Tradução em Diálogo PDF
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Tradução em Diálogo PDF
Andréia Guerini
Fernanda Christmann
Morgana Aparecida de Matos
(Organizadoras)
ESTUDOS DA TRADUÇÃO
EM DIÁLOGO
PGET/UFSC
FLORIANÓPOLIS
2020
2
_______________________________________________________
E82
ESTUDOS DA TRADUÇÃO EM DIÁLOGO/Andréia
Guerini, Fernanda Christmann, Morgana Aparecida de
Matos (Organizadoras); – Dados eletrônicos. –
Florianópolis: PGET/UFSC, 2020. 147 p.
E-book (PDF)
ISBN 978-85-5581-059-6
1. Estudos da Tradução e da Interpretação 2. Tradutores. 3.
Pesquisadores de Tradução. I. Guerini, Andréia. II.
Christmann, Fernanda. III. Matos, Morgana Aparecida de.
_______________________________________________________
3
Copyright © 2020 - das organizadoras representantes dos autores
Comitê Editorial
Álvaro Faleiros (Universidade de São Paulo, Brasil)
Anna Palma (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil)
Berthold Zilly (Freie Universität Berlin, Alemanha)
Davi Gonçalves (Universidade Estadual do Centro Oeste, Brasil)
José Lambert (KU Leuven, Bélgica)
Júlio Cesar Monteiro (Universidade de Brasília, Brasil)
Ilana Heineberg (Université Bordeaux Montaigne, França)
Luana Ferreira de Freitas (Universidade Federal de Fortaleza, Brasil)
Odile Cisneros (University of Alberta, Canadá)
Philippe Humblé (Vrije Universiteit Brussel, Bélgica)
Revisão
Andréia Guerini
Fernanda Christmann
Morgana Aparecida de Matos
Diagramação e Editoração
Fernanda Christmann
Morgana Aparecida de Matos
4
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO........................................................................ 6
Maria Lúcia Barbosa Vasconcellos
Filipe Mendes Neckel
5
APRESENTAÇÃO
7
em contato tradutores e (múltiplos) clientes interessados em um mesmo
projeto de tradução, e que isoladamente não poderiam arcar com os
custos do serviço de um tradutor profissional, consigam pagar pela
tradução ao dividirem o valor do trabalho. Idealizado pelo egresso da
PGET Reginaldo Francisco e em parceria com Roney Belhassof. O
projeto visa não só a divulgação de textos ainda não traduzidos, mas
principalmente a visibilidade do tradutor, o qual recebe uma
remuneração adequada por um trabalho profissional e de qualidade.
Desde 2017 o projeto está sendo financiado pela Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), encontrando-se em sua
segunda fase, qual seja, desenvolvimento da proposta de pesquisa. Nesta
fase, o projeto passa por reestruturação, visando atender as demandas
observadas nas fases anteriores, tais como tradução de textos que não
estão disponíveis on-line, tradução e legendagem de vídeos, tradução de
português para Libras, contribuições em moedas diferentes e a
internacionalização do projeto. O protótipo da plataforma pode ser
acessado através do link https://win-win.net.br/site/.
Em Canto antifonal na adaptação cinematográfica Hugo, Diogo Berns
apresenta algumas considerações sobre sua pesquisa de doutorado em
andamento, centrada na teorização de como a dinâmica de intercalação
de palavras com imagens, elaboradas pelo autor e ilustrador Brian
Selznick no texto está estruturada na adaptação cinematográfica Hugo:
enquanto no texto, segundo Berns, a dinâmica se assemelha ao canto
antifonal, executado pela alternância de dois coros, na adaptação
cinematográfica ocorre a intercalação de duas sequências, cada sequência
constituindo um coro. O autor aborda algumas dessas características,
como a variação da utilização da tecnologia 3D nas cenas, os
enquadramentos e o acompanhamento sonoro e argumenta que com as
possibilidades criativas que o cinema possui, a canção antifonal de Hugo
é apresentada ao espectador, sendo um recurso artístico, que ele defende
como uma possibilidade de enriquecer dramaticamente as narrativas
cinematográficas.
Gisele Tyba Mayrink Orgado e Adja Balbino de Amorim Barbieri
Durão tratam, no artigo Traduzindo a cultura japonesa através dos provérbios,
de um dos traços culturais e linguísticos mais significativos para a
8
tradução, o provérbio. A partir das leituras de Berman (2007) e Nord
(2012), as autoras discutem as dificuldades inerentes à tradução dos
provérbios, principalmente em relação aos aspectos linguísticos e
semânticos, além de seus aspectos culturais e interculturais. O artigo
relata a pesquisa de pós-doutoramento de Gisele Tyba Mayrink Orgado
sob supervisão de Adja Balbino de Amorim Barbieri Durão, cujo
objetivo é produzir um minidicionário bilíngue e/ou plurilíngue
envolvendo o par linguístico japonês - português brasileiro, para tanto as
autoras buscam aproximar as pesquisas nas áreas de Paremiologia,
Lexicografia e Estudos da Tradução.
Rosângela Fernandes Eleutério constrói seu texto em torno de sua
experiência pessoal como pesquisadora, apresentando ao leitor os
caminhos percorridos desde seus estudos iniciais no curso de Língua e
Literatura Estrangeiras da UFSC, até a conclusão de sua dissertação de
mestrado no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução. Em
seu artigo As traduções de contos de Clarice Lispector para língua espanhola, a
autora apresenta os resultados de sua pesquisa de mestrado, que colocou
em diálogo as teorias de André Lefevere e Christiane Nord, com o intuito
de analisar três contos da obra de Clarice Lispector, A legião estrangeira,
a partir de quatro traduções diferentes. Essa pesquisa possibilitou a
elaboração de um panorama sócio histórico dos contos, apontando os
desafios tradutórios, a recepção da obra em países hispânicos e a
influência da editora em relação às escolhas tradutórias. Além disso,
também incentivou a autora a seguir com seus estudos, agora em nível
de doutorado, com um projeto para adaptar o romance A maça no escuro
de Clarice Lispector para o público infanto-juvenil.
O texto de José Endoença Martins fecha o volume, com o tema
Tradução racial e textual no romance Io, Venditore di Elefanti, de pap khouma:
signifyin(g), exu e mobilidade identária na ficção negra. Segundo o autor, para
além do fator racial, o romance Io, Venditore di Elefanti, de Pap Khouma
(1990/2015) compõe o que já se caracteriza, para alguns especialistas,
como a literatura pós-colonial italiana, de responsabilidade de escritores
e escritoras imigrantes que se deslocam para o país. E, por meio de
argumentação convincente, José Endoença Martins mostra que a partir
da triangulação migrante (tradição, migração, tradução), estabeleceram-
9
se dois movimentos translacionais, o racial e o textual, cujo resultado foi
a elaboração do que Hall (2006, p. 13) chama de ‘celebração móvel”, em
que as identificações interculturais dos senegaleses, em solo italiano,
transitaram entre a identidade assimilacionista, a nacionalista e a catalítica
ou híbrida.
Ao final da leitura deste volume, o leitor terá uma excelente
amostra da contribuição da PGET para a formação sólida, crítica,
profissional e/ou acadêmica de seus alunos e alunas e de sua inserção
nacional, bem como das possíveis e (não) imagináveis áreas de atuação
de seus egressos. Boas leituras!
10
ANÁLISE DO PERFIL DOS EGRESSOS DE
DOUTORADO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS
DA TRADUÇÃO DA UFSC DE 2010 A 2017
Fernanda Christmann1
Andréia Guerini2
Introdução
11
aprovado mais um programa em Estudos da Tradução: a POET6, da
Universidade Federal do Ceará (UFC).
O programa de mestrado da PGET foi aprovado em 2003 e o de
doutorado em 2009, desde então, a PGET titulou, conforme dados da
Plataforma Sucupira, até o final de 2017, 279 mestres e 108 doutores7.
A PGET encontra-se inserida na grande área de Linguística e
Literatura da CAPES e seu projeto formador8 estabelece como objetivo
geral:
6 http://www.ppgpoet.ufc.br/pt/
7 A título informativo, até o final de 2018, a PGET havia titulado 276 mestres e 125
doutores. (CAPG/ 2018)
8Disponível em: http://ppget.posgrad.ufsc.br/a-pget-2__trashed/projeto-pget/. Acesso
em 31 mar. 2018a.
9 Como esse sistema é de acesso restrito, os dados foram coletados nas instalações da
13
Figura 1: Proporção relativa ao gênero dos egressos da PGET
Masculino
29%
Feminino
71%
14
Nacionalidade dos egressos
Estrangeira
17%
Brasileira
83%
10 Das teses defendidas, dos egressos analisados de 2010 - 2017, cinco (5) escreveram em
língua inglesa, dois (2) em língua espanhola e um (1) em francês e um (1) e italiano. Ou
seja, 8,5% das teses defendidas até 31 de dezembro de 2017 foram defendidas em línguas
estrangeiras.
15
Figura 4: Mapa mostrando a nacionalidade dos egressos da PGET
Formação acadêmica
Graduação
16
formação centrada em cursos de Letras, seja na primeira (68,5%) ou na
segunda graduação (25%), como mostra a Figura 5:
Outros
19%
Letras
81%
18
15 Jornalismo Letras/Português e Inglês
16 Letras Letras/Secretariado Executivo
17 Letras/Espanhol (Lic.) Letras/Espanhol (Bacharelado)
18 Letras/Francês Letras/Estudos Literários
19 Letras/Francês e Português Letras/Inglês
20 Letras/Inglês Tradução
21 Letras/Inglês Letras/Espanhol
22 Letras/Inglês Letras/Francês
23 Letras/Português Letras/Alemão
24 Letras/Português Pedagogia
25 Letras/Português Psicologia
26 Letras/Português e Inglês Letras/Português e Inglês
27 Letras/Português e Inglês Ed. Artística e Artes Plásticas
28 Letras/Português e Inglês Letras/Português e Francês
29 Pedagogia Teologia
30 Relações Públicas Letras/Português e Inglês
31 Teológico/Pastoral Letras/Português e Grego
32 Tradução Letras/Alemão
Fonte: Adaptado de Fernanda Christmann (2018).
Inserção profissional
20
A Figura 8 mostra a distribuição do destino profissional dos
egressos da PGET. A maioria atua como professor de ensino superior,
função que é almejada como perfil do egresso. Na categoria “outros”
estão relacionados: Autônomo/Editora, Professor(a) de Ensino Básico e
Fundamental, Servidor(a) Técnico Administrativo, Tutor(a) à distância,
Assessor(a) de Direção, Assistente de Educação, Coordenador de
Pesquisa do Acervo Haroldo de Campos, Coordenador de Revisão,
Editor(a), Perito(a), Pesquisador(a) e Intérprete.
Professor(a) de Ensino
Superior
12% Tradutor(a)
Estágio Pós-Doutoral
14%
Professor(a) de Ensino
Técnico
3%
59% Professor(a) de Idiomas
3%
3% 6% Outros
21
Tabela 1: Número de egressos da PGET por estado da federação
Estado Nº de Egressos
Santa Catarina 44
Paraíba 10
Paraná 9
Distrito Federal 5
Rio Grande Do Sul 5
Mato Grosso do Sul 4
Minas Gerais 3
Rio de Janeiro 3
São Paulo 2
Acre 1
Bahia 1
Rio Grande do Norte 1
Rondônia 1
Fonte: Adaptado de Christmann (2018).
24
Há ainda um egresso que atua como professor de ensino fundamental
em instituição municipal no município de Itapema, Santa Catarina.
Os egressos que atuam em empresas do setor privado (16% do
total levantado na pesquisa) apresentam perfil diversificado. Enquanto
alguns atuam como tradutores autônomos, outros constituíram empresas
como editora e empresas de consultoria. Não foi possível levantar
informações a respeito da renda destes egressos pela própria natureza da
atividade por eles exercida.
Figura 10: Proporções relativas à natureza jurídica das instituições em que os egressos
atuam profissionalmente
Municipal
Privadas
1%
16%
Estaduais
7%
Federais
76%
25
Tabela 2: Instituições de destino profissional e respectivos números de egressos da
PGET
Instituição de destino N° de
egressos
Universidade Federal de Santa Catarina (SC) 11
Instituto Federal de Santa Catarina (SC) 8
Universidade Federal de Campina Grande (PB) 6
Instituto Federal Catarinense 6
Universidade Federal da Paraíba 4
Universidade de Brasília 4
Universidade Tecnológica Federal do Paraná 3
Universidade Federal da Grande Dourados 3
Universidade Federal Fluminense 2
Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2
Universidade Federal do Paraná 2
Universidade Federal do Ceará 2
Universidade Federal de Minas Gerais 2
Universidade Estadual de Londrina 2
Universidade Federal do Ceará 1
Universidade Metodista de Piracicaba 1
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e 1
Mucuri
Universidade Federal do Rio Grande do Norte 1
Universidade Federal do Pampa 1
Universidade Federal de Santa Maria 1
Universidade Federal de Rondônia 1
Universidade Federal de Pelotas 1
26
Universidade Federal da Fronteira Sul 1
Universidade Federal da Bahia 1
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul 1
Universidade de Comunicações da China 1
Universidade Comunitária da Região de Chapecó 1
UNIFACVEST 1
UNICENTRO - Campus de Irati 1
The University of Queensland 1
Secretaria de Estado de Ed. Ciência e Tecnologia de 1
SC
Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina 1
Scilingual 1
Prefeitura Municipal de Itapema 1
Pontificia Universidad Catolica del Perú 1
Museu Casa das Rosas 1
Instituto Federal do Acre 1
i-LEXis Perícia Linguística 1
Fundação Universidade Regional de Blumenau 1
Escritório do Livro 1
Duo Translations Agência de Tradução 1
Delinea Tecnologia Educacional 1
Colégio Positivo - Joinville 1
Claretiano Rede de Educação 1
Centro Universitário Franciscano do Paraná 1
Fundação da Biblioteca Nacional 1
Fonte: Adaptação de Christmann (2018).
27
Remuneração básica bruta
19000 - 20500 1
17500 - 19000 0
SALARIO BRUTO EM REAIS
15500 - 17500 2
14000 - 15500 1
12500 - 14000 5
11000 - 12500 28
9500 - 11000 13
8000 - 9500 3
6500 - 8000 5
5000 - 6500 2
0 5 10 15 20 25 30
28
Considerações finais
29
Com relação ao primeiro questionamento estabelecido para este
trabalho, que implica em verificar se “o objetivo geral do projeto
formador da PGET tem sido alcançado?” pode-se afirmar
positivamente, pois os resultados agregados mostram que a PGET vem
cumprindo os objetivos do seu projeto formador de diplomar
pesquisadores em Estudos da Tradução. Esta afirmação é suportada pelo
fato que a maioria dos egressos atua como professores na grande área de
Letras, em universidades federais, as quais são reconhecidas como
indutores da pesquisa no Brasil.
O objetivo da PGET de consolidar um polo institucional de
referência em Estudos da Tradução na UFSC também parece estar sendo
alcançado, o que pode ser verificado pela concentração de egressos que
atuam no estado de Santa Catarina e demais estados da região Sul. A
expansão do conjunto de atividades para as demais regiões do Brasil, e
até mesmo ao Exterior, pôde igualmente ser verificada pelo considerável
número de egressos que nestas regiões atuam.
O fato da grande maioria (81%) dos egressos ter formação
acadêmica em cursos da área de Letras mostra que o questionamento
levantado por esta pesquisa: “O curso de doutorado é uma continuidade
para a formação de estudantes de graduação em Letras-Línguas
Estrangeiras e mestrados em Estudos da Tradução e áreas afins?” tem
resposta afirmativa, ou seja, a PGET está dando continuidade para a
formação dos graduados dos cursos de Letras-Línguas Estrangeiras.
Para finalizar, podemos dizer que esse tipo de análise pode auxiliar
na elaboração de medidas operacionais que deem suporte para o
planejamento estratégico da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da
UFSC.
Referências
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dos egressos de doutorado da Pós-Graduação em Estudos da Tradução
da UFSC: 2010 - 2017. 2018. 101 p. Dissertação (Mestrado) -
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33
A RELAÇÃO ENTRE A FORMAÇÃO DOUTORAL E A
INSERÇÃO PROFISSIONAL
35
com a tradução de textos canônicos, na elaboração da minha tese, foi de
extrema importância, pois suas considerações abarcavam tanto a
perspectiva teórica quanto a prática, dada sua dupla experiência
profissional.
