Medicine">
Chernoviz e A Medicina No Imperio
Chernoviz e A Medicina No Imperio
Chernoviz e A Medicina No Imperio
Chernoviz
e a medicina
no Império
ANGIN
NGINAA NO PEITO – ANGINA NERVOSA, STRENALGIA, CATANHO
SUFFOCANTE. APERTO DOLOROSO DO PEITO QUE VEM POR ACESSOS –
ADMINISTRAR 10 A 15 GOTTAS DE ETHER SULFURICO EM MEIA XÍCARA
D’ÁGUA FRIA COM ASSUCAR, CHÁ DE FOLHAS DE LARANJEIRA OU DE HERVA
CIDREIRA. DAR A RESPIRAR ETHER, VINAGRE, CHLORIFORMIO. APPLICAR
SINAPISMOS NAS PERNAS E UM CATAPLASMA DE LINHAÇA MUITO QUENTE NAS
COSTAS; DAR UM CLYSTER D’ÁGUA MORNA COM 20 GOTTAS DE LAUDANO.
BANHO MORNO GERAL. CAUSTICO NO PEITO. CAFÉ. FUMIGAÇÕES COM
INFUSÃO DE ESTRAMONIO, MEIMENDRO, BELLADONA. PARA PREVENIR AS
CRISES COSTUMÃO EMPREGAR OS MEDICAMENTOS TÔNICOS 632. QUINA,
PREPARAÇÕES DE FERRO, BANHOS DE MAR. PURGANTES 629.
U
m dos aspectos ainda mércio de obras de medicina para
pouco conhecido do leigos conquistara um mercado con-
processo de institucio- siderável2. Os livros de medicina auto-
nalização da cultura instrutivos satisfaziam, assim, os inte-
médica acadêmica no Brasil oitocen- resses dos donos de escravos, que pre-
tista refere-se ao papel desempenha- tendiam manter a saúde de sua força
do pelos compêndios de medicina po- de trabalho com o mínimo de despe-
pular. Muito mais que a educação sas, e os poucos letrados, que em va-
médica regular e o contato com os mé- riadas circunstâncias exerciam dife-
dicos, eles foram o principal instru- rentes ofícios de cura voltados para o
mento de penetração de saberes e enorme contingente de pobres desam-
práticas sancionados pelas instituições parados. Nesses dois casos, como ve-
médicas oficiais no quotidiano da remos adiante, os conhecimentos vei-
maioria daquela população. culados por tais manuais seriam re-
Para se compreender o alcance interpretados e mesclados com as tra-
deste tipo de difusão informal do sa- dições empíricas consolidadas pelas
ber médico acadêmico é preciso le- demais artes de cura, resultando num
var em conta a carência de médicos amálgama entre elementos de folk
nas vastas regiões rurais por onde se medicine e medicina acadêmica.
A
dispersava o grosso da população bra-
sileira. É sabido que, até finais do sé- o contrário do ocorrido nos
culo XIX, a reduzida corporação mé- Estados Unidos, onde esses
dica se concentrava na Corte do Rio manuais eram a expressão de
de Janeiro e em Salvador, com ex- um movimento de afirmação de se-
pressão secundária nas capitais de tores da medicina popular contra os
algumas províncias como Recife, Porto privilégios reivindicados pela profis-
Alegre, Ouro Preto e São Paulo1. Des- são médica3, no Brasil esse tipo de li-
de o fim da censura imposta aos li- teratura era produzida por médicos
vros pela Coroa portuguesa, houve com a chancela da Academia Impe-
um aumento substancial do número rial de Medicina (AIM). Lembremos
de livrarias e de impressoras e o co- que a organização profissional e re-
C
ticada por barbeiros, sangradores, al-
gebristas, práticos curiosos, herbaris- ircunscrita aos centros urba-
tas, comadres e curandeiros, come- nos de apenas algumas pro-
çou apenas no início do século XIX, víncias, e relativamente cara,
motivada pela súbita fuga da Corte a assistência médica oficial era ina-
portuguesa, ameaçada pelas tropas cessível para quem se encontrava à
francesas, para a cidade do Rio de margem das confrarias religiosas ou
Janeiro. Naquela ocasião, o Príncipe das redes de clientelismo promovidas
Regente D. João inicia uma série de pelos membros da classe senhorial. Até
reformas de cunho liberal, criando 1841, ano em que foi publicada a
os primeiros estabelecimentos de ca- primeira edição do Formulário e Guia
ráter cultural. No tocante à medici- Médico de Pedro Luís Napoleão Cher-
na, instalou dois cursos de cirurgia e noviz (1812-1881), que obteve ime-
anatomia nos hospitais militares de diatamente imensa popularidade, os
Salvador e Rio de Janeiro (1808), pon- brasileiros pobres podiam recorrer a
do término à era dos físicos e cirur- quaisquer das variações polimorfas
giões formados na Europa. Iniciava- das tradições de cura e práticas arte-
se, assim, uma forte tradição clínica sanais que resultaram da longa ex-
marcada pela figura do médico-de- periência colonial, dentre as quais se
família que atuava, ora como clíni- achava o livro de William Buchan,
co, ora como cirurgião, ora como Domestic Medicine, de 1769, tradu-
conselheiro higienista. Embora a in- zido por Manoel Henriques de Paiva.
