Um Médico Rural by Kafka, Franz (Kafka, Franz)
Um Médico Rural by Kafka, Franz (Kafka, Franz)
Um Médico Rural by Kafka, Franz (Kafka, Franz)
Temos um novo advogado, o dr. Bucéfalo. Seu exterior lembra pouco o tempo
em que ainda era o cavalo de batalha de Alexandre da Macedônia. Seja como for,
quem está familiarizado com as circunstâncias percebe alguma coisa. Não
obstante, faz pouco eu vi na escadaria até um o cial de justiça muito simples
admirar, com o olhar perito do pequeno freqüentador habitual das corridas de
cavalos, o advogado quando este, empinando as coxas, subia um a um os degraus
com um passo que ressoava no mármore.
Em geral a ordem dos advogados aprova a admissão de Bucéfalo. Com
espantosa perspicácia diz-se que, no ordenamento social de hoje, Bucéfalo está em
uma situação difícil e que, tanto por isso como também por causa do seu
signi cado na história universal, ele de qualquer modo merece boa vontade. Hoje
— isso ninguém pode negar — não existe nenhum grande Alexandre. É verdade
que muitos sabem matar; também não falta habilidade para atingir o amigo com a
lança sobre a mesa do banquete; e para muitos a Macedônia é estreita demais, a
ponto de amaldiçoarem Filipe, o pai — mas ninguém, ninguém, sabe guiar até a
Índia. Já naquela época as portas da Índia eram inalcançáveis, mas a direção delas
estava assinalada pela espada do rei. Hoje as portas estão deslocadas para um lugar
completamente diferente, mais longe e mais alto; ninguém mostra a direção;
muitos seguram espadas, mas só para brandi-las; e o olhar que quer segui-las se
confunde.
Talvez por isso o melhor realmente seja, como Bucéfalo fez, mergulhar nos
códigos. Livre, sem a pressão do lombo do cavaleiro nos ancos, sob a lâmpada
silenciosa, distante do fragor da batalha de Alexandre, ele lê e vira as folhas dos
nossos velhos livros.
UM MÉDICO RURAL
Eu estava num grande aperto: tinha diante de mim uma viagem urgente; um
doente grave me esperava numa aldeia a dez milhas de distância; forte nevasca
enchia o vasto espaço entre mim e ele; eu dispunha de um veículo leve, de rodas
grandes, exatamente como convém às nossas estradas do campo; envolto em peles,
a valise de instrumentos na mão, já estava no pátio pronto para a viagem; mas
faltava o cavalo, o cavalo. O meu tinha morrido na última noite extenuado pelo
excesso de esforço naquele inverno gelado; minha criada corria agora pela aldeia
tentando emprestar um; mas não havia perspectiva, eu o sabia, e cada vez mais
coberto de neve, cada vez mais imobilizado, eu permanecia ali, inútil. A moça
apareceu sozinha no portão do pátio e balançou a lanterna: naturalmente, quem
empresta agora o seu cavalo para uma viagem dessas? Percorri o pátio mais uma
vez; não via nenhuma possibilidade; distraído, atormentado, bati com o pé na
frágil porta da pocilga que já não era usada fazia anos. Ela se abriu, foi e voltou
estalando nos gonzos. Veio de dentro um bafo quente e um cheiro como que de
cavalos. Uma fosca lanterna de curral oscilava pendente de uma corda. Um
homem acocorado no cômodo baixo mostrou o rosto aberto e de olhos azuis.
— Devo atrelar? — perguntou, rastejando de quatro para fora.
Eu não soube o que dizer e me inclinei só para ver o que ainda havia na pocilga.
A criada estava ao meu lado.
— A gente não sabe as coisas que tem armazenadas na própria casa — disse ela
e nós dois rimos.
— Olá irmão, olá irmã! — bradou o cavalariço e dois cavalos, possantes animais
de ancos fortes, as pernas coladas ao corpo, baixando as cabeças bem formadas
como se fossem camelos, saíram um atrás do outro, impelidos só pela força dos
movimentos do tronco, através da abertura da porta que eles ocupavam por
completo.
