Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Um Médico Rural by Kafka, Franz (Kafka, Franz)

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 64

Obras de Franz Ka a:

Descrição de uma luta (1904)


Preparativos para um casamento no campo (1907)
Contemplação (1912)
O desaparecido (ex America) (1912)
O foguista (1912)
O veredicto (1912)
A metamorfose (1912)
O processo (1914)
Na colônia penal (1914)
Narrativas do espólio [coletânea elaborada por Modesto Carone] (1914-24)
Carta ao pai (1919)
Um médico rural (1919)
O castelo (1922)
Um artista da fome (1922-24)
A construção (1923)
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A Companhia das Letras iniciou, em 1997, a publicação das obras completas de Franz Ka a, com tradução de
Modesto Carone.
 
 
A meu Pai
ÍNDICE
 
 
 
 
O no o advogado
Um médico rural
Na galeria
Uma folha antiga
Diante da lei
Chacais e árabes
Uma visita à mina
A próxima aldeia
Uma mensagem imperial
A preocupação do pai de família
Onze lhos
Um atricídio
Um sonho
Um relatório para uma Academia
 
Posfácio, Modesto Carone
 
 
 
 
 
 
UM MÉDICO RURAL
 
 
 
 
 
 
O NOVO ADVOGADO
 
 
 
 

Temos um novo advogado, o dr. Bucéfalo. Seu exterior lembra pouco o tempo
em que ainda era o cavalo de batalha de Alexandre da Macedônia. Seja como for,
quem está familiarizado com as circunstâncias percebe alguma coisa. Não
obstante, faz pouco eu vi na escadaria até um o cial de justiça muito simples
admirar, com o olhar perito do pequeno freqüentador habitual das corridas de
cavalos, o advogado quando este, empinando as coxas, subia um a um os degraus
com um passo que ressoava no mármore.
Em geral a ordem dos advogados aprova a admissão de Bucéfalo. Com
espantosa perspicácia diz-se que, no ordenamento social de hoje, Bucéfalo está em
uma situação difícil e que, tanto por isso como também por causa do seu
signi cado na história universal, ele de qualquer modo merece boa vontade. Hoje
— isso ninguém pode negar — não existe nenhum grande Alexandre. É verdade
que muitos sabem matar; também não falta habilidade para atingir o amigo com a
lança sobre a mesa do banquete; e para muitos a Macedônia é estreita demais, a
ponto de amaldiçoarem Filipe, o pai — mas ninguém, ninguém, sabe guiar até a
Índia. Já naquela época as portas da Índia eram inalcançáveis, mas a direção delas
estava assinalada pela espada do rei. Hoje as portas estão deslocadas para um lugar
completamente diferente, mais longe e mais alto; ninguém mostra a direção;
muitos seguram espadas, mas só para brandi-las; e o olhar que quer segui-las se
confunde.
Talvez por isso o melhor realmente seja, como Bucéfalo fez, mergulhar nos
códigos. Livre, sem a pressão do lombo do cavaleiro nos ancos, sob a lâmpada
silenciosa, distante do fragor da batalha de Alexandre, ele lê e vira as folhas dos
nossos velhos livros.
 
 
 
 
 
 
UM MÉDICO RURAL
 
 
 
 

Eu estava num grande aperto: tinha diante de mim uma viagem urgente; um
doente grave me esperava numa aldeia a dez milhas de distância; forte nevasca
enchia o vasto espaço entre mim e ele; eu dispunha de um veículo leve, de rodas
grandes, exatamente como convém às nossas estradas do campo; envolto em peles,
a valise de instrumentos na mão, já estava no pátio pronto para a viagem; mas
faltava o cavalo, o cavalo. O meu tinha morrido na última noite extenuado pelo
excesso de esforço naquele inverno gelado; minha criada corria agora pela aldeia
tentando emprestar um; mas não havia perspectiva, eu o sabia, e cada vez mais
coberto de neve, cada vez mais imobilizado, eu permanecia ali, inútil. A moça
apareceu sozinha no portão do pátio e balançou a lanterna: naturalmente, quem
empresta agora o seu cavalo para uma viagem dessas? Percorri o pátio mais uma
vez; não via nenhuma possibilidade; distraído, atormentado, bati com o pé na
frágil porta da pocilga que já não era usada fazia anos. Ela se abriu, foi e voltou
estalando nos gonzos. Veio de dentro um bafo quente e um cheiro como que de
cavalos. Uma fosca lanterna de curral oscilava pendente de uma corda. Um
homem acocorado no cômodo baixo mostrou o rosto aberto e de olhos azuis.
— Devo atrelar? — perguntou, rastejando de quatro para fora.
Eu não soube o que dizer e me inclinei só para ver o que ainda havia na pocilga.
A criada estava ao meu lado.
— A gente não sabe as coisas que tem armazenadas na própria casa — disse ela
e nós dois rimos.
— Olá irmão, olá irmã! — bradou o cavalariço e dois cavalos, possantes animais
de ancos fortes, as pernas coladas ao corpo, baixando as cabeças bem formadas
como se fossem camelos, saíram um atrás do outro, impelidos só pela força dos
movimentos do tronco, através da abertura da porta que eles ocupavam por
completo.
Mas logo caram em pé, altos sobre as pernas, o corpo soltando um vapor
denso.
— Ajude-o — eu disse e a moça solícita se apressou em entregar os arreios do
carro ao rapaz da estrebaria.
Mal ela estava perto no entanto ele a agarra e comprime o rosto no dela. A
jovem dá um grito e se refugia em mim; duas leiras de dentes estão impressas em
vermelho na maçã do seu rosto.
— Animal! — grito furioso. — Você quer o chicote?
Mas logo me lembro que ele é um estranho, que não sei de onde vem e que me
ajuda espontaneamente onde todos os outros falham. Como se conhecesse meus
pensamentos, ele não leva a mal minha ameaça, mas apenas se volta para mim,
sempre lidando com os cavalos.
— Suba — diz ele.
Efetivamente está tudo pronto. Noto que nunca viajei com uma parelha tão
bonita e subo contente.
— uem dirige sou eu, você não sabe o caminho — eu digo.
— Sem dúvida — diz ele. — Mas eu não vou, co aqui com Rosa.
— Não! — grita Rosa e corre para a casa com o correto pressentimento da
inevitabilidade do seu destino.
Ouço retinir a corrente que ela põe na porta; escuto a lingüeta entrar na
fechadura; além disso vejo-a apagar na corrida todas as luzes do vestíbulo e dos
quartos que atravessa com o intuito de impedir que seja encontrada.
— Você vai junto — digo ao cavalariço — ou então desisto de viajar, por mais
urgente que seja. Não cogito em entregar a moça como preço pela viagem.
— Em frente! — diz ele.
Bate palmas; o veículo é arrastado como madeira na correnteza; ainda ouço
quando a porta da minha casa estrala e se espatifa ao assalto do cavalariço, depois
olhos e ouvidos são tomados por um zunido que penetra uniformemente todos os
meus sentidos. Mas por um instante apenas, pois como se diante do portão do
pátio se abrisse o pátio do meu doente, já estou lá; os cavalos estão quietos; a neve
parou de cair; o luar em volta; os pais do doente saem correndo da casa, a irmã
dele atrás; quase me arrancam do carro; não capto nada das falas confusas; no
quarto do doente o ar é quase irrespirável; negligenciada, a estufa fumega; vou
abrir a janela, mas primeiro quero ver o doente. Magro, sem febre, nem frio nem
quente, os olhos vazios, sem camisa, o jovem se ergue de debaixo do acolchoado,
pendura-se no meu pescoço, cochicha-me no ouvido:
— Doutor, deixe-me morrer.
Olho em torno; ninguém escutou; os pais mudos estão inclinados para a frente
e aguardam o meu veredicto; a irmã trouxe uma cadeira para a minha valise.
Abro-a e remexo nos instrumentos; da cama o jovem tateia sem cessar na minha
direção para me lembrar dos seus apelos; apanho uma pinça, examino-a à luz da
vela e ponho-a de volta no lugar.
— Sim — penso, blasfemando —, em casos como este os deuses ajudam,
enviam o cavalo que falta, em vista da pressa acrescentam um segundo, de quebra
ainda dão de presente o cavalariço.
Só agora Rosa me vem outra vez à mente; o que vou fazer, como vou salvá-la,
tirá-la das garras desse cavalariço, a dez milhas de distância, os cavalos
incontroláveis na frente do meu carro? Esses cavalos que agora de algum modo
afrouxaram as correias; que não sei como escancararam as janelas pelo lado de
fora; que en am cada qual a cabeça por uma janela e sem se perturbarem com a
gritaria da família contemplam o doente.
— Vou voltar imediatamente — penso, como se os cavalos me convidassem a
viajar; mas permito que a irmã, que imagina que estou anestesiado pelo calor, me
tire o casaco de pele.
Preparam um copo de rum para mim, o velho me dá um tapinha no ombro,
essa familiaridade se justi ca por ele me haver con ado o seu tesouro. Sacudo a
cabeça; eu me sentiria mal no estreito mundo do velho; só por esse motivo me
recuso a beber. A mãe está em pé ao lado da cama e me atrai com um sinal; eu
atendo e, enquanto um cavalo relincha forte para o teto, coloco a cabeça no peito
do jovem, que se arrepia ao toque da minha barba úmida. Con rma-se o que sei:
o rapaz está são, a circulação do sangue funciona um pouco mal, ele está
encharcado de café dado pela mãe ansiosa, mas são: o melhor seria tirá-lo com um
tranco da cama. Não sou reformador do mundo, por isso deixo-o deitado. Sou
médico contratado pelo distrito e cumpro o meu dever até o limite, até o ponto
em que isso quase se torna um excesso. Mal pago, sou no entanto generoso e
solícito em relação aos pobres. Tenho ainda de cuidar de Rosa, além disso o jovem
pode estar com a razão e também eu quero morrer. O que estou fazendo aqui
neste inverno interminável? Meu cavalo morreu e na aldeia não há ninguém que
me empreste o seu. Preciso tirar minha parelha da pocilga; se por acaso não
fossem cavalos eu teria de viajar puxado por porcas. Assim é. E aceno com a
cabeça para a família. Eles não sabem de nada e se soubessem não acreditariam.
Escrever receitas é fácil, mas entender-se no resto com as pessoas é difícil. Bem,
minha visita estaria terminada aqui, outra vez me chamaram sem necessidade,
estou acostumado com isso, o distrito inteiro me martiriza valendo-se da sineta
para os chamados à noite; mas que desta vez eu ainda tivesse de sacri car Rosa,
essa bela moça que durante anos viveu na minha casa quase sem que eu a
percebesse — esse sacrifício é grande demais e preciso de algum modo fazer com
que isso entre na minha cabeça por meio de so smas, a m de não partir correndo
para cima dessa família que nem com a melhor boa vontade pode me devolver
Rosa. Mas quando fecho a valise e aceno pedindo o meu casaco de pele, a família
está reunida, o pai cheirando o copo de rum que tem na mão, a mãe,
provavelmente decepcionada comigo — mas o que é que as pessoas esperam? —,
mordendo os lábios, os olhos cheios de lágrimas, a irmã agitando um lenço
empapado de sangue, eu estou de algum modo disposto a admitir, quem sabe, que
o jovem talvez esteja de fato doente. Dirijo-me até ele, ele sorri para mim como se
eu lhe estivesse levando a mais vigorosa das sopas — ah, agora relincham os dois
cavalos; o ruído com certeza deve, ordenado por uma esfera superior, facilitar o
exame — e então descubro: sim, o jovem está doente. No seu lado direito, na
região dos quadris, abriu-se uma ferida grande como a palma da mão. Cor-de-
rosa, em vários matizes, escura no fundo, tornando-se clara nas bordas,
delicadamente granulada, com o sangue coagulado de forma irregular, aberta
como a boca de uma mina à luz do dia. Assim parece à distância. De perto mostra
mais uma complicação. uem pode olhar para isso sem dar um leve assobio?
Vermes da grossura e comprimento do meu dedo mínimo, rosados por natureza e
além disso salpicados de sangue, reviram-se para a luz, presos no interior da ferida,
com cabecinhas brancas e muitas perninhas. Pobre rapaz, não é possível ajudá-lo.
Descobri sua grande ferida; essa or no seu anco vai arruiná-lo. A família está
feliz, ela me vê em atividade; a irmã o diz à mãe, a mãe ao pai, o pai a algumas
visitas que, na ponta dos pés, equilibrando-se de braços estendidos, entram pelo
luar da porta aberta.
— Você vai me salvar? — sussurra o jovem soluçando, totalmente ofuscado
pela vida na sua ferida.
Assim são as pessoas na minha região. Sempre exigindo o impossível do
médico. Perderam a antiga fé; o pároco ca sentado em casa des ando uma a uma
as vestes litúrgicas; mas o médico deve dar conta de tudo com sua delicada mão de
cirurgião. Bem, como quiserem: não me ofereci; se abusam de mim visando a
objetivos sagrados deixo que também isso aconteça comigo; o que mais desejo de
melhor, eu, velho médico rural a quem roubaram a criada? E eles vêm, a família e
os anciãos da aldeia, e me despem; um coro de escola, professor à frente, está
diante da casa e canta uma melodia extremamente simples com a letra:
 
Dispam-no e ele curará!
E se não curar, matem-no!
É apenas um médico, apenas um médico!
 
