roda de Conversa na Educação Infantil’’,iniciamos com uma discussão sobre a
constituição da infância como categoria social e a concepção de criança como sujeito
histórico. Também, buscamos apresentar elementos da RC nas pesquisas na área da
educação, mediante revisão de literatura sobre o tema; posteriormente,apresentamos os
documentos e as orientações que fundamentam o trabalho com a linguagem verbal, no
contexto da pesquisa, e apresentamosas instituições em que foi realizada a pesquisa,
destacando algumas compreensões sobre como as professoras participantesconcebem a RC e
sua finalidade educativa. Em nossa pesquisa, análises e reflexões sobre os dados produzidos
no campo ocorerrão, também, no decorrer dos capítulos.
No segundo capítulo, ‘‘A linguagem e a criança’’, destacamos a linguagem como
condição constitutiva para formação da consciência humana e apresentamos os pressupostos
7
A urbanização de FB é dividida entre Centro e Cidade Norte, localida na região Norte do Município.
8
A instrução normativa municipal n° 001/2014 estabelece a disposição das turmas por idade na
EducaçãoInfantil (0 a 5 anos): Maternal –II (2 a 3 anos) Pré-I (3 a 4 anos) e Pré-II (4 a 5 anos)
(FRANCISCO BELTRÃO, 2014).
16
teóricos que fundamentam nossa análise:as contribuições da perspectiva dialógica de
linguagem de Bakhtin (2006) e seus colaboradores e da psicologia histórico-cultural de
Vigostki (2009).Posteriormente, apresentamos a RC como gênero discursivo, a partir de
categorias de análise identificadas nos estudos da obra de Bakhtin.
No último capítulo, ‘‘A constituição do ser criança nas interações da Roda de
Conversa’’, realizamos uma análise das RCs, fundamentada em três categorias principais,
construídas no movimento de produção dos dados, em articulação com os estudos ao longo
da pesquisa: (I) os conteúdos culturais no movimento da Roda9; (II) as interações verbais
movimentam a Roda: dialogismo e polifonia e (III) elementos formativos da RC.Neste
sentido, procuramos analisar as potencialidades da RCcomo espaço discursivo/ formativo no
âmbito da EI.
As considerações finais retratam uma análise geral da pesquisa, principalmente, no
que se refere aos objetivos estabelecidos no início desse processo. Com elas, apresentamos
os resultados e nossas considerações em relação ao término do trabalho, evidenciamos que a
Roda possui rico potencial formativo, na medida em quepromove o diálogo, a valorização da
singularidade infantil, a relação entre o saber cotidiano e o saber científico, a construção de
valores e saberes culturais, a democratização do saber e tem elementos potenciais àformação
integral da criança. Nessa perspectiva a RCpossibilita seguir sobre uma prática
emancipatória.
9
Ao longo da dissertação, as expressões RC e Roda são usadas como sinônimas de Roda de Conversa.
17
CAPITULO I
A RODA DE CONVERSA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
10
No sentido etimológico, a palavra infância tem origem no Latim infantia, formado por in-, negativo, mais
fari, “falar”, ou seja, aquele que não fala.
18
sujeito.Através da linguagem, a criança desenvolve a interpretação da realidade em que está
inserida, ao participar das interações sociais, pelas quais se concretiza um processo dialético
de transformação da realidade, mas, também, do sujeito. De acordo com Jobim e Souza (2008,
p.22), nessaperspectiva, a criança deixa de ser um objeto a ser conhecido ereconquista seu
lugar de sujeito e autora no mundo. Como sujeito, autora de sua palavra, expressa
representações que tem dos espaços sociais. Assim, não é mais o adulto que fala pela criança,
mas é a voz infantil que emerge a partir de suas necessidades subjetivas.
Por isso, destacamos a importância da EI, como período em que a criança está em
intenso desenvolvimento da linguagem e da apropriação de conhecimentos sobre o mundo,
portanto, momento privilegiado de práticas desencadeadoras de aprendizagem. A interação,
na EI, é eixo articulador para a construção de uma educação para a humanização.
Contudo, a criança nem sempre foi vista como um sujeito social que tem o direito de
expressar-se. A voz infantil, por muito tempo foi ignorada, desprezada, vista sob um olhar de
imaturidade ou ingenuidade. A obra de Philippe Ariès(1978), ‘‘História social da criança e da
família” destaca-se como pesquisa pioneira sobre o surgimento do sentimento de infância. O
autor aborda, mediante uma pesquisa iconográfica, um estudo sobre a criança, desde o
período medieval, e afirma que, até então, o sentimento de infância era inexistente, e a criança
era vista como um adulto em miniatura.
A esse respeito, Sarmento (2015), estudioso de Ariès,argumenta:
19
XVI e XVII foram marcantes, pois neles as crianças passaram a usar trajes próprios à sua
condição, o que alavancou o sentimento de infantilidade como sinônimo de graciosidade,
ternura e ingenuidade (ARIÈS, 1978).
A obra, também, apresenta o surgimento da família nuclear como de suma importância
para a consolidação desse sentimento, porque ele afeta tanto as famílias elitistas como as das
classes populares. Conforme Ariès (1978), o sentimento de infância surge na modernidade
devido a duas atitudes contraditórias dos adultos. Uma que considera a criança ingênua, pura,
reduzida pelo sentimento que o autor denomina “paparicação”, e outra em que nasce a ideia
da criança enquanto ser imperfeito e incompleto, e o adulto com o papel de “moralizá-lo e
vigiá-lo”. Ainda, segundo o autor, a infância não foi reconhecida e praticada por todas as
crianças de maneira homogênea, pois a condição social e econômica, sempre, determinava a
configuração de infância vivida.
Kramer (1996), ao analisar a obra deAriès conclui que:
Fica claro, pelas palavras da autora, que a concepção de infância construída ao longo da
história da humanidade foi se modificando de acordo com o mundo de trabalho.Isto é, o
modelo de infância é influenciado historicamente por laivos ideológicos produzidos numa
sociedade de classes, muitas vezes, movida por condições econômicas, políticas e sociais.
Podemos perceber que a ideia de infância, nesse sentido, extrapola uma categoria relacionada
à idade cronológica, mas é uma esfera dialética, influenciada pelas tranformações sociais.
Existem vários indícios apontados por outros autores que contestam a teoria de Ariès,
de que o sentimento de infância teria surgido na modernidade. Arce (2012, p. 10), por
exemplo, recorrendo a Nérandau11, afirma que o sentimento de ternura pela criança já existiria
na era cristã, no período da antiguidade, pois o amor paternal e maternal era incontestável
desde a organização social grega e romana.
Marchi (2011) destaca que o pioneirismo das obras de Walter Benjamin é anterior a
11
NÉRANDAU, J.P. Étre enfant à Rome. Paris, Pour I’ Edition de Poche, Edition de Poche, Editions Payot &
Rivages, 1996.
20
Ariès, que publica sua principal obra na década de 1970. A autora, afirma que Benjamin
realizou suas primeiras publicações sobre a infância desde os anos 20 do século XX, pelas
quaisincorpora uma teoria social sobre a infância que vê a criança como produtora de cultura.
Aponta, também, dois elementos para os escritos de Benjamin não terem tido repercussão e
reconhecimento como pioneiros. Primeiro, porque seus escritos não apresentam uma
sistematização temática sobre a infância, e, também, porque seu trabalho não consiste em uma
pesquisa histórica sobre o sentimento de infância, como fez Ariès. No entanto, para a
estudiosa, Benjamin, pode ser considerado um historiador sócio-cultural, precursor da
abordagem sociológica de infância. Walter Benjamim escreve, principalmente, sobre
educação, criança, brinquedos e livros, retratando as culturas infantis a partir de trabalhos com
descrições e reflexões de memórias de sua infância, especialmente na obra Infância em
Berlin12(BENJAMIN, 1994).
A perspectiva benjaminiana é pautada numa pedagogia comunista e proletária, pela
qual se reconhece que a divisão de classes configura e transforma a infância, que essainfância
se difere de acordo com o contexto socioeconômico da criança (MARCHI, 2011). Para
Benjamin, esse sujeito não deve ser visto de modo ‘‘infantilizado’’, mas como um ator social
de plenos direitos, e a infância como uma construção histórica. A autora retrata a perspectiva
de infância proposta por Benjamin, do seguinte modo:
12
A Infância em Berlim por volta de 1900. In Benjamin, Walter. Obras Escolhidas II Trad. Sérgio Paulo
Rouanet. São Paulo. Editora Brasiliense, 1994.
21
naturalização da infância, compreendendo a criança como sujeito histórico, produto da cultura
e das relações sociais.
Quinteiro (2002), estudiosa brasileira da Sociologia da Infância, salienta que, no
Brasil, apesar de haver crescimento no percentual de pesquisa sobre a EI, com diversidade de
temas, elas ainda têm foco especialmente empírico, com ausência de debates teóricos. Para a
autora, as principais temáticas retratam a história social da infância; as condições precárias de
sobrevivência das crianças e de suas famílias; o descaso do Estado perante a criança como
sujeito de direitos; e, principalmente, a educação das crianças que frequentam creches e pré-
escolas.
Para Quinteiro (2002), o crescimento de pesquisas no campo da Sociologia da Infância
fez com que a participação das crianças no processo educativo não mais fosse compreendida
sobre aspectos exclusivamente psicológicos, mas, também, sociais, econômicos, políticos, e
históricos. A criança passou a ser interpretada como um sujeito de direitos, que possui
capacidade de construir representações simbólicas sobre a cultura. No entanto, a autora
destaca que ainda têmsido negligenciadas as vozes infantis, subestimando sua capacidade de
produtoras de cultura infantil. Pouco se discute sobre o que pensam, o que sentem, o que
aprendem, como aprendem, o que falam e o que gostariam de falar as crianças, e, ainda, sobre
as relações de poder entre o adulto e a criança. Tais problemáticas constituem-se temas
indispensáveis para a compreensão das culturas infantis.
Quinteiro (2002) ainda acrescenta que, no campo da psicologia, Vigotski (2009)
buscou romper com a tradição de pesquisa sobre o desenvolvimento infantil.A partir de
princípios teórico-metodológicos do materialismo-histórico, Vigotski (2009) concebe a
interação como elemento principal da aprendizagem, que ocorre pela mediação de
instrumentos semióticos constituídos na linguagem. Isto é, a criança deixa de ser vista como
um sujeito biológico em maturação, para ser compreendida como sujeito histórico que
aprende na interação social.
24
intenso desenvolvimento da linguagem e da apropriação de conhecimentos sobre o
mundo.Portanto, trata-se de momento privilegiado para práticas desencadeadoras de
aprendizagem. A interaçãopela linguagem, na EI, é eixo articulador à construção de uma
educação para a humanização. Tal condição implicaassumir práticas, na EI, que considerem a
criança na sua concretude histórica, como sujeito que se constrói na e pela linguagem.
Afirmamos a EI como espaço privilegiado para a inserção de prática linguageiras, que tenham
como objetivouma formação emancipatória.
De acordo com Mello (2010), o enfoque histórico-cultural percebe o ser humano como
produto historicizado da sociedade e da cultura em que está inserido.Assim, o
desenvolvimento humano é resultado do processo de aprendizagem ocorrida em todas as
relações culturais de que participa. Nessa perspectiva teórica, ‘‘o desenvolvimento deixa de
ser entendido como natural e passa a ser entendido como cultural, social e historicamente
condicionado (MELLO, 2010, p.55)’’. Dessa premissa, deriva que as formas de experiências
educativas que propomos às crianças podem possuir caráter de impulsionadoras de
desenvolvimento.
A RC, voltada para formação humana emancipatória, apresenta-se como esse espaço,
que busca romper com a visão de criança ‘‘incapaz, frágil’’, pois a criança produtora de
cultura dialoga sobre o conhecimento e expõe ideias, a professora não age como facilitadora,
mas atua como participante do diálogo, que considera e valoriza a subjetividade infantil, como
papel de transmissão democrática do saber. Fica portanto, para a organização da EI, a tarefa
de considerar o papel da cultura como fonte das qualidades humanas, de extrapolar a
experiência cotidiana da criança pequena, para inseri-las nas experiências culturais complexas
da espécie. A RC apresenta-se como elemento da rotina da EI que visa a trabalhar de modo
indissolúvel o ensino, o cuidado e a educação, mediante relações dialógicas que promovam a
apropriação cultural.
Em acordo com tais reflexões, buscamos, napróxima seçãoapresentar a RC como
atividade presente da rotina da EI e explorar suas possibilidades para a formação da criança
nessa etapa. Também, contextualizamos o campo de pesquisa a fim de apresentar as
concepções das professoras, sujeitos da pesquisa, sobre a finalidade e a organização da prática
da RC, analisando como a atividade se constitui no universo das práticas que a escola realiza
para o desenvolvimento da criança de três a cinco anos, nas escolas do contexto da pesquisa.
25
1.2 A Roda de Conversa como atividade formativa na Educação Infantil
A RC tem sido compreendida, no contexto escolar, como um espaço de exercício
democrático, que privilegia o estabelecimento de diálogos, debates e troca de ideias. Na
atualidade, especialmente na EI, essa atividade constitui-se como elementofrequente da
organização didáticae metodológica, como forma de subsidiar um trabalho com a linguagem
oral e valorizar a produção infantil.
A RC é instrumento regularmente utilizado no cotidiano da EI para o trabalho com os
contéudos escolares, mas, também, é um método de pesquisa que permite ao sujeito expressar
sua singularidade. Para Moura e Lima (2014, p.99), A RC, constitui-se, no âmbito da
pesquisa narrativa, um mecanismo que possibilita a partilha de experiências e o
desenvolvimento de reflexões sobre diversas temáticas, em um processo mediado pela
interação com os pares, por meio de diálogos internos e no silêncio observador e reflexivo.
Moura e Lima (2014) identificam a RC como instrumento de investigação de natureza
qualitativa, uma abordagem legítima de busca do conhecimento científico. Através daRoda, é
possível explorar os significados criados pelos sujeitos e pelos grupos sociais em relação a um
problema social.
Segundo Moura (2014, p.100), o sujeito é sempre um narrador em potencial. O fato é
que ele não narra sozinho, masreproduz vozes, discursos e memórias de outras pessoas, que se
associam à sua no processo de rememoração e de socialização, e o discurso narrativo, no caso
da RC, é uma construção coletiva.No contexto da produção de dados, o pesquisador deve
compreender que as memórias culturais e individuais estão intimamente ligadas. Para Moura
(2014), a Roda de Conversa constitui-se como um mecanismo de produção de dados da
pesquisa narrativa, em que é possível haver uma reflexão coletiva, na medida em que se criam
espaços de diálogo e dabate.
Na EI, a RC torna-se reconhecida como importante instrumento democrático que
propicia a interação entre os sujeitos, que se constituem pela linguagem. O Referencial
Curricular Nacional para Educação Infantil (RCNEI) concebe-a como:
27
Quadro1.Síntese da revisão de pesquisas sobre linguagem e Roda de Conversas
Pesquisas na área da Estado Instituição Período Fonte Nível da
linguagem verbal e da Roda pesquisa
de Conversa
PAN, Mirian Aparecida PR UFPR 1995 Biblioteca Dissertação
Graciliano de Souza. Infância depositária
e discurso: contribuições para
avaliação de linguagem. UFPR 13
13
<http://dspace.c3sl.ufpr.br>
14
<http://nou-rau.uem.br>
15
<http://www.periodicos.capes.gov.br>
16
<http://bancodeteses.capes.gov.br>
17
Os estudos de De Angelo (2004), Silva e Almeida (2014) e Motta (2009) são artigos científicos, por isso, não
estão citados no quadro 1.
28
como a linguagem verbal na constituição da consciência e no desenvolvimento das funções
psíquicas superiores e o papel do ensino no processo de humanização. Esses elementos estão
presentes nas pesquisas de Pan (1995),Prado (2005) eFlores (2012). Posteriormente, nossa
investigação orientou-se mais especificamente paraa RC, e procuramos analisar o potencial
formativo da RC na EI, com fundamentos na teoria histórico-cultural de Vigostki ena
perspectiva dialógica de Bakhtin, destacados nas pesquisas de Bombossaro (2010), Brito
(2006) e Ryckebusch (2011). Os estudos de De Angelo (2004),e Silva e Almeida (2014) e
Prado (2009) também salientam a RC como espaço democrático de interação verbal, como
um momento de troca de ideias, negociações e como instrumento de ensino na EI.
Pan (1995),em sua dissertação, ‘‘Infância e discurso: contribuições para a avaliação da
linguagem’’ busca relacionar as contribuições da psicologia histórico-cultural de Vigotski e a
concepção dialógica da linguagem explicitada por Bakhtin. A autora destaca a importância da
interação verbal, para a configuração de um espaço dialógico de transformação dos
enunciados infantis.
[...] somente a interação verbal poderá oferecer as condições de análise para
as constantes mudanças e alterações dos enunciados infantis, permitindo
uma visão dialética entre os aspectos formais da linguagem e os aspectos
relacionados ao seu conteúdo, em relação às formas de atividade da criança.
Os enunciados infantis são, portanto, a revelação viva da linguagem na
infância, sendo o movimento da criança diante dos enunciados simples e
complexos de seu mundo, indicativo de sua natureza social (PAN, 1995,
p.38).
18
Zoia Prestes (2010) propõe a expressão Zona de Desenvolvimento Iminente (ZDI) em substituição à Zona de
Desenvolvimento proximal, nesse sentido, optamos por adotar essa nomenclatura, doravante.
30
entraves encontrados pelos docentespodem ser fruto de precárias condições de trabalho, não
aponta que essas carências possam ser implicações de formação inicial carente em
embasamento teórico-metodológico.
Na mesma linha, Flores (2012) destaca a linguagem como elemento vital no
desenvolvimento das “funções psicológicas superiores”, próprias da espécie humana,
representadas nas habilidades de planejar, memorizar, imaginar, entre outras funções
específicas do ser humano e que se diferem de funções psíquicas elementares originárias de
processos biológicos. A autora pressupõe três mudanças fundamentais no sujeito que são
impulsionadas pela linguagem, quais sejam, a capacidade de ideação, ou seja, lidar com
objetos do exterior, mesmo que eles estejam ausentes; os processos de abstração e
generalização, que possibilitam a formação de conceitos, ordenação e categorização; e a
função comunicativa, de intercâmbio de ideias e informações.
Fundamentada nos pressupostos da psicologia soviética, Flores (2012, p.22) busca
19
Luria , para explicitar a relação entre linguagem, pensamento e memória, funções que não
podem ser interpretadas como ‘‘capacidades meramente localizadas em áreas cerebrais
específicas, mas precisam ser considerados como sistemas funcionais complexos’’. Considera
que ‘‘o desenvolvimento cerebral é flexível, tanto no aspecto estrutural quanto no
funcionamento e é moldado por aspectos filogênicos (elementos referentes à espécie humana)
e ontogênicos (componentes referentes ao indivíduo)’’, o que torna o homem um ser
essencialmente social e histórico, transformado a partir da cultura.
Nesse sentido, a pesquisadora reforça que a função da instituição de EI e,
consequentemente, dos professores, vai além dos aspectos relacionados ao cuidado, poistemos
a importante finalidade deapresentar a cultura elaborada à criança, desde seus primeiros anos
de vida.Por isso, a autora afirma que a linguagem não deve ser trabalhada na EI numa
perspectiva que busca recompensar a criança que fala corretamente,mas, encarada como
elemento de interação que possibilite situações reais de comunicação e uso (da linguagem)
num contexto dialógico. No que concerne à apropriação da linguagem oral pela criança,
Flores (2012) aponta a possiblidade de ampliação da capacidade comunicativa, já que, a partir
desse momento, a criança utiliza-se da linguagem oral para mediar as relações com seus
pares.
Assim, a RC é citada pela autora, como uma atividade que deveria constituir-se como
diária e permanente na EI. No entanto, constata, em sua pesquisa, que ela não é realizada com
19
O autor refere-se à LURIA, A. R. A Construção da Mente. São Paulo: Ícone, 1992.
31
frequência, apesar de sua possibilidade de envolver a criança em um contexto dialógico. As
professoras justificam, perante entrevista, que a ausência dessa atividade decorre da
dificuldade de condução das crianças e, também, porque as docentes acreditam que as
crianças com comportamento mais falante no cotidianodominam as atividades de fala, em
detrimento das crianças que precisariam exercitar mais a linguagem. A autora aponta a
necessidade de orientar as educadoras sobre seu papel no momento das RCs.
Alessi (2011), com a pesquisa intitulada ‘‘Roda de Conversa: uma análise das vozes
infantis, na perspectiva do Círculo de Bakhtin’’, traz grandes contribuições para análise do
discurso infantil fundamentado nos pressupostos bakhtinianos.A autora aborda questões
relativas às categorias de Bakhtin durante sua reflexão sobre as falas das crianças, afirmando
que cada enunciado precisa ser analisado, considerando o contexto imediato em que foi
produzido, como, também, os discursos anteriores que contribuíram para a constituição do
sujeito, enfim, considerar‘‘uma complexidade de fatores que tornam esse enunciado único’’.
A pesquisadora salienta a importância das RCs como instrumentos que possam
viabilizar a interação socioverbal, possibilitando que as crianças possam expressar suas ideias,
evitando que as práticas de RCs se restrinjam a aspectos temático-informativos, rígidos e
limitadores da curiosidade e imaginação infantil, com a superação da relação controladora
adulto-criança. A pesquisa traz elementos significativos para que possamos pensar a RC como
instrumento discursivo/formativo no ensino da EI.
Bombassaro (2010), em sua dissertação‘‘A Roda na Escola Infantil: aprendendo a
Roda aprendendo a conversar’’parte de uma concepção pragmatista de linguagem,
fundamentada nos pressupostos de Peirce20, destaca que ‘’o signo não é o objeto em si, e nem
o interpretante, mas uma produção do interpretante sobre o objeto’’ (BOMBOSSARO, 2010,
p.32). Embora numa fundamentação diferente das pesquisas anteriormente citadas, seus
resultados são importantes. Apontam que,muitas vezes,essa prática é reduzida a uma
estratégia do professor para a realização da chamada, preenchimento do quadro do tempo e
calendário, utilizada como informativo da rotina, ou como forma para sortear o ajudante do
dia. Para a autora, ocorre uma carência nas pautas das rodas, pois o repertório, no máximo
chega a questões sobre ‘‘o que fizeram no final de semana’’ ou ‘‘conte alguma novidade para
a turma’’, sem estar embasado em um planejamento pedagógico sistematizado,por isso, não
permite exploraçõessobre as capacidades de interlocução da criança.