Outrossim, no âmbito do doutorado, tive a oportunidade de
dialogar com diversas autoridades da área dos Estudos da Tradução, bem
como da Literatura, Didática, Lexicografia, entre outros ramos, não
somente por ocasião dos diversos eventos promovidos sistematicamente
pelo Programa, mas também nas disciplinas que cursei. Em 2015, ano
que ingressei no Programa, cursei as seguintes disciplinas: “Teorias da
Tradução I”, ministrada pelo Prof. Dr. Sergio Romanelli, “Tópicos
Especiais: Didática da Tradução”, ministrada pela Profa. Dra. Maria
Lucia Barbosa de Vasconcellos, “Crítica de Tradução”, ministrada pela
Profa. Dra. Karine Simoni e, finalmente, “Lexicografia e ensino de
línguas estrangeiras”, ministrada pela Profa. Dra. Adja Balbino de
Amorim Barbieri Durão. Além de todo o conhecimento teórico
adquirido através das leituras realizadas para estas disciplinas, faz-se
pertinente ressaltar a importância das discussões travadas em sala de aula,
cujas trocas entre colegas e professores constituem parte fundamental da
minha formação acadêmica. Permeada por tais vivências acadêmicas, a
tese, anteriormente citada, defendida em 2018, ganhou desdobramentos
posteriores, os quais apresento a seguir.
36
da tradução, ficando este aspecto da obra à margem da discussão literária.
No entanto, a partir da segunda metade do século XX, com o avanço dos
Estudos da Tradução no contexto acadêmico, passou-se a refletir com
maior atenção sobre o vínculo entre ambas.
Com efeito, a contribuição dos Estudos da Tradução toca em
diversos aspectos caros à Literatura Comparada e à Crítica Literária, a
começar pelo próprio conceito de leitura, bem como especificidades das
línguas envolvidas, aspectos culturais, entre outros. José Lambert, um
dos fundadores da disciplina de Estudos da Tradução, denuncia o caráter
nacionalista e monolíngue da Literatura Comparada, razões que o
levaram a estabelecer laços entre essas disciplinas buscando na tradução
respostas para problemas literários. Outrossim, o autor apontou a
importância da tradução para o sistema literário de um país, a qual pode
atuar tanto de maneira secundária quanto central, afetando, por exemplo,
a formação do cânone.
Umas das contribuições mais relevantes sobre a relação entre
tradução e literatura comparada parte de Susan Bassnett (1993),
conhecida por defender um laço mais estreito entre estas disciplinas, com
ênfase nas contribuições advindas dos Estudos da Tradução para o
entendimento do texto literário. A autora reforça a ideia da disciplina de
Literatura Comparada enquanto apenas um dos métodos de abordagem
da literatura, o qual recebe distintas interpretações de acordo com o
momento histórico que se considera. Bassnett preconiza uma concepção
da Literatura Comparada não prescritiva, cujo objeto de estudo, a
literatura, possa ser estudado a partir de diferentes perspectivas teóricas,
dentre as quais os Estudos da Tradução, assim como Estudos Culturais.
De opinião semelhante, Spivak, em seu livro Death of a discipline
(2003), denuncia uma certa instabilidade na disciplina de Literatura
Comparada, atrelada a uma incerteza quanto a seu futuro, devido a
valores hierárquicos herdados de uma concepção europeia da disciplina,
que desconsidera, de certa forma, as contribuições do Terceiro Mundo,
segundo sua definição, razão pela qual esta antiga concepção estaria
fadada à morte. Em seu lugar, a nova Literatura Comparada seria pautada
por conceitos agregadores, fundada na interdisciplinaridade e receptiva à
alteridade. Nesse contexto, ganham espaço produções literárias advindas
37
de países emergentes, antes relegados a uma posição periférica na
disciplina. Outrossim, André Lefevere, autor da obra Translating
Literature: Practice and Theory in a Comparative Literature Context (1992),
ressalta a importância de se ter uma abordagem interdisciplinar sobre a
questão. A esse respeito, podemos pensar, ainda, nos trabalhos de Itamar
Even-Zohar e os estudiosos da Escola de Tel Aviv sobre o papel
desempenhado pelas traduções nas relações culturais estabelecidas entre
dois ou mais sistemas literários em contato, entre tantos outros que
evidenciam a necessidade de uma abordagem conjunta das disciplinas.
Eneida de Souza, no texto intitulado “Crítica cultural em ritmo
latino”, discorre sobre o atual momento científico, que se pauta,
sobretudo, pela transdisciplinaridade, tornando inviável a possibilidade
de um desenvolvimento individual e isolado da disciplina:
39
lendo as obras de seus mestres; a crítica analisa claramente a técnica
desses escritores, de modo que pastiches e crítica se completam” 2
(TADIÉ, 1996, p. 57-58, tradução minha). Assim, a eficácia do pastiche
encontrar-se-ia na “sensação” experimentada pelo leitor de que o texto
que lê fora, na verdade, escrito pelo autor que se buscou imitar, e não
por seu verdadeiro autor, situando-se, com isso, numa espécie de entre-
lugar, na intersecção entre as três disciplinas precitadas. De modo que a
análise dos pastiches se constitui como um fértil campo de estudos acerca
da relação entre tradução e literatura comparada.
Conforme corrobora Yves Chevrel na obra Literatura Comparada
(1989), traduzir ou editar uma tradução não corresponde apenas a uma
operação de natureza linguística, trata-se, igualmente, de uma decisão que
toca em questões de ordem cultural e social no sistema linguístico de
chegada. George Steiner afirma que a Literatura Comparada “é, na
melhor das hipóteses, uma arte de ler rigorosa e exigente, um estilo de
ouvir ou ler atos de linguagem que privilegiam certos componentes desse
ato” (STEINER, 2001, p. 159). De opinião semelhante é Muntaner, para
quem "la traduction est la manière la plus parfaite, la plus complète de lire"
(MUNTANER, 1993, p. 639). De modo que é inegável a relação entre
tais disciplinas, uma vez que ambas compartilham postulados básicos do
ponto de vista formador e analítico das mesmas.
Tânia Franco Carvalhal, por sua vez, recorda que, no horizonte
comparativista,
2« Le pastiche reconstitue en le condensant ce qu’il a senti en lisant les œuvres de ses maîtres ; la critique
analyse clairement la technique de ces écrivains, de sorte que pastiches et critique se complètent »
(TADIÉ, 1996, p. 57-58).
40
De fato, é possível desdobrar uma série de pesquisas que partam
de uma perspectiva transdisciplinar e evidenciem o caráter indissociável
entre Literatura Comparada e Tradução. Desde estudos que tomem a
língua como objeto central da análise, passando por estudos de cunho
cultural, historiográfico, ou ainda intertextual, de modo a pensar a
polifonia desse novo texto, as possibilidades são múltiplas, sobretudo, se
pensarmos nas várias combinações de pares linguísticos possíveis para a
realização de estudos acadêmicos.
No que concerne à metodologia, esta pesquisa parte do
levantamento sobre a evolução nos campos dos Estudos da Tradução,
bem como de Literatura Comparada, de modo a identificar a relação
estabelecida entre estas disciplinas no século XX. Para tanto, será
realizada a leitura de obras de referência sobre o tema em questão e
posterior discussão, com vistas ao estabelecimento do estado da arte. Em
seguida, as discussões e produções acadêmicas serão guiadas de acordo
com temáticas específicas, tais como as transformações de aspectos
linguísticos e culturais do texto-fonte em tradução, ou ainda os pastiches
e a sua natureza transdisciplinar. Outrossim, esta pesquisa pretende
dialogar com o projeto de pesquisa intitulado “Os escritores-tradutores
no Brasil e a formação do cânone literário”, o qual tem por objetivo a
análise da formação do cânone de literatura traduzida no Brasil a partir
das traduções realizadas por escritores-tradutores, exposto a seguir.
Assim, dada a riqueza temática identificada na discussão sobre a
relação entre as disciplinas de Estudos da Tradução e Literatura
Comparada, a qual pode ser desdobrada em inúmeras pesquisas, bem
como seu caráter atual, justifica-se a pertinência do presente projeto, cuja
intenção é servir de espaço de debate e produção acadêmica sobre o
tema, e que se encontra diretamente ligado a discussões que constituem
minha tese de doutorado, como, por exemplo, a polifonia de traduções
realizadas por escritores-tradutores, nas quais é possível identificar tanto
traços do escritor traduzido quanto da poética do escritor-tradutor
responsável pela tradução.
41
Os escritores-tradutores no Brasil e a formação do cânone literário
43
É possível identificar na declaração de José Otávio Bertaso a
importância atribuída pela editora à seleção dos tradutores responsáveis
por grandes obras da literatura mundial, conforme vemos na fala Bertaso
sobre a exigência de seu pai no que diz respeito à relação entre a
“importância do livro” e a contratação do tradutor responsável para tal
tarefa. Com efeito, a editora reforçava a valorização da escolha de
tradutores renomados para tradução de textos canônicos através do
pagamento de salários diferenciados, cujo valor encontrava-se acima da
média ofertada na época a estes profissionais, como defende Bertaso ao
relatar que
44
traduzida e a escolha dos responsáveis pela tradução. O corpus da
pesquisa será selecionado a partir do recorte temporal do século XX em
diante, por conta da riqueza documental e teórica existente para o devido
período.
Para o levantamento das traduções será utilizado um dos bancos
de dados mais respeitados na área da tradução, a saber, o Index
Translationum da UNESCO, única bibliografia internacional de traduções.
Ademais, serão utilizadas pesquisas brasileiras sobre o tema, tais como o
“Dicionário de tradutores literários no Brasil”, organizado por
estudiosos da Universidade Federal de Santa Catarina, o site da tradutora
Denise Bottmann, “Não gosto de plágio”, em que a historiadora e
tradutora elenca uma série de levantamentos de obras traduzidas no
Brasil, bem como obras de teóricos que desenvolveram pesquisas de
cunho histórico e catalográfico sobre o tema, como a obra de Sônia Maria
de Amorim, Em Busca de um Tempo Perdido: edição de literatura traduzida pela
Editora Globo (1930-1950) (2000), O livro no Brasil: sua história (1985), de
Laurence Hallewell, Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no
Brasil (2003), de Lia Wyler, entre outros.
Considerações finais
45
defender a tese “(Des)aparecer no texto: o escritor-tradutor na tradução
coletiva de À la Recherche du temps perdu de Marcel Proust” diante da banca
composta pelos professores Dra. Marie-Hélène Catherine Torres, na
qualidade de presidente, Dr. Ronaldo Lima, Dr. Pedro Heliodoro de
Moraes Branco Tavares e Dra. Sandra Mara Stroparo, cujas
contribuições ainda ressoam em minhas produções posteriores e na visão
que tenho do trabalho acadêmico, assumi o precitado cargo. De modo
que tais experiências se mesclam tanto em sua constituição quanto em
seus desenlaces, sendo-me impossível dissociar uma da outra. Trata-se
de experiências com períodos de realização simultânea, como ocorreu
durante o processo de preparação para o concurso, cujo tempo fora
compartilhado com a finalização e defesa da tese. De fato, estes ciclos se
entremearam uma vez que à conclusão do doutorado sucedeu a minha
entrada profissional na Universidade Federal de Santa Catarina.
A esse respeito, cabe ressaltar, ainda, a importância da concessão
da bolsa de estudos CAPES/DS durante todo o período de doutorado,
sem a qual, certamente, não teria tido a possibilidade de me dedicar
exclusivamente ao trabalho acadêmico, tampouco de me preparar para o
concurso em questão. Além disso, saliento a consonância entre as
temáticas desenvolvidas na PGET e o conteúdo programático exigido
no concurso, composto de dez pontos dentre os quais quatro
concerniam diretamente questões nucleares do Programa. Ora, tal
aspecto evidencia, mais uma vez, a pertinência e a importância,
merecidamente, atribuídas aos Estudos da Tradução no cenário
intelectual hodierno, o qual não mais dissocia aspectos tradutórios de
questões de áreas como a Literatura Comparada, os Estudos Culturais,
Decoloniais, Estudos Feministas, entre outros.
Quanto ao trabalho que atualmente desenvolvo na Universidade
Federal de Santa Catarina na qualidade de docente, no âmbito da
graduação, os conhecimentos adquiridos durante a minha formação
doutoral mostram-se, igualmente, fundamentais, uma vez que a tradução
encontra-se contemplada direta e indiretamente em diversas disciplinas
da grade curricular do curso de Letras em Língua Francesa, a saber,
“Estudos da Tradução I”, “Estudos da Tradução II”, “Estudos da
Tradução em francês I”, “Estudos da Tradução em francês II”, mas
46
também nas disciplinas de Língua e Literatura francesas, as quais
tangenciam questões tradutórias. Com isso, reforço, mais uma vez, o
caráter interdisciplinar dos Estudos da Tradução, que transparece em sua
presença inerente em outros campos do saber.
Finalmente, ao discorrer sobre a minha trajetória acadêmica junto
à PGET e seus desdobramentos profissionais, percebo que os
ensinamentos e experiências ali adquiridos ultrapassam, imensamente,
delimitações objetivas e influem diretamente não apenas na minha
formação acadêmica e profissional, mas também pessoal. Afinal, em seus
auditórios, salas de aula, corredores e afins, tive a oportunidade de
conhecer e compartilhar conhecimentos e vivências com pessoas que se
tornaram fundamentais não somente em minha vida profissional, mas
também pessoal, razão pela qual sou extremamente grata por essa
oportunidade.
Referências
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literatura traduzida pela Editora Globo (1930-1950). São Paulo, Edusp;
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NÓBREGA, Thelma Médici. São Paulo: Perspectiva, 2013.
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47
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VENUTI, Lawrence. The Translator's Invisibility: a History of
Translation. London and New York: Routledge, 1995.
WYLER, Lia. Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no
Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
48
A PROMOÇÃO DO ACESSO A TRADUÇÕES
PROFISSIONAIS 1
Reginaldo Francisco 2
Roney Belhassof 3
Introdução
e-mail: franciscotradutor@gmail.com
CV: http://lattes.cnpq.br/2265602261013158
3 Especialista em Análise de Sistemas PUC/RJ.
CV: http://lattes.cnpq.br/8712264402924546
49
Os avanços tecnológicos das últimas décadas, especialmente
com a popularização da internet, levaram à geração de informações a um
ritmo inédito na história da humanidade. Hoje se produz em dias uma
quantidade de conteúdo equivalente à produção de séculos no passado,
tendo a internet se tornado seu maior repositório e meio de divulgação.
Por consequência, uma vez que esse conteúdo é produzido em diversos
idiomas, cresceu também, de forma exponencial, a demanda por
tradução, e a tecnologia possibilitou o surgimento de variadas soluções
para atender ao menos uma parte dessa demanda.
Hoje se traduz como nunca antes (em diferentes sentidos):
ferramentas computacionais diversas facilitam o processo de tradução e
aumentam a produtividade do trabalho dos tradutores profissionais;
sistemas de tradução automática cada vez mais avançados ajudam em
situações nas quais não é necessário ter uma tradução profissional, mas
apenas uma ideia geral do conteúdo de um texto; iniciativas de
crowdsourcing e traduções voluntárias (traduções de fãs, iniciativas como
Tradutores Sem Fronteiras 4 , etc.) atendem outras parcelas específicas
dessa demanda.
No entanto, mesmo com tantos avanços e alternativas, uma
quantidade gigantesca de textos que poderiam interessar a pessoas de
diferentes culturas e idiomas permanece sem tradução. Como interessam
principalmente a indivíduos ou organizações com poucos recursos, que
não podem pagar por uma tradução profissional, não são contratados
tradutores para traduzi-los; e, como seu conteúdo é mais complexo, não
podem ser traduzidos de forma satisfatória por sistemas de tradução
automática ou por tradutores amadores. Assim, inúmeros artigos
científicos, textos literários, postagens de blogues, notícias, reportagens,
vídeos, podcasts e muitos outros materiais permanecem disponíveis na
internet apenas no idioma em que foram escritos, apesar de interessarem
a milhares de pessoas que não entendem esse idioma.
Essa situação representa um problema não só para as pessoas
que ficam sem acesso ao serviço de tradução profissional, mas também
para os tradutores, já que representa uma limitação às possibilidades do
mercado de tradução. Um exemplo de contexto em que se verifica essa
4 http://translatorswithoutborders.org
50
limitação é o meio acadêmico, representado no Brasil por mais de 8
milhões de estudantes no ensino superior 5 e cerca de 200 mil
pesquisadores6. Grande parte das pessoas desse público precisa, ao longo
da graduação, pós-graduação ou trabalho em pesquisa, lidar com textos
em língua estrangeira, e muitas delas têm dificuldade com isso.
O mercado de tradução já é, sem dúvida, bastante pujante e
diversificado: crescendo a uma taxa de mais de 5,5% ao ano7, gera uma
receita anual de 43 bilhões de dólares8 e inclui diferentes tipos de serviços
e nichos: tradução técnica, tradução editorial, tradução juramentada,
tradução audiovisual, interpretação, entre outros. Apesar de toda essa
pujança e diversidade, os tradutores profissionais quase sempre precisam
limitar-se a atender apenas pessoas jurídicas: prestam serviço para
grandes empresas ou para agências de tradução que intermedeiam a
relação com os clientes finais, geralmente grandes multinacionais.