Estou então sem roupa e, os dedos na barba, a cabeça inclinada, olho com
tranqüilidade as pessoas. Completamente composto e superior a todos,
permaneço assim embora isso não me ajude em nada, pois elas agora me pegam
pela cabeça e pelos pés e me carregam para a cama. Colocam-me junto à parede,
do lado da ferida. Depois saem todos do quarto; a porta é fechada; o canto
emudece; nuvens cobrem a lua; em torno de mim a coberta está quente; as
cabeças dos cavalos balançam como sombras nos vãos das janelas.
— Sabe de uma coisa? — ouço dizerem no meu ouvido. — Tenho muito pouca
con ança em você. Atiraram-no aqui de algum lugar, você não veio por vontade
própria. Em vez de me socorrer, está tornando mais estreito o meu leito de morte.
O que eu mais gostaria de fazer seria arrancar os seus olhos.
— Você está certo — digo. — É uma vergonha. Mas eu sou médico. O que
devo fazer? Acredite: para mim também não é fácil.
— Devo me contentar com essa desculpa? Ah, certamente que sim. Tenho
sempre de me contentar. Vim ao mundo com uma bela ferida; foi esse todo o meu
dote.
— Jovem amigo — digo — o seu erro é: você não tem visão das coisas. Eu, que
já estive em todos os quartos de doentes, por toda parte, eu lhe digo: sua ferida
não é assim tão má. Aberta com dois golpes de machado em ângulo agudo.
Muitos oferecem o anco e quase não ouvem o machado na mata, muito menos
que ele se aproxima.
— É realmente assim ou na febre você me engana?
— É realmente assim, aceite a palavra de honra de um médico o cial.
Ele aceitou e cou em silêncio. Mas já era hora de pensar na minha salvação.
Fiéis, os cavalos ainda permaneciam nos seus lugares. Roupas, pele e valise foram
rapidamente reunidas; eu não queria perder tempo me vestindo; se os cavalos se
apressassem como na viagem da vinda, eu de certo modo saltava desta cama para a
minha. Obediente, um cavalo se afastou da janela; atirei a trouxa dentro do
veículo; o casaco de pele voou longe demais e cou preso só por uma manga num
gancho. Era o su ciente. Subi de um salto no cavalo. As rédeas deslizando soltas,
um cavalo quase desligado do outro, o carro rodando atrás aos trancos, por último
a pele arrastando na neve.
— Em frente! — eu disse, mas eles não foram a galope.
Devagar como homens velhos trilhamos o deserto de neve; durante muito
tempo soou atrás de nós a canção nova mas equivocada do coro das crianças:
 
Alegrai-vos, ó pacientes,
O médico foi posto na ossa cama!
 
Assim nunca vou chegar em casa; meu próspero consultório está perdido; um
sucessor me rouba, mas sem proveito, pois não pode me substituir; em minha casa
se enfurece o asqueroso cavalariço; Rosa é sua vítima; mas não quero pensar nisso.
Nu, exposto à geada desta época desafortunada, com um carro terrestre e cavalos
não-terrenos, vou — um velho — vagando. Meu casaco de pele pende atrás da
carroça, mas não posso alcançá-lo e ninguém na móvel canalha dos pacientes
mexe um dedo. Fui enganado! Enganado! Uma vez atendido o alarme falso da
sineta noturna — não há mais o que remediar, nunca mais.
 
 
 
 
 
 
NA GALERIA
 
 
 
 

Se alguma amazona frágil e tísica fosse impelida meses sem interrupção em


círculos ao redor do picadeiro sobre o cavalo oscilante diante de um público
infatigável pelo diretor de circo impiedoso de chicote na mão, sibilando em cima
do cavalo, atirando beijos, equilibrando-se na cintura, e se esse espetáculo
prosseguisse pelo futuro que se vai abrindo à frente sempre cinzento sob o
bramido incessante da orquestra e dos ventiladores, acompanhado pelo aplauso
que se esvai e outra vez se avoluma das mãos que na verdade são martelos a vapor
— talvez então um jovem espectador da galeria descesse às pressas a longa escada
através de todas as las, se arrojasse no picadeiro e bradasse o basta! em meio às
fanfarras da orquestra sempre pronta a se ajustar às situações.
Mas uma vez que não é assim, uma bela dama em branco e vermelho entra
voando por entre as cortinas que os orgulhosos criados de libré abrem diante dela;
o diretor, buscando abnegadamente os seus olhos respira voltado para ela numa
postura de animal el; ergue-a cauteloso sobre o alazão como se fosse a neta
amada acima de tudo que parte para uma viagem perigosa; não consegue se
decidir a dar o sinal com o chicote; a nal dominando-se ele o dá com um estalo;
corre de boca aberta ao lado do cavalo; segue com olhar agudo os saltos da
amazona; mal pode entender sua destreza; procura adverti-la com exclamações
em inglês; furioso exorta os palafreneiros que seguram os arcos à atenção mais
minuciosa; as mãos levantadas, implora à orquestra para que faça silêncio antes do
grande salto mortal; nalmente alça a pequena do cavalo trêmulo, beija-a nas duas
faces e não considera su ciente nenhuma homenagem do público; enquanto ela
própria, sustentada por ele, na ponta dos pés, envolta pela poeira, de braços
estendidos, a cabecinha inclinada para trás, quer partilhar sua felicidade com o
circo inteiro — uma vez que é assim o espectador da galeria apóia o rosto sobre o
parapeito e, afundando na marcha nal como num sonho pesado, chora sem o
saber.
 
 
 
 
 
 
UMA FOLHA ANTIGA
 
 
 
 

É como se muita coisa tivesse sido negligenciada na defesa da nossa pátria. Até
então não havíamos nos importado com isso, entregues como estávamos ao nosso
trabalho; mas os acontecimentos dos últimos tempos nos causam preocupações.
Tenho uma o cina de sapateiro na praça em frente ao palácio imperial. Mal
abro a porta no crepúsculo da manhã e já vejo ocupadas por homens armados as
entradas de todas as ruas que con uem para cá. Mas não são soldados nossos e sim
nômades vindos evidentemente do norte. De uma maneira incompreensível para
mim eles penetraram até a capital, que no entanto ca muito distante da
fronteira. Seja como for já estão aí; parece que a cada manhã se tornam mais
numerosos.
Seguindo sua natureza eles acampam a céu aberto, pois abominam as casas.
Ocupam-se em a ar as espadas, aguçar as lanças e praticar exercícios a cavalo.
Fizeram desta praça tranqüila, mantida sempre escrupulosamente limpa, uma
autêntica estrebaria. É verdade que nós tentamos às vezes sair às pressas das nossas
lojas para retirar pelo menos o grosso da sujeira, mas isso ocorre com uma
freqüência cada vez menor, pois o esforço é inútil e além disso corremos o perigo
de cair sob as patas dos cavalos selvagens e de ser feridos pelos chicotes.
Com os nômades não se pode falar. Eles não conhecem a nossa língua, na
realidade quase não têm um idioma próprio. Entendem-se entre si de um modo
semelhante ao das gralhas. Ouve-se sem cessar esse grito de gralhas. Para eles nossa
maneira de viver, nossas instituições são tão incompreensíveis quanto
indiferentes. Conseqüentemente recusam qualquer linguagem de sinais. Você
pode deslocar as mandíbulas e destroncar as mãos que eles não o compreendem
nem nunca irão compreender. Muitas vezes fazem caretas; mostram então o
branco dos olhos e a baba cresce na boca, mas com isso não querem dizer alguma
coisa nem assustar ninguém; fazem-no porque é essa a sua maneira de ser. Aquilo
de que precisam eles pegam. Não se pode a rmar que empreguem a violência.
Ante a sua intervenção as pessoas se põem de lado e deixam tudo para eles.
Também das minhas provisões eles levaram uma boa parte. Mas não posso me
queixar quando vejo por exemplo o que acontece ao açougueiro em frente. Mal
ele traz as suas mercadorias, tudo já lhe foi tirado e engolido pelos nômades. Os
cavalos deles também comem carne; muitas vezes um cavaleiro ca ao lado do seu
cavalo e os dois se alimentam da mesma posta de carne, cada qual por uma
extremidade. O açougueiro é medroso e não ousa acabar com o fornecimento.
Mas nós entendemos o que se passa, recolhemos dinheiro e o ajudamos. Se os
nômades não recebessem carne, quem é que sabe o que lhes ocorreria fazer? De
qualquer maneira quem é que sabe o que lhes vai ocorrer, ainda que recebam
carne diariamente?
Não faz muito o açougueiro pensou que podia ao menos se poupar do esforço
do abate e uma manhã trouxe um boi vivo. Isso não deve se repetir. Fiquei bem
uma hora estendido no fundo da o cina com todas as roupas, cobertas e
almofadas empilhadas em cima de mim para não ouvir os mugidos do boi que os
nômades atacavam de todos os lados para arrancar com os dentes pedaços de sua
carne quente. uando me atrevi a sair já fazia silêncio há muito tempo; como
bêbados em torno de um barril de vinho eles estavam deitados mortos de cansaço
em torno dos restos do boi.
Justamente nessa época acreditei ter visto o imperador em pessoa numa janela
do palácio; em geral ele nunca vem a esses aposentos externos, vive sempre no
mais interno dos jardins; mas desta vez, pelo menos assim me pareceu, ele estava
em pé junto a uma das janelas olhando de cabeça baixa o movimento diante do
seu castelo.
— O que irá acontecer? — todos nós nos perguntamos. — uanto tempo
vamos suportar esse peso e tormento? O palácio imperial atraiu os nômades mas
não é capaz de expulsá-los. Os portões permanecem fechados; a guarda, que antes
entrava e saía marchando festivamente, mantém-se atrás de janelas gradeadas. A
nós, artesãos e comerciantes, foi con ada a salvação da pátria; mas não estamos à
altura de uma tarefa dessas, nem jamais nos vangloriamos de estar. É um equívoco
e por causa dele vamos nos arruinar.
 
 
 
 
 
 
DIANTE DA LEI
 
 
 
 

Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo chega a esse porteiro e


pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a
entrada. O homem do campo re ete e depois pergunta se então não pode entrar
mais tarde.
— É possível — diz o porteiro. — Mas agora não.
Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta e o porteiro se põe de
lado o homem se inclina para olhar o interior através da porta. uando nota isso
o porteiro ri e diz:
— Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu
sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala porém
existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso
suportar a simples visão do terceiro.
O homem do campo não esperava tais di culdades: a lei deve ser acessível a
todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao examinar mais de perto o
porteiro, com o seu casaco de pele, o grande nariz pontudo, a longa barba tártara,
rala e preta, ele decide que é melhor aguardar até receber a permissão de entrada.
O porteiro lhe dá um banquinho e deixa-o sentar-se ao lado da porta. Ali ca
sentado dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido e cansa o porteiro
com os seus pedidos. Às vezes o porteiro submete o homem a pequenos
interrogatórios, pergunta-lhe a respeito da sua terra natal e de muitas outras
coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que os grandes senhores fazem, e
para concluir repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem,
que havia se equipado com muitas coisas para a viagem, emprega tudo, por mais
valioso que seja, para subornar o porteiro. Com efeito, este aceita tudo, mas
sempre dizendo:
— Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa.
Durante todos esses anos o homem observa o porteiro quase sem interrupção.
Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a
entrada na lei. Nos primeiros anos amaldiçoa em voz alta e desconsiderada o acaso
infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga consigo mesmo. Torna-se
infantil e uma vez que, por estudar o porteiro anos a o, cou conhecendo até as
pulgas da sua gola de pele, pede a estas que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião.
Finalmente sua vista enfraquece e ele não sabe se de fato está cando mais escuro
em torno ou se apenas os olhos o enganam. Não obstante reconhece agora no
escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais
muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências daquele tempo
convergem na sua cabeça para uma pergunta que até então não havia feito ao
porteiro. Faz-lhe um aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o
corpo enrijecido. O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a
diferença de altura mudou muito em detrimento do homem:
— O que é que você ainda quer saber? — pergunta o porteiro. — Você é
insaciável.
— Todos aspiram à lei — diz o homem. — Como se explica que em tantos
anos ninguém além de mim pediu para entrar?
O porteiro percebe que o homem já está no m e para ainda alcançar sua
audição em declínio ele berra:
— Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só
a você. Agora eu vou embora e fecho-a.
 