Nessa mesma ótica, Brito (2006), com a pesquisa em nível de mestrado, ‘‘O
20
PEIRCE, C. S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1995.
32
movimento discursivo nas rodinhas de crianças de quatro e cinco anos da creche UFF 21’’,
assinala que a RC é diversas vezes utilizada para realização do planejamento colaborativo da
rotina diária, chamada, relato das próprias histórias pelas crianças, entre outras atividades.
Brito (2006) afirma a importância das ‘‘rodinhas’’, enquanto mecanismo de
negociações, como forma de abertura para que a criança venha opinar, sugerir, propor
mudanças. Mas destaca que a roda tem o papel primordial de fazer com que a criança amplie
seu universo de referência, por conseguinte, é imprescindível o domínio teórico e
metodológico do conhecimento por parte do professor, a fim de dar pistas às crianças, para
que possam reorganizar seus conhecimentos, até então baseados apenas em experiências
cotidianas.
Fundamentada na perspectiva histórico-cultural, com contribuições de Vigotski e
Bakhtin, a autora salienta, que a criança se utiliza da ‘‘rodinha’’, como momento para
questionar, opinar, planejar, brincar, narrar, falar de si mesmo e dos amigos, imaginar,
interpretar, denunciar, expressar desejos, necessidades, angústias, pois, através da linguagem,
ela se constitui como sujeito social, marca seu espaço no grupo, na relação com seus pares e
com o adulto. Por isso, a Roda é apontada como um espaço repleto de possibilidades para
estimular as competências discursivas da criança, a partir da interação e daconstituição de
conhecimentos.
Brito (2006) ressalta a necessidade de um forte investimento em práticas discursivas
no âmbito escolar, a fim de buscar a valorização de espaços que promovam o diálogo desde a
EI. Nesse sentido, não pode ser atribuída às RCs uma visão ligada ao espontaneísmo, como
forma de passar o tempo, fuga do trabalho pedagógico, mas, sim,um reconhecimento como
espaço coletivo de construção de conhecimento. Para a autora, é necessário um rompimento
do ideário de que a constituição dos saberes ocorre apenas quando a criança ouve, sem a
exigência de interferências; também que as práticas de discurso monológico e autoritário do
professor sejam substituídas por práticas de interação verbal, que possibilitem valorizar a
criança como sujeito social e histórico, sem retirar do docente o papel de organizador mais
experiente do saber.
Ryckebusch (2011), em sua pesquisa de doutorado, denominada ‘‘A Roda de
Conversa na Educação Infantil: uma abordagem crítico-colaborativa na produção de
conhecimento’’, busca embasamento teórico em Vigostki e Leontiev, a partir do conceito de
“Teoria da Atividade Sócio-Histórico-Cultural (TASHC)’’. A autora explica que a RC, nessa
21
Universidade Federal Fluminense - campus Niterói
33
perspectiva, é classificada como atividade. A psicologia soviética parte da premissa de que o
ser humano constitui a consciência e as condições materiais de sua sobrevivência por meio da
‘‘atividade’’. Ao interferir e modificar o contexto social e histórico, o sujeito modifica a si
mesmo através de um processo dialético de reorganização da vida material e psíquica que é
condicionado por sua atividade (trabalho e linguagem).
Ryckebusch (2011) se apropria do conceito de atividade22 desenvolvido por
Leontiev23,para categorizar a RC como atividade que conduz à transformação do sujeito
(aluno). A atividade, nessa perspectiva está relacionada às ações práticas do sujeito sobre o
mundo, sua atividade coletiva, referente ao uso de objetos. A atividade tem origem na
necessidade do homem, assim, orienta-se para a satisfação dessa necessidade. Quando esta é
satisfeita, desaparece, podendo aparecer novamente em outras condições, ou em relação ao
objeto modificado. A necessidade isoladamente não promove a atividade, somente quando
ligada ao objeto. O objeto da atividade é sempre o impulso real, que pode ser material ou
ideal, isto é, pode existir na dimensão perceptiva sensorial prática, ou somente na imaginação,
no pensamento. O objeto designa a atividade e é quem denota sua direção para conquista de
um resultado. O sujeito, para alcançar ou modificar o objeto, constitui relações mediadas por
artefatos materiais ou conceituais. O objeto só aparece numa atividade coletiva, porque ele
operacionaliza as necessidades, deste modo, ele se arranja para suprir as necessidades.
A pesquisadora também destaca as contribuições dos pressupostos de Bakhtin, para a
compreensão da RC sob um olhar colaborativo-crítico em que alunos e a professora-
pesquisadora se constituem mutuamente como sujeitos dialógicos no seu processo de ensino-
aprendizagem. Ou seja, o dialogismo representa a composição do sujeito diante do outro, o
‘‘eu no outro’’, através da negociação de sentidos para a produção compartilhada de novos
significados.
As RCs são apontadas por Ryckebusch (2011, p.51) como ‘‘espaço constitutivo de
modos de agir/papéis de alunos e professora-pesquisadora na produção conjunta de
conhecimento em uma sala de EI, mediados pela linguagem’’. Para a autora,
Atualmente, essa prática tem sido utilizada com diferentes fins, tais como:
buscar soluções de problemas surgidos no grupo; promover brincadeiras
cantadas e de grupo; discutir ou apresentar uma tarefa específica a ser
realizada; acolher as crianças; criar laços afetivos; acordar regras e
22
A atividade, na perspectiva hstórico-cultural, relaciona-se às ações práticas do sujeito sobre o meio social, sua
atividade coletiva, referente ao uso de objetos. A atividade tem origem na necessidade do homem, assim,
orienta-se para a satisfação dessa necessidade. A teoria da atividade foi desenvolvida por Leontiev (1978).
23
LEONTIEV, A. N. Actividad, conciencia e personalidad. Buenos Aires: Ediciones Ciencia Del
Hombre,1978.
34
combinados; relatar experiências vividas; contar histórias; discutir
encaminhamentos de trabalho e outras tantas que podem surgir da necessidade
de seus interagentes num contexto determinado. Suas diversas configurações
permitem a criação de contextos enunciativos vários, que mobilizam formas
particulares de uso da língua. São relatos, narrativas, prescrições de regras e
de ações, argumentações, que compõem sua dinâmica discursiva. Por
constituir-se como um espaço discursivo diverso, tornou-se consenso entre
as educadoras concebê-la como o local privilegiado para o desenvolvimento
da linguagem oral. Desse modo, a “Roda de Conversa” tem sido, no
conjunto das práticas pedagógicas, o espaço privilegiado do ensino vv da
oralidade (RYCKEBUSCH, 2011, p.40).
Para Silva e Almeida, a RC, quando encarada como uma ‘‘prática viva e dinâmica’’,
que permite o envolvimento das crianças, além de um instrumento pedagógico, também,
transforma-se em um mecanismo político de participação democrática das crianças, que
assumem papel ativo na construção do diálogo, ao problematizar, questionar, opor-se
(SILVA; ALMEIDA, 2014).
Motta (2009, p.191) acrescenta a necessidade de o professor reconhecer as diversas
significações criadas pela criança, como sujeitos históricos e culturais, pois, ao valorizar os
registros orais, criam-se condições para uma prática dialógica. ‘‘A fala da criança é o ponto
de partida e de chegada dessa transformação, desde que escutada junto à fala do adulto, para
que ambos, cada qual a partir de sua existência única, possam produzir outros sentidos [...]’’.
Compreendemos a RC como um espaço para trabalho com a oralidade com crianças
pequenas, pois faz parte da rotina diária ou semanal de algumas instituições. Essa atividade
oferece possibilidades para que a criança desenvolva a expressão, a capacidade de posicionar-
36
se em uma situação problema, de conhecer a visão do outro e de poder formar uma
consciência coletiva e individual. A ‘‘Roda’’ constitui-se como espaço democrático de troca
de saberes e experiências no processo educativo, na emersão de diversas vozes que refletem
também as relações de poder existentes no meio social.
Os estudos analisados reforçam o princípio de quea linguagem verbal configura-se
como condição constitutiva da formação humana. No âmbito educativo,a RC se constituicomo
espaço formativo na constituição da criança, que pode contribuir para umaeducação
emancipatória,com vistasà formação,na sua integralidade, considerando o discurso infantil
como atividade criadora.As pesquisas ressaltam a importância da RC como mecanismo de
valorização do enunciado infantil, de ampliação do universo de referência da criança, ou seja,
de incorporação de conhecimentos sistematizados. Trata-se de uma atividade que potencializa
opinar, criar, imaginar, interpretar, negociar, resolver problemas, constituir-se a partir do
outro, enfim, espaço democrático de troca de saberes.
A pesquisa que realizamos procurou avançar nos estudos sobre a RC. A partir de um
diálogo entre as teorias de Vigotski eBakhtin, buscamos, além de retratar a singularidade
infantile a valorização da voz da criança, discutir o papel social da escola e, nele, o caráter
potencial da RC como instrumento formativo na aprendizagem de saberes escolares e
culturais, com vistas aimplicar ou não diretamente nodesenvolvimento infantil.
Nessa perspectiva, considerando nossos objetivos de analisar a RC como prática de
linguagem constituidora da formação, no espaço escolar da EI,estendemos nosso olhar aos
documentos que orientam o processo educativo dessa etapa, tais como as Diretrizes
Curriculares (BRASIL, 2009) e os planos do município e das escolas (FRANCISCO
BELTRÃO, 2006), paraanalisar como o trabalho com a linguagem verbal está neles
disposto. Nosso propósito é investigar como esses documentos tratam a linguagem verbal e
como orientam o professorpara o trabalho na área – o que apresentamos na próximaseção.
37
2010 (BRASIL, 2009).Esse documento representa um avanço para a EI, pois propõe a
elaboração de uma proposta curricular pautada em dois eixos norteadores: interações e
brincadeiras.
Nas DCNEIs, os artigos 8° e 9° ressaltam que o trabalho com a linguagem deve
ocorrer através do contato da criança com os diversos gêneros linguísticos, a fim de que possa
apropriar-se da cultura, mediante a garantia de experiências que:
Compreendemos que esse documento retrata uma conquista para o trabalho na EI que,
desde seu surgimento no contexto brasileiro, nos séculos XIX e XX24(Oliveira, 2010), foi
encarada a partir de um viés assistencialista. As DCNEIs destacam a importância da imersão
da criança em uma cultura que lhe possibilite expressar-se de diversas maneiras, com ênfase
em um trabalho a partir de gêneros orais e escritos. Nesse sentido, o documento reconhece a
importância da EI como espaço de aprendizagem e desenvolvimento infantil.
AS Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para Educação Básica, de 2013,
enfatizam a importância do trabalho com a linguagem verbal e a necessidade da
sistematização dessa prática.
É importante lembrar que dentre os bens culturais que a criança tem o direito
a ter acesso está a linguagem verbal, que inclui oral e escrita, instrumentos
básicos da expressão de ideias, sentimentos e imaginação. A aquisição da
linguagem oral depende das possibilidades das crianças observarem e
participarem cotidianamente de situações comunicativas diversas onde
podem comunicar-se, conversar, ouvir histórias, narrar, contar um fato,
brincar com palavras, refletir e expressar seus próprios pontos de vistas,
diferenciar conceitos, ver interconexões e descobrir novos caminhos de
entender o mundo. É um processo que precisa ser planejado e continuamente
trabalhado (BRASIL, 2013, p.94).
24
O século XX representa, para a história da EI brasileira, uma gama de transformações, principalmente, no que
se refere a políticas de assistência à infância. Trata-se de reconhecer as precariedades do atendimento à
infância e a sua condição de vulnerabilidade, e, para isso, era necessário oferecer uma ‘‘educação popular’’. A
EI voltada àscrianças de 0 a 3 anos preocupava-se com questões relacionadas ao cuidado e preservação física
da criança, enquanto que as políticas para atendimento às de 0 a 6, empenhava-se em ofertar uma educação de
cunho compensatório, voltado a compensar as ‘’carências culturais’’ dessas crianças, portanto, pretendia-se dar
início àalfabetização (Oliveira, 2010).
38
Observamos que a orientação para a educação básica sustenta-se em uma perspectiva
que enfatiza a necessidade de dar acesso à cultura para a criança em todas as faixas etárias,
pois a função da escola é transmitir-lhes os bens culturais produzidos historicamente pela
humanidade. E a criança, como sujeito histórico, torna-se integrante ativo desse processo
através do uso da linguagem verbal.
Smolka (2009), ao comentar a obra ‘‘Imaginação e criação na infância’’, de Vigotski,
salienta que
O desenvolvimento da criança encontra-se, assim, intrinsecamente
relacionado à apropriação da cultura. Essa apropriação implica uma
participação ativa da criança na cultura, tornando próprios dela mesma os
modos sociais de perceber, sentir, falar, pensar e se relacionar com os outros
(SMOLKA, 2009, p.8).
O destaque para o trabalho com a linguagem verbal não aparece somente nos últimos
documentos norteadores para o currículo da EI. Esse debate já vem sendo travado desde a
aprovação do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEIs), em 1998,
um documento organizado em três volumes25. A problemática da linguagem é tratada,
previamente, no primeiro volume, e com uma discussão mais densa, no volume três. A
relevância da interação social na formação da criança está bem focalizada, como podemos
observar no excerto seguinte:
Também destaca que algumas atividades de interação devem fazer parte do cotidiano
das crianças, da rotina das instituições, porque respondem às necessidades de aprendizagem e
de cuidados necessários para o atendimento a crianças da EI.
25
Vol 1 - Introdução; vol 2- Formação pessoal e social; vol 3- Conhecimento de mundo.
39
documento, a RC é destacada como uma ‘‘estratégia comum nas instituições de EI, marcando
um momento definido na rotina, em que as crianças sentam em Roda com o professor para
conversar’’ (BRASIL, 1998, p.119. v.3). No entanto, o documentocritica a forma como os
professores vêm explorando essa prática, que seria tão rica de possibilidades e acaba se
esvaziando e transformando-se em monólogos.
40
interpretação’’(2006, p.36).
Práticas como a RC, na EI, são o campo de possibilidades para que o diálogo
seconstitua como elemento democrático, pelo qual a criança reconheça as diferentes vozes
presentes, seus pontos de vista sejam valorizados,eo complexo universo infantil seja
desvendado. Segundo os RCNEIs:
26
Segundo os fundamentos na perspectiva histórico cultural do desenvolvimento humano, os sujeitos se formam
por apropriação dos conteúdos hauridos no campo social, e a escola é a instituição intencionalmente
organizada para que isso ocorra. Nessa teoria, dado o papel do sujeito e das relações sociais nos processos de
apropriação cultural, fica claro que não se trata de uma transmissão mecânica e unilateral, pois os processos
de apropriação incluem operações de internalização que reorganizam as funções psíquicas do sujeito, e o seu
próprio comportamento, humanizando-o (VIGOTSKI, 2009).
41
ser ensinados.
O mesmo documento ainda ressalta que, ao professor, cabe:
o Escutar a criança, dar atenção ao que ela fala, atribuir sentido,
reconhecendo que quer dizer algo.
o Responder ou comentar de forma coerente aquilo que a criança disse,
para que ocorra uma interlocução real, não tomando a fala do ponto de vista
normativo, julgando-a se está certa ou errada.
o Reconhecer o esforço da criança em compreender o que ouve
(palavras, enunciados, textos) a partir do contexto comunicativo.
o Integrar o contexto da criança na prática pedagógica, ressignificando-
a. (BRASIL, 1998, p. 137).
Esses documentos representaram um avanço para a EI, uma vez que, historicamente o
trabalho do professor dessa etapa ficou reduzido a práticas de assistência, trabalho com datas
comemorativas e ao uso de sucata, devido à escassez de materiais didáticos (ROSEMBERG,
2002).No entanto, temos de esclarecer as limitações desses documentos,ao enfatizarem que o
papel da EI ‘‘resulta no desenvolvimento das capacidades linguísticas das crianças’’ a fim de
torná-las ‘‘competentes como falante’’(BRASIL, 1998). Neste sentido, esses discursosse apresentam
como mais uma armadilhada ideologia dominante para trabalhar a partir dos ideais
conservadores liberais, com base na ‘‘pedagogia das competências27’’.
Segundo Ramos (2003), a noção de competência é originária da psicologia do
desenvolvimento, baseada em raízes construtivistas. No atual contexto, o modelo
socioeconômico liberal transfere à educação a finalidade de adequar psicologicamente os
trabalhadores às relações sociais de produção contemporâneas, o que autora denomina de
psicologização das questões sociais. Nessa perspectiva, o papel da escola seria contribuir para
que o aluno desenvolva a ‘‘capacidade’’ de realizar aprendizagens significativas por si
próprio, nas mais variadas situações. ‘’Este é o sentido do lema aprender a aprender, tão caro
para a pedagogia das competências’’(RAMOS, 2003, p.99).
Fica claro, também, nesse documento, a ausência de tratamento da dimensão
constitutiva do sujeito, própria da linguagem. Com isso, podemos apontar que eles se
trasvestem de um caráter histórico-cultural e dialógico, mas trata apenas da dimensão
linguística e de comunicação/interlocução da linguagem. Embora destaquem a importância da
significação e remetam ao caráter simbólico, não indicam o papel do signo e da significação
27
Marise N. Ramos (2003) que resgata a discussão sobre a origem das competências na pedagogia e sua possível
ressignificação ao subordiná-la ao conceito de qualificação como relação social. A autora enfatiza as relações
entre a pedagogia das competências, o (neo) pragmatismo e o chamado construtivismo radical, que podem estar
fundando uma epistemologia pós-moderna, coerente com algumas tendências contemporâneas da Filosofia da
Educação, com implicações sobre as teorias pedagógicas. A autora demonstra que essas tendências negam a
objetividade do conhecimento, admitindo, portanto, o relativismo e o subjetivismo.
42
para a constituição cultural da criança. Esse elemento tem desdobramentos significativos na
EI, porque são referências para a formação e ação dos professores (em formação inicial e
continuada), como, também, às diferentes instâncias da gestão escolar (coordenações de
secretarias e de escolas, por exemplo). Ou seja, os fatores de desenvolvimento da criança,
relacionados à ação da linguagem na constituição da consciência e formação das funções
psicológicas superiores, derivados da apropriação da linguagem e uso de signos, não são
identificados nos pressupostos orientadores do trabalho na EI, o que reconhecemos como uma
fragilidade que supõe sérios problemas de encaminhamentos às práticas de linguagem, em
especial às RC, nosso objeto de investigação.
O Projeto Politico Pedagógico (PPP) das instituições é construído a partir dos
documentos denível nacional, suas concepções e orientações. No entanto, o PPP das
instituições de EI de FB foi elaborado em 2006 e, desde então não havia sido discutido,
reorganizado ou reformulado. Em 2014, iniciou-se um processo de reformulação, que ainda
está em andamento.
O PPP das instituições de EI do município de FB é construído coletivamente, por
membros de todos os CMEIs, com orientações da Secretaria Municipal de Educação e Cultura
(SMEC). A comunidade escolar faz estudos e sistematizações, que são repassadasparaa
SMEC que, posteriormente, organiza o documento. O marco conceitual em que constam as
concepções teóricas, políticas e legais norteadores do trabalho educativo é comum em todos
os documentos, diferenciando-se, apenas, na identificação das instituições.
O PPP, formulado em 2006, é anterior às DCNEIs, mas segue os princípios dos
RCNEIs. Dessa maneira, o trabalho com a linguagem deve ocorrer através dos diversos
gêneros, com o objetivo de que a criança possa expressar-se de inúmeras formas, como
orienta o PPP das instituições: “Explorar e utilizar linguagens, ajustadas às diferentes
intenções e situações de comunicação, de modo que a criança possa expressar suas ideias,
sentimentos e desejos” (FRANCISCO BELTRÃO, 2006, 29).
A respeito da linguagem oral, o documento salienta:
45
objeto da cultura que lhe foi apresentado (MARTINS; MARSIGLIA, 2015,
p. 32).
46
Quadro 2. Proposta Curricular29 do trabalho com a linguagem verbal
BERÇÁRIO E MATERNAL30-LINGUAGEM
Objetivos Conteúdos Estratégias
-Ampliar a capacidade de Linguagem Oral -Situação de fala, escuta e
fala da criança, a fim de -Linguagem gestual e oral. gestos: músicas, conversas,
fazer uso da mesma. brincadeiras, rima,
histórias, mímicas,
quadrinhas, sons
onomatopaicos.
PRÉ-ESCOLA31– LINGUAGENS
Objetivos Conteúdo Estratégias
Ampliar o vocabulário da Linguagem Oral - Exploração da oralidade
criança a fim de desenvolver - Exposição oral de ideias em situações do cotidiano
capacidade básica da com clareza e sequência - Relatos de experiências e
linguagem oral, o falar e o lógica. fatos.
escutar, ampliando - Jogos orais (trava-língua,
gradativamente a parlendas, quadrinhas,
possibilidade de poemas, canções...)
comunicação e expressão. - Roda de Conversa.
- Conto e reconto de
histórias.
29
A proposta curricular regulamentada no ano de 2006 refere-se somente a turmas do Berçário, Maternal e Pré-
escola (não utiliza a divisão Maternal-I e Maternal-II, Pré-I e Pré II), considerando que, no âmbito educativo
real, essa separação sempre existiu, mas só passou a ser formal a partir da instrução normativa municipal n°
001/2014 que estabelece a disposição das turmas por idade na Educação Infantil (0 a 5 anos), a qual tomamos
como parâmetro em nossa pesquisa.
30
Relembramos que as crianças dessa fase têm entre 0 a 3 anos de idade. Berçàrio (0 a 1 ano) Maternal-I (1 a 2
anos)Maternal–II (2 a 3 anos) (FRANCISCO BELTRÃO, 2014).
31
Pré-I (3 a 4 anos) e Pré-II (4 a 5 anos)(FRANCISCO BELTRÃO, 2014).
47
sentimentos, constituir-se enquanto sujeito social. Além disso, o PPP não traz concepções de
linguagem e do seu papel constituitivo na formação humana, resume-se a sugestões para o
trabalho com a linguagem verbal.