Mas logo caram em pé, altos sobre as pernas, o corpo soltando um vapor
denso.
— Ajude-o — eu disse e a moça solícita se apressou em entregar os arreios do
carro ao rapaz da estrebaria.
Mal ela estava perto no entanto ele a agarra e comprime o rosto no dela. A
jovem dá um grito e se refugia em mim; duas leiras de dentes estão impressas em
vermelho na maçã do seu rosto.
— Animal! — grito furioso. — Você quer o chicote?
Mas logo me lembro que ele é um estranho, que não sei de onde vem e que me
ajuda espontaneamente onde todos os outros falham. Como se conhecesse meus
pensamentos, ele não leva a mal minha ameaça, mas apenas se volta para mim,
sempre lidando com os cavalos.
— Suba — diz ele.
Efetivamente está tudo pronto. Noto que nunca viajei com uma parelha tão
bonita e subo contente.
— uem dirige sou eu, você não sabe o caminho — eu digo.
— Sem dúvida — diz ele. — Mas eu não vou, co aqui com Rosa.
— Não! — grita Rosa e corre para a casa com o correto pressentimento da
inevitabilidade do seu destino.
Ouço retinir a corrente que ela põe na porta; escuto a lingüeta entrar na
fechadura; além disso vejo-a apagar na corrida todas as luzes do vestíbulo e dos
quartos que atravessa com o intuito de impedir que seja encontrada.
— Você vai junto — digo ao cavalariço — ou então desisto de viajar, por mais
urgente que seja. Não cogito em entregar a moça como preço pela viagem.
— Em frente! — diz ele.
Bate palmas; o veículo é arrastado como madeira na correnteza; ainda ouço
quando a porta da minha casa estrala e se espatifa ao assalto do cavalariço, depois
olhos e ouvidos são tomados por um zunido que penetra uniformemente todos os
meus sentidos. Mas por um instante apenas, pois como se diante do portão do
pátio se abrisse o pátio do meu doente, já estou lá; os cavalos estão quietos; a neve
parou de cair; o luar em volta; os pais do doente saem correndo da casa, a irmã
dele atrás; quase me arrancam do carro; não capto nada das falas confusas; no
quarto do doente o ar é quase irrespirável; negligenciada, a estufa fumega; vou
abrir a janela, mas primeiro quero ver o doente. Magro, sem febre, nem frio nem
quente, os olhos vazios, sem camisa, o jovem se ergue de debaixo do acolchoado,
pendura-se no meu pescoço, cochicha-me no ouvido:
— Doutor, deixe-me morrer.
Olho em torno; ninguém escutou; os pais mudos estão inclinados para a frente
e aguardam o meu veredicto; a irmã trouxe uma cadeira para a minha valise.
Abro-a e remexo nos instrumentos; da cama o jovem tateia sem cessar na minha
direção para me lembrar dos seus apelos; apanho uma pinça, examino-a à luz da
vela e ponho-a de volta no lugar.
— Sim — penso, blasfemando —, em casos como este os deuses ajudam,
enviam o cavalo que falta, em vista da pressa acrescentam um segundo, de quebra
ainda dão de presente o cavalariço.
Só agora Rosa me vem outra vez à mente; o que vou fazer, como vou salvá-la,
tirá-la das garras desse cavalariço, a dez milhas de distância, os cavalos
incontroláveis na frente do meu carro? Esses cavalos que agora de algum modo
afrouxaram as correias; que não sei como escancararam as janelas pelo lado de
fora; que en am cada qual a cabeça por uma janela e sem se perturbarem com a
gritaria da família contemplam o doente.
— Vou voltar imediatamente — penso, como se os cavalos me convidassem a
viajar; mas permito que a irmã, que imagina que estou anestesiado pelo calor, me
tire o casaco de pele.