 
 
 
 
 
CHACAIS E ÁRABES
 
 
 
 

Estávamos acampados no oásis. Os companheiros dormiam. O vulto alto e


branco de um árabe passou por mim; ele tinha cuidado dos camelos e caminhava
até o lugar onde dormia.
Lancei-me de costas na relva; queria dormir; não conseguia; o uivo lamentoso
de um chacal à distância; sentei-me outra vez. E o que estivera tão longe estava de
repente perto. Chacais fervilhavam em torno de mim: olhos de ouro fosco
brilhando e se extinguindo, corpos esguios como que movidos em ritmo regular e
lépido por um chicote.
Um deles veio lá de trás, abriu caminho sob o meu braço, colado a mim como
se necessitasse do meu calor, depois cou à minha frente e, olho no olho, me
falou:
— Sou o mais velho dos chacais em toda a redondeza. Estou contente em
poder saudá-lo ainda aqui. Já tinha quase perdido a esperança, pois esperamos por
você um tempo in ndável; minha mãe esperou, a mãe dela esperou e assim todas
as mães, até chegar à mãe de todos os chacais. Acredite em mim.
— Isso me deixa admirado — disse eu, esquecendo de acender a pilha de lenha
que estava preparada para manter com a sua fumaça os chacais à distância. —
Admira-me muito ouvir isso. É só por acaso que venho do norte distante e estou
fazendo uma curta viagem. O que vocês querem, chacais?
Como que encorajados por essa fala talvez demasiado amável eles formaram um
círculo mais estreito ao meu redor; todos tinham a respiração curta e resfolegante.
— Sabemos que você vem do norte — começou o mais velho — e é nisso que
se funda a nossa esperança. Lá existe a capacidade de compreensão que não se
pode encontrar aqui entre os árabes. Dessa fria altivez, você sabe, não pode saltar
nenhuma centelha de compreensão. Eles matam animais para comê-los e
desprezam a carniça.
— Não fale tão alto — disse eu —, há árabes dormindo por perto.
— Você é realmente um estrangeiro — disse o chacal. — Se não fosse, saberia
que nunca na história do mundo um chacal teve medo de um árabe. Deveríamos
ter medo deles? Não é desgraça su ciente termos sido jogados no meio de um
povo como esse?
— Pode ser, pode ser — disse eu —, não me atrevo a julgar coisas que estão tão
distantes de mim; parece ser uma disputa muito antiga; seguramente está no
sangue e talvez por isso só termine com sangue.
— Você é muito sagaz — disse o velho chacal e todos respiraram mais célere
ainda, com os pulmões excitados, embora todos eles estivessem parados; um
cheiro amargo, só suportável por momentos com os dentes cerrados, uía das
bocarras abertas. — Você é muito sagaz; o que diz corresponde à nossa velha
doutrina. Tiramos-lhes pois o sangue e a disputa acaba.
— Oh — disse eu com mais veemência do que queria — eles irão se defender;
irão abatê-los a tiros aos montes com os seus ri es.
— Você nos interpreta mal — disse ele — segundo a maneira dos homens, que
persiste também no norte distante. Sem dúvida nós não iremos matá-los. O Nilo
não teria água su ciente para nos puri car. Já diante da mera aparição de seus
corpos vivos partimos às pressas para um ar mais puro, para o deserto, que por
essa razão é o nosso lar.
E todos os chacais em volta, aos quais nesse ínterim haviam se juntado muitos
outros vindos de longe, afundaram as cabeças entre as pernas dianteiras,
limpando-as com as patas; era como se quisessem ocultar uma antipatia tão
terrível que eu teria preferido escapar do seu círculo com um grande salto.
— Então o que vocês pretendem fazer? — perguntei e quis me levantar, mas
não pude; dois animais jovens haviam cravado os dentes com rmeza na parte de
trás do meu casaco e da minha camisa; tive de permanecer sentado.
— Eles estão segurando a cauda do seu vestido — disse o velho chacal num tom
de esclarecimento e seriedade. — É um testemunho de respeito!
— Eles precisam me soltar! — bradei voltado ora para o velho, ora para os
jovens chacais.
— É evidente que eles irão fazê-lo — disse o velho chacal — se você o exige.
Mas demora um pouco, pois, seguindo o costume, eles morderam fundo e têm
que abrir lentamente os dentes. Enquanto isso ouça o nosso pedido.
— O comportamento de vocês não me torna muito receptivo — disse eu.
— Não nos faça pagar por nossa falta de jeito — disse e pela primeira vez
recorreu à ajuda do tom lamentoso da sua voz natural. — Somos pobres animais,
temos apenas os dentes; para tudo o que queremos fazer, o bem e o mal, só nos
restam os dentes.
— O que então você quer? — perguntei apenas um pouco aplacado.
— Senhor — exclamou e todos os chacais uivaram; na distância mais remota
parecia ser uma melodia. — Senhor, deve acabar com a disputa que divide o
mundo em dois. Nossos antepassados descreveram aquele que irá fazê-lo assim
como você é. Precisamos de paz com os árabes, de ar respirável; puri cada da
presença deles a vista em torno do horizonte; nenhum grito de lamúria de um
carneiro que o árabe esfaqueia; todos os animais devem morrer tranqüilamente,
bebidos por nós sem transtorno ao ponto de carem vazios e limpos até os ossos.
Limpeza, nada mais que limpeza é o que nós queremos — e aí todos choraram e
soluçaram. — Como suporta viver neste mundo, ó nobre coração, doces
entranhas? A sujeira é o branco deles, a sujeira o seu preto; um horror a sua barba;
é preciso cuspir à vista do canto dos seus olhos; e se erguem o braço, o inferno se
abre na sua axila. Por isso, senhor, por isso, ó caro senhor, com a ajuda dessas mãos
que tudo podem, com a ajuda de suas mãos que tudo podem, corte-lhes de lado a
lado os pescoços com esta tesoura!
E acompanhando uma guinada da sua cabeça apareceu um chacal que trazia
num dente canino uma pequena tesoura de costura coberta de ferrugem antiga.
— Finalmente a tesoura — e com isto basta! — bradou o chefe árabe da nossa
caravana que havia se esgueirado contra o vento até nós e nesse momento brandia
seu gigantesco chicote.
Todos os chacais se dispersaram o mais rápido possível, mas caram a alguma
distância, agachados bem perto uns dos outros — tantos, tão juntos e tão parados
que pareciam uma sebe estreita à cuja volta voassem fogos-fátuos.
— Então, senhor, viu e ouviu também esse espetáculo! — disse o árabe e riu
com a alegria que a discrição da sua estirpe permitia.
— Você sabe o que os animais querem? — perguntei.
— Naturalmente, senhor — disse ele. — Isso é do conhecimento de todos;
enquanto existirem árabes, essa tesoura vai peregrinar pelo deserto e andar
conosco até o m dos nossos dias. Ela é oferecida a todo europeu para realizar a
grande obra; todo europeu é justamente aquele que lhes parece convocado para
isso. Esses animais têm uma esperança absurda; são loucos, verdadeiros loucos.
Por isso nós os amamos; são nossos cães — mais belos que os de vocês. Veja, um
camelo morreu durante a noite, mandei que o trouxessem para cá.
uatro carregadores chegaram e atiraram o pesado cadáver diante de nós. Mal
ele jazia ali os chacais levantaram suas vozes. Como que puxados irresistivelmente
por cordas, cada um deles veio se aproximando, com paradas no meio do
caminho, o corpo rastejando no chão. Tinham esquecido os árabes, esquecido o
ódio, fascinava-os a presença do corpo que exalava um cheiro forte e obliterava
tudo. Um deles já se pendurava no pescoço e encontrava a jugular com a primeira
mordida. Como uma pequena bomba frenética que quer apagar um incêndio
poderoso de uma maneira tão absoluta quanto sem perspectiva, cada músculo do
seu corpo se estirava e contraía no respectivo lugar. E logo todos se amontoavam
sobre o cadáver fazendo o mesmo trabalho.
Então o chefe da caravana vibrou com energia o chicote em todos os sentidos
sobre eles. Os chacais ergueram as cabeças, meio ébrios e meio desmaiados; viram
os árabes em pé diante deles; começaram então a sentir o chicote com os
focinhos; recuaram num salto e correram um trecho para trás. Mas o sangue do
camelo já se espalhava em poças e fumegava, o corpo estava escancarado em vários
lugares. Não conseguiram resistir; estavam de novo ali; o chefe árabe ergueu outra
vez o chicote; segurei seu braço.
— Tem razão — disse ele. — Vamos deixá-los no seu ofício; é hora de levantar
acampamento. Você os viu. Animais maravilhosos, não é verdade? E como nos
odeiam!
 
 
 
 
 
 
UMA VISITA À MINA
 
 
 
 

