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Dissertação - Lucas Barbosa Lima - Nós Por Nós A Insurgência
Dissertação - Lucas Barbosa Lima - Nós Por Nós A Insurgência
Dissertação - Lucas Barbosa Lima - Nós Por Nós A Insurgência
Salvador
2021
LUCAS BARBOSA LIMA
Salvador
2021
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Universitário de Bibliotecas (SIBI/UFBA), com os
dados fornecidos pelo(a) autor(a)
___________________________________________________________________________
_______
CDD: 027.4
Universidade Federal da Bahia
ATA Nº 29
Rua Augusto Viana, s/n - Canela - Salvador/BA - CEP 40110-909 Telefax: • fattavares@ufba.br
Dedico este trabalho à minha família,
principalmente à minha mãe Edna Andrade Barbosa,
à minha companheira Larissa Neves e ao meu filho Malik.
Por fim, dedico este trabalho a todo jovem negro que já teve sua intelectualidade questionada!
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha família, que me deu todo suporte e força necessários, acreditando
na minha capacidade intelectual. O apoio e paciência da minha companheira Larissa Neves
durante o processo da escrita foi essencial para que eu não adoecesse mentalmente. A força e
suporte da minha mãe Edna Andrade e do meu tio Élio Barbosa foram imprescindíveis para
me manter firme e estruturado para dar conta da minha família e pesquisa. Foram 03 longos
anos em meio a mudanças de residências, gravidez e nascimento do meu primeiro filho. Dito
isso, agradeço à chegada de Malik Barbosa Lima Neves Nunes, que veio para colorir meu
mundo, imprimindo uma força para eu encarar o cotidiano.
Agradeço aos meus amigos e amigas que adentraram no Programa de Pós-Graduação
em Antropologia em 2018: nós trilhamos um caminho de resistência e perseverança para
darmos conta da nossa sobrevivência e adubarmos a terra para que viéssemos florir como
pesquisadores.
Agradeço à minha Orientadora pela sua paciência, atenção e orientação durante o
processo de pesquisa, pois, apesar de haver divergências epistemológicas e metodológicas,
conseguimos finalizar este difícil trabalho.
Agradeço à banca de qualificação, que, com sugestões metodológicas e indicações
teóricas, forneceu ferramentas analíticas e contribuições que subsidiaram mudanças essenciais
para a presente pesquisa.
Agradeço ao meu Mestre Zé do Lenço, que confiou em minha capacidade de dar
continuidade à sua ancestralidade com a responsabilidade de levar à frente os ensinamentos
do mundo da Capoeira Angola.
Sou grato por tudo que vivi durante todo o processo de escrita. Os problemas
relacionados à saúde mental na família, a gravidez e a falta de emprego e bolsa, durante boa
parte da pesquisa, foram fatores que me custaram muito, no entanto, tenho para mim que as
dificuldades calejam e nos fazem crescer. Por isso, só tenho de agradecer a todas pessoas que
contribuíram de alguma forma para o desenvolvimento desta dissertação, seja de forma direta
ou indireta.
Por fim, mas não menos importante, gostaria de agradecer às pessoas que passaram
pela Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru, os seus frequentadores, educadores e toda a rede
social que envolve esta Biblioteca Comunitária.
LIMA, Lucas Barbosa. Agora é nós por nós! A insurgência da Biblioteca Comunitária
Zeferina Beiru, 2021. Orientadora: Urpi Montoya Uriarte. 141 f. il. Dissertação (Mestrado em
Antropologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2021.
RESUMO
ABSTRACT
This work presents what leads people to attend the Zeferina Beiru Community Library: an
occupation that functions as a Community Library and Cultural Center in the Arenoso
neighborhood. The neighborhood is located in a region classified as a periphery, but, in the
research, I understand the territory as a central region of a city that has grown rampant. The
phenomenon of Community Libraries is a common social practice in Brazil that is usually
created by and for the community, the result of a movement by residents to fill a gap in terms
of access to public and cultural facilities. At the end of the week, joint efforts take place,
activities aimed at the collective practice of cleaning and organizing space and books, which
are led by young blacks from the territory. As the activities tend to be attended by people
from the neighborhood and other places in Salvador, therefore, I understand the occupation as
part of a social fabric that converges in the projection of a black community. The interlocutors
have an ethnic-racial discourse that points to the need for a representation of black people in a
symbolic and physical field, at the same time that it points to an ongoing process of genocide
among the black population. As a methodological resource, using semi-structured changes of
a qualitative nature, analysis of visual records, immersion in the field and observation through
the analysis of my experience with the collective. I also consider that the use of photographic
records were tools of analysis and narrative resource. Finally, I conclude that the insurgency
of the Library is the result of an identity movement that has occurred in the territory since its
first unfolding processes.
Tabela 1- Quadro de atividades semanais correspondentes aos períodos dos anos de 2015 a
2020................................................................................................................................................ 87
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BC Biblioteca Comunitária
BZB Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru
CBI Casa do Boneco Itacaré
DF Distrito Federal
JACA Juventude Ativista de Cajazeiras
ONG Organizações não governamentais
PPGA Programa de Pós Graduação em Antropologia
REBC Rede Estadual de Bibliotecas Comunitárias
RMBC Rede Municipal de Bibliotecas Comunitárias
RNBC Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias
UFBA Universidade Federal da Bahia
UNEB Universidade do Estado da Bahia
UPP Unidade de Polícia Pacificadora
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 12
INTRODUÇÃO
social. Para Peruzzo (2017), a análise de discurso trabalha com o sentido e não com o
conteúdo do texto, por isso, um sentido não pode ser traduzido, mas produzido. A AD se dá
entendendo os discursos como resultados da formulação: ideologia + história + linguagem.
Neste sentido, quero deixar em evidência que busquei apresentar as palavras dos
interlocutores de forma fiel a sua pronunciação.
Esse tipo de análise parte do pressuposto de que o sujeito tem a ilusão de ser dono do
seu discurso e ter controle sobre ele, enquanto, de fato, está dentro de um processo estrutural e
contínuo. Dessa forma, os discursos podem ser analisados como ecos da memória do dizer
que são pré-construídos. Em outras palavras, isso implica que “todo dizer é ideologicamente
marcado.” (PERUZZO, 2017)
Enquanto atuo como um intérprete, faço uma leitura discursiva influenciada pelo meu
afeto, posição, crença, experiência e vivência. Assim, a interpretação não é absoluta e única,
mas baseada em um universo particular de produção de sentido. Desse modo, além de realizar
análise de discurso com as entrevistas, utilizei análise de conteúdo para investigar registros
visuais, textos de jornais do acervo da biblioteca e blogs mencionados pelos interlocutores. A
análise de Conteúdo compõe-se de três grandes etapas: 1) a pré-análise; 2) a exploração do
material; 3) o tratamento dos resultados e interpretação.
A pré-análise consistiu de levantar quais seriam os materiais que viriam a ser
analisados, isto é, quase 200 (duzentas) fotografias que estavam salvas no acervo, as quais
organizei e cataloguei em função do dia, atividade e ano de cada registro. Isso me levou ao
segundo passo, que é a exploração do material, no qual sistematizei as fotos em ordem
cronológica. Esse caminho se tornou interessante porque, como integrante do coletivo, sou
responsável em manter o memorial da Biblioteca com documentos referentes à ata das
reuniões, registros fotográficos e audiovisuais em uma nuvem, na internet.
Por fim, realizei o tratamento dos resultados e interpretação das fotos para
compreender o cotidiano da Biblioteca. As fotografias se tornaram ferramentas para acessar
lembranças de momentos vividos, testemunhados, que ficaram eternizados em uma imagem.
Para Sandra Maria C. T. Lacerda Campos (1996), as imagens podem ser adotadas
como métodos de investigação. A autora ressalta que a fotografia sempre esteve presente na
história da humanidade, desde as pinturas rupestres às invenções das máquinas fotográficas,
que foram instrumentos de coleta e registro de dados no trabalho de Malinowiski em 1922.
Seu trabalho foi uma inovação metodológica para a antropologia, que vivia um momento de
reinvenção no que tange aos seus métodos de investigação e interpretação.
15
1
Sociograma é uma técnica sociométrica para demonstrar de forma visual através de símbolos geométricos as
relações entre os grupos que são parceiros da Biblioteca.
16
2
Título da tradição da Capoeira Angola entregue pelo Mestre de capoeira à pessoa responsável em realizar os
treinos dentro do grupo que faz parte.
3
Redução de danos é uma política de saúde voltada ao cuidado de usuários de substâncias psicoativas que não
podem ou não conseguem parar com o uso. A redução visa reduzir os danos provocados pelo uso e abuso
das substâncias.
17
A minha proximidade com o campo me fez partilhar marcadores sociais com o grupo
pesquisado diversas vezes frente a dilemas racistas arraigados na sociedade brasileira, dentre
os quais considero relevante apresentar os conceitos de necropolítica e racismo institucional
nesta dissertação.
Com isso, pretendo contribuir efetivamente para o escopo da produção de
conhecimento antropológico, expondo os benefícios e limites da metodologia utilizada ao
longo da pesquisa, avaliando e implementando criticamente certos princípios e conceitos
praticados por toda comunidade científica.
A dissertação está dividida em 03 (três) capítulos: No primeiro capítulo – Das matas
do Cabula ao centro geográfico de Salvador – foi construído a partir da minha interpretação
das entrevistas qualitativas, imersão ao campo e estudos historiográficos, onde apresento
alguns processos de desdobramentos do território, que se localizava nas matas e que hoje está
inserido no miolo geográfico de Salvador. No final, faço uma análise do fenômeno social, a
partir de estudos relativos às Bibliotecas Comunitárias.
No segundo capítulo intitulado Da insurgência ao cotidiano da Biblioteca Comunitária
Zeferina Beiru – utilizei fotografias como ferramentas para analisar atividades realizadas
dentro do espaço, ao mesmo tempo as imagens tão são utilizadas como recurso narrativo.
No terceiro capítulo – Malha Social e Confluência: Uma rede em movimento –
apresento os movimentos sociais que possuem uma parceria com a BZB. Discorro, por meio
de técnicas de análise de discurso, a representação social da Biblioteca para os entrevistados.
Neste capítulo apresento uma metáfora que relaciona a relação dos movimentos sociais com a
BZB, como o movimento das águas que se encontram, a partir da referência ao livro Caminho
das Águas em Salvador: Bacias Hidrográficas, Bairros e Fontes (2009).
Os movimentos das águas estão associados com o conceito de malha social de Tim
Ingold (2020). Para o autor, a produção da vida se dá por meio de uma malha de linhas que se
entrelaçam. No caso da presente pesquisa, essas linhas entrelaçadas se dão como águas que se
movem em um movimento de confluência na projeção de uma identidade negra imaginada e
desejada.
Na conclusão da dissertação, realizo uma síntese das principais ideias, falas e
momentos mencionados durante as entrevistas para entender a representação social do lugar,
os motivos que levam as pessoas a frequentar o espaço, e a participação da Biblioteca na
dinâmica de identidade do território. O território se caracteriza por uma particular
justaposição de tempos históricos que conformam todo o tempo presente, produzindo uma
18
relação dialógica de influências, em outras palavras cada pedaço do território tem sua lógica,
o seu cotidiano, que se inter-relacionam.
As diferentes intenções que os interlocutores transmitem em seus discursos se
encontram em um mesmo caminho, trajetória ou desafios: Constituição de uma identidade
negra em um contexto de racismo estrutural das relações. Por isso, interpreto o encontro dos
diferentes grupos, pessoas e coletivos a partir do conceito de confluência de Nego Bispo
(2015).
Entendo a Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru como fruto de um processo de
continuidade identitária que emerge do cabula, criado e organizado PELA comunidade em
frente a rupturas histórica do território. Em razão disso, o manejo dos nomes é um manejo
consciente dos moradores para reconstituir uma identidade étnico-racial negra (ANDERSON,
1993; FANON, 1982; FOUCAULT, 1999; BISPO, 2016).
Para Elisa Machado (2008) o fenômeno das Bibliotecas Comunitárias no Brasil se
tornou particular por conta de sua atuação estar ligada a bairros periféricos, porque costumam
surgir em área estigmatizadas. Para Costa (2011), o termo Biblioteca Comunitária é citado
pela primeira vez na literatura brasileira em 1978, por Carminda Ferreira. Discutindo a
relação entre biblioteca pública e escolar, a autora faz uma distinção entre os dois sistemas de
biblioteca.
As Bibliotecas Comunitárias são um instrumento de “resgate da cultural popular;
formação político cidadã; fortalecimento da comunidade na qual ela está inserida; valorização
do indivíduo enquanto ser transformador da sociedade; concessão do direito fundamental à
leitura e ao acesso à informação, mesmo que em muitas delas falte a presença de um
Bibliotecário” (SOARES, 2019).
1
19
CABULA
BEIRU
ARENOSO
BZB
Durante uma disciplina ministrada pela professora Urpi Montoya no Programa de Pós-
Graduação, descobri que, nos séculos XVII a XIX, a Cidade de Salvador tinha suas regiões
divididas em freguesias, ou paróquias. Tal delimitação era feita pela Igreja Católica,
instituição que se fez presente desde os primeiros momentos do processo de colonização no
Brasil. As freguesias tinham a função de controlar seus habitantes através de medidas que
congregavam elementos da vida social das pessoas através dos batismos, casamentos, óbitos e
13
Zeferina é uma personalidade que ganhou grande visibilidade dentro dos movimentos
negros em Salvador na última década, ou seja, existem muitas narrativas que fazem referência
à sua existência, associando seus atos como um gesto de heroísmo.
A narrativa que ganha voz na Biblioteca Comunitária é a de Zeferina chegando a
Salvador encolhida nos braços da sua mãe, trazida à força de Angola na primeira metade do
século XIX. Ela foi responsável por articular povos indígenas, pessoas negras que fugiam da
escravidão e pessoas libertas. Entendo, na dissertação, que a existência de Zeferina é uma das
14
histórias que a população negra tem para recontar seu passado e constituir o sentido do
presente.
Na primeira vez que perguntei sobre Zeferina, Diego Lima me aconselhou ir consultar
o blog de Davi Nunes. Na publicação de Davi, a história de Zeferina aparece como uma
angolana fundadora do Quilombo do Urubu que organizou um levante contra Salvador:
Zeferina tinha ambições grandiosas, sabia que a liberdade viria da boca da mata, do
Quilombo, era um princípio libertador, e que poderia ruir, haja vista o quilombo do
Cabula que foi destruído em 1807. Ela sabia disso, compreendia que era necessário
se unir com os nagôs, invadir a cidade e matar os brancos escravocratas para
constituir uma liberdade plena para todo o povo negro. (NUNES, 2007)
Esse conto de Davi Nunes, segundo o próprio, reinventa o episódio contado no livro
Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil, organizado por João José Reis e
Flávio dos Santos Gomes (1989), em um artigo intitulado Negociações e Conflito: A
resistência negra no Brasil escravista.
É uma releitura de um relato de 1826 do Presidente da província na época, que
descreve Zeferina como uma rainha do Quilombo com planos de invadir Salvador para matar
os brancos e conseguir a liberdade. Zeferina foi capturada pelo Conde Pirajá e seus homens,
arrastada até o centro da Cidade de Salvador e presa no Forte São Marcelo.
O professor Walter Passos (1996) aponta que junto com a prisão de Zeferina foram
presas Claudina, Josefa, Maria, Aldelácia, Eufizênia, Maria Joana totalizando 21 mulheres,
mas não sabemos a real contribuição das outras mulheres. Para o professor, o nome de
Zeferina ganhou evidencia porque além dela estar armada, era foi a rainha do Quilombo.
Ainda para Passos (1996), o quilombo representa uma estrutura africana que foi reconstruída
em solo brasileiro como um empreendimento africano de resistência.
Nas pesquisas que realizei, o Quilombo do Urubu se situava aproximadamente entre a
região entendida como Parque São Bartolomeu e Cajazeiras. Para o historiador Walter Passos
(1996) este nome está associado à lagoa do Urubu, localizada entre a Mata Escura e a BR-
324, em uma região conhecida como “Brasilgás”. As águas que formam a lagoa vêm do Rio
Camurujipe, que nasce entre Pirajá e Boa Vista de São Caetano e deságua na Praia do Jardim
dos Namorados.
Segundo a historiografia, a Lagoa do Urubu liga a mata do Cabula ao Subúrbio de
Salvador, sendo uma referência histórico-territorial da Revolta dos Malês em 1835 (REIS,
2003). A tese da professora Janice de Sena Nicolin, fundadora da ODEART 4, professora da
4
Associação Artístico - Cultural ODEART é uma entidade civil sem fins lucrativos de valorização de arte e
cultura negra e educação pluricultural.
15
rede estadual há mais de 30 anos elabora o termo Kipovi Cabuleiro como uma recriação de
um “contador de história” do Cabula, que trata o território a partir de uma perspectiva de
linguagem poética da educação pluricultural. O conceito é fruto de vivência e estudos
relacionados à memória calcada na ancestralidade de uma territorialidade socializada por
africanos e seus descendentes da Bahia. Sua pesquisa buscou compreender a dinâmica de um
contador de história da tradição oral africana. A perspectiva da autora aponta
Para possibilidades de novos estudos de valorização da memória negra da Bahia,
principalmente da memória das culturas congo-angola, sobretudo com abordagem
na memória da educação nas territorialidades negras dos centros urbanos, locais que
guardam as heranças dos quilombos que influenciam modos e formas de ser e agir,
de viver e se relacionar com múltiplas estéticas, modos e formas nutridas por uma
ética que sociabilizou o lugar e permanece viva, dinâmica, no cotidiano do seu
comum existir. (NICOLIN, 2016, p. 281)
A autora aponta para um cotidiano que permanece vivo na sua dinâmica, em suas
múltiplas estéticas e formas de viver e relacionar. Neste sentido, são territórios constituídos,
sobretudo a partir da abordagem da memória como um elemento constituinte das relações.
Hoje existem registros e histórias que contam sobre a existência da íntima relação
entre o Quilombo do Cabula e do Urubu, principalmente relativo à quantidade de trocas de
conhecimento, de animais e pessoas que transitavam entre os quilombos.
O nome da presente seção faz referência a uma frase muito dita por Dom Lito,
Andressa Monique, Diego, Michele e outras pessoas que frequentam e constroem a
Biblioteca. É uma referência ao nigeriano que chegou décadas após a destruição do Quilombo
do Cabula em 1806 e a captura de Zeferina em 1826.
Nesta época, a região passou a se destacar por abrigar uma grande quantidade de
fazendas produtoras de laranjas, época em que as boas laranjas eram associadas ao Cabula. A
fazenda que nos interessa particularmente é a fazenda Campos Seco, que pertencia a Hélio
Silva Garcia. A família Garcia, de descendência italiana, foi morar em Portugal e, por conta
do grande prestígio social com a coroa portuguesa, ganhou muitas terras na Bahia, sobretudo
em Salvador.
Foi por volta de 1850 que desembarcou Beiru, capturado do Estado de Oió e tornado
cativo da Família Garcia. À medida que o nigeriano passou a viver na fazenda, começou a
gerir como se fosse o próprio dono e arrendou as terras para muitos negros e negras recém
libertados que não tinham aonde ir.
16
As portas dessa fazenda se localizavam no que hoje se conhece como o Largo do Anjo
Mal (BEIRU, 2007). Sob indicação dos interlocutores, acessei um livro intitulado Beiru,
doado à Biblioteca em 2016, que foi lançado em novembro de 2007 e organizado pela
Associação Comunitária e Carnavalesca Mundo Negro. Este livro foi de grande referência
para elucidação da história que sustenta a força política do nome Beiru para os interlocutores,
por isso é orgulhosamente exibido em uma das entradas da Biblioteca como um troféu. Assim
é definido seu achado. Por isso, o utilizei como referência para entender alguns aspectos dos
desdobramentos do território.
O nome Beiru passou a ser uma referência de segurança para aqueles que buscavam
fugir da estrutura opressiva da escravidão que o Centro de Salvador impunha na época. Após
a morte de Beiru, a família de Hélio Silva Garcia retomou as terras, renomeando o lugar
como: Fazenda Beiru. Não há registro do por que ou como, mas consta na escritura das terras,
datada de finais do século XIX, que estão anexados no fundo do livro.