Preparam um copo de rum para mim, o velho me dá um tapinha no ombro,
essa familiaridade se justi ca por ele me haver con ado o seu tesouro. Sacudo a
cabeça; eu me sentiria mal no estreito mundo do velho; só por esse motivo me
recuso a beber. A mãe está em pé ao lado da cama e me atrai com um sinal; eu
atendo e, enquanto um cavalo relincha forte para o teto, coloco a cabeça no peito
do jovem, que se arrepia ao toque da minha barba úmida. Con rma-se o que sei:
o rapaz está são, a circulação do sangue funciona um pouco mal, ele está
encharcado de café dado pela mãe ansiosa, mas são: o melhor seria tirá-lo com um
tranco da cama. Não sou reformador do mundo, por isso deixo-o deitado. Sou
médico contratado pelo distrito e cumpro o meu dever até o limite, até o ponto
em que isso quase se torna um excesso. Mal pago, sou no entanto generoso e
solícito em relação aos pobres. Tenho ainda de cuidar de Rosa, além disso o jovem
pode estar com a razão e também eu quero morrer. O que estou fazendo aqui
neste inverno interminável? Meu cavalo morreu e na aldeia não há ninguém que
me empreste o seu. Preciso tirar minha parelha da pocilga; se por acaso não
fossem cavalos eu teria de viajar puxado por porcas. Assim é. E aceno com a
cabeça para a família. Eles não sabem de nada e se soubessem não acreditariam.
Escrever receitas é fácil, mas entender-se no resto com as pessoas é difícil. Bem,
minha visita estaria terminada aqui, outra vez me chamaram sem necessidade,
estou acostumado com isso, o distrito inteiro me martiriza valendo-se da sineta
para os chamados à noite; mas que desta vez eu ainda tivesse de sacri car Rosa,
essa bela moça que durante anos viveu na minha casa quase sem que eu a
percebesse — esse sacrifício é grande demais e preciso de algum modo fazer com
que isso entre na minha cabeça por meio de so smas, a m de não partir correndo
para cima dessa família que nem com a melhor boa vontade pode me devolver
Rosa. Mas quando fecho a valise e aceno pedindo o meu casaco de pele, a família
está reunida, o pai cheirando o copo de rum que tem na mão, a mãe,
provavelmente decepcionada comigo — mas o que é que as pessoas esperam? —,
mordendo os lábios, os olhos cheios de lágrimas, a irmã agitando um lenço
empapado de sangue, eu estou de algum modo disposto a admitir, quem sabe, que
o jovem talvez esteja de fato doente. Dirijo-me até ele, ele sorri para mim como se
eu lhe estivesse levando a mais vigorosa das sopas — ah, agora relincham os dois
cavalos; o ruído com certeza deve, ordenado por uma esfera superior, facilitar o
exame — e então descubro: sim, o jovem está doente. No seu lado direito, na
região dos quadris, abriu-se uma ferida grande como a palma da mão. Cor-de-
rosa, em vários matizes, escura no fundo, tornando-se clara nas bordas,
delicadamente granulada, com o sangue coagulado de forma irregular, aberta
como a boca de uma mina à luz do dia. Assim parece à distância. De perto mostra
mais uma complicação. uem pode olhar para isso sem dar um leve assobio?
Vermes da grossura e comprimento do meu dedo mínimo, rosados por natureza e
além disso salpicados de sangue, reviram-se para a luz, presos no interior da ferida,
com cabecinhas brancas e muitas perninhas. Pobre rapaz, não é possível ajudá-lo.
Descobri sua grande ferida; essa or no seu anco vai arruiná-lo. A família está
feliz, ela me vê em atividade; a irmã o diz à mãe, a mãe ao pai, o pai a algumas
visitas que, na ponta dos pés, equilibrando-se de braços estendidos, entram pelo
luar da porta aberta.
— Você vai me salvar? — sussurra o jovem soluçando, totalmente ofuscado
pela vida na sua ferida.
Assim são as pessoas na minha região. Sempre exigindo o impossível do
médico. Perderam a antiga fé; o pároco ca sentado em casa des ando uma a uma
as vestes litúrgicas; mas o médico deve dar conta de tudo com sua delicada mão de
cirurgião. Bem, como quiserem: não me ofereci; se abusam de mim visando a
objetivos sagrados deixo que também isso aconteça comigo; o que mais desejo de
melhor, eu, velho médico rural a quem roubaram a criada? E eles vêm, a família e
os anciãos da aldeia, e me despem; um coro de escola, professor à frente, está
diante da casa e canta uma melodia extremamente simples com a letra:
Dispam-no e ele curará!