Hoje os engenheiros que ocupam altos postos estiveram embaixo conosco. A


direção expediu alguma ordem de escavar novas galerias e então os engenheiros
vieram realizar as medições preliminares. Como essas pessoas são jovens e no
entanto tão diferentes uma da outra! Todas elas se desenvolveram livremente e já
nos anos de juventude se mostra desembaraçada sua natureza claramente de nida.
Um, de cabelos pretos, vivaz, passa os olhos sobre tudo.
Um segundo, com um caderno de notas, faz anotações andando, olha em volta,
compara, registra.
Um terceiro, as mãos nos bolsos do casaco, de tal forma que tudo nele se estica,
anda ereto; mantém a dignidade; só no contínuo morder dos lábios se manifesta a
juventude impaciente, irreprimível.
Um quarto dá ao terceiro explicações que este não pediu; menor que ele,
caminha a seu lado como um agente da tentação; com o dedo indicador sempre
no ar parece recitar-lhe uma ladainha sobre tudo o que se pode ver aqui.
Um quinto, talvez o de nível mais alto, não tolera companhia; ora está na
frente, ora atrás; o grupo acerta o passo pelo seu; é lívido e fraco; a
responsabilidade esvaziou os seus olhos; muitas vezes comprime, ao pensar, a mão
na testa.
O sexto e o sétimo andam um pouco vergados, cabeça perto da cabeça, braço
no braço, numa conversa con dencial; se aqui não fosse declaradamente nossa
mina de carvão e nosso local de trabalho na galeria mais profunda, seria possível
acreditar que estes senhores ossudos, sem barba, nariz em forma de tubérculo, são
jovens clérigos. A maioria das vezes um deles ri para dentro com um ronronar
parecido com o de um gato; o outro, igualmente sorrindo, comanda a conversa e
com a mão livre marca um certo compasso. Como esses dois senhores devem estar
seguros do seu posto, que créditos já devem ter conquistado em relação à mina
apesar da sua juventude, uma vez que numa vistoria tão importante assim eles
podem, sob o olhar do chefe, se ocupar de forma tão resoluta de assuntos pessoais
ou pelo menos de questões que não estão relacionadas com a tarefa do momento!
Ou será possível que apesar de todo o riso e de toda a desatenção eles notam
muito bem o que é necessário? Sobre esses senhores a gente mal ousa emitir um
juízo de nido.
Por outro lado porém é fora de dúvida que o oitavo está incomparavelmente
mais atento ao caso do que estes senhores — na verdade, mais do que todos os
outros. Ele tem de tocar tudo e — com um pequeno martelo que tira sem parar
do bolso e sempre volta a guardar lá — de bater em tudo. Às vezes, a despeito da
roupa elegante, ajoelha-se na sujeira e bate com o martelo no chão; depois,
enquanto anda, bate nas paredes ou no teto em cima da sua cabeça. Uma vez
deitou-se de comprido e ali cou, quieto; já pensávamos que tinha acontecido um
infortúnio; mas aí ele cou em pé de um salto, com um breve estremecimento do
corpo esbelto. Tinha portanto apenas feito mais uma veri cação. Cremos
conhecer nossa mina e suas pedras, mas o que esse engenheiro sem parar examina
aqui dessa forma é incompreensível para nós.
Um nono empurra uma espécie de carrinho de bebê no qual se encontram os
aparelhos de medição. Aparelhos extremamente preciosos, assentados fundo no
algodão mais delicado. Na verdade quem devia empurrar o carrinho era o
servente, mas isso não lhe é con ado, precisou vir um engenheiro e ele o empurra
com prazer, como se vê. É certamente o mais jovem deles, talvez ainda não
entenda todos os aparelhos, mas seu olhar pousa continuamente neles e desse
modo corre muitas vezes o perigo de bater numa parede com o carrinho.
Mas existe um outro engenheiro que caminha ao lado do carrinho e impede
que isso aconteça. É evidente que este entende a fundo dos aparelhos, parecendo
ser seu verdadeiro guardião. De tempos em tempos ele retira uma peça dos
aparelhos sem deter o carrinho, olha por dentro dela, parafusa ou desparafusa,
sacode e bate, segura junto ao ouvido e escuta; nalmente, enquanto na maioria
das vezes o condutor do carrinho ca parado, ele recoloca no lugar com todo o
cuidado a pequena coisa quase invisível à distância. Esse engenheiro é um pouco
autoritário, mas só em nome dos aparelhos. Dez passos antes de chegar o carrinho
já devemos nos esquivar a um silencioso sinal de dedo, mesmo que não haja lugar
para onde se desviar.
Atrás desses dois senhores anda o desocupado servente. Como é natural para os
que possuem um saber tão grande, faz muito tempo que os senhores se des zeram
de toda a arrogância, mas ao contrário deles o servente parece tê-la reunido na sua
pessoa. Com uma mão nas costas, a outra na frente, alisando seus botões dourados
ou o no tecido do seu casaco de libré, ele às vezes acena com a cabeça para a
direita e para a esquerda, como se nós tivéssemos cumprimentado e ele
respondesse, ou então como se ele assumisse que tivéssemos cumprimentado mas
ele, das suas alturas, não pudesse constatar. Naturalmente nós não o
cumprimentamos, mas ao vê-lo, quase se poderia crer que é algo prodigioso ser
servente do escritório da direção da mina. Seja como for, rimos nas suas costas,
mas uma vez que nem mesmo um raio poderia fazer com que se voltasse para nós,
ele continua sendo algo incompreensível no espaço da nossa estima.
Hoje não se vai trabalhar muito mais; a interrupção foi muito generosa; uma
visita dessas leva embora qualquer idéia de trabalhar. É tentador demais
acompanhar, com a vista, os senhores no escuro da galeria experimental onde eles
todos sumiram. O nosso turno de trabalho também chega logo ao m; não vamos
mais assistir à volta dos senhores.
 
 
 
 
 
 
A PRÓXIMA ALDEIA
 
 
 
 

Meu avô costumava dizer: “A vida é espantosamente curta. Para mim ela agora
se contrai tanto na lembrança que eu por exemplo quase não compreendo como
um jovem pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia sem temer que — totalmente
descontados os incidentes desditosos — até o tempo de uma vida comum que
transcorre feliz não seja nem de longe su ciente para uma cavalgada como essa”.
 
 
 
 
 
 
UMA MENSAGEM IMPERIAL
 
 
 
 

O imperador — assim consta — enviou a você, o só, o súdito lastimável, a


minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol imperial,
exatamente a você o imperador enviou do leito de morte uma mensagem. Fez o
mensageiro se ajoelhar ao pé da cama e segredou-lhe a mensagem no ouvido;
estava tão empenhado nela que o mandou ainda repeti-la no seu próprio ouvido.
Com um aceno de cabeça con rmou a exatidão do que tinha sido dito. E perante
todos os que assistem à sua morte — todas as paredes que impedem a vista foram
derrubadas e nas amplas escadarias que se lançam ao alto os grandes do reino
formam um círculo —, perante todos eles o imperador despachou o mensageiro.
Este se pôs imediatamente em marcha; é um homem robusto, infatigável;
estendendo ora um, ora o outro braço, ele abre caminho na multidão; quando
encontra resistência aponta para o peito onde está o símbolo do sol; avança fácil
como nenhum outro. Mas a multidão é tão grande, suas moradas não têm m.
Fosse um campo livre que se abrisse, como ele voaria! — e certamente você logo
ouviria a esplêndida batida dos seus punhos na porta. Ao invés disso porém —
como são vãos os seus esforços; continua sempre forçando a passagem pelos
aposentos do palácio mais interno; nunca irá ultrapassá-los; e se o conseguisse
nada estaria ganho: teria de percorrer os pátios de ponta a ponta e depois dos
pátios o segundo palácio que os circunda; e outra vez escadas e pátios; e
novamente um palácio; e assim por diante, durante milênios; e se a nal ele se
precipitasse do mais externo dos portões — mas isso não pode acontecer jamais,
jamais — só então ele teria diante de si a cidade-sede, o centro do mundo, repleto
da própria borra amontoada. Aqui ninguém penetra; muito menos com a
mensagem de um morto. — Você no entanto está sentado junto à janela e sonha
com ela quando a noite chega.
 
 
 
 
 
 
A PREOCUPAÇÃO DO
PAI DE FAMÍLIA*
 
 
 
 

Alguns dizem que a palavra Odradek deriva do eslavo e com base nisso
procuram demonstrar a formação dela. Outros por sua vez entendem que deriva
do alemão, tendo sido apenas in uenciada pelo eslavo. Mas a incerteza das duas
interpretações permite concluir, sem dúvida com justiça, que nenhuma delas
procede, sobretudo porque não se pode descobrir através de nenhuma um sentido
para a palavra.
Naturalmente ninguém se ocuparia de estudos como esses se de fato não
existisse um ser que se chama Odradek. À primeira vista ele tem o aspecto de um
carretel de linha achatado e em forma de estrela, e com efeito parece também
revestido de os; de qualquer modo devem ser só pedaços de linha rebentados,
velhos, atados uns aos outros, além de emaranhados e de tipo e cor os mais
diversos. Não é contudo apenas um carretel, pois do centro da estrela sai uma
varetinha e nela se encaixa depois uma outra, em ângulo reto. Com a ajuda desta
última vareta de um lado e de um dos raios da estrela do outro, o conjunto é capaz
de permanecer em pé como se estivesse sobre duas pernas.
Alguém poderia car tentado a acreditar que essa construção teria tido
anteriormente alguma forma útil e que agora ela está apenas quebrada. Mas não
parece ser este o caso; pelo menos não se encontra nenhum indício nesse sentido;
em parte alguma podem ser vistas emendas ou rupturas assinalando algo dessa
natureza; o todo na verdade se apresenta sem sentido, mas completo à sua
maneira. Aliás não é possível dizer nada mais preciso a esse respeito, já que
Odradek é extraordinariamente móvel e não se deixa capturar.
Ele se detém alternadamente no sótão, na escadaria, nos corredores, no
vestíbulo. Às vezes ca meses sem ser visto; com certeza mudou-se então para
outras casas; depois porém volta infalivelmente à nossa casa. Às vezes, quando se
sai pela porta e ele está inclinado sobre o corrimão logo embaixo, tem-se vontade
de interpelá-lo. É natural que não se façam perguntas difíceis, mas sim que ele seja
tratado — já o seu minúsculo tamanho induz a isso — como uma criança. “Como
você se chama?”, pergunta-se a ele. “Odradek”, ele responde. “E onde você mora?”
“Domicílio incerto”, diz e ri; mas é um riso como só se pode emitir sem pulmões.
Soa talvez como o farfalhar de folhas caídas. Em geral com isso a conversa
termina. Aliás mesmo essas respostas nem sempre podem ser obtidas; muitas
vezes ele se conserva mudo por muito tempo como a madeira que parece ser.
Inutilmente eu me pergunto o que vai acontecer com ele. Será que pode
morrer? Tudo o que morre teve antes uma espécie de meta, um tipo de atividade e
nela se desgastou; não é assim com Odradek. Será então que a seu tempo ele ainda
irá rolar escada abaixo diante dos pés dos meus lhos e dos lhos dos meus lhos,
arrastando atrás de si os os do carretel? Evidentemente ele não prejudica
ninguém, mas a idéia de que ainda por cima ele deva me sobreviver me é quase
dolorosa.
 
 
 
 
 
1 Esta tradução foi bene ciada tanto por soluções encontradas por Roberto Schwarz, quanto pela original
interpretação que deu a este texto. V. O pai de família e outros estudos, Paz e Terra, 1979, p. 21 e ss.
 
 
 
 
 
 
ONZE FILHOS
 
 
 
 

Tenho onze lhos.