Ainda através da pesquisa realizada e organizada pela Associação Comunitária e
Carnavalesca Mundo Negro, soube que foi em 1910 que a “Fazenda Beiru” foi comprada por
Miguel Arcanjo de Souza (X - 1941). Conhecido como Massanganga de Indú Duxó ou
Massaganga de Cariolé do Santo amuraxó Tatetu ria mukixi ou Tata Nkisi (babalorixá) do
Candomblé Bantu (BEIRU, 2006). Dois anos depois, em 1912, ele viria a fundar o primeiro
terreiro de origem banto da região, o Terreiro de Massanguá, de Raiz Amburaxó5, no local
conhecido na época como Jaqueira da Cebolinha, mas que atualmente chama-se de Largo do
Anjo-Mau. Esse largo é um dos elementos identitários mais essenciais para a história e
manutenção da memória do território nomeado de Beiru. É onde se encontra o Terreiro Vila
São Roque, importante lócus religioso que conseguiu preservar e difundir a tradição ritualista
da nação Amburaxó-Angola na comunidade.
Os rituais do terreiro de Miguel Arcanjo eram realizados publicamente em espaços
abertos, ao redor de árvores sagradas, que hoje circundam o posto médico do Beiru e a 11ª
Delegacia. Miguel Arcanjo formou discípulos para dar seguimento à sua linhagem do
Candomblé. Miguel Rufino, Olga Santos (Morena) e Pedro “duas cabeças” criaram seus
terreiros independentes. Miguel Arcanjo morreu em sua casa em 1941, aos 81 anos de idade,
mas antes de falecer, adquiriu mais alguns pedaços de terra dentro da área atualmente
5
Segundo Zezinho França (2013) no blog recanto das letras, a Nação de Amburaxó, fundada por Miguel
Arcanjo, se diferia dos demais terreiros por ter uma doutrina mais aberta. “Era mais fácil de aprender”, diz o
filho-de-santo Eldon Araújo Laje, conhecido como Jijio, do Terreiro Insumbo Meian (Vila São Roque),
localizado no Largo do Anjo-mau.
17
blog que foi o presidente da associação do bairro na época, chamado Dionísio Juvenal, quem
organizou um plebiscito para mudar o nome do bairro, fazendo intensa campanha contra o
nome Beiru. Dionísio se elegeu vereador naquela década e vem construindo sua carreira até as
últimas eleições, por meio de cartazes e propaganda, as sem êxito.
As campanhas contra o nome Beiru renderam uma reportagem no jornal Tribuna da
Bahia sob o título “Beiru quer mudar o nome para acabar com rimas e trocadilho”. Foi por
meio de uma argumentação de incitação à homofobia que ele conseguiu fazer grande parte da
população votar na mudança do nome do bairro, depois se elegendo vereador.
11 anos depois em 1996, a Polícia Militar realizou uma operação intitulada “Operação
Beiru”, mesmo que o bairro já constasse como “Tancredo Neves” há quase 10 anos. Os
policiais executaram jovens de 16 a 29 anos em apenas uma noite.
As ações do Estado em 1985 e em 1996 são ações que sob uma análise social Silvio
Almeida (2018) define de Racismo Estrutural. Na obra O que é Racismo Estrutural? Silvio
Almeida (2018 a) defende que o Racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é
resultado da lógica de funcionamento das instituições públicas e privadas, o que confere,
ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios a partir da raça.
A manutenção do poder adquirido pelas elites brancas coloniais se perpetua pela
estrutura do poder político, pelo acúmulo histórico em institucionalizar seus interesses
juridicamente, impondo a sociedade regras, padrões de conduta e modos de racionalidade que
tornem naturalizados a sua forma de domínio (ALMEIDA, 2018, p.31).
A noção de racismo institucional é uma contribuição para o amadurecimento político e
teórico de enfrentamento ao Racismo. O marco teórico da noção de Racismo Institucional foi
introduzido pela obra Black Power: Politicsofliberation in America, escrita por e Charles V.
Hamilton. Os autores, mesmo sendo dos Estados Unidos, se propõem a romper com as
análises que restringem práticas racistas a comportamentos individuais. No livro, o racismo é
considerado como “a aplicação de decisões e políticas sobre considerações de raça com o
propósito de subordinar um grupo racial e manter o controle sobre esse grupo” (Carmichael;
Hamilton, 1967). As práticas racistas levam à divisão sócio espacial de pessoas em bairros –
periferias, guetos etc.
O racismo é um conjunto de atos, mas de um processo de condições de subalternidade
e de privilégios distribuídos entre grupos raciais distintos, que são reproduzidos nos âmbitos
da política, da economia e do cotidiano (ALMEIDA, 2018, p.31).
19
6
América é tomada no sentido de incluir as Américas do Sul, Central e do Norte, assim como o Caribe.
20
O Arenoso veio a se constituir como bairro de forma oficial na década de 1940. Antes
disso, era uma região de roças. Os moradores do Beiru usavam a região para plantar roças e
colher frutas.
Dona Osalice e seu irmão, Antônio Nelson de Andrade, conhecidos como Dona
Mocinha e Cara de Vaca, fizeram parte das primeiras famílias a chegarem à região entendida
como Arenoso. Em uma entrevista realizada por Jovens do Programa Corra pro Abraço, em
2017, Dona Mocinha, líder do Terreiro de Oyá, contou um pouco da sua trajetória e revelou
que chegou ao território do Arenoso quando ainda não era um bairro constituído, e que quem
nomeou a região como “Arenoso” foi seu irmão. Ela relatou que eles enchiam caminhões de
laranja para vender na feira das 7 Portas no centro da Cidade.
O Arenoso era uma região cercada por muitos rios e grandes concentrações de arvores
frutíferas como Jaca, Cajá, Manga e Acerola, então não precisavam ir muito longe para se
alimentarem. Comenta, ainda, que presenciaram a chuva em que um raio separou o Arenoso
do Beiru. Dona Mocinha diz que foi sob uma forte chuva, com uma grande quantidade de
trovoadas ao comando de Xangô – o Orixá da Sabedoria, da Justiça e dos Relâmpagos – que
um raio provocou uma cisão geográfica entre o Beiru e o Arenoso. Quem pôs o nome de
"Arenoso" foi o seu irmão, Antônio Nelson de Andrade quando, nas palavras da própria Dona
Mocinha de Oyá
21
“A gente morava lá em cima, por que onde é aqui, era tudo roça. Tirava daqui
caminhão de laranja pra vender na sete portas, Aí minha mãe tinha um pé de cajá
muito grande no quintal, aí quando chovia aqui o vento derrubava tudo mesmo! Aí
foi quando virou o Pé de Umbu e aí botou a terra pra fora. Aí foi quando meu irmão
chegou pra minha mãe e disse "-Mamãe! “Essa terra daqui, isso vende mamãe”Aí
mamãe disse "-MININO, onde já se viu vender areia Antônio?". Ele disse: "-Vende
mamãe, vende, vende...". Aí quando foi outro dia pela manhã ele pegou quatro sacos
de Arenoso de 1KG. Levou lá no retiro, no DDR, o Doutor Hélio Machado foi quem
expurgou tudo isso aqui Aí quando ele chegou lá com esse Arenoso branco,
vermelho, roxo, amarelo...tudo aqui tem! Naquele tempo a gente não fazia questão
de nada Nem sabia que Arenoso ia presta pra alguma coisa. Aí doutor Hélio
Machado veio e tirou o Arenoso todo e os papeis ficavam sempre na mão do doutor
Hélio Machado. Aí meu avô paga 20 mil reís por ano, todo mundo, toda família
dava 10 tons para interar esse dinheiro pra pagar a prefeitura Então todo mundo dava
o dinheiro a meu avô, toda família, minha mãe, minha tia e outras famílias davam o
dinheiro ao meu avô que se chamava Manoel Suplicío, e aí ficou por isso. Depois
meu irmão foi tirar mais Arenoso, e pensou que tava muito rico, comprou um
terreno enorme! É bem ali onde tem o Norma Ribeiro, o colégio ali. Ai comprou
também uma fazenda em Candeias e aí naquele tempo comprou um carro logo e
sempre com uma namorada nova né. A gente andava muito junto, ele ajudou muito a
gente. Inclusive foi uma das suas namoradas que me ajudou a me aposentar no
colégio. (DONA MOCINHA DE ÓYA, 2017)
Na entrevista, Dona Mocinha conta como uma região que era roça, ou seja, uma região
que não moravam pessoas, servia para as famílias cultivarem alimentos e deixarem os animais
maiores pastando. Foi depois que o “raio” caiu e provocou uma mudança no solo que
começou um movimento de ocupação na região.
Hoje em dia, o Arenoso se caracteriza por um forte comércio de bens e serviços:
mercadinhos, lanchonetes, padarias e salões de beleza que compõem o cenário
22
socioeconômico da comunidade, além de muitas pessoas que trabalham vendendo frutas nas
feiras livres. O Arenoso possui alta densidade demográfica, um forte comércio de bens e
serviços, avenidas densas de transeuntes e vielas edificadas por casas.
O Arenoso não é um bairro de grande extensão territorial, para ter uma idéia de
quantas pessoas moram no bairro, acessei o último censo de dados feitos pelo IBGE em 2010,
o Arenoso tem uma população de 16.604 habitantes.
O bairro tem uma entrada sinuosa, que não permite a entrada de dois carros grandes ao
mesmo tempo. Em um sábado pela manhã dentro de um ônibus indo para Biblioteca, o
motorista falou: “é preciso ir na manha”, enquanto esperava outro ônibus manobrar para sair
do bairro realizando uma manobra para ajeitar o ângulo da curva, ao mesmo tempo que fazia
meia embreagem. Na esquina da entrada da rua existem duas grandes mangueiras que cobrem
parte da rua principal. Essas mangueiras ficam na propriedade do terreiro de Santa Cruz, onde
Dona mocinha é a responsável.
A entrada da rua principal é composta de uma série de comércios que vão desde
lanchonete de esquina, loja que conserta fogões e geladeiras, mercadinhos, loja que vende
material de informática, salão de beleza, barbearia, loja de produtos naturais, até outros
comércios.
Nos primeiros 200 metros adentrando ao bairro, o movimento do comércio vai se
intensificando. Ainda na entrada, é possível se ver muitas cores e ouvir muitos sons por conta
da música com que alguns estabelecimentos estrategicamente tentam atrair seus clientes, de
outros que gritam as promoções do dia e, ao fundo, outros barulhos emitidos pelo movimento
das pessoas. Tais sons vão desenhando a entrada do Arenoso em um sábado pela manhã.
Muita gente aparenta estar indo ao trabalho, devido às roupas e expressões corporais
que parecem se sempre de incômodo com a demora do transporte coletivo. Outras pessoas
aparentam ir para a acadêmica, ao mesmo tempo em que o salão de beleza está sempre cheio,
as barbearias todas lotadas e os mercados com pequenas filas.
Ainda na entrada do bairro, existem umas lojas com aspecto antigo, e, nelas, senhores
consertam ventiladores, máquinas de lavar e outros eletrodomésticos. As lojas dividem a
calçada com o ponto de Moto Táxi, que por sua vez é vizinho do chaveiro, e assim o comércio
vai se expande bairro adentro. Por isso, é possível afirmar que a entrada do Arenoso é
bastante movimentada.
23
Quando não vou à lanchonete, fico atraído pelo cheiro de dendê da Baiana de Acarajé
que tem na segunda esquina da entrada, onde é vendido acarajé a um real. Os sons, barulhos e
cheiros se misturam entre asfalto, trânsito, pessoas e suor.
Andando pela rua principal, é possível encontrar de tudo! De farmácia a caixa
eletrônico 24hrs, existem pessoas que ficam anos sem sair do bairro, porque lá tem tudo que
precisam. Ao caminhar pela rua principal, depois dos primeiros 200 (duzentos) metros,
encontram-se duas opções: esquerda ou direita. Ambos os caminhos levam à Biblioteca
Comunitária Zeferina Beiru.
Se escolher pegar a esquerda, você vai sair da pista principal, seguir a rua até pegar a
primeira direita, rua Gilberto Bastos, e ir andando reto, passando pela lateral do colégio
Norma Ribeiro. Vai continuar indo reto, mas à sua esquerda vai visualizar uma praça enorme
que possui duas quadras muito utilizada pela comunidade: uma poliesportiva e outra de barro.
Seguindo por mais aproximadamente 300 (trezentos) metros, encontrará a entrada da
Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru.
Se decidir pela direita, vai continuar pela pista principal até encontrar mais
estabelecimentos comerciais: barraca de açougue a céu aberto, loja de material de construção,
lanchonete, loja de roupa, lanhouse, empresa que vende gás, um depósito, oficina, outro bar.
Andando por aproximadamente 300 metros na para a frente do ponto de ônibus, à primeira
esquerda, vai entrar e andar reto até chegar à Praça Nova, onde está a Biblioteca. São
caminhos diferentes, mas todos levam ao mesmo lugar.
As ruas do Arenoso são marcadas pelo crescimento desenfreado característicos de
bairros populosos. Há casas muito coladas, assim como uma sem cima das outras (conhecidas
como “puxadinho”, onde um parente possui uma casa e o outro parente mais novo vai
construindo em cima).
A comunidade possui uma dinâmica própria que é atravessada por um cotidiano
agitado. O movimento nas ruas começa cedo. Às 5h você já encontra moradores saindo para
trabalhar e, às 6h, ônibus saindo cheios do Arenoso. O comércio costuma abrir às 7h, embora
parte dele só às 8h. Às 9h, já está tudo aberto com um grande fluxo, principalmente nos
primeiros 200 (duzentos) metros da entrada do bairro. Nos finais de semana, acontecem as
reuniões conhecidas como “paredões”, geralmente por 02 (dois) a 3 (três) dias, sendo na
sexta, sábado e domingo. Os jovens se reúnem principalmente nas praças para dançar, beber,
paquerar e se conhecer sob o som alto dos carros que dão a “atmosfera” à festa.
Ao andar pela primeira vez no bairro, lembro da sensação de ser observado, como se
as pessoas soubessem que eu não morava ali. O fato de o bairro não ter uma grande extensão
24
territorial faz com que as pessoas saibam quem é e não é do local, uma característica comum a
bairros da periferia. Para Almeida (2011)
Ser estranho em um bairro de características pessoalizadas é ser intruso e diferente.
E se o estranho é olhado com certa hostilidade pelos moradores do pedaço, com
desconfiança ou receio, aqueles que são impessoais também são vistos
atravessadamente por não conviverem “simpaticamente” com os demais moradores.
Diferente do estranho, o morador “antipático” é reconhecido, mas em alguns
momentos pode incomodar por ser indiferente e de convívio mais
individualizado. Quem é esse cara que ta circulando a rua! Fulano é besta, não fala
ou se mistura com ninguém! (fala de um morador do bairro estudado).
Desconhecido, o estranho invade a privacidade de um público (moradores) que
preza pelo bom convívio social. “A proximidade espacial cria um conhecimento
mútuo pelo menos aproximativo: quem não é conhecido parece intruso”. (Antoine
Prost 1992 p.116). O estranho, do mesmo modo como o estrangeiro descrito por
Simmel (1989) é aquele que ninguém conhece, que ninguém pode nunca ter visto,
mas todos sabem quem é ele. Assim também é o “antipático”, todos sabem quem é
ele, não por ser estranho, mais por ser impessoal e preferir a individualidade do
espaço privado da casa. (ALMEIDA, 2011, p. 2)
À medida que se adentra o bairro, dá para sentir que o nível de familiaridade entre os
moradores aumentar. Quando ando com algum morador, cumprimentar a vizinhança é um ato
comum para as pessoas, pois todas parecem se conhecer.
Uma característica frequente durante os finais de semana são as pessoas sentadas em
frente de suas casas, com janelas e portas abertas, entre a rua, calçada e a varanda de suas
casas. É possível você passar em frente às casas, ouvir suas televisões e até mesmo o cheiro
da comida que estão cozinhando.
É como se houvesse uma mistura entre público e o privado, intermediado pelas
pessoas que, além de deixarem suas casas abertas, ficam sentadas em cadeiras ou no meio fio
conversando com umas com as outras enquanto as crianças brincam. Almeida (2011) aponta
que
O bairro, de certa forma, se torna o privado que é público, ou seja, participar e
compartilhar de um estilo de vida comum e cotidiano, em que os moradores
reconhecem seus semelhantes, faz do bairro um grande espaço privado, mas que ao
mesmo tempo é público por não ser fechado e restrito apenas a um determinado
grupo social. É claro que ninguém pode sitiar um bairro, torná-lo privado, mas o que
se percebe são fronteiras construídas, segundo a concepção de Bourdieu (1997)
simbolicamente, por moradores já estabelecidos (ALMEIDA, 2011, p. 2)
Para o autor, o bairro ocupa uma dimensão de partilha comum do cotidiano que faz
com que os moradores reconheçam quem é, e quem não é do lugar. O cotidiano do bairro é
caracterizado por uma grande movimentação de pessoas nas ruas, muitos comércios, crianças,
adolescentes, indo e vindo, seja de bicicleta ou skate. As praças são marcadas pelas reuniões
dos “sindicatos”. O sindicato é nome dado pelos próprios moradores a um grupo que,
geralmente, é composto por homens que se reúnem para beber e jogar dominó nas praças.
25
Para Bispo, o processo de confluência está relacionado com o contato dos povos
quilombolas com a natureza. Tomo emprestado seu conceito para pensar a constituição a
iniciativa da Biblioteca e sua relação em rede como resultado de confluências de movimentos
sociais na cidade.
Entendo que existe uma construção social acerca de termos polifônicos associados à
categoria periferia. Existem, por exemplo, os discursos feitos por representatividades negras,
nos seus lugares de fala e pertencimento, que realizam uma disputa pela legitimidade de falar
“periferia”. Nesse sentido, o conceito é utilizado por um reconhecimento epistemológico da
periferia como uma condição política, então esse território que é marcado e representado pelas
26
mazelas sociais e violência, é também marcado pela resistência cultural e política das pessoas
negras. Para Almeida (2011)
O bairro não é apenas uma demarcação territorial que divide a cidade – servindo
para delimitar os espaços urbanos e o controle administrativo dos serviços públicos e
municipais – mas, antes de tudo, o bairro é a própria constituição de uma cidade,
onde os moradores que nele habitam se identificam, se sociabilizam, criam laços
afetivos e sentimentos de pertencimento. No bairro se percebe rituais, práticas
habituais, habitus, e tradições. No bairro se percebe dificuldades e problemas.
Problemas com o crescimento populacional, com infraestrutura, com a violência,
com a falta de serviços, com a falta de emprego, com as favelas que começam a
circundar, etc. (ALMEIDA, 2011, p. 2)
Entendo que não é apenas uma questão de “bairro”, mas de tudo, a constituição de
um universo construído em torno do território, onde os moradores que habitam se identificam
e sociabilizam de forma associativa para preencher as lacunas no que tange ao acesso à
educação, à leitura, ao lazer e à memória em iniciativas comunitárias, que no caso desta
pesquisa é a Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru.
Assim, entendo que a Biblioteca está inserida em uma demarcação na cidade que não
pode vir a ser considerada um “pedaço”, mas parte de um todo, e que não é apenas uma
“parte”, mas um território dividido em diferentes classificações que se superpõem.
Diante disso, as próximas linhas tratam sobre o território construído por aqueles que
o habitam, a partir das suas memórias, discursos, para compreender e refletir acerca das
práticas urbanas (ARGIER, 2011). Para tanto, irei percorrer a narrativa dos interlocutores para
compreender os significados, intenções e as motivações dos interlocutores em manter uma
Biblioteca Comunitária, mas antes vou apresentar alguns estudos relacionados a iniciativas de
BC no Brasil.
Sua fala evoca uma referência negra popular nos movimentos sociais Marcos Garvey
(1887-1940) foi comunicador, empresário, ativista jamaicano e se tornou um referencial para
o movimento Rastafári. As afirmações de Diego ainda dialogam com o que Franz Fanon
(2005) defende em “Os Condenados da terra”, que a principal arma dos colonizadores foi
criar imagens negativas sobre os povos colonizados, a partir da depreciação das características
e culturas negras. Nesse sentido, o primeiro passo rumo à descolonização é a desconstrução
das imagens depreciativas do povo negro sobre si mesmo. Por isto, os nomes Zeferina e Beiru
são evocações conscientes para projetar/construir uma imagem positiva da comunidade.
Ao abordar as ideias de Fredrik Barth, Poutignat e Streiff-Fenart (1998) apontam que
as fronteiras étnicas não representam barreiras, ao contrário, são fluidas e permeáveis. São
fronteiras produzidas e reproduzidas, bem como flexibilizadas ou não, por meio das
interações sociais. Elas podem ser manipuladas pelos atores, que costumam ter um
pressuposto de uma origem comum. Por isso, não que os interlocutores estejam
necessariamente reivindicando uma identidade étnica, mas acredito que as narrativas que os
interlocutores imprimem sobre o seu território sejam um manejo identitário consciente para
projetar uma imagem positiva sobre a experiência afrodescendente no território.