E se não curar, matem-no!
É apenas um médico, apenas um médico!
Estou então sem roupa e, os dedos na barba, a cabeça inclinada, olho com
tranqüilidade as pessoas. Completamente composto e superior a todos,
permaneço assim embora isso não me ajude em nada, pois elas agora me pegam
pela cabeça e pelos pés e me carregam para a cama. Colocam-me junto à parede,
do lado da ferida. Depois saem todos do quarto; a porta é fechada; o canto
emudece; nuvens cobrem a lua; em torno de mim a coberta está quente; as
cabeças dos cavalos balançam como sombras nos vãos das janelas.
— Sabe de uma coisa? — ouço dizerem no meu ouvido. — Tenho muito pouca
con ança em você. Atiraram-no aqui de algum lugar, você não veio por vontade
própria. Em vez de me socorrer, está tornando mais estreito o meu leito de morte.
O que eu mais gostaria de fazer seria arrancar os seus olhos.
— Você está certo — digo. — É uma vergonha. Mas eu sou médico. O que
devo fazer? Acredite: para mim também não é fácil.
— Devo me contentar com essa desculpa? Ah, certamente que sim. Tenho
sempre de me contentar. Vim ao mundo com uma bela ferida; foi esse todo o meu
dote.
— Jovem amigo — digo — o seu erro é: você não tem visão das coisas. Eu, que
já estive em todos os quartos de doentes, por toda parte, eu lhe digo: sua ferida
não é assim tão má. Aberta com dois golpes de machado em ângulo agudo.
Muitos oferecem o anco e quase não ouvem o machado na mata, muito menos
que ele se aproxima.
— É realmente assim ou na febre você me engana?
— É realmente assim, aceite a palavra de honra de um médico o cial.
Ele aceitou e cou em silêncio. Mas já era hora de pensar na minha salvação.
Fiéis, os cavalos ainda permaneciam nos seus lugares. Roupas, pele e valise foram
rapidamente reunidas; eu não queria perder tempo me vestindo; se os cavalos se
apressassem como na viagem da vinda, eu de certo modo saltava desta cama para a
minha. Obediente, um cavalo se afastou da janela; atirei a trouxa dentro do
veículo; o casaco de pele voou longe demais e cou preso só por uma manga num
gancho. Era o su ciente. Subi de um salto no cavalo. As rédeas deslizando soltas,
um cavalo quase desligado do outro, o carro rodando atrás aos trancos, por último
a pele arrastando na neve.
— Em frente! — eu disse, mas eles não foram a galope.
Devagar como homens velhos trilhamos o deserto de neve; durante muito
tempo soou atrás de nós a canção nova mas equivocada do coro das crianças:
Alegrai-vos, ó pacientes,
O médico foi posto na ossa cama!
Assim nunca vou chegar em casa; meu próspero consultório está perdido; um
sucessor me rouba, mas sem proveito, pois não pode me substituir; em minha casa
se enfurece o asqueroso cavalariço; Rosa é sua vítima; mas não quero pensar nisso.
Nu, exposto à geada desta época desafortunada, com um carro terrestre e cavalos
não-terrenos, vou — um velho — vagando. Meu casaco de pele pende atrás da
carroça, mas não posso alcançá-lo e ninguém na móvel canalha dos pacientes
mexe um dedo. Fui enganado! Enganado! Uma vez atendido o alarme falso da
sineta noturna — não há mais o que remediar, nunca mais.
NA GALERIA
É como se muita coisa tivesse sido negligenciada na defesa da nossa pátria. Até
então não havíamos nos importado com isso, entregues como estávamos ao nosso
trabalho; mas os acontecimentos dos últimos tempos nos causam preocupações.
Tenho uma o cina de sapateiro na praça em frente ao palácio imperial. Mal
abro a porta no crepúsculo da manhã e já vejo ocupadas por homens armados as
entradas de todas as ruas que con uem para cá. Mas não são soldados nossos e sim
nômades vindos evidentemente do norte. De uma maneira incompreensível para
mim eles penetraram até a capital, que no entanto ca muito distante da
fronteira. Seja como for já estão aí; parece que a cada manhã se tornam mais
numerosos.