fluência francesa tenha marcado Não se sabe a repercussão alcançada
amplamente o saber e as instituições pelos compêndios de Jean-Baptista-
médicas oficiais da época, convém Alban Imbert, médico de Montpel-
não esquecer que o ambiente médi- lier e membro-titular da AIM, Ma-
co vigente era herdeiro de uma mul- nual do Fazendeiro ou tratado domés-
tiplicidade de práticas, conceitos e tico sobre as doenças dos negros
métodos reproduzidos de modo ar- (1834) e Guia Médico para as Mães
N
ceito de obra científica e ilustrada,
este artigo, pretendemos te- reverenciada pela República das Le-
cer alguns comentários so- tras, até o momento em que passou a
bre dois aspectos da obra do ser tomada como expressão de genu-
formidável médico polonês: por um ína crendice popular. Recorrendo à
lado, vamos avaliar seu escopo, en- literatura ficcional brasileira, crôni-
quanto empreendimento cultural, se- cas jornalísticas e relatos biográficos,
gundo a perspectiva do próprio au- faremos alguns apontamentos sobre
tor e seu grupo de referência, a me- a razão de tal metamorfose.
Graças a essas cartas8, depreende-se era mais fácil encontrar autores que
que a produção dos dois manuais, es- a escrevessem do que leitores. Ape-
critos por ele diretamente em portu- sar do forte obstáculo, assumiu o ris-
guês, já fazia parte de um antigo pla- co pela empreitada, arcando com os
no de carreira traçado ainda na Fran- custos. Vendeu todos os seus instru-
ça. Outras iniciativas semelhantes mentos cirúrgicos e contou com o
devem ser vistas como inscritas na auxílio financeiro de um médico
mesma estratégia de visibilidade e amigo. O sucesso alcançado foi es-
notoriedade: a redação de artigos trondoso, pois nos três primeiros dias
para a Revista Médica Fluminense; foram vendidos 300 exemplares.
sua eleição, cuidadosamente prepa- Além da impressão, o médico, que
rada, para membro da AIM; a parti- então contava com 30 anos, cuidou
cipação em almoços, bailes e saraus pessoalmente da distribuição, envian-
nas boas casas; a dedicatória ao Im- do exemplares para Bahia, Pernam-
perador Pedro II, impressa na primei- buco e Portugal10. Os Laemmert im-
ra página — o que lhe rendeu o co- primiram as três edições seguintes, as
biçado título de Cavaleiro da Ordem de 1846, 1852 e 1856, além das duas
de Cristo. primeiras impressões do DMPCA, em
D
1842 e 1851. Ao estabelecer-se em
e todos esses passos conca- Paris, em 1855, Chernoviz continuou
tenados, a edição do FGM editando seus manuais em sua pró-
foi o mais ousado e o que pria residência — Casa do Autor —
encontrou maior incompreensão da na rua Raynouard, atual Chernoviz,
parte justamente dos editores. Um, a em Passy.