Além de limitar o mercado, gerando uma demanda reprimida
que os tradutores profissionais não conseguem atender, essa situação tem
ainda outras consequências negativas. Impulsiona, por exemplo, o
desenvolvimento de sistemas de tradução automática cada vez melhores,
já que fica claro para seus desenvolvedores que um número cada vez
maior de pessoas recorre a eles. Mais ainda, contribui para que cada vez
mais essas pessoas se contentem com o nível de qualidade oferecido por
esses sistemas e deixem de reconhecer o diferencial dos tradutores
profissionais. Além disso, como em qualquer mercado, empresas têm
mais força para tentar impor suas condições em relação a prazos e valores,
levando a frequentes insatisfações dos tradutores que se veem obrigados
a aceitá-las.
Diante desse cenário, a proposta do projeto Win-Win foi criar
um serviço para permitir aos tradutores atender essa demanda reprimida,
possibilitando que, por meio de financiamento coletivo, as pessoas
possam dividir o custo de uma tradução. O financiamento coletivo ou
5 http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/32044-censo-da-educacao-superior
6 http://lattes.cnpq.br/web/dgp/principais-dimensoes
7 Disponível em:: https://economia.estadao.com.br/noticias/releases-ae,com-
tecnologias-cada-vez-mais-avancadas-o-mercado-de-servicos-de-traducao-nao-para-de-
crescer,70001701875
8 Disponível em: https://insights.csa-research.com/reportaction/39815/Marketing
51
crowdfunding consiste na arrecadação, geralmente realizada pela internet,
de pequenas contribuições financeiras para reunir fundos e financiar
iniciativas, projetos ou empreendimentos de interesse coletivo, como
filmes, livros, jornalismo cidadão, pequenos negócios, campanhas
políticas, desenvolvimento de softwares e jogos, filantropia, ajuda a regiões
atingidas por desastres, entre outros (LAEMMERMANN, 2012, p. 9;
DAMUS, 2014, p. 10; LEARN2SUCCEED, 2015, p. 2; VALIATI e
TIETZMANN, 2012, p. 2).
Potencializado pela facilidade de comunicação proporcionada
pela internet e pela criação de sistemas on-line de micropagamentos, o
financiamento coletivo teve um enorme crescimento na última década e
movimenta bilhões de dólares no mundo todo por meio de centenas de
plataformas on-line (GIERCZAK et al., 2016, p. 9; LAEMMERMANN,
2012, p. 9; LEARN2SUCCEED, 2015, p. 1; DAMUS, 2014, p. 10;
MAGUIRE, 2014, p. 4, 6, 9) com diferentes finalidades: abertas a
múltiplos tipos de projetos, como Kickstarter9 e Indiegogo10, ou com
focos mais específicos, como música (ArtistShare 11 ), causas sociais e
organizações sem fins lucrativos (Causes 12 , GlobalGiving 13 ),
desenvolvimento de aplicativos (AppSplit 14 ), empreendedorismo
(Crowdcube15 , AngelList 16).17
No Brasil, o modelo ainda é incipiente e pequeno em
comparação com os Estados Unidos, por exemplo, mas já há diversos
sites de financiamento coletivo, tanto mais abrangentes, como Catarse
(https://www.catarse.me), Kickante (https://www.kickante.com.br),
Benfeitoria (https://benfeitoria.com), quanto mais específicos, como
Vakinha (https://www.vakinha.com.br), voltado para projetos pessoais;
Juntos.com.vc (http://juntos.com.vc), dedicado a causas sociais;
9 https://www.kickstarter.com)
10 https://www.indiegogo.com
11 http://www.artistshare.com
12 https://www.causes.com
13 https://www.globalgiving.org
14 http://appsplit.com
15 https://www.crowdcube.com
16 https://angel.co
17 Para informações sobre plataformas de crowdfunding do mundo todo, ver MAGRINI
A solução proposta
53
se para aprimorar a difusão de ideias, informações e conhecimento em
diferentes idiomas.
O processo para financiamento coletivo de uma tradução na
plataforma proposta inclui as seguintes etapas:
O fato de ser uma proposta que busca aliar os interesses dos dois
lados — tradutores e interessados em traduções — levou à escolha do
nome Win-Win, a partir da expressão em inglês para situações em que
todos os envolvidos saem ganhando de alguma forma. E, na verdade, as
consequências do funcionamento da plataforma podem gerar outros
benefícios além dos mencionados, inclusive para outros envolvidos além
dos tradutores cadastrados nela e as pessoas que precisem de traduções:
54
diferenciada do serviço de tradutores profissionais;
▪ os produtores de conteúdo para internet ganham a possibilidade
de divulgação em outros idiomas;
▪ com a publicação das traduções na plataforma, os usuários da
internet ganham com a maior difusão de informações, ideias e
conhecimento.
História do projeto
55
assistida por computador (CAT) e de tradução automática, por exemplo,
e ao mesmo tempo traziam uma explosão de produção de conteúdo que
poderia ser traduzido, surgiu a questão de como seria o futuro da nossa
profissão. Posteriormente, o amadurecimento da reflexão sobre qual
poderia ser o papel dos tradutores profissionais nesses novos cenários
que se descortinavam — ou quais cenários poderiam ajudar a criar —,
foi importante para dar forma ao Projeto Win-Win.
Em 2015, Reginaldo colocou suas ideias no papel e buscou a
parceria de Roney Belhassof, um analista de sistemas formado pela
PUC–Rio e especializado em gestão do conhecimento, comunicação on-
line e cibercultura. Os conhecimentos e a experiência de Roney na área
de TI foram essenciais para complementar aqueles na área da Tradução
de Reginaldo e permitir levar adiante o projeto.
A ideia foi discutida com tradutores e potenciais clientes e fez-se
uma tentativa, ainda em 2015, de reunir os recursos para seu
desenvolvimento por meio de uma campanha de financiamento coletivo
na plataforma Kickante. A campanha teve mais de 100 apoios e
arrecadou mais de R$ 9.000,00; porém, por uma série de motivos que
vão desde o ainda pouco conhecimento do público em geral sobre o
modelo de financiamento coletivo até o momento de incertezas políticas
e econômicas do país, ela não conseguiu atingir a meta e, seguindo o
formato “tudo-ou-nada” típico de campanhas de financiamento coletivo,
as contribuições foram devolvidas e o projeto não recebeu nenhum
recurso. Apesar disso, a experiência foi muito positiva por permitir
divulgar a ideia e formar uma comunidade de interessados e apoiadores,
o que incentivou a continuidade do projeto.
Em 2016, ele foi transformado em uma proposta para o programa
Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE) da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), sendo aprovado
em 2017. A partir dessa aprovação, foi constituída a empresa Win-Win
Traduções e Crowdfunding Ltda, com sede em São José do Rio Preto,
foram selecionados desenvolvedores para completar a equipe e iniciou-
se o desenvolvimento da plataforma.
Criado em 1997, o programa PIPE da FAPESP apoia pesquisas
científicas e/ou tecnológicas em micro, pequenas e médias empresas no
56
Estado de São Paulo e divide-se em três fases: a primeira destinada à
comprovação da viabilidade técnica da pesquisa proposta, a segunda ao
desenvolvimento da proposta de pesquisa propriamente dita e a terceira
ao desenvolvimento comercial e industrial dos produtos ou processos
com base nos resultados das fases anteriores (embora esse
desenvolvimento comercial também possa ser realizado
concomitantemente às fases 1 e 2, como é o caso com a plataforma Win-
Win)18.
Nos nove meses da fase 1, entre dezembro de 2017 e julho de
2018, estudou-se e implementou-se a solução para administrar as
contribuições arrecadadas e os pagamentos aos tradutores;
implementou-se um algoritmo para fazer uma estimativa do valor da
tradução, a ser exibida na plataforma enquanto o preço não for definido
por um tradutor profissional cadastrado; definiu-se um método para a
distribuição dos projetos entre os tradutores profissionais cadastrados;
desenvolveram-se formas de agilizar a etapa de identificação do
proprietário do conteúdo original; criou-se uma solução simplificada para
proprietários de conteúdo integrarem seus sites à plataforma e interligar
conteúdos originais com os projetos e as traduções disponíveis.
Ao longo do desenvolvimento, seguimos princípios de startup
enxuta (RIES, 2012), com a implementação frequente de produtos
mínimos viáveis (MVPs) testados junto aos públicos-alvo, permitindo
avaliar as decisões de desenvolvimento e melhorá-las continuamente em
ciclos de “construir/medir/aprender”. Assim, ao final da fase 1,
chegamos a um protótipo funcional da plataforma, confirmando a
viabilidade técnica do processo proposto, e enviamos à FAPESP a
solicitação do auxílio PIPE para a fase 2. Porém, a aprovação da
solicitação levou muito mais tempo que o esperado, de modo que a fase
2 só pôde ser iniciada em julho de 2019, quase um ano depois da
conclusão da fase 1.
Nesse período, a Win-Win Tradução e Crowdfunding foi
aprovada no processo de seleção para o Parque Tecnológico de São José
do Rio Preto e desde outubro de 2018 é uma das empresas lá incubadas.
Entretanto, em decorrência da lacuna de financiamento, o
18 http://www.fapesp.br/pipe/sobre
57
desenvolvimento do projeto avançou muito pouco até meados de 2019.
Por fim, com o início da fase 2 no mês de julho, revisamos o protótipo
desenvolvido na fase 1, fizemos os ajustes necessários e, em setembro de
2019, foi lançada a primeira versão beta da plataforma, que está em
funcionamento no site https://win-win.net.br.
Próximos passos
58
pesquisa, por exemplo, ou mesmo pagar individualmente por ela, desde
que por meio da plataforma tivessem acesso facilitado a tradutores
profissionais de qualidade.
Portanto, decidimos adaptar nosso processo para possibilitar
projetos de tradução para conteúdos não disponíveis on-line, limitados a
um número reduzido de contribuidores. Essa mudança acarreta uma
série de consequências que serão analisadas, planejadas e implementadas
no sistema, como:
59
Língua Brasileira de Sinais (Libras)
19Muitos surdos “não aceitam serem chamados de deficientes auditivos (DA), sendo o
termo ‘surdo’ o mais aceito, carregando um peso de reconhecimento na qualidade de
sujeito completo e que faz parte de uma comunidade com suas características únicas e de
valor” (MARTINS E XAVIER, 2017).
60
Portanto, a leitura de um texto escrito pode ser muito difícil para
o surdo, além de a disponibilidade da tradução em Libras representar
para ele o direito de acesso ao texto em sua língua materna.
Para alcançar esse público, primeiramente faremos todas as
adaptações necessárias em nosso sistema para permitir projetos de
tradução para Libras, o cadastro de tradutores/intérpretes e a entrega e
exibição de vídeos em Libras. Esse trabalho incluirá frequentes consultas
a membros e estudiosos da comunidade surda, para definir a melhor
forma de atender suas necessidades, respeitando o princípio de “Nada
sobre nós sem nós” (NAVES, 2016, p. 11).
Internacionalização
61
Essa previsão de um futuro processo de localização, ou seja, de
adaptação a outros idiomas, culturas e requisitos de mercados-alvo
específicos (ISHIDA e MILLER, 2010) exige que sejam adotadas ao
longo do desenvolvimento atual medidas voltadas à internacionalização
da plataforma desenvolvida, atentando para questões que
Considerações finais
Referências
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Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira
de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de
2000. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
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65
O CANTO ANTIFONAL NA ADAPTAÇÃO
CINEMATOGRÁFICA HUGO 1
Diogo Berns2
Introdução
67
A pesquisa prossegue ainda tímida no que se refere ao que está no
papel, mas com um turbilhão de ideias que pretendo organizá-las e
agregá-las no texto da tese, prevista para ser apresentada/defendida
publicamente em fevereiro de 2022.
68
passagem bíblica citada refere-se à travessia dos hebreus pelo Mar
Vermelho. Nela, a alegria pela libertação da opressão do faraó é expressa
por meio da música. Ela é a manifestação da alegria que aquele povo
carrega diante do ocorrido. Primeiro, Moisés canta junto aos filhos de
Israel (Ex 15,1), em seguida, Miriam toca tamborim, fazendo as outras
mulheres batucarem e dançarem (v. 20a-b) e, finalmente, entoa, em alta
voz, e responde (v. 21a), constituindo a canção antifonal (GRENZER;
BARROS, 2016, p. 297). As demais passagens bíblicas mencionadas
também estão relacionadas à expressão da alegria. Dessa forma, infere-
se que esse modo de cantar era utilizado para a glorificação ao
Transcendente, que, mais tarde, o Cristianismo herdou do judaísmo.
O florescimento do canto antifonal ocorreu no século IV. Foi no
Oriente, que, respondendo ao desejo de maior participação do povo,
apareceu esse canto, sendo Santo Ambrósio o primeiro a introduzi-lo na
Igreja de Milão (BASURKO, 2005, p. 98 - 99). Segundo o testemunho
dele, os fiéis deixavam toda a agitação enquanto se entoava o salmo,
cantando com harmonia e entusiasmo (DOCUMENTOS DA MÚSICA
LITÚRGICA [1903-2003], 2017, p. 254). O canto antifonal é, portanto,
um canto que vem reunir as pessoas, fazê-las ser integrantes,
participantes e, acima de tudo, uma comunidade em que partilha, na
música, a vida. Esse canto perpassou pelos séculos, sendo utilizado ainda
hoje nas celebrações cristãs. Nas celebrações da Igreja Católica
Apostólica Romana, por exemplo, o canto pode ser intercalado entre
coros/grupos nos seguintes momentos, segundo a Instrução Geral do
Missal Romano (2018): Canto de Entrada/Abertura (cf. n. 48); Glória
(cf. n. 53); Profissão de Fé - Símbolo - (cf. n. 68); Preparação das
oferendas (cf. n. 74).
69
por meio destas estaria contando uma narrativa como ocorre em um
filme (SELZNICK, 2011, p. 13). São 536 páginas - 318 de imagens em
preto e branco, a maior parte de ilustrações, que remetem aos primeiros
filmes. Cada imagem é apresentada ao leitor em duas páginas. A
materialidade da obra existe com os dois signos que se intercalam: ora
páginas com palavras, ora páginas com imagens que foram inspiradas na
história do cinema.
Figura 1: Personagens Hugo, Isabelle e Georges Méliès em The Invention of Hugo Cabret
Fonte: Obra literária The Invention of Hugo Cabret (SELZNICK, 2007, p. 238-239).
Fonte: Obra literária The Invention of Hugo Cabret (SELZNICK, 2007, p. 252-253).
73
Figura 4: Exemplo de Canto Antifonal em The Invention of Hugo Cabret, de Brian Selznick
Fonte: Elaborado pelo autor com base no livro The Invention of Hugo Cabret
(SELZNICK, 2007, p. 193 - 202).
3 Minha Tradução (M.T): “Hugo olhou para o cartaz e, então, Isabelle disse: ‘Rápido! O gerente!’
Ela e Hugo saíram correndo do saguão para a sala de cinema num piscar de olhos, sentaram-se naquelas
cadeiras vermelhas de veludo tão confortáveis que havia no fundo e esperaram o filme começar”.
4 M. T: “Aquela tela branca, ainda sem imagens, lembrou Hugo de um papel novinho em folha, e ele
estava encantado pelo maravilhoso som do projetor que ecoava pela sala”.
74
ao público. Não importa o número de páginas que cada qual está
incumbida, o que é relevante na obra em questão é a cumplicidade, a
junção, a cooperação. Uma pausa e a outra avança. É um revezamento
que envolve o leitor. Nessa alternância entre signos, observa-se um ritmo
diferenciado para cada qual. Os livros ilustrados podem desenvolver no
leitor distinções entre o ato de ler palavras e o de ler imagens (HUNT,
2010, p. 234). Em muitos casos, as imagens exigem que haja um
momento maior de pausa para visualizar os diversos detalhes
impregnados nela. A característica do traço, por exemplo, o contraste
entre o claro e o escuro; o modo como o desenho preencheu o papel e o
enquadramento com o qual foi apresentado ao leitor; a textura; por vezes,
a gramatura das páginas que culmina em outra percepção visual; as
curvas, retas, os efeitos de profundidade, enfim, todo o modo como
concebe um momento narrativo em uma imagem são detalhes que
chamam a atenção do leitor.