O primeiro é exteriormente muito pouco apresentável, mas sério e sagaz; apesar
disso — se bem que como lho eu o ame como a todos os outros — não o tenho
em alta estima. Sua maneira de pensar me parece simples demais. Não olha nem à
direita, nem à esquerda, nem à distância; corre sem cessar em torno do seu
pequeno círculo de idéias, ou antes: ca girando.
O segundo é bonito, esbelto, bem constituído; encanta vê-lo na postura de
esgrimista. Também ele é esperto, mas além disso tem experiência do mundo; viu
muita coisa e por esse motivo até a natureza da terra natal parece falar com ele
mais con ante do que com os que nela permaneceram. Certamente porém essa
vantagem não se deve apenas e nem mesmo em essência às viagens; ela faz parte,
antes, do que há de inimitável neste lho, o que é reconhecido, por exemplo, por
qualquer um que queira imitar seu salto de trampolim com múltiplas
cambalhotas e no entanto um domínio francamente selvagem. Até a borda do
trampolim bastam a coragem e a vontade, mas ali, ao invés de saltar, o imitador de
repente pára e ergue os braços se desculpando. E a despeito disso tudo (na
realidade eu deveria estar feliz com um lho assim) minha relação com ele não é
desanuviada. Seu olho esquerdo é um pouco menor que o direito e pisca muito;
sem dúvida apenas um pequeno defeito que torna o seu rosto até mais atrevido do
que seria de outra forma e ninguém, diante do acabamento inimitável do seu ser,
notaria com censura esse olho menor que ca piscando. Eu, o pai, faço isso.
Naturalmente não é esse defeito físico que me dói, mas uma pequena
irregularidade do seu espírito que de algum modo lhe é correspondente, algum
veneno que corre erradio no seu sangue, alguma incapacidade de tornar perfeita a
disposição da sua vida, que só é visível para mim. Seja como for é justamente isso
que, por seu turno, o faz meu verdadeiro lho, pois esse seu defeito é ao mesmo
tempo o defeito de toda a nossa família e neste lho apenas nítido demais.
O terceiro lho é igualmente bonito, mas não é a beleza que me agrada. É a
beleza do cantor: a boca sinuosa; o olho sonhador; a cabeça que para produzir
efeito tem necessidade de um panejamento por trás; o peito que se empina
desmedidamente; as mãos que se alçam fáceis e baixam com demasiada facilidade;
as pernas que se fazem de rogadas porque não sabem transportar. E além disso: o
som da sua voz não é cheio; por um instante engana; faz o conhecedor escutar
com atenção; mas logo em seguida perde o fôlego. Apesar disso, em geral tudo
induz a exibir esse lho, mas eu o mantenho de preferência escondido; ele mesmo
não insiste em se mostrar, não acaso porque conheça suas limitações, mas por
inocência. Sente-se também estranho no nosso tempo; como se em verdade
pertencesse à minha família, mas além disso a uma outra, perdida para sempre,
está freqüentemente desgostoso e nada pode animá-lo.
Meu quarto lho talvez seja o mais sociável de todos. Verdadeiro lho do seu
tempo, faz-se compreender por qualquer um, pisa no solo comum a todos e todos
cam tentados a acenar-lhe com a cabeça em sinal de assentimento. Talvez através
desse reconhecimento geral o seu ser ganhe algo de leve, os seus movimentos algo
de livre, os seus julgamentos algo de despreocupado. As pessoas gostariam de
repetir com freqüência alguns dos seus ditos, seja como for apenas alguns, pois no
conjunto ele sofre de uma leveza grande demais. É como alguém que salta
admiravelmente, corta o ar como uma andorinha, mas depois termina
desamparadamente na poeira deserta, um nada. Tais pensamentos tornam-me
amarga a visão desse lho.
O quinto lho é simpático e bom; prometia muito menos do que cumpriu; era
tão insigni cante que as pessoas se sentiam literalmente sós na sua presença; mas
ele conseguiu alguma consideração. Se me perguntassem como isso aconteceu eu
mal poderia responder. Talvez a inocência penetre com mais facilidade através da
fúria dos elementos neste mundo, e ele é inocente. uem sabe inocente demais.
Amável com todo mundo. Talvez amável demais. Confesso: não me sinto bem
quando o elogiam diante de mim. Signi ca, sem dúvida, tornar o elogio algo fácil
demais quando se elogia alguém tão abertamente digno de elogio, como é o meu
lho.
Meu sexto lho parece, pelo menos à primeira vista, o mais pensativo de todos.
Cabisbaixo e no entanto palrador. Por isso, o contato com ele não é fácil. Se está
em situação de inferioridade, cai numa tristeza invencível; se consegue a
preponderância então ele a conserva pela tagarelice. Mas não lhe nego uma certa
paixão esquecida de si mesma; à luz do dia ele se debate com o pensamento como
se estivesse num sonho. Sem ser doente — tem antes uma saúde muito boa — às
vezes cambaleia, sobretudo no crepúsculo, mas não precisa de ajuda, não cai.
Talvez a culpa desse fenômeno seja o seu desenvolvimento físico, ele é grande
demais para a sua idade. No conjunto isso o enfeia, apesar dos pormenores belos
que chamam a atenção, como por exemplo as mãos e os pés. De resto sua testa
também não é bonita; tanto na pele quanto na constituição óssea ela é de algum
modo mirrada.
O sétimo lho talvez me pertença mais que todos os outros. O mundo não sabe
apreciá-lo; não entende o tipo especial da sua graça. Eu não o superestimo; sei que
ele é su cientemente desimportante; se o mundo não tivesse nenhum outro
defeito senão o de não saber apreciá-lo, ainda assim seria sem mácula. Mas dentro
da família eu não queria prescindir deste lho. Frente à tradição ele traz tanto
intranqüilidade quanto respeito e, pelo menos para o meu modo de sentir, funde
ambos num todo incontestável. De qualquer modo ele é o que menos sabe o que
fazer com esse todo; não vai pôr em movimento a roda do futuro; mas essa sua
disposição é tão estimulante, tão rica de esperança: eu queria que ele tivesse lhos
e estes por sua vez outros lhos. Infelizmente esse desejo não parece querer se
realizar. Numa auto-su ciência na verdade compreensível, mas igualmente
indesejada, que de qualquer forma está em esplêndida contradição com o
julgamento do seu meio, ele ca circulando sozinho, não se preocupa com as
moças e no entanto nunca vai perder o seu bom humor.
Meu oitavo lho é o lho da minha dor e na realidade não conheço nenhuma
razão para que seja assim. Ele me olha com estranheza e no entanto eu me sinto
ligado a ele de uma maneira paternalmente estreita. O tempo melhorou muita
coisa, mas antigamente me acometia às vezes um tremor só de pensar nele. Trilha
o próprio caminho, quebrou todos os laços comigo; e com o seu crânio duro, seu
pequeno corpo atlético — quando menino teve apenas as pernas bem fracas, mas
nesse meio tempo isso já pode ter se equilibrado — ele irá se impor em toda parte
que quiser. Às vezes tive vontade de chamá-lo de volta para lhe perguntar como
realmente iam as coisas, por que se isolava assim do pai e o que no fundo
pretendia, mas agora ele está tão distante e tanto tempo já passou, que é melhor
car como está. Ouvi dizer que é o único dos meus lhos que tem barba cheia;
naturalmente isso não é bonito num homem tão pequeno.
Meu nono lho é muito elegante e tem o olhar doce destinado às mulheres.
Tão doce que pode ocasionalmente seduzir até a mim, que sem dúvida sei que
uma esponja molhada basta por si só para apagar esse brilho supraterreno. Mas o
que há de particular nesse jovem é que ele não sai à cata de sedução; a ele bastaria
car deitado a vida inteira no canapé e esbanjar o seu olhar no forro do teto, ou de
preferência deixá-lo descansar sob as pálpebras. Se está nessa posição predileta,
então ele gosta de falar e não fala mal; conciso e plástico, mas só dentro de
estreitos limites; se os ultrapassa, o que não é possível evitar diante da estreiteza
deles, sua fala se torna completamente oca. Seria possível acenar-lhe para que se
abstivesse disso, se houvesse esperança de que esse olhar cheio de sono pudesse
notá-lo.
Meu décimo lho é considerado um caráter insincero. Não quero descartar
completamente esse defeito nem con rmá-lo por completo. O certo é que quem o
vê se aproximar, com a solenidade que ultrapassa de longe a sua idade, o fraque
sempre fechado, o chapéu preto velho mas escrupulosamente escovado, o rosto
imóvel, o queixo um pouco proeminente, as pálpebras que se arqueiam pesadas
sobre os olhos, os dois dedos que às vezes leva à boca — quem o vê assim pensa:
esse é um hipócrita sem fronteiras. Mas ouçam só ele falar! Razoável; ponderado;
sucinto; cortando as questões com uma vivacidade maldosa; em espantosa,
natural e alegre consonância com a totalidade do mundo, uma consonância que
necessariamente enrijece o pescoço e faz a cabeça se levantar. Muitos que se
pretendem bastante espertos e que por esse motivo, conforme disseram, se
sentiram repelidos pelo seu aspecto externo, ele atraiu com força através da
palavra. Existem contudo pessoas que o seu exterior deixa indiferentes, às quais
porém sua palavra se apresenta como hipócrita. Eu, como pai, não quero decidir
aqui, mas preciso admitir que os últimos são de qualquer forma mais dignos de
consideração como árbitros do que os primeiros.
Meu décimo primeiro lho é delicado, sem dúvida o mais fraco dos meus
lhos; mas engana com a sua fraqueza; pode em verdade ser por momentos
enérgico e de nido, mas seja como for, mesmo então, a fraqueza está de alguma
maneira na base. Não é porém uma fraqueza vergonhosa, mas algo que só nesta
nossa terra se manifesta como fraqueza. A disposição ao vôo, por exemplo,
também não é uma fraqueza, uma vez que signi ca oscilação, indeterminação,
utuação? Meu lho mostra algo dessa natureza. É natural que tais qualidades
não agradem ao pai; elas tendem abertamente à destruição da família. Às vezes ele
me olha como se quisesse me dizer: “Vou levá-lo comigo, pai”. Então eu penso:
“Você seria o último a quem eu me con aria”. E seu olhar parece dizer de volta:
“ ue eu seja ao menos o último”.
Esses são os onze lhos.
 
 
 
 
 
 
UM FRATRICÍDIO
 
 
 
 

Está provado que o homicídio ocorreu da seguinte maneira: Schmar, o assassino,


postou-se por volta das nove horas da noite de luar claro na mesma esquina que
Wese, a vítima, vindo da rua onde cava o seu escritório, tinha de dobrar para
entrar na rua em que morava.
Ar noturno gelado, de fazer qualquer um tremer. Schmar porém vestia apenas
uma roupa azul leve; além disso o paletó estava desabotoado. Não sentia frio,
mantinha-se constantemente em movimento. A arma do crime, meio baioneta,
meio faca de cozinha, ele empunhava rme, totalmente descoberta. Contemplou-
a contra o luar; o o da lâmina relampejou; para Schmar não era su ciente;
brandiu-a de encontro às pedras do calçamento de tal modo que saltaram
fagulhas; talvez tenha se arrependido; para reparar o dano passou-a como um
arco de violino na sola da bota enquanto, em pé numa perna só, inclinado para a
frente, permanecia ao mesmo tempo à escuta do som da faca na bota e à espreita
da fatídica rua lateral.
Por que Pallas, um particular, observava tudo de perto da sua janela no segundo
andar e tolerava tudo? Mas quem pode penetrar na natureza humana? Com a gola
levantada, a cinta do roupão em volta do ventre amplo, balançando a cabeça, ele
dirigia o olhar para baixo.
E cinco casas adiante, do lado oposto, em linha oblíqua, a senhora Wese, o
abrigo de pele de raposa por cima da camisola, buscava com os olhos o marido que
hoje tardava de maneira incomum.
Finalmente a sineta da porta do escritório de Wese soa, alto demais para uma
sineta de porta, soa sobre a cidade em direção ao céu e Wese, o diligente
trabalhador noturno, ainda invisível nessa rua, sai do prédio anunciado apenas
pelo toque da sineta; logo em seguida o calçamento conta seus passos calmos.
Pallas inclina-se bem para fora; não pode perder nada. Tranqüilizada pela
sineta a senhora Wese fecha a janela que retine. Mas Schmar se ajoelha; uma vez
que no momento não tem outras partes do corpo descobertas, comprime o rosto e
as mãos contra as pedras; onde tudo gela, Schmar incandesce.
Exatamente no limite que separa as ruas, Wese ca parado e se apóia só com a
bengala na rua do outro lado. Um capricho. O céu noturno o atraiu — o azul-
escuro e o dourado. Sem se dar conta disso ele olha para o alto, sem se dar conta
disso ele alisa o cabelo sob o chapéu levantado; nada no céu se constela para
indicar-lhe o futuro imediato; tudo permanece no seu lugar absurdo e
inescrutável. A rigor é muito sensato que Wese continue andando, mas ele
caminha para a faca de Schmar.
— Wese! — grita Schmar, na ponta dos pés, o braço estendido, a faca
vivamente abaixada. — Wese! Júlia o espera em vão!
E Schmar golpeia à direita e à esquerda no pescoço e uma terceira vez fundo no
ventre. Ratos d’água rasgados por uma lâmina emitem um som semelhante ao de
Wese.
— Pronto — diz Schmar e atira a faca, o supér uo lastro ensangüentado, em
direção à próxima fachada. — Oh, bem-aventurança do assassinato! Alívio, alada
ascensão alimentada pelo escorrer do sangue do outro! Wese, velha sombra
noturna, amigo, companheiro de cervejaria, o chão escuro da rua o absorve. Por
que você não é apenas uma bexiga cheia de sangue para que eu pudesse me sentar
em cima e você desaparecesse por completo? Não é tudo que se cumpre, nem
todos os sonhos em or amadureceram, jazem aqui os seus pesados restos já
inacessíveis a qualquer pontapé. De que serve a muda pergunta que você assim
coloca?
Pallas, sufocando todo o veneno que tem no corpo, está em pé na porta da sua
casa, as duas folhas escancaradas.
— Schmar! Schmar! Vi tudo, não me escapou nada!
Pallas e Schmar medem-se com o olhar. Pallas se satisfaz, Schmar não chega a
uma conclusão.
A senhora Wese, com uma multidão de cada lado, vem correndo, o rosto
totalmente envelhecido de susto. A pele se abre, ela se arroja sobre Wese, o corpo
coberto pela camisola pertence a ele, a pele que se fecha sobre o casal como a relva
de um túmulo pertence à multidão.
Schmar contém a custo a última náusea, a boca comprimida no ombro do
guarda que o leva dali com passo ligeiro.
 