Tecendo um paralelo entre Fredik Barth e o sociólogo Stuart Hall (2001), Hall também
defende que as identidades utilizam recursos da história, da linguagem e da cultura não para a
produção daquilo que são, mas daquilo que se tornaram. Entretanto, para o autor, esse
manuseio não ocorre de maneira consciente, mas inconscientemente por meio da cultura, das
leis e das sanções.
28
Para Davi Nunes, escrever sobre a história do bairro é levar à frente o que ouviu
através da oralidade. De acordo com ele, a insurgência da biblioteca foi um dos marcos do
movimento de registrar a oralidade para esta que não caia no esquecimento. Essa publicação é
uma homenagem à inauguração simbólica da biblioteca Comunitária Zeferina Beiru no bairro.
Davi Nunes é um escritor do bairro, uma referência no campo da literatura soteropolitana com
a publicação de três livros: Zanga (2018), Banzo (2020) e Bucala (2019), que tratam e fazem
referência a uma infância positiva de crianças por conta da baixa autoestima que atinge a
população negra.
A publicação feita em 2015 é uma descrição da Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru
como um dos desdobramentos dos antigos quilombos que existiam no território do miolo
31
geográfico, ou seja, ela surge como resultado do processo territorial do bairro. Em uma
conversa com Davi Nunes, ele me contou que leu muitas referências sobre os Quilombos do
Cabula e do Orubu, aprendeu que para Aquilombar é necessário “se juntar para meter mão”.
“Se juntar para meter mão” é uma expressão que indica uma união para realizar uma ação,
como uma limpeza no espaço, organização do espaço ou até mesmo dos livros.
Diego Lima, o principal interlocutor de pesquisa, diz que “Nós da Biblioteca não
inventamos a roda, só estamos dando seguimento a quem veio antes da gente, se não fosse por
Zeferina ou por Beiru não poderíamos estar aqui!”. Nesse sentido, acredito que há uma
relação intencional construída pelos interlocutores para reconstrução de referenciais negros
que inspiram uma associação positiva.
Nos discursos há uma forte presença dos ancestrais, como aqueles vieram antes e
pavimentaram um caminho para o presente e futuro: são aqueles que deixaram bens materiais,
imateriais e até mesmo espirituais.
Esse conceito está presente, pois, particularmente nos meus encontros com Diego
Lima, Hugo Gabriel e Pedro Maia. Eles utilizaram a palavra “inconsciente coletivo” para
justificar as ações em torno da Biblioteca. Quando ouvi essa palavra, a terceira vez dita na
última conversa com Diego Lima, ele olhou com seus olhos, e disse baixinho: “É a
ancestralidade, né irmão!?”
O inconsciente coletivo é o argumento que apela para justificar a legitimidade de suas
ações, isto é, a ideia de uma ancestralidade ganha um tom mítico, usado para justificar as
ações do coletivo. Foi pensando na importância dos antepassados para os interlocutores que
busquei contextualizar o território neste primeiro capítulo.
Sobre as estratégias para entender o processo de desdobramento e narrar na presente
dissertação, tive como premissa os apontamentos de Jean e John Comarrof (2010) sobre a
complementaridade entre etnografia e história. Se por um lado as etnografias são apresentadas
com um teor de autoridade, por outro o empirismo histórico se apega a uma necessidade de
ver para crer parecido com os parâmetros das ciências biológicas.
Os argumentos dos autores trazem consigo uma discussão intensa em que mostram
como o Ocidente faz uma rígida separação entre a cosmologia e a história, gerando dualismos
disfarçados de pseudo-histórias de realidades caricaturadas.
A narrativa dos interlocutores que expressam sua cosmologia é formada pela
interpretação dos interlocutores sob a histografia oficial. É possível afirmar que a narrativa de
tornar Zeferina e Beiru como referenciais é um ato contracolonizador. É ressignificar a
história para produzir novos sentimentos, nova possibilidades.
32
Este subtítulo faz referência à tese da professora Elisa Campos Machado (2008), que
defende que as Bibliotecas Comunitárias são ações de prática social que buscam preencher a
“ausência” de direitos relativos ao acesso à educação, leitura e livros. Para a autora
A autora faz uma análise assertiva, calcada em números e estudos qualitativos. Seus
estudos apontam que o fenômeno das Bibliotecas Comunitárias se assemelha a práticas de
enfrentamento social, a soluções criadas estrategicamente pelas comunidades, a espaços
33
Em 2017 e 2018, foi realizada uma pesquisa idealizada pelo Centro de Cultura Luis
Frei (CCLF), sediado em Olinda e que atua com consultoria para Bibliotecas Comunitárias,
através do programa prazer em ler do instituto C&A. Em articulação com o grupo de pesquisa
da UNIRIO, o centro de pesquisa da UFPE, na figura da professora Ester Rosa, e a Rede
Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC) promoveu um levantamento que mostrou que
87% das BCs estão localizadas em bairros lidos como periféricos.
Em um artigo apresentado a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC),
intitulado Bibliotecas Comunitárias em Rede: Uma experiência de ressignificação de
territórios, as autoras Maria Aparecida Arias Fernandez e Yasmin Wink Finger apresentam
uma análise de 143 BCs de 45 cidades de 15 estados e do DF. Desse número, 92 (65%) BCs
estavam articuladas à RNBC, criada em 2005. Para as autoras
Esses locais oportunizam o acesso à cultura letrada, a informações, à arte em suas
diversas linguagens, e, ainda, à convivência cultural coletiva tão caras às populações
negras, pobres e de territórios periféricos deste país. Essas bibliotecas sustentam-se e
fazem sentido, justamente porque são implementadas pelas cidadãs e cidadãos que
se sentem usurpados do acesso a esses bens e criam estratégias para alcançá-los. Por
isso a BC não é apenas um serviço de acesso ao livro e à leitura, ela é um serviço de
referência para os moradores e moradoras porque os permitem construir outras
possibilidades; sair do que está posto. A biblioteca comunitária não está “a serviço
da comunidade”, ela é a própria comunidade gestando e qualificando os serviços de
informação tão caros para si. (FERNANDEZ; FINGER, 2019, p.2)
Cabe dizer que as BCs possuem uma característica comum de insurgir de condições
onde existe uma falta de garantia de direitos, então os moradores buscam se organizar para
garantir sua própria sobrevivência, desenvolvendo um equipamento cultural e educacional
comunitário.
Elisa Machado (2008) aponta que existem diferentes motivos e formas de modelo das
BCs, assim como experiências que nascem de iniciativas individuais e coletivas. Quando são
individuais, a pessoa responsável costuma incorporar um discurso que agrega a comunidade,
tornando-a protagonista. Quando há um coletivo envolvido, geralmente pertence à
comunidade, gerando uma maior aproximação da comunidade com a Biblioteca Comunitária.
Entre as pesquisas que estudam o fenômeno das Bibliotecas Comunitárias, como por
exemplo o livro intitulado O Brasil que lê: bibliotecas comunitárias e resistência cultural na
formação de leitores, que organiza obras da Cida Fernandez (2018), Elisa Machado (2008),
Ester Rosa (2018), Camila Leite (2018), Carmem Lúcia (2018), Maria Helena DuBeux (2018)
e Waldomiro Vergueiro (2019).
Por meio dos números levantados nas pesquisas da professora Elisa Machado (2008) e
Waldomiro Vergueiro (2019), é possível afirmar que a quantidade de pesquisas relativas a
Bibliotecas Comunitárias é ainda muito pequena.
35
Para Elisa Machado (2008) as Bibliotecas Comunitárias são um novo modelo adotado
popularmente no Brasil, frente à imagem consolidada das Bibliotecas Públicas como distantes
rígidas e sóbrias. Estas estão, pois, à margem da sociedade por conta dos seus limites físicos e
burocráticos.
As Bibliotecas Comunitárias são um instrumento de “resgate da cultural popular;
formação político cidadã; fortalecimento da comunidade na qual ela está inserida; valorização
do indivíduo enquanto ser transformador da sociedade; concessão do direito fundamental à
leitura e ao acesso à informação, mesmo que em muitas delas falte a presença de um
Bibliotecário” (SOARES, 2019). No que se refere à Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru,
também a tenho enquanto um fenômeno aglutinador de pessoas, que aderem a ideia da
projeção de uma representação de identidade coletiva.
A partir dos estudos da professora Elisa Machado (2008) e a constituição da Rede
Nacional de Bibliotecas Comunitárias em 2006, surge uma literatura que vem preenchendo
lacunas no que tange aos estudos relacionados a Bibliotecas Comunitárias.
A Rede Nacional de Biblioteca Comunitária (RNBC) possui 11 redes de Bibliotecas,
incluindo 115 Bibliotecas Comunitárias em todo o Brasil, atendendo ao todo 42.200 pessoas,
segundo os dados divulgados em 2019 no site da rede. No entanto, para as Bibliotecas
participarem da rede, é necessário o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, por isso, a
Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru não está incluída nessa lista.
Os estudos relacionados a Bibliotecas Comunitárias vêm ganhando um destaque
dentro do campo dos estudos da biblioteconomia brasileira. Segundo Mariana de Souza Alves
(2020), apesar das Bibliotecas serem lugares milenares de preservação da memória,
conhecimento e informação, no Brasil a Biblioteca vem tendo dificuldade em fazer sua função
primordial de facilitar o acesso à leitura, perdendo-se em normas técnicas e burocráticas.
Outros autores, como Suaden (1995), defendem que, para a Biblioteca Pública
realmente atender sua razão social, é necessário que ela amplie seus serviços à zona rural e à
periferia das cidades, senão as pessoas que mais precisam irão continuar afastadas desse
equipamento público.
A construção e a difusão de Biblioteca Pública eclodem na década de 1990 em vários
locais do país, mas majoritariamente ao centro da cidade, geralmente distantes de zonas
periféricas (ALVES, 2020). É possível afirmar que elas são variantes que impulsionaram o
surgimento das Bibliotecas Populares e Comunitárias, mas para além da sua localização
geográfica, Bibliotecas Públicas são organizações que são mantidas pelo Governo Federal,
Regional ou Municipal, buscando inserir cidadãos e cidadãs ao acesso à informação.
36
Para Elisa Machado (2008), apesar de não ser possível generalizar as Bibliotecas
comunitárias, existem cinco características que singularizam e diferenciam das Bibliotecas
Públicas:
1.a forma de constituição: são bibliotecas criadas efetivamente pela e não para a
comunidade, como resultado de uma ação cultural. 2.a perspectiva comum do grupo
em torno do combate à exclusão informacional como forma de luta pela igualdade e
justiça social. 3.o processo de articulação local e o forte vínculo com a comunidade.
4.a referência espacial: estão, em geral, localizadas em regiões periféricas. 5.o fato
de não serem instituições governamentais, ou com vinculação direta aos Municípios,
Estados ou Federação (MACHADO, 2008, p. 60-61, grifos da autora).
compreender, mas depois percebi que as pessoas não se importavam com o aspecto estrutural
do lugar, mas sim com o que o lugar representava em suas vidas. Perguntei-me, que lugar
seria esse? Diego Lima me contou em meio à apresentação que era a realização de um “sonho
coletivo”.
Para mim, a ideia de um sonho coletivo dita por Diego, remete a uma oportunidade de
criar novas possibilidades de existir de forma coletiva. Costumo dizer que venho sonhando
junto às pessoas que constroem o espaço a algum tempo.
Os primeiros processos da ocupação surgiram em 2014, enquanto vim conhecê-la em
2015, a partir de convites de amigos que já construíam o espaço naquela época: Hugo,
Guilherme e Paulo. Dali em diante, nos encontros e conversas que aconteceriam na biblioteca,
eu perceberia a importância das referências negras na autoestima das pessoas do bairro.
Para Michele, os nomes Zeferina e Beiru buscam aproximar as pessoas que moram no
território de dois líderes negros, ainda menciona sobre o que significa a mudança do nome do
bairro de Beiru para Tancredo neves ao sentimento de pertencimento dos moradores.
Guilherme, um jovem negro que mora no Cabula, formado em ciências sociais e
mestrando no CEAO, esteve presente nos primeiros momentos de ocupação, mas que por
demandas pessoais precisou se afastar, me contou que o nome da biblioteca buscou fazer
7
As divergências políticas serão tratadas mais a frente, mas Michele, Pedro Maia e Apoena acreditam que o
fato da BZB fazer parceria com programas financiados pelo Pacto pela vida, ela perde sua autonomia.
39
Para ele, a falta de referenciais negros está relacionada à grande taxa de depressão,
adoecimento e suicídio das pessoas negras. Essa falta de referencias as quais se refere é a falta
de representações sociais, políticas e midiáticas de pessoas negras protagonizando papeis.
Deste modo, por isso os nomes Zeferina e Beiru são evocações para manter a memória local
viva. Mesmo que a organização seja comunitária, é possível afirmar que Diego Lima é o
principal articulador e responsável pela Biblioteca Comunitária, mas, em suas palavras, ele só
fez
Dar continuidade a algo que me acompanha desde a infância, aquele espaço foi
criado para algo cultural, entretanto, os poderes públicos, por saber o quanto é
importante um espaço de cultura e lazer dentro da comunidade e o quanto isso é
perigoso este espaço de formação política eles abandonaram o espaço. Então, através
de uma galera lá atrás, Germano, e o pessoal da Associação Beneficentes
Rodoviários, a galera começou a se organizar, depois veio outra galera dando
continuidade. Só que chegou um momento, como acontece em todo espaço de
resistência, que a pessoa vai perdendo o gás e não encontra alguém pra tá ali
estimulando a questão desse gás, né? Vai ocorrendo esse desgaste, aí a pessoa vai
criando família e cria outras demandas e acaba sem perceber se afastando do espaço
e não dando conta né? Aconteceu isso aí em 2002. Tinha outra galera do rock que
colava lá, tinha outra galera também e por causa do processo emocional e da
autoestima acabaram não dando continuidade, tive a ideia de criar uma biblioteca
comunitária em 2013, tinha já [a ideia], mas não sabia como, foi em 2014 foi um foi
aparecendo, depois outro e tudo foi somando. (DIEGO, 2020)
Entendo que o processo de “continuidade” que Diego aponta está relacionado com as
40
iniciativas dentro do território, que vêm desde as primeiras iniciativas que começam no
Quilombo do Cabula. Irei retomar esses processos ao final, na conclusão.
Na fala em questão, o processo de continuidade é também uma referência ao trabalho
desenvolvido pela Associação Beneficentes Ferroviários – ABF no espaço, da década de 90
aos anos de 2001-2002, que tinha como presidentes Germano e dona Juju, a mesma que
coordenava um grupo de mães do bairro.
Edson Lima, morador do Arenoso há 34 anos, desde que nasceu mora ao lado do
prédio que abriga a biblioteca, viu de perto todas as mudanças do espaço. Edson, pai de dois
filhos, casado, é neto de seu Antônio, um dos primeiros moradores do bairro. Testemunhou
“cinema, escolinha tipo uma ONG, porque era uma escola que tinha um projeto social, tinha
muitas coisas aqui no início dos anos 2000”.
O prédio que abriga a biblioteca foi construído em 1980, como um cineteatro, e depois
veio a funcionar como uma escola por iniciativa dos moradores, que fechou alguns anos
depois. Pouco mais de dez anos depois, os moradores iniciaram o movimento de ocupar
novamente o prédio.
No movimento mais recente de ocupação, Edson Lima foi o principal responsável em dar o
pontapé inicial no processo de limpeza do espaço, antes de ser uma biblioteca. Em uma
conversa, me disse que “o que eu fiz e me orgulho, posso te dizer com prazer que cada
plantinha dessa eu vi crescer, cada plantinha dessas fui eu que plantei e hoje tô vendo elas dão
fruto”.
As plantinhas a que Edson se refere são árvores frutíferas entre 10 a 20 metros de
altura – mangueiras, goiabeiras, jambeiros, acerola, pitanga, coqueiros e limoeiros – todas
plantadas por ele em 2010. Edson frequenta diariamente o espaço para cuidar dele e do
galinheiro que construiu. Edson lembra que Diego chegou em 2014: “aos poucos, foi
organizando o espaço, ajudando a limpar e, depois de um tempo, apresentou o projeto da
Biblioteca.”
Diego me contou que, na faculdade de psicologia, conheceu um colega que queria doar
livros para a biblioteca da Universidade. Naquele momento, ele pensou em levar a doação
para uma futura biblioteca. Diego começou a entrar em contato com todos seus amigos,
divulgando essa ideia, quando, por acaso – “por obras do inconsciente coletivo8” (Hugo
Gabriel, 2019), se encontrou com Hugo Gabriel no ônibus.
Segundo Bastos, Almeida e Romão (2011), o acervo de Bibliotecas Comunitárias
8
Este termo indica uma relação não consciente entre os interlocutores, sugere uma união estabelecida pela
ancestralidade. Pretendo trabalhar esta categoria nativa em produções futuras.
41
costuma ser fruto de doações, no entanto, costuma haver uma preocupação latente em analisar
o estado de conservação e funcional da doação, tendo como premissa o valor informacional
que o material poderá servir. Por isso, parece que o surgimento da BZB está interligado com
condições de necessidade parecidas com outras BC’s pelo Brasil (MACHADO, 2016)
Hugo Gabriel e Diego Lima se encontraram no ônibus e, no dia seguinte, foram buscar
a primeira doação de estantes e livros para a Biblioteca. O grande fator motivacional para
Diego em articular a criação da Biblioteca foi sua vontade de
Dar um retorno pra minha comunidade, por que eu queria ser um “maluco” também,
porque lá atrás um maluco chegou pra mim e disse que era pra eu fazer pré
vestibular por que outro caminho é possível, então hoje eu quis ser esse referencial,
só que eu não sabia como, tentei pra um lado pra outro, falei um com um e outro só
que não consegui, mas como nosso plano ancestral trabalha de uma forma que não
consegue explicar, eu dentro do buzu 9 me bati com um brother que fiz o pré
vestibular que inclusive o nome era Pré vestibular guerreira Zeferina, e depois a
gente não entendeu, mas depois a gente entendeu o porquê ter posto esse nome.
Nossas referências são silenciadas, não se fala sobre dessas lideranças, Beiru até
mais por causa do nome do bairro, mas Zeferina não, mesmo sendo importante pra
região. E aí do nada encontrei dentro do buzu, e aí pensando, antes de pensar a
biblioteca pensei num espaço cultural mesmo, mas no começo pensei em abraçar
tudo, só que não rola, tentando fazer tudo de uma vez só, e aí foi um período que
apareceram algumas doações de livros e aí por compreender o papel da linguagem, e
aí vi Franz Fanon falando do processo da linguagem e como o processo da
linguagem favorece pro processo de opressão e como a leitura pode ser processo de
libertação também, e aí foi quando surgiu uma doação de livros e aí como tudo casa
né...esse plano ancestral, e aí falei com o brother que trabalha com reciclagem e ele
apareceu com alguns livros como Machado de Assis e outros clássicos, e aí a gente
tava conversando e no meio desses livros tinha o livro “Beiru” todo molhado, botei
pra secar e começamos a construir a partir daí, por isso a gente fala que é uma
continuidade uma luta ancestral mesmo. Você pegando um buzu se encontra com o
brother e depois acha o livro do nada, aí começa a chegar várias pessoas de outros quilombos,
foi aí que comecei a perceber como tudo rolava antigamente nas antigas articulações, o
quilombo de Orubu, do Tatu, do Cabula, eles todos se articulavam. É um plano
mesmo ancestral, é algo que está no nosso DNA que passa por geração em geração
que a gente não sabe explicar neste momento ainda mas é algo que está conosco.
(DIEGO, 2020.)
A fala de Diego aponta que a sua intenção foi dar um retorno à sua comunidade. O
fato de ter entrado em uma faculdade, feito uma graduação em Psicologia, e ser oriundo de
um bairro onde as oportunidades são mais escassas ele buscou alguma forma de levar para
dentro da comunidade o conhecimento que adquiriu fora.
O sentido que pensei sobre sua fala de dar um retorno à comunidade está ligado com o
que Mauss (1999) aponta na teoria da dádiva como uma prática essencial para garantir a
circularidade e reversibilidade das trocas (SERTÃ & ALMEIDA, 2016 ). Analisando sua
fala, entendo que pré-vestibular que leva o nome de Zeferina que Diego fez para ingressar na
faculdade o marcou de tal forma, que ele buscou uma forma similar de marcar outras pessoas.
9
Gíria usada em Salvador para se referir aos ônibus que são transportes coletivos públicos.
42
Mesmo que estejamos falando de uma pessoa ocidental, a ação social de Diego indica
uma necessidade de “retorno” não monetário, mas algo fisicamente coletivo com valores
comunitários. Compreendo as ações de Diego a partir do que Fanon (1982) vem apontando
como os primeiros passos rumo à descolonização, ao desmantelamento dos símbolos coloniais
e à exaltação de símbolos e referenciais negros.