A literatura infantil, em alguns casos, incorpora múltiplas
linguagens, formas de escrita e combina outros materiais, como
ilustrações (BASEIO; CUNHA, 2012, p. 2). The Invention of Hugo Cabret,
por exemplo, demonstra que ela é um meio eclético ao apresentar
imagens, fazer referência ao cinema, conter uma linguagem simples capaz
de ser entendida por crianças e adultos. A dinâmica do canto antifonal
como uma homenagem ao cinema evidencia que uma técnica, um
procedimento artístico como esse potencializa o enredo, culminando que
o leitor tenha uma experiência de leitura diferenciada da tradicional
leitura feita por meio de palavras. Essa experiência é vivenciada de forma
mais ampla, mais imergente nesse universo que a narrativa apresenta. Ela
contempla as sutilezas, as profundezas, os pormenores do enredo,
constituindo uma dinâmica capaz de expandir as reflexões e suscitar
novos encadeamentos de sensações.
Não seria difícil de imaginar que uma obra literária, cujas palavras
e imagens denotam o cinema, fosse adaptada para o campo
cinematográfico. Não seria difícil de intuir que uma homenagem ao
75
cinema, cuja estrutura narrativa e cuja materialidade da obra literária
lembra a de um filme, fosse apresentada também em imagens e sons. Em
2011, quatro anos após a publicação da obra literária The Invention of Hugo
Cabret, estreou nas salas de cinema a adaptação cinematográfica intitulada
Hugo (A Invenção de Hugo Cabret, no Brasil).
77
Figura 5: Capa do Blu-ray da adaptação cinematográfica Hugo
Fonte: https://http2.mlstatic.com/blu-ray-dvd-a-invenco-de-hugo-cabret-importado-
com-luva-D_NQ_NP_13903-MLB4581084895_072013-F.webp.
78
O canto antifonal, assim como na obra literária, está incorporado
na estrutura fílmica da adaptação cinematográfica. No entanto, ela não
utiliza dois signos para apresentar a narrativa ao público. De fato,
questiono: de que modo o cinema, em especial, o estadunidense que
procura seguir um formato conservador de estrutura fílmica, embora
inovador no emprego da tecnologia, poderia valer-se de dois signos se
alternando na obra cinematográfica? Há de se pensar que uma sequência
seria com imagens, como o espectador está acostumado. Na outra,
porém, qual seria? Somente de som? Páginas de livros sendo mostradas
enquanto a audiência ficaria lendo? Quais outros meios e métodos
poderiam ser intercalados com a imagem? Como um filme de cerca de
duas horas poderia se sustentar e ser apresentado ao público dessa forma
e de que modo a audiência iria reagir? A princípio, isso seria algo difícil
de conceber para um filme estadunidense (ao menos no início do século
XXI).
Hugo, no entanto, é uma canção intercalada por duas sequências
cinematográficas distintas, cada uma com características que lhe são
peculiares. Essas características são provenientes dos recursos que o
cinema utiliza para contar as narrativas ao público. É esta a ênfase da
pesquisa de doutorado: concentrar o olhar sobre a imagem, som, e
quaisquer detalhes pertinentes a eles para demonstrar /provar /afirmar
/ ressaltar que o canto antifonal está incorporado à estrutura fílmica, que
ele está presente na obra cinematográfica, é o meio pelo qual o enredo é
apresentado ao público com variações de ritmos ao longo narrativa.
Nessa intercalação, repouso e ação se alternam. É uma orquestra
formada pelos recursos cinematográficos. Cada sequência (coro) emerge
no tempo que lhe foi incumbida. Cada qual forma a canção. É essa
dinâmica que dá vida, brilho, esplendor à canção, que atrai a atenção do
público, por vezes, impressionando-o.
Não é difícil de pressupor que o canto antifonal seja apresentado
no cinema por alternância de sequências fílmicas. Cada sequência, ou
seja, conjunto de cenas ligadas por algum ou mais acontecimentos
encadeados por determinada situação, muito, provável terá o mesmo
ritmo, características para mostrar as ações dos personagens ao público.
O canto antifonal estruturado dessa forma é um recurso que vem a
79
enriquecer dramaticamente às narrativas dessa arte. Isso não é difícil de
conceber em uma adaptação cinematográfica, pois para a teoria da
adaptação é elementar que o filme deva se sustentar pelos recursos que
possui, deva preservar, antes de tudo, a autonomia fílmica, antes mesmo
de ser uma adaptação (BALOGH, 2004, p. 53). As sequências fazem
parte do universo cinematográfico, são recursos que compõe o enredo.
É desse modo que a alternância de coros pode ser apresentada em
imagem e som no cinema, a forma com que o cinema contém para contar
as narrativas ao público.
80
contexto: imagens em movimento, em que formam segundos, para
formar minutos, acontecimentos, cenas, sequências, a obra
cinematográfica por completa. Teoriza-se neste capítulo a adaptação
como um ato de (re-)criação (HUTCHEON, 2013, p. 29), cujo ato busca
no cerne dos recursos cinematográficos a expressão, a conexão com o
público. Explorar o que o cinema tem para extrair dele a potência de
compor uma narrativa, uma canção, uma poesia em imagens e sons.
Extrair dele, lapidando, moldando para criar as esculturas, a arte, o pulsar,
a diegese, a vida cinematográfica.
Linda Seger (2007, p. 26) aponta que a adaptação é uma nova obra
em que o adaptador busca o equilíbrio entre preservar o espírito do texto
do qual está adaptando e criar uma nova forma. Em Hugo, observa-se
que o espírito do texto – a homenagem ao cinema – foi preservada com
outra forma estrutural do canto antifonal. As sequências foram um
caminho encontrado para criar dois coros que dialogam ao longo da obra
e conduzem a referida homenagem. É nessa alternância de sequências
que se apresenta a totalidade da narrativa.
Para este capítulo, discorro acerca da primeira intercalação entre
as sequências na adaptação cinematográfica Hugo. A primeira sequência
compreende o início do filme até 05’04”; a segunda, de 05’05 a 07’17”.
Apresentarei um frame de cada sequência, evidenciando características
que as diferem e exemplificarei o modo que cada uma compõe a versão
fílmica. Como a pesquisa está em andamento, optei por mencionar
apenas alguns aspectos das sequências: na imagem, destaco os
enquadramentos e o uso de diferentes níveis da tecnologia 3D; na trilha
sonora, somente a questão do volume que influi na percepção do
espectador e a presença dos diálogos dos personagens.
A primeira sequência é exemplificada pela figura abaixo:
81
Figura 6: Saída de trens da Estação Montparnasse na adaptação cinematográfica Hugo
82
tela (público). Mergulha-se na Estação, por entre os trens, como se o
espectador estivesse em um locomotiva, entrando no local; a fumaça,
espalhada pelo ambiente, demarca o espaço, dando a noção espacial do
cenário. Em uma época em que essa tecnologia é recorrente, Martin
Scorsese a empregou com os mesmos objetivos de Méliès: surpreender,
atrair e alimentar a imaginação (PIOVEZAN, 2012, p. 108). A fumaça e
o vapor perpassam os ambientes denotando também a atividade humana,
o movimento e o trabalho das pessoas no cotidiano. Tudo isso
orquestrado de forma a apresentar a canção de Hugo.
A organização interna do plano se dá a partir de seus elementos
constitutivos: iluminação, cenário, direção dos personagens dentro do
plano, movimento de câmera, encenação, profundidade de campo,
dentre outros. Tais elementos constitutivos da imagem fílmica são a
forma de expressão do conteúdo do filme cinematográfico. O conteúdo
do filme é transmitido, assim, a partir da organização interna de vários
planos, que em conjunto ou separados criam efeitos de sentidos diversos.
83
Hugo e Georges Méliès. Consequentemente, a visão que o público tem
do local é de forma mais estática, não havendo movimentações pela
Estação, além de o volume do acompanhamento sonoro ser mais ameno.
O contato entre os personagens se dá, sobretudo, por meio da fala. É
essa a comunicação que se efetiva. Ela é marcada por revelar ao público
características dos personagens por meio do modo como falam,
expressam-se e interagem uns com os outros. Devido à maior presença
de diálogos em relação à primeira sequência, há pouca movimentação de
câmera, prevalecendo o close-up, plano médio e plano americano, que
mostram, respectivamente, o rosto dos personagens, da cabeça aos
ombros e da cabeça aos joelhos. Consequentemente, o uso da tecnologia
3D é menor, seguindo o princípio de que se deve alternar momentos de
maior utilização com menor uso dela para não cansar os olhos do
espectador. Do mesmo modo, com a ênfase sendo o diálogo e planos
mais fechados, não seria possível utilizar essa tecnologia da mesma forma
que o primeiro momento assim como o impacto na narrativa não seria
tão expressivo.
84
aproximação da câmera revela detalhes dos personagens, como o rosto,
a cor e o brilho dos olhos, bem como sutilezas dos cenários que não
seriam tão perceptíveis no coro anterior. Aqui imperam os detalhes. O
espectador vê o semblante de medo de Hugo, percebe a fúria de Georges
Méliès pelo rosto enrugado e tenso quando agarra o menino que lhe
estava roubando. Além disso, observam-se vários brinquedos na loja de
Méliès, situando o espectador no ambiente de trabalho do vendedor. Os
enquadramentos evidenciam as cores, os detalhes desses brinquedos. As
partículas denominadas de poeira são vistas ao redor dos personagens,
por vezes, revelando o momento de tensão deles. O uso delas é um
recurso dramático para exemplificar algo exterior que denota o interior
dos personagens.
Essas características apresentadas nas duas referidas sequências
serão observadas ao longo das demais sequências da obra
cinematográfica. Cada coro, com as características que possui, projetará
na tela a canção em homenagem ao cinema, especialmente aos
primórdios dessa arte. A adaptação fílmica é, portanto, uma nova forma
de ver, ouvir e pensar uma narrativa literária (STAM, 2008, p. 468), e,
neste caso, de apresentar o canto antifonal. Ao ser materializado nas
versões literária e cinematográfica, essa canção constituiu um
procedimento artístico de exaltação ao cinema, em que os elementos
foram dispostos de forma ativa, participativa, reflexiva, e consciente por
parte de quem os orquestrou.
Considerações finais
85
ao cinema, especialmente aos primórdios dessa arte. Ao modo como ela
foi adaptada ao cinema é que se dá a ênfase da atual pesquisa. A canção
remonta a canções executadas há milênios na história da civilização em
que dois coros alternam no ato de cantar como uma forma de
glorificação ao Transcendente. The Invention of Hugo Cabret foi adaptada
para o cinema com o título Hugo. A versão fílmica, em cores e filmada
em 3D apresenta a narrativa intercalada entre duas sequências distintas
(dois coros). Nessa intercalação, observa-se que cada coro, de acordo
com a característica que lhe é peculiar, constitui a canção. Desse modo,
infere-se que uma canção utilizada para a glorificação ao Transcendente
foi utilizada na composição de uma obra cinematográfica, em que duas
formas de contar a narrativa se unem para contar o todo, tornando Hugo
uma adaptação antifonal.
Ao ser materializada nas versões literária e cinematográfica, essa
canção constituiu um procedimento artístico de exaltação ao cinema, que
o defendo como um recurso a ser explorado nas obras cinematográficas.
Os próximos passos da pesquisa resultarão de toda essa base aqui
apresentada, fundamental para a escrita da tese e os futuros caminhos
profissionais.
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HUGO (A Invenção de Hugo Cabret). Produção: Martin Scorsese, Jony
Depp, Tim Headington e Graham King. Direção: Martin Scorsese.
Roteiro: John Logan. Intérpretes: Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Asa
Butterfield, Chloë Grace Moretz, Jude Law e outros. Estados Unidos,
Paramount Pictures, 2011. Blu-ray/DVD, 126 min, Son., color.
Legendado. Produzido por GK Films e Infinitum Nihil.
90
TRADUZINDO A CULTURA JAPONESA ATRAVÉS
DOS PROVÉRBIOS
Introdução
Nos povos antigos, o provérbio costuma ser muito associado aos contos
moralísticos, às fábulas e aos enigmas. E, como estes refletem bem a cultura
popular, os costumes e a tradição de um povo, os provérbios acabam se
tornando, de certa forma, uma síntese das atitudes morais ou sociais da vida
daquela comunidade. (LACERDA & LACERDA, 2004).
Literatura Estrangeiras.
E-mail: adjabalbino@gmail.com
CV: http://lattes.cnpq.br/9230136802984841
91
história, em uma lógica provinda da sociedade, perpassando as nossas
opiniões pessoais (VELLASCO, 1996).
Presentes nas mais variadas culturas, podem ser comuns a diversos
tipos de povos, não importando seu distanciamento cultural ou físico,
graças a seu caráter abrangente, sua tradicionalidade, seu valor didático
e, até mesmo, persuasivo, envolto em uma condição de elemento de
conteúdo moral e prático. Outro fator a ser considerado com relação aos
provérbios é que estes são fruto da sabedoria coletiva, e não produções
independentes e individuais, já que pertencem ao patrimônio de cada
língua, sendo considerados como segmentos e não cada um dos seus
elementos constitutivos isoladamente – a unidade de tradução. Nestes
casos, ainda que não haja soluções definitivas por conta das
especificidades culturais dos provérbios, há necessidade de se pensar em
recursos para a busca de equivalentes de tradução para cada provérbio:
93
período Heian (794-1185), em que os participantes deveriam localizar os
pares de concha que continham a primeira parte de um poema e a
continuação deste; e o jogo Karuta, literalmente ‘Carta’, foi introduzido
no Japão pelos portugueses no período Azuchi-Momoyama (1573-1603).
Inicialmente difundido na região oeste do Japão, em Kamigata, em
seguida chegaria à região de Edo, no Leste do Japão – que, hoje, é a atual
capital do país, Tóquio –, para, posteriormente, circular por todo o
arquipélago japonês até os dias de hoje (TOMIMATSU, 2003).
Entre suas diversas vertentes, dois tipos são os mais conhecidos:
o Uta-Garuta e o Iroha Karuta. O primeiro consiste em 200 cartas divididas
em duas partes distintas, cada uma contém 100 poemas conhecidos
como Waka – dentre os modelos de Uta-Garuta, o mais conhecido é o
百人一首 (Hyakunin Isshu) – ou “100 pessoas, 1 poema”.
O segundo tipo foi uma evolução mais simples do Uta-Garuta, e
vem a ser o objeto de estudo desta pesquisa, o Iroha Karuta. Dentre esses
exemplares, encontram-se variedades tais como algumas compostas por
símbolos nacionais do Japão; dialetos regionais; representação das
prefeituras e regiões do país; eventos sazonais para crianças; Obake –
monstros e espíritos japoneses –; e, inclusive, uma versão de poemas de
Shakespeare, o シェイクスピアかるた (Sheikusupia Karuta).
A mais comum, entretanto, é uma categoria do jogo voltada para
crianças cuja ordem segue a organização do alfabeto japonês – “I-RO-
HA”, uma versão japonesa do “ABC”. Nesta categoria existem dois
modelos mais difundidos de acordo com a região onde despontaram: o
Kamigata Iroha Karuta e o Edo Iroha Karuta. Com algumas diferenças sutis
entre os provérbios adotados para compor o jogo, ambas as versões são
compostas por 96 cartas, divididas em dois conjuntos de 48 cartas cada
– o yomifuda (para as cartas que contêm o enunciado a ser lido, composto
por um provérbio clássico) e seu correspondente, o torifuda (para as cartas
que contém a ilustração e o fonema alfabético que inicia o provérbio),
como pode ser visto no exemplo a seguir3:
3 Fonte: https://happylilac.net/karuta-kotowaza.html
94
Transcrição: Ishi no we ni mo san nen
4 Sistema criado por James Curtis Hepburn para otimizar tanto a leitura quanto sua
transposição para a oralidade por aprendizes habituados ao sistema de escrita ocidental.
As relações entre som, grafema e fonema se aproximam daquelas preconizadas para o
alfabeto latino em suas bases gerais, no caso em questão, prioritariamente pautadas nos
parâmetros e convenções da língua inglesa. (MICHAELIS, 2000).
96
Transcrição da explicação do provérbio: Donnani tsurai koto demo shinhou zuyoku yareba
mukuwareru5
Os provérbios e a tradução
5 “Não importa o quão difícil seja, se você for perseverante, será recompensado”
(tradução nossa).
97
e conhecimentos gerados pela experiência popular.” (TEIXEIRA, 2000,
p. 11). Entretanto, embora provérbios reflitam valores morais, é
concebível que tais valores tenham nuances culturais próprias, com
características que variam conforme cada região, o grupo social,
categorias profissionais, familiares, entre outras. Como afirma André
Jolles, “[...] numerosos provérbios originam-se em meios profissionais
bem definidos: máximas militares, anexins de artesanato [...]. A formação
intelectual ou moral também implica diferenças no uso dos provérbios”
(JOLLES, 1976, p. 129).