A RC, como estratégia didática, traz inúmeras possibilidades para o trabalho com a
língua como uma dimensão viva, que não podeselimitar a jogos de perguntas e respostas
vazias, pois cada enunciado, embora seja único, é construído a partir do outro, a partir de um
contexto não verbalque inclui a vivência dos sujeitos e sua inserção no mundo.
Assim, a EInão pode limitar-se a práticas de linguagem verbal de natureza informal.
Concordamos com Arce, quando afirma que a EI tem, sim,suas especificidades, mas isso não
diminui seu papel na formação humana, na transmissão de conhecimentos, ‘‘isto é, ensinar
como lócus privilegiado de socialização para além das esferas cotidianas e dos limites
inerentes à cultura de senso comum’’(ARCE, 2009, p.94).
Nossa pesquisa caminha nessa direção, de que a EI é espaço para a formação da
criança, pela mobilização dos contéudos culturais a serem apropriados. Assim, recorremos a
Saviani (2003), cuja argumentação incide sobre a afirmação do papel social da escola, na
transmissão do saber sistematizado.
Com nosso intuito de realizar uma análise das RCs realizadas em turmas do Maternal-
II, pré-I e pré-II, no município de FB, com crianças entre três e cinco anos, buscamos
fundamentos na teoria histórico-cultural e dialógica da linguagem,para apontar quais as
possibilidades que lhe são oferecidas para que possam se expressar pela linguagem verbal, na
perspectiva de seu caráter constitutivo.
A coleta de dados foi realizada na Cidade Norte de FB, em dois CMEIS32– um
localizado no bairro Pinheirinho (o CMEI Sonho Meu) e outro no bairro Jardim Floresta
(CMEI Zelir Vetorello) – e em uma escola de ensino fundamental (EMEF Quinze de
Outubro), na turma de pré-escola33.
O CMEI Sonho Meu está localizado em bairro periférico da cidade e atende crianças
oriundas de classe média e classe média baixa, principalmente, filhos de trabalhadores do
comércio e indústria em geral. O CMEIZelir Vetorello e a escola Quinze de Outubro
localizam-se em um bairro de classe média e também atendem famílias trabalhadoras do
comércio, indústriae trabalhadores autônomos. As instituições afirmam que têm a proposta
pedagógica fundamentada nos pressupostos da pedagogia histórico-crítica, mas,na realidade,
o documento segueum construtivismo eclétivo, que serve à reprodução da ideologia
dominante.
No Maternal II e Pré I, há duas professoras por turma, visto que as crianças de 3 a 4
anos têm necessidades mais específicas de cuidado e educação, que demandam uma
organização da rotina diferenciada da que é praticada com crianças mais velhas.
Foram realizadas (de setembro a dezembro de 2014) entrevistas
semiestruturadas(apêndice II) com uma professora de cada turma dos CMEIs. Na turma do
32
Centro Municipal de Educação Infantil. Instituições da Prefeitura Municipal de Francisco Beltrão que atendem
crianças de 0 (zero) a 4 (quatro) anos, na modalidade creche e pré-escola.
33
Modalidade da Educação Infantil, ofertada para crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade que,no
Município de FB, acontece nas dependências das escolas de Ensino Fundamental.
49
maternal-II, quem respondeuà entrevista foi a professora-II (P234). No pré-I, quem se
disponibilizou a responder foi aprofessora-I (P1). Na turma do pré-II, o trabalho é realizado
por uma única professora (P), considerando que as crianças frequentam a instituição somente
no período vespertino, enquanto que, no maternal-II e pré-I, as crianças frequentam em
período integral.
Seguem, no quadro abaixo, informações referentes às turmas que participaram da
pesquisa e às professoras que nelas atuam.
34
Optamos por nos referir às professoras em forma de abreviaturas (P). Como nas turmas do maternal-II e pré-I
trabalham duas professoras denominamos P1 e P2.
35
QPM-Quadro próprio do magistério (mediante concurso).
36
PSS-Processo Seletivo Simplificado (mediante prova de títulos).
50
a campo, deparamo-nos com as duas professoras regentes da turma em licença37, uma com
licença maternidade e a outra por conta de problemas de saúde. A professora que assumiria a
turma não tinha experiência, havia sido contratada há poucos dias e nunca tinha trabalhado na
área da educação e julgou-se insegura para participar da pesquisa.
Em razão desses motivos, optamos por mudar o local da coleta de dados do maternal-
II, considerando que, na maioria dos CMEIs do município, há somente uma turma por faixa-
etária. Ou seja, não havia outra turma que atendesse crianças com essa idade na mesma
instituição,e, as gravações nessa turma somente puderaminiciar no mês de novembro,
noCMEI Zelir Vetorello.
A coleta de dados foi efetuadacom autorização dos pais ou responsáveis pelas
crianças, professoras, diretoras e secretário da educação, a partir da assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE- anexo1), no qual foram explanadosa natureza da
pesquisae o comprometimento com questões éticas referentes à não divulgação dos nomes dos
participantes, especialmente por se tratar de pesquisa com crianças.
As gravações tiveram duração de tempo entre 04min40seg e 22min29seg. Nas RC
foram tratados diversos conteúdos, pelos professores,e muitos se repetiam entre a turma de
maternal-II e pré-I. No pré-II, as RCs ficaram mais direcionadas àcontação de história.
No quadro 4, podemos observar dados referentes às gravações de áudio das RCs.
Quadro 4. Síntese das gravações de áudio das Rodas de Conversas
N° Data da Local Turma/idade Duração Conteúdo temático
da gravação
RC
01 01/11/2014 CMEI Z.V38 MATERNAL- 07min25seg Final de semana
II
(3 anos)
02 04/11/2014 CMEI Z.V MATERNAL- 04min40seg Contação de história (Não
II Confunda)
(3 anos)
03 11/11/2014 CMEI Z.V MATERNAL- 06min37seg Contagem oral (meninas e
II meninos)
(3 anos)
04 12/11/2014 CMEI Z.V MATERNAL- 07min49seg Brinquedos e brincadeiras
II
(3 anos)
05/12/2014 CMEI Z.V MATERNAL- 08min04seg Contação de história (A menina
II das borboletas)
(3 anos)
05
37
Estado de ausência em período extenso no trabalho, concedido pelo órgão mantenedor (prefeitura municipal)
a partir de leis trabalhistas.
38
CMEI Zelir Vetorello, localizado no bairro Jardim Floresta- Francisco Beltrão.
51
06 09/12/2014 CMEI Z.V MATERNAL- 06min45seg Natal
II
(3 anos)
07 10/12/2014 CMEI Z.V MATERNAL- 07min52seg Férias
II
(3 anos)
08 15/12/2014 CMEI Z.V MATERNAL- 06min54seg Brincadeira (seu mestre
II mandou)
(3 anos)
09 08/09/2014 CMEI S.M39 PRÉ-I 08min52seg Animais de estimação
(4anos)
10 09/09/2014 CMEI S.M PRÉ-I 10min20seg Brinquedos e brincadeiras
(4anos) preferidas
11 22/09/2014 CMEI S.M PRÉ-I 09min09seg Passeio
(4anos)
12 23/09/2014 CMEI S.M PRÉ-I 22min29seg Contação de História (Era uma
(4anos) vez a sua vez)
13 03/12/2014 CMEI S.M PRÉ-I 07min51seg Cartinha para o papai Noel
(4anos)
14 04/12/2014 CMEI S.M PRÉ-I 08min29seg Comida preferida
(4anos)
15 08/12/2014 CMEI S.M PRÉ-I 13min31seg Final de semana
(4anos)
16 09/12/2014 CMEI S.M PRÉ-I 09min32seg Família
(4anos)
17 23/09/2014 EEF40 PRÉ-II 16min59seg Contação de História (A árvore
(5 anos) generosa)
18 25/09/2014 EEF PRÉ-II 13min57seg Relato sobre o desenho (tarefa
(5 anos) de casa)
19 26/09/2014 EEF PRÉ-II 07min33seg Contação de História (Jardim
(5 anos) . de Ceci)
20 29/09/2014 EEF PRÉ-II 06min15seg Contação de História (A
(5 anos) menina das borboletas)
21 24/11/2014 EEF PRÉ-II 06min12seg Contação de História (Roda do
(5 anos) ônibus)
Notamos que, nas turmas do maternal-II e pré-I, alguns assuntos se repetem, como
falar sobre os brinquedos, final de semanaenatal. Em ambas as turmas foram utilizadas
39
CMEI Sonho Meu, localizado no bairro Pinheirinho - Francisco Beltrão.
40
Escola Ensino Fundamental, 15 de Outubro, localizada no bairro Jardim Floresta- Francisco Beltrão.
52
contação de histórias, mas apenas em um dia, enquanto que no pré-II a ‘‘Roda’’ é um recurso
utilizado para contar as histórias relacionadas ao conteúdo trabalhado.
Nas turmas de maternal-II e pré-I, as RCs são realizadas duas a três vezes na semana, e
no pré-II, é realizada, em média, quatro vezes por semana, com o intuito de começar a aula
com a contação de histórias.
Após contextualizarmos nosso leitor a respeito do âmbito da pesquisa e das formas e
condições em que foi realizada, pretendemos analisar quais as concepções apresentadas pelas
professoras que atuam nas turmas em que foram efetuadas as gravações das RCs.À vista
disso, o próximo subtítulo estará respaldado pela análise do material empírico.
53
p.346) define o dialogismo – como “as relações de sentido que se estabelecem entre dois
enunciados”. Destacamos esse conceito como essencial na análise da RC, porque a situa como
uma instância que promove a circulação de significações – da educadora e das crianças – num
movimento capaz de atuar na formação das consciências, pelos conteúdos culturais que
podem emergir nas interaçõeshistoricamente situadas.
Como se organizam as RC, das escolas do contexto da pesquisa, para transmitir os
saberes culturais e possibilitar a expressão de todos os envolvidos nesse movimento? Essa
prática garante, de fato, um discurso polifônico (BAKHTIN, 2006), aberto à alteridade e ao
encontro/confronto das vozes das crianças, com suas perspectivas e pontos de vistas
diferentes? Possibilita à criança conhecer a visão de mundo do outro, pela imersão na
interação verbal? Como potencializar esses momentos para a valorização das vozes infantis e
dos contextos em que elas se constroem, numa perspectiva de formação que leve a criança a
pensar sobre questões da realidade, de maneira dinâmica, concreta e crítica, ensinando e
instigando questionamentos.
Tais reflexões remetem ao modo como as professoras concebem e organizam a RC no
seu trabalho diário com a formação das crianças.Por meio de entrevistas41direcinada as
professoras (apêndice 2),elas nosrelataram como compreendem a finalidade e a organização
da RC. As professoras do maternal-II e pré-I salientam o papel da RC, apontando alguns
aspectos:
Desenvolvimento da oralidade, fala e expressão;
Perceber a timidez.
Na turma do pré-II, destacam a finalidade mais direcionada ao ensino dos conteúdos
escolares, com ênfase nos seguintes elementos:
Iniciar a aula com leitura, para retomar os conteúdos aprendidos e iniciar o novo;
Tornar a aula mais gostosa e atrativa.
Nas falas das professoras atuantes nas turmas Maternal-II e pré-I, identificamos que as
RCs são realizadas com a finalidade dedesenvolver a interação e a expressão da criança,como
um espaço para falar e compartilhar saberes de seu cotidiano, e as temáticas escolhidas,
geralmente, relacionam-se a algo da realidade da criança. Na fala da professora do pré-II,
notamos uma preocupação maior com a transmissão dos conteúdos escolares, aliados aos
temas para a sistematização na RC. A atividade apresenta-se como um recurso didático para
41
As entrevistas foram realizadas mediante organização de um roteiro (apêndice 1), foram testadas em sujeitos
que exercem atividades na EI. Agradecemos as professoras Mariane Bertonceli e Rosangela Montanari que
contribuíram para o teste, permitindo que avaliássemos a pertinência das questões.
54
que aprofessora identifique os conhecimentos prévios dos alunos.
No que se refere àorganização da RC, as professoras do maternal-II e pré-
Iargumentam que:
É realizada em formato de círculo para que todos se vejam, isso facilita a
interação, as crianças aprendem a ouvir e socializar;
É estabelecida uma sequência, para que as crianças aprendam ouvir o outro e
respeitar;
Ocorre a partir de conteúdos previstos pelo currículo (planejamento). Nesse
objetivo, exige um nível de respostas mais direcionadas;
Também há a inserção de temas livres, em que se permitem respostas
maisespontâneas.
Na turma do pré-II, a professora salienta que:
A organização prevê que cada criança fale sobre oconteúdo;
Às vezes as crianças fogem do conteúdo proposto;
Cada um tem sua vez, levanta a mão para falar (nem todas falam, mas
aprendem a expor opinião).
A organização espacial é realizada em formato de círculo nas três turmas, com a
intenção de que as crianças possam se ver, pois esse aspecto pressupõe interação. A
organização prevê um momento para que todos possam falar, com base no assunto eleito pela
professora. As professoras, geralmente,seguem uma sequência para as crianças falarem, a fim
de evitar um tumulto em sala de aula, mas, para a professora do pré-I, a sequência pode ser
modificada, de acordo com as interações das crianças e necessidade que sentem de falar.
Os depoimentos demonstram que as professoras conhecem as contribuições da RC.
Elas destacam, principalmente, os momentos de interação,em que podem ouvir as crianças e
identificar seus conhecimentos prévios, a ampliação de seu vocabulário, suas dificuldades,
com ênfasenos aspectos avaliativos. Retratam a possibilidade da expressão da criança,
momento em que podem expor o que sentem, o que pensam, ou seja, é possível conhecer o
aluno. Na turma do pré-II, identificamos que a RC é utilizada, principalmente, como
mecanismo para trabalhar leitura de histórias, para cativar a atenção da criança e relacionar a
história ao conteúdo do planejamento. Além disso, a Roda é concebida de forma geral como
um instrumento para que a criança possa aprender a ouvir e falar, perder a timidez e estimular
o desenvolvimento cognitivo.
Do mesmo modo como a RC necessita desenvolver a interação, também precisa
55
cumprir seu papel de dispositivo democrático de acesso ao conhecimento escolar. O diálogo
deve servir para que o saber sistematizado venha a fazer parte do repertório de criança, para
que, nas próximas RCs, ela tenha contribuições diversas,uma vez que a natureza da RC
pressupõe esse movimento dialético da passagem do senso comum ao conhecimento
historicamente construído.
A RC, como instrumento de trabalho com a linguagem verbal na EI, temo papel de
provocarna criança a elevação de seus conhecimentos, a partir do processo de interação,
considerando que, a linguagem verbal é responsável pela mediação do sujeito com o mundo,
que é através dela que nos humanizamos.
Condiderando o papel constitutivo da linguagem no processo de humanização, no
próximo capítulo apresentaremos os elementos teóricos da perspectiva dialógica da linguagem
e da psicologia histórico-cultural, a fim de compreendermos o processo de formação da
consciência, e o papel da escola frente à constituição do ser criança. Os pressupostosteóricos
indicados a seguir fundamentaram nosso olhar para as RC e a análise do material empírico.
56
CAPITULO II
A LINGUAGEM E A CRIANÇA
A linguagem é tão antiga quanto a consciência - a linguagem é a
consciência real, prática que existe para os outros homens, e, portanto,
existe para mim mesmo e, exatamente como a consciência, a linguagem só
aparece com a carência, com a necessidade de intercâmbios com os outros
homens [...] A consciência é, portanto, de início, um produto social e o será
enquanto existirem homens (MARX; ENGELS, 1998, p.24-25, grifo
nosso).
57
social, por meio dos quais ele se diferencia do animal. Pelo trabalho, ele modifica a natureza,
de acordo com suas necessidades, em razão das quais precisou se comunicar e estabelecer
vínculos sociais, desenvolvendo a linguagem.
Nesse sentido, são os homens que determinam os meios de produção, para atender a
interesses específicos, como aponta Marx (1983):
Engels (1999) não se refere ao homem acabado como pronto, mas em constante
evolução, constituído historicamente pelas suas relações sociais realizadas através da
linguagem e do trabalho, apontados pelo autor como determinantes para o desenvolvimento
humano. Eis, pois, a grande diferença entre os animais e o homem, a capacidade de
58
comunicar-se conscientemente, mediante palavras articuladas e, assim, poder intencionar e
planejar sua prática, isto é, o homem é o único ser capaz de sistematizar seu trabalho antes
de executá-lo. Essa sistematização somente é possível pela ação da linguagem e do
pensamento.
Marx (2008, p.47), ao afirmar que ‘‘Não é a consciência dos homens que determina o
seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.’’ refere-se ao homem
como ser que se constitui a partir de seu contato e interação com a cultura humana e destaca
que o trabalho, como modo de produção da vida material, configura a vida social, política e
intelectual do sujeito.
Na mesma linha de pensamento, para Vigotski (2009), a articulação entre a
linguagem e o pensamento surge de uma necessidade de comunicação que é especificamente
humana e foi gerada durante a atividade laboral. Nesse sentido, o trabalho é um exercício
que exige a utilização de instrumentos que possibilitam ao sujeito transformar a natureza,
mas, por meio dele, também surge a necessidade de intercâmbio social, que permite
estabelecer ações planejadas de maneira coletiva.
Leontiev (2004) situao papel dos ‘‘instrumentos’’ no desenvolvimento histórico da
humanidade, tanto no processo de ‘‘hominização’’, como na transformação da natureza. O
autor salienta a função da linguagem enquanto um sistema de signos que impulsionou a
transformação do sujeito e de suas formas de organização social.
59
Também nessa perspectiva, Bakhtin ressalta a relação, constitutiva entre linguagem
humana e organização social, quando afirma que:
[...] não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os
signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam
socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só
assim um sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual
não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada
a partir do meio ideológico e social (BAKHTIN, 2006, p. 33).
Seguindo esse mesmo viés, Luria (1986), em suas últimas conferências, destaca que o
homem se distancia do animal, na medida em que se apropria da linguagem como um
sistema de signos, aliada ao trabalho como atividade laboral que requer a utilização de
instrumentos, que impulsionam a transformação da natureza e, consequentemente,modifica o
comportamento humano, levando o sujeito à formação da consciência. Para Luria
60
Diante disso, nós, como membros da espécie, ao nascermos, somos dependentes dos
outros membros de nossa espécie, e isso faz com que, através do processo de interação social,
tenhamos de ser educados. Para tanto, nossas funções psíquicas elementares, de ordem
biológica, necessárias para a sobrevivência, não permitem que nos tornemos humanos na
integralidade. A apropriação da linguagem marca nosso nascimento social (VIGOTSKI,
2009), uma vez que é a partir desse sistema de signos que realizaremos a mediação com o
mundo. A linguagem é responsável pelo desenvolvimento das funções psíquicas de ordem
superior, especificamente humanas e necessárias à evolução da espécie. Assim, as funções
superiores (abstração, generalização, atenção voluntária, memória lógica, projeção,
imaginação, criação) são fruto da atividade social, mas são também resultado de conversões
feitas com a participação de funções elementares (herança biológica) e com o conjunto de
artefatos semióticos constituídos historicamente nos espaços sociais.
Nessa perspectiva, a RC, como espaço de interação verbal, promove o
desenvolvimento das funções psíquicas superiores e, por sua vez, é instrumento de
humanização. Assim, para compreendermos a RC, enquanto momento privilegiado para
mediações, trataremos a seguir do conceito de mediação semiótica.
61
se com o significado das ações e coisas, mesmo fora de seu momento de ocorrência ou de
sua presença. Esse processo inicia com aapropriação da linguagem, pela criança (VIGOTSKI
2009; LURIA, 1986).
Para Vigotski (2009), a linguagem é o sistema simbólico básico de todos os grupos
humanos e é apropriada pelos sujeitos no grupo cultural em que se desenvolve. Com essa
apropriação, ele passa a internalizar os elementos da cultura.
Para Luria (1986) e Vigotski (2009), a palavra “substitui” idealmente o objeto e tem
funções de conceptualização, de generalização, com que desencadeia atividades de análise e
o “introduz em um sistema de complexos enlaces e relações” (LURIA, 1986, p. 36). Além
disso, “executa um trabalho automático de análise do objeto que passa despercebido para o
sujeito, transmitindo-lhe a experiência das gerações anteriores, experiência acumulada na
história da sociedade” (LURIA, 1986, p. 37). Assim, o mundo material é representado pela
palavra, como signo responsável por transmitir às novas gerações a herança cultural
acumulada pela humanidade.
Para Bakhtin (2006), a existência da atividade mental decorre da constituição dos
signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. A formação da
consciência humana é fruto de um processo de mediação semiótica, e,‘‘se privarmos a
consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada’’ (BAKHTIN, 2006,
p.32).
Vigotski (2009) assim destaca a função da palavra na formação da consciência
humana:
Por essa argumentação, Vigotski (2009) deixa evidente quea consciência representa a
realidade pela linguagem e sua relação com o pensamento. A linguagem é o elo entre os
sujeitos, e que tudo a consciência representa épropriedade da palavra.
62
épor ela, e a partir dela que a consciência se constitui, porque a palavra, pelo seu conteúdo,
contém os significados. Para Vigotski (2009, p.398), ‘‘o significado da palavra é uma unidade
indecomponível de ambos os processos, não se sabe se é um fenômeno da linguagem ou do
pensamento’’ Ele acrescenta que ‘‘a palavra desprovida de significado não é palavra, é um
som vazio’’. Assim, o significado é elemento constitutivo da palavra. ‘‘É a própria palavra
vista no seu aspecto interior’’.
Bakhtin, nessa mesma direção, compreende a palavra como material semiótico,
constituidor da consciência humana.
Percebemos que tanto Bakhtin como Vigotski situam a palavra como elemento
constitutivo que funda e qualifica as funções cognitivas humanas, com o aporte dos
significados culturais que carrega.
A esse respeito, são pertinentes as palavras de Martins (2010, p.133):
65
ontogenético têm raízes genéticas diferentes. Então, durante e no desenvolvimento da fala, a
criança passa por um estágio pré-intelectual e, o desenvolvimento do pensamento, pelo
estágio pré-verbal.
O autor ressalta que o‘‘significado da palavra só é fenômeno do pensamento na
medida em que o pensamento está relacionado à palavra e nela materializado, e vice-versa
(VIGOTSKI, 2009, p.398). Vigotski supera os postulados das demais correntes psicológicas,
linguísticas e semânticas que concebiam a ligação entre o significado e a palavra através de
cadeias associativas.