Davi Nunes estava presente quando que surgiu a ideia de uma Biblioteca, então
perguntei a ele o porquê de uma Biblioteca. Ele me respondeu que:
Uma biblioteca é necessária para que a gente leve informação para nossa
comunidade, nosso povo, de trazer livros de autores e autoras negras africanos. Um
processo de levar uma educação para nossas crianças, levar um espaço para que as
pessoas possam exercer ou fomentar sua imaginação, então eu acho que a Biblioteca
tem essa forma lúdica de unir as pessoas em pró da leitura, e a leitura da como uma
possibilidade de construir mundos, uma cidadania também né. É construir
possibilidades para crianças, então é isso também, é um local, onde as crianças do
bairro poderiam ir para ler, para ter algum letramento. Então eu acho que isso é uma
das vantagens de ser uma biblioteca, reunir as crianças para leitura num bairro
periférico, onde tem muita debilidade social, então a biblioteca funcionava bem
neste sentido. Acho que o mutirão foi um chamamento para se pensar possibilidades
de organização comunitária. e isso flui por que todo mundo ia pra lá, pelo menos
todo que eu conversava, se sentia bem, então também tinha um fator terapia ali, que
é todo mundo ta fazendo alguma coisa junto ali, então as pessoas se sentiam bem por
que estavam fazendo uma coisa bem, no início, uma coisa bem genuína, bem, como
posso dizer? Que trazia um bem-estar para as pessoas que estavam fazendo. Nisso
que fez a biblioteca crescer. (DAVI, 2020)
Davi Nunes aponta que o nome do espaço carregar personagens negros foi um
acordo coletivo no ato da criação da Biblioteca. Nesse sentido, para além de uma ser uma BC,
43
constitui um lugar que carrega uma representação identitária para as pessoas que a
construíram.
Toda BC é particular e surgem de acordo as condições e necessidades daqueles que a
criaram. Segundo Alves (2020)
As razões para a criação de bibliotecas comunitárias são muito singulares e difíceis
de serem generalizadas, pois cada criador (a) teve um motivo especial para criar sua
biblioteca. Tais espaços também podem surgir a partir de iniciativas individuais ou
coletivas internas (Igrejas, grupo de jovens, associação dos moradores ou idosos) ou
externas (ONGs, empresas privadas). (ALVES, 2020, p. 8)
coloniais.
Perguntei sobre o início da Biblioteca a Pedro Maia, que fez parte do coletivo desde
2015 até 2019, quando se afastou da organização motivos políticos (ver o terceiro capítulo).
Pedro Maia é um homem negro, que começou a participar dos mutirões meses antes de mim,
foi um dos entusiastas para me convidar a participar das atividades. Em entrevista a mim em
janeiro de 2019, pontuou que antes do espaço físico ocupado no Arenoso, os membros da
Biblioteca já tinham uma organicidade anterior. Nas suas palavras
As pessoas que hoje fazem parte da Biblioteca já se conheciam de antes. Pessoas
que são de outros lugares de Salvador. Esse grau de organicidade acontecia porque
as pessoas participavam do movimento contra UPP na UNEB 10. Tinha, por exemplo,
Diego no Arenoso, Hugo no Beiru, lá em cima, no Arvoredo, Maíra, que fez parte
do movimento pela UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) na UNEB, que também
mora no Cabula, Michele chegou a estar junto também. Então eu percebo que há
uma continuidade, não foi algo assim “espontâneo”, foi algo que já vinha de um
movimento anterior. E pensar também que o prédio que foi ocupado ia ser uma base
comunitária. Então essa ocupação não foi à toa, foi uma ocupação estratégica para
combater as UPP, praticar autogestão e principalmente combater a violência policial.
É algo que só agora quando a gente para pra pensar a gente percebe que tem um grau
de conexão das pessoas que estavam na UPP na UNEB estão na Biblioteca. Eu não
tinha castelado11 nisso, mas quando a gente para pra pensar vê isso. Meu contato
com o próprio Diego foi dentro do movimento da UPP. Outra questão sobre o início
da Biblioteca gira em torno da própria repercussão da chacina na Vila Moisés,
depois disso, a Biblioteca teve um salto organizativo. Surgiu como uma urgência
porque começamos a nos organizar mesmo, você mesmo lembra né? Depois daquele
carnaval foi que a gente começou a agregar pessoas de outros bairros. (PEDRO,
2019)
Para Pedro, foi um movimento anterior ao espaço físico que fez as pessoas se
reunirem em torno do lugar. As experiências políticas entre os integrantes da Biblioteca em
outros momentos são uma das maiores características para descrever o processo de
consolidação da Biblioteca enquanto um coletivo.
Luvitozzo (2009) apresenta um panorama sobre a contextualização de como se
construiu o conceito de etnicidade, ela aborda através dos estudos de Barth, a concepção de
que os atores sociais identificam-se e são identificados pelos outros na base de
dicotomizações “nós/eles”, os quais são estabelecidos a partir de traços culturais derivados de
uma “origem comum” e realçados nas interações sociais. Em outras palavras, as identidades
manuseiam símbolos identitários que estabelecem uma origem comum.
Barth (1998) afirma também que o ato de nomear tem uma força que faz os nomeados
pensarem sua pertença a uma determinada coletividade. Então, o poder de nomear define uma
situação em que uma identidade atribui a identidade o direito de se definir. Segundo o autor,
10
Movimento que aconteceu no ano de 2013 contra a implantação de uma base comunitária na UNEB.
11
Castelado é uma gíria utilizada nas periferias de Salvador que significa perceber, entender.
45
A Biblioteca possui três andares, com o térreo possuindo 09 (nove) divisões: três
banheiros, um depósito, duas salas para os livros, um espaço da brinquedoteca e uma sala
pequena bem estreita. Essa planta foi feita pelo arquiteto Jones Nascimento em 2020, onde
passou a contribuir no coletivo para concorrer a um edital lançado por um grupo de São
Paulo, a BZB não foi selecionada, por outro lado ganhou uma planta de seu espaço.
O espaço externo, que circunda toda a Biblioteca, conta com uma garagem onde
alguns moradores estacionam o carro e outros armazenam alguns materiais para reciclagem,
como ferro e alumínio, além de existirem um galinheiro construído e mantido pelos
moradores, um espaço de árvores frutíferas e uma horta comunitária.
Até novembro de 2018, as pessoas que compunham o coletivo pouco sabiam sobre a
origem do projeto político que acarretou a construção espaço em que funciona a Biblioteca
Comunitária, apenas era sabido que foi construída como parte do Projeto Beiru 12.
Em uma das viagens à Casa do Boneco 13, foi firmada uma parceria com Paco
Gomes14. Nesse encontro, surgiu a oportunidade de a Biblioteca participar de uma oficina de
psicologia social com Paco.
Em novembro de 2018, Paco Gomes chegou à Biblioteca. Lembro que foi em um
domingo, cheguei um pouco antes dele e pude presenciar o rosto surpreso de Paco Gomes ao
perceber a coincidência do espaço da Biblioteca ter sido o mesmo que foi desenhado pelo seu
professor na década de 80.
Paco Gomes era estudante de arquitetura e foi um dos estagiários que trabalhou
12
Projeto político encabeçado pelo governador da época para organizar e estruturar o bairro, abordada no
próximo capítulo.
13
Casa do Boneco Itacaré – Quilombo do O’iti é uma organização de quilombo urbano, que será apresentada
mais à frente.
14 Paco Gomes é bailarino, coreógrafo, músico e professor. Desde a infância, estudou danças africanas e
religiosas. Formado em dança pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), especializou-se e Dança e
Educação na UNEB. Além de experiências na San Francisco StateUniversity, Paco também esteve na
Standford University , onde pode aprimorar seu método.
48
diretamente com Silvio Robbato (1935 – 2008). Por isso, Paco acompanhou o início da
construção do espaço da Biblioteca, porém, posteriormente mudou sua área de atuação
profissional, se afastando do projeto. Não soube o rumo que teve o projeto até retornar ao
local como Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru.
Essa visita do Paco Gomes à Biblioteca ainda proporcionou uma coincidência maior: o
primeiro livro que Paco Gomes avistou 15 nas prateleiras foi um da “Coleção gente da Bahia”
que tratava da justamente da história de Silvio Robatto (1935 - 2008). A coleção reúne uma
série de biografias de baianos que marcaram o mundo intelectual e profissional, como, por
exemplo, o geógrafo professor Milton Santos (1926-2001), que também está no acervo da
Biblioteca.
Robatto (1935 – 2008) construiu, ao todo, três centros comunitários: um no Arenoso,
um em Plataforma e outro em Alagados. Foi igualmente responsável pelo desenho do Cine
Solar Boa Vista, localizado no Engenho Velho de Brotas.
Tais construções têm peculiaridades e dimensões especificas de acordo com cada
terreno onde foram instaladas. Foram idealizados como cine teatros com capacidade para 300
a 400 lugares, além de ampla sala de teatro, dois camarins, concha acústica e quatro salas para
exposição de atividades culturais (GROPPER, 2013).
O Prédio que abriga a biblioteca comunitária é conhecido pelos moradores de Centro
Comunitário do Arenoso, foi construído durante o Governo de João Durval e a mesma
arquitetura foi idealizada para as cidades de Alagoinhas, Juazeiro, Valença, Porto Seguro,
Vitória da Conquista, Feira de Santana, Itabuna e Salvador, sendo Silvio Robatto (1935 -
2008) o responsável por projetar todos os espaços. O arquiteto viajou para as cidades para
conversar com os moradores e artistas locais para saber das necessidades que cada centro
poderia dar conta.
Aqui, chamo atenção de que esta foi mais uma história a partir de uma atividade em
parceria com a Casa do Boneco, nesse sentido, no terceiro capítulo discuto alguns processos
de articulações da Biblioteca como uma relação de confluência com grupos, organizações e
pessoas.
15 Por conta da coincidência do Paco Gomes ter participado do processo de construção do espaço, a categoria
nativa: obras do inconsciente coletivo foi usada novamente por Diego, Pedro e Hugo falaram no dia da
formação.
49
16
Valdeck Almeida de Jesus nasceu em Jequié-BA, em 15 de fevereiro de 1966. Membro da Academia de Letras
do Brasil (Seccional Suíça), Academia de Letras de Jequié, Academia de Cultura da Bahia, Academia de Letras
de Teófilo Otoni, Poetas del Mundo e União Brasileira de Escritores – UBE. Membro Fundador da União
Baiana de Escritores – Ubesc e da Confraria de Artistas e Poetas pela Paz – CAPAZ. Frequentador assíduo do
Sarau da Onça desde 2011. Jornalista de formação, escritor, poeta e ativista cultural. Autor de vinte e um
livros, participante de 123 antologias diversas. Patrocina um concurso literário desde 2005 que já publicou
mais de 1600 poetas do mundo inteiro. http://mapadapalavra.ba.gov.br/valdeck-almeida-de-jesus/
50
nos mutirões que eram realizados aos finais de semanas. Os mutirões costumam ter uma
ampla divulgação, por meio da “boca a boca” no bairro e em postagens no Facebook.
Diego me contou que a limpeza foi sendo realizada de forma mais cuidadosa nas
partes interna e externa em 2014. Foi em 2015 que os banheiros passaram a funcionar com a
instalação de rede hidráulica. Todo esse processo de reforma, destaco, foi pedagógico, uma
troca de saberes entre os membros do coletivo. Até a inauguração simbólica, em novembro de
2015, todos os matos e entulhos já haviam sido retirados do espaço.
A proposta política da criação da Biblioteca Comunitária foi apresentada à
comunidade e aos movimentos sociais de Salvador através de uma campanha nas redes sociais
com ampla divulgação. O ano de 2015 fechou com demandas relativas à manutenção da horta
comunitária, uma vez que, na época, esta era entendida como demanda prioritária.
Os primeiros momentos dos mutirões ficaram marcados pela organização da
estrutura e organização da Biblioteca. Particularmente, eu nunca havia trabalhado com
questões relacionadas à construção civil, mas fui aprendendo a mexer em encanação,
eletricidade e cimento, de acordo com a necessidade. Foram realizados consertos coletivos
nas tubulações e na parte elétrica, depois foi a vez do banheiro e da cozinha. Após organizar
as divisões no espaço, as portas foram colocadas. Por fim, foi feita a triagem e a organização
do acervo de livros.
A limpeza do espaço foi um dos primeiros processos educativos da Biblioteca
enquanto um grupo, como Pedro Maia, em uma conversa comigo em janeiro de 2019, contou
que
O trabalho que é feito na biblioteca me educou mudou a mim mesmo, aí eu penso
que tem tudo a ver com o que a gente pensa enquanto o que é educação: então
acredito que o primeiro processo educativo foi ter que estar em um lugar
abandonado. À medida que a gente teve a necessidade de ocupar o prédio, teve a
reforma, então acredito que o primeiro processo educativo foi à reforma (PEDRO,
2019).
Os mutirões são reuniões que acontecem para “meter mão” no espaço. Como dito por
Davi Nunes, os mutirões foram as primeiras atividades realizadas na Biblioteca. Para ele, os
mutirões foram encontros nos quais jovens se reuniam para limpar e organizar o espaço, de
forma natural, já que não existia na época nenhum lembrete, nem evento, que chegaram pelo
convite e por curiosidade. Esta fotografia foi o registro de um dos primeiros mutirões voltados
a construção do acervo de livros.
Na foto, tem-se Hugo Gabriel na porta com o carrinho de mão, Diego Lima, que está
com um violão na mão, enquanto Pedro Plante de costas e finado John de bermuda laranja
conversando com Daniel. Esse registro foi feito em 2014, ainda no primeiro ano de ocupação.
Aqui chamo atenção para o tamanho das plantas, especialmente o pé de acerola à direita e o
de pitanga à esquerda, que demonstra estarem ainda em crescimento, e para o chão com muita
terra e sujeira. Mostrei a foto a Diego, ao ver a foto ele me contou que, naquele dia,
terminaram de limpar a parte interna do espaço e pintaram as estantes que receberam de
doação. Outro fato que chama atenção nesse registro é a predominância masculina, cinco
homens cis, que reflete uma dimensão do cotidiano de homens negros.
Há uma predominância de homens no espaço por conta da própria dinâmica do bairro.
Ao passear pelas ruas é possível perceber uma maioria masculina, mas para descobrir os
motivos é necessário me debruçar com mais tempo para entender este movimento de gênero,
52
tal fenômeno se apresenta como profundamente relevante para entender a dinâmica de bairro
da BZB e do bairro
Em relação a dinâmica dos mutirões, lembro que a primeira vez que fui ao espaço me
senti perdido porque fiquei esperando alguém me dizer o que eu tinha que fazer, mas depois
entendi o porquê de ninguém me dizer. Ali, ninguém me diria isso, eu que teria que descobrir
como poderia contribuir. Tenho para mim como uma formação comunitária prática que tive e
oportunidade de fazer parte.
Durante os mutirões, em meio à limpeza e organização do espaço, as crianças
transitam e, de repente, apareciam dez a quinze delas, que, da mesma forma, iam embora. As
crianças sempre saíam por diversos motivos, tanto para brincar com outras crianças, quanto
sozinhas. A maioria ia disposta a ajudar a varrer, pegar entulho, catar plástico e papeis
espalhados pelo terreno, ou simplesmente para ficar observando, ouvir, opinar e até mesmo
para “perturbar” (como uma vez um garoto chamado Wendel me disse).
Para Maria Estela Rocha (2007), o espaço urbano é o reflexo da vida social: nas
palavras dela,
O espaço urbano reproduz e reflete a vida social, onde as políticas administrativas
e práticas públicas e privadas hegemônicas criam processos de dominação -
hierarquias sociais, assegurando privilégios sociais aos grupos étnicos
dominantes. A cidade apresenta-se como consequência de um campo de forças e
de interesses e torna-se resultado das projeções ideológicas dado pelas expressões
e representações sociais e culturais. Nesta desvinculação com o processo social,
sobressaem as tendências de homogeneização das relações sócio-espaciais
advindas com o processo de universalização e de globalização (ESTELA, 2007,
p. 64).
Para a autora, a vida social que acontece no espaço urbano reflete as desigualdades
sociorraciais na própria estética da arquitetura urbana. A autora ainda aponta que as
instituições que cuidam da cidade possuem uma distribuição de equipamentos públicos, zelo e
cuidado com certas preferências de gênero, raça e classe. Dessa forma, a cidade é um palco
denso de atores, territórios e acontecimentos, que remete a uma intensa construção de imagens
(FERNANDES, 2003). Assim, o mutirão reflete uma ação de jovens que se unem para recriar
espaço de sociabilidade dentro da cidade. Para LoicWacquant (2005):
Entretanto, a atenta análise comparativa de seu tempo, contexto e desenvolvimento
mostra que, longe de expressões irracionais e atávicas de incivilidade, a recente
inquietação pública dos pobres urbanos da Europa e da América do Norte constitui
uma resposta (sociológica à compacta violência estrutural liberada sobre eles por
uma série de transformações econômicas e sociopolíticas que se reforçam
mutuamente. Tais mudanças resultaram em uma polarização de classes que,
combinada com a segregação racial e étnica, está produzindo uma dualização da
metrópole,, que ameaça não apenas marginalizar os pobres como condená-los à
redundância social e econômica direta. Essa violência "vinda de cima" tem três
componentes principais: (1) desemprego em massa, persistente e crônico,
representando para segmentos inteiros da classe trabalhadora a desproletarização que
53
traz em seu rastro aguda privação material; (2) exílio em bairros decadentes, onde
escasseiam os recursos públicos e privados à medida que a competição por eles
aumenta, devido à imigração; (3) crescente estigmatização na vida cotidiana e no
discurso público, tudo isso ainda mais terrível por ocorrer em meio a uma escalada
geral de desigualdade. Longe de representar um subproduto periférico da terceiro-
mundialização ou reversões a formas sociopolíticas pré-modernas de conflitos, essa
volta das realidades reprimidas de pobreza, violência e divisões étnico raciais,
ligadas a seu passado colonial, no coração da cidade do Primeiro Mundo, deve ser
entendida como resultado da transformação desigual e desarticuladora dos setores
mais avançados das sociedades ocidentais, e, portanto, suas manifestações não
parecem passíveis de amainar tão cedo. (WACQUANT, 2005, p. 29)
acho que tinha essa importância os mutirões, e possibilitou, acho que o grande
chamamento da Biblioteca foram os mutirões que colhemos os bons frutos. (DAVI,
2020)
Nessa fala, o mutirão está ligado com um processo de aquilombamento, ou seja, para
Davi o fato das pessoas se reunirem para uma atividade solidária é um movimento de
quilombismo.
Abdias Nascimento (1980) entende como quilombismo, um movimento político-social
que acontece quando as pessoas se reúnem em torno de um tempo e espaço específicos para
criar novas possibilidades de existências e/ou resgatar práticas ancestrais, por meio de uma
inspiração nas experiências históricas dos quilombos brasileiros e culturas de matrizes.
Para Beatriz Nascimento (1985), o Quilombo é uma organização africana que
funcionou como uma instituição colonial e se consolidou como uma mística, que alimenta um
sonho de liberdade com sua retórica abolicionista. A maior característica ideológica é o seu
caráter de heroicidade intrinsecamente ligado à história dos quilombos no Brasil.
Nesse sentido, acredito que as atividades dos mutirões podem ser compreendidas
como uma prática de reconstrução de perspectivas e condições de existência da população
negra, inspirada em movimentos passados, calcados na experiência “ancestral”.
Uma das características do mutirão é agregar pessoas de diferentes gerações para
trabalharem juntas. Como na próxima foto:
Figura 7 - Área Externa 2 (2017) – O jardineiro mirim
e Edimar, irmão de Diego e finado Isac. Esse registro foi realizado por mim, e, nele, busquei
mostrar as diferentes gerações que se encontram no espaço, ao mesmo tempo, e enfatizar o
processo de construção coletiva. Se trata também do primeiro mutirão de 2017, com Isaac,
mais conhecido na comunidade como Teacher, e Marzinho, o irmão de Diego Lima,
consertando a porta da entrada. Teacher era um morador nascido do bairro que nos deixou em
2018, com quarenta e nove anos, devido a um problema de saúde.
A presença das crianças no ir e vir do espaço é característica do movimento que
acontece nos mutirões. Como neste registro, durante um feijão feito no fogo de lenha na área
externa do espaço.