quem Chernoviz propôs que com- Dividido em várias seções, o For-
prasse os originais, aconselhou-o a mulário e Guia Médico continha a
ocupar-se de seus clientes e esque- descrição dos medicamentos, suas
cer um trabalho que não teria saída. propriedades, suas doses, as moléstias
Outro, provavelmente Leuzinger ou em que deviam ser empregados; as
o próprio Eduardo Laemmert9, res- plantas medicinais indígenas, e as
pondeu-lhe que para obras que tais águas minerais do Brasil; a arte de
formular, a escolha das melhores fór- piente, substância que serviria de veí-
mulas, além de muitas receitas úteis culo às outras três e, por fim, o inter-
nas artes e na economia doméstica. médio, que servia para tornar o me-
Ao lado dos medicamentos cha- dicamento miscível em água ou ou-
mados officinaes (xaropes, vinhos, tro excipiente. Assim, por exemplo,
extratos, tinturas, conservas, emplas- na Mistura Balsâmica de Fuller (co-
tos e ungüentos), cujas fórmulas acha- paíba: 2 onças; gemas de ovo: 2; xa-
vam-se nos códigos farmacêuticos rope de bálsamo de Tolu: 2 onças;
sancionados pelas leis e encontrados vinho branco: 6 onças).
já prontos nas boticas e cujo prestígio A copaíba seria a base, o xaro-
variava em cada época, os doentes pe, o corretivo, as gemas de ovo, o
também podiam dispor das receitas intermediário e o vinho branco, o
magistraes. Estas últimas eram prepa- excipiente .
E
radas de acordo com as fórmulas de
cada médico, segundo as necessida- m outra seção eram descritas
des específicas do paciente. Eram as formas farmacêuticas dos
poções, cozimentos, colírios, pílulas, medicamentos, então classifi-
emulsões, linimentos, cataplasmas... cados em bálsamos, cataplasmas, cáus-
Chernoviz propunha-se a reunir esse ticos, clisteres, elixires, emplastos,
amplo conjunto. Destarte, iniciava emulsões, espíritos, extratos, sangrias,
apresentando, pedagogicamente, al- sanguessugas, sinapismos, vesicató-
gumas considerações sobre a arte de rios e ventosas. Deste arsenal, utiliza-
formular. Distinguia, nas fórmulas, a do no período denominado de tera-
base , isto é, o agente principal do pêutica heróica pela historiografia
medicamento que conteria o princí- médica11, o FGM nos oferece uma de-
pio ativo; o adjuvante, que serviria talhada descrição. As informações téc-
para aumentar as propriedades ou nicas sobre sua variada composição,
virtudes da base; o corretivo, cuja fi- formas de emprego e de manutenção
nalidade era enfraquecer o sabor ou são verdadeiras relíquias sobre as ar-
o cheiro, podendo também reduzir a tes médicas da época. Folheando as
atividade ou a ação corrosiva; o exci- páginas desta seção, ficamos sabendo
N
tensidade, entre a ampla variedade
outra classificação, os me- de substâncias laxantes, catárticas ou
dicamentos trazem refe- drásticas — estas últimas as mais in-
rência à sua ação terapêu- tensas.
tica. É de se notar, neste caso, que até Esta última classificação encontra-
a vitória da concepção ontológica da se na parte do formulário propria-
doença, isto é, aquela que associa o mente dito. Mas em que ele consiste?
ser doença à ação uma entidade es- Trata-se da descrição em ordem al-
pecífica, a medicina acadêmica ten- fabética, de todas as substâncias en-
dia a conceber a doença como mani- tão empregadas pela medicina aca-
festação de múltiplas circunstâncias, dêmica. Ao referir-se a cada medi-
de caráter externo (agentes físicos ou camento, Chernoviz indicava sua si-
químicos) ou interno (constituição fí- nonímia, a significação em francês, o
sica, temperamento, idade, sexo, ati- nome botânico em latim (se o medi-
vidade ocupacional). Nesse caso, os camento fosse uma planta), suas ca-
terapêuticos eram distinguidos entre racterísticas físicas, suas proprieda-
21 tipos, conforme sua ação específi- des, as moléstias em que deviam ser
ca voltada a restabelecer a harmonia empregadas, as doses e pesos usuais e
ou equilíbrio fisiológico: adstringen- os riscos de eventuais associações.