Nos fundamentos da perspectiva histórico-cultural ‘‘O pensamento não se exprime na
palavra, mas nela se realiza’’(VIGOTSKI, 2009, p.409), assim, a palavra cumpre um papel
fundamental, não apenas no desenvolvimento do pensamento, mas, no desenvolvimento
histórico da consciência como um todo.
Diante do esclarecimento sobre opapel da palavra na formação da consciência,
compreendemos a RC como espaço de circulação da palavra, consequentemente, esfera de
movimentação de visões de mundo, de cultura e de ideologias, visto que, toda palavra carrega
em si um universo axiológico que implica a constituição humana. Para tanto, trataremos na
sequência, do conceito de ideologia, imprescindível para o entendimento da natureza
formativa da RC.
[...] essa dupla face que faz com que o signo se mantenha na história e
também se transforme na interação verbal. Podemos definir a ideologia,
portanto, como um conjunto de valores e de ideias que se constitui através
66
da interação verbal de diferentes sujeitos partencentes a diferentes grupos
socialmente organizados na história concreta (GEGe,2013, p59-60).
Concordamos com Bakthin, quando ele aponta a palavra como elemento indicativo das
transformações sociais. Na RC, percebemos nas falas das crianças traços valorativos que
revelam uma infância diferente da qual vivenciamos.Assim, a palavra dita pela criança traduz
o universo a que tem acesso, indica as transformações culturais que a infância sofre com as
mudanças nas relações sociais. Na RCs42, por exemplo, as crianças demonstram como estão
envolvidas em um contexto que preza pelo consumismo, como seus brinquedos estão ligados
a uma cultura midiática. Do mesma maneira como o professor, por vezes, transmite valores,
posturas, normas de condutas, que reproduzem a escola que a classe dominante idealiza para a
classe trabalhadora, favorável à submissão e obediência, não à constuição da autonomia e
libertação humana.
Para Bakhtin, o signo, por constituir-se pela refração do ser no signo ideológico,
então, é fruto do confronto de interesses sociais em uma única comunidade semiótica, ou
seja,o signo ideológico é formado pela luta de classes.Na perspectiva marxista de
linguagem,construída por Bakhtin e pelo Círculo, a comunidade se utiliza do mesmo código
ideológico de comunicação, mas essa linguagem serve a interesses divergentes. Portanto,
42
Realizaremos análise de algumas questões ideológicas presentes nas RCs no próximo capítulo.
69
classes sociais antagônicas servem-se da mesma língua, mas o signo ideológico é contornado
por interpretações de valor contraditórias. ‘‘O signo se torna a arena onde se desenvolve a
luta de classes’’ (BAKHTIN, 2006, p,45).
A linguagem foi, historicamente, utilizada em favor da classe dominante para
repercutir uma ideologia que propaga a desigualdade. Para Bakhtin (2006), as estratificações
sociais da linguagem são determinadas por diversos valores axiológicos, expressos por
diferentes sentidos. Comoresultado do trabalho dessa multiplicidade de forças
43 44
estratificadoras, a língua não expressa palavras neutras, porque a linguagem é carregada
de intenções. Portanto, a língua não é um sistema abstrato de formas normativas, cada
palavra traz em si um contexto com propósitos diversos.
Mediante essas reflexões, apontamos o papel constitutivo da palavra na formação da
consciência, palavra que abarca uma série de posições ideológicas e que ganha vida no
processo de interação, na circulação das vozes. A RC é momento privilegiado para tal
movimentação. À vista disso, trataremos, na sequência, do movimento da interação verbal e
do dialogismo na formação da criança e como esses princípios estão presentes nas RCs.
A criança, como sujeito social, traz ideias, valores, concepções próprias, mas que
foram constituídas através das relações sociais a que tem acesso, visto queé fruto da cultura
em que está inserida. A partir da perspectiva histórico-cultural e da teoria dialógica da
linguagem, apontamos que a humanização do ser ocorre por meio da interação, mediada pela
linguagem. Sobre esta afirmação, a RC encontra-se na condição de espaço de interação, por
consequinte, de humanização. Na Roda, a criança expõe a singularidade infantil construída
na totalidade das relações humanas, por isso, pretendemos, a partir de algumas análises do
material empírico, pautadas na teoria exposta, elucidar o papel da interação verbal e do
dialogismo no processo formativo da criança.
De acordo com Bakhtin(2000), a interação verbal é elemento determinante do
desenvolvimento linguístico, pois a expressão é resultado desta interação, que tem origem
sociológica produzida no processo de diálogo.Seguindo os pressupostos de Bakhtin sobre a
43
Na perspectiva bakhtiniana, a língua é um legado histórico que representa a necessidade da espécie humana
de comunicar-se. Constitui-como uma atividade social, materializada na enunciação representada nos
gêneros discursivos.
44
A linguagem, para Bakhtin é um espaço de trânsito de ideologias, por representar as diversas formas de
interpretar a realidade através de um sistema de signos.
70
interação verbal, GEGe (2013) salienta‘‘[...] A interação é um evento dinâmico onde o que
está em jogo são posições axiológicas, confrontos de valores sociais. A interação é, portanto,
o diálogo ininterrupto que resulta desse confronto e que constitui a natureza da
linguagem’’(GEGe, 2013, p. 66).
Para Bakhtin (2006), as interações verbais se definem em relações estabelecidas
durante o processo dialógico desprovido de neutralidade, realizado através da enunciação.A
enunciação realiza-se no processo de interação verbal, constituindo-se por um contexto de
produção de sentidos relacionados a uma situação imediata, mas, também, pela amplitude de
vivências carregadas pelos sujeitos envolvidos na interação. Nas RCs, notamos como o
processo de interação envolve uma relação em que as crianças produzem sentidos que
extrapolam a dimensão verbal. As respostas criadas por elas também são fruto das
experiências que trazem de outros espaços sociais, portanto constituem a enunciação.
Na RC45 (RC-1146) realizada no Pré- I, sobre o passeio no horto florestal, as crianças
falam sobre o que mais lhes agradou.
P___ Nósvamos fazer uma Roda de Conversa, e cada um vai falar do que mais gostou do passeio de
hoje de manhã, a gente foi lá no viveirover onde ficam as mudinhas de árvore, as plantinhas.
AL___ As plantinhas bebê.
P___É, as plantinhas bebê.
GB ___As plantinhas mãe.
As crianças começam a falar juntas, todas ao mesmo tempo.
P___ É, então vamos fazer assim, vamos seguir uma ordem, e cada um fala uma vez, e quando uma
criança está falando, a outra fica em silêncio para poder ouvir, vamos combinar assim?
CRIANÇAS FALAM___ Sim.
P___ Vamos lá, então, vamos começar pela NC.
P___ Do que mais você gostou do passeio de hoje de manhã, NC?
NC___ Da árvore bebê.
P___ Da árvore bebê. Que mais?
NC___ Da mamãe, humm.
P___E a AL?
AL ___ Eu gostei mais de vê, de vê os passarinho cantando.
P___ MJ?
MJ___ De ver os sapos cantando.
P___ Os sapos que moram na lagoa?
MJ ___Sim.
IS ___Um dia, quando o sapo tiver acordado, eu vou ir lá com ele.
P___ Ah, sim, é que lá tinha o rapaz e a moça que cuidam de lá, e eles falaram que lá na lagoa a
gente não podia ver nenhum sapo, porque o sapo tava...?
Crianças____ Dormindo.
P___É o sapo tava dormindo, e é à noite que ele acorda e que ele vai comer.
ED___ Mas não dá pra ir de noite.
MT___E o peixe não.
45
Com o intuito de relacionar as categorias teóricas ao objeto de pesquisa, utilizaremos episódios das RCs no
decorrer do texto, cujos excertos serão destacados em itálico.
46
Por questões éticas da pesquisa e visando preservar a identidade da criança, optamos por substituir o
nomedelas por abreviaturas, formadas com duas letras do seu nome.
71
P___ Mas a IS tá contando que ela quer ir à noite lá ver o sapo acordado, é isso IS?
IS___ Sim.
P2___GL, e vc?
GL___ Eu gostei do rio.
P2___GU?
GU___ Do rio.
HR ___Eu vi um rio desse tamanhão e um tubarão.
P2___Lucas fala o que você mais gostou do nosso passeio.
LC___ Eu gostei de tudo.
P___ Fala de tudo, então.
LC___ Não.
P___ E o que mais gostou?
IG___O que eu mais gostei foi de voltar para creche.
P___ Do bosque?
IG___ (fica em silêncio).
P___E o GB?
GB____ Eu gostei do golfinho.
P___ Onde que você viu golfinho, lá?
GB___ Na lagoa.
AI___ Eu gostei de ir lá na floresta.
P___E o que você viu nessa floresta?
AI___ Tinha passarinhos.
LC___ Passarinho nada?
AL___ Ô profe, quando o meu pai morava lá na outra casa, daíeu fui lá visitáele, daíeu fui dormi lá e
tava tudo escuro, daí outro dia que e fui dormi lá e tava claro, tinha uma minhoca e uma perereca
bem pequenininha.
P___ O que que elas tavam fazendo lá ?
AL___É que a perereca não quer morar no mar, e ela tava lá na terra, e eu fiquei lá vê e a minha mãe
foi para longe e fui lá pertinho e corri atrás dela.
P___ E o que aconteceu quando você correu atrás dela?
AL___ Nada.
P___ Não aconteceu nada, ela não fugiu?
AL___ Eu que corri atrás dela.
AI___ Um dia lá na minha casa tinha uma perereca bem grande, mas eu não peguei ela.
P___ Ela devia estar procurando alguma coisa para comer.
AI___ Uma mosca.
P___ Muito bem, por hoje, crianças.
P1___ Como vocês já viram lá na história do gato, que um animal doméstico que mora lá na casa da
gente, mora dentro de casa ou pode ser no sítio também, porque é um animal doméstico, e agora cada
um vai falar se tem ou se não tem um animal em casa, se tem um animalzinho doméstico ou lá no sítio,
se tem alguém que mora no sítio que nem a MJ, né MJ?
MJ ___Eu não moro no sítio.
P1___ Não mora no sítio mais?
MJ ___Minha mãe mudou, perto da casa da minha amiga Nati.
P1___ E lá na casa do AD, tem o quê?
AD___ Tem galinha.
P1___ Tem galinha. E na casa da CR?
CR___ Não tem nenhum.
P1___ Não tem nenhum bichinho, e na casa da vó?
CR___ Só tem vaca.
P1___ Vamos ver a GB, tem algum animalzinho lá na tua casa?
G___ A Bolinha e a Neguinha.
P1___ Mas o que queelas são? Gato, cachorro?
GB___ Cachorro.
P1____ Cachorro, então a Bolinha e a Neguinha.
P1___E o JG?
JG___ Eu tinha um, mas ele morreu.
P1___ Morreu, e o que que você tinha lá?
JG___ Cachorro. Só que daí eu vou comprar um outro.
P1___E você não tem mais peixe?
JG___ Eu tinha, só que morreuno frio, também.
P1___ Ah!
MT___ O meu gato fugiu.
P1___E você não encontrou mais?
MT___ Não.
P1___ Agora vamos ouvir o GL, para a gente ver o que que ele tem lá nacasa dele, se ele tem algum
animal.
GL___ Um cachorro.
P1___ Um cachorro. E que nome tem o seu cachorro?
GL___ Tobi.
P1___ Tobi, e tem outros ou é só o Tobi?
GL___ Tinha, só que a Nina eu vendi, só ficou o Tobi.
(As crianças começam a falar todas juntas).
P1___ Crianças, vamos esperar um pouquinho, para a NC falar, que depois vocês falam.
NC ___Eu tinha um passarinho, mas, ele fugiu.
P1___ E ele voou foi lá pra floresta.
73
P1___E o GM, tem algum animal GM?
GM___ Tem um cachorro.
P1___ Mas como que se chama o cachorro do GM?
GM___ Dois cachorros. O Requeis e o Chocolate.
P1___ Requeis e Chocolate.
GM___E um passarinho.
P1___ Que passarinho?
GM___ Não tem mais passarinho.
P1___ Não tem mais passarinho?
GM___ Só um.
P1___E onde que eles ficam lá na tua casa?
GM___ Em uma caixinha debaixo da escada.
GM___ Mas os outros passarinhos morreram, só sobrô aquele.
P1___ Vamos ouvir agora o FP falar se tem um animal na casa dele. Tem algum animalzinho na sua
casa FP?
FP___ Só cachorro.
P1___ Só cachorro, e quantos?
FP___ Um.
P1___ Só um.
FP___O Bob morreu.
P1___ E como que se chama o outro que tá na tua casa ainda?
FP___ Scoob.
P1___ Scoob. E o que que aconteceu com o Bob?
FP___O Bob, o Bob, o carro pegô ele.
P1___ Há o carro pegô ele e bateu nele?
FP___Sim
P1___ E o GL, vamos ouvir o que que tem lá na casa dele, tem algum animal lá na sua casa?
GL___ Nenhum.
P1___ Não tem nenhum, nem um passarinho?
P1___ Não.
P1___ E o IG, vamos ver o IG, você tem algum animal lá na sua casa, algum bichinho?
IG ___Um cachorro.
FP___ Todo mundo quase só tem cachorro.
P___ Legal, crianças, os animais que vocês têm.
Muitas das crianças relatam experiências similares, sobre a perda de seus animais de
estimação.Quando JG fala que seu bichinho morreu, assim como NC, GM, e FP, também a
MT, que relata a fuga do animalzinho de estimação, as crianças compartilham sentimentos,
trazem experiências, falam sobre os diferentes animais, interagem sobre o assunto,
produzindo sentidos singularespara experiências semelhantes.
O dialogismo, na RC, manifesta-se nessa relação que as crianças estabelecem entre si e
com a professora, que é quem estimula a interação, quando compartilham a experiência de ter
perdido seu animalzinho, ou quando discutem sobre o melhor momento de um passeio, os
sentidos que são tão singulares mas constituidos socialmente a partir da relação com o outro.
A proposta apresentada por Bakhtin rompe com a concepção que concebe a
linguagem como um objeto de estudo isolado. O círculo de Bakhtin,baseado em uma
74
proposta marxista de linguagem, busca a formação de uma corrente linguística que valorize
as vozes dos sujeitos e suas manifestações discursivas, pelos conteúdos e sentidos
empregados no contexto do discurso, entendido como ‘‘a língua em sua integridade concreta
e viva’’, isto é, no movimento da interlocução. A materialização da língua na interaçãovai
além de aspectos linguísticos e abrange todo o contexto extraverbal (BAKHTIN, 2010,
p.206).
[...] as relações dialógicas são extralinguísticas. Ao mesmo tempo, porém,
não podemser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua enquanto
fenômeno integral e concreto. A linguagem só vive na comunicação
dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica
que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda vida da
linguagem seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a
prática, a científica, a artística, etc.) está impregnada de relações dialógicas
(BAKHTIN, 2010, p.208).
75
pode ser vista de maneira individual, mas, exclusivamente, sociológica.
Essa dimensão social da eunciação fica bem evidente na RC, como pudemos observar
nos excertos exemplificados. Do mesmo modo, a circulação dos sentidos hauridos no social
integra os enunciados das crianças, na interação verbal que a Roda propicia, ao mesmo
tempo em que põe em movimento os sentidos singulares de cada criança.
Reafirmamos, portanto, o potencial da RC, como espaço que propicia o trabalho com
a linguagem verbal na EI, de modo a promover a interação, o dialogismo e a valorizaçãodo
enunciado da criança. Enunciado que se constitui em meio aos diferentes contextos de
experiência social e das vozes que povoam as interações das crianças nos seus universos de
existência. Cabe-nos, portanto, napróxima seção, tratar desses conceitos da teoria
bakhtiniana,enunciado, enunciação e polifonia, que estão na essência da RC e são essenciais
para a compreensão da natureza dialógica dessa prática.
47
O horizonte social orienta os valores construídos na interação; é o espaço-tempo compreendido em uma
relação verbal, ou seja, o espaço-tempo da enunciação (GEGe, 2013, p.58).
76
discursos, sujeitos etc.) que antecedem esse enunciado específico quanto ao
que ele projeta adiante [...]. (BRAIT, 2005, p.67)
ML e AL, ambos gostam muito de bolo de chocolate, no entanto, as vivências que eles
têm sobre esse bolo é diversa, por isso, cada enunciado produzido por eles é único.
Na mesma RC, ainda observamos:
78
É essa dimensão social, dialógica e polifônica da linguagem que precisa perpassar as
práticas linguageiras da educação das crianças. As RCs são, na EI, importantes instrumentos
que dão a possiblidade de promover interações verbais entre as crianças e com adultos,
emmomentos nos quais a criança estabelece formas de pôr em interação suas ideias e
interpretações sobre o mundo que a circunda e de formar posições e compreensões.
Entendemos que, se a escola trabalhar numa perspectiva dialógica interlocutiva, se
assumir, desde a infância, um projeto formativo respaldado na enunciação polifônica,
apontada por Bakhtin (2006) como a interação de vozes no discurso, atuará de forma valiosa
no desenvolvimento da criança. Há que se destacar, no entanto, que essas vozes podem se
encontrar ou se entrechocar, porque têm liberdade para manifestar seus pontos de vista e
perspectivas diferentes.
O sujeito possui postura ativa na constituição do enunciado, como também a
construção fundada por ele depende das suas relações estabelecidas socialmente. Por isso,
Bakhtinnega o ideário de sujeito contrário à inserção social, justaposto ao social, como
também a concepção de sujeito dominado pelo ambiente sócio-histórico. Brait (2005) assim
se refere a respeito da formação do sujeito:
A autora reafirma, a partir de Bakhtin, que a constituição do sujeito se efetiva pela sua
relação com o outro, ocorre um processo dialético de troca na constituição do ser social, ‘‘Só
me torno eu entre outros eus’’. O sujeito, ainda que se define a partir do outro, ao mesmo
tempo, o define, é o ‘‘outro’’ do outro( BRAIT, 2005, p.22).
Para Bezerra (2005), estudioso e tradutor de textos de Bakhtin, a linguagem,
trabalhada na perspectiva dialógica do Círculo de Bakhtin e seus colaboradores, é entendida
como instrumento de humanização, insere-se num ensino de caráter emancipatório, que
trabalha a favor das classes dominadas. Esse fator ressalta a importância de conduzir, desde a
primeira infância a enunciação polifônica, que entenda a criança como um sujeito histórico,
social e fruto das relações culturais. Por isso, a necessidade de promover uma relação de
ensino também dialógica, que considere as vozes presentes nos discursos infantis, que são
plenos de significados hauridos no campo social.
Precisamos ouvir o que as crianças têm a dizer, valorizar seus enunciados, e não
79
entendê-los como discurso acabado, mas, sim, abertos a muitas interpretações, considerando
o contexto em que as interações foram produzidas e os sentidos que essa relação pode ter
gerado.
A EI constitui-se como espaço educativo envolvido por situações que incentivam a
expressão para atuar nas capacidades interlocutivas da criança. Ao organizar tais espaços, a
atenção deve se voltar à trajetória da apropriação da linguagem, promover situações
desafiadoras em que a criança a utilize para problematizar e buscar soluções criativas às
questões apresentadas no seu meio educativo, para ser sujeito no processo de ensino e
aprendizagem, com possibilidades de expandir seus conhecimentos.
Nesse sentido, a RC, como prática que objetiva ao trabalho com a linguagem verbal,
constitui umespaço singular, capaz de propiciar situações desafiadoras para a aprendizagem.
Dessa visada, na próxima seção trataremos do desenvolvimento da linguagem verbal na
criança, especialmente na criança da EI, como basena teoria histórico-cultural.
49
O discurso egocêntrico aparece quando a criança começa a falar, por volta dos dois anos de idade, e segue até
a idade pré-escolar, com quatro ou cinco anos. O seu desaparecimento ocorre processualmente.
81
e fenômenos do mundo circundante ocorre por intermédio das relações com os outros homens
e por meio da comunicação, dentro de um processo de educação’’.
De acordo com Facci (2004), a concepção vigotskiana destaca a mediação como
característica principal do psiquismo humano, desenvolvida através da atividade social. A
autora aponta que as funções psicológicas superiores (tipicamente humanas, tais como a
atenção voluntária, memória, abstração, comportamento intencional etc.) são resultado da
atividade cerebral, e mesmo que tenham base biológica, somente se desenvolvem a partir da
interação social, que ocorre mediada por objetos construídos historicamente pelos homens.
Segundo Vigotski (2009), as funções psicológicas superiores, especificamente
humanas, aparecem em dois momentos no decurso do desenvolvimento da criança:
primeiramente, nas atividades de ordem social, coletivas, ou seja, como funções
interpsíquicas; posteriormente, nas atividades individuais, como funções intrapsíquicas, ou
seja, como propriedades internas do pensamento.
Para Sirgado (2000),seguindo seus fundamentos em Vigotski, as funções psicológicas
superiores se diferenciam das elementares, que têm origem biológica, justamente por serem
constituídas, essencialmente de um caráter social, podendo ser entendidas como relações
internalizadas de ordem social, transferidas à personalidade individual. Assim, fica claro que
a linguagem tem papel decisivo na constituição da consciência, pois é o elo das relações
entre os sujeitos e instrumentos para a internalização da cultura.
Marsiglia (2011), seguindo essa mesma linha teórica, destaca o papel do professor, que
representa, no ambiente escolar, o parceiro mais experiente, responsável pela mediação da
criança com o mundo, que ocorre de forma intencional e sistematizada através do ensino, a
fim de buscar as máximas possiblidades de desenvolvimento humano.
Concordamos com Alves (2007), quando ressalta que a finalidade crucial da escola é
levar o sujeito a dominar os conhecimentos teóricos, o que, por sua vez, implica o domínio
de símbolos e instrumentos culturais acessíveis na cultura. Esse processo ocorre através da
mediação pedagógica, isto é, do ensino. Para a autora,
Com base nesses pressupostos, o papel do professor é levara criança a libertar-se dos
83
saberes cotidianos, extrapolar os conhecimentos populares, que são importantes, mas que não
bastam para a escola, que tem a função de humanizar o sujeito a partir do processo educativo
sistematizado e de elevação de pensamento às formas mais elaboradas. De acordo com
Vigotski (2009), os conceitos científicos não se desenvolvem da mesma forma que os
conceitos espontâneos, pois o curso do desenvolvimento desses processos tem vias diferentes.