À esquerda na imagem, tem-se Hugo Gabriel com cabelo com tranças nagô, duas
crianças que parecem mexer em uma panela, Diego com camisa regata vermelha, mais três
crianças que acompanham Michele mexendo na panela com feijão, enquanto outra criança
brinca à esquerda. A foto foi feita por Pedro Maia, e lembro de estar ao seu lado, esperando o
almoço ficar pronto, quando me pediu o celular pra isso.Chama atenção ainda a
predominância masculina.
Todos os finais de semana, chegavam na Biblioteca muitas crianças e jovens para
participar dos mutirões. Em um sábado, no período das férias de São João em 2017, contei a
presença de 43 crianças no espaço ao mesmo tempo.
57
Durante os dias em que acontecem mutirões, é certo ter café da manhã, almoço e janta
coletivos. Na Biblioteca, que não tem muitas regras, existe um tipo de ritual durante as
refeições. Quando a comida fica pronta, servem-se primeiramente as crianças, depois os mais
velhos, os convidados e por último o coletivo, regra que foi instaurada durante uma reunião
do coletivo, ainda em 2016. Ela é, porém, flexível, a depender da fome e da condição de cada
um, mas, repetir o prato, só depois que todos comerem.
Esta foto foi também foi feita por Pedro Maia, que nesta outra ocasião me pediu para
registrar a mesa que foi posta para as crianças. No prato, tem feijão feito com verduras,
cenoura, banana, batata-doce e arroz.
O colorido se tornou consequência, mas geralmente o cardápio é pensado
cuidadosamente pelo coletivo no dia, o qual não costuma ter carne e sim muitas verduras e
temperos. A Biblioteca sempre teve muitos visitantes e educadores que não comem alimento
58
de origem animal, por isso, as refeições são pensadas de forma inclusiva, pautando a
reeducação alimentar voltada àqueles mais nutritivos e saudáveis como frutas, verduras e
legumes. Para fazer a comida, a movimentação começa cedo, frequentemente as pessoas que
participam dos mutirões trazem contribuições de casa, ao passo que outras contribuem com o
valor em dinheiro que podem.
Habitualmente, Diego Lima é quem toma a iniciativa para fazer as refeições, e, à
medida que as pessoas vão chegando, o preparo acaba sendo coletivo também. As minhas
lembranças são de chegar ao espaço pela manhã e encontrar as crianças varrendo a parte
externa e Diego preparando o café da manhã do lado de dentro.
Esse momento também foi lembrando por Guilherme, que me disse que as
lembranças do café da manhã ainda estão bem frescas em sua mente, pois se divertia bastante
durante o preparo dos alimentos, principalmente as crianças que pareciam gostar muito. Ele
também se lembrou das aulas de inglês e violão, bem como das vezes que teve que ir buscar
os meninos em casa para participar das atividades.
Fiz esta foto objetivando registrar o momento em que as crianças tinham aula de
violão com Junior. Nela, Junior observa as crianças que estavam fazendo o exercício que
havia ensinado. A única menina que aparece é a sobrinha de Diego, que na época
acompanhava os mutirões. Outra característica das atividades que acontecem na Biblioteca é a
59
Nesta outra imagem, João conversa com Tainara, Mc Chagas e Liu, integrante da
Organização Reaja ou Será morto17, que foram fazer uma visita e conhecer o espaço. Débora,
ao fundo, está de pé, com camisa branca, ao lado de Duda. Jorginho, no canto direito com
camisa branca, Maiara, à esquerda de camisa laranja, e mais duas crianças que não consegui
identificar conversam entre a bananeira, a mangueira e o limoeiro.
As atividades de sábado aconteciam simultaneamente à realização do mutirão. Em
geral, as crianças mais novas participam das oficinas e aulas, enquanto outras pessoas ficam
responsáveis pelas demais funções. O espaço que é hoje a horta comunitária, por exemplo, era
cuidado sempre ao mesmo tempo em que ocorriam outras atividades.
Foi no último mutirão de 2015 que Diego pegou emprestado de um vizinho a
máquina de cortar grama. Boa parte das atividades de 2016 foram em torno da manutenção da
17
A Organização Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto é uma organização de coalizão nacional entre
organizações que combatem o genocídio da população negra, denunciando a brutalidade policial por uma
perspectiva antiprisional e de reparação e apoio às famílias de vítimas de violência policial.
60
Horta. As primeiras colheitas vieram a ser feitas em setembro de 2017, quando ao todo foram
colhidos aproximadamente 01 kg de feijão e 03 kg de batata doce. Durou quase 02 anos
trabalhando para melhorarmos a qualidade da terra para que ela viesse dar bons frutos.
Abaixo, o primeiro registro feito da condição que estava de abandono.
Na figura 12, está Hugo Gabriel, à esquerda de camiseta regata, Rai Negus, de camisa
regata cinza e mãos nas costas, e Ruan Jones, em pé entre os mamoeiros. O registro foi feito
por Diego Lima, que aproveitou a câmera emprestada de Ruan Jones para fotografar os
primeiros passos de limpeza do espaço.
Na sequência, quero apresentar um conjunto de registros visuais para situar alguns
dos manejos que houve na horta comunitária, bem como as pessoas que se envolveram e as
características de quem frequentava esses mutirões.
A figura 13, nomeada por mim de Entre os galhos, a qual revela o movimento de
envolvimento do coletivo com a terra. As pessoas deste registro são, da esquerda pra direita:
Sofia, abaixada, que parece que estar arrancando algo do chão; Diego, de bermuda verde com
a picareta na mão; enquanto Pedro, Junior e Tiago carregam juntos um carrinho de mão com
entulho a ser levado para fora. Daniel, ainda jovem, foi o único jovem que participou do
mutirão no dia em questão, ao lado de Denis, que está à direita, de costas para foto.
62
Na foto, da direita pra esquerda, tem-se Pedro Maia com o notebook na mão, fazendo
a relatoria da reunião; Sofia, ao seu lado, que lê um texto que parece ser da relatoria passada;
Junior, sentado com lenço verde no cabelo; Denis, sem camisa, sentado ao seu lado; Paula
Regina, de calça azul e com os olhos em direção a Sofia, aparentemente atenta à leitura que
Sofia faz; e Eliaquim, entre Paula e Diego, o qual está sentado em um carrinho de mão.
A imagem foi um registro que fiz a pedido das pessoas que estavam na reunião.
Aquele dia foi bastante singular, diferente dos mutirões em que as portas da ocupação ficam
abertas, pois ocorreu a portas fechadas. Foram tiradas centenas de quilos de pedras que
haviam sido jogadas pela prefeitura durante uma obra na praça. Por se tratar de trabalho
manual intenso, o coletivo decidiu fazer a limpeza sem a presença das crianças. Dentro do
espaço, o coletivo não costuma consumir bebida alcoólica, mas tendo sido um trabalho pesado
e não havendo crianças, foi feita uma vaquinha para compra de uma caixa de latinhas de
cerveja para consumo do grupo.
63
A figura 15, por seu turno, foi feita no primeiro mutirão na horta comunitária no ano
de 2016. O mutirão teve a participação da turma que faz aula de boxe no espaço com o
professor Rob, que está atrás, com camisa regata no centro da foto. Pedro Maia, com uma
enxada na mão, e Tiago Zaneti parecem estar olhando para o chão.
A próxima foto ocorreu ainda no primeiro semestre de 2016, no mês de abril. Naquele
dia, foram construídas quatro leiras18 voltadas ao plantio de hortaliças e verduras. O mutirão
girou em torno da horta comunitária, sendo as pessoas informadas a seu respeito por convite
boca a boca e uma ampla divulgação nas redes sociais da Biblioteca. Os convidados que
apareceram nos mutirões foram artistas negros da cidade de Salvador, o que ocasionou, de
forma espontânea, um Sarau de Poesia ao final, com intervenções de poetas como de Geilson
dos Reis, Luan Nesta, Dom Lito, Isac e Michele.
Na foto, aparecem oito pessoas. Michele, à esquerda, com a pá na mão, espalhando a
terra que Adriana está peneirando dentro das leiras; Tássio, de calça azul, fazendo algumas
indicações de como manusear a terra; Dom Lito conversando com Paulo Vitor, que passa a
mão na cabeça; Diego e Quelmonis, cada um com uma enxada revirando a terra; enquanto
Davi Nunes, com o pé de cabra, quebra a terra.
18
As leiras são amontoadas de terra com adubo feitas em linhas em formatos geométricos, no caso,
retangulares, preparadas nas linhas de plantio com aproximadamente 40cm de altura e 60cm de largura na
base.
64
Na imagem seguinte, vemos a presença de uma criança e sete jovens, sendo que, das
oito pessoas, seis são homens e duas, mulheres. Uma característica que parece haver nos
mutirões é a predominância da presença masculina no espaço, tanto como frequentadores
quanto no coletivo que gere o espaço. A figura/foto 17 foi escolhida para evidenciar as
mudanças físicas e o trânsito de diferentes pessoas em torno do espaço.
Figura 18 - Mutirão na Horta, no primeiro semestre de 2017
as sementes e cobrindo-as com as folhas de bananeira que estão separadas, no chão, próximas
a Tássio, o qual está em pé, com uma enxada em mãos e camisa azul.
A próxima foto que escolhi foi pensada para mostrar o resultado dos mutirões em
volta da horta comunitária.
Este foi o registro da primeira colheita de feijão que aconteceu na Biblioteca em 2017.
O feijão foi plantado por dona Raimunda, que se aproximou do espaço a partir dos encontros
do grupo de terceira idade do bairro, os quais aconteceram algumas vezes na Biblioteca. Em
especial, dona Maria e dona Raimunda começaram a frequentar o espaço e a contribuir com
seus respectivos conhecimentos para cultivar plantas medicinais.
Em fins de 2017, o espaço estava finalizado com seis leiras: uma com batata doce,
duas com hortaliças, duas com verduras e legumes e uma com pimenta. Isso é mostrado na
foto a seguir, que tem como personagem Augusto, sobrinho de Diego.
66
Essa é uma afirmação que se articula com o caso em questão: discurso produzido pelos
interlocutores disputa uma narrativa identitária sobre o bairro. Talvez os “nomes” podem ser
apenas nomes, palavras vazias, no entanto, representam identidades, mobilizam símbolos e
estrutura relações.
Não me recordo quem realizou este registro, mas acho que é muito representativo do
que são os momentos dos mutirões de livros. Na foto, estou de costas, e Davi Nunes está de
camisa preta, olhando para algum livro que Hugo Gabriel acabou de achar;enquanto isso,
Juliana parece falar algo para Eliaquim, que está olhando para as mãos de Juliana, e Marcos
Sansara segura alguns livros nas mãos, observando outros. Naquele momento, estava
acontecendo a organização do acervo dos livros, separando-se os que viriam a compor o
acervo da Biblioteca.
Antes de realizar a triagem de livros, as pessoas presentes tiveram uma reunião para
pensar em como seria organizado o acervo, o que foi um momento de discussão muito
69
interessante. O debate levantado foi que a Biblioteca, pelo fato de haver representações de
personagens negros em seu nome, tem como responsabilidade trazer à tona a literatura que
por muito tempo foi negada.
Quando Diego Lima diz que “é uma questão de falar dos nossos”, penso eu, que os
“nossos” é resultado de uma projeção de identidade coletiva. Para Muniz Sodré, em seu livro
“O pensar nagô”, no
“(...) interior das modernas sociedades históricas, um grupo humano, social e
economicamente subalterno, mas simbolicamente potente, pode investir-se de
poder particular frente ao poder geral do Estado. Isto é o que o teórico da
comunicação Niklas Luhmann designou como autoreferência e autopoeisis dos
sistemas sociais, e os sociólogos do ativismo minoritário tem chamado de
empoderamento. Um de seus fatores é o fortalecimento da identidade coletiva”
(SODRÉ, 2018, p.133)
Essa identidade coletiva é evocada por figuras místicas como Dandara, Zeferina,
Beiru, Zumbi e outros personagens emblemáticos que marcaram história na luta contra a
escravidão, ressignificando essas imagens com esperança, vida e educação e arte na
construção de uma autodeterminação do povo negro.
A foto foi feita durante a triagens dos livros. Esse tipo de mutirão possui um valor de
representação social que ocupa a vida dos frequentadores, unidos para meter mão e fazer algo
pra comunidade. Nos registros, é possível observar diferentes formas de apropriação do
mesmo espaço. A mesma sala em que a mesa estava cheia de livros é, em outros momentos,
local do almoço e, logo depois, se transforma na mesa da reunião.
Aqui, tem-se, da esquerda para a direita, Jacob, Débora, Rauan, Sofia, Michele, Hugo
Gabriel e Guilherme se reunindo depois de almoçar. A fotografia foi realizada por mim, que
busquei registrar o momento em que estávamos nos reunindo para construir parte da memória
do espaço.
71
Este registro foi extraído do primeiro portfólio da Biblioteca. Na foto, está Helen, com
camisa preta; Hugo Gabriel, com camisa azul; Paula Regina e Ítala, de roupas brancas; Diego
com o seu sorriso característico; Guilherme, segurando uma risada; Pedro Maia, segurando o
mesmo papel que todos estão na mão; e eu, abaixado no meio de camisa preta que diz Ajude a
Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru.
O interessante é notar a escolha do local: uma biblioteca pública. Acontece que a
maioria das reuniões ocorria no espaço, mas, dadas as circunstâncias de trabalho, estudo e
logística de mobilidade na cidade, as reuniões começaram a acontecer em outros locais, sendo
a Biblioteca dos Barris um dos pontos preferidos pelo fato de estar localizada perto da Estação
da Lapa, onde há transporte para todas as partes de Salvador.
A campanha girou em torno de captar todo tipo de doação voltada à organização e
estrutura do espaço, desde livros e roupas a bisnagas, tintas e cimento. As triagens dos livros
eram realizadas no mutirão, já as roupas eram separadas e colocadas em um bazar a preço
popular, o qual teve sua primeira edição na Biblioteca e, depois, se expandiu para outros
73
lugares da cidade.
O primeiro desses outros foi na UFBA, no campus da Ondina. As roupas que haviam
sido arrecadadas foram vendidas no valor de R$ 1 a R$10. Na figura 26, vejo Guilherme, à
esquerda, Helen, no meio, e uma pessoa que não me recordo quem seja,à direita. Fiz o
registro para divulgar nas redes sociais. Naquele dia, foram vendidos de roupas um valor de
aproximadamente R$80,00 reais.
Figura 27 - Bazar na UFBA em 2016
O I Bazar na UFBA foi interessante, pois nele foram firmadas algumas parcerias,
74
apresentações e articulações, mas, em termos de arrecadação, apenas foi suficiente para pagar
o transporte e a alimentação das pessoas que estavam na organização. A realização do bazar
em outros espaços se deu por conta das parcerias que surgem durante a realização. Assim, o II
19
Bazar aconteceu na sede do grupo Juventude Ativista de Cajazeiras (JACA) em Cajazeiras.
No mesmo ano, aconteceu o III Bazar a preço popular da BZB, dessa vez na UNEB.
Foi um dos eventos mais marcantes para a organização da Biblioteca, pois nele foram
realizadas parcerias fundamentais para o coletivo.
O Coletivo CalouArt organizou o Sarau para receber os alunos novos da instituição,
logo após a debates e palestras. A inscrição para participar da atividade foi 01 (um) kg de
alimento não perecível, que foi doado à Biblioteca para garantir as refeições durante os
mutirões. O convite foi para que a Biblioteca levasse algumas crianças e jovens para conhecer
o espaço da Universidade.
O coletivo que organizava a Biblioteca na época planejou uma oficina de poesia na
semana anterior à intervenção na UNEB para instrumentalizar as crianças e jovens que iriam
participar desse momento.
Na oficina, elas escreveram sobre o sentimento que tinham quando estavam no
espaço. Tuane, que na época tinha 14, escreveu que adora estar na Biblioteca porque é como
sua segunda família. Suas palavras provocaram uma sensação em mim de que não estava
perdendo tempo e de que as crianças realmente gostavam do que estávamos fazendo ali.
Figura 29 - Oficina de poesia com as crianças e jovens do Arenoso
Na foto, está todo o coletivo da Biblioteca no dia e algumas crianças que haviam
19
No capítulo III me detenho a falar sobre as parcerias que envolvem a rede da Biblioteca Comunitária Zeferina
Beiru.
75
participado da oficina. Depois disso, foi realizada uma dinâmica para cada um compartilhar o
que havia escrito: as crianças escreveram sobre o que sentiam quando estavam no espaço da
Biblioteca, sendo comum em todas as falas o quanto elas se sentiam felizes em estarem ali.
Aquele momento ficou em evidência para mim, pois, mesmo que a Biblioteca seja
uma ocupação sem financiamento e não tenha um espaço todo limpinho, com azulejos e ar
condicionado, as crianças e jovens se sentiam muito bem em estarem ali. Naquele dia, a
professora Débora, que dava aulas de inglês, realizou uma dinâmica educativa voltada ao
processo de criação e escrita dos jovens e compôs os versos de samba junto com as crianças:
Na figura 29, estamos indo para a UNEB em dois carros. Fui junto com Marcos
Sansara e sua irmã, à esquerda, Tuane, ao fundo e do lado de Wendel, Lucas, João, Robert e
Antony e eu dirigindo. Marcos pediu para fazer a selfie e tirou do meu celular. Fomos em 8
dentro do carro, quebrando algumas leis de trânsito, mas dirigindo de forma cautelosa. Foi
pedida autorização aos responsáveis das crianças por meio de assinatura em um documento
redigido na época.
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Na foto, tem-se Tauane; Duda; Debóra, com o microfone na mão; Tuane, com os
versos que escreveu em suas mãos; Jorginho; Marcos Sansara, de braços cruzados; e Pedro,
que acabou sendo cortado pelo ângulo. No evento, foram arrecadados alimentos suficientes
para suprir 6 meses de mutirões. Destaco ainda que foi nesse mutirão que Michele Santos
conheceu a Biblioteca.
Michele é do interior da Bahia e chegou em Salvador em 2012, especificamente no
bairro do Cabula. Michele me contou que foi durante o bazar que ela se interessou em saber
mais da Biblioteca. Nas palavras de Michele, o motivo para se aproximar da organização foi
para preencher uma lacuna que o Estado deixou no que tange aos direitos da população negra
Os sistemas do Estado contribuem pra isso, seja na falta de acesso a saúde, a falta de
saneamento, falta de educação, falta de cultura, a falta de responsabilidade, respeito
e compromisso com nosso povo preto que faz esse mundo girar/ lucrar, e não recebe
sua devida parte. Por isso acredito na necessidade de melhorar as atividades que ali
são efetuadas. Construir a brinquedoteca, intensificar, ampliar, sensibilizar a
comunidade para a noção de pertencimento do Quilombo do Cabula, o
reconhecimento quanto povo quilombola nos traz o outro lado da história, que
somos descendentes de reis e rainhas que foram escravizados e que se tornaram
guerreiros/as que lutaram por nossa liberdade. Que temos que continuar na
resistência, na luta, e acima de tudo temos que buscar e cultivar nosso autoamor.”
(MICHELE, 2020)
com sua população. Assim, como eles falharam historicamente em garantir os direitos, ela
acredita que a Biblioteca tem essa responsabilidade de garantir as ausências do Estado em pró
do povo negro.
Segundo a pesquisadora Elisa Machado (2018), o principal motivo para as pessoas
criarem Bibliotecas Comunitárias é a dificuldade do acesso ao livro e à leitura, por isso, a
ausência dos equipamentos públicos são gatilhos para o surgimento das Bibliotecas
Comunitárias. Estas, por sua vez, se estabelecem em circunstâncias especificas para cada
comunidade.
Depois da participação do sarau no evento da CalouART, a Biblioteca passou a ser
mais conhecida dentro da UNEB, e, a partir de então, alguns grupos de pesquisa e coletivos da
Universidade Estadual da Bahia passaram a contatar e buscar mais informações sobre ela. Um
grupo em específico, coordenado pelo professor Anderson Oliveira, nos apresentou um
projeto intitulado “Ações agrosambientais”. O projeto foi voltado para a promoção da
alimentação saudável em espaços comunitários na cidade de Salvador, tendo como objetivo
fomentar a iniciativa de cinco hortas comunitárias nas periferias da cidade – uma delas na
Biblioteca.
Particularmente, a Biblioteca não chegou a se relacionar e a se envolver diretamente
com os outros quatro espaços em outras periferias, mas recebeu algumas ferramentas de
trabalho como pá, enxada, tesoura para podar, entre outros materiais. Também pôde contar
com a presença de profissionais de permacultura que contribuíram diretamente na construção
da horta comunitária, como Tássio, que atuou na parte na prática de construção, manutenção e
produção das alheiras.