A temática específica desta pesquisa, a tradução de provérbios,
conduz à consideração de uma série de aspectos que permeiam esse tipo
de tradução, entre as quais podemos citar a oposição entre a literalidade
e o sentido. Sob a ótica de Berman (2007), uma tradução literária não
implicaria a adoção restrita de palavras do texto a ser traduzido, e sim um
ajuste dos idiomas envolvidos, respeitando-se ambos, sem violar a
estrutura do alvo, mas de modo que a origem de cada provérbio pudesse
ser percebida. Essa afirmação foi corroborada por Eco (2007), para quem
traduzir é estar em constante negociação com o texto de partida, mas
também com o texto de chegada, pois o produto resultante da
convergência de orientações provenientes de diversos polos constitui
precisamente a tradução. Ou seja, as escolhas tradutórias vão muito além
de equivalências gramaticais. Berman fala ainda sobre o mal-entendido
comum ocasionado pelo termo “tradução literal”, que normalmente ser
confundido com o ato de se traduzir “palavra-por-palavra”. Em
determinadas situações as duas opções parecem se confundir, como no
caso de alguns exemplos citados por Berman, na tradução de provérbios
– que podem, de certa maneira, ser comparados à tradução de metáforas,
pois apresentam particularidades culturais que tendem a transcender seus
significantes.
Fazer uso de provérbios, dado o seu caráter de expressão
metafórica, implica correr riscos, pois não se tem controle de sua
compreensão por parte do leitor. Não há garantia de que a mensagem
será interpretada exatamente como foi intencionalmente proposta, tendo
em vista a sua característica de incompletude. E se não há garantia de
compreensão dessas em estruturas linguísticas fixas em nossa própria
98
língua materna, quando se trabalha com a tradução de metáforas em um
idioma distinto do materno, temos mais dificuldade ainda para entendê-
la neste estudo em questão: a compreensão da metáfora em si,
apresentada sob a forma de provérbio, somada à tradução de base.
Os provérbios de uma língua, algumas vezes, têm equivalentes em
outra língua. De modo semelhante, algumas metáforas são tão
amplamente difundidas que emergem em diversas línguas. Outras, no
entanto, apesar de sua similaridade, possuem significados
completamente distintos. Face a esta especificidade, Berman acredita que
se deva jogar com a tradução, mas respeitando-se o que está além das
palavras,
99
Sendo que este estranhamento ao qual se refere é o que,
normalmente, os tradutores têm por costume apagar. Para muitos
tradutores, “a tradução é uma transmissão de sentido que, ao mesmo
tempo, deve tornar este sentido ‘mais claro’, limpá-los das obscuridades
inerentes à estranheza da língua estrangeira” (ibid).
Da mesma forma como a tradução propriamente dita é tratada
como objeto de estudo desde os tempos de Cícero e Horácio (séc. I a.C.)
– que também se utilizaram de grande número de provérbios em suas
obras –, os provérbios remontam à antiguidade, desde os tempos de
Platão, Aristóteles e Sêneca, e também se fizeram muito presentes à
época do Renascimento e no decorrer dos séculos seguintes, nas obras
de Dante, Shakespeare, Cervantes, Camões, entre outros grandes nomes.
Paralelamente aos provérbios, as metáforas também não se
restringem à linguagem literária. Para Lakoff e Johnson (2002), o “nosso
sistema conceptual ordinário, em termos do qual não só pensamos, mas
também agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza” (p. 45),
ou seja, estariam presentes em nosso discurso diário, sendo os processos
do pensamento humano bem como a linguagem, amplamente
metafóricos, por isso, para estes estudiosos só é possível entender uma
metáfora em um enunciado devido ao fato de esta fazer parte do sistema
conceitual das pessoas.
A metáfora, como parte essencial da comunicação, sempre foi
amplamente discutida no âmbito dos Estudos da Tradução, e a tradução
de metáforas, seja em um contexto literário, seja no caso dos provérbios,
é uma atividade complexa, pois transcende barreiras culturais. Elementos
linguísticos e culturais estão intrinsecamente interligados, por isso a
tradução só é compreendida pelo público-alvo se o seu contexto cultural
for considerado, ou se o tradutor encontrar meios para propor
equivalências adequadas.
Lakoff e Johnson (2002) explicam que os nossos pensamentos e
ações são regidos por metáforas, e que estas são uma forma de
compreender o mundo, a nossa cultura e a nós mesmos. E esses valores
individuais, se considerados particularidades culturais, podem interferir
nos conceitos e em expressões linguísticas criadas a partir de metáforas.
Consequentemente, o resultado seria a obtenção de diferentes
100
significados, decorrente da variação cultural incutida na individualidade
de cada cultura.
A partir de uma perspectiva bastante simplificada o leigo pode,
por vezes, supor que traduzir é um processo mecânico no qual o
tradutor, conhecedor de ambas as línguas, simplesmente substitui
palavras e expressões de uma língua-base, por equivalentes na língua-
meta. Todavia, aqueles que de alguma forma estão, ou em algum
momento estiveram envolvidos com este tipo de trabalho, sabem que
traduzir não se limita a simples processos de substituições lineares de
palavras ou de sequências delas. Talvez a suposição do leigo até pudesse
ser real em casos de unidades isoladas, frases cristalizadas, ou até mesmo
de orientações de natureza técnica, por exemplo, que possuem
terminologia específica e, provavelmente, não necessitariam de
considerações culturais mais aprofundadas. Mas não sendo este o caso,
sabemos que a tradução engloba, necessariamente, intensa reflexão a ser
realizada, tais como as que envolvem diferenças culturais e linguísticas e
que interferem, forte e decisivamente, nas composições de sentido. Por
esta razão, são observadas, especialmente, as diferenças e
particularidades que fazem parte do contexto intercultural, e propõe-se,
através deste estudo, uma análise comparativa de idiossincrasias próprias
a cada uma das culturas e a cada uma das línguas envolvidas.
Cada cultura é única e apresenta suas próprias idiossincrasias.
Logo, cada cultura tende a estruturar as suas próprias formas de pensar
e agir. Por isso, o fator cultural tem grande importância na criação e na
manutenção das metáforas que estruturam o pensamento humano.
Diferenças culturais entre uma língua-base e uma língua-meta, bem como
entre as cultura-base e cultura-meta, são frequentemente mencionadas
como problemas de tradução, como é o caso dos provérbios e metáforas.
Ao tradutor cabe a responsabilidade de fazer cada escolha – seja pela
tradução literal, pela substituição por uma expressão correspondente,
pela paráfrase ou por qualquer outra escolha.
Apesar de ambos, provérbio e metáfora, serem um fenômeno que
pode ser destacado nas investigações de caráter intralinguístico, isto é,
circunscrito ao sistema de uma língua específica quando da leitura do
texto, as bases consideradas para a realização deste estudo são de
101
natureza interlinguística, visto que abordará questões de interpretação
implicando mais de uma língua, e particularmente, quando traduzimos
um provérbio de uma língua para outra.
Trata-se de lugar-comum afirmar que o ato tradutório implica
‘realizar escolhas’. Todavia, as decisões exigem que o tradutor esteja
situado no tempo e espaço próprios àquilo que traduz, cabendo a ele
definir uma estratégia de trabalho que preserve a referência à instância
que transfere o saber específico e que ainda seja eficaz na cultura para a
qual o texto é transportado, partindo de características específicas das
culturas envolvidas, bem como de instruções que o guiam na tarefa da
tradução. Ver-se, assim, envolvido nas circunscrições locais de um texto
escrito para uma língua e cultura com o objetivo de, a partir desse ponto,
realizar a tradução não apenas de um idioma para outro, mas também, e
principalmente, de uma cultura para outra, recriando sentidos possíveis
do texto original em outro texto.
A tradução está incorporada em todo e qualquer processo de
comunicação. Como tal, deve sempre favorecê-lo, ainda que tal
procedimento implique transferências de sentido do texto original,
almejando obter reações similares nos leitores do texto traduzido, de
forma natural e espontânea. Sob essa ótica, o tradutor passa a constituir-
se como elemento-chave no processo de transmissão de qualquer
mensagem que traduza. Contudo, a busca por aproximações e efeitos
equivalentes, por vezes torna-se tarefa inatingível, especialmente quando
as língua-base e língua-meta estão intimamente atreladas a culturas
substancialmente diferentes entre si. Em casos dessa natureza parece
que, há que se incitar aproximações, todavia sem ignorar diferenças.
Pressupostos teórico-metodológicos
102
ressaltando, assim, as peculiaridades de cada idioma, como pode ser
comparado na sequência:
103
animal. Em língua portuguesa, temos o provérbio “Gato escondido com
rabo de fora”, que apresenta a ideia equivalente de fazer algo escondido,
mas só parcialmente. Essa expressão não foi tida como de conhecimento
generalizado, pois de acordo com a coleta de dados durante a pesquisa,
em questionário aplicado a participantes, nem todos compartilhavam do
seu entendimento.
Após proceder à coleta, objetiva-se analisar as possibilidades e
equivalências localizadas entre os provérbios nas línguas envolvidas nesta
pesquisa, pois, considerando as diversas interpretações possíveis, por
mais simples e breves que sejam, estas revelam-se produto de um ‘sujeito
interpretante’ e, não seria, assim, uma compreensão ‘neutra’. Essa teoria
de subjetividade interpretativa do leitor já era defendida por Steiner
(2005), que dizia que a tradução não escapa da leitura e da interpretação,
e que a vida do texto depende de leitura, que será inevitavelmente
produto do enquadramento e da perspectiva em que ocorre.
Considerações finais
104
sentido poderia ser prejudicado ao ser levado a um outro idioma e
cultura.
Às vezes, a grande pluralidade de componentes de natureza
linguística e cultural contidas em uma simples unidade lexical, constitui
somente um dos vários desafios que se enfrenta ao trabalhar códigos
linguísticos tão distantes entre si, tendo em vista que os contextos mais
amplos se estendem muito além do léxico. É graças aos dicionários e
coleções lexicográficas bilíngues e/ou plurilíngues que, além de diversas
outras funções, desempenham a tarefa de repertoriar tais componentes
e/ou expressões linguísticas, que o leitor/consulente pode recorrer em
busca de auxílio a fim de compreender o pensamento do ‘outro’.
Após o período pós-queda do Império Romano, época em que
monges copistas utilizavam glosas marginais nos textos a fim de
esclarecer o significado de expressões ou termos específicos, auxiliando
o leitor em sua compreensão, percebeu-se ao longo do tempo que o uso
desses elementos paratextuais reforçou a necessidade de uma
organização dos léxicos que foram sendo anexados aos manuscritos, para
que pudessem ser consultados com maior facilidade. Inicialmente
incluídas nos manuscritos em forma de apêndices ordenados
aleatoriamente, posteriormente estas glosas começaram a ser organizadas
em ordem alfabética, deste modo, pode-se afirmar que, ao organizarem
as glosas alfabeticamente, os monges copistas concluíram o processo de
criação da Lexicografia e do dicionário tal como os entendemos hoje.
(DURÃO, 2011).
A análise e a elaboração de dicionários estão amparadas nos
princípios teóricos da Metalexicografia. Não obstante a prática
lexicográfica ser milenar, foi somente a partir da metade das décadas de
60 e 70 que se iniciaram, efetivamente, os estudos teórico-lexicográficos,
que desde então, vêm enriquecendo a área. Todos os dicionários têm
uma macroestrutura, que consiste no conjunto das entradas ou unidades
léxicas, e uma microestrutura, que oferece informações sobre cada
unidade léxica/tradução; além de terem paratextos, que são informações
sobre a construção dos dicionários disponíveis aos leitores/consulentes
(WELKER, 2004).
105
Com vistas à análise e interpretação de aspectos linguísticos e
tradutológicos, e considerando-se o papel exercido pelo dicionário e sua
relação com questões discursivas, históricas, culturais e demais aspectos
convergentes à estrutura e funcionamento das línguas, esta pesquisa de
caráter multidisciplinar, confluente entre as áreas da Paremiologia, da
Lexicografia, e dos Estudos da Tradução, objetiva trilhar os percursos
traçados ante o desafio de lidar com línguas diametralmente distantes,
observando o papel do tradutor enquanto mediador e criador de um
novo texto, e mantendo
106
movimentos em espiral, que remetem à noção de processos de retomada
e de revisitações.
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111
AS TRADUÇÕES DE CONTOS DE CLARICE
LISPECTOR PARA A LÍNGUA ESPANHOLA
Introdução
113
curso foi em língua espanhola, como pertinência de formação acadêmica
escolhi me concentrar na língua e me especializar em língua, história e
cultura de países hispânicos. Por uma questão ideológica, história e de
identidade, me comprometi a dar visibilidade à escrita feminina. Ler,
pesquisar e escrever principalmente sobre autoras e suas trajetórias. A
academia, como tantos outros espaços de produção intelectual, sempre
foi dominada por homens e se faz urgente a necessidade de mudança. Li
várias autoras, sobretudo poetas cujos escritos poderiam ser meu objeto
de pesquisa e tradução. De Alejandra Pizarnik da Argentina à Gabriela
Mistral do Chile, desenvolvi durante a graduação pesquisas, banners,
oficinas e minicursos que traziam mulheres escritoras para o centro das
discussões. Embora as minhas pesquisas eram iniciais e imaturas, as
leituras para desenvolver cada um dos trabalhos foram me
proporcionando novas perspectivas e moldando o meu perfil de
pesquisadora. Para o projeto de mestrado que submeti à PGET, me
propus analisar as traduções de contos de Clarice Lispector para a língua
espanhola. Para me orientar nessa pesquisa escolhi a professora doutora
Meritxell Hernando Marsal por considerá-la uma das professoras mais
inspiradoras do meu curso. E também por ser ela a ter me acompanhado
de maneira próxima, quase todos os meus trabalhos durante o curso de
graduação.
Clarice Lispector foi uma autora que descobri por volta dos doze
anos de idade. No início da década de 1990, no interior do estado de São
Paulo onde vivia, era muito comum ainda empregarem crianças para
trabalhos domésticos, rurais e até mesmo comércio. No início da
adolescência fui pressionada a abandonar a escola e começar a trabalhar
para ajudar minha mãe nas despesas. Para evitar sair da escola, transferi
meu turno escolar para o período noturno e comecei a trabalhar de babá
na casa de uma família. Esta tinha uma pequena biblioteca e um dia por
acaso encontrei o livro A legião estrangeira de Clarice Lispector. Foi a
primeira vez que tive contato com a autora. Pedi o livro emprestado e
quando li o primeiro conto que compunha a obra, “Os desastres de
114
Sofia”, senti uma profunda identificação com a personagem. O livro
possui três contos com protagonistas infantis meninas e um conto onde
o personagem é um menino. Tive a sensação de que o livro me encontrou
e desde então esses contos passaram a dominar meu pensamento e meu
interesse pela autora. No primeiro ano do ensino médio o livro A hora da
estrela fazia parte da lista de leituras obrigatórias. Lembro que fiquei
decepcionada por não sentir a mesma paixão pelo livro como senti na
primeira vez com A legião estrangeira, porém o ensino médio cursei em
uma escola em uma cidade vizinha à que eu morava. Lá a escola era maior
e tinha uma biblioteca muito bonita onde encontrei outros livros de
contos e romances de Lispector. Passei a ler todos e descobri na autora
uma grande amiga. Os contos, mais que os romances, traduziam minha
adolescência solitária, minhas angústias, minhas dúvidas e com a autora
senti uma empatia tão profunda que, parecia que eu a conhecesse
pessoalmente. Para mim não era uma autora falando por um livro, mas
uma mulher se dirigindo a outra mulher como se me olhasse nos olhos e
eu a visse. Também ao ler suas palavras parecia que, pela primeira, vez
eu deixava de ser invisível para ser vista e compreendida.
Durante a graduação pude constatar a popularidade da autora e
uma grande fortuna crítica acerca da sua obra. Ademais, não poderia
traduzi-la por seus livros estarem em língua portuguesa. Fiz uma breve
pesquisa e descobri que embora muito se pesquise sobre sua literatura,
as pesquisas sobre as traduções realizadas de seus textos eram ainda
incipientes. Muito se há para investigar sobre seus escritos que foram
traduzidos para tantas e diversificadas línguas, desde inglês e espanhol ao
japonês e coreano. Como um “retorno às origens”, retomei o livro A
legião estrangeira e tracei o objetivo de analisar as traduções dos contos para
o espanhol e, paralela a essa análise, investigar todas as circunstâncias
sociais e históricas na qual Clarice Lispector estava envolvida, ler as
críticas feitas à autora e registrar minhas próprias percepções, tendo as
teorias da tradução e interpretação literária como respaldo teórico.
Apresentei esse interesse e justificativas à professora Meritxell Hernando
Marsal para averiguar a pertinência da pesquisa. Ela acolheu o projeto
aceitando ser minha orientadora, caso fosse aprovada na seleção de
mestrado. Seus conhecimentos em tradução, literatura e língua foram
115
imprescindíveis para o desenvolvimento da pesquisa. Durante o
mestrado ela me ajudou a delimitar o tema, a ter leituras muito atentas,
teve paciência com minha inexperiência e conseguiu as primeiras edições
dos livros em espanhol que utilizei como objeto para a pesquisa. O
profissionalismo e comprometimento da professora com meu trabalho
garantiu dois anos profícuos em discussões e muito amadurecimento
intelectual, razões pelas quais sou imensamente grata.