A relação que a criança estabelece com os conceitos científicos é diferente da relação
quefirmacom os conceitos espontâneos. Os conceitos científicos se constituem no processo de
aprendizagem escolar através de novas motivações internas, pois é um processo diferente
daquele provido da experiência pessoal na criança. O papel do ensino é destacado pelo autor,
quando afirma:
No fundo, o problema dos conceitos não espontâneos e, particularmente, dos
conceitos científicos é uma questão de ensino e desenvolvimento, uma vez
que os conceitos espontâneos tornam possível o próprio fato do surgimento
desses conceitos a partir da aprendizagem, que é fonte de desenvolvimento.
Por isso o problema dos conceitos espontâneos e não espontâneos não é um
caso particular de um estudo mais geral da questão da aprendizagem e do
desenvolvimento (VIGOTSKI, 2009, p. 290).
Operar na ZDI requer prover tipos específicos de mediação, provocados pelo professor,
mediante planejamento das atividades e interações de linguagem. Requer, também,
capacidade/sensibilidade para receber as vozes das crianças e, nelas, perceber as
possibilidades interlocutivas, a partir das significações que tais vozes põem em movimento e
que manifestam suas compreensões, indicadoras da iminência ou não da aprendizagem.
Implica, a demais, reconhecer que não faz sentido a atuação unicamente nas aprendizagens
já consolidadas pela criança nem naquelas que muito se distanciam da zona de
possibilidades, porque não encontrarão âncoras para partirem às elaborações psíquicas.
Nesse sentido, a EI tem a importante função de levar as crianças a se apropriarem dos
conhecimentos historicamente constituídos, pois, neles, estão firmadas todas as qualidades
humanas. Por isso, a apropriação da linguagem como sistema semiótico pelo qual a criança
se apodera dos conhecimentos sobre a realidade, é vital, para que o sujeito passe, mediante
um processo mediado, à incorporação dos conceitos científicos, superando saberes
espontâneos adquiridos no senso comum.
Martins (2009) evidencia a importância de a EI assumir a finalidade de ensinar os
conteúdos culturais, afastando-se de perspectivas espontaneístas de ensino.
Marsiglia (2011) ressalta o papel do professor como responsável pelo arranjo desse
processo, que não é natural, mas vinculado ao desenvolvimento das funções psicológicas
superiores. Portanto, o desenvolvimento dos conceitos científicos está associado à mediação
do professor entre os conceitos espontâneos e formas superiores de conhecimento, pelo
ensino.
Facci (2004) complementa que a teoria histórico-cultural busca romper com a visão
idealista, proposta pelas demais correntes psicológicas que percebiam o intelecto como
aparato de adaptação da criança ao mundo. Nessa perspectiva, a relação da criança com a
sociedade se move pelas necessidades humanas formadas historicamente.
A criança atravessa estágios de desenvolvimento que se modificam de acordo com
suas necessidades psíquicas. Essas exigências se transformam,em decorrência das
transformações porque passam as potencialidades da criança.
Marsiglia (2011), com base em Elkonin e Vigotski,acrescenta que essas mudanças
acarretam as chamadas ‘’crises de desenvolvimento’’ que ocorrem com a passagem de um
estágio a outro. Facci (2004), explica que as fases do desenvolvimento infantil modificam-se
impulsionadas pela ‘‘atividade principal51’’, responsável por mediar as relações da criança
com o mundo em cada nível de desenvolvimento.
Arcee Martins (2009), fundamentadas nos pressuposto de Leontiev e Elkonin(1987)52
salienta que o desenvolvimento infantil pode ser analisado acertadamente, se fundamentado
na categoria de atividade. A autora aponta três características básicas que constituem a
atividade principal. A primeira é a de que, inerente a essas atividades, surgem outras de
natureza diferenciada; a segunda diz respeito ao fato de que os processos psíquicos se
produzem calcados nessas atividades; e a terceira é a de que é por meio da atividade
principal que ocorrem as mudanças psicológicas essenciais da personalidade infantil.
51
O conceito de atividade foi desenvolvido por Elkonin (1987) e refere-se às formas com que o sujeito se
relaciona com o mundo em cada período de seu desenvolvimento, ou seja, conforme muda o comportamento do
sujeito, também modificam-se as atividades que ele realiza de modo predominante em cada período, por
exemplo, no período pré-escolar a atividade principal é o jogo e a brincadeira.São essas atividades que
orientam o desenvolvimento do sujeito.
52
ELKONIN, D. Sobre el problema de la periodización del desarrollo psíquico en la infancia. In: DAVIDOV,
V; SHUARE, M. (Org.). La psicología evolutiva y pedagógica en la URSS(antologia). Moscou:
Progresso,1987.
86
[...] o estudo do desenvolvimento da psique da criança tem que partir do
desenvolvimento de sua atividade tal como ela se forma nas condições
concretas de vida. Porém, a vida ou a atividade em conjunto não se forma
mecanicamente valendo-se de tipos isolados de atividades. Alguns tipos de
atividades são, em uma dada etapa, principais e têm grande importância
para o desenvolvimento ulterior da personalidade; outras menos. Certas
atividades têm um papel principal no desenvolvimento; outras, um papel
subordinado. Por isso, não devemos discorrer acerca da dependência do
desenvolvimento psíquico em relação à atividade geral e sim relacioná-lo
com a atividade principal (ARCE, MARTINS, 2009, p,172).
53
VYGOTSKI, L.S. Obras escogidas. Madrid: Visor, 1996. v.4.
87
na total incapacidade biológica, ele é incapaz de satisfazer quaisquer das suas necessidades
básicas de sobrevivência. São os adultos que cuidam do bebê, e a relação intermediária com
os adultos é a via principal de atividade da criança nessa idade. A segunda peculiaridade que
caracteriza a situação social de desenvolvimento no primeiro ano de vida é a seguinte: embora
o bebê dependa do adulto, ele ainda carece dos meios fundamentais de comunicação social em
forma de linguagem. Dessa forma, “[...] o desenvolvimento do bebê no primeiro ano baseia-se
na contradição entre a máxima sociabilidade (em razão da situação em que se encontra) e suas
mínimas possibilidades de comunicação” (FACCI, 2004, p.67-68).
Logo que completa seu primeiro ano de vida, o bebê sente a necessidade de
experimentar o mundo de outras formas,apenas a comunicação limitada com o adulto não lhe
basta; ele sente a necessidade de uma colaboração prática. Por isso, Facci (2004) ressalta que,
através da linguagem, a criança, mediada pelo adulto, aprende a manipular objetos, criados
pela humanidade e reproduzidos, especialmente, com o uso de brinquedos.Assim, a atividade
principal passa a ser a objetal-instrumental.A esse respeito, Arce (2009) complementa que
‘‘se no transcurso do primeiro ano, o outro (adulto) ocupava o primeiro plano de suas
percepções e os objetos um segundo plano, agora, gradativamente essa situação se
inverte’’(ARCE, 2009, p.110).
De acordo com Elkonin (apud FACCI, 2004, p.68), até mais ou menos os 18 meses, a
criança ainda não compreende as funções simbólicas da linguagem constituídas por uma
operação intelectual consciente e altamente complexa. Mas, ‘‘por volta dos dois anos, a
criança apresenta grande evolução da linguagem, dando início a uma forma totalmente nova
de comportamento, exclusivamente humana. Inicia-se a formação da consciência e a
diferenciação do “eu” infantil’’. Nessa fase, a criança começa a utilizar a linguagem para
regular suas ações, transmitir informações, emitir opinião. Assim, as RCs são importantes
instrumentos para o trabalho com a linguagem verbal, levando a criança a lembrar de
situações, imaginar, relatar, enfim, favorecer o desenvolvimento das funções psíquicas
superiores.
No período pré-escolar, o jogo e a brincadeira passam aconstituir-se como a atividade
principal, através dos quais a criança se apropria da realidade concreta. A criança utiliza-se de
brinquedos para reproduzir ações realizadas por adultos. Por meio do brincar, elaopera com
objetos utilizados por adultos. Tornando-se consciente das ações realizadas por eles, adentra
ao mundo objetivo atravésdo brincar.
ParaElkonin(apud FACCI, 2004), com a entrada na escola, a atividade principal da
88
criança volta-se para o estudo. Nesse momento, ocorre a aquisição de novos conhecimentos,
que são incorporados por um processo intencional e sistematizado de ensino. Facci (2004)
classifica o ensino escolar como um estágioem que o aluno deve estar inserido em um
ambiente rico em cultura, que incorpore conhecimentos científicos, baseados em processos de
análise, reflexão e planejamento mental.
A adolescência, como novo estágio, tem como atividade principal acomunicação
íntima pessoal entre os jovens. Nesse período, o jovem transforma-se com relação ao adulto e
suas forças físicas, poisadquire, em relação a ele, uma postura de igualdade ou superioridade,
questionando as formas de agir que lhe são transmitidascomo corretas, torna-se crítico sobre
as ações dos adultos, como, também, aborda questões sobre os conhecimentos teóricos que
lhe são ensinados.
Conforme Facci (2004), através da comunicação pessoal com seus parceiros, o
adolescente constrói olhares diversificados sobre a realidade, sobre seu futuro e sua vida
profissional, direcionando para uma atividade profissional/ de estudo. ‘‘A etapa final do
desenvolvimento acontece quando o indivíduo se torna trabalhador, ocupando um novo lugar
na sociedade’’ (FACCI, 2004, p.71-72).
Para Facci (2004), mesmo com a chegada da adolescência, a atividade de estudo
continua presente entre os jovens, pois, esse exercício possibilita uma tomada de consciência
sobre as particularidades individuais que influenciaram o sujeito para sua escolha em relação
ao trabalho.
As atividades predominantes diferem de acordo com os períodos de desenvolvimento
do sujeito, o que não ocorre como um rompimento instantâneo, mas de modo dialético. Por
isso, são questões fundamentais ao processo formativo escolar refletir sobre como a criança
que frequenta a EI se utiliza da linguagem verbal como recurso para humanização, como esse
instrumento que perpassa todo o desenvolvimento do sujeito é tratado na escola, quais os
espaços e tempos destinados à expressão da criança como ser social que se apropria da cultura
humana, mas que,ao mesmo tempo em que é formada por ela, também a produz.
Reconhecendo o papel da linguagem verbal no processo de humanização do sujeito,
destacamos a função da RC como instrumento para o trabalho com a linguagem verbal na EI.
Por considerá-la uma instância educativa plena de possibilidades interlocutivas, cabe
compreender sua inserção na atividade formativa da EI como um gênero discursivo afeto ao
movimento dialógico dos enunciados e enunciações que põe em circulação. É com esse
propósito que, na próxima seção, discutiremos a RC em sua constituição de gênero discursivo
89
com base na perspectiva dialógica de linguagem.
90
permeados por ideologia. Para Bakhtin (2003), os gêneros primários, entendidos como os
diálogos cotidianos, constituem o cerne da linguagem, é com base neles que se originam
muitos gêneros secundários de ordem formal.
A RC pode ser classificada como um gênero secundário, pois, apesar de surgir de um
gênero primário, em que se possibilita uma conversa informal entre as crianças, com base em
seus conhecimentos e saberes prévios advindos de vivências e experiências do seu meio, ela
também possui uma sistematização com objetivos e finalidades referentes à transmissão de
saberes escolares. Ou seja, a RC constitui-se para cumprir propósitos específicos, assim, vai
além de uma simples conversa do cotidiano.
Além de ter finalidades muito peculiares, relacionadas ao trabalho com a linguagem
verbal na EI, a RC incorpora outros gêneros discursivos, como a contação e a leitura de
contos infantis, poesia(rima), a música, entre outros. Esses gêneros são utilizados para
trabalhar saberes específicos da EI.
A RC, nessa perspectiva, é compreendida como um hipergênero, atua como um grande
gênero, constituído por outros gêneros que se agrupam de maneira ordenada, estruturando-se
em um macroenunciado. A esse respeito, vale destacar a reflexão de Lima (2013), para quem
Na mesma turma, na RC-05, a professora conta uma história representada apenas com
ilustrações e solicita que as crianças a auxiliem na contação da história. Essa prática também é
realizada nas turmas do pré-I, na RC-12. Os excertos apresentados a seguir exemplificam a
RC como hipergênero, pela sua integração ao conto.
P1__Crianças, então, nós vamos ver aqui a história, o nome da história é ‘‘A menina das
Borboletas’’ de Roberto Caldas. O Roberto Caldas é o autor desse livro, então, eu vou mostrando as
figuras e vocês vão identificando a história, vamos ver quem sabe ir contando pra mim a história.
(RC-05).
P1___ Hoje, nós vamos contar a história juntos, hoje vocês não vão ficar só ouvindo e vendo, é vocês
que vão ajudáa profe a contar uma história a que a partir do desenho, que vai aparecer em cada
página do livro( RC-12).
92
AN___ Não ela tá indo passear na vó.
P1___O nome da autora é Sandra .
P1___ Era uma vez a sua vez...
P1___ Onde será que a menina tá indo?
JP___ Na casa da vó dela.
P1___ Na casa da vó dela? Hummm, e o que que vocês estão vendo aqui?
JP___ Já sei ela tá indo lá no sitio, não na vó(RC-12).
P1___ Hoje nos vamos falar sobre a cartinha do Papai Noel. Ontem, vocês conversaram, fizeram
desenho, fizeram uma cartinha pro Papai Noel, pedindo e desenhando o que vocês querem ganhar lá
no natal. Nós vamos fazer uma Roda de Conversa, e cada um vai contar o que desenhou na carta,
daqui uns dias o Papai Noel vai passar e vai ver o desenho.
JP___E daí vai ficar as pegadas dele.
P1___ É vai ficar as pegadas do Papai Noel.
Obs: As crianças cochicham.
MJ___ Eu fiz uma cartinha lá na minha casa e coloquei dentro do correio.
ME___ Eu também voulevar no correio.
JP___ Tem que levar dentro do correio.
P___ Para iniciar a aula de hoje vamos ler a história ‘‘O jardim de Ceci’’.
P___ A historinha de hoje é da coleção Rima pra cá, rima pra lá. O nome da historia é ‘‘A roda do
ônibus’’, e vamos lá.A roda do ônibus, roda, roda, roda, roda, a roda do ônibus, roda, roda, pela
cidade. Te lembra alguma musiquinha?
Todos falam juntos__ Sim.
P__A roda do ônibus roda, roda, roda, roda, roda, roda.
RN___ Passa na minha televisão.
P___ Isso, tem a musiquinha.
RN___ Passa na televisão que eu já vi.
O conteúdo temático pode ser classificado como o tema, designado por Bakhtin (2006)
como elemento constituidor da enunciação, pois reflete uma situação histórica e concreta.
Bakhtin (2006. p. 132) enfatiza que o tema está associado ao contexto da enunciação. ‘‘O
tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, que procura adaptar-se adequadamente às
condições de um dado momento da evolução’’. Esse elemento está indissoluvelmente ligado à
significação, que representa ‘‘um aparato técnico para a realizaçãodo tema’’.
Portanto, o tema determina e é determinado pela enunciação, que deve ser analisada a
partir do contexto em que foi construída. Por isso, os sentidos formulados no momento da
94
constituição dos enunciados estão relacionados a um momento histórico específico e à
subjetividade dos envolvidos no diálogo. Assim, todo enunciado concreto é produzido a partir
de um tema e de sua apreciação valorativa.
Toda palavra usada na fala real possui não apenas tema e significação no
sentido objetivo, de conteúdo, desses termos, mas também um acento de
valor ou apreciativo, isto é, quando um conteúdo objetivo é expresso (dito
ou escrito) pela fala viva, ele é sempre acompanhado por um acento
apreciativo determinado. Sem acento apreciativo, não há palavra
(BAKHTIN, 2006, p.135,136, grifo nosso).
E a totalidade do discurso está abrangido pelo tema. É sempre irrepetível, cada sujeito
tem uma interpretação única, que é também determinada pelo contexto da interação. Nas RCs,
por exemplo, alguns assuntos se repetem como falar sobre o ‘‘final de semana, natal,
brincadeiras’’. No entanto, são discursos diferentes, formulados em contextos diferentes, com
crianças com interpretações singulares, mas que sempre expõem o sujeito a uma atitude de
responsividade. Logo, o conteúdo temático é diferente.
O estilo, outro elemento constituidor do gênero discursivo, é compreendido na
perspectiva bakhtiniana como ‘‘acabamento estético’’, que pode estar aberto a
transformações.
Chamamos estilo à unidade constituída pelos procedimentos empregados
para dar forma e acabamento ao herói e ao seu mundo e pelos recursos,
54
Desenho animado. ‘‘Moranguinho’’ é o nome da personagem que se veste com roupas estampadas de
morango.
96
determinados por esses procedimentos, empregados para elaborar e adaptar
(para superar de modo imanente) um material (BAKHTIN, 1997, p. 215).
97
Outro elemento do gênero, a construção composicional, define-se como a forma de
organização do gênero, como, por exemplo, o poema, que é organizada em estrofes, ou a
notícia com a manchete. A RC é organizada numa sequência de falas entre os participantes,
definida conforme as orientações que a professora decide para seus propósitos de interlocução
e ensino. As falas podem ser em forma de perguntas e respostas ou de afirmações em
contiguidade – como podemos observar nos excertos de RC apresentados neste texto.
A construção composicional pode ser analisada com base em dois elementos
principais. Primeiramente, investiga-se a ‘‘organização do conteúdo verbal’’, as relações que
ocorrem entre os envolvidos na enunciação. Posteriormente é preciso considerar a
‘‘materialidade do enunciado’’, ou seja, como ele se organiza.‘‘A forma não pode ser
compreendida independentemente do conteúdo, mas ela não é tampouco independente da
natureza do material e dos procedimentos que este condiciona’’ (BAKHTIN, 1997, p.206).
Nas RCs, as crianças são incentivadas a falar sobre determinado assunto, no entanto,
as professoras organizam de maneira que sigam uma ordem determinada para falar
(geralmente manifestam-se, seguindo uma sequência estabelecida pelo lugar em que se
sentam), a fim de evitar que todas falem juntas e causem um tumulto na conversa. O trecho a
seguir (RC-15) demonstra como a ‘‘forma’’ estabelecida pelas professoras orienta a
participação da criança no diálogo e a exposição de sua responsividade.
P1___ A nossa Roda de Conversa hoje, hoje, como é segunda feira, é o primeiro dia da semana que
vocês estão vindo pra creche, então, vocês ficaram sábado e domingo em casa, agora cada um vai
falar o que fez no final de semana. Se foi passear, do que brincou, o que que fez.
JP___ Profe, profe eu quero falar eu quero contar uma coisa.
JP___ Profe, profe...
P1___ O que que cada um fez...
JP___ Profe, eu quero falar.
P1___ Sim, a gente vai fazer a nossa Roda de Conversa. Quando chegar a sua vez, dai você vai falar,
tá bom JP.
Assim, podemos notar uma preocupação de PI em que todas as crianças possam falar e
que também saibam escutar o que os colegas têm a dizer.A princípio, poderíamos caracterizar
como rígida sua organização, como atitude de fechamento do diálogo, mas a compreendemos,
também, com base na perspectiva histórico-cultural, como um elemento do discurso
pedagógico intencional que atua no desenvolvimento das funções psíquicas da criança.
Como atividade social humana, a RC também está imersa num contexto de
contradições. Ao mesmo tempo que é espaço de diálogo entre os participantes – condição em
que cada um falaria em resposta a todos – situa-se nos limites que a condição escolar lhe
98
atribui, em quea função reguladora da palavra da professora constitui instrumento semiótico
que pode dar ou nãoorganicidade aos diálogos nascentes. Nesse sentido, entendemos a
‘‘construção composicional’’ como a maneira de organizar a enunciação, na sua totalidade de
forma e conteúdo.
Vale destacar, portanto, que essa organização também é determinada pelo tema e pelo
estilo. esses três elementos relacionam-se para atender as necessidades de diferentes esferas
de comunicação. E a RC, inserida na esfera escolar, é organizada para a professora conduzir o
processo cognitivo das crianças, ordenando tempo, espaço, modo, relações com a alteridade,
escuta etc., para organizar a argumentação de cada uma, tendo em vista o desenvolvimento de
importantes funções psíquicas superiores, como, por exemplo, a memória mediada e lógica, a
atenção voluntária, a generalização, da abstração, entre outras (VIGOTSKI, 2009). Sua
construção composicional, seu conteúdo temático e seu estilo convocam para sua
intencionalidade discursiva.
A RC, como gênero discursivo, em que se produzem enunciados concretos, tem uma
dimensão viva. O discurso, nessa perspectiva, extrapola a materialidade linguística, poisa
língua, em qualquer campo em que for empregada, está impregnada de relações dialógicas
que perpassam a dimensão verbal e adentram ocontexto extraverbal (BAKHTIN, 2010).
Como vimos discutindo, a análise do enunciado, na perspectiva bakhtiniana, não se
reduz, exclusivamente, a aspectos verbais, mas compreende também o extraverbal. Nessa
dimensão, o enunciado se plasma imerso numa relação indissociável do tempo e do espaço em
que se produz – o cronotopo. Para Amorin (2014), o cronotopo configura-se como um
elemento indispensável para aanálise do discurso, porque propicia uma reflexão situada no
tempo e no espaço, contudo, seuprincípio primeiro dirige-se para a apreensão do tempo
histórico em que o enunciado foi produzido. A partir de Bakhtin, Amorim (2014, p.112)
aponta a necessidade de analisarmos a constituição do enunciado pautado em um olhar
cronotópico, ou seja, ‘‘a capacidade de ver o tempo, de ler o tempo no espaço e,
simultaneamente, de perceber o preenchimento do espaço sob a forma de um todo em
formação [...]’’.
De acordo com o GEGe (2013), o cronotopo relaciona-se ao que Bakhtin denomina
‘‘grande temporalidade’’, ou seja, ‘‘a expressão de um grande tempo’’. ‘‘Enquanto o espaço é
social, o tempo é histórico, pois é a dimensão do movimento no campo das transformações e
dos ‘acontecimentos’’’.(GEGe, 2013, p. 25).
Na RC-13 (pré I) apresentada abaixo e cujo conteúdo temático relaciona-se com o
99
natal, a professora sugere que as crianças falem sobre a cartinha que fizeram ao Papai Noel.