Nas conversas e entrevistas que realizei no ano de 2020, foi de grande surpresa que
senti de fato o tempo da minha presença contínua no espaço. Além disso, as crianças que
frequentaram durante anos já não são mais crianças, mas jovens. Em se tratando de pensar um
perfil de crianças que frequentam a Biblioteca, a sua maioria eram crianças negras do próprio
território. Umas maiores, outras menores, umas mais tímidas, outras nem tanto. A maioria
chegava com um sorriso no rosto e um olhar que te abraça, outras chegavam mais devagar e
com um olhar tímido.
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Esse flyer foi feito para divulgar as atividades do ano de 2016, não lembro quem o fez,
mas eu o encontrei no perfil da Biblioteca na rede social Facebook, compartilhado anualmente
na página em meio às lembranças geradas de forma automática pelo site. Então, neste
momento vou falar um pouco sobre como aconteceram as articulações que deram origem a
cada atividade.
As primeiras aulas de Capoeira começaram ainda em 2015, quando Diego Lima estava
fazendo as articulações com a comunidade para realizar a caminhada que deu origem à
abertura da Biblioteca, em 27 de novembro. Os responsáveis pelas aulas de Capoeira são o
casal Franciele e Eddy Charles, ambos moradores do Arenoso. As aulas de capoeira
acontecem às 17h com a professora Fran e, com o professor Edy,ocorrem segundas e quartas
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às 17h para crianças e às 19h para adultos. Isso ocorreu de 2015 a 2020, com algumas
interrupções devido à própria estrutura do espaço.
Entrei em contato com Franciele e Eddy, mas só obtive resposta dele, que pontuou que
a Biblioteca é uma ocupação sem fins lucrativos, dentro de um espaço que estava abandonado
e sucateado. Sobre isso, o professor comenta que
O espaço é bom, tem seus prós e seus contra, para mim era bom, espaço grande dava
pra desenvolver bem as atividades, mas como um projeto para crianças não é muito
legal, pelo menos lá em cima, mas lá embaixo da pra desempenhar um trabalho
massa, mas em cima vem uma galera lá, usuária, usar às vezes quando a gente tá
treinando, e eu tenho uma filha pequena, e isso fica chato né? Mas com os adultos a
gente continuou, depois parou, voltou novamente. Fora aos cocô de pombo, as mães
estavam relutando de mandar os filhos para lá. Por isso a gente fechou, mas abriu de
novo lá, e já tem 1 infantil treinando quarta feira com Fran. Essa semana mesmo já
levei duas mães essa semana comigo, elas nem sabiam que tinham essa salinha, aí
quando voltar elas vão liberar os filhos para ir (EDDY, 2020).
A fala de Eddy enfatiza uma questão que até agora não pareceu muito relevante, a da
salubridade do espaço. No entanto, os educadores responsáveis pelas atividades durante a
semana ressaltam a deficiência estrutural do espaço, que ainda é muita. Esse é um ponto que
vem sendo pautado de forma contínua nos encontros da organização.
Durante o ano de 2017, Daniel Braz, com quatorze anos na época, me perguntou por
que a Biblioteca não tinha aulas de capoeira. Eu respondi que já tinha a da professora Fran e
do professor Eddy, mas ele insistiu que também fossem dadas aulas de Capoeira Angola.
Questionou-me “- Oh véi, é Capoeira de Angola! Você num faz?”. Em palavras simples, me
fez refletir que “Sim! Capoeira angola é o que sou”.Sou pesquisador por formação
profissional, educador por acreditar na educação, mas a minha vida é a Angola que me tem
nas mãos. Até então, nunca havia dado aulas de capoeira angola fora da academia do meu
mestre, Mestre Zé do Lenço.
A questão é que não é apenas “dar aulas de capoeira”. Nesse universo, existe uma
tradição com regras de respeito que são necessárias seguir para iniciar um trabalho. Antes de
aceitar o pedido de Daniel, fui pedir permissão ao Mestre Zé do Lenço, meu mestre. Com a
sua permissão, passei a dar aulas para crianças, jovens e adultos da Biblioteca aos sábados
pela manhã. Sua autorização se deu porque ele havia me dado, naquele mesmo ano, o título de
Treinel, que significa uma autorização para pessoas habilitadas passar treino do mestre.
Interessante é que mesmo havendo interrupções, principalmente por conta do processo
de gravidez e primeiros meses do meu filho, com os quais estive muito envolvido, até hoje os
treinos continuam e só estamos parados devido às consequências da COVID-19. Já
conseguimos organizar 02 (duas) rodas de Capoeiras e 03 (três) Oficinas de Capoeira Angola,
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Este registro foi feito no meu celular, não sei quem fez, mas acredito que essa foto
traduz o momento de comunhão entre diferentes gerações. O Mestre Zé do Lenço, com o seu
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berimbau na mão e, no corpo, sua camisa azul, explica algumas coisas sobre a Capoeira
Angola para crianças e jovens que se reúnem ao redor.
A oficina aconteceu dentro da grade de atividades do Bazar da Deusa, um evento de
empreendedorismo organizado por Gisele Soares, que foi Deusa do Ébano do Ilê Ayê em
2016. Nele acontecem oficinas educacionais, desfile de moda, divulgação do trabalho de
empreendedores negros e negras, apresentação de artistas locais e batalha de rap. Essa foi a III
edição do Bazar da Deusa, que contou com a participação de artistas de todo lugar de
Salvador
Professor Rob não exige nenhum pagamento, apenas que seus alunos frequentem a
escola e passem de ano. Rob tinha outra exigência com seus alunos: eles tinham que, pelo
menos uma veza cada 15 dias ou um mês, participar dos mutirões que ocorrem na Biblioteca.
82
A presença dos alunos de boxe sempre contribuía muito para o mutirão, principalmente os
mutirões em que íamos a outras localidades do bairro para buscar terra preta.
Pela falta de financiamento, as turmas de boxe realizavam uma vaquinha para
arrecadar dinheiro para comprar luvas, saco de areia, e protetores faciais. Em 2017, o
boxeador e campeão nacional conhecido como Caperro, ex-morador do local, contribuiu com
alguns materiais que ajudaram bastante no desenvolvimento das aulas.
As aulas aconteciam às 19h para crianças e às 20h para os mais velhos. Antes de a
aula começar, Rob ia passando de casa em casa chamando os alunos, enquanto outros já
estavam à sua espera na praça. A corda para pendurar os sacos de treino já estava no local, ela
fica presa na estrutura de ferro do teto, e os sacos, no andar de baixo. Quando chegam ao
local, os alunos se dividem para organizar o espaço. Enquanto uns limpam o espaço em cima,
outros pegam todos os equipamentos na parte interna do térreo e levam-nos para o primeiro
andar, na quadra.
As aulas são dinâmicas, o treino gira em torno de melhorar os reflexos e fortalecer o
corpo, principalmente nas juntas e a mente. No entanto, costumam ser interrompidas em
períodos de chuva porque, na parte de cima do primeiro andar, só tem a metade do telhado,
molhando muito o local e tornando bem difícil a realização de atividades.
Esse espaço no primeiro andar carece uma estrutura que venha a evitar alagamento
na parte de dentro. Outra questão que é importante pontuar é o fato de por ter sido
abandonado por muitos anos e estar com seu telhado sucateado, o primeiro andar ter sofrido
uma invasão e proliferação de pombos.
A maior das interrupções das aulas de boxe, contudo, se deu do final de 2018 até o
início de 2020, porque o professor Rob mudou de emprego e os seus horários de trabalho
entraram em choque com as aulas. Porém, um tempo depois, conseguiu mudar seu horário de
trabalho, e os treinos voltaram a acontecer, sendo também interrompidos por conta da
pandemia.
No início, foram Juliana, Pedro e eu que começamos a fazer poesia para custear uma
viagem para a Casa do Boneco. Primeiramente começamos apenas nos ônibus que circulavam
pela região do centro histórico e entre a orla dos bairros da Ondina e a Pituba, aproveitando
alguns intervalos de aula. Na época, nós 03(três) fazíamos a graduação na UFBA.
Encontrávamo-nos entre os intervalos das aulas ou no final dos turnos.
Foi um momento muito interessante de experiência e aprendizado. Em todos os ônibus
que entrávamos, deixávamos um contato e pegávamos outros. Dessa dinâmica de intervenção,
nasceram muitas parcerias, principalmente porque foi um ano bastante especial no que tange à
movimentação cultural relacionada à poesia.
Quando começamos a direcionar a poesia para as áreas mais populares, principalmente
na região do Cabula, o impacto foi maior. Nesse território, as pessoas faziam intervenções,
perguntavam quando poderiam levar os filhos, como poderiam entrar em contato e cumpriam
as promessas levando suas crianças aos finais de semana. A fluidez era maior quando
estávamos em um ônibus que fazia Arenoso - Barroquinha, pois sempre cruzávamos com
conhecidos.
De 2016 a 2018, foram anos em que muitas pessoas chegaram à Biblioteca e diziam
que conheceram o espaço nas intervenções em coletivos. Michele Santos e Lucas Momo, que
eram companheiros na época, também começaram a realizar intervenções nos ônibus como
educadores do espaço.
Nos palcos e nos mutirões da Biblioteca, ouvíamos a poesia de Marcos Sansara,
bisneto de Cara de Vaca, que sempre fez questão de compartilhar suas escritas e recitar
poesias nos mutirões.
As atividades poéticas trouxeram muitas parcerias e colaboradores ao espaço, como a
Juventude Ativista de Cajazeiras, Resistência Poética, Valdeck Almeida de Jesus, Poeta com
P de Preto, Dark Mc, Visionárias, Contenção 33 e Tipo A. São artistas referênciasna
culturahip hop soteropolitana, que se destacam pela sua poesia ritmada. Cabe mencionar que a
poesia é uma ferramenta muito utilizada pelo ativismo negro e está atrelada a uma série de
movimentos em outros locais do mundo. Por exemplo, os grupos Panteras Negras, nos
Estados Unidos, surgem em 1966, inicialmente, como um grupo de poesia que, devido a
constantes ameaças e agressões, decidiram se armar para lidar com os racistas.
Em Salvador as pessoas também se organizam por meio da poesia, música e outras
manifestações artísticas, mas aqui não é permitido o uso de armas de fogo para cidadãos
comuns, principalmente se boa parte deles está com passagem policial. Por isso, a poesia
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ainda é a arma que muitos jovens da periferia têm para denunciar o racismo estrutural, falar de
suas vidas e propor soluções.
Quero dizer, com isso, que só depois de pensar sobre estas circunstâncias e
informações que foram chegando por intermédio das vivências, percebi que a as expressões
culturais se manifestam pela oralidade.
Entre 2016 e 2018, a Biblioteca teve um cotidiano muito intenso, com atividades todos
os dias da semana. Segunda, quarta e sexta aconteciam as aulas de capoeira e, nos dias de
terça e quinta, aulas de boxe com horários para crianças e adultos. O movimento dentro da
Biblioteca com o passar dos anos veio diminuindo um pouco, e percebo que a redução das
atividades está associada à dificuldade financeira das pessoas envolvidas. Dedicar-se à uma
construção comunitária exige paciência e sacrifício, e nem todas as pessoas podem sacrificar
aspectos da sua vida, então elas acabam se afastando. No entanto, um dos fatores que mais
impulsionam as atividades da Biblioteca é a confluência de intenções que existe na malha
social que a BZB está envolvida (INGOLD, 2015).
A Biblioteca ainda não tem seus livros separados e organizados como normalmente
encontramos nas demais bibliotecas, uma vez ao ano, os membros do coletivo se organizam
para reorganizar o acervo, o que por sua vez não dá conta do fluxo de pessoas que frequentam
o espaço. Mesmo assim, há uma organização onde encontramos livros separados por temas,
áreas do saber, cartilhas relativas a direitos políticos e sociais.
O próximo passo é organizar os livros catalogando-os através de um registro de acordo
as normas da biblioteconomia. Já foram feitos mutirões para começar a catalogação, mas por
não haver um notebook ou computador próprio para Biblioteca, o bibliotecário teve
dificuldades com a tarefa.
Também há outra questão importante de dizer: a Biblioteca nunca teve um plano de
ações ou um planejamento anual. Acontece de se organizar atividades elaboradas em um
intervalo de 1 a 3 meses, mas nunca existiu necessariamente uma estruturação de “plano de
metas”.
Há reuniões e planejamento de oficinas, estratégias de mobilização, articulação,
parcerias, atividades, eventos e aulas, mas não há um planejamento anual. O coletivo vem
discutindo e pensando há muitos anos a necessidade de um planejamento de longo prazo, mas,
por uma série de circunstâncias, isso ainda não foi posto em prática.
Quero salientar que o espaço não possui um financiamento, assim, quando algum
material não é doado (como portas e janelas), algum membro do coletivo que faz a compra. A
estrutura física da Biblioteca em 2020 é bem diferente do que foi há uns anos atrás. As salas
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que não tinham portas, hoje têm. A cozinha em que não havia geladeira e fogão, hoje os
possui. Até início de 2019, o que era uma sala fechada, escura, que guardava uma série de
brinquedos, instrumentos musicais e estantes, hoje é uma sala destinada às crianças, ou seja,
uma brinquedoteca hoje já existe.
Em um espaço onde havia ratos e baratas até um tempo atrás, hoje já é muito difícil encontrar
um rato.
A preocupação com a limpeza do espaço veio a se tornar central, isto é, a ser muito
pensada e pautada, em 2019. Principalmente no espaço interno, com a chegada do COVID-19
em 2020, essa limpeza se tornou ainda mais fundamental.
O coletivo que gere a Biblioteca, até meados de 2020, era composto de
aproximadamente 4 pessoas ativas, que coordenavam e tocavam as atividades lá realizadas.
Diego, Quelmonis, Hugo e eu. Hoje, posso dizer que essas 4 pessoas são responsáveis pelo
espaço.
Não foi sempre assim, o coletivo já chegou a ter 15 pessoas ativas na sua organização,
no entanto, a vida de pessoas desempregadas com muitas responsabilidades não dá margem
para se estar onde se quer. Digo isso porque me afastei do espaço quando estava sem renda e
entendo perfeitamente outras pessoas que também se distanciaram.
A Biblioteca sempre teve muitas mulheres compondo o quadro de organização. Helen,
Paulinha, Sofia, Michele, Maíra e Apoena são algumas pessoas que cito em nome por conta
da importância delas. Entre 2018 e 2019 o espaço teve o Mutirão de Saúde das Guerreiras e
Rainhas Zeferinas. Este foi um encontro organizado pelas mulheres do coletivo, pautando o
autocuidado das mulheres para as mulheres. Durante os encontros, participavam meninas,
adolescentes e mulheres mais velhas da comunidade, se reunindo para falar sobre estratégia s
de cuidado, saúde íntima e mental. O último mutirão das mulheres foi realizado em maio de
2019.
Em junho do mesmo ano, muitas pessoas ligadas ao coletivo se desvincularam da
organização por divergências políticas. No caminho da construção de um trabalho coletivo
político, divergências sempre irão existir. Tais divergências sempre ocorreram dentro do
coletivo, mas geralmente eram resolvidas de forma prática, e isto era uma característica bem
marcante na Biblioteca.
Algumas pessoas em 2019 se afastaram do coletivo por não acreditarem mais em
algumas parcerias feitas pela Biblioteca. As pessoas que se afastaram defendiam que a
Biblioteca não tinha que fazer parcerias com programas associados ao Governo do Estado,
então decidiram se desligar. As que permaneceram, por outro lado, acreditam que algumas
86
Tabela 1- Quadro de atividades semanais correspondentes aos períodos dos anos de 2015 a 2020
Mesmo que as bibliotecas comunitárias sejam uma prática social comum no Brasil,
toda experiência surge de circunstâncias especificas. Uma das particularidades da Biblioteca
reside na sua relação de rede com outros movimentos e iniciativas que acontecem em
Salvador e em outras cidades da Bahia, em outras palavras, para além de oferecer uma série
de atividades de graça à comunidade, ela está envolvida com outras iniciativas e movimentos
sociais. Para isso, apresento alguns aspectos da malha social em que a Biblioteca Comunitária
Zeferina Beiru está inserida e o seu movimento de confluência (BISPO, 2015), (INGOLD,
2015).
Para Leonardo Azevedo (2020) a ideia de redes sociais se constitui dentro de uma
dicussão clássica que remonta a Radcliffe Brown que popularizou o conceito como uma
aplicação de forma metafórica. Já para Mitchell (1969), o conceito de redes sociais pode ser
aplicado de forma analítica para compreender relações entre “atores” e “grupos”. Ainda para
o autor, foi na Escola de Manchester e no Rhodes Livingstone Institute, que o termo foi
aplicado aos estudos relativos às chamadas “sociedades complexas20”.
A ideia de rede social foi desenvolvida pela Antropologia Social para analisar e
descrever os processos sociais que envolvem conexões entre diferentes grupos e categorias.
As conexões que surgem pela afiliação de um grupo social com outro grupo diferente. Por
isso, sob análise da ação as relações de rede revelam os limites das estruturas internas dos
grupos. Azevedo (2020) aponta que dentro da antropologia o conceito de rede aparece como
indispensável.
Para Both (1976) “em uma rede, podemos obter uma configuração geral da sua
estrutura a partir de um pequeno número de informantes, mas não podemos descobrir o
conteúdo exato das relações e das atividades de todos os membros” (BOTH, 1976, p.67).
Azevedo (2020) aponta que o uso do conceito de rede foi importante para oxigenar a
antropologia britânica, na segunda metade do século XX. No entanto, o autor chama atenção
que não houver qualquer intenção em questionar as dicotomias “sujeito-objeto” ou “natureza-
cultura”. No último período, o autor que ganha destaque é o antropólogo Tim Ingold (2015).
Para Ingold (2000), o mundo em que habitamos é composto por coisas e não objetos.
O autor busca compreender os processos da dinâmica da vida concebendo o significado da
matéria enquanto um fluxo dinâmico com diferentes significados e formas. Estes caminhos ou
20
Este conceito está associado a um posicionamento etnocêntrico da antropologia, que distinguia as
sociedades não ocidentais como “simples” e as sociedades modernas como “complexas”.
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trajetórias implicam uma prática improvisada que se desenrola em linhas ao longo das quais
são as coisas continuamente formando um emaranhado de coisas.
Ingold (2000) aponta que o processo de conhecimento acontece por meio do
movimento, pois, ao se movimentar, as mudanças são percebidas. Por isso, o autor tensiona a
divisão entre “ator e rede”, ou “natureza e cultura”. Para não cair em binarismos, o autor
propõe o conceito “ecologia da vida”. Significa dizer que o indivíduo e o ambiente é um
organismo indivisível (AZEVEDO, 2020).
Ingold (2015) defende que a produção da vida se dá por meio das relações e
deslocamentos através da formação de malhas. As relações não são apenas uma rede de
pontos conectados, mas uma malha de linhas entrelaçadas, que se constituí sob três diferentes
perspectivas: metodológico, analítico e na sua negação. Desta forma, emprego a relação de
malha social enquanto perspectiva analítica para entender a relação da BZB com outros
movimentos sociais em Salvador. Entendendo que a movimentação da reprodução da vida
social, entendo a palavra confluência como uma metáfora sobre o movimento das correntes
das águas que se encontram e seguem juntas em uma direção.
Uma vez, logo quando comecei a frequentar o espaço, ouvi Diego dizer que não faz
nada que eles não fazem nada sozinhos, mas sim por conta de uma rede de apoio que existe
por trás. Na época não refleti muito a respeito, mas à medida em que fui vivenciando, percebi
que a Biblioteca está envolvida com outros movimentos sociais e iniciativas comunitárias.
Alguns destes momentos tive a oportunidade de estar presente e participar do processo de
articulação como a articulação com a CBI e o JACA e outras que descobri como se deu por
meio de entrevistas as quais irei trazer trechos na íntegra.
Programa Corra
pro Abraço
Licença pra
Chegar
Posto de Saúde
Biblioteca Comunitária da Família
Zeferina Beiru
Associação de Capoeira
Angola Relíquia de
Espinho Remoso
Baque Mulher
Nesse sentido, trago o infográfico para ilustrar uma malha de movimentos sociais em
que a Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru se insere. Nas próximas páginas, trago como se
deram algumas parcerias e atividades que surgiram dessas articulações, partindo dos relatos e
entrevistas que fiz com educadores e frequentadores que já passaram pela BZB.
A Biblioteca é um ponto dentro do miolo geográfico de Salvador que agrega um valor
simbólico atrativo a parcerias que são constituídas por meio de atividades como oficinas,
encontros e vivência. Suas atividades estão relacionadas a outros movimentos que acontecem
na cidade. Entendo a cidade, pois, como um lugar multiverso 21 que estão interligados.
