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O APOLÍNEO E O DIONISÍACO

PARADOXOS COMPLEMENTARES NO NASCIMENTO DA TRAGÉDIA


DE FRIEDRICH NIETZSCHE

Por
Jouberto Heringer
Aluno do Curso de Mestrado em Ciências da Literatura
(Programa de Poética)

Trabalho apresentado ao Professor Alberto Puchet


no curso “Conceitos Básicos do Dramático’
Código LEL 738

Faculdade de Letras da UFRJ


1º Semestre de 2004
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 2

Índice

INTRODUÇÃO 3

1. O APOLÍNEO E O DIONISÍANO 5

2. A TENSÃO APOLÍNEO - DIONISÍANO EM “O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA” 11

BIBLIOGRAFIA: 18
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 3

Introdução
“Os verdadeiros sábios
não têm outra missão
que aquela de nos fazer rir
por meio de seus pensamentos
e de nos fazer pensar
por meio de seus xistes”
Octávio Paz
in “Variações Sobe a Vida e a Morte”1

Pensar o Apolíneo e o Dionisíaco no “O Nascimento da Tragédia” de Nietzsche,

é tratar da questão do pessimismo e a tensão complementar que ele propõe estabelecer

entre estas duas ‘forças’ inerentes e necessárias em cada ser humano. O ponto de partida

para esta obra de Nietzsche para muitos estudiosos de foi o descobrimento do livro de

Schopenhauer “O mundo Como Vontade e Representação” que havia sido publicado em

1865. Para estes, a influência desse livro na vida do jovem Nietzsche é inegável. “O

Nascimento da Tragédia” incorporará alguns princípios da metafísica de Schopenhauer

e alguns aspectos de sua teoria da arte.

Ao propormos neste texto refletir sobre os pontos de apoio para o

questionamento-resposta de Nietzsche sobre a questão do pessimismo em um estudo de

“O Nascimento da Tragédia” queremos ver a natureza e a extensão dessa tensão.

Nietzsche oferece uma solução para o problema do pessimismo; todavia é preciso


O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 4

investigar se essa solução se apresenta como uma verdadeira superação do pessimismo

ou se é uma tentativa frustrada, como apontam alguns comentadores de Nietzsche, já

que surge no âmbito de uma filosofia marcadamente pessimista. Em outras palavras,

será que Nietzsche, utilizando-se de uma “roupagem schopenhaueriana”, como ele

mesmo revela em "Tentativa de Autocrítica", consegue escapar do que é característico

dessa filosofia? Será que há algo em Nietzsche que não foi ainda revelado? Será que

desnudadas de ascetismo e de renúncia as concepções de Nietzsche não apontariam para

uma nova metafísica da arte? Essas e outras questões serão levantas, pensadas e

analisadas a partir da arte e pessimismo na filosofia de Nietzsche.

“- Ousarei
Perturbar o universo?
Em um minuto apenas há tempo
Para decisões e revisões
que um minuto revoga.”
T.S.Eliot, in
“The Love Song of J.Alfred Prufrock”

1
ALVES, Rubem Azevedo, “Variações Sobre a Vida e a Mort”, São Paulo: Edições Paulinas, 1964.p.
149.
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 5

1. O Apolíneo e o Dionisíano
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas.
Não quero separá-las de si próprias, tratando-as por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.
Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço.
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.
(Pessoa 5, p. 244-5).

Nietzsche resolveu estabelecer uma distinção entre o Apolíneo e o Dionisíaco,

pois “A tragédia grega” depois de ter atingido sua perfeição pela reconciliação da

“embriaguez e da forma”, de Dionísio e Apolo, começou a declinar quando, aos poucos,

foi invadida pelo racionalismo. Desse modo, publicou a obra “O nascimento da

tragédia” onde estabelece a dualidade dos dois princípios, visando uma síntese. Essa

obra vai representar a união desses dois elementos, onde Nietzsche vai encontrar a

unidade. Apolo não é o contrário de Dionísio, mas sim uma unidade, onde um é uma

parte distinta do outro. Ele concebe de maneira bem diversa a natureza e o destino

helênicos. Não vê aí uma harmonia mas um complexo contínuo de luta, distingue no

gênio grego estes dois elementos : o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco.