tes, antiperiódicos, antiphlogísticos,
U
antiescorbúticos, antissépticos, antis- ma seção aparentemente
pasmódicos, antissifilíticos, calmantes, inusitada para um guia
diaforéticos, diuréticos , eméticos , médico, mas que se coadu-
emolientes, estimulantes, febrífugos, na perfeitamente com o ideal ilumi-
narcóticos, purgativos, sudoríferos, nista e civilizatório de que se investia
tônicos, temperantes, vermífugos, e a elite médica, intitulava-se Receitas
vomitivos. A arte de purgar, tão com- Diversas. Reuniam-se, aqui, várias
plexa e tão amplamente empregada receitas “úteis nas artes e economia
A
viz. Eis uma confusão insolúvel. Como
sexta e última edição do ficará claro em seguida, a impreci-
DMPCA, de 1890, aparecia são tornou-se difusa no espaço e no
alguns anos após a morte do tempo.
autor, sob a responsabilidade da li-
vraria e editora Roger e F. Chernoviz. Chernoviz, oráculo
Nela já se informava sobre os novos da medicina popular?
métodos de soroterapia, segundo as Qual a influência de Chernoviz na
teorias de Pasteur e de Roux. De acor- intimidade doméstica dos lares urba-
do com Carlos da Silva Araújo, na 16ª nos e rurais? Em que medida conta-
edição do FGM, datada de 1897, des- minou as referências simbólicas dos
crevia-se a técnica sobre “os raios X diferentes saberes de cura mantidos
ou as fotografias através dos corpos pela tradição oral? Como foi lido, in-
opacos.” O mesmo empenho em se- terpretado e apropriado por curiosos
guir as últimas novidades das ciên- e pelos porta-vozes das culturas su-
cias médicas foi perseguido até a úl- balternas? Respostas satisfatórias a
tima edição de 1924. Somente em estas perguntas ainda merecem uma
1926 aparecia a Farmacopéia Brasi- investigação aprofundada, mas ten-
leira, o que explica por que até essa taremos aqui uma primeira aproxi-
data, nos regulamentos sanitários, mação.
S
eria de tal monta a estima - rer, com alguns medicamentos no
do famoso manual? É possí- bolso e na mala da garupa, as vizi-
vel. As referências aos ma- nhanças da cidade à procura de
nuais de medicina popular, em espe- quem se utilizasse dos seus serviços”.
Logo receberia o tratamento de dou- fazer mal. Custavam pouco, mas esse
tor. (...) “Toda a sua ciência assenta- pouco bastava para ir vivendo fol-
va alicerces no tal Chernoviz”.(...) gadamente, em meio à sua vasta
“Noite e dia o manuseava; noite e dia clientela.”
o consultava à sombra das árvores Nestes exemplos, o uso do ma-
ou junto ao leito dos enfermos”. De nual, embora transcendendo os li-
acordo com o narrador, apesar de mites da auto-ajuda e fazendo-se
conter “muitos erros, muita lacuna, instrumento de comércio, perma-
muita coisa inútil e até disparatada”, nece dentro do escopo imaginado
(...) “no interior do Brasil é obra que pelo autor. Como bem delimita seu
incontestavelmente presta bons ser- Bento , o exercício de sua arte res-
viços, e cujas indicações têm força tringia-se às doenças do mundo .
de evangelho”18. Mas não é difícil de imaginar as
O
apropriações heterodoxas que re-
utro personagem, o Bento do sultaram em combinações ecléticas
conto O lobisomem, de Ray- incorporando o receituário cientí-
mundo Magalhães19, retra- fico às concepções mágicas e ho-
ta bem o perfil semelhante. Além de listas presentes no saber médico
negociante de gêneros alimentícios, popular.