P2___ Oque que tem quefazer pro Papai Noel trazer os Presentes?
JP___ Eu sei, eu sei, eu sei, tem que trazer um leite e um biscoito pra ele.
P2___ Não. O que que tem que fazer o ano inteiro?
JP___ Ele tem que trazer presentes pras crianças.
P2___Mas o que que as crianças têm que fazer pro Papai Noel trazer os presentes?
JP___ Vê o que tem dentro do saco.
NL___ Obedecê
P2___ Olha o que a NL falou. O que tem que fazer NL?
NL___ Obedecê
P1___Obedecê. E rezar também pro menino Jesus, que o natal não é só Papai Noel trazer presente.
Na fala de JP, identificamos uma criatividade muito interessante para responder aos
questionamentos das professoras (P1 e P2). Ele foge ao esperado pelo discurso dela e enuncia
seus sentidos55 sobre o tema, dizendo que, para ganhar o presente tão esperado durante o ano
todo, pelo papai Noel, é preciso simplesmente servir leite com biscoito ou olhar o que tem
dentro do saco de presentes dele. Suas respostas trazem a imaginação criadora, mas não são as
respostas que “servem”. A única resposta valorizada no discurso pedagógico foi a de NL, para
ganhar os presentes é necessário obedecer. Cabe destacar, nesse episódio, também, a
dissociação entre o tempo da criança, que vê o natal como tempo do papai Noel trazer
presentes – um tempo próprio da infância –, e o tempo da professora – tempo imediato, com
objetivos limitados a um discurso pedagógico. Ambos, porém, estão imersos numa grande
55
O sentido é sempre uma formação dinâmica, variável, que tem zonas de estabilidade diferente, pois,
estãorelacionadas a singularidade do sujeito. O significado é compreendido como uma dessas zonasdo
sentido, a mais estável, coerente e precisa, está ligado ao conceito na sua totalidade (GÓES, CRUZ,
2006).
100
temporalidade constitutiva dos sujeitos, mesmo com seus laivos ideológicos conflitantes.
Nessa perspectiva, Bakhtin (2006) salienta que em todo signo ideológico confrontam-
se índices de valor contraditórios, ou seja, desde a EI, incutem-se regras, normas de conduta,
reforçam-se padrões morais, ideologias que são transmidas às crianças como corretas, pois,
como está no enunciado da professora,aquela criança que não ‘‘rezar e obedecer’’, talvez não
mereça ter natal? Ou ganhar presente? Assim, o discurso presente nessa RC, reveste-se de um
conteúdo moral, para serviràreprodução da visão burguesa conservadora de mundo, num
movimento em quea linguagem da criança e da professora constitui-se como campo de
disputas hegemônicas e contra-hegemônicas, repleta de ideologias, e a escola pública é palco
dessa disputa histórica. Ou, como diz Bakhtin (p.173), essa linguagem “é a arena em que se
defrontam e lutam duas entoações dois pontos de vista, dois discursos”. Outra reflexão
importante decorrente dessa RC refere-se àatitude responsiva das criançasJP e NLperante as
indagações da professora. Ambos procuram estabelecer um diálogoque vai desde a pergunta
com uma resposta já definida pela professora, até as respostas criativas de JP,ou as de NL, que
procura responder o que a professora quer ouvir, entrando no consenso ideológico. Para
Bakhtin (2003), toda relação em que se produz ‘‘sentido’’ entre os sujeitos é, essencialmente,
dialógica, visto que a própria compreensão já é dialógica. Na RC, por exemplo, muitas
crianças não se manifestaram verbalmente sobre o questionamento daprofessora (P2),
contudo, isso não significa que não constituíram atitude responsiva. Na perspectiva
bakhtiniana a própria auditividade, produz uma relação dialógica, ‘‘a palavra quer ser ouvida,
entendida, respondida e mais uma vez responder a resposta e assim ad infinitum’’
(BAKHTIN, p.334, 2003). Como o autor argumenta,
Isso decorre da natureza da palavra, que sempre quer ser ouvida, sempre
procura uma compreensão responsiva e não se detém na compreensão
imediata, mas abre caminho sempre mais e mais a frente (de forma
ilimitada). [...] Para a palavra (e consequentemente para o homem) não
existe nada mais terrível do que a irresponsividade [...] (BAKHTIN, p.333,
2003).
P1__Hoje, falando em gostos, cada criança, cada pessoa tem um gosto, e no nosso assunto sobre
gostos, cada um vai falar sobre o brinquedo, a brincadeira que mais gosta.Pode ser lá em casa, pode
ser aqui no CMEI. Você pode falar do brinquedo que mais gosta de brincar.
As crianças, na idade da EI, são fascinadas por brincadeiras, tanto que, muitas vezes,
elas fogem do asssunto que a RC propõe para contar sobre um brinquedo novo ou sobre o que
brincaram no dia anterior. Por isso, quando a professora tem a sensibilidade de olhar para esse
universo e tentar fazer com que a criança o expresse verbalmente, ela realiza esse exercício
exotópico. Também, nesse caso, elas se remetem aos outros discuros e vozes que já ouviram e
que compõem sua singularidade de sujeito social. [“cada enunciado é um elo da cadeia muito
complexa de outros enunciados” (BAKHTIN, 2003, p.292).]
Nessa perspectiva, os conceito de cronotopo e exotopia estão intimamente
relacionados na arquitetura bakhtiniana, ambos procuram situar o enunciado no tempo e
espaço de sua produção, ou seja, constituem-se sobre a dimensão extraverbal. Enquanto o
cronotopo se refere mais diretamente ao tempo histórico da constituição do enunciado, a
exotopia direciona-se a desvendar questões sobre o lugar do autor, quem é o sujeito que nos
fala, quais as concepções valorativas que ele assume.
À luz daperspectiva histórico cultural edateoria dialógica da linguagem, buscamos,
neste capítulo realizar uma reflexão sobre o desenvolvimento humano, especialmente sobre o
papel vital da linguagem na constituição da consciência. Iniciamos nossa argumentação,
102
ressaltando o papel da mediação semiótica e da interação verbal, na constituição humana, para
trilharmos um caminho em direção ao nosso objeto,aRoda. Posteriormente, apontamos a RC,
como prática de trabalho com a linguagem verbal quese caracteriza como espaço privilegiado
de movimentação dialógica e polifônica da voz da criança. Enfim, chegamos à RC como
gênero discursivo, que traz à tona a singularidade infantil, mas, também,o comprometimento
na sua forma e organização para cumprir a função social da escola, o ensino. No capítulo que
segue, pretedemos analisar como sãoas interações verbais constituídas nas RCs e quais as
contribuições dessa prática na formação da criança, identificando seus elementos formativos.
CAPITULO III
A CONSTITUIÇÃO DO SER CRIANÇA NAS INTERAÇÕES DA RODA DE
CONVERSA
104
ouvir as crianças, suas angústias, incertezas e ideias. A RC é um importante espaço dialógico
em que a criança pode participar da escolha do tema, para falar daquilo que gosta, falar o que
pensa e o que sente. É, também, um espaço planejado de discussão, de transmissão
intencionaldo saber sistematizado.
Com o intuito de realizar uma reflexão coerente com a teoria que nos fundamenta,
analisaremos as falas das professoras, obtidas mediante entrevistas (entrevista-apêndice 4)e
procuramos identificar como são planejadas as RC,como os conteúdos culturais estão
presentes no movimento da Roda, e como as crianças se posicionam diante deles.Para isso,
depois de gravadas e transcritas, relemos as entrevistas, buscando identificar as recorrências
nos discursos, por uma síntese que nos permitiu categorizar elementos comuns nas respostas
das três participantes da pesquisa.
Tais elementos são organicamente relacionados às interações verbais constituintes das
RC, razão pela qual nossa análise sustentar-se-á nos discursos proferidos pelas professoras,
ante as entrevistas, e nas interações desencadeadas nas RC, que foram gravadas em áudio
eouvidas atentamente. Assim, frente aos dados produzidos na pesquisa, orientadas pelos
nossos fundamentos/conceitos que nos permitem haurir significações, num movimento de
práxis,buscamos aprofundar nosso caminhar na direção dos objetivos.
Quanto ao planejamento das RC, as professoras das três turmas salientamque:
A RC é planejada a partir dos conteúdos do planejamento do professor (que se
fundamentamna proposta curricular do município, apresentada no primeiro capítulo).
As professoras do maternal-II e pré-I acrescentam que:
As RC também são realizadas a partir de temas livres (ex.: final de semana).
Percebemos que as RCs são organizadas para cumprir finalidades específicas
referentes à transmissão de saberes escolares, poisse orientam em um planejamento
didático/pedagógico,pelo qual se submetem à proposta curricular municipal para a EI. No
entanto, em seus depoimentos, as professoras dos CMEIs identificam a necessidade de
abordar temas que contextualizam o universo infantil, os chamados ‘‘temas livres’’, que
refletem o cotidiano das crianças, permitem maior participação,na medida em que
possibilitam criar, imaginar, relatar, relembrar fatos, expor opiniões e expressar autoria.
Os desvios e rupturas que as crianças promovem na tentativa de dizer o que estão
pensando, contar uma experiência, falar sobre o que estão sentindo, interpretados como
tentativas de ‘‘fugir’’ do tema proposto pela Roda, são bastante frequentes nas RCs. As
professoras do maternal-II e pré-I tratam o fato como natural e julgam necessário deixar que a
105
criança exponha o que pensa naquele momento, para, posteriormente, retomar o assunto
inicial. Quando questionadas sobre essas ‘‘fugas’’, pelas crianças, do conteúdo proposto para
a conversa,as professoras do maternal-II e pré-I destacamque, quando fogem, é necessário
deixar que falem, para depois retomar o conteúdo trabalhado.
A professora da turma do pré-I acrescenta que é importante que todos falem, e quando
a criança não entende, é necessário voltar e explicar.
Essa prática pode ser evidenciada naRC-04 (maternal-II):
A professora do pré-II acredita que as fugas ocorrem devido à criança não ter
compreendido a proposta. Então é preciso voltar e explicar novamente para que não se desvie
o conteúdo planejado. Nesse sentido, percebemos como a RC pressupõe uma intencionalidade
educativa, que é cuidadosamente considerada.
A EI constitui-seâmbito educativo, em todos os sentidos, e o ensino, além de requerer
um papel ativo dos participantes, exige seleção dos conteúdos culturais que serão postos em
interação, com o objetivo de promover a aprendizagem e o desenvolvimento da criança. A
esse respeito, retomamos as ideias de Vigostki (2009) que aponta o ensino como processo em
que se atua no nível de aprendizagem e de conhecimento em que a criança se encontra e
apresenta desafios possíveis de serem resolvidos, a partir da colaboração dos demais sujeitos
da interação. Para promovê-lo, a criança precisa ser desafiada a superar o status atual do seu
conhecimento e mobilizada a agir além daquilo que já sabe. Nesse movimento, há que se levar
em consideração que as atividades realizadas na idade pré-escolar originam relações
especificamente novas entre o pensamento e a ação e que atuam no desenvolvimento dos
conceitos cotidianos, para os científicos (VIGOTSKI, 2009).
Nessa perspectiva, nega-se a espontaneidade e acredita-se na necessidade de
haverensino na EI, com o professor no importante papel de intervenção pedagógica, que deve
estar voltada ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Ensino que se efetiva
de maneiras diversas,envolve as experiências variadas da criança, entre as quais a interação
verbal tem lugar de destaque.
De acordo com Mello (2005, p.24), é preciso deixar contaminar o ‘‘Ensino
106
Fundamental com atividades que julgamos típicas da Educação Infantil e descontaminar a
Educação Infantil com atividades típicas do Ensino Fundamental’’. Atividades como a RC,
por exemplo, são vistas pelo meio social como ‘‘improdutivas’’, mas, são essenciais para
“formação da identidade, da inteligência e personalidade da criança’’.
Com base em Vigotski, Martins (2009) aponta que é necessário superar as práticas
cotidianas espontaneístas na direção de ações educativas que promovam as máximas
possibilidades de desenvolvimento humano. A disposição, pelo professor, de conhecimentos
que interfiram de modo indireto e direto no desenvolvimento da criança é condição
indispensável para isso, porquepromovem o desenvolvimentodos conceitos espontâneos,
cotidianos, para os científicos e a formação das funções psíquicas superiores.
Segundo Martins (2009, p.96),os conteúdos de interferência indireta são denominados
de conteúdos de formação operacional, compreendem os saberes interdisciplinares que
devem estar sob o domínio do professor e subjacentes às atividades disponibilizadas aos
alunos.Incorporam os saberes pedagógicos, sociológicos, psicológicos, de saúde etc. Esses
conhecimentos não serão transmitidos aos alunos em seus conteúdos conceituais e promovem
nos sujeitos uma aprendizagem indireta. Ex.: autocuidados, hábitos alimentares, destreza
motora, vivências grupais, valores etc.
Os conteúdos de interferência direta, chamadosconteúdos de formação teórica,
abrangem os domínios das várias áreas do saber científico, transmitidos sob a forma de
saberes escolares. São repassados de modo sistemático e organizados em conteúdos
conceituais, precisam ser ensinados, porque contribuem para a superação gradual de
conhecimentos espontâneos em direção à apropriação teórico-práticado patrimônio intelectual
da humanidade (MARTINS, 2009, p.96).
As ‘‘fugas’’citadas pelas professoras, por exemplo, abrangem conteúdos de formação
operacional, pois, muitas vezes, a criança quer trazer algo de seu cotiadino que pode ser
importante para ela, pode ser explorado e discutido com a turma. Mas cabe, também, ao
professor, transmitir os conteúdos de formação teórica, essenciais na constituição das funções
psíquicas superiores, ou seja, é necessário partir do cotidiano da criança em direção ao saber
sistematizado.
Martins (2009) salienta que, na EI, estão presentes os conteúdo de interferência direta
e indireta, e que devem ser trabalhados de modo indissociável, principalmente, materializados
nos atos de cuidar e educar, próprios dessa etapa educativa. A formação de ordem operacional
e teórica deve estar em consonância com períodos de desenvolvimento infantil que sofrem
107
uma proporcionalidade inversa na EI. Isso é demostrado na figura1 elaborada pela autora.
56
Na perspectiva dialógica, os conteúdos temáticos e os culturais são inseparáveis, mas, na pesquisa, optamos
por realizar uma separação apenas de ordem “didática” para evidenciar como a RC é uma instância educativa,
sem perder seu caráter de prática dialógica e interlocutiva.
108
II
02 MATERNAL- Contação de história (Não Práticasdeoralidade.
II Confunda)
03 MATERNAL- Fazer chamada Gêneros (menina e menino)
II Noção de tempo e clima (sol e
chuva)
Aprender a esperar a vez para
falar.
Identificação das estações do
ano (proteção do sol,
vestimentas).
04 MATERNAL- Brinquedos e brincadeiras Respeitar as diferenças (cada
II um tem um gosto).
57
Livro: A roda do ônubus (Coleção: Rima pra cá, rima pra lá,) FNDE. A história resulta na ilustração
damúsica a roda do ônibus- Xuxa.Acervo da escola.
110
Figura 2. Foto de um trecho do livro de histórias: A roda do ônibus. Dados da pesquisa,
2015.
P___ A turma do ônibus sobe, desce, sobe, desce, sobe, desce. A turma do ônibus sobe, desce pela
colina. E agora tem muita gente dentro desse ônibus?
Crianças____ Tem.
P___ Bastante. né! Será que eles estão sentados?
Crianças___ Não.
P___ E é certo?
Crianças____ Não.
P___ Oque agente tem que fazer no ônibus?
Crianças___ Sentá.
IG___ Sentar e ficar quietinho, e sem levantar do ônibus.
P___ Muito bem!
Figura 3. Foto da capa do livro de histórias: Devagar e sempre. Dados da pesquisa, 2015.
Nesse trecho, apesar de haver uma interação viva e dinâmica, também, identificamos
aspectos do discurso escolar, quando a criança responde conforme o que acha que a
professora quer que responda.
Na RC-14 sobre a ‘‘comida preferida’’, JP retrata seus gostos em relação aos alimentos. A
professora comenta sobre o gosto da criança e acrescenta explicações sobre os alimentos que
podem prejudicar a saúde.
58
SCHAMEMANTEL, M. Ramon. Devagar e sempre. Sonar Editora, 2011.
112
P1____E o JP?
JP____ Eu gosto de comer risoto, polenta59 e feijão e carne e brigadeiro e também corinho e também
pão e café.
P1____O corinho? O corinho da carne de galinha que vocêgosta de comer né?
JP____ Sim.
P1___Só que não pode comer muito.
JP___ Só um.
P1___Só um pedaço, se não, faz mal, é muita gordura, aí faz mal pro coração.
JP___É aífica gordo e morre.
P1___ Não, daí fica doente, tem que cuidar pra comer um pouquinho só.
Na conversa, a professora ainda aproveita para lembrar que IG não estava comendo
feijão o suficiente, e que esse alimento é importante para o desenvolvimento do corpo.
Também NC é elogiada por gostar de comer frutas e verduras. Além de possibilitar que as
crianças falem sobre seus gostos alimentares, as professoras aproveitam para ensinar noções
de hábitos alimentares saudáveis, como exemplifica o excerto da RC-14.
P2___Vamos lá, vamos começar pela IS. IS qual que é sua comida favorita?
IS___ Polenta e carne.
P2___É, é só isso?
IS___ Só.
P2___Ébem gostoso mesmo.
P2___IG?
IG___ Eu gosto de feijão.
P2___É, mais você não estava comendo feijão ultimamente, tem que comer, para crescer forte.
P2___E o HR?
HR___ Eu gosto de comer banana.
P2___ Banana! Huuum...
P1___Vamos ouvir a NC agora, vamos ouvir a NC O que que a NC mais gosta de comer?
NC___ Morango e alface e tomate.
P1___ Muito bem, isso é muito bom e faz bem.
JP___ Eu também gosto de comer morango.
P1___É, morango, e o que mais?
NC___ Alface e tomate e brigadeiro e morango.
P1___E o JG?
JG___ Feijão, arroz, cenoura, polenta, macarrão e carne moída.
P1___É. Isso aí
LC___ Eu também gosto de comer polenta e macarrão.
Apesar de a professora elogiar NC, por gostar de comer frutas, ela não amplia a
discussão sobre a fruta morango, que não é consumida habitualmente entre as crianças. NC e
JP citam a fruta morango, mas a professora deixa de explorar o enunciado infantil, talvez
porque outras crianças desconhecam a fruta ou, ainda, porque ela não é comum em nossa
região e tem custo elevado. Mesmo que a fruta não fizesse parte de modo habitual da
alimentação das crianças, a discussão deveria ser aberta, principalmente para explorar. Deste
59
A cultura italiana está presente entre os alunos. Pratos como risoto e polenta são muito apreciados e próprios
da culinária da população da região em que realizamos a pesquisa, por isso, eles são citados no decurso da RC.
113
modo, o diálogo fica submetido ao saber cotidiano, o que não amplia o universo de referência
da criança.
Na RC-03 (maternal-II), a seguir, também identificamos atransmissão de valores
relacionados aos cuidados com a saúde nas estações mais quentes do ano. No entanto, não se
exploram com detalhes quais as características climáticas dessas estações. Pede-se para as
crianças responderem sobre a estação de ano, e PL apresenta uma resposta bem pertinente ao
tema, que é comentada pela professora e explorada superficialmente.
P1___ A nossa Roda de Conversa hoje, hoje, como é segunda feira, é o primeiro dia da semana que
vocês estão vindo pra creche.Então, vocês ficaram sábado e domingo em casa, agora cada um vai
falar o que fez no final de semana. Se foi passear, do que brincou, o que que fez.
JP___ Profe, profe, eu quero falar eu quero contar uma coisa.
JP___ Profe, profe...
P1___ O que que cada um fez...
JP___Profe, eu quero falar.
P1___ Sim, a gente vai fazer a nossa Roda de Conversa, quando chegar a sua vez daí você fala, tá
bom JP.
P1___Vamos falar bem alto, para os coleguinhas poderem ouvir. Vamos lá, com HR, vamos lá falar o
que que o HR fez o final de semana.
HR___ Eu fiz um avião.
P1___O quê? Você fez um avião?
HR___ Brinquei, fez um barulhão.
P1___ Você ficou em casa?
HR___ Sim.
P1___ E o AD, o que você fez o final de semana?
AD___ Fiz bolinha.
P1___ Fez bolinha, bolinha de sabão?
AD___ Sim.
60
Os nomes descritos pelas crianças foram substituídos, para preservar a identidade dos sujeitos da pesquisa.
115
P1___ Vamos, então, sentar, nós vamos conversar sobre a família. Quem é a família?
JP___ Eu sou a família.
P1___ Família é as pessoas que moram com a gente.
JP___ Eu tenho uma família bem grandona.
P1___ Que pode ser o pai, a mãe, ou só o pai, ou só a mãe, ou o pai, a mãe e os irmãos, ou a vó, ou o
pai, a mãe e vocês.
JP___Ô profe, e também a prima e o primo, e também o outro primo, prima e também o padrinho e a
madrinha.
P1___ Hum! Mas, hoje nós vamos falar da família que são aquelas pessoas que moram junto com a
gente, lá na casa de vocês.
P1___ Aí nós vamos começar aqui pelo IG, e ele vai falar onde ele mora, com quem ele mora, quem
mora junto com o IG, na sua casa.
IG___ Minha mãe e meu pai.
P1___ Mãe e pai. E você sabe dizer o nome deles? Como é o nome de sua mãe?
P1___ Vamos deixar o JP falar.
JP___ Não, com a minha mãe e o meu pai. E o nome do meu pai é (tenta lembrar, mas demora, e a
professora decide ajudar).
P1___Edenilson. Edenilson, né, e o nome de mãe é Francine.
JP___O Edenilson e a Francine.
P1___ E por que você está morando com o vô e a vó?
JP___ Por, por, eu sei profe, é porque daí, nós vamos se mudar e daí, daí o Bujão tá arrumando
nossa casa e daí eu sempre vou lá conversácom o Bujão.
P1___ Quem é o Bujão?
JP___ Uma vez ele veio aqui, e tava ali atrás, e eu conversei com ele.
P1___ Ele é o pedreiro?
JP___ É.
P1___ E ele tem o apelido de Bujão?