Seguindo sua natureza eles acampam a céu aberto, pois abominam as casas.
Ocupam-se em a ar as espadas, aguçar as lanças e praticar exercícios a cavalo.
Fizeram desta praça tranqüila, mantida sempre escrupulosamente limpa, uma
autêntica estrebaria. É verdade que nós tentamos às vezes sair às pressas das nossas
lojas para retirar pelo menos o grosso da sujeira, mas isso ocorre com uma
freqüência cada vez menor, pois o esforço é inútil e além disso corremos o perigo
de cair sob as patas dos cavalos selvagens e de ser feridos pelos chicotes.
Com os nômades não se pode falar. Eles não conhecem a nossa língua, na
realidade quase não têm um idioma próprio. Entendem-se entre si de um modo
semelhante ao das gralhas. Ouve-se sem cessar esse grito de gralhas. Para eles nossa
maneira de viver, nossas instituições são tão incompreensíveis quanto
indiferentes. Conseqüentemente recusam qualquer linguagem de sinais. Você
pode deslocar as mandíbulas e destroncar as mãos que eles não o compreendem
nem nunca irão compreender. Muitas vezes fazem caretas; mostram então o
branco dos olhos e a baba cresce na boca, mas com isso não querem dizer alguma
coisa nem assustar ninguém; fazem-no porque é essa a sua maneira de ser. Aquilo
de que precisam eles pegam. Não se pode a rmar que empreguem a violência.
Ante a sua intervenção as pessoas se põem de lado e deixam tudo para eles.
Também das minhas provisões eles levaram uma boa parte. Mas não posso me
queixar quando vejo por exemplo o que acontece ao açougueiro em frente. Mal
ele traz as suas mercadorias, tudo já lhe foi tirado e engolido pelos nômades. Os
cavalos deles também comem carne; muitas vezes um cavaleiro ca ao lado do seu
cavalo e os dois se alimentam da mesma posta de carne, cada qual por uma
extremidade. O açougueiro é medroso e não ousa acabar com o fornecimento.
Mas nós entendemos o que se passa, recolhemos dinheiro e o ajudamos. Se os
nômades não recebessem carne, quem é que sabe o que lhes ocorreria fazer? De
qualquer maneira quem é que sabe o que lhes vai ocorrer, ainda que recebam
carne diariamente?
Não faz muito o açougueiro pensou que podia ao menos se poupar do esforço
do abate e uma manhã trouxe um boi vivo. Isso não deve se repetir. Fiquei bem
uma hora estendido no fundo da o cina com todas as roupas, cobertas e
almofadas empilhadas em cima de mim para não ouvir os mugidos do boi que os
nômades atacavam de todos os lados para arrancar com os dentes pedaços de sua
carne quente. uando me atrevi a sair já fazia silêncio há muito tempo; como
bêbados em torno de um barril de vinho eles estavam deitados mortos de cansaço
em torno dos restos do boi.
Justamente nessa época acreditei ter visto o imperador em pessoa numa janela
do palácio; em geral ele nunca vem a esses aposentos externos, vive sempre no
mais interno dos jardins; mas desta vez, pelo menos assim me pareceu, ele estava
em pé junto a uma das janelas olhando de cabeça baixa o movimento diante do
seu castelo.
— O que irá acontecer? — todos nós nos perguntamos. — uanto tempo
vamos suportar esse peso e tormento? O palácio imperial atraiu os nômades mas
não é capaz de expulsá-los. Os portões permanecem fechados; a guarda, que antes
entrava e saía marchando festivamente, mantém-se atrás de janelas gradeadas. A
nós, artesãos e comerciantes, foi con ada a salvação da pátria; mas não estamos à
altura de uma tarefa dessas, nem jamais nos vangloriamos de estar. É um equívoco
e por causa dele vamos nos arruinar.