seu Bento “era muito entendido em O personagem de Taunay, por
assuntos de medicina caseira. Como exemplo, indiferente à fronteira tra-
na terra não havia médico nem bo- çada pelo médico polonês, transita
ticário, ele desempenhava o papel de impunemente entre a medicina eru-
curioso: com o auxílio do seu bojudo dita e o universo da magia, usando
Chernoviz, aconselhava remédios a como salvo-conduto justamente o
quantos recorriam à sua experiên- Chernoviz. Assim, “num dia de ca-
cia, e dizia-se que estava só para tra- pricho”, Cirino (...) “começou a vi-
tar das doenças do mundo... Jalapa ajar pelos sertões povoados a medi-
para estes, batata para aqueles ou- car, sangrar e retalhar, unindo a al-
tros, eram os seus remédios predile- guns conhecimentos de valor positi-
tos. Se não fizessem bem, não podiam vo, outros que a experiência lhe ia
P
habitante do mundo rural brasilei-
ro, cujo “mobiliário cerebral” repleto orém, autênticos persona-
de superstições, se constitui de um gens da História do Brasil,
banquinho de três pernas para re- líderes políticos, militares ou
ceber os hóspedes, pois “três pernas religiosos de expressão regional, tam-
permitem o equilíbrio; inútil, por- bém tiveram seu prestígio construí-
tanto, meter a quarta, o que ainda o do com o apoio do velho manual. José
obrigaria a nivelar o chão”, trata sua Joaquim Ferreira, fundador e patri-
medicina de “ritual bizantino”, “noi- arca da vila de Campo Grande, atual
te cerebral ”, da qual “ pirilampe- capital do Mato Grosso do Sul, era
jam-lhe apozemas, cerotos, arrobes mezinheiro, cujo preparo técnico
e eletuários escapos à sagacidade desenvolveu com o apoio de um
cômica de Mark Twain”, e compa- Chernoviz. Na verdade, até pouco
ra-a a um “ Chernoviz não escrito, antes de sua morte, em 1900, esse
monumento de galhofa onde não há mineiro de São João Del-Rey era
A
levavam seus bebês acometidos de
quebranto para serem por ele ben- lguns estudiosos da medicina
zidos21. O famoso líder messiânico imperial têm apresentado o
nordestino, padre Cícero, patriarca saber médico oficial e seus
de Juazeiro, fazia uso continuado do porta-vozes, em especial a Higiene e
Formulário e Guia Médico, no aten- os higienistas, como poderosos ins-
dimento dos milhares de analfabe- trumentos disciplinares empregados
tos que o procuravam se queixando na afirmação do poder centraliza-
de todo tipo de doenças22. De ex- dor do Estado em oposição às regras
pressão menor, mas igualmente pa- de sociabilidade vigentes no mundo
radigmático, é o caso de Ramiro Il- rural, onde imperava o patriarca no
defonso de Araújo Castro, personali- comando de grandes famílias, seus
dade importante na região de Ilhéus, agregados e dependentes24. Entretan-
em fins do século XIX. Tendo ape- to, face ao êxito editorial dessa me-
nas o primário, chegou a coronel- dicina de cabeceira parece-nos ne-
médico da Guarda Nacional, com o cessário assumir uma posição mais
direito de exercer o lugar de far- dialética. Afinal, o sinhozinho que
macêutico, praticando também a retorna à fazenda após anos de au-
medicina que aprendera de cor no sência, com seu anel de esmeralda e
Chernoviz23. o título de doutor teria mesmo afron-
Tal como encontramos na litera- tado o saber secular de sua mãe —
tura ficcional, a menção aos três cu- como afirma Gilberto Freire 25 —
riosos personagens e ao papel que usurpando-lhe o amplo domínio so-
exerceram como agentes populares bre a arte de curar? Não teria ele
de cura ratifica e amplia as descri- encontrado certa receptividade, com
ções dos usos que se fizeram dos li- seu saber parcialmente legitimado e
vros de medicina auto-instrutivos. Fi- reinterpretado à luz de uma medi-
nalizaremos estes breves comentá- cina doméstica contaminada de no-
rios sobre o papel da obra de Cher- ções acadêmicas?
S
em dúvida, a recepção do o saber médico oficial. Enquanto os
Chernoviz na intimidade esculápios eram quase sempre ina-
dos lares urbanos e rurais cessíveis, e manipulavam um saber
revela algumas modalidades, nada hermético e estranho aos extratos po-
rígidas, de interpretação e utilização pulares, os curandeiros, por eles de-
do estimado manual. Diante da es- nunciados como charlatães, produ-
cassez da mão-de-obra escrava, ziram diversas sínteses, aproximan-
muitas sinhás e sinhôs de terras e de do sincreticamente elementos da me-
engenhos demonstraram uma genu- dicina científica à linguagem com-
ína preocupação com o cuidado da partilhada pelos diferentes grupos
escravaria capacitada para os pesa- subalternos. A constituição de um
dos serviços da lavoura, e credita- monopólio legítimo sobre o territó-
vam até uma certa nobreza e huma- rio da cura, teve, como visto aqui,
nização à prática de suas medicinas. mais percalços do que supõem os
Deste modo, embora tenham sido adeptos da tese de uma medicaliza-
concebidos como instrumento de fi- ção homogênea e ubíqua da socie-
lantropia leiga, por reformistas eu- dade brasileira.