Esses diferentes “universos” estão interligados por intenções que se encontram e
permanecem juntos para pensar novas possibilidades de existência. Nesse sentido, quero
elucidar o universo que existe por trás de uma ideia de “nós por nós”, que confluem em um
mesmo plano de existência, de reinvindicações por direito à cidade em diferentes aspectos, da
arte à moradia ou alimentação.
21 Multiverso é um termo usado para descrever o conjunto hipotético de universos possíveis, incluindo o
universo em que vivemos.
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Uma das primeiras articulações foi com o JACA, a parceria se deu devido por uma
amizade prévia que havia entre os membros dos coletivos, e que se seguiu através de parcerias
por meio da arte, cultura e tecnologia como ferramentas. Também, é importante dizer que já
ouvi Diego Lima e Hugo Gabriel falar da importância do JACA na influência do surgimento
da BZB.
O JACA é uma associação de desenvolvimento étnico e cultural de Cajazeiras, que
surgiu em 2004 com o objetivo de articular a juventude do bairro e região adjacente em torno
de assuntos como direitos humanos, geração de emprego e renda e mobilização comunitária.
Em 2009, ganhou um edital de apoio a empreendimentos solidários, e o grupo se estruturou
em Cajazeiras V, estabelecendo um vínculo com a UNEB por meio do Projeto Incubador de
Empreendimentos Solidários – Incuba. Com isso, passou a atuar na área da reciclagem de
resíduos tecnológicos e com ações para promover a metarreciclagem como alternativa para o
descarte e reaproveitamento de resíduos tecnológicos, bem como na produção de eventos
artísticos, como caravanas culturais, saraus de poesia e festival de música jazz no bairro.
Participou do primeiro sarau de poesia na Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru, e, com a
Biblioteca, já realizou um bazar a preço popular na sede do JACA em Cajazeiras.
Inclusive, a parceria entre a BZB e o JACA é projetada por discursos imaginados dos
interlocutores, que recriam e ressignificam suas relações de território, tendo a ancestralidade
como referência. Ouvi por alguns discursos que o Quilombo do Urubu se localizava
geograficamente entre Cajazeiras e o Subúrbio, e tinha uma relação de troca com outros
quilombos, inclusive o do Cabula. Portanto, não é surpresa a BZB e o JACA hoje
desempenharem uma relação de confluência.
Trago esse relato para refletir sobre a projeção de uma comunidade negra
(BENEDICT, 1993) que tem o território como ponto de partida para pensar as relações
sociais. Não quero negar ou acreditar cegamente que seja algo parecido com “destino”, mas
longe de ser algo sobrenatural, entendo, de fato, que esses encontros e desencontros que
acontecem são resultado da confluência.
Outra conexão com outro movimento que compõe a malha social da Biblioteca é com
o coletivo de rua A Pombagem. Em entrevista com Fabrício Brito, ele me contou do
surgimento e a trajetória do grupo, nas suas palavras
O Grupo A Pombagem surgiu em 2009 na periferia de Salvador. Mais
especificamente nos bairros de São Caetano e Fazenda Grande do Retiro. 2
integrantes da Fazenda Grande do Retiro e um integrante de São Caetano, mas a
gente se encontrava todos os dias lá na quadra do São Caetano que é um lugar bem
marcante e uma referência e o espaço de Convivência de vários, artistas em todas as
linguagens uma galera boa do grafite do Rap, do rock androll. da poesia também.
92
Então a quadra de São Caetano é esse lugar que vai agregando a paz galera gente
boa que é do São Caetano mas também agrega uma galera que dá liberdade do
Retiro, São Marechal e tal, então centrão na periferia. Então a periferia nesse sentido
o centrão então a gente surge neste caldeirão saca surge no primeiro momento como
um grupo mais ligado a poesia mais uma poesia não apenas que é escrita no papel
que é colocada em fanzines de poesia para mangueira para venda na própria
mangueio na própria periferia no centro da cidade na orla de Salvador a gente
confeccionar vazio poéticos para vender, mas o foco, a tônica do nosso trabalho era
declamação, então era uma poesia não apenas que ocupava o espaço dos papéis,
enfim dos livreiros, era uma poesia que a gente queria dar corpo no tecido urbano
que a gente queria levar essa poesia no status que digamos assim de aparição
espetacular. O que a gente acabou fazendo desde 2009 acabou tendo muito mais a
ver do que teatro do que propriamente poesia a gente dizia que fazer no Teatro
Popular de rua pautando na poesia marginal, poesia de cunho social, poesia Popular,
por aí.. Então em 2009 a o grupo surge composto por três jovens dali da Periferia
que têm em comum que os três eram da Periferia, e o que é que tem mais em comum
é que os três eram pichadores e isso é o que vai nortear as ações do grupo ali adiante
e também vai já delinear, digamos assim, a ligação do grupo com a questão das
Artes Integradas, ou seja, a gente já nasceu meio poesia, mas meio teatro também e
éramos pichadores então sempre quando havia a oportunidade a gente inseria esse
elemento da pichação dentro dos espetáculos de poesia. No primeiro espetáculo da
gente é o fim das gargalhadas é um poema meu e de Patrick que é um outro
integrante do grupo, e o Patrick riscava PABO IGI, eu riscava garra TA e o outro
integrante terceiro riscava anta CNR3, pichadores de três gangues distintas se
juntam para fazer um grupo de arte um grupo de Arte Popular. Então o nosso Teatro
Popular é pautado na poesia, mas tem muito elemento do picho, é na verdade um
lugar de artes integradas, por isso que a gente não se coloca como Grupo de teatro e
nem de poesia, mas um grupo de arte popular que se apropria dos referenciais
estéticos do teatro de rua e a estética marginal. E aí a gente vai para lá e para cá e
vamos manejando as identidades, as estéticas e tocando o barco. Em 2013 o grupo A
Pombagem entra para o movimento de arte popular da Bahia que é um movimento
que aí já é uma associação com uma entidade que é um segmento do Teatro Popular
da Bahia que o espaço que agrega tantos grupos da capital como grupo de teatro do
interior e aí cara é massa porque a gente vai começar a se relacionar com a pá de
gente de fora da Bahia e também de dentro da Bahia do interior. Então a gente vai se
articular com gente do interior da Bahia e também com artistas de rua São Paulo Rio
Minas. (FABRÍCIO, 2020)
Essa apresentação que aparece na foto foi realizada por mim, tendo sido um registro
muito bonito que eu tive o prazer de realizar. Nela, estão o grupo A pombagem, pessoas do
coletivo da Biblioteca e crianças e jovens que frequentam as atividades da Biblioteca. Mesmo
que eu não estivesse presente e não fosse o autor da foto, diria sobre o sentimento de
felicidade e satisfação estampado no rosto das pessoas.
O coletivo A Pombagem também foi um dos coletivos que mais realizou atividades
dentro e fora do espaço da Biblioteca. Articulou parcerias em eventos externos com a
população de rua no centro histórico na região Baixa dos Sapateiros, também na Barra e na
biblioteca pública dos barris. De acordo com Fabrício Brito, existem muitos pontos de
confluenciam entre a BZB e A Pombagem, nas suas palavras
A gente de 2009 até 2013, antes de integrar o movimento de cultura popular da
Bahia, a gente rodou legal pelas periferias de Salvador, como um coletivo
comunitário da quebrada que lida com a arte-educação, não necessariamente
colorida como a arte de rua, mas estava ali pensando na sociedade através da arte. A
gente vem se articulando com esses coletivos por meio da parceria com esses
coletivos que a gente rodava a cidade e roda ainda a cidade criando espaços de
compartilhamento, desenvolvendo e criando estratégias de fortalecimento e apoio
mútuo a essa rede que não é constituída juridicamente, não é um movimento da
associação cultural, não é representativa, mas é uma rede no sentido que todo mundo
conhece os coletivos que trabalham com arte educação periférica, arte Marginal hip-
hop, rap e acabam se conhecendo não importando se é da liberdade de São Caetano
do Alto das Pombas, ou enfim. Neste movimento que cresceu a parceria forte, uma
parceria que só nos dá alegria com a biblioteca Comunitária Zeferina que veio desse
lugar de evocação da memória africana, esse lugar de fortalecimento do povo negro,
esse lugar de respiro, saca? Então eu acho que a Biblioteca Comunitária Zeferina
Beiru é isso que a gente acaba crescido muito quando estamos com o pessoal da
biblioteca Comunitária Zeferina Beiru, quando estamos na zona de atuação
94
O diálogo que tive com Fabrício Brito me conduziu aos momentos vividos durante a
realização dos espetáculos “Pedro Bala” e “Museu é a rua” na Biblioteca. Ambos foram
importantes para a manutenção do trabalho comunitário da Biblioteca, trazendo à comunidade
um contato com o teatro alinhado a uma perspectiva identitária. Para mim, as palavras de
Fabrício sintetizam aspectos importantes a serem apresentados aqui:
Então, esses equipamentos culturais que existem, como por exemplo, bibliotecas,
museus, e teatros não contemplam a nossa perspectiva enquanto povo negro. Não é à
toa que fizemos enquanto o grupo popular A Pombagem fez uma temporada
justamente para falar sobre o silêncio museu. Esse comportamento do Estado é na
verdade é um equipamento cujas tecnologias operam no sentido de manter o poder
branco vigente, saca? E opera no sentido de silenciar as narrativas do povo da
população negra, mas aí, eu creio também que para além da questão racial, a
Sexualidade, a etnia tudo isso que acaba sofrendo com a dimensão do poder que
explora economicamente que domina socialmente e oprime politicamente, saca? É
como penso e é como o grupo de Arte Popular A Pombagem pensa também, quer
dizer o silêncio no museu, o espetáculo que apresentamos na Biblioteca Zeferina
Beiru vai no sentido de dizer que: O museu que tem mais a ver com a gente é um
museu aberto, sem paredes. É um museu que é muito mais uma vocação da
oralidade, da memória ancestral do que a institucionalização de um espaço oficial,
que tem hora para entrar, e hora para sair, com regras e normas de não pegue na obra
e x, y, ou z, não faça isso, não faça aquilo, receba o conteúdo na exposição no museu
sem questionar nada. Os museus tem muita essa pegada de focar o que se pensa a
respeito sobre determinada memória narrativa de cima para baixo sem qualquer
possibilidade de diálogo com o visitante. Na perspectiva da arte popular em relação
ao museu já é diferente, ele é locução da horizontalidade, de abertura, de troca, de
conhecimento no sentido de prestigiar a narrativa enquanto espaço de
reconhecimento, e produtora de sujeitos e não como coisa, um simples objeto. E foi
nessa pegada que apresentamos o silêncio no museu na Biblioteca Zeferina, naquela
praça que tem em torno do espaço, e neste propriamente dito espaço, tínhamos
levado também o espetáculo Pedro Bala entre a pedra e a bala que também tem uma
relação com os dramas que se vive na periferia. Então os temas têm relação com a
população, são vários temas abordados, tem a questão das drogas, o proibicionismo,
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Existe uma amizade entre Fabrício Brito e Hugo Gabriel, o qual é um dos fundadores
da BZB. Uma amizade de anos atrás forjada por encontros em caminhadas pela cidade. Dessa
forma, os caminhos constituem uma malha social também se dá por confluências individuais
entre integrantes da BZB e da Pombagem.
Em outras situações, a confluência vem por outros laços sociais, como o coletivo de
rap e poesia Licença para Chegar, que teve como um dos fundadores o Saymon Contreiras,
nascido e criado do território do Cabula. Em uma conversa, ele me contou que o coletivo foi
criado:
Na época tava tendo rixa diária, de um cara que morava em uma área não podia ir
para outra. Então a gente queria fazer um evento, só que onde moro não posso ir
para lá onde a gente queria fazer o evento, então o amigo que mora lá não pode
passar para cá. Então, neste contexto que nasceu o licença pra chegar, pedindo
literalmente licença na quebrada, para os ouvintes, , artistas, homens, os cara da
quebrada, do movimento... Então velho, era a licença para chegar, a gente só quer
chegar pra propagar a cultura, a ideia, semear conhecimento e esse tipo de coisa, e aí
nasceu com esse intuído, e a galera abraçou, galera falava: licença para chegar isso,
licença pra chegar aquilo e por uma surpresa positiva, que surpreendeu a gente de lá
para cá, e a gente não parou mais graças a Deus! tamo crescendo estruturando as
coisas pedindo para licença para chegar na humildade. (SAYMON, 2020).
A parceria com a Biblioteca surgiu quando Diego, em diálogo com Saymon, propôs
que a Biblioteca poderia sediar um evento de rap. Esse evento aconteceu na BZB porque lá é
um espaço cultural, o que equivale a dizer que o espaço tem um valor especial nos códigos
sociais da comunidade. O evento reuniu artistas do bairro e de outros locais de Salvador,
sendo uma atividade que movimentou bastante a Biblioteca e atraiu crianças e jovens.
96
experiência com arte-educação que integrava o coletivo na época era Juliana. Ela já havia
feito algumas intervenções poéticas e integrava também o Coletivo de Arte Popular: A
Pombagem.
Foi nessa demanda de garantir nossa passagem e estadia na Casa do Boneco que Pedro
Maia, Juliana e eu nos juntamos e começamos a fazer poesia dentro do transporte público de
Salvador, nos ônibus. Foi uma experiência que amadureceu os educadores do espaço, pois a
gente entrava nos coletivos divulgando o trabalho, aumentando a rede de contato e, claro,
passando o chapéu para receber umas moedas em troca, onde fazíamos do o corredor do
ônibus nosso palco e o chapéu nossa bilheteria.
Passamos quase dois meses arrecadando dinheiro para viajar, porque também
tirávamos parte do dinheiro para despesas individuais, afinal estávamos todos desempregados.
Conseguimos dinheiro suficiente para pagarmos quatro passagens de ônibus de ida e volta
para Itacaré. Em junho de 2016, Hugo, Paulo, Pedro e eu embarcamos, enquanto Juliana não
pôde ir por conta de trabalho e demandas da Universidade.
A nossa estadia durou uma semana e foi bastante enriquecedora. Aprendemos mais
sobre a pedagoginga, agroecologia e história dos povos afro e indígena, por meio de uma
vivência no Quilombo do O’iti.
Sobre a pedagoginga,é importante enfatizar, que foi naquele momento que
conhecemos os fundamentos teóricos dessa prática pedagógica. A prática da pedoginga, em
alguma medida, já vinha sendo feita, sem embasamento teórico. A pedagoginga é um conceito
do pesquisador e educador Allan da Rosa (2013), sendo uma perspectiva pedagógica que trata
de pensar métodos de ensinar a povos cuja cultura é tradicionalmente passada à frente através
do fazer, em outras palavras, o aprendizado é passado à frente, pois, pelo movimento da ação
da realização do fazer. A Casa do boneco incorporou o conceito como método pedagógico, e
foi lá que o coletivo veio a incorporar nos discursos e práticas baseadas no princípio da
pedagoginga.
A sensação de retorno a Salvador foi de dever cumprido. Foi a partir dessa viagem que
começamos a cuidar da horta, das arvores frutíferas e das ervas medicinais que existiam no
espaço com mais conhecimentos. Meses depois, foi feita a mobilização para realização do
Canjerê em 2017, em prol do caruru na Casa do Boneco. O evento, que foi sediado na
Biblioteca, teve sua refeição colhida da horta comunitária, a primeira colheita de alimentos,
aliás.
98
O feijão que está sendo debulhado por Augusto, sobrinho de Diego, foi plantado logo
após o coletivo voltar da vivência na CBI. Coincidentemente o feijão foi colhido para
alimentar as pessoas no canjerê cultural em 2017, o evento voltado a arrecadar fundos para a
realização do Caruru dos ibejis em Itacaré. O feijão alimentou cerca de 50 pessoas neste dia.
Foi também no ano de 2017, que a proveito para falar de uma importante parceria da
BZB com a Comunicação Interativa – CIPÓ, uma Organização Não Governamental - ONG
que possui uma parceria com a Biblioteca desde 2017. A Cipó é responsável por gerir o
Programa Corra pro Abraço que ocorre dentro da Biblioteca, pois sua intenção é fortalecer
movimentos sociais e comunitários dos territórios em que atua. O programa se expandiu em
2020 e passou a ser de segunda à quinta, das 9h à 17h. Inclusive, estou com Redutor de danos
do Programa Corra pro Abraço, atuando na Biblioteca e na Associação Nova República, no
Nordeste de Amaralina. A escolha se deu por uma questão técnica e resolutiva durante a
entrevista, bem como pelo fato de eu já atuar dentro do bairro, pois isso facilita a
intermediação e comunicação com os jovens.
O início dessa parceria se deu quando a CIPÓ lançou um edital procurando um
psicólogo para compor a equipe que viria atuar no Beiru. Diego Lima se inscreveu e em
entrevista foi aceito. O programa tinha a perspectiva política de integrar principalmente a
comunidade para compor a equipe técnica. Para isso, buscam um espaço que possua trabalho
comunitário ativo no local, a fim de realizar as atividades do programa. Acaba sendo uma
99
domiciliares também estão sendo realizados. Essa parceria foi firmada pelos coordenadores da
CIPÓ, que apontaram, em conversa comigo, que sempre tiveram vontade de firmar uma
parceria com a Biblioteca, porque já acompanhavam suas atividades através das redes sociais.
Durante o processo de investigação e análise das entrevistas, percebi que os
movimentos associados à rede da BZB possuem um discurso em que ressaltam a importância
da parceria, da troca e da existência constituídas a partir de palavras muito ditas como:
reciprocidade, espontaneidade, política, identidade e ancestralidade.
4 .2 3.2 A vizinhança
“Já, esse espaço aí funcionava muita coisa, tinha costura com Dona Juju do que
representava clube das mães. Isso tem uns 10 anos. Acabou quando Germano que
era o presidente da associação foi embora depois que ficou doente, aí Dona Juju
morreu, aí pronto, acabou. Mas aí funcionava muita coisa boa, quando tinha festa
tinha quadrilha, tinha Boxe, Karatê, dança e cinema. Tudo funcionava ao mesmo
tempo em que era uma escola, quem era a diretora era minha filha, Alessandra, mas
aí ela não podia ficar sem ganhar nada, sem garantia e acabou indo trabalhar em
outro lugar” (DONA RITA, 2021)
Dona Rita possui uma relação íntima com o espaço. Ela integrou o clube das mães do
bairro, e sua filha Alessandra foi diretora da escola que funcionava ali. Rita me contou que
quando chegou no bairro não havia luz elétrica, nem água encanada, e muito menos transporte
público. Para ela, a vida no Arenoso melhorou bastante: hoje, com água, luz internet e
transporte público, vivem em um paraíso.
Perguntei à Dona Rita se ela conhecia a Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru, e ela,
em meus olhos, olhou e falou: “-Quem meu filho? Conheço não. Sei que aí é o Centro que
sempre funcionou, como te falei. Vejo vocês subindo e descendo, mas se eu disser que sei o
que acontece aí, tô mentindo.”
Ainda perguntei se ela sabia que ali havia uma Biblioteca Comunitária. Antes que
respondesse verbalmente, sua expressão facial evidenciava uma surpresa de sua parte. Foi
então, que expliquei mais uma vez que a entrevista era direcionada a um trabalho de pesquisa
que eu vinha desempenhando, no entanto, Dona Rita, com a sua sabedoria, me indicou a
conversar com sua filha Alessandra das Neves.
Alessandra é uma pessoa que eu já conhecia, mas não sabia que era filha de Dona Rita.
Alessandra, no momento, é agende de saúde do posto do Arenoso, mas foi responsável pela
escola que funcionava no espaço. Ao entrar em contato com ela, tive uma descoberta
essencial que me fez compreender algumas mobilizações dentro do espaço antes de ser uma
Biblioteca. A primeira pergunta que fiz para moradora foi “- Qual sua relação com o espaço
que hoje funciona a BZB?”
Eu conheci o espaço quando chamava-se Associação Desportiva Ferroviária – ADF
– Beneficente e Cultural, funcionava no mesmo espaço que hoje é a Biblioteca, mas
na parte de cima. Frequentei o espaço desde meus 13 anos. Naquele tempo já atuava
como presidente do grupo de jovens, porque existiam vários grupos de trabalho que
atuava na associação nesta época. Havia os mais velhos também que desenvolvia
parceria com outros órgãos públicos, mas com o tempo a associação perdeu sua
força porque a comunidade não abraçou, e infelizmente a falta de sócio fez com que
a gente perdesse a força (ALESSANDRA, 2021).
Alessandra é uma mulher negra de 40 anos, que sempre viveu no território. Sonha que
sua filha, que frequenta as atividades do Corra pro Abraço, deixe sementes, atuando a favor
de algum projeto comunitária como fez em sua juventude.
102
Mesmo com o fim da associação, me aliei a alguns políticos na época que me deram
força para montar uma escolinha beneficente com a mensalidade de R$ 5,00 a 7,00.