 
 
 
 
 
UM SONHO
 
 
 
 

Josef K. sonhou:
Era um belo dia e K. pretendia ir passear. Mal tinha dado dois passos, porém, já
estava no cemitério. Havia ali caminhos muito arti ciais, de uma sinuosidade
pouco prática, mas ele deslizava sobre um desses caminhos como se fosse por cima
de uma correnteza, numa postura inabalavelmente utuante. Já de longe enxergou
um túmulo recém-escavado ao lado do qual queria parar. Esse túmulo exercia
sobre ele quase uma sedução e ele julgava não ser capaz de ir até lá com rapidez
su ciente. Às vezes entretanto ele praticamente não via o túmulo, subtraído à sua
visão por bandeiras cujos panos ondulavam e batiam com muita força uns nos
outros; não se avistavam os porta-bandeiras, mas era como se lá reinasse grande
júbilo.
Enquanto ainda dirigia o olhar para a distância, viu de repente no caminho o
mesmo túmulo ao seu lado, na verdade já quase atrás. Saltou rápido sobre a relva.
Uma vez que, sob o pé que saltava, o caminho seguia o seu curso desabalado, ele
vacilou e caiu de joelhos justamente diante do túmulo. Atrás deste estavam dois
homens levantando no espaço entre ambos uma lápide; nem bem K. havia
aparecido, eles atiraram a pedra na terra e ela cou ali como que cimentada.
Imediatamente surgiu de um arbusto um terceiro homem, que K. reconheceu
logo como um artista. Ele vestia apenas calças e uma camisa mal abotoada; tinha
um gorro de veludo na cabeça e na mão um lápis comum com o qual, já ao se
aproximar, descrevia guras no ar.
Com esse lápis ele iniciou então o seu trabalho na parte de cima da pedra; esta
era muito alta, ele não precisava de modo algum vergar o corpo, mas teve de se
inclinar para a frente, pois o túmulo, no qual ele não queria pisar, o separava da
pedra. Ficou portanto na ponta dos pés e se apoiou com a mão esquerda na
superfície da lápide. Por meio de uma manipulação particularmente habilidosa ele
conseguiu, com o lápis comum, obter letras de ouro; escreveu: “Aqui jaz ____”.
Cada uma das letras apareceu limpa e bonita, talhada fundo e toda em ouro.
uando tinha escrito as duas palavras, olhou para K., que estava atrás; muito
ansioso pelo prosseguimento da inscrição, K. mal se importou com o homem,
tando somente a pedra. De fato o homem começou a escrever de novo, mas não
pôde, havia algum bloqueio, deixou baixar o lápis e se voltou outra vez para K.
Agora K. também olhava para o homem e notou que ele estava muito
embaraçado, mas não soube dizer a causa. Toda a vivacidade anterior dele havia
desaparecido, K. também cou embaraçado com isso; trocaram olhares
desamparados; existia um feio mal-entendido que nenhum deles podia desfazer.
Fora de hora, um pequeno sino da capela mortuária começou a soar, mas o artista
agitou a mão erguida e ele parou. Um pouco depois recomeçou, dessa vez bem
baixinho, interrompendo-se logo em seguida sem nenhuma exortação especial:
era como se apenas quisesse testar o seu som. K. estava inconsolável com a
situação do artista, começou a chorar e por longo tempo soluçou na concha das
mãos. O artista esperou até K. se acalmar e depois — já que não tinha outra saída
— resolveu continuar escrevendo. O primeiro pequeno traço que fez foi para K.
uma libertação, mas era evidente que o artista só foi capaz de produzi-lo com
extrema relutância; a escrita também não era mais tão bonita, parecia sobretudo
que faltava ouro, o traço se estendia pálido e inseguro e a letra cou muito grande.
Era um J, já estava quase terminado quando o artista bateu furioso com um pé no
túmulo, de tal modo que a terra em torno voou para o alto. Finalmente K. o
compreendeu; não havia mais tempo para lhe pedir desculpas; cavou com todos
os dedos a terra que quase não oferecia resistência; tudo parecia preparado; só
para salvar as aparências tinha sido disposta uma na crosta de terra; logo
embaixo dela se abria um grande buraco de paredes íngremes, no qual K.
mergulhou virado de costas por uma suave corrente. Mas enquanto lá embaixo ele
era acolhido pela profundeza impenetrável, a cabeça ainda erguida sobre a nuca, lá
em cima o seu nome disparava sobre a pedra com possantes ornatos.
Encantado com a visão, ele despertou.
 
 
 
 
 
 
UM RELATÓRIO PARA
UMA ACADEMIA
 
 
 
 

Eminentes senhores da Academia:


Conferem-me a honra de me convidar a oferecer à Academia um relatório
sobre a minha pregressa vida de macaco.
Não posso infelizmente corresponder ao convite nesse sentido. uase cinco
anos me separam da condição de símio; espaço de tempo que medido pelo
calendário talvez seja breve, mas que é in ndavelmente longo para atravessar a
galope como eu o z, acompanhado em alguns trechos por pessoas excelentes,
conselhos, aplauso e música orquestral, mas no fundo sozinho, pois, para insistir
na imagem, todo acompanhamento se mantinha bem recuado diante da barreira.
Essa realização teria sido impossível se eu tivesse querido me apegar com teimosia
à minha origem e às lembranças de juventude. Justamente a renúncia a qualquer
obstinação era o supremo mandamento que eu me havia imposto; eu, macaco
livre, me submeti a esse jugo. Com isso porém as recordações, por seu turno, se
fecharam cada vez mais para mim. O retorno, caso os homens o tivessem
desejado, estava de início liberado através do portal inteiro que o céu forma sobre
a terra, mas ele foi se tornando simultaneamente mais baixo e mais estreito com a
minha evolução, empurrada para a frente a chicote; sentia-me melhor e mais
incluído no mundo dos homens; a tormenta cujo sopro me carregava do passado
amainou; hoje é apenas uma corrente de ar que me esfria os calcanhares; e o
buraco na distância, através do qual ela vem e através do qual eu outrora vim, cou
tão pequeno que eu me esfolaria no ato de atravessá-lo, mesmo que as forças e a
vontade bastassem para que retrocedesse até lá. Falando francamente — por mais
que eu goste de escolher imagens para estas coisas —, falando francamente, sua
origem de macaco, meus senhores, até onde tenham atrás de si algo dessa
natureza, não pode estar tão distante dos senhores como a minha está distante de
mim. Mas ela faz cócegas no calcanhar de qualquer um que caminhe sobre a terra
— do pequeno chimpanzé ao grande Aquiles.
No sentido mais restrito, entretanto, posso talvez responder à indagação dos
senhores e o faço até com grande alegria. A primeira coisa que aprendi foi dar um
aperto de mão; o aperto de mão é testemunho de franqueza; possa eu hoje,
quando estou no auge da minha carreira, acrescentar àquele primeiro aperto de
mão a palavra franca. Não ensinará nada essencialmente novo à Academia e cará
muito aquém do que se exigiu de mim e daquilo que, mesmo com a maior boa
vontade, eu não posso dizer — ainda assim deve mostrar a linha de orientação
pela qual um ex-macaco entrou no mundo dos homens e aí se estabeleceu. Mas
sem dúvida não poderia dizer nem a insigni cância que se segue, se não estivesse
plenamente seguro de mim e se o meu lugar em todos os grandes teatros de
variedades do mundo civilizado não tivesse se rmado a ponto de se tornar
inabalável.
Sou natural da Costa do Ouro. Sobre como fui capturado, tenho de me valer de
relatos de terceiros. Uma expedição de caça da rma Hagenbeck — aliás, com o
chefe dela esvaziei desde então algumas boas garrafas de vinho tinto — estava de
tocaia nos arbustos da margem, quando ao anoitecer, eu, no meio de um bando,
fui beber água. Atiraram; fui o único atingido; levei dois tiros. Um na maçã do
rosto: esse foi leve, mas deixou uma cicatriz vermelha de pêlos raspados, que me
valeu o apelido repelente de Pedro Vermelho, absolutamente descabido e que só
podia ter sido inventado por um macaco, como se eu me diferenciasse do macaco
amestrado Pedro — morto não faz muito tempo e conhecido em um ou outro
lugar — somente pela mancha vermelha na maçã da cara. Mas digo isso apenas de
passagem.
O segundo tiro me acertou embaixo da anca. Foi grave e a ele se deve o fato de
ainda hoje eu mancar um pouco. Li recentemente, num artigo de algum dos dez
mil cabeças-de-vento que se manifestam sobre mim nos jornais, que minha
natureza de símio ainda não está totalmente reprimida; a prova disso é que,
quando chegam visitas, eu tenho predileção em despir as calças para mostrar o
lugar onde aquele tiro entrou. Deviam arrancar um a um os dedinhos da mão do
sujeito que escreveu isso. Eu — eu posso despir as calças a quem me apraz; não se
encontrará lá nada senão uma pelúcia bem tratada e a cicatriz de um —
escolhamos aqui, para um objetivo de nido, uma palavra de nida, mas que não
deve ser mal entendida — a cicatriz de um tiro delinqüente. Está tudo exposto à
luz do dia, não há nada a esconder; quando se trata da verdade, qualquer um de
espírito largo joga fora as mais nas maneiras. Se, ao contrário, aquele
escrevinhador despisse as calças diante da visita que chega, isso sem dúvida teria
um outro aspecto e quero considerar como sinal de juízo se ele não o zer. Mas
então que me deixe em paz com os seus sentimentos delicados!
Depois daqueles tiros eu acordei — e aqui, aos poucos, começa a minha própria
lembrança — numa jaula na coberta do navio a vapor da rma Hagenbeck. Não
era uma jaula gradeada de quatro lados; eram apenas três paredes pregadas num
caixote, que formava portanto a quarta parede. O conjunto era baixo demais para
que eu me levantasse e estreito demais para que eu me sentasse. Por isso quei
agachado, com os joelhos dobrados que tremiam sem parar, na verdade voltado
para o caixote, uma vez que a princípio eu provavelmente não queria ver ninguém
e desejava estar sempre no escuro, enquanto por trás as grades da jaula me
penetravam na carne. Consideram vantajoso esse tipo de con namento de
animais selvagens nos primeiros tempos e hoje, pela minha experiência, não posso
negar que seja assim do ponto de vista humano.
Mas então eu não pensava isso. Pela primeira vez na vida estava sem saída; ao
menos em linha reta ela não existia; em linha reta diante de mim estava o caixote,
cada tábua rmemente ajustada à outra. É verdade que por entre as tábuas havia
uma fresta que ia de lado a lado e, quando a descobri, saudei-a com o uivo bem-
aventurado do animal irracional, mas nem de longe essa fresta bastava para deixar
o rabo passar e mesmo com toda a força de um macaco ela não podia ser alargada.
Conforme me disseram mais tarde, devo ter feito muito pouco barulho, donde
se concluiu que ou iria perecer logo ou que, caso conseguisse sobreviver aos
primeiros tempos críticos, caria bastante apto a me amestrar. Sobrevivi a esses
tempos. Surdos soluços, dolorosa caça às pulgas, fatigado lamber de um coco,
batidas de crânio na parede do caixote e mostrar a língua quando alguém se
aproximava — foram essas as primeiras ocupações da minha nova vida. Em tudo
porém apenas um sentimento: nenhuma saída. Naturalmente só posso retraçar
com palavras humanas o que então era sentido à maneira de macaco e em
conseqüência disso cometo distorções; mas embora não possa mais alcançar a
velha verdade do símio, pelo menos no sentido da minha descrição ela existe —
quanto a isso não há dúvida.
Até então eu tivera tantas vias de saída e agora nenhuma! Estava encalhado.
Tivessem me pregado, minha liberdade não teria cado menor. Por que isso?
Escalavre a carne entre os dedos do pé que não vai achar o motivo. Comprima as
costas contra a barra da jaula até que ela o parta em dois que não vai achar o
motivo. Eu não tinha saída mas precisava arranjar uma, pois sem ela não podia
viver. Caso permanecesse sempre colado à parede daquele caixote teria esticado as
canelas sem remissão. Mas na rma Hagenbeck o lugar dos macacos é de encontro
à parede do caixote — pois bem, por isso deixei de ser macaco. Um raciocínio
claro e belo que de algum modo eu devo ter chocado com a barriga, pois os
macacos pensam com a barriga.
Tenho medo de que não compreendam direito o que entendo por saída.
Emprego a palavra no seu sentido mais comum e pleno. É intencionalmente que
não digo liberdade. Não me re ro a esse grande sentimento de liberdade por
todos os lados. Como macaco talvez eu o conhecesse e travei conhecimento com
pessoas que têm essa aspiração. Mas no que me diz respeito, eu não exigia
liberdade nem naquela época nem hoje. Dito de passagem: é muito freqüente que
os homens se ludibriem entre si com a liberdade. E assim como a liberdade gura
entre os sentimentos mais sublimes, também o ludíbrio correspondente gura
entre os mais elevados. Muitas vezes vi nos teatros de variedades, antes da minha
entrada em cena, um ou outro par de artistas às voltas com os trapézios lá do alto
junto ao teto. Eles se arrojavam, balançavam, saltavam, voavam um para os braços
do outro, um carregava o outro pelos cabelos presos nos dentes. “Isso também é
liberdade humana”, eu pensava, “movimento soberano.” Ó derrisão da sagrada
natureza! Nenhuma construção caria em pé diante da gargalhada dos macacos à
vista disso.
Não, liberdade eu não queria. Apenas uma saída; à direita, à esquerda, para
onde quer que fosse; eu não fazia outras exigências; a saída podia também ser
apenas um engano; a exigência era pequena, o engano não seria maior. Ir em
frente, ir em frente! Só não car parado com os braços levantados, comprimido
contra a parede de um caixote.
Hoje vejo claro: sem a máxima tranqüilidade interior eu nunca poderia ter
escapado. E de fato talvez deva tudo o que me tornei à tranqüilidade que me
sobreveio depois dos primeiros dias lá no navio. Mas a tranqüilidade, por sua vez,
eu a devo sem dúvida às pessoas do navio.
São homens bons, apesar de tudo. Ainda hoje gosto de me lembrar do som dos
seus passos pesados que então ressoavam na minha sonolência. Tinham o hábito
de agarrar tudo com extrema lentidão. Se algum queria coçar os olhos, erguia a
mão como se ela fosse um prumo de chumbo. Suas brincadeiras eram grosseiras
mas calorosas. Seu riso estava sempre misturado a uma tosse que soava perigosa
mas não signi cava nada. Tinham sempre na boca alguma coisa para cuspir e para
eles era indiferente onde cuspiam. ueixavam-se sempre de que minhas pulgas
pulavam em cima deles, mas nunca caram seriamente zangados comigo por isso;
sabiam muito bem que nos meus pêlos as pulgas prosperam e que as pulgas são
saltadoras; conformavam-se com isso. uando estavam de folga, alguns sentavam-
se em semicírculo à minha volta; quase não falavam, mas arrulhavam uns para os
outros; fumavam os cachimbos esticados sobre os caixotes; davam tapas nos
joelhos assim que eu fazia o menor movimento e de vez em quando um deles
pegava um pau e me fazia cócegas onde me era agradável. Se hoje eu fosse
convidado a fazer uma viagem nesse navio certamente recusaria o convite, mas é
igualmente certo que lá na coberta da embarcação eu não me entregaria apenas a
más recordações.
A tranqüilidade que conquistei no círculo dessas pessoas foi o que acima de
tudo me impediu de qualquer tentativa de fuga. Da perspectiva de hoje me parece
que eu teria no mínimo pressentido que precisava achar uma saída caso quisesse
viver, mas que essa saída não devia ser alcançada pela fuga. Não sei mais se a fuga
era possível, porém acredito nisso; a um macaco a fuga deveria ser sempre
possível. Com os dentes que tenho hoje preciso ser cauteloso até no ato habitual
de quebrar nozes, mas naquela época decerto eu teria conseguido, com o correr do
tempo, partir nos dentes a fechadura. Não o z. O que teria sido ganho com isso?
Teriam me prendido de novo, mal a cabeça estivesse de fora, e tranca ado numa
jaula pior ainda; ou então poderia ter fugido sem ser notado até o lado oposto,
onde estavam os outros animais, quem sabe até às cobras gigantescas, e exalado o
último suspiro nos seus abraços; ou então conseguido escapar para o convés e
saltado pela amurada: aí teria balançado um pouquinho sobre o oceano e me
afogado. Atos de desespero. Não fazia cálculos tão humanos, mas sob a in uência
do ambiente comportei-me como se os tivesse feito.
Não fazia cálculos mas sem dúvida observava com toda a calma. Via aqueles
homens andando de cima para baixo, sempre os mesmos rostos, os mesmos
movimentos, muitas vezes me parecendo que eram apenas um. Aquele homem ou
homens andavam pois sem impedimentos. Um alto objetivo começou a clarear na
minha mente. Ninguém me prometeu que se eu me tornasse como eles a grade
seria levantada. Não se fazem promessas como essa para realizações
aparentemente impossíveis. Mas se as realizações são cumpridas, também as
promessas aparecem em seguida, exatamente no ponto em que tinham sido
inutilmente buscadas. Ora, naqueles homens não havia nada em si mesmo que me
atraísse. Se eu fosse um adepto da já referida liberdade, teria com certeza preferido
o oceano a essa saída que se me mostrava no turvo olhar daqueles homens. Seja
como for, porém, eu os observava desde muito tempo antes que viesse a cogitar
nessas coisas — sim, foram as observações acumuladas as que primeiro me
impeliram numa direção de nida.
Era tão fácil imitar as pessoas! Nos primeiros dias eu já sabia cuspir. Cuspimos
então um na cara do outro; a única diferença era que depois eu lambia a minha e
eles não lambiam a sua. O cachimbo eu logo fumei como um velho; se depois eu
ainda comprimia o polegar no fornilho, a coberta inteira do navio se rejubilava; só
não entendi durante muito tempo a diferença entre o cachimbo vazio e o
cachimbo cheio.
O que me custou mais esforço foi a garrafa de aguardente. O cheiro me
atormentava; eu me forçava com todas as energias, mas passaram-se semanas antes
que eu me dominasse. Curiosamente as pessoas levaram essas lutas interiores mais
a sério do que qualquer outra coisa em mim. Não distingo as pessoas nem na
minha lembrança, mas havia um que sempre voltava, sozinho ou com os
camaradas, de dia, de noite, nas horas mais diferentes; colocava-se diante de mim
com a garrafa e me dava aula. Ele não me compreendia, queria solucionar o
enigma do meu ser. Desarrolhava devagar a garrafa e em seguida me tava para
veri car se eu havia entendido; concedo que sempre olhei para ele com uma
atenção selvagem e atropelada; nenhum mestre de homem encontra em toda a
volta da Terra um aprendiz de homem assim; depois que a garrafa estava
desarrolhada, ele a erguia até a boca; eu a sigo com o olhar até a garganta; ele
acena com a cabeça, satisfeito comigo, e coloca a garrafa nos lábios; encantado
com o conhecimento gradativo, eu me coço aos guinchos de alto a baixo e de lado
a lado, onde cabe coçar; ele se alegra, leva a garrafa à boca e bebe um trago;
impaciente e desesperado para imitá-lo eu me sujo na jaula, o que por seu turno
lhe causa grande satisfação; distanciando então a garrafa e num arremesso
alçando-a outra vez, ele a esvazia de um só trago, inclinado para trás numa atitude
de exagero didático. Exausto com tamanha exigência não posso mais acompanhá-
lo e co pendurado frágil na grade enquanto ele encerra a aula teórica alisando a
barriga e arreganhando os dentes num sorriso.
Só agora começo o exercício prático. Já não estava esgotado demais pela aula
teórica? Certamente: esgotado demais. Faz parte do meu destino. Apesar disso
estendo a mão o melhor que posso para pegar a garrafa que me é oferecida;
desarrolho-a trêmulo; com esse sucesso se apresentam aos poucos novas forças;
ergo a garrafa — quase não há diferença do modelo original; levo-a aos lábios e —
com asco, com asco, embora ela esteja vazia e apenas o cheiro a encha, atiro-a com
asco ao chão. Para tristeza do meu professor, para tristeza maior de mim mesmo;
nem com ele nem comigo mesmo eu me reconcilio por não ter esquecido — após
jogar fora a garrafa — de passar a mão com perfeição na minha barriga e de
arreganhar os dentes num sorriso.
Com demasiada freqüência a aula transcorria assim. E para honra do meu
professor ele não cava bravo comigo; é certo que às vezes ele segurava o
cachimbo aceso junto à minha pele até começar a pegar fogo em algum ponto que
eu não alcançava, mas ele mesmo o apagava depois com a sua mão boa e
gigantesca; não estava bravo comigo, percebia que lutávamos do mesmo lado
contra a natureza do macaco e que a parte mais pesada cava comigo.
De qualquer modo, que vitória foi tanto para ele como para mim quando então
uma noite, diante de um círculo grande de espectadores — talvez fosse uma festa,
tocava uma vitrola, um o cial passeava entre as pessoas —, quando nessa noite,
sem ser observado, eu agarrei uma garrafa de aguardente deixada por distração
diante da minha jaula, desarrolhei-a segundo as regras, sob a atenção crescente das
pessoas, levei-a aos lábios e sem hesitar, sem contrair a boca, como um bebedor de
cátedra, com os olhos virados, a goela transbordando, eu a esvaziei de fato e de
verdade; joguei fora a garrafa não mais como um desesperado, mas como um
artista; na realidade esqueci de passar a mão na barriga, mas em compensação —
porque não podia fazer outra coisa, porque era impelido para isso, porque os
meus sentidos rodavam — eu bradei sem mais “alô!”, prorrompi num som
humano, saltei com esse brado dentro da comunidade humana e senti, como um
beijo em todo o meu corpo que pingava de suor, o eco — “Ouçam, ele fala!”.
Repito: não me atraía imitar os homens; eu imitava porque procurava uma
saída, por nenhum outro motivo. Com essa vitória também não se tinha feito
muita coisa. A voz voltou a me falhar imediatamente; só apareceu meses depois; a
aversão à garrafa veio ainda mais fortalecida. Mas fosse como fosse a direção a
seguir havia sido dada de uma vez por todas.
uando em Hamburgo fui entregue ao primeiro amestrador, reconheci logo as
duas possibilidades que me estavam abertas: jardim zoológico ou teatro de
variedades. Não hesitei. Disse a mim mesmo: empregue toda a energia para ir ao
teatro de variedades; essa é a saída; o jardim zoológico é apenas uma nova jaula; se
você for para ele, está perdido.
E eu aprendi, senhores. Ah, aprende-se o que é preciso que se aprenda; aprende-
se quando se quer uma saída; aprende-se a qualquer custo. Fiscaliza-se a si mesmo
com o chicote; à menor resistência agela-se a própria carne. A natureza do
macaco escapou de mim frenética, dando cambalhotas, de tal modo que com isso
meu primeiro professor quase se tornou ele próprio um símio, teve de renunciar
às aulas e precisou ser internado num sanatório. Felizmente saiu logo de lá.
Mas eu consumi muitos professores, alguns até ao mesmo tempo. uando já
havia me tornado mais seguro das minhas aptidões e o público acompanhava
meus progressos, começou a luzir o meu futuro: contratei pessoalmente os
professores, mandei-os sentar em cinco aposentos en leirados e aprendi com
todos eles, simultaneamente, à medida que saltava de modo ininterrupto de um
aposento a outro.
Esses meus progressos! Essa penetração por todos os lados dos raios do saber no
cérebro que despertava! Não nego: faziam-me feliz. Mas também admito: já então
não os superestimava, muito menos hoje. Através de um esforço que até agora não
se repetiu sobre a terra, cheguei à formação média de um europeu. Em si mesmo
talvez isso não fosse nada, mas é alguma coisa, uma vez que me ajudou a sair da
jaula e me propiciou essa saída especial, essa saída humana. Existe uma excelente
expressão idiomática alemã: sich in die Büsche schlagen [desaparecer
misteriosamente, cair fora]; foi o que z, caí fora. Eu não tinha outro caminho,
sempre supondo que não era possível escolher a liberdade.
Se abranjo com o olhar minha evolução e sua meta até agora, nem me queixo
nem me vejo satisfeito. As mãos nos bolsos das calças, a garrafa de vinho em cima
da mesa, estou metade deitado, metade sentado na cadeira de balanço e olho pela
janela. Se vem uma visita, eu a recebo como convém. Meu empresário está sentado
na ante-sala; se toco a campainha ele vem e ouve o que tenho a dizer; à noite
quase sempre há representação e tenho sucessos com certeza difíceis de superar. Se
chego em casa tarde da noite, vindo de banquetes, sociedades cientí cas, reuniões
agradáveis, está me esperando uma pequena chimpanzé semi-amestrada e eu me
permito passar bem com ela à maneira dos macacos. Durante o dia não quero vê-
la; pois ela tem no olhar a loucura do perturbado animal amestrado; isso só eu
reconheço e não consigo suportá-lo.
Seja como for, no conjunto eu alcanço o que queria alcançar. Não se diga que o
esforço não valeu a pena. No mais não quero nenhum julgamento dos homens,
quero apenas difundir conhecimentos; faço tão-somente um relatório; também
aos senhores, eminentes membros da Academia, só apresentei um relatório.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
POSFÁCIO
 
 
 
 
 
 
CATORZE CONTOS EXEMPLARES
Modesto Carone
 
 
 
 