As disciplinas cursadas na PGET no período do mestrado foram
fundamentais para basear meu aporte teórico. As discussões acerca das
teorias da tradução foram mais além e de forma muito mais aprofundada
se comparada às discussões introdutórias iniciadas na graduação. A
frequência e riqueza de palestras e eventos onde se discute a tradução
sobre vários gêneros textuais, me fez perceber que traduzir é uma tarefa
árdua, complexa, de envolvimento intelectual absoluto com o autor em
questão. Que além do compromisso com o texto, há o compromisso
com o público e mercado editorial. A tradução é uma linha de pesquisa
riquíssima, porém ainda pouco valorizada. A profissão Tradutor/a,
aparece ainda como sendo um trabalho complementar à renda, mas não
o trabalho principal. Infelizmente, ainda que eu saiba ser possível existir,
não conheci nenhuma pessoa cuja profissão principal seja a da tradução.
O que é contraditório se levarmos em conta todo o tempo e
conhecimento, tanto de língua e cultura, que tradutores precisam possuir
para empreender um trabalho tradutório. Esse fato não deve ser motivo
de desânimo ou descrença, sobretudo para professoras (es) formados na
área de Letras. Pois, os conhecimentos das possibilidades de leituras de
um mesmo texto em diferentes línguas e culturas, acrescenta ainda mais
valor e importância nos estudos de língua, linguística e literatura. A
interdisciplinaridade da tradução a torna profícua e indispensável para
todos os profissionais que têm em textos o objeto central de sua atenção.
116
A dissertação que desenvolvi durante o mestrado trata de três
contos do livro A legião estrangeira. A escolha pela obra foi justificada
anteriormente quando me refiro à minha experiência como leitora de
Clarice Lispector. Os contos foram escolhidos pelo perfil das
protagonistas: as três são meninas entre sete e nove anos que interagem
com adultos e a partir dessa interação formulam questões existenciais
importantes para o desenvolvimento humano, sobretudo do que é ser
mulher. Minha identificação pessoal com as personagens contribui para
a leitura e interpretação que escrevi nas análises, porém a fundamentação
teórica que sustentou meu olhar sobre as traduções foi embasada
especialmente na teoria de André Lefevere. Algumas considerações da
teoria funcionalista de Christiane Nord também foram muito úteis para
analisar as possíveis recepções que a obra obteve em países de língua
espanhola. Lefevere considera que toda tradução é um processo de
reescrita do texto original, enquanto Nord oferece para tradutores uma
extensa lista de critérios que devem ser considerados antes, durante e
depois de empreender a tarefa tradução. Para Nord o público, principal
interessado no texto traduzido, deve ser pensado com seriedade. A teoria
de Lefevere centra especialmente sobre o texto em si a relação, autor
versus texto, texto versus tradutor(a). As duas teorias se complementam e
se explicam e por essa razão, utilizar como embasamento teórico tanto
Nord quanto Lefevere, permitiu traçar um panorama sobre os contos
clariceanos que contemplam os percalços enfrentados pelos tradutores
para conseguirem o resultado obtido e levado para o público.
Considerando que espanhol é a língua oficial de vinte três países e que as
traduções analisadas circulam em língua espanhola por todos eles, tem-
se a problemática de que, a língua é mesma, mas não as culturas.
Especula-se como que a obra traduzida na Espanha, por exemplo, foi
recebida na Argentina. E tendo a Argentina recebido a tradução de
Lispector em variante do espanhol da Espanha, como foi o processo de
tradução para oferecer ao público argentino uma tradução em sua própria
variante linguística?
Essas questões foram problematizadas e respondidas nesta
dissertação, além de contemplar a necessidade e importância da escrita
feminina na literatura universal. Também discorro sobre quem é e como
117
é vista Clarice Lispector no Brasil e no exterior, como sua obra foi
recebida, o quão é conhecida pelo público hispânico, críticas positivas e
negativas à sua escrita, história de sua popularidade, etc. Os objetos de
análise foram quatro traduções diferentes: La legion extranjera, tradução de
Juan García Gayó em 1971, pela editora Monte Ávila, na Venezuela; La
legion extranjera em Cuentos Reunidos, tradução de Juan García Gayó, 2001
pela editora multinalcional Alfaguara, com segunda edição em 2002 pela
mesma editora. Em 2008 sai uma edição do mesmo livro pela editora
espanhola Siruela. Em 2011, La legión extranjera recebe na Argentina uma
nova tradução realizada por Paloma Vidal, pela editora Corregidor. Em
minha pesquisa trouxe uma análise não apenas da tradução desses livros
no nível intratextual, mas também extratextual. Exponho a trajetória
profissional dos tradutores, suas origens e como suas relações com o
espanhol e português influenciaram em suas escolhas linguísticas.
Também trago a análise dos paratextos que auxiliaram de maneira muito
eficiente na percepção de como os livros de Clarice Lispector foram
oferecidos ao público hispânico, ou seja, como as editoras vendem
Clarice Lispector traduzida para o espanhol. Os resultados mostram que
em 2001 quando a tradução de Juan García Gayó foi revisada e incluída
em uma coletânea, algumas alterações subjetivas na capa e prólogo
sugerem um apelo a sexualidade da autora e ênfase em sua beleza física
afim de atrair leitores.
Esse fator trouxe à tona as discussões sobre a mulher na escrita e
a representatividade da mulher no exterior. Embora seus textos
desbravem sentimentos e questões filosóficas, a editora Alfaguara
enfatizou o corpo feminino como principal apelo para vendas e essa foi
uma das principais críticas apontadas, tendo em conta os recursos visuais
da capa e o prólogo escrito pelo escritor mexicano Miguel Cossío. Os
objetivos da pesquisa foram: investigar as traduções realizadas para a
língua espanhola do citado livro de Clarice Lispector, a influência das
editora e da agência literária que representa a autora e também os perfis
do público receptor; relatos de tradutores sobre as formas literárias de
Lispector e os desafios para a tradução; a recepção das obras em países
hispânicos; um recorte dos elementos literários analisados nas traduções
– a tradução da infância, o olhar feminino, animalidade, metamorfoses,
118
metáforas, paradoxos, adjetivações, repetições e expressões linguísticas.
Também explico a razão em analisar justamente esses elementos. A
metodologia que utilizei foi: pesquisa de todas as edições do livro A legião
estrangeira para o espanhol: os tradutores, países de recepção, anos das
publicações, editoras, agências literárias e os paratextos; reflexão sobre a
escrita feminina e a mulher escritora na literatura; análise literária dos
contos escolhidos e a leitura de bibliografia crítica da obra; comparações
das traduções tendo como diretrizes os elementos selecionados para
análise e o estudo dos paratextos.
Os resultados foram respostas sobre como o estilo literário de
Clarice Lispector foi alterado nas traduções, quais foram as principais
dificuldades encontradas pelos tradutores, como as obras de Clarice
Lispector são vendidas nos países hispânicos, quais as semelhanças e
diferenças nas interpretações e traduções por Juan García Gayó e Paloma
Vidal, percebidas nas traduções a partir dos elementos escolhidos para
análise. A defesa da dissertação foi realizada no dia 09 de julho de 2018
e esteve presente na banca as Professoras Doutoras Tânia Regina Ramos
(Programa de Pós-Graduação em Literatura – PGLIT), Andrea Cesco
(Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução – PGET) e
Karine Simoni (Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução –
PGET), todas da Universidade Federal de Santa Catarina – Campus
Trindade.
119
perspectiva de único personagem. O título sugerido inicialmente é: Clarice
Lispector para se ler na escola: Adaptação do romance A maçã no escuro.
O livro A maçã no escuro (1961) é o único romance de Clarice
Lispector onde a proposta deste projeto é desenvolver uma tese que
abranja uma discussão teórica e prática sobre conceitos como tradução,
adaptação, “transcriação”, reescrita e manipulação. Para isso proponho
uma adaptação (intralingual) do romance. O protagonista do livro é um
homem em fuga que acredita ter matado sua esposa e que depois de
muitas noites de caminhada encontra uma fazenda onde consegue
emprego e lá conhece duas mulheres: Vitória, dona da fazenda e sua
prima Ermelinda, uma jovem viúva protegida de Vitória. O romance é
dividido em três partes: 1) “Como se faz um homem”; 2) “Nascimento
do herói”; 3) “A maçã no escuro”. O protagonista Martim passará por
três estágios de autoconhecimento, amadurecimento e culminará na
aceitação de quem ele é, assumindo com dignidade as consequências de
suas ações. Toda a narrativa parte da perspectiva do olhar do homem
sobre si mesmo, sobre a natureza, as pessoas que habitam a fazenda,
questões morais sobre morte, culpa, solidão, família e relações com o
divino, seu trabalho, ao mesmo tempo que evita suas próprias
recordações. Martim faz reflexões de forma dura e realista, mas muito
profunda, crua, como um homem enfiando a mão pela boca, adentrando
a garganta e arrancando suas próprias vísceras. No romance é possível
identificar o niilismo de Friedrich Nietzsche e ceticismo pessimista sobre
o mundo e as pessoas de Arthur Schopenhauer.
O romance é longo e o enredo é circular. Os personagens são
intensos, agressivos e complexos. Adaptar esse romance para o público
infantojuvenil exigirá uma apropriação do estilo narrativo de Clarice
Lispector para que este não se perca, mas principalmente conhecer todas
as particularidades dos personagens e apresentá-los aos jovens leitores de
uma maneira que fique claro que todos têm vida interior e que nessa vida
interior também fazemos escolhas que determinarão as consequências
no mundo exterior. Dar ênfase aos momentos de exposições mais
intensas das emoções e as abordagens de caráter filosófico dos
personagens, recriar a circularidade da obra com as mesmas palavras de
Lispector, mas encontrar métodos de tornar a leitura mais acessível aos
120
leitores que estão se iniciando nas leituras de Lispector, facilitando a
compreensão da obra sem se distanciar do estilo próprio da autora de
narrar.
O objeto da pesquisa é o romance em questão, mas a leitura
completa de toda a obra de Clarice Lispector é indispensável para o bom
desenvolvimento da pesquisa. O objetivo é gerar simultaneamente uma
tese que abarque discussões teóricas e práticas sobre o processo de
adaptação e também um livro adaptado ao público infantojuvenil com
qualidade impecável para ser publicado e colocado no mercado editorial.
Também como diz o título, um livro possível para ser lido nas escolas
por alunos do início fundamental ao fim do ensino médio. Que agrade
crianças e jovens de diferentes idades, mas também adultos, pais,
professores e educadores em geral. É colaborar com a formação do gosto
pela leitura clariceana, ser uma porta de entrada que deverá despertar no
público a curiosidade pelos livros originais.
Algumas perguntas que pretendo responder nessa pesquisa são: a)
Por que adaptar um romance de Clarice Lispector se a própria autora
escreveu livros para o público infantil? Por que adaptar esse romance em
particular e não outro entre alguns dos seus mais famosos como A paixão
segundo G.H.? Por que ler os livros de Clarice Lispector é tão importante
para a formação escolar, intelectual e psicológica dos seus leitores? Como
o livro A maçã no escuro pode despertar o interesse pela literatura
clariceana de forma realmente efetiva considerando que a editora Rocco,
responsável pelos direitos autorais de seus livros tem estratégias próprias
para estimular as vendas de seus livros?
Em particular a última pergunta é a razão inicial para se propor
uma adaptação. Vender livros é muito diferente de ler livros. Dada a fama
literária de Lispector, seus livros ganham formatos editoriais cada vez
mais atraentes, mas o propósito que move essa pesquisa é adaptar uma
obra que realmente atraia o leitor pelo seu conteúdo e não simplesmente
pela popularidade da autora ou a atração pelos designers gráficos dos livros
nas prateleiras. É ir ao contrapelo do mercado editorial, é estimular a
leitura de seus livros pela atração que as narrativas exercem sem depender
apenas de estímulos externos que visam simplesmente as vendas e os
lucros. É impedir que a autora seja lida como “autoajuda” ou ao
121
contrário, ter seus romances considerados “difíceis” e
“incompreensíveis”.
Essas perguntas que bem direcionadas e respondidas podem
movimentar o desenvolvimento intelectual do jovem leitor, pois vai além
do entendimento. Irá forçá-lo a buscar respostas. Para obter respostas é
preciso aprender fazer perguntas e muitas vezes as perguntas são mais
difíceis de serem formuladas do que as possíveis respostas obtidas. O
mais interessante dos livros de Clarice Lispector é que eles quase nunca
oferecem respostas, depende de o leitor preencher os vazios com suas
próprias interpretações. São em sua maioria uma fábrica de perguntas
que vão surgindo de forma incessante. Por isso é tão importante lê-la,
por isso é tão importante que se aprenda a lê-la desde cedo. É necessário
ir além de classificar a autora em determinado período histórico da
literatura brasileira (como fazem nas escolas), mas sim mostrar o que ela
diz, por que diz e como diz. Os teóricos a serem os delimitadores da
pesquisa ainda estão em estudo, porém tenho como o impulsionador
inicial, as teorias de Haroldo de Campos sobre transcrição e retomo aqui
alguns posicionamentos de André Lefevere e Christiane Nord que
sustentaram os meus argumentos desenvolvidos na dissertação.
122
observar em sua escrita reflexos de suas leituras de James Joyce, Franz
Kafka e de russos como Anton Tchekhov e Fiódor Dostoiévski, por
exemplo, no Brasil seu estilo é inédito.
Como a linguagem da autora é uma das características mais ricas
em todas as suas obras, se a adaptação não for trabalhada acompanhada
da reflexão teórica, sensibilidade artística e meticulosidade analítica da
obra, poderá acontecer que essa adaptação sofra uma rejeição entre
intelectuais e críticos literários, mas ao entender que o livro se trata de
uma aproximação (uma porta de entrada) para que crianças e jovens
tenham o primeiro contato com a obra e a autora, a perspectiva de
recepção poderá ser muito positiva. O desafio maior se concentrará na
própria adaptação e finalizá-la resultando em um produto pronto, ao
menos como protótipo acadêmico exemplar do que deverá ser uma
adaptação de autores canônicos para o público infantojuvenil. Os dados
para desenvolver a reflexão teórica são abundantes, tanto sobre literatura
clariceana, teorias da literatura em geral e teorias da tradução. Também é
grande o número de obras clássicas adaptadas que servirão de suporte, a
própria autora escreveu e adaptou textos infantis, ou seja, em todos os
aspectos o espaço para pesquisa é favorável.
Algumas implicações práticas ainda estão sendo consideradas para
compor a pesquisa, como a intenção de entrar nas escolas, entrevistar
professores e visitar bibliotecas escolares. Mas dada a natureza da
pesquisa e o benefício que ela intenciona gerar sobre o ensino e formação
de leitores, a argumentação e os meios para conseguir acesso deverão
seguir o mesmo princípio que delineia toda a pesquisa: a capacidade de
argumentar com elegância, consciência, clareza e objetividade, provando
assim que a leitura abre portas e dota todo e qualquer indivíduo de real
liberdade e poder sobre si, além de influenciar positivamente aos demais
e incitar nos outros a capacidade de questionar e buscar por respostas.
Essa proposta ainda está aberta para discussão sobre sua relevância,
necessidade, viabilidade e sobre o que a experiência com o público, fora
do contexto acadêmico, pode colaborar e enriquecer o resultado da tese
e do livro adaptado. Mas desde já considero uma pesquisa interdisciplinar
como um método importante que deve aproximar os estudantes do
ensino fundamental e médio à realidade das universidades. Assim todo o
123
exercício de se tornar um bom leitor será colocado numa perspectiva
mais ampla, real e alcançável por estudantes independente de sua origem
socioeconômica e/ou racial.
Atualmente a Editora Rocco possui todos os direitos autorais
sobre as obras de Clarice Lispector e publicam, além das edições originais
dos livros da autora tanto adultos quanto infantis, diferentes formatos de
publicação: antologias, coletâneas, coleções, correspondências, livros de
fragmentos onde reúnem aleatoriamente várias frases de impacto
recortadas de seus escritos e descontextualizadas, adaptações para
crianças e livros canalizados para leitores que buscam autoajuda, como
por exemplo a recente edição intitulada Como Clarice Lispector pode mudar
sua vida (2017).