DIANTE DA LEI
Meu avô costumava dizer: “A vida é espantosamente curta. Para mim ela agora
se contrai tanto na lembrança que eu por exemplo quase não compreendo como
um jovem pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia sem temer que — totalmente
descontados os incidentes desditosos — até o tempo de uma vida comum que
transcorre feliz não seja nem de longe su ciente para uma cavalgada como essa”.
UMA MENSAGEM IMPERIAL
Alguns dizem que a palavra Odradek deriva do eslavo e com base nisso
procuram demonstrar a formação dela. Outros por sua vez entendem que deriva
do alemão, tendo sido apenas in uenciada pelo eslavo. Mas a incerteza das duas
interpretações permite concluir, sem dúvida com justiça, que nenhuma delas
procede, sobretudo porque não se pode descobrir através de nenhuma um sentido
para a palavra.
Naturalmente ninguém se ocuparia de estudos como esses se de fato não
existisse um ser que se chama Odradek. À primeira vista ele tem o aspecto de um
carretel de linha achatado e em forma de estrela, e com efeito parece também
revestido de os; de qualquer modo devem ser só pedaços de linha rebentados,
velhos, atados uns aos outros, além de emaranhados e de tipo e cor os mais
diversos. Não é contudo apenas um carretel, pois do centro da estrela sai uma
varetinha e nela se encaixa depois uma outra, em ângulo reto. Com a ajuda desta
última vareta de um lado e de um dos raios da estrela do outro, o conjunto é capaz
de permanecer em pé como se estivesse sobre duas pernas.
Alguém poderia car tentado a acreditar que essa construção teria tido
anteriormente alguma forma útil e que agora ela está apenas quebrada. Mas não
parece ser este o caso; pelo menos não se encontra nenhum indício nesse sentido;
em parte alguma podem ser vistas emendas ou rupturas assinalando algo dessa
natureza; o todo na verdade se apresenta sem sentido, mas completo à sua
maneira. Aliás não é possível dizer nada mais preciso a esse respeito, já que
Odradek é extraordinariamente móvel e não se deixa capturar.
Ele se detém alternadamente no sótão, na escadaria, nos corredores, no
vestíbulo. Às vezes ca meses sem ser visto; com certeza mudou-se então para
outras casas; depois porém volta infalivelmente à nossa casa. Às vezes, quando se
sai pela porta e ele está inclinado sobre o corrimão logo embaixo, tem-se vontade
de interpelá-lo. É natural que não se façam perguntas difíceis, mas sim que ele seja
tratado — já o seu minúsculo tamanho induz a isso — como uma criança. “Como
você se chama?”, pergunta-se a ele. “Odradek”, ele responde. “E onde você mora?”
“Domicílio incerto”, diz e ri; mas é um riso como só se pode emitir sem pulmões.
Soa talvez como o farfalhar de folhas caídas. Em geral com isso a conversa
termina. Aliás mesmo essas respostas nem sempre podem ser obtidas; muitas
vezes ele se conserva mudo por muito tempo como a madeira que parece ser.
Inutilmente eu me pergunto o que vai acontecer com ele. Será que pode
morrer? Tudo o que morre teve antes uma espécie de meta, um tipo de atividade e
nela se desgastou; não é assim com Odradek. Será então que a seu tempo ele ainda
irá rolar escada abaixo diante dos pés dos meus lhos e dos lhos dos meus lhos,
arrastando atrás de si os os do carretel? Evidentemente ele não prejudica
ninguém, mas a idéia de que ainda por cima ele deva me sobreviver me é quase
dolorosa.
1 Esta tradução foi bene ciada tanto por soluções encontradas por Roberto Schwarz, quanto pela original
interpretação que deu a este texto. V. O pai de família e outros estudos, Paz e Terra, 1979, p. 21 e ss.