O
ropeus impregnados dos ideais civi-
lizatórios, os manuais de medicina Chernoviz, na intimidade
popular terminavam por fortalecer dos lares urbanos e rurais,
os interesses bem entendidos dos es- ajudou a criar uma cultura
cravocratas26, ensinavam os senho- médica especial, à medida que con-
res a tratar as doenças dos escravos taminou as referências simbólicas dos
para aumentar o seu capital e res- diversos saberes de cura, até então
pondiam aos problemas graves de mantidos pela tradição oral. Foi lido,
saúde pública, que atingiam, tam- interpretado e apropriado por curio-
bém, a classe senhorial. sos de todos os tipos e pelos porta-vo-
É fácil imaginar, também, que os zes das culturas populares.
livros auto-instrutivos vieram a re-
email: edler@coc.fiocruz.br
forçar a legitimidade dos inúmeros
email: mregina@sky.com.br
agentes de cura que concorriam com
ASSIS, Machado de. Obras completas, Rio de PEIXOTO, Afrânio. Sinhazinha. In: Obras
Janeiro, Nova Aguilar, 8ªed., 1992. Completas. Rio de Janeiro: Editora Nova Agui-
lar.1962.
BERBERT, José Augusto. “Poeta Amante do Ci-
nema”, A Tarde on line, 22/02/97. PIMENTA, Tânia Salgado. Ofícios de Cura no
Brasil do começo do século XIX, dissertação de
BRAGA, Rubem. Memórias de um ajudante de mestrado, FFCH, Unicamp, 1996.
farmácia. In:______As Boas Coisas da Vida. 6a
ed. Rio de SANTOS FILHO, Lycurgo. História Geral da Me-
dicina Brasileira, Segundo Volume, São Paulo,
Janeiro: Record. 2003. HUCITEC, Edusp, 1991.
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves, O doutor SANTOS FILHO, Lycurgo. Uma comunidade
capa preta: Chernoviz e a medicina no Brasil rural no Brasil Antigo. São Paulo:Companhia
do século XIX” Estudos, I(1) 95-109, Maio Editora Nacional.1956.
2001.
SAYDE, Jane D. Mediar, medicar, remediar.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos. Vol. Terapêutica na medicina contemporânea: o
2, Rio de Janeiro, José Olympio, 5a Ed. 1977. pensamento médico brasileiro, Rio de Janeiro,
Tese de Doutorado, IMS/Uerj, 1995.
GUIMARÃES, Maria Regina C. Civilizando as
artes de curar: Chernoviz e os manuais de SOBREIRA, Azarias. O Patriarca de Juazeiro,
medicina popular no Império, dissertação de Petrópolis, Vozes, 1969.
mestrado, Pós-graduação em História das Ci-
ências da Saúde, COC/FIOCRUZ, 2003. STARR, Paul. La transformación social de la
medicina en los Estados Unidos de América,
HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua Biblioteca de la salud, México, Fondo de Cultu-
história, São Paulo, Edusp, 1985. ra Econônica, 1991.
HERSON, Bella. Cristãos-novos e seus descen- TAUNAY, Visconde de. Inocência, 19ª ed., São
dentes na medicina brasileira (1500-1850), Paulo, Ática, 1991.
São Paulo, Edusp, 1996.
10. HERSON, Bella, op. Cit. 405 24. MACHADO, Roberto et. al. Danação da
Norma: medicina social e constituição da
11. SAYDE, Jane D. Mediar, medicar, remediar. Psiquiatria no Brasil, Rio de Janeiro, Graal,
Terapêutica na medicina contemporânea: o 1979.
pensamento médico brasileiro, Rio de Janeiro,
Tese de Doutorado, IMS/Uerj, 1995. 25. Gilberto Freire – Sobrados e Mocambos.
Vol. 2, Rio de Janeiro, José Olympio, 5a Ed.
12. FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves, “O 1977, p. 573.
doutor Capa Preta: Chernoviz e a medicina no
Brasil do século XIX”. Estudos, I(1) 95-109, 26. ALENCASTRO, Luís Felipe. Vida Privada e
Maio 2001. Ordem Privada no Império. In: NOVAIS_FA.
História da Vida Privada no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras. vol. 2: 67-78.1997.