No outono de 1916 Franz Ka a começou a passar as horas de folga numa


minúscula casa da rua dos Alquimistas, em Praga, que tinha sido alugada e
mobiliada com móveis de junco por sua irmã predileta, Ottla. O objetivo era ter
um lugar para escrever que casse apartado da repartição onde trabalhava e do
clima tenso da casa paterna.
Consta que na Idade Média alquimistas habitaram aquelas casinhas de contos-
de-fada, empenhados numa luta de vida ou morte para transformar chumbo em
ouro; quando desesperavam do êxito dessas tentativas, eles se atiravam num
precipício que se abria estrategicamente diante da porta dos fundos.
No período que vai de novembro de 1916 a abril de 1917, o escritor esteve ali
às voltas com a lenta elaboração das “pequenas narrativas” (a designação é sua e
serve de subtítulo ao livro) que compõem Um médico rural. As únicas exceções
foram “Um sonho” e “Diante da lei”, pertencentes ao ciclo do romance O processo
e escritos em dezembro de 1914; também fazia parte do projeto inicial o
misterioso “Cavaleiro do balde”, que Ka a resolveu retirar por razões
desconhecidas. É sabido que em agosto de 1917 ele sofreu a primeira hemoptise
da tuberculose que iria selar sua morte em julho de 1924; mas àquela altura a obra
já estava amarrada e pronta para publicação.
O editor Kurt Wolff, que entrou para a história da cultura alemã entre outras
coisas por ter reconhecido logo a originalidade do ccionista tcheco, enviou-lhe
em julho de 1917 uma carta propondo a impressão dos trabalhos mais recentes
(havia editado em 1913 O foguista e em 1917 A metamorfose), dos quais tinha
ouvido falar através de Max Brod. Ao contrário do que costumava fazer, o arisco
artista anuiu sem hesitação, pois estava con ante nos novos textos, que por sinal
ainda naquele ano passaram pelo crivo exigente de Martin Buber: este, depois de
ler doze das catorze peças, escolheu duas — “Chacais e árabes” e “Um relatório
para uma Academia” — para divulgar no prestigioso mensário Der Jude, o que
aconteceu no mês de outubro.
O vaivém que acompanhou a edição de Um médico rural comprova os cuidados
que Ka a dispensava à divulgação dos seus escritos. Até abril de 1917, por
exemplo, o título do livro era Responsabilidade, conforme a rmou em carta a
Martin Buber; o batismo de nitivo só viria em agosto daquele ano — a partir de
uma seqüência dos textos que ele considerava indispensável à inteligência da obra.
Embora Wolff tenha achado as histórias de Um médico rural “excepcionalmente
belas e maduras” e quisesse investir no aproveitamento editorial delas, Ka a não
permitiu que ele as tomasse por parábolas e alegorias. Logo em julho de 1917
insistiu em que gurassem no volume trabalhos antigos, como “Diante da lei” e
“Um sonho”, mas só tomou a decisão de suprimir “O cavaleiro do balde” em ns
de 1918, quando as provas já estavam prontas. É curioso também que tenha
exigido a inclusão de uma página de dedicatória com a inscrição: “A meu Pai”. A
esse respeito um especialista opina que a dedicatória deve ser entendida como
ironia (há mais de um tirano entre as personagens de Um médico rural ), mas o
fato é que, em carta a Max Brod datada de março de 1918, o autor diz o seguinte:
“Desde que decidi dedicar o livro ao meu pai, estou muito interessado em que saia
logo. Não que com isso eu pudesse me reconciliar com ele — as raízes dessa
inimizade não são extirpáveis; mas eu teria feito alguma coisa — digamos que,
mesmo não emigrando para a Palestina, eu tivesse passado o dedo pelo mapa”. É
provável que o gesto de consideração se relacionasse com o diagnóstico de
tuberculose do lho feito em setembro de 1917 e de que o pai só tomou
conhecimento em ns de novembro. Mas ele também documenta o fato de Franz
já ter se desligado do patriarca e rmado uma posição de “autonomia no ato de
escrever”, conforme a rma a Carta ao pai. Isso naturalmente não iria evitar que o
velho Hermann insistisse em receber cada publicação do escritor com o famoso
imperativo “Ponha em cima do criado-mudo!” enquanto jogava baralho na sala,
fumando um charuto.
A garantia do editor Wolff no sentido de que seriam respeitados os desejos do
autor quanto à seqüência das peças, ao subtítulo e à dedicatória, parece a
princípio não ter sido mantida, pois no outono de 1918 surgiram mal-entendidos
e di culdades em relação a todos esses itens — sem falar da demora excessiva, que
levou Ka a a pensar em outra editora. Os problemas porém foram sendo
solucionados pacientemente pelo escritor e depois de uma revisão nal satisfatória
o livro acabou aparecendo na Alemanha no início de 1920, embora na página de
rosto da edição princeps conste o ano de 1919.
 
 
Um médico rural não é uma simples coletânea, mas um livro rigoroso do ponto
de vista da organização temática. Vem emoldurado por duas narrativas (“O novo
advogado” e “Um relatório para uma Academia”) em que são os animais que se
transformam em homens, no peculiar estilo de inversão da fábula praticado por
Ka a. A brevidade da primeira serve tanto à iniciativa de relacionar tempos
históricos discrepantes pelo curto-circuito poético, quanto à necessidade de
proporcionar uma abertura lacônica ao conjunto que culmina no texto mais
longo do livro, veiculado na clave da sátira. Os dois contos que antecedem o nal
— “Um fratricídio” e “Um sonho” — estão atados pelo motivo comum da morte
das personagens, mas na evolução do volume “Um fratricídio” vem antes de “Um
sonho” porque o título do primeiro estabelece uma relação de parentesco com
“Onze lhos”, que precede o segundo; esta última história, mediada pela gura do
pai, também conversa, já na base da crueldade, com o conto precedente, “A
preocupação do pai de família”. Voltando ao começo, é perceptível que “Um
médico rural” se associa com “O novo advogado” através de Bucéfalo, uma vez
que as duas narrativas lidam com cavalos, cavaleiros e cavalgadas (o que
certamente dava sentido à inclusão inicial do “Cavaleiro do balde”). O texto
seguinte, “Na galeria”, emenda, através do motivo da amazona, com “Um médico
rural” e, por tabela, com “O novo advogado” — sem esquecer, é claro, do excluído
“Cavaleiro do balde”. Mas a excepcional cena de circo, que lembra o célebre
quadro de Seurat, se destaca das duas peças que a sucedem — “Uma folha antiga”
e “Diante da lei” —, já que nestas o poeta trabalha com tradições herdadas dos
velhos tempos, as quais por seu lado podem ter relação com “O novo advogado”,
sobretudo “Diante da lei”, onde também se abre (ou se fecha) uma porta para o
inatingível. Na seqüência, “Chacais e árabes” mantém laços com “Uma visita à
mina” — que aparece depois — justamente através do tema da visita, pois tanto o
narrador em primeira pessoa que está no deserto quanto o que se acha sob a terra
vivem num isolamento comparável, que remete não só à curtíssima “A próxima
aldeia”, como também à enigmática “Uma mensagem imperial”, pertencente ao
ciclo de desolação da “Muralha da China”; os dois últimos relatos, por sua vez,
estão irmanados pelo Leitmotiv ka iano da vida que passa e da viagem vital que
nunca alcança o m — além do que (para car por aqui) a imagem recorrente da
escada impregna em graus diferentes “Uma mensagem imperial” e “A preocupação
do pai de família”, contíguas no corpo da obra.
Essa rede temática é sustentada pelo uso diferenciado dos gêneros — que
podem passar com facilidade da narração sibilina à paródia do ensaio pedagógico
—, mas depende também dos recursos mais maleáveis da linguagem. Nessa
direção, é surpreendente ver como ela consegue a nar sem erro os timbres
especí cos do relato seriado, da construção dramática, do épico em miniatura, do
realismo tout court, do caso insólito ou do lirismo sob controle. A riqueza dos
registros chega a parecer paradoxal, uma vez que o padrão estabelecido na base
continua o mesmo, ou seja, aquele Papierdeutsch simulado que alimenta a prosa
protocolar do escritor. Vistas por esse ângulo, as constatações de que a cção
ka iana é monótona perdem a e cácia, na medida em que podem ser ao mesmo
tempo abonadas e desmentidas pelo texto — o que aliás não ca mal no caso de
Ka a. Seja como for, porém, uma composição tão sinuosa (sobretudo quando ela
adota a forma da narrativa curta) é um desa o para quem lê, comenta ou traduz
— e nesse sentido basta citar o exemplo de Na galeria, verdadeiro poema em prosa
composto por dois períodos e duas codas dialeticamente articulados, em que os
dados da realidade nua e crua do primeiro são apresentados como hipótese, ao
passo que a versão distorcida e cor-de-rosa do segundo vem marcada pelas
certezas do indicativo. Nada disso no entanto é estranho, principalmente para
quem disse, um dia, que no mundo “há muita esperança, mas não para nós”.
O original utilizado nesta tradução encontra-se no volume Sämtliche
Erzählungen, organizado por Paul Raabe e publicado pela editora S. Fischer de
Frankfurt a partir de 1970 e em Die Erzählungen/Originelfassung, que já é de
1996; as notas do posfácio valeram-se das informações contidas em Ka a-
Kommentar zu sämtlichen Erzählugen (Winkler, Munique, 1982), de Hartmut
Binder, cujo Ka a-Handbuch (Kröner, Stuttgart, 1979, 2 vols.) foi ponto de
referência importante para a resolução de questões lológicas.
 
 
 
 
 
 
 
SOBRE O AUTOR
 
 
 
 
Franz Ka a nasceu em 3 de julho de 1883 na cidade de Praga, Boêmia (hoje República
Tcheca), então pertencente ao Império Austro-Húngaro. Era o lho mais velho de Hermann
Ka a, comerciante judeu, e de sua esposa Julie, nascida Löwy. Fez os seus estudos naquela capital,
primeiro no ginásio alemão, mais tarde na velha universidade, onde se formou em direito em
1906. Trabalhou como advogado, a princípio na companhia particular Assicurazioni Generali e
depois no semi-estatal Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho. Duas vezes noivo da
mesma mulher, Felice Bauer, não se casou — nem com ela, nem com outras mulheres que
marcaram a sua vida, como Milena Jesenská, Julie Wohryzek e Dora Diamant. Em 1917, aos 34
anos de idade, sofreu a primeira hemoptise de uma tuberculose que iria matá-lo sete anos mais
tarde. Alternando temporadas em sanatórios com o trabalho burocrático, nunca deixou de
escrever (“Tudo o que não é literatura me aborrece”), embora tenha publicado pouco e, já no m
da vida, pedido ao amigo Max Brod que queimasse os seus escritos — no que evidentemente não
foi atendido. Viveu praticamente a vida inteira em Praga, exceção feita ao período nal (novembro
de 1923 a março de 1924), passado em Berlim, onde cou longe da presença esmagadora do pai,
que não reconhecia a legitimidade da sua carreira de escritor. A maior parte de sua obra — contos,
novelas, romances, cartas e diários, todos escritos em alemão — foi publicada postumamente.
Falecido no sanatório de Kierling, perto de Viena, Áustria, no dia 3 de junho de 1924, ummês
antes de completar 41 anos de idade, Franz Ka a está enterrado no cemitério judaico de Praga.
uase desconhecido em vida, o autor de O processo, O castelo, A metamorfose e outras obras-primas
da prosa universal, é considerado hoje — ao lado de Proust e Joyce — um dos maiores escritores
do século.
 
 
M. C.
 
 
 
 
 
 
SOBRE O TRADUTOR
 
 
 
 
Modesto Carone é escritor, ensaísta e professor de literatura, tendo lecionado nas universidades
de Viena, São Paulo e Campinas. Suas traduções de Ka a, a partir do original alemão, foram
iniciadas em 1983 e já cobrem dez títulos: Um artista da fome, A construção, A metamorfose, O
veredicto, Na colônia penal, Carta ao pai, O processo (Prêmio Jabuti de Tradução de 1989), Um
médico rural, Contemplação e O foguista. Devem seguir-se O castelo, Narrativas do espólio e O
desaparecido, que completam a obra de cção do escritor tcheco.
Copyright tradução, posfácio e notas © 1990, 1999
by Modesto Carone
 
Título original:
Ein Landarzt. Kleine Erzählungen
 
Capa:
Hélio de Almeida
sobre desenho de
Amilcar de Castro
 
Preparação:
Denise Pegorim
 
Revisão:
Beatriz de Freitas Moreira
Ana Maria Barbosa
 
ISBN 978-85-8086-290-4
 
 
 
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — SP
Telefone: (11) 3707-3500
Fax: (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br

Você também pode gostar