JP___ Sim. E daí eu tenho a minha vó Alzira, o vô Jorge, e também, e também minha madrinha e meu
padrinho, e a minha prima e o meu primo e o meu primo que é o Gu, e a minha outra prima que é a
Mari, e outra prima.
P1___ É isso. E a GL? Quem mora com você GL?
GL___ Meu pai, minha mãe e meu mano.
P1___ E como que é o nome da mãe?
JG___ Eu tenho minha mãe, meu pai, tio, tia, prima, primo e mais uma prima.
P1___É, e quem que mora com você na tua casa?
JG___Só eles.
P1___Eles quem?
JG___ Meu pai, minha mãe, meu vô e minha vó.
P1___ Moram todos numa casa só?
JG___ Não, num prédio.
Na mesma RC, além de trabalhar a concepção de família, a professora aponta que cada
pessoa da família temum nome e destaca a importância de as crianças saberem os nomes de
seus familiares.
Cuidados com o meio ambiente é outro conteúdo cultural tratado nas RCs,
principalmente, ao abordar o conteúdotemático ‘‘plantas’’. Na RC-20, a professora aproveita
para relacionar o conteúdo da história com o dia a dia das crianças. Notamos essa
preocupação, quando ela aponta para as crianças a necessidade de cuidar das plantinhas que
eles têm em casa.
P___ E vocês, em casa, se não chove, fica uns dias de sol, vocês molham as plantinhas?
Crianças___ Sim.
RN___ Ô profe, eu molho as minhas plantinhas.
JO___ Ô profe, eu não tenho plantinha.
P___ Nem uma?
JO___ Não.
P___ Elas precisam de água.
RN___ Eu peço pro meu pai e até pra minha mãe molhar.
GI___Ô profe, sabia que lá na minha casa tem cata-vento colorido.
P___ É. Igual às flores?
117
GI___ Sim.
GB___ Na minha casa tem cada flor colorida.
PL___Ô profe, eu molho as saladas.
P___ As saladas, é, tem que molhar, senão você não tem salada pra comer.
P___ Valeu a pena ela cuidar das margaridas, pra ninguém pisar em cima, ninguém arrancar as
florzinhas.
GI___ As borboletas tá aumentando.
P___ Aumentaram.
RN___ Cresceu muito.
P___ Apareceu um monte de...
Crianças ___ Flor.
RN___ Margaridas.
P___ Gostaram da historinha.
Crianças___ Sim.
RN___ Eu gostei muito.
P___ Se a gente cuidar, ela cresce e vem mais, mas agora e se a menininha desistisse de plantar a
florzinha, ia ter bastante florzinhas lindas?
Crianças___ Não.
P___ Porque ele podia ter desistido, não podia? De tanto ter gente passando por cima, e o
cachorrinho fez xixi (risos), mas ela gostava das flores, ela resolveu cuidar, chegou até dormir lá, né.
Olha que lindo que ficou o jardim.
P___ É essa a história da nossa aula de hoje.
Figura 4. Foto da página do livro de histórias: A menina das borboletas. Dados da pesquisa,
2015.
Para compreendermos o papel da mediação pedagógica (simbólica) na formação do
sujeito, a partir da transmissão dos conhecimentos históricos, valemos-nos das escritas de
Alves, a respeito da natureza dos conteúdos escolaresque, nesta pesquisa, tratamos como
conteúdos culturais do currículo escolar:
61
CALDAS, Roberto. A menina das borboletas. SP, 1990.Acervo da escola.
118
O conteúdo que perpassa o processo de mediação pedagógica e que compõe
o movimento interativo através do qual se forjam novas e mais complexas
habilidades intelectuais é também o conteúdo que problematiza a realidade
dos sujeitos e os mobiliza para ações conscientes na direção da
transformação da realidade (ALVES, 2007, p.134).
P1___ Como vocês já viram,lá na história do gato, que é um animal doméstico62, que mora lá na casa
da gente, mora dentro de casa ou pode ser no sítio também, porque é um animal doméstico. E agora
cada um vai falar se tem ou se não tem um animal em casa, se tem um animalzinho doméstico ou lá no
sítio, se tem alguém que mora no sítio que nem a MJ, né MJ?
MJ ___Eu não moro no sítio.
P1___ Não mora no sítio mais?
MJ ___Minha mãe mudou, perto da casa da minha amiga NT.
P1___ E lá na casa do AD tem o quê?
AD___ Tem galinha.
P1___ Tem galinha. E na casa da CR?
CR___ Não tem nenhum.
P1___ Não tem nenhum bichinho, e na casa da vó?
CR___ Só tem vaca.
P1___ E na NL?
NL___ Não tem.
Nessa RC, a professora traz como contéudo temático, osanimais domésticos, mas não
explora a fundo o conceito. P1, afirma que o animal doméstico é aquele que mora dentro da
casa da criança, ou no sítio, mas ela não explica qual é o sentido de ser doméstico, que pode
ser domesticado, ter convívio direto com o ser humano. Nesse sentido,remete o conceito de
doméstico ao habitat do animal e não explora com as crianças as diferenças entre os animais
62
Conceito de animal doméstico: alguns animais são domésticos porque, no seu desenvolvimento
históricoenquanto espécie se adaptaram a conviver com os humanos e apresentam características bastante
diferentes daquelas que apresentam os animais selvagens. As ovelhas, os cavalos, as galinhas e as vacas
também pertencem ao conjunto de animais domésticos. Disponível em:
<http://www.conscienciacomciencia.com.br>.
119
domésticos, que podem morar dentro ou fora de casa, pois a galinha e a vaca, citadas pelas
crianças AD e CR são animais domésticos, mas não moram dentro de casa, e muitas vezes o
gato e o cachorro ocupam um espaço no quintal, não no interior da residência, enfim, muitas
questões deixaram de ser exploradas, não favorecendo a ampliação de conhecimento ou a
transição do conceito espontâneo para o científico.
Na RC-08,o conteúdo temático tratado também se refere a animais.Através da
brincadeira proposta na Roda, as crianças tentam identificar e reproduzir os sons produzidos
pelos animais.
P2___Hoje, na nossa Roda de conversa, a gente vai brincar de ‘‘O seu mestre mandô’’ dos animais,
vai ser um de cada vez.Eentão, já vão imaginando que animal vocês vão ser quando chegar a vez de
vocês, o que vocês vão mandar? Cada um vai ser o mestre.
P2___ Quem quer começar?
BR___ Eu.
P2___ Muito bem, o BR. Então, vocês lembram como o BR, você vai falar ‘‘O seu mestre mandô’’ e
dar uma ordem. A gente vai imitar você.
BR___ O seu mestre mandôimitá.
P1___Imitar o quê? Pensa em alguma coisa.
BR___ Um animal.
P1___ Qual animal?
P1___ Cachorro.
P1___ Vamos lá!Imitar um cachorro.
Todos___ Au, au, au, au...
P1___Ok. Volta todo mundo, e agora vamos continuar com o JO, quer brincar, JO?
JO___ Sim.
P1___Então, você fala ‘‘O seu mestre mandou’’, e fala pra fazer alguma coisa.
JO___O seu mestre mandô imitá um tigre.
Todos ___ Tentando reproduzir o som do tigre.
P1___Beleza, pronto.
FR___ Eu quero falar.
P1___Calma, espera sua vez.
MT___ Eu quero falar também.
P1___Então vai, MT.
MT___ Seu mestre mandô imitá dinossauro.
P1___Dinossauro.
Todos___ (Tentam reproduzir, mas cada um a seu modo).
P1___Faz o som MT, agente tem que imitar você.
P2___ Vamos falar juntos, então, pra ver se a gente consegue guardar essa rima? Não confunda
peteca violenta com meleca nojenta, vamos lá de novo.
P2___Peteca violenta com meleca nojenta.
P2___Vou ver se o FS guardou, FS tenta falar.
FS___ Meleca nojenta, peteca violenta. (Gaguejando)
P2___Isso!Está quase conseguindo, quem mais quer falar?
Todos juntos___ Eu.
P2___ Quem quer falar peteca violenta com meleca nojenta?
CD___ Eu.
P2___Então vai CD.
CD___ Meleca nojenta com peteca nojenta.
P2___Isso, alguém mais quer falar essa rima?
BR___ Eu.
P2___Vai BR
BR___ Peteca violenta (Fica pensativo).
P2___Com?
BR___ Meleca nojenta.
P2___É isso, então, a peteca e a meleca né, alguém mais quer falar?
Todos juntos___ Eu.
P2___Vai SA.
SA___ Peteca nojenta.
P2___Isso tá uma confusão, em peteca que já tá nojenta, mais ó, relembrando, peteca violenta com
meleca nojenta. Alguém mais quer falar?
Todos juntos___ Eu.
P2___Então, vamos falar juntos, todo mundo?
Todos juntos___ Peteca violenta com meleca nojenta.
63
FURNARI. Eva. Não confunda: Moderna, 2007.Acervo do CMEI..
121
Vamos ver, quem gostaria de contar as meninas?
Todos___ Eu.
P1___AM, pode ser a AM, então, então, a AM vai me ajudar a contar as meninas da sala. (A criança
vai caminhando em círculo, contando a quantidade de meninas, e as outras acompanhando
verbalmente).
AM___ Um, dois, três, quatro, cinco, sete...
P1___Seis
AM ___Seis, sete, oito, nove.
AM___ Nove.
P1___ Dez, com você, você também conta, né?
P1___Você contô a SF?
AM___ Sim.
Obs.:A professora escreve na lousa a quantidade.
ER___ Eu sei contá as meninas.
P1___Olha aqui, crianças, tem dez meninas.
P1___ER, venha ajudar a contar os piás64, os meninos, o ER vai contar, conte aqui, comece por aqui.
ER___ Um, dois, três, quatro, seis...
P1___Cinco.
ER__ Cinco, seis, sete, oito, nove.
ER___ Nove.
P1___Acabou?
ER___ Sim.
P1___ E você?
ER___ Também.
P1___ Você contou você? Não, né. Então, com você, são dez, com o ER é dez meninos.
ER___ Eu já sei contá meninos.
P1___Dez meninos. Então, quantas crianças tem na sala? Tem mais meninos ou mais meninas?
Obs: Todos falando ao mesmo tempo, alguns dizem que tem mais meninos, e outros dizem que há
mais meninas, outros falam dez.
FR___ Eu, eu, eu.
P1___ Crianças, tem dez meninos e dez meninas.
AL___ Profe, a PL.
P1___ Tem mais meninos ou mais meninas?
AL___A PL profe.
P1___A PL não veio.
P1___ Olha crianças!!! tem a mesma quantidade de meninos e meninas, está bem.
AL___A KA veio, profe.
As crianças começam a falar todas juntas, talvez porque a professora faz duas
perguntas diferentes, e alguns respondem a primeira pergunta, e outros respondem a segunda
questão. Mesmo que a professora tenha trabalhado de forma contextualizada, ela não tem
como saber se as crianças compreenderam os conhecimentos ensinados, pois todos falaram
juntos, não houve diálogo aberto, debate, circulação de vozes. O mesmo ocorre com a RC-12,
apresentada na sequência.
No pré I, na RC-12, a professora utiliza-se da contação de história para trabalhar com a
contagem oral.
P1___ Vamos contar quantos amigos ela encontrou. A profe mostra e vocês contam...
64
Piá: termo dialetal paranaense utilizado para se referir a menino.
122
Crianças___ Um, dois, três, quatro, cinco, seis...
P1___ E agora, o que que eles encontraram?
Crianças___ Uma maçã?
A figura 5 representaa páginado livro da história ‘‘Era uma vez a sua vez65’’, que a
professora se refere no trecho RC-12.
Figura 5. Foto da página do livro de histórias: Era uma vez a sua vez Dados da pesquisa,
2015.
P___ É, então, vamos fazer assim, vamos seguir uma ordem, e cada um fala uma vez, e quando uma
criança está falando, a outra fica em silêncio para poder ouvir, vamos combinar assim?
Todos___ Sim.
P___ Vamos lá,então, vamos começar pela NC.
Na RC-12 (pré I) e na RC-17 (pré II),com a leitura da história “Era uma vez a sua
vez’’, representada na figura 6, é ensinada a importância de ajudar os outros.
65
HECK, Regina. Era uma vez a sua vez. Edições sabida, Blumenau, 2007.
123
Crianças___ Amigos.
P1___ Porque no começo da história ela estava sozinha, aí GF, o que que ela encontrou?
GF___ O elefante.
P1___ O elefante, e depois?
As crianças começam novamente a falarem todas ao mesmo tempo.
P1___ Agora é a vez do AD falar, como é que está o rostinho do cachorro agora?
AD___ Tá feliz.
P1___ Por que você acha que ele tá feliz?
AD___ Por causa da menininha.
P1___ Eles ajudaram ele? Quem ajudou ele?
AD___ A menininha.
Figura 6. Foto da página do livro de histórias: Era uma vez a sua vez Dados da pesquisa,
2015.
66
SILVERSTEIN, Shel. A árvore generosa. Tradução Fernando sabino. 2012. Acervo da escola.
124
Figura 7. Foto da página do livro de histórias: A Árvore generosa. Dados da pesquisa, 2015.
Por essas evidências das análises, podemos reafirmar o papel formativo da RC,
enquanto mecanismo de trabalho com os conteúdos culturais necessários para que a criança
supere seu atual estado de aprendizagem, quer dizer, a natureza educativa da RC faz com que
a escola cumpra seu papel de transmissão do saber.Alves (2007), com fundamentos em
Vigotski, afirma que a principal função da educação escolar é levar o sujeito a se apropriar de
conhecimento teórico, por meio da atividade pedagógica que,por sua vez, requer o domínio de
instrumentos e símbolos disponíveis na cultura.
125
conteúdos, mas como um conjunto de atividades nucleares, objetivamente pensadas e
planejadas e sistematicamente desenvolvidas, considerando as especificidades de cada faixa
etária e as necessidades das crianças que atende. A EI é um tempo privilegiado à apropriação
de conteúdos culturais, portanto, deve transmitir o melhor da cultura humana.
Muitos conteúdos culturais do currículo da EI foram tratados nas RC analisadas, tais
como, meios de transporte, alimentação saúdavel, animais domésticos, contagem oral,
estações do ano, plantas.Além desses, há outros conteúdos culturais que não estão no
currículo, mas que também são ensinados na Roda como, respeito ao próximo, cuidados com
o meio ambiente, moralização, comportamento no trânsito. As mediações pedagógicas
realizadas pelas professoras permitiram que as crianças se apropriassem de vários
conhecimentos, no entanto, apresentam, ainda, limitações no que se refere a superar os
conceitos do cotidiano em direção aos conceitos científicos. Há, também, em termos gerais,
uma ausência de conteúdos sociológicos e de criticidade na mediação pedagógica, o que,
explicita a fragilidade dos processos de formação de professores.
A RC, como prática educativa intencional de trabalho com a linguagem verbal, tem
como instrumento e finalidade a interação entre os sujeitos, especialmente, suas interações
levam em consideração o momento em que a criança se encontra, seja para promover sua
formação em âmbito geral, seja para adensar suas aprendizagens sobre as práticas de
linguagem, pelas interações. Cabe, portanto, analisarmos o modo como às interações verbais
produzidas nas RC permitem um diálogo aberto, que valoriza a singularidade infantil em
meio a produção e transmissão dos saberes culturais e ao movimento dialógico. Assim, na
próxima seção, apresentaremos essa análise sobre o movimento da RC, com base nas
categorias dialogismo e polifonia, com fundamentos emBakhtin.
126
Por sua natuteza, o ‘‘eu’’ não pode ser solitário, um ‘‘eu’’ sozinho, pois só
pode ter vida real em um universo povoado por uma multiplicidade de
sujeitos interdependentes . Eu me projeto no outro que também se projeta em
mim, nossa comunicação dialógica requer que meu reflexo se projete nele e
o dele em mim, que afirmemos um para o outro a existência de duas
multiplicidades de infinitos que convivem e dialogam em pé de igualdade
[...] (BEZERRA, 2005, p. 194).
O sujeito expõe uma visão singular, mas que ao mesmo tempo é contornada por
diversos olhares que circulam no movimento interativo. Nas RCs, as falas das crianças
retratam vivências, concepções, ou seja, são fruto das relações sociais.
Diante dos apontamentos elucidados, buscamos evidenciar, pela análise dos dados
produzidos na pesquisa, mediante as entrevistas (apêndice 4) e RCs, quais as condições e
possibilidades que a criança tem para se expressar, e em que medida são valorizadas suas
falas e participações nas experiências educativas. Ou seja, o modo como asinterações
dialógicas entram na Rodae a movimentam. Para isso, apresentamos,primeiramente,as
percepções das professoras sobre como elas concebem a participação na RC, para,
posteriormente, analisarmos alguns excertos das conversas entre professora e crianças, nas
RC.
Sobre a participação das crianças na RC, a professora do maternal II destaca:
Eles participam bem, a maioria fala, mas nem todos; os mais tímidos nem sempre querem
falar; nós estimulamos, mas não forçamos a criança falar, temos que respeitá-los se não
querem falar. Mas participam e falam, principalmente, se o assunto é do interesse deles.
P1___ A nossa Roda de Conversa hoje, hoje, como é segunda-feira é o primeiro dia da semana que
vocês estão vindopra creche então, vocês ficaram sábado e domingo em casa, agora cada um vai falar
oque fez no final de semana. Se foi passear, do que brincô, o que que fez.
JP___ Profe, profe eu quero falar eu quero contar uma coisa.
JP___ Profe, profe...
P1___ O que cada um fez...
JP___ Profe, eu quero falar.
P1___ Sim, a gente vai fazer a nossa Roda de conversa, quando chegar a sua vez daí você fala, tá
bom JP.
P1___Vamos falar bem alto, para os coleguinhas poderem ouvir.
Observamosque, na RC-15 a criança JP pede para falar, mas lheé solicitado que espere
sua vez. As RCs são organizadas em círculos, de forma que as professoras orientam as
crianças a seguirem a sequência de seus lugares, para falarem, a fim de evitar
tumultos.Contudo, uma organização que previsse a possibilidade de abertura para que as
crianças pudessem falar, também, fora da “sua vez” na sequência, permitiria que aspectos
considerados importantes por elas viessem à interação, em seus discursos, e possibilitassem o
diálogo efetivo, a emersão e o intercâmbio das vozes. Há que se destacar, também, que
existem singularidades nas formas como as crianças recebem as perquntas e as põem em
diálogo com seus significados e experiências – para compor uma resposta. Como será a
128
constituição de seu discurso, ao ter de esperar sua vez para falar, e, ainda, tendo o acréscimo e
o confronto das outras falas que a antecedem?
Movimentar-se em meio a uma tensão entre a ordem e a organização dos
comportamentos, necessários à relação com o conhecimento, no contexto escolar,
considerando a intencionalidade da EI, e a receptividade aos discursos das crianças, com suas
singularidades – eis o movimento dialógico que contorna a RC e solicita a
sabedoria/conhecimento teórico/científico do professor.
Nessa mesma RC, JP aguarda para expressar-se, mas observamos que foi interrompido
outra vez, apesar disso, a criança, persiste para concluir sua fala.
Queremos destacar, nesse excerto, o dialogismo presente na fala de JP, dialogismo que
não se restringe ao ato de falar, mas envolve todo o contexto extraverbal, as interpretações
singulares que levaram o sujeito a produzir tal enunciado. Talvez o calendário citado por JP
tivesse um valor axiológico muito grande para ele, para poder controlar os dias restantes até o
tão esperado natal. Contudo, sua fala não foi explorada, nem questionada. Talvez as outras
crianças nem soubessem a finalidade de um calendário, o que poderia ser discutido e
problematizado durante o diálogo.
No pré-II, a RC ocorre mais direcionada à contação de história, e a professora
acrescenta que a participação, também, seja pela sequência do lugar da criança.
Depois que é realizada a leitura do conto, cada criança espera a sua vez para dar a sua
opinião, expor o que sabe. Nem todas as crianças participam por ser tímidas ou não querer
expor o que pensa, e algumas fogem do assunto.
67
São bonecos que se transformam em carrinhos (brinquedos).
129
restrito a um jogo de perguntas e respostas, a história é comentada somente pela professora,
de forma superficial, para saber se as crianças gostaram. Ou seja, para as crianças, não houve
oportunidade de réplicas, por seus discursos, que evidenciassem um posicionamento, para
além do emotivo, que fosse crítico, que contivesse suas opiniões. Por exemplo, poderiam
dizer por que gostaram ou não. Eis o excerto da RC:
Figura 8. Foto da página do livro de histórias: O jardim de Ceci. Dados da pesquisa, 2015.
P___ Para iniciar a aula de hoje, vamos ler a história ‘‘O jardim de Ceci’’.
P___ O que tem na capa?
IS___ Capa.
IG___ Um beija-flor.
RN___ Passarinho, um passarinho e um gato.
P___ Quem será que é a Ceci?
AN___ A gata.
P___ A gatinha, muito bem.
P___ Que cor que é o beija-flor?
68
PINTO, Gerussa P. Jardim de Ceci.Belo Horizonte: Fapi LTDA.
131
Crianças___ Azul.
RN___ Azul escuro.
PM___E o gato é rosa.
P2___E a AN?
AN___ Desci lá na minha vó e tava jogando bola na rua, e daí veio o tiocom dois gatinhos. E um dia
foram as crianças lá, e lá tinha um porco, um porco e uma porca, eles eram bem mansinhos, e o porco
tinha leitãozinhos, e a porca tinha leitãozinhos, mas tinha outro porco que não tinha leitãozinhos. E
um dia eu fui na Sil e tirei leite de um ternerinho, tinha boi lá e ele arranco o casco do pé e saiu
sangue, e eu fui fazendo assim (fazendo sinal que está abanando) para espantá os bichos, e daí, eu fui
lá, e tinha uma cerca, e eu queria espantá os bicho, daí tinha uma cerca, daí tinha uma cerca, daí
tinha uma cerca, e tinha coelho filhote e daí fui na minha vó e vi dois cachorrinhos filhotes e daí
ontem, hoje, amanhã eu fui lá na minha vó, por isso eu não vim na creche, porque amanhã era
sábado, e eu fui na minha vó, daí, daí, eu cheguei em casa, e a mãe lavou o Theo, e ele fugiu duas
vezes, daí a mãe amarrou.