ONZE FILHOS
Josef K. sonhou:
Era um belo dia e K. pretendia ir passear. Mal tinha dado dois passos, porém, já
estava no cemitério. Havia ali caminhos muito arti ciais, de uma sinuosidade
pouco prática, mas ele deslizava sobre um desses caminhos como se fosse por cima
de uma correnteza, numa postura inabalavelmente utuante. Já de longe enxergou
um túmulo recém-escavado ao lado do qual queria parar. Esse túmulo exercia
sobre ele quase uma sedução e ele julgava não ser capaz de ir até lá com rapidez
su ciente. Às vezes entretanto ele praticamente não via o túmulo, subtraído à sua
visão por bandeiras cujos panos ondulavam e batiam com muita força uns nos
outros; não se avistavam os porta-bandeiras, mas era como se lá reinasse grande
júbilo.
Enquanto ainda dirigia o olhar para a distância, viu de repente no caminho o
mesmo túmulo ao seu lado, na verdade já quase atrás. Saltou rápido sobre a relva.
Uma vez que, sob o pé que saltava, o caminho seguia o seu curso desabalado, ele
vacilou e caiu de joelhos justamente diante do túmulo. Atrás deste estavam dois
homens levantando no espaço entre ambos uma lápide; nem bem K. havia
aparecido, eles atiraram a pedra na terra e ela cou ali como que cimentada.
Imediatamente surgiu de um arbusto um terceiro homem, que K. reconheceu
logo como um artista. Ele vestia apenas calças e uma camisa mal abotoada; tinha
um gorro de veludo na cabeça e na mão um lápis comum com o qual, já ao se
aproximar, descrevia guras no ar.
Com esse lápis ele iniciou então o seu trabalho na parte de cima da pedra; esta
era muito alta, ele não precisava de modo algum vergar o corpo, mas teve de se
inclinar para a frente, pois o túmulo, no qual ele não queria pisar, o separava da
pedra. Ficou portanto na ponta dos pés e se apoiou com a mão esquerda na
superfície da lápide. Por meio de uma manipulação particularmente habilidosa ele
conseguiu, com o lápis comum, obter letras de ouro; escreveu: “Aqui jaz ____”.
Cada uma das letras apareceu limpa e bonita, talhada fundo e toda em ouro.
uando tinha escrito as duas palavras, olhou para K., que estava atrás; muito
ansioso pelo prosseguimento da inscrição, K. mal se importou com o homem,
tando somente a pedra. De fato o homem começou a escrever de novo, mas não
pôde, havia algum bloqueio, deixou baixar o lápis e se voltou outra vez para K.
Agora K. também olhava para o homem e notou que ele estava muito
embaraçado, mas não soube dizer a causa. Toda a vivacidade anterior dele havia
desaparecido, K. também cou embaraçado com isso; trocaram olhares
desamparados; existia um feio mal-entendido que nenhum deles podia desfazer.
Fora de hora, um pequeno sino da capela mortuária começou a soar, mas o artista
agitou a mão erguida e ele parou. Um pouco depois recomeçou, dessa vez bem
baixinho, interrompendo-se logo em seguida sem nenhuma exortação especial:
era como se apenas quisesse testar o seu som. K. estava inconsolável com a
situação do artista, começou a chorar e por longo tempo soluçou na concha das
mãos. O artista esperou até K. se acalmar e depois — já que não tinha outra saída
— resolveu continuar escrevendo. O primeiro pequeno traço que fez foi para K.
uma libertação, mas era evidente que o artista só foi capaz de produzi-lo com
extrema relutância; a escrita também não era mais tão bonita, parecia sobretudo
que faltava ouro, o traço se estendia pálido e inseguro e a letra cou muito grande.
Era um J, já estava quase terminado quando o artista bateu furioso com um pé no
túmulo, de tal modo que a terra em torno voou para o alto. Finalmente K. o
compreendeu; não havia mais tempo para lhe pedir desculpas; cavou com todos
os dedos a terra que quase não oferecia resistência; tudo parecia preparado; só
para salvar as aparências tinha sido disposta uma na crosta de terra; logo
embaixo dela se abria um grande buraco de paredes íngremes, no qual K.
mergulhou virado de costas por uma suave corrente. Mas enquanto lá embaixo ele
era acolhido pela profundeza impenetrável, a cabeça ainda erguida sobre a nuca, lá
em cima o seu nome disparava sobre a pedra com possantes ornatos.
Encantado com a visão, ele despertou.
UM RELATÓRIO PARA
UMA ACADEMIA