Enquanto isso nas escolas públicas, a única leitura que alguns
alunos têm acesso entre os livros da autora é o famoso A hora da estrela
(1977). Em contrapartida, a Editora Rocco possui uma coleção chamada
“Jovens Leitores” que reúne em quatro livros alguns contos da autora
selecionados pela própria editora e dirigidos ao público jovem. As opções
de leitura são variadas, porém ainda pouco exploradas. Adaptar um
romance complexo como A maçã no escuro não visa reescrever a obra de
forma explicada quando o processo de educação leitora deve ser
desafiante e provocativo. É preparar o leitor para leituras mais densas e
despertar a curiosidade pelo livro original.
A proposta tem também o aspecto científico e acadêmico de
discutir a tradução literária de modo provocativo e questionador. Através
da reescrita de uma adaptação as práticas das teorias serão estudadas,
experimentadas e averiguadas como podem ser aplicadas. Concentrar-se
no público ao qual a adaptação será dirigida, discutir as impossibilidades
da tradução sob perspectivas teóricas, investigar a polissemia literária e
como isso implica as traduções, as adequações da linguagem, a
subjetividade do tradutor e provar que uma adaptação pode fazer jus a
sua obra-prima. Todo o processo de adaptação envolverá também a
formulação de paratextos, como prefácio, prólogo, notas dos
adaptadores e ilustrações, tudo como uma proposta didática.
Harold Bloom em seu livro Como e por que ler (2001) tenta
responder sobre a importância da leitura na formação intelectual,
124
emocional, sensorial, e psicológica do leitor, sobretudo dos jovens. No
livro citado, Haroldo Bloom escreve um prefácio falando sobre os
prazeres da leitura. Questiona as várias e diferentes maneiras de ler e
defende a leitura com um dos maiores prazeres da solidão. Isso por quê,
segundo Bloom, “literatura de ficção é alteridade e, portanto, alivia a
solidão” (2001, p. 15). O autor dedica o livro a ensinar como, e explicar
o porquê ler. A crítica literária segundo Bloom “deve ser experimental e
pragmática, e não teórica” (2001, p. 15). Cita autores canônicos como
Virgínia Woolf, Oscar Wilde, Jorge Luis Borges, entre outros para ilustrar
que não há conselhos de como um livro deve ser lido. A leitura é
individual e uma experiência solitária, pois o livro fala ao indivíduo de
maneira particular e única, correspondendo ao leitor preenchê-lo com
seus próprios significados.
No prólogo, Bloom lança a provocativa pergunta: Por Que Ler?
(2001, p. 17). Entre vários motivos que ressalta sobre o porquê da leitura,
o mais relevante é “desenvolver a capacidade de formar opiniões críticas
e chegar a avaliações pessoais” (2001, p. 17). Ainda enfatiza que “uma
das funções da leitura é nos preparar para uma transformação, e a
transformação final tem caráter universal” (2001, p. 17). Citando vários
autores importantes da literatura ocidental, Bloom faz uma reflexão
apurada da importância que a prática da leitura tem no indivíduo e na
sociedade. Portanto os escritores que usa para exemplificar seus
argumentos, são reconhecidamente autores consagrados, que
influenciaram gerações de leitores ao longo do tempo. Para a
compreensão inicial desses livros, como dos autores citados, Bloom
prepara um livro com textos “explicativos”, ressaltando o valor de cada
obra e o poder que essas leituras têm de “transformação”.
As reflexões de Bloom justificam a iniciativa de adaptar um dos
romances de Clarice Lispector como tarefa “experimental e pragmática”.
Pois a literatura deve ser democratizada, acessível e transformadora. Não
deverá substituir a leitura do texto integral, mas despertar o interesse no
leitor pela obra. Aprender a digeri-la, fazer conexões mentais que a
liguem a outras escritoras contemporâneas e logo por autores que a
própria Clarice Lispector leu e foi influenciada. A elitização da literatura
tem sido uma grande perda para o desenvolvimento intelectual dos
125
estudantes. Os best-sellers que inundam as livrarias afastam cada vez
mais o público que vê livros como mais uma mera mercadoria sem levar
em consideração o valor transformador de um livro. Cabe a nós,
intelectuais, acadêmicos, escritores e artistas levar a literatura de
qualidade a todos, começando pelos mais jovens, pois são eles que darão
sequência às mudanças urgentes pelas quais clama nosso país.
Conclusão
126
possibilidades e escolha. Perante a atual crise na política brasileira, por
exemplo, onde cidadãos e cidadãs se sentem reféns impotentes sob um
governo sádico, a alternativa entre sobreviver, submeter ou combater é
dado quase que espontaneamente.
A experiência pessoal que trouxe para fundamentar a importância
da PGET em minha formação acadêmica é a mesma que me motiva a
seguir acreditando no meu país e no meu povo. Tenho como propósito
cultivar o gosto pelos livros literários, ensinar a apreciá-los e deixar que
a sabedoria de grandes autores fale em meus alunos e ampliem seus
mundos, da mesma forma que fizeram comigo quando eu era ainda uma
criança desacreditada numa cidade pequena do interior paulista. Minha
tese é o início de algo que proponho fazer como profissão e como meta
pessoal. Divulgar, estimular, instigar crianças e jovens aos prazeres da
leitura, do diálogo, da reflexão e da escrita. Formar alunos autônomos e
autossuficientes que não se deixam manipular pelas mídias de massa.
Sobre o campo de trabalho para professores, tradutores e
acadêmicos na área de humanas em geral, é algo muito promissor
acompanhar o trajeto profissional daqueles que defenderam suas teses e
dissertações na PGET e logo se inseriram no mercado profissional. No
meu atual momento toda a concentração está voltada em produzir uma
boa pesquisa e obter ao mesmo tempo, um amadurecimento intelectual
maior. Desde que iniciei as primeiras disciplinas no mestrado, notei que
comparada aos meus colegas, o que mais me falta é vivência em países
estrangeiros. Embora minha formação seja em língua espanhola, ainda
não tive a oportunidade de morar em país de língua e cultura hispânica e
assim consolidar e aprimorar tudo aquilo que aprendi com os livros e o
contato com colegas estrangeiros. Primeiramente, antes de me lançar em
trabalhos de caráter social e político, tenho como meta, após a defesa de
minha tese, compensar a defasagem cultural que me falta.
127
Referências
BLOOM, Harold. Como e Por que ler. Tradução José Roberto O’Shea.
Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.
CAMPOS, Haroldo. Transcriação. Organizadores Marcelo Tápia e
Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015.
LEFEVERE, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária.
Tradução Matos Seligmann. Bauru: Editora EDUSC, 2007.
LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
NORD, Christiane. Análise Textual em Tradução: bases teóricas,
métodos e aplicação didática. Tradução e adaptação coordenada por
Meta Elisabeth Zipser. Editora Rafael Copetti. São Paulo: 2016.
128
TRADUÇÃO RACIAL E TEXTUAL NO ROMANCE IO,
VENDITORE DI ELEFANTI, DE PAP KHOUMA:
SIGNIFYIN(G), EXU E MOBILIDADE IDENTÁRIA NA
FICÇÃO NEGRA
Comentários iniciais
aqueles que estão tão mal quanto nós. Um imigrante sofre, se cala e padece, porque ele
não tem direitos. Precisa reprimir toda reação dentro de si, esvaziar-se de toda
personalidade. Sofre sabendo que essa é a única possibilidade. PAP KOUMA, Eu,
vendedor de elefantes, 2015: 14.
3 Como é ser um imigrante ilegal? Terrível. Principalmente porque você tem que competir
com pessoas em tão má situação quanto você. Um imigrante precisa que aturar todos e
tudo. Ele tem que ficar quieto e aceitar o pior de tudo, porque ele não tem direitos. Ele
precisa reprimir todas as reações, esvaziar-se de sua personalidade e encarar o fato de que
não há nada que ele possa fazer. REBECCA HOPKINS, Fui Vendedor de Elefantes,
2010: 04.
129
das perdas e das trocas entre sujeitos migrantes, o país deixado e a nação
buscada, a migração se apresenta como o deslocamento e, como
consequência, como a construção de variadas identidades. Tem-se,
então, a presença de dois deslocamentos distintos, porém
complementares: o racial e o textual. Na abrangência racial, são os
sujeitos negros – senegaleses – aqueles que se sentem clandestinos na
Itália. O narrador, senegalês, também esclarece que um immigrato deve
subire, tacere e subire, perché non ha diritti [um imigrante deve padecer, ficar
calado e sofrer, porque ele não tem direitos] (KHOUMA 2015: 14). No
campo textual, vemos um romance que se move da língua italiana para a
inglesa e, enquanto se move, vai contabilizando perdas, ganhos e trocas
lingüísticos e culturais na versão traduzida.
Se é verdade que o ato de migrar acarreta relevante elenco de
perdas, ganhos e trocas – tanto raciais quanto textuais – também é
verdade que migrar se articula com o traduzir-se. Em função da
percepção de que migração e tradução se harmonizam em uma
triangulação que ainda envolve tradição, podemos admitir que uma
possibilidade de discussão da literatura negra diaspórica se alicerça na
estreita junção entre o conceito de Signifyin(g) e a energia conceitual de
Exu. Desde o tráfico de africanos para as Américas, tanto Signifyin(g)
como Exu se veem associados à triangulação identitária, composta por
tradição, migração e tradução. Assim, o encontro envolvendo os dois
elementos – o literário da Signifyin(g) e o racial de orixá – se alicerça na
eventualidade do diálogo entre dois fenômenos distintos com vistas a
gerar uma terceira situação. No âmbito literário da Signifyin(g), a
conversa entre dois textos negros contribui para com o nascimento de
uma terceira obra. De forma semelhante, na esfera racial de Exu, o
diálogo entre os deuses e os homens desemboca na inevitabilidade de
uma terceira orientação. Nos dois casos, a terceira alternativa gerará
sempre mais significado. Através da Signifyin(g), o encontro de dois
textos negros tende a gerar um terceiro texto. Sob o auspício de Exu, a
aliança entre as entidades e os humanos desembocará em um terceiro
momento auspicioso de comunicação. Diante da triangulação
envolvendo a Signifyin(g) e o orixá, se pode proclamar que, de acordo
com a experiência filosófico-religiosa em Yoruba, “dois, isto se torna
130
três”. Em outras palavras, a união dos dois elementos em negociação vai
desembocar em um tertius que pede para nascer. Diante da triangulação,
pode-se afirmar, então, que o mundo negro, tanto na perspectiva literária
quanto na arena racial (religiosa), se articula em eterno movimento, o que
acarreta mobilidade identitária.
Assim, a tese que sustenta o processo triangular sob a realidade do
enunciado “dois, isto se torna três” pode ser lida nestes termos: “uma
tradição se move para a tradução por meio da migração”. Aqui, os termos
tradição, migração e tradução se erigem nas relações raciais que são
capazes de estabelecer. Por isso, o que se depreende da tese é que, do
encontro entre tradição e migração, surge a tradução. Assim, a tradição
como entidade original, quando tangida pela migração, abandona seu
estágio original e alcança a fase futura da tradução. Assim, a tradução
negra – a literária com a Signifyin(g); a racial com Exu – é sempre o que
se deseja. Como resultado, tradição, migração, tradução são os termos
básicos que compõem o fenômeno tanto da tradução racial (com Exu)
quanto da textual (com Signifyin(g)).
Esta análise sugere que a literatura negra é um dos loci, onde se
manifesta, de forma concreta o enunciado “dois, isto se torna três”, a
partir da combinação de uma tradição, uma migração e uma tradução.
Estudos intercontinentais (África, Américas, Caribe, Europa) e
interlinguísticos (Inglês, Francês, Português, Espanhol) anteriores
desenvolvidos pelo pesquisador, envolvendo escritores negros já
demonstram a plausibilidade da abordagem. (MARTINS, 2013). Nestas
reflexões que, ora se desenvolvem, o romance Io, Venditore di Elefanti de
Pap Khouma (1990/2015) e sua tradução inglesa I Was an Elephant
Salesman de Hopkins (2010) para o texto oferecem os elementos textuais
e raciais que possibilitam a averiguação do alcance da tese que, não só
problematiza os liames translacionais entre tradição, migração e
tradução, mas também potencializa as características identitárias da
mobilidade sob os auspícios da expressão “dois, isto se torna três”.
131
Na análise do romance, esta discussão procura demonstrar os dois
estágios tradutórios pelos quais passam personagens negros e textos
negros, como acontece com o senegalês Pap, narrador do romance de
Khouma, Io, Venditore di Elefanti. Racialmente, o cidadão senegalês que
deixa a África e se estabelece na Itália avança da tradição africana para a
tradição na Itália, através da migração. Linguisticamente, o romance se
desloca da tradição textual em língua italiana para a tradição textual em
idioma inglês pela migração linguística. Neste sentido, pode-se dizer que,
resumidamente, o romance Io, Venditore di Elefanti é a narrativa do
africano Pap Khouma que migra do Senegal, se estabelece em Milão
(Itália) e, ali, narra sua história de migrante e aquelas experiências de
alguns amigos conterrâneos.
Pap abre o relato pessoal, confirmando a identidade de migrante
senegalês em solo europeu. Realça que
4Sou do Senegal. Fui vendedor e vou te contar o que aconteceu comigo. É um trabalho
difícil, para pessoas que têm consistência e grande firmeza, porque você precisa usar as
pernas e insistir e insistir, mesmo que todas as portas se fecham na tua cara. Não sei quais
são as principais virtudes de um bom vendedor. No Senegal, temos muitos. (...) Com a
venda, ganhamos dinheiro para comer e dormir em ambientes fechados. (...) eu também
aprendi italiano, vendendo. (KHOUMA 2015: 11-13)
132
ganho cultural, confirmando que “vendendo ho anche imparato l’italiano”
[“vendendo também aprendi o italiano”] (KHOUMA 2015: 13).
A mobilidade intercontinental (entre África [Senegal] e Europa
[Itália]) e os deslocamentos na cidade de Milão em função da atividade
de venda de artesanato aproximam Pap e senegaleses da ideia de
“celebração móvel”, proposta por Hall (2006), quando o intelectual
jamaicano se dedica à conceituação de identidades culturais na pós-
modernidade. Aproximo, aqui, os movimentos de tradição, migração e
tradução às identidades culturais de que vale Hall para caracterizar a
conceituação de “celebração móvel” na qual insere a construção de
identidade de sujeitos pós-modernos. “A identidade torna-se uma
‘celebração móvel’”, escreve Hall (2006), quando estabelece que a
identidade é:
133
Venditore di Elefanti [Eu, Vendedor de Elefantes], as identidades culturais de
Pap e dos senegaleses se elaboram como “narrativa do eu” dos
vendedores de elefantes que perambulam pelas ruas de Milão, durante as
vendas de seus objetos africanos. O relato pessoal do senegalês em terra
estranha assume três estágios distintos, funcionando como válidas
estratégias de sobrevivência em mundo hostil. Um estágio identitário se
alicerça na busca unidirecional da cultura local. Esta referenda o
movimento em direção à experiência cultural ocidental que vamos
nominar, aqui, de Italianidade. O desejo de angariar aspectos da vida
italiana os motiva fortemente porque o grupo de senegaleses percebe na
Italianidade desejada vantagens estratégicas e práticas que lhes faltam
como, por exemplo, o “Permesso di Soggiorno” [Permissão de Permanência],
documento de estadia legal no país. Pap esclarece esta opção, escrevendo,
a respeito dos resultados obtidos: “molti restano, lavorono ... conoscono
dele ragzze italiane ... nascono bambini” [“muitos permanecem,
trabalham ... conhecem garotas italianas ... crianças nascem”]
(KHOUMA 2015: 143). O segundo estágio identitário se opõe ao
primeiro, no qual outros vendedores desprezam as benesses antevistas
na Italianidade pelo primeiro grupo de senegaleses. Este contingente de
migrantes ainda aspira reaver seus valores culturais originais, deixados no
Senegal. Este tipo de narrativa engloba mobilidade no sentido do mundo
cultural africano que se pode designar como Senegalidade. Retomar a
vida senegalesa os seduz alegremente, porque esperam encontrar ali i veri
elefanti senegalesi [os verdadeiros elefantes senegaleses]. Pap avalia esta narrativa
alternativa, esclarecendo que molti ragazzi stracciano i loro permessi di soggiorno
e tornano in Senegal, perché non ne vogliano piú sapere dell’Italia [muitos rapazes
destroem suas permissões de permanência e retornam ao Senegal porque não querem
mais saber da Itália] (KHOUMA 2015: 143). Assim, a relação dicotômica
entre a Italianidade desejada e a Senegalidade retomada se estabelece
na dupla “narrativa do eu” dos vendedores de elefantes, não apenas
gerando impasse, mas lançando antagonismo identitário nas hostes dos
migrantes senegaleses que se encontram em Milão.