P2___ NL, oque que você fez no final de semana, nós estamos conversando do final de semana,
NL,oque que você fez?(NL chegou atrasada, por isso a professora explica novamente sobre o tema da
conversa).
NL___ Não me lembro.
P2___ Não lembra? Não brincô?
NL__ Fui em um aniversário.
P2___Muito bem, muito legalfinal de semana de vocês.
Nessa RC, percebemos como AN relata sua experiência. Ela se utiliza da linguagem
para relembrar de fatos que para ela foram marcantes, também expressa seu gosto por animais
e como está constituindo suas noções de temporalidade. Contudo, sua fala não foi explorada,
assim como também a de NL. O discurso de AN apresentava ricas possibilidades para
questionar se havia mais alguém que tinha visitado um sítio, e se essa experiência foi
132
semelhante ou diferente à de AN, assim como a festa de aniversário citada por NL. Promover
a interação requer estabelecer vínculos entre as falas das crianças, impulsionar debates,
estimular o exercício da contrapalavra.
Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo
fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém.
Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte.
Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da
palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação
à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os
outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre
o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do
interlocutor (BAKHTIN, 2006, p.115).
135
P2___VToque que é o natal?
VT___É o papai Noel.
P2___E mais o quê?
VT ___Ele traz presente.
P2___ Pra quem?
VT___ Para as crianças no natal.
P2___ E para a SF, o que é o natal?
Fica com silêncio.
CA__ Eu vou ganhar a roupa do Batmam.
EM___E eu vou ganhar a roupa do Homem Aranha.
VC___E eu ganhar o skate do Homem Aranha, de rodinha para mim.
LC___O Papai Noel vai me dar um presente dos aviões.
P2___Essa conversa virou muito em ganhar, eu acho que vocês vão terque conversar com outras
pessoas para saber mais sobre o natal.
P2___Vamos combinar assim, SM, hoje, em casa, quando vocês tiverem tempo para sentar com os
pais, vocês vão perguntar que é o natal para eles? Como que o natal na casa e na família de vocês.
Daí, amanhã, a gente faz outra roda de conversa, e daí vocês vão relatar o que os pais falaram como
era o natal deles quando criança. O que é o natal? Natal é mais que presente. Combinado, então?
P1___ Hoje,nósvamos falar sobre a cartinha do Papai Noel. Ontem vocês conversaram,fizeram
desenho, fizeram uma cartinha pro Papai Noel, pedindo e desenhando o que vocês querem ganhar lá
no natal. Nós vamos fazer uma Roda de Conversa, e cada um vai contar o que desenhou na carta,
daqui uns dias o Papai Noel vai passar e vai ver o desenho.
JO___E daí vai ficar as pegadas dele
P1___ É, vai ficar as pegadas do Papai Noel.
Obs.: As crianças cochicham.
69
Símbolo do natal capitalista, oPapai Noel, é visto como um senhor que realiza os desejos das crianças.
136
MJ___ Eu fiz uma cartinha lá na minha casa e coloquei dentro do correio.
ME___ Eu também vou levar no correio.
JO___ Tem que levar dentro do correio.
P1___Vamos começar aqui, um por vez vai contar, contar oque desenhou lá na carta, o que pediu pro
Papai Noel.
P1___ Vamos lá, IR.
IR___ Pulá na cama elástica.
Nesse trecho,a criança apresentou uma resposta bem inusitada sobre a carta ao Papai
Noel, relatando uma experiência que teve de colocar a carta do correio. Nesse sentido, a carta
foi trabalhada como um gênero, mesmo que não tenha ocorrido um trabalho sobre a sua
organização formal e estética, mas foi transmitido às crianças a sua finalidade. Contudo, a
professora não explora as respostas das crianças para articular as ideias e provocar a interação
e o diálogo, apenas repete e solicita que prossigam.
Na RC-09,sobre os animais (pré-I),apresentada na sequência, as crianças trazem
relatos sobre o seus bichinhos e contribuições da sua realidade. Percebemos que, mesmo
quandoa criança NL julga não ter contribuições para expressar, a professora tenta lembrá-la
de um relato que fizera anteriormente, estimulando sua participação.Além disso, no decorrer
da conversa, elas sentem a necessidade de relatar fatos que fogem um pouco do que foi
proposto,a professora deixa que a criança conclua e tenta voltar com a proposta inicial.
P1___ Como vocês já viram lá na história do gato, que um animal doméstico que mora lá na casa da
gente, mora dentro de casa ou pode ser no sítio também, porque é um animal doméstico, e agora cada
um vai falar se tem ou se não tem um animal em casa, se tem um animalzinho doméstico ou lá no sítio,
se tem alguém que mora no sítio que nem a MJ, né MJ?
MJ ___Eu não moro no sítio.
P1___ Não mora no sítio mais?
MJ ___Minha mãe mudou, perto da casa da minha amiga Nati.
P1___ E lá na casa do AD tem o quê?
AD___ Tem galinha.
P1___ Tem galinha. E na casa da CR?
CR___ Não tem nenhum.
P1___ Não tem nenhum bichinho, e na casa da vó?
CR___ Só tem vaca.
P1___ Ena NL?
NC___ Não tem.
P1___ Não tem nenhum, mas, você comentou alguma coisa, que o pai iria comprar um bichinho para
você. O que o pai vai comprar?
NC___O pai vai comprar um peixinho, mas só quando eu ganhar a minha casa nova.
P1___ Hummm.
MT___Aminha casa é nova.
HR___Aminha casa é mais velha.
HR ___A minha casa é mais velha, profe?
AD___ Na minha casa tem um monte de piso branco.
P1___ É, piso branco. Mas já mudou para casa nova, AD?
AD___ Já.
137
P1___ Então, está de casa nova o AD.
P1___ Vamos ver a GB. Tem algum animalzinho lá na tua casa?
G___ A Bolinha e a Neguinha.
A criança NC tenta dialogar com o tema proposto, trazendo outras contribuições sobre
a temática, ao dizer que somente receberá o peixinho ao estar na nova casa, e MT, HR e AD
continuam a conversa, mas, desviando do foco “animais’’. Percebemos que a professora tem a
sensibilidade de ouvir a criança e voltar ao que foi proposto inicialmente.P1, procura valorizar
a fala infantil, ao mesmo tempo que retoma o conteúdo temático.
Na mesma RC, as crianças relatam episódios sobre seus animais de estimação.
Pelo relato, a criança RN fala que viu um carro de polícia, mas a professora
desconsidera a informação e não a explora, não trabalha a finalidade desse meio de transporte,
70
Desenho animado.
139
o conteúdo fica limitado ao conteúdo da história, o que não permite a incorporação da voz da
criança no discurso.
Na RC-23, realizada no pré-II, a conversa se refere ao papel desempenhado pelos
bombeiros.
141
A RC é um espaço privilegiado para a criação de diálogos, troca de ideias e debates. É um
momento em que a criança compartilha opiniões, conhece diversos pontos de vista, relata
fatos do seu cotidiano, cria situações inusitadas, concorda, discorda, problematiza, questiona.
É uma oportunidade única para favorecer um diálogo coletivo sobre problemáticas da
realidade social. Assim, concordamos com Silva e Almeida (2014), quando afirmam que a
palavra não pode estar exclusivamente centrada no professor, mas é um direito de todos.Na
partilha de saberes, a palavra circula sem caminhos previstos.
A Roda traduz esse movimento de troca de conhecimentos e experiências, que contribuem
para a constituição do ‘’ser’’, uma vez que a interação é condição essencial para a
constituição humana. Na perspectiva bakthiniana, o ‘’eu se constitui a partir do outro’’,o que
significa assumir que o centro organizador e formador da atividade mental não está no interior
do sujeito, mas fora dele, na própria interação verbal (JOBIM E SOUZA, 2008, p.111).
2- Valorização da singularidade infantil
Nesta troca de saberes e pontos de vistas ocorridos no processo de interação da RC, a
criança constrói sua singularidade.Isto é, pela perspectiva histórico-cultural e dialógica da
linguagem, o sujeito é fruto das relações históricas e sociais, no entanto, ele possui
caraterísticas particulares, que lhe são próprias, o sujeito é resultado de uma totalidade, mas
todas essas relações construídas no seio da cultura implicam a constituição de cada sujeito
singular. Desse modo, os sentidos produzidos no processo de circulação de vozes retratam o
universo infantil, mas, também, refletem interpretações particulares, referentes à trajetória de
vida de cada criança.
A Roda propõe esse movimento da singularidade e criatividade das vozes infantis, a partir
de um exercício de produção de sentidos em que os saberes são compartilhados, e a cultura
infantil é valorizada.
3- Diálogo entre os saber cotidiano e o saber científico
A RC apresenta-se na condição de prática de ensino intencionalmente voltada ao
cumprimento da função social da escola, de realizar um dialogo entre os sabres cotidianos e
saberes científicos, a partir de um movimento que requer que o professor desafie o aluno a
expressar seus conhecimentos prévios sobre os conteúdos culturais trabalhados, suas
contribuições adquiridas acerca da realidade vivenciada, para que, através do diálogo, o aluno
seja conduzido a formas mais complexas de pensamento. Dessa forma, Pan (1995) afirma que
a RC terá de possibilitarà criança o contato com as formas enunciativas complexas, pois, se as
práticas linguageiras da criança se restringirem a perguntas reduzidas ao sim ou não, à
142
repetição e nomeação de imagens, quer dizer, atividades restritas a ordens simples, não haverá
contribuições para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores e para a ampliação
de sua atividade de análise e compreensão.
Vigotski (2009) destaca o papel da escola na transformação dos conceitos espontâneos em
científicos, de forma que a escola deve partir dos conceitos espontâneos (conhecimento
cotidiano da criança) em direção aos conceitos científicos (operações lógicas complexas) que
requerem processos sistematizados e reflexivos organizados no processo de ensino. O
aprendizado do conceito sistematizado modifica todo o processo de elaboração conceitual,
afetando, inclusive, os conceitos cotidianos, na medida em que pode acrescentar-lhes
reflexividade. Portanto, os dois processos se diferem, mas realizam-se paralelamente, pois se
afetam de forma recíproca durante o desenvolvimento.
Nesse prisma, a RC, mediante o processo de interação, promove a articulação de
saberes históricos e culturais imprescindíveis na formação da criança, para a constituição da
consciência em direção à transformação da realidade.
4- Construção de valores e saberes culturais
A RC é uma atividade permanente na EI, por promover a articulação do cuidar e educar,
elementos que, de forma indissociável, compõem a identidade da EI. Na Roda, a criança
incorpora valores e saberes, indispensáveis à formação, assim, a EI busca transmitir princípios
voltados ao desenvolvimento do senso de solidariedade, ética, sensibilidade com o outro,
enfim, a RC é um mecanismo para a consolidação desses saberes que dignificam a espécie
humana.
A RC, enquanto prática pedagógica sistematizada tem de ter como ponto de partida a
valorização humana. Assim, concordamos com Alves, quando afirma que:
143
apropriação de saberes históricos acumulados pela humanidade, e junto a esses saberes a
escola transmite valores essenciais para que o sujeito se compreenda parte de uma
coletividade e, portanto, responsável pelo outro.
5- Democratização do saber
A natureza democrática da RC permite que a criança traga os conhecimentos que já
possui para que estabeleça diálogos com o saber sistematizado, possibilita o intercâmbio de
ideias e o posicionamento de todos os envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. Para
Silva e Almeida (2014), a RC pode ser interpretada como ‘‘um espaço-tempo democrático’’
que promove a prática da fala e escuta, constituindo-se como ‘‘prática viva e dinâmica‘’,
assim‘‘ se configura como espaço de diálogo, trocas, constituição de sujeitos, escuta em que
as crianças assumem papel ativo na comunicação’’ (SILVA e ALMEIDA, 2014, p.09).
O professor encontra-se na qualidade de mediador simbólico do conhecimento,
assumindo um importante papel na formação humana através de um ensino diretivo.No
entanto, a criança não pode estar condicionada somente ao exercício da escuta, pois ela tem de
ser desafiada a atividades de debate, réplica, questionamentos, partilha de sentimentos,
emoções e ideias.
6- A formação integral da criança.
Através do diálogo entre os saberes cotidianos e científicos, da articulação cuidar e
educar, da valorização da singularidade infantil, do movimento interativo de vozes que
divergem e convergem em direção ao debate e a reflexão, a RC apresenta-se como um
dispositivo para a formação integral do sujeito, se utilizada em prol de uma educação
emancipatória, que trabalhe na contramão das ideologias do sistema opressor imposto pelo
capital.
Segundo Tonet (2006), a formação integral, pautada no materialismo-histórico,
implica o acesso, por parte dos sujeitos, aos bens materiais e espirituais, a sua constituição
como membro pleno de gênero humano. Isso quer dizer que a formação integral importa
emancipação humana, ou seja, não basta educar para a cidadania71 como supõe o discurso
neoliberal que objetiva a alienação, é preciso educar para a transformação.
A partir dessa análise reafirmamos as possibilidades que a Roda apresenta para atuar
71
De acordo com Tonet (2006), A lógica capitalista, prega um discurso sobre a necessidade de uma educação
cidadã, o que implica uma formação voltada ao desenvolvimento da autonomia, da formação do sujeito
flexível, com princípios voltados à defesa do meio ambiente e da sustentabilidade. No entanto, o autor alerta
para uma nova estratégia do capital em prol de uma formação para o trabalho, o que ele denomina de
“escravidão moderna”.
144
na humanização do sujeito, através da interação viva, móvel, em que coloca a criança em um
processo de criação/circulação de ideias e aquisição do conhecimento elaborado, ou seja, de
constante transformação no ser criança. Mas, também, evidenciamos, em determinados
momentos essa atividade pode utilizada em benefício da perpetuação da ideologia dominante,
na transmissão de valores sociais voltados à adaptação da criança aos ideais do sistema
político/econômico vigente,a partir de um processo de moralização, em que o professor
centraliza o discurso na sua fala. Nesses momentos, a RC acaba por se transformar em um
jogo de perguntas e respostas superficiais, não há o movimento polifônico de vozes que
convergem e divergem na busca do conhecimento.Todavia, destacamos, principalmente, que a
Roda,trabalhada sob uma perspectiva emancipatória, possui ampla potencialidade formativa,
traduzidano desafio de se estabelecer uma prática escolar polifônica. É nessa perspectiva que
convocamos sua utilização na EI.
145
CONSIDERAÇÕES FINAIS
146
Ao analisarmos a atuação do professor ante a apropriação da linguagem e o
desenvolvimento cultural e linguístico da criança, identificamos momentos em que o
professor atua como mediador simbólico do conhecimento e promove ações para o
desenvolvimento de formas complexas de pensamento. Todavia, apontamos alguns
momentos marcados pela rigidez da prática pedagógica, da imposição de valores voltados à
obediência e à conformidade. Momentos em que a voz do adulto abafa o enunciado da
criança. A esse respeito, no entanto, não podemos esquecer que o trabalho do professor
situa-se em meio a uma série de fatores, como um currículo sem concepções claras de
aprendizagem, uma formação inicial e continuada aligeirada nos aspectos relacionados ao
papel da linguagem na constituição do sujeito, a desvalorização profissional, lamentáveis e
precárias condições de trabalho. Ou seja, o professor, que tem a possibilidade de interferir
diretamente no desenvolvimento da criança, acaba reproduzindo a lógica desumanizadora da
ideologia dominante, pois o trabalho docente é fruto de múltiplas determinações sociais e
ideológicas. Nossa intenção não é fazer uma crítica ingênua que situa a responsabilidade de
educação opressora no educador, mas apontar a ausência de reflexão científica que o sistema
educativo impõe à escola e seus sujeitos, como efeitos da alienação que o sistema social
vigente produz e reproduz.
A RC situa-se em meio à contradição do contexto da educação, mas há que se
considerar, no entanto, que sua existência é um elemento potencializador ao diálogo. Para sua
realização e inserção formativa, apresenta-se o desafio de romper com as orientações de
rigidez e recompor as possibilidades de polifonia, para o encontro das vozes dissonantes de
seus sujeitos, de forma a torná-la um fator da formação integral da criança. Essa possibilidade
foi mostrada pelos dados e análises produzidos na pesquisa.
A polifonia, caracterizada pelo cruzamento de vozes que se chocam, também, é
evidente em diversos momentos da RC, no intercâmbio de ideias entre os sujeitos, nos relatos
das crianças, nas opiniões emitidas, na criatividade das respostas, nos momento em que as
crianças expõem ideias e valores que são fruto de suas relações sociais. Dessa forma, nesse
espaço, a criança constitui-se e atua na constituição do outro, com a mediação imprescindível
da linguagem. Consideramos que nossa pesquisa contribui ao avanço na compreensão da
constituição da criança como sujeito, contribuição que trazemos à área, focalizando a
linguagem.
A RC constitui um diálogo vivo em que as vozes se confrontam, num movimento
dialético de construção de sentidos. Ela se estabelece numa permanente tensão entre os
147
discursos e reivindica um tênue, mas dialógico e polifônico, equilíbrio entre: intencionalidade
educativa escolar e valorização de todas as falas infantis; planejamento da atividade docente
de ensino e concessão à liberdade de expressão; transmissão do conteúdo escolar e
flexibilidade para acolher os discursos da criança; organização dos comportamentos das
crianças, necessários à relação com o conhecimento, e permissão para emersão de suas vozes
e significados, em suas singularidade, singeleza e aparente “fuga do contexto”; o ensino e
ampliação dos conteúdos culturais mais elaborados para e pela humanização e o
reconhecimento da cultura e da voz da criança; o ensino dos valores sociais que dignificam a
espécie humana e o distanciamento da moralização burguesa – nessas dimensões, tensões e
confrontações dialéticas, identificamos a natureza educativa da RC.
A infância é tempo de diálogo, e a Roda é um momento de circulação de vozes, que
nos permite adentrar a cultura infantil, atuar nos processos psíquicos da criança e promover
sua humanização. Na fala ‘‘profe, profe, profe, eu quero falar’’, a criança sente a necessidade
de expor suas vivências, interpretações e sentimentos. A Roda é um momento único de
constituição do ser social através do outro, do processo de interação social.
Chegado o momento de finalizar essa dissertação, retomo minha voz singular para
falar do processo que vivi nas interações com os sujeitos que me acompanharam: autores dos
estudos lidos, orientadora e professoras da banca, professoras das escolas e as crianças. Junto
com todos, a pesquisa significou ‘‘pôr em reflexão’’ minha prática docente, iniciando com
olhar de professora e me constituindo como pesquisadora, com olhar mais sensível e crítico
sobre a realidade. Uma professora da EI que pretende, a partir de sua pesquisa, refletir sobre a
prática e retornar à sala de aula, para modificá-la. Hoje, posso dizer que me sinto ‘‘grande’’,
trabalhando com ‘‘pequenos’’, e que pretendo, agora, realizar muitas RCs, uma vez que essa
prática nos possibilita adentrar o universo das crianças da EI, valorizar a singularidade
expressa em suas falas, singularidade que, também, é constituída a partir de uma totalidade
repleta de contradição. Espero que o término da dissertação não represente o término da
pesquisa, pois acredito que ainda há muito que se explorar sobre a linguagem infantil e suas
representações culturais na RC. Seguindo os caminhos da arquitetura bakhtiniana da
linguagem, em que o acabamento é sempre provisório, estamos eternamente nos
reinventando, aprendendo e nos transformando. Assim, coloco minha dissertação na “corrente
da interação verbal” e continuo o diálogo de minha formação.
148
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SMOLKA, Ana Luiza. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2009.
155
ANEXO 1
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Prezado(a) Professor
(a)______________________________________________________________
Qualquer dúvida ou maiores esclarecimentos, entrar em contato com as responsáveis pelo estudo:
e-mail:marciaberttoncelli@hotmail.comTelefone: (46) 8402-99-07ou 9118-09-59.
Francisco Beltrão, _____ de ______________ de 2014.
Assinatura da Professor(a).
156
Apêndice 1
ENTREVISTA COM OS PROFESSORES - ROTEIRO DE PERGUNTAS
Formação e percurso profissional
Informações pessoais: Nome / escola
- Ano/turma em que trabalha
- efetiva ou substituta/contratada
- Ano do Início no Magistério
- Tempo no Magistério
- tempo na educação infantil
- tempo no ciclo de alfabetização
Formação
a) Formação em nível médio
Curso:
Nome da Instituição:
Pública ou privada: ................................ Curso presencial ou a distância: ..............
Diurno ou noturno
b) Formação em nível superior
Curso:
Nome da Instituição
Pública ou privada: ................................ Curso presencial ou a distância: ..............
Diurno ou noturno
c) Formação em especialização ou mestrado
Curso:
Nome da Instituição
Pública ou privada: ................................ Curso presencial ou a distância: ..............
Diurno ou noturno
3. Concepções da professor:
O que vc acha mais importante na Roda de Conversa?
Que contribuições das rodas de conversa vc identifica/percebe para o desenvolvimento das
crianças?
158
Apêndice 2:
Sintese das entrevistas: o papel e a organização de Roda de Conversa
O papel e a organização da Roda de Conversa
Questionamentos Professora Maternal-I1 Professora pré-I Professora pré-II
160
Apêndice 3:
Sintese das entrevistas: contéudos culturais
Conteúdos culturais
Professora maternal -II Professora pré-I Professora pré-II
Como são planejadas Pode ser realizada com Geralmente as RCs são A RC está relacionada
as RCs? base no planejamento feitas a partir do ao conteúdo a ser
semanal que é pré- planejamento, a partir do trabalhado e
estabelecido um conteúdo. conteúdo organiza-se a preparado pelo
Mas também pode ter RC. Mas, também têm professor.
temas livres, do cotidiano temas livres, como falar
da criança. sobre o final de semana,
passeio, contação de
história feita pelas
crianças.
E quando as crianças Quando eles fogem do Deixamos que eles falem, É importante que
fogem do tema? tema, aguardamos para quando eles terminam, todos deêm a sua
que terminem de falar e retomamos o assunto, opinião para saber o
procuramos explicar que com perguntas e que cada um sabe e
naquele estamos falando voltamos a conversa. quando se vê que
de outro assunto. alguém não entendeu
a conversa, se explica
para não se fugir do
assunto que foi
planejado.
Fonte: DADOS DA PESQUISA. Elaboração da autora (2015).
161
Apêndice 4:
Sintese das entrevistas: as interações dialógicas
162