Era um preço que a gente fez para as mães que não podia pagar. Na época crianças
menores de 7 anos não podiam ir para escola pública, porque na época não tinha. Aí
criei a escolinha DF junto com algumas professoras que haviam feito a formação
magistério ou cientifico que na época era chamada de conhecimentos gerais. Eu era
formada em magistério, as professoras Tatiana, Márcia, Regina, Jandira, várias...
Teve os ajudantes que chamava auxiliar de classe, Audenete, Cátia e outras pessoas
que eram voluntárias. Pela manhã e tarde tínhamos tinha as aulas e a banca escolar.
Nossos alunos eram cotados para ir para as escolas públicas, porque a gente
alfabetizava com o método antigo mesmo com a cartilha do ABC, fazíamos uma
sabatina, mas claro não era de bater (risos), eram atividades lúdicas que estimulavam
o aprendizado, buscávamos incentivar de todas as formas.(ALESSANDRA, 2021)
Para a moradora, a Biblioteca é fruto de uma semente que foi plantada pelo corpo de
educadores da escola. A família de Diego participou diretamente da construção da escolinha,
por isso, ela acredita que Diego é um resultado positivo de toda educação que veio aplicando.
Assim, concluo que de fato existe uma relação da BZB com a vizinhança, mas que para
vizinhos mais antigos o espaço será sempre o Centro Cultural, ou, como Alessandra (2021)
me falou em meio à entrevista: - Admiro o trabalho da Biblitoeca, mas para mim sempre será
sempre a ADF, Associação Desportiva Ferroviária Beneficente do Arenoso(risos).” Dona
Rita mora no térreo e Alessandra no primeiro andar, mas é perceptível como a existência da
BZB repercute de diferentes dimensões para mãe e filha.
Ao continuar o trabalho de mapeamento da relação da vizinhança com a Biblioteca,
conversei também com seu Denisval Pires, de 69 anos, morador do Arenoso há 36.
Desnival mora em frente à principal entrada para Biblioteca, por isso, penso que seu
entendimento sobre o lugar é fundamental para entender a relação do espaço com o bairro.
Comecei perguntando sobre o que havia mudado na rua, e, para ele, tudo mudou. “As ruas
eram terra pura e lama, não existiam casas, luz e nem água, mas hoje com a rua asfaltada,
água encanada e luz”, seu Denisval afirma que não tem o que reclamar, porque“- Aqui não
tem violência, não tem confusão, só tenho a agradecer”. O interessante é que o relato de seu
Desnival aponta para uma dimensão oposta para o que a mídia e os veículos tradicionais
103
costumam falar do bairro do Arenoso 22. Dado o seu tempo no bairro, aproveitei e perguntei se
quando ele chegou ao bairro, ele frequentou o espaço que abriga a Biblioteca.
Cheguei a frequentar sim, já fui algumas vezes ao cinema que funcionava aí dentro,
ele funcionava e eu só precisava atravessar a rua pra assistir um filme eu e minha
esposa. Era limpinho, banheiro, tudo! Infelizmente mudou né? Olhe como está hoje
a situação do centro. (DENISVAL, 2021).
Ele não sabe o motivo que levou ao fim do teatro, segundo o morador, ele não conhece
ninguém, não fala com ninguém, entra e sai do bairro sem conversar com as pessoas. Sua fala
me fez pensar em parte do que ele havia me dito antes, não quis questiona-lo, de ele acha tudo
perfeito, mas porquê de não falar e não conhecer ninguém? Depois pensei comigo que ele
provavelmente não quis simplesmente me falar alguns detalhes ou se expressou mal.
Então perguntei se ele conhece a Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru. De forma
honesta, mudou seu tom e disse que, pra ser sincero, não conhece, nunca entrou. Ele sempre
vê o vai e vem de muitas crianças entrando e saindo. Então, perguntei o que ele achava.
Eu acho bom né? Trabalhar com as crianças, pegar livros e ler, eu acho muito bom!
Ajuda muito nossa comunidade, é ou num é? Então nossa comunidade no Arenoso
tem muito a ganhar com isso, mas não sei quem é Zeferina e Beiru não. Só sei que
era o nome do bairro lá em cima Beiru, mas nem sei. Só sei que é Zeferina e Beiru
por que tem escrito aí na frente, infelizmente não conheço o espaço lá dentro, mas
vejo as pessoas entrando e saindo com livros, pessoas de outros lugares também,
mas não incomodam ninguém, então acho maravilhoso (DENISVAL, 2021)
Como vizinho, ele conhece o movimento que existe em volta do espaço. Respondeu
rapidamente sobre a característica do público que costuma frequentar, mas ao mesmo tempo
em sua fala parece ter tido uma resistência para entrar e conhecer o local. Essa resistência
pode estar diretamente relacionada a um público que frequentava anteriormente o espaço,
antes de ser uma Biblioteca.
Seu Denisval, ao final da conversa, perguntou se a Biblioteca estava aceitando doações
de livros, porém, o que fico pensando, é o meu lugar enquanto pesquisador e representante do
espaço. Sinto que as pessoas buscam ser sinceras, mas, ao mesmo tempo, buscam delicadeza
nas palavras, entendendo que aquele momento pode ser um diálogo para estabelecer novos
vínculos
Denisval me falou da sua vida e disse que ficou curioso para conhecer o espaço,
prometendo visitá-lo depois que terminar a pandemia. Conversamos mais um pouco, depois
me despedi e voltei a circular o em torno do local. Foi quando, ainda na mesma rua, me
encontrei com Edson Lima.
22
Ao por “Arenoso” nas páginas de pesquisa na internet, as primeiras notícias estão relacionadas a situações
de violências.
104
Edson Lima é nascido e criado no Arenoso há 34 anos. Ele foi o responsável por dar o
pontapé inicial no processo de limpeza e ocupação ao espaço, em 2010. Edson me contou que
partes das terras que hoje compõem o bairro do Arenoso pertenciam ao seu avô, Antônio
Lima.
Edson já acompanhou o cinema que funcionava no espaço, a escolinha ADF, através
da qual se desenvolvia uma série de atividades como capoeira e boxe até aproximadamente os
anos 2000 e 2001, quando tais atividades cessaram. Edson não sabe o motivo do fim, mas, por
conta do abandono, pouco a pouco o espaço começou a ter alguns itens roubados. Ele me
contou que primeiro foram as janelas, depois, o telhado, o comungo, os ferros, enfim,
praticamente tudo que podia ser vendido foi arrancado. O espaço, a partir de 2001, por estar
abandonado, se tornou intransitável para a comunidade até 2010, quando Edson iniciou o
processo de limpeza.
Em 2010 eu tava em uma boa situação econômica, então pude dar esse retorno a
minha comunidade. Fazia um feijão, chamava a comunidade e a gente começou a
limpar, ajeitamos o primeiro andar e aí começou a ficar mais confortável, em 2012
comecei a fazer uns shows de pagode, partido alto que durou até aproximadamente
2014. (EDSON, 2021)
A fala de Edson se relaciona com outras falas, como as de Diego Lima, Davi Nunes e
Michele Santos. O morador aponta que quando estava em uma boa condição, deu um retorno
à comunidade. Esse “retorno” eram os shows organizados de forma gratuita no espaço,
realizando um ensaio aberto à comunidade com grupos de samba e pagode da região.
Em 2014, Diego chegou junto com nós, limpando e organizando o espaço.
Conseguiu organizar um projeto, uma Biblioteca Comunitária, fazendo vários
trabalhos com a criança que veio a ser fortalecido cada dia mais. Daí a continuidade
foi essa mesmo, limpando e buscando a melhoria do espaço, de 2010 pra cá, a
tendência é essa. (EDSON, 2021)
Edson permanece até hoje no espaço: ao chegar, pela manhã, é possível encontrá-lo
alimentando as galinhas e realizando a limpeza. Ele é uma importante figura na manutenção
da Biblioteca. Algo que me chamou atenção, na entrevista, foi quando perguntei se ele
conhecia Zeferina ou Beiru, e sua reposta foi:
Rapaz, já ouvi muito essas histórias, mas a gente só armazena no nosso cartão de
memória o que a gente tem de grande necessidade (risos). Porque a gente armazena
coisas mais necessárias, produtivas de mais resolução. É a história da comunidade,
mas tem que ser lembrada nos momentos certos. (EDSON, 2021)
oito anos os adultos gostavam muito de contar suas histórias. Hoje o mundo tá mais
diferente. Antigamente os mais velhos não tinha como você passar por ele, sem ele
contar uma história. Hoje em dia não, nem os mais velhos estão se interessando,
nem os mais novos, porque a geração hoje tá diferente né? Por mais que a gente
conte a história a pessoa nunca vai ter ideia do que é a noção né? Então as histórias
tem que tá sendo contada pelos mais velhos mesmo pra gente fazer de uma forma
organizada para que as pessoas tenham acesso a história de forma bonitinha pra
ouvir da boca de quem viveu e não de quem leu. (EDSON, 2021)
Weber (1991) conclui que as ações dos indivíduos precisam ser compreendidas dentro
das suas respectivas dimensões. Para cada dimensão das ações sociais, seja sociológica,
cultural, política, econômica ou religiosa, é exigida uma metodologia especifica para seu
entendimento.
O autor defende ainda que nem sempre uma ação fosse necessariamente “social”. A
ação desenvolve o caráter social quando ocorre intencionalmente para o “outro”: por exemplo,
106
quando duas pessoas se trombam na rua não significa uma ação social, mas um acidente de
caráter natural. No entanto, se eles desviam, se vai cada um para um lado, pode ser
caracterizada como uma ação social, o que leva Weber (1991) a destacar o caráter racional
por expectativas ou interesses.
Acredito que a frase “dar um retorno a minha comunidade”, muito dita pelos
interlocutores nos capítulos anteriores, dialoga com o ensaio sobre a dádiva, do antropólogo
Marcel Mauss (2003).
Mauss (2003) aponta que todas as sociedades, sejam tradicionais ou modernas, se
constituem por sistemas de reciprocidades de caráter interpessoal. Esse sistema possui uma
dinâmica que se expande ou retrai baseada numa tríplice obrigação coletiva de doação – dar,
receber e retribuir. Esse sistema de troca produz uma fluidez de recebimento e devolução de
bens simbólicos e materiais, chamados pelo autor de dom ou dádiva.
O autor defende que existe uma obrigação do “dom”, que se manifesta na vida social
do indivíduo em tudo aquilo que participa da vida humana, seja de bens materiais, ou simples
gestos, por exemplo, um bom dia por “educação”. Nesse sentido, “dádiva” é um sistema de
trocas da vida social, para além da dicotomia “simbólica” ou “material”, que se manifesta no
circular acionado pela força da interação.
Dessa forma, as sociedades tradicionais, chamadas pelo autor de “arcaicas”, se diferem
das sociedades modernas, cujo sistema bipartido do mercado adquiriu a equivalência de “dar -
pagar”. A dádiva não funciona como o “dinheiro”, em outras palavras, é uma questão de
“valor” e não “preço”, pois o importante é o qualitativo. Não se trata de pagar com a mesma
moeda, nem a mesma ação, mas os “presentes” são retribuídos por gentileza ou favores,
fazendo a ação circular nas rodas das práticas sociais e das experiências da vida dos
envolvidos.
Não é à toa que Diego Lima diz - A Biblioteca foi uma forma de dar um retorno e
Edson também aponta que - Em 2010 eu tava em uma boa situação econômica, então pude
dar esse retorno a minha comunidade. Há falas e conversas com outros moradores, inclusive
a Alessandra, que ainda confessou que o seu sonho era ver a filha atuando na comunidade
como uma multiplicadora.
107
As águas que se encontram são uma referência ao trabalho livro Caminho das Águas
em Salvador: Bacias Hidrográficas, Bairros e Fontes (2009), que traça um perfil dos rios da
capital baiana. O livro trabalha com indicadores de qualidade das águas, o acesso aos serviços
públicos, a delimitação das bacias hidrográficas, drenagem natural e a delimitação dos bairros.
Entendendo a importância dos rios e das águas para as regiões do miolo geográfico, que
sempre são lembradas pela riqueza de água, interpreto a constituição da rede que envolve a
Biblioteca como um rio que ganha força ao encontrar com afluentes.
O antropólogo e quilombola Antonio Bispo (2018) aponta que o povo negro e os
povos originários das terras pindorâmicas possuem confluências sociais que se distinguem
do colonizador. Quando se reúnem em roda, o círculo é representação deum princípio de
pensamento circular na fluência dos saberes, enquanto o saber colonial que surge na
modernidade é alimentado pelo determinismo cristão monoteísta.
O autor defende que, na formação da sociedade brasileira, o encontro dos três povos
produziu confluências cosmológicas entre os povos pindorâmicos e africanos, gerando
vínculos associativos e confluências pelo modo de se relacionarem com a natureza e pelo fato
de suas tradições serem politeístas de pensamentos circulares, com princípios civilizatórios
distintos do monoteísmo euro cristão.
Bispo (2015) aponta que o território é o elemento chave para pensarmos as
especificidades entre os povos afros pindorâmicos 23 e os povos brancos. Ele defende também
que a dimensão da religiosidade se apresenta como um elemento preponderante dentro do
processo de colonização.
23
Para Bispo (2015), existe uma confluência entre os povos afro e pindorâmicos, por isso o autor nomeia Afro
pindorâmicos.
108
A religião é uma dimensão que diferentes povos e sociedades acessam por diversas
maneiras de viver, sentir e pensar a vida. Então, depois de um estudo entre a cosmovisão
monoteísta dos colonizadores e a cosmovisão politeísta dos contracolonizadores, Antônio
Bispo (2015) reflete sobre as consequências do processo entre colonização e
contracolonização (pg. 15). Sobre a colonização, é possível encontrarmos uma vasta literatura
a respeito da vinda dos colonizadores para o Brasil.
A história do colonizador se tornou tão dominante que, até hoje, os povos originários
da terra são chamados de “índios”, uma vez os portugueses acreditaram que haviam chegado
às Índias. Mais estranho ainda é que os povos aqui encontrados, como, por exemplo, os povos
de língua tupi, que chamavam essa terra de Pindorama (Terra das Palmeiras), continuam
sendo chamados de índios (Bispo, 2015, p. 26 e 27). Esse processo de generalização de um
povo como é a mesma técnica utilizada por adestradores, que usam a mudança do nome como
um primeiro passo para adestrar um animal. Por isso, a imposição de um nome a um povo que
já tinha um diferente é uma estratégia de dominação para quebrar suas identidades, com o
intuito de desumanizar e coisificar aquele povo.
Nego Bispo (2015) sinaliza passagens na carta de Pero Vaz para o Rei de Portugal
sobre a relação do povo Tupinambá com os elementos da natureza. Uma condição de vida
invejável diante da condição dos recém-chegados colonizadores. Invejar a paz com que o
povo Tupinambá vivia é elemento chave para entendermos a contradição por trás das
acusações de que aqueles povos são preguiçosos ou improdutivos.
Antônio Bispo (2015) chama atenção para a importância de estudar a bíblia para
entendermos um pouco da gênese do desenvolvimento e complexificação da colonização.
Para ele, foi por intermédio da religião euro-cristã que o colonialismo aprimorou técnicas de
dominação, com base nas narrativas criadas em torno de Deus, uma figura onipresente,
onipotente e onisciente que desapropriou o homem descendente, Adão, e Eva, os obrigando a
trabalhar. Fez do trabalho um instrumento de castigo. O caráter escravagista da sociedade que
constrói seus valores a partir das igrejas da Bíblia condenou a uma relação fatigante o seu
povo e a terra. O homem deveria valorizar mais o fruto que plantasse do que o que colhesse.
O homem deixou de fazer parte de um sistema de natureza para conceber sua dominação
sobre o mesmo. É dentro desse contexto que Antônio Bispo (2015) fala da desterritorialização
do povo branco euro-cristão.
Por isso, o processo de escravização no Brasil tentou destituir os povos
afropindorâmicos de suas principais bases de valores socioculturais, promovendo um ataque
às suas identidades individuais e coletivas. Nas palavras de Bispo (2015)
109
5 CONCLUSÃO
livres, e as instituições de segurança fingem não enxergar o genocídio em curso dentro das
periferias.
O 10ª momento, não menos importante, ocorreu em 2016, quando, por meio de um
Decreto Municipal, a Prefeitura reorganizou os bairros de Salvador, passando a oficializar
alguns, incluir ou excluir outros. Segundo a prefeitura, foi um processo para organizar o IPTU
(Imposto Predial e Territorial Urbano) e ajustar a distribuição orçamentária para os bairros e
distritos de Salvador. Foi nesse “pacote” que o nome Beiru foi oficialmente removido dos
ônibus e dos letreiros que sinalizam o bairro.
Acredito que esses 10 pontos são essenciais para pensar os aspectos da dinâmica
identitária do território. A partir de tais marcos temporais, teço uma discussão acerca da
dinâmica identitária no bairro. Um nome possui uma força simbólica que mobiliza recursos
afetivos na construção de pertencimento das identidades.
Com o objetivo de sistematizar para refletir sobre como essa subjetividade influencia a
dinâmica de identidade no bairro, elaborei um esquema que se detém a pensar como alguns
casos geraram um influxo que levou a mudanças nos modos vivenciar e no sentimento de
pertencimento ao bairro:
117
liberdade, mas reserva o liberalismo para quem já está no topo, enquanto impõe um
paternalismo punitivo àqueles que estão na base.
O autor busca entender como o Estado efetivamente redesenha as fronteiras e o caráter
da cidadania através de suas políticas adaptadas ao mercado. “O liberalismo não é uma
ideologia econômica ou um pacote de políticas, mas uma “normatividade generalizada”, uma
“racionalidade global” que “tende a estruturar e organizar não apenas as ações de governo,
mas também a conduta dos próprios governados” e até mesmo a sua autoconcepção, segundo
os princípios de competição, eficiência e utilidade (WACQUANT, 2010, pg. 509). Para o
autor, o Leviatã governa o espaço físico, recorta o espaço social, dramatiza as divisões
simbólicas e encena a soberania” (WACQUANT, p. 515).
O agenciamento do Estado brasileiro por meio das políticas públicas da Prefeitura,
com a troca do nome, e do Governo do Estado, pela ação policial, realizadas no território
buscou eliminar referenciais simbólicos da identidade local construída.
Acredito que o poder soberano não age desta forma com todos, mas particularmente
com pessoas negras, por isso, a existência de um bairro que se constitui com referenciais e
uma negritude de luta e dissidência identitária pode vir ser lida como uma ameaça, levando ao
fato de que o poder soberano tratou de eliminar no plano simbólico e físico. Ações como esta
são tecnologias desenvolvidas pelo racismo, o qual permite o exercício legítimo do
biopoder 24, e sua função é regular a morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado
(MBEMBE, 2018).
O biopoder é um conceito de Michael Foucault (1999), que aponta para a forma em
que o poder o atua sobre o controle dos corpos, ou, em outras palavras, o biopoder indica a
disciplinarização e docilização pelas técnicas de controle dos corpos. Assim, tem-se
tecnologias de verdade e submissão à dominação, que aparecem condensadas nas instituições
de poder.
Entendendo a agência do Estado sobre os signos identitários do território, os
interlocutores acreditam estar em um constante empreendimento de resistência. Resistir é o
esforço excessivo em se manter em pé quando querem te colocar deitado. Resistir é uma
palavra tão dita, que chamo atenção para a concepção dessa palavra na presente dissertação.
Afinal de contas, se existe um movimento que busca apagar a identidade local em prol de uma
identidade nacional, existe o movimento que busca reafirmar a identidade local e se opor à
lógica imposta por esse aparato de poder. Isto é, pois, a resistência.
24
Conceito de Michel Foucault (1992) para descrever as técnicas de controle e subjugação dos corpos da
população.
120
racial negra (ANDERSON, 1993; FANON, 1982; FOUCAULT, 1999; BISPO, 2016).
É possível afirmar que existe diferentes motivos que fazem pessoas irem até a
Biblioteca, seja em busca de um livro, para participar das atividades, jogar conversa fora, para
brincar, ou participar dos mutirões para dar um retorno à comunidade.
Existe uma literatura ainda frágil no que tange a estudos em BC, por isso, aponto para
necessidade de aprofundar estudos antropológicos futuros, a fim de compreender
particularidades deste fenômeno social em algumas regiões de Salvador.
No doutorado, pretendo qualificar a presente pesquisa mapeamento as BC existentes
em Salvadore a Rede de BCs em diferentes níveis – municipais, estaduais e nacionais –,
entendendo as bibliotecas comunitárias enquanto uma prática social comum no Brasil
(MACHADO, 2008).
123
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