A pergunta que cabe aqui é como desafiar a polaridade identitária
que separa os dois grupos de senegaleses que, um dia se encontraram em
Milão. A resposta vamos encontrar também em Hall (2006), quando o
134
teórico dos estudos culturais admite que a construção da identidade
cultural se articula como “celebração móvel”, implicando mobilidade e
festividade. Como resultado, se a Italianidade ou a Senegalidade
congelam a “narrativa do eu” do migrante em um ou outro extremo,
impedindo mobilidade e celebração, os vendedores de elefantes nunca se
conformarão à equação “dois, isto se torna três”, que Gates (1988)
propõe para Exu. Em outras palavras, através da triangulação percebida
no orixá, Gates insta a que se deixe o “dois” e se avance para o “três”.
Ou seja, espera-se o movimento na direção da fusão entre Italianidade
e Senegalidade, ou seja, na busca de uma espécie Seneglianidade. Na
verdade, Seneglianidade é a crioulização possível e desejável se o desejo
for obter uma percepção da identidade cultural como a “celebração
móvel” de Hall. Recorro, agora, à tese cara a Glissant (2005) de que
“mundo se criouliza”, isto é, “as culturas do mundo colocadas em
contato (...) transformam-se, permutando-se entre si”. (GLISSANT
2005: 18). Glissant esclarece, então, que “a crioulização exige que os
elementos heterogêneos colocados em relação, “se intervalorizem”, ou
seja, “que não haja degradação ou eliminação do ser nesse contato e nessa
mistura, seja internamente, isto é, de dentro para fora, seja externamente,
de fora para dentro” (GLISSANT 2005: 22). Um momento de
crioulização entre um italiano e um senegalês se verifica na citação
abaixo: “il poliziotto si avvicina. Batte una mano sulla spalda del mio
cliente: “Ma compra, spilorcio, non far perdere tempo a questo ragazzo”.
(...) Ho un ottimo ricordo di Trezzano: vendo sempre, in qualsiasi posto
capiti. (KHOUMA 1990/2015: 92).5
Na conjunção entre a “celebração móvel” de Hall (2006) e a
equação de Exu de “dois, isto se torna três”, proposta por Gates (1988),
a mobilidade identitária do sujeito negro se realiza do passado para o
presente para o futuro. O “três” é o futuro (o ainda não nascido),
enquanto o “dois” se divide entre passado e presente. Para efeitos da
análise romanesca buscada aqui, postulo que, no romance Io, Venditore
di Elefanti, se articulam dois tipos de “celebração móvel” halliana: uma
5 “O policial se aproxima. Pousa a mão no ombro do meu cliente: "mas compre, você
fede, não perca o tempo desse rapaz”. (...) Tenho boas lembranças do Trezzano: sempre
vendo bem, onde quer que eu vá. (KHOUMA 1990/2015: 92).
135
racial e outra textual. A racial procura dar conta das triangulações
identitárias dos negros senegaleses; a textual se interessa em avaliar as
triangulações identitárias do texto romanesco, em seu deslocamento da
língua italiana para o inglês, a língua para a qual se transfere a tradução.
Para caracterizar as triangulações raciais, me valho de três noções:
Negrice, Negritude e Negritice. Ao me ater às triangulações textuais
recorro a três conceitos, também: Paralatio, Similatio, Translatio. Tanto
na tradução racial quanto na tradução textual, Italianidade,
Senegalidade e Seneglianidade estarão contempladas.
136
O excerto selecionado
6 Até a notícia ser divulgada: no final de 1986, o texto de uma lei especial se espalha,
permitindo que todos os imigrantes ilegais obter a autorização de permanência. (...) Um
dia meu olho cai em um anúncio do sindicato. Ele fala da nossa autorização de
permanência. Imensa alegria. (...) consigo até promover uma reunião: somos apenas
quatro. Mas os quatro convencem os outros. Na primeira reunião quase oficial, em um
salão que nos concedeu o sindicato, somos doze. Nasce, então, a nossa associação.
(Khouma Eu, Vendedor de Elefantes 2015: 121-122).
7 As coisas seguem assim até que boas notícias chegam no final de 1986. Dizem que uma
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de Negrice. A Negrice é uma estratégia de sobrevivência em um país
estrangeiro. A Negrice também pode ser conhecida como assimilação
racial. A coisa boa sobre assimilar a cultura de outra pessoa é que você
se abre para o outro. A desvantagem é que você tende a ignorar os valores
culturais que trouxe do seu país. Esse jogo entre a aceitação do
estrangeiro e a rejeição a valores autóctones permanece na base do
conceito de domesticação racial ou cultural. No romance de Khouma Io,
Vendetore di Elefanti, a Negrice dos senegaleses é marcada pela diferença
entre os negros que são e os negros que querem ser, na Itália. O desejo
de se tornar italianos, ou de possuir os bens culturais do país ocidental,
encontra um forte expediente para perceberem-se como italianos: Il
Permesso di Soggiorno (Permissão de Permanência), ou o documento legal
que conferiria a eles o direito de ficar na Itália, de ali viver, com status
quase igual àquele que os cidadãos italianos possuem. Desejando obter a
autorização de residência, organizam-se encontros de senegaleses,
realizam-se reuniões e, com a ajuda do sindicato, cria-se a uma
associação. Ao se tornarem italianos, os senegaleses com i loro Permessi di
Soggiorno, se distanciam de Senegal e, consequentemente, se tornam
diferentes dos senegaleses que ainda não possuem, ou não desejam obter,
o certificado legal.
Similar à Negrice, a Paralatio, ou domesticação textual, é marcada
pela diferença entre texto fonte e texto alvo. O italiano é a língua da
versão original do romance e o inglês é a idioma para a qual o texto
original é traduzido. A diferença linguística entre o idioma de origem e a
língua de destino é a característica mais valiosa da Paralatio. Chesterman
(1997) confirma que "tradutores são agentes de mudança. Os tradutores,
de fato, primam pela diferença "(CHESTERMAN, 1997: 02). A
diferença na tradução paralática é baseada em três expedientes
translacionais: a sinonímia, que é o significado das palavras; a sintaxe, que
dá conta da estrutura das sentenças; a pragmática, que faz referência à
eliminação, ou adição, de termos na sentença. No âmbito da sinonímia
paralática, a tradutora Rebecca Hopkins distingue a palavra [clandestini] da
expressão [illegal immigrants], diferencia [bel] de [glorious], separa [sindicati]
de [labor unions] e, para as palavras [incontro] e [reunione] valida o mesmo
vocábulo [meeting]. Para dar visibilidade à domesticação paralática da
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língua italiana em inglês, como acontece na sinonímia, a sintaxe marca a
diferença entre o texto fonte e o texto alvo. Sintaticamente, a tradutora
americana Hopkins diferencia a frase italiana [si sparge la voce] de sua
contraparte inglesa [Word has it]. Distingue, também, a sentença [que
consentirebbe a tutti] de sua tradução como [is going to allow all], substituindo
o condicional italiano [consentirebbe] pelo futuro contínuo do inglês [going
to]. Na tradução de Hopkins, a frase [I spot] não parece igual a [mi cade
l’occhio]. Mais adiante, a frase [Parla proprio del] não é sintaticamente
semelhante a [It’s all about]. Hopkins toma a locução italiana [in uma sala]
e a transforma na frase [we hold in a room]. A frase ativa [nasce], Hopkins a
rearranja na passiva inglesa [is born]. As diferenças semânticas e sintática
entre o idioma de origem e o idioma de destino continuam presentes na
Paralatio pragmática. Pragmaticamente, a tradutora Hopkins amplia a
locução nominal italiana [Gioia immensa], transformando-a na frase inglesa
[An immense joy comes over me], com o acréscimo de [comes over me], ausente
no original. A palavra [quatro] é tratada pragmaticamente como a locução
nominal [the four of us]. Finalmente, Hopkins diferencia a frase [Siamo in
dodici], transformando-a na inglesa [there are twelve of us].
Se é verdade que, como afirma Gates (1988), tanto a Signifyin(g)
como Exu são portadores de duplas vocalidades raciais e textuais, então
se verifica, na Negrice, a primeira voz da diferença interracial e, na
Paralatio, se constata a primeira vocalização da distinção intertextual.
Nos dois casos, o poder de dominação se consubstancia, de um lado, na
Italianidade, representada pelo “Permesso di Soggiorno”; do outro, na
maneira como a tradutora Hopkins empodera as características
linguísticas e culturais do idioma inglês, em detrimento do italiano.
Todavia, a dualidade da Signifyin(g) e de Exu procura equilibrar o
pêndulo, fazendo com que se possa energizar o lado da dualidade
enfraquecido, colocando a ênfase translatória na Senegalidade e na
língua italiana.
No excerto que segue,
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insistere, insistere anche se tutte le porte ti vengono sbattute in faccia.
(Khouma Io, Venditore di Elefanti 2015:11)8
8 Sou do Senegal. Eu era vendedor e vou contar o que aconteceu comigo. É um trabalho
difícil, mesmo para pessoas que têm perseverança e grande firmeza, porque você precisa
usar as pernas e insistir, insistir, mesmo que todas as portas se fechem na sua cara.
(Khouma, 2015, Eu, Vendedor de elefantes: 11)
9 Sou do Senegal. Eu costumava ser vendedor. Deixe-me contar tudo o que passei.
Vender é um trabalho difícil. Apenas para os mais fortes neste mundo. Você não pode
ser daqueles que desistem facilmente. Você precisa usar as pernas e ser insistente –
mesmo que batam todas as portas na sua cara. (Trad. Khouma. R. Hopkins 2010: 01)
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força" (KHOUMA 2015: 11), para sobreviver em sua dura trajetória
diaspórica no Ocidente. Este poder interno e externo é ativado contra
todas as portas que se fecham na face do vendedor africano. Por outro
lado, a Similatio, ou o poder da língua italiana em relação ao inglês no ato
de tradução, é representada pela manutenção de palavras, frases e
estruturas da língua de origem no idioma de destino. Como a noção de
Similatio sugere aqui, a tradução pretende manter as semelhanças
linguísticas, culturais e textuais entre as duas línguas envolvidas no
processo, fato que tende a distinguir a Similatio da Paralatio, cuja finalidade
é estabelecer diferenças entre a língua A e a língua B. O caso inicial da
tradução similática reside no nome do país mencionado. No nível lexical,
a tradutora americana Hopkins mantém a palavra [Senegal] intacta em
inglês. Outras decisões similares de Hopkins em relação a itens lexicais
incluem as palavras [gambe], [porte] e [faccia] que são traduzidas para o
inglês como [legs], [door] e [face], respectivamente. No nível da locução,
Hopkins decide transferir para o inglês a expressão [anche se] como [even
if]. No nível sintático, a frase italiana [Vengo dal Senegal] permanece
similaticamente idêntica ao seu correspondente inglês [I come from Senegal].
Aqui, as palavras de Venuti (2002) servem para apoiar o processo de
estrangeirização que envolve o conceito da Similatio e a tradução
similática. O teórico da tradução sugere que o processo de
estrangeirização, ou de descolonização na tradução textual, “obriga a
língua e a cultura nacionais a registrar a estranheza do texto estrangeiro”
(VENUTI, 2002: 155).
Embora se justifiquem na duplicidade negra e linguística, os
movimentos raciais e textuais, de um lado, na direção de uma tradição
diferenciadora, patrocinados pela Negrice e pela Paralatio e, do outro, na
rota da tradição garantidora de semelhança, não parecem suficientes para
a efetiva realização da verdadeira tradução. No fenômeno caracterizado
pela expressão de que “dois, isto se torna três”, a tradução que nos
interessa aqui não se encontra associada ao “um” isoladamente, nem ao
“dois” separado do primeiro, mas se efetiva no “três”, momento e lugar
em que se dá a crioulização proposta por Glissant (2005). O pensador
caribenho propõe um passo para além da dupla vocalidade de Gates
(1988), quando enfatiza que é na crioulização que as culturas de raiz
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única tendem a ser controladas para dar lugar a culturas crioulizadas, ou
“culturas compósitas (...) [onde se tem] a identidade como rizoma, a
identidade não mais como raiz única, mas como raiz indo ao encontro
de outras raízes” (GLISSANT 2005: 27). É na perspectiva rizomática do
encontro de raízes (tradições) raciais, lingüísticas, culturais e textuais que
vamos encontrar a identidade como “celebração móvel” de que fala Hall
(2006). Para efeitos da análise que se segue, a mobilidade festiva se
explica pelos conceitos da Negritice e da Translatio.
O excerto que segue,
10 Em uma lanchonete, fiz amizade com os dois baristas. Eles são jovens e fornecem uma
mesa em que exponho as mercadorias. Eles também fazem propaganda para mim:
“compre algo desse rapaz. Você não pode sair sem comprar nada.” Depois, escrevem em
um quadro o nome de quem hesita, ou não quer comprar. Agem assim toda vez que o
cliente aparece, até que ele ceda. Dois italianos com um Citroen dois cavalos se oferecem
para me levar para casa. (Khouma Eu, Vendedor de Elefantes 2015: 92)
11 Faço amizade com dois rapazes que trabalham atrás do balcão de uma lanchonete. Eles
são jovens e me deixam usar uma mesa para mostrar minhas coisas. Até anunciam meus
produtos: “compre algo desse rapaz. Você não pode sair sem comprar algo.” Em seguida,
escrevem os nomes dos clientes que hesitam ou, simplesmente, não querem comprar.
Fazem isso toda vez que alguém entra no local, até que o cliente compre. Dois italianos
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retoma a Negritice, que pode ser definida como a dupla consciência
do sujeito negro. Em relação à duplicidade inerente à identidade do
negro, a Negritice propõe, ao mesmo tempo, aliança com o pai ocidental
e busca do pai africano. O excerto acima é o lugar literário racializado,
em que a dupla consciência de Khouma e de senegaleses ocorre quando
mantêm contato pessoal com cidadãos italianos enquanto vendem seus
elefantes, nas ruas de Milão. Aqui, a Negritude dos senegaleses está
associada à venda de objetos africanos e sua Negrice deriva do fato de que
aceitam a ajuda do povo italiano. A narrativa de Khouma começa com a
amizade que estabelece com dois baristas "em uma lanchonete". Na
lanchonete, os jovens baristas italianos lhe fornecem uma mesa na qual
pode exibir seus elefantes e outros produtos. No entanto, isso não é tudo.
Os italianos também o ajudam a anunciar sua venda, convidando, e até
ordenando, os clientes da lanchonete a adquirir os produtos senegaleses.
Eles insistem, incessantemente, com seus clientes para que se tornem
clientes de Khouma. Porém, se alguns resistem comprar algo do
vendedor senegalês, os baristas escrevem seus nomes em um pedaço de
papel, como forma de pressioná-los. É isso que os baristas fazem toda
vez que Khouma chega para vender e há clientes na lanchonete. Além da
cumplicidade dos baristas com a venda do Khouma, outros italianos se
encontram no recinto para ajudá-lo e potencializar sua vida de vendedor
de outras maneiras. Por exemplo, dois rapazes italianos decidem
oferecer-lhe uma carona até sua casa em seu carro Citroën. Este tipo de
solidariedade entre Khouma e alguns italianos, que decidem apoiá-lo em
seu país, é vista por West (1994) como ação valiosa para tornar a vida e
o mundo melhores. O que realmente acontece entre os baristas, os
motoristas do carro e Khouma pode ser associado à noção de “ética do
amor”, que West caracteriza dizendo que “é feita através da afirmação de
seu próprio valor – uma afirmação alimentada pela preocupação dos
outros: a ética do amor deve estar no centro de uma política” (WEST
1994: 29) do diálogo inter-racial. A venda de produtos africanos permite
que a auto-afirmação de Khouma se desenvolva enquanto as
preocupações dos italianos confirmam as preocupações dos outros com
144
Comentários derradeiros
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forma de integração mútua. É uma grande riqueza cultural nesta época,
atormentada pela mobilidade humana rápida e incontrolável"
(KHOUMA 2015: 52)
Ao aceitar que a pós-colonização também inclui em si mesma
tanto a colonização quanto a descolonização é, igualmente,
recomendável a referência à Negrice e à Paralatio como partes da
experiência colonizadora racial e textual, respectivamente; à Negritude e à
Similatio como vivência descolonizadora racial e textual, respectivamente;
e à Negritice e à Translatio como prática pós-colonizadora racial e textual,
respectivamente.
Referências Bibliográficas
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SINOPOLI, F. Storia e Memorie non Condivise: il Contrappunto
nell’Identità e la Cultura Italiana Contemporânea. In: BRUNETTI, B &
DEROBERTIS, R. Identità, Migrazioni e Postcolonialismo in Italia a
Partire da Edward Said. Bari: Progedit, 2014, p. 135-151.
VENUTI, L. Escândalos da Tradução. Tradução de Laureano Pelegrin,
Lucinéia Marcelino. Villela, Marileide Dias Esqueda, Valéria Biondo.
Bauru: EDUSC, 2002.
WEST, C. Race Matters. New York: Vintage Books, 1994.
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