Distinguindo-os mitologicamente, temos: Apolo, para os gregos, como sendo o

“Deus brilhante da claridade do dia, revelava-se no Sol. Zeus, seu pai, era o Céu de

onde nos vem a luz, e sua mãe, Latona, personificava a Noite de onde nasce a Aurora,
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 6

anunciadora do soberano senhor das horas douradas do dia.(...) Apolo, soberano da luz,

era o Deus cujo raio fazia aparecer e desaparecer as flores, queimava ou aquecia a

Terra, era considerado como o pai do entusiasmo, da Música e da Poesia.(...) Deus da

Música e da Lira, Apolo tornou-se, como conseqüência natural, o Deus da Dança, da

Poesia e da Inspiração.”2

E como Heráclito de Éfeso já afirmara (fr.51) que “a harmonia é resultante da

tensão entre contrários, como a do arco e lira”, Apolo foi o grande harmonizador dos

contrários, por ele assumidos e integrados num aspecto novo. A serenidade apolínea

torna-se, para o homem grego, o emblema da perfeição espiritual e, portanto, do

espírito.

Dionísio era o filho da união de Zeus com Sêmele, personificação da Terra em

todo o esplendor primaveril da sua magnificência. “De um ponto de vista simbólico, o

deus da mania e da orgia configura a ruptura das inibições, das repressões e dos

recalques. Dionísio simboliza as forças obscuras que emergem do inconsciente, pois que

se trata de uma divindade que preside à liberação provocada pela embriaguez, por todas

as formas de embriaguez, a que se apossa dos que bebem, a que se apodera das

multidões arrastadas pelo fascínio da dança e da música e até mesmo a embriaguez da

loucura com que o deus pune aqueles que lhe desprezam o culto. Desse modo, Dionísio

retrataria as forças de dissolução da personalidade: às forças caóticas e primordiais da

vida, provocadas pela orgia e a submersão da consciência no magma do inconsciente.”3

2
MEUNIER, Mário. “Nova Mitologia Clássica” Ed. Ibrasa, 1976. p.31 e 38
3
BRANDÃO, Junito de Souza. “Mitologia Grega”. Vol. III Ed. Vozes, Petrópolis, 1989. p. 140
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 7

Nietzsche emprega uma linguagem simbólica e metafórica na apresentação de

suas obras de arte. Ele se impregna do primitivo espírito grego, reconhecendo no

devenir, no fluxo das coisas, a verdadeira dimensão dos fatos; a vida é um jogo

constante atirada ao destino de suas forças. O pathos trágico se nutre do saber que tudo

é uno. A vida e a morte são irmãs gêmeas arrastadas num ciclo misterioso. O caminho

para o alto e o caminho para baixo, segundo se lê em Heráclito é o mesmo. O pathos

trágico conhece Apolo e Dionísio como idênticos. Nietzsche descobre na tragédia grega

a oposição da forma e da corrente amorfa. A esta oposição, Nietzsche chama oposição

entre o Apolíneo e o Dionisíaco. Servindo-se ainda desta diferença, evolui seu

pensamento e integra o apolíneo no dionisíaco. Assim, a verdadeira dimensão da

realidade está num recriar, numa renovação constante; os valores estão em jogo

permanente, os valores estão sempre criando novos valores de acordo com a

diversificação e a intensidade de sua força. Ora, não é outro o espírito da estética

nietzschiana que se encontra centrada na embriaguez, isso é, na capacidade de se

introduzir nos atos humanos mais acréscimos de força, mais movimentação, mais

criatividade, pois é a vontade de potência que dá ao homem o sentido ativo da arte.

Desse modo, o que Nietzsche institui é a formação do apolíneo e do dionisíaco

como princípios de natureza estética e inconscientes, porém, sem deixar de ter como

base as suas origens mitológicas referidas anteriormente.

A relação entre Apolo e Dionísio será de criação, pois a incessante luta entre eles

cria sempre coisas novas, por isso a identificação com a arte.


O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 8

A arte vai ser a maneira pela qual o homem poderá ultrapassar o devir do

cotidiano. Um dos meios para se ultrapassar os “obstáculos” do cotidiano é através da

experiência apolínea, através do prazer e da eternidade. Sem a produção da bela

aparência a vida se desqualifica, pois a bela aparência é uma verdade superior. Em

suma, o apolíneo e o dionisíaco são apresentados como saídas estéticas. Nietzsche pensa

a vida como devir e este como beleza, assim pode através do dualismo

Apolo/Dionisíaco ultrapassar a realidade cotidiana.

O apolíneo representa a produção de formas, a beleza, fazendo com que a vida

se separe do sofrimento. Como foi dito antes, Apolo é o deus do Sol, liga-se a arte

plástica devido a sua afinidade com a visão, tornando-se o deus da imagem, obtendo

uma arte figurada. Ele reina nas belas aparências do mundo da fantasia, pois todo

homem produz imagens através do sonho e da realidade. E assim como o sonho tem um

efeito sanatório e reparador, o Apolíneo se contrapõe a realidade cotidiana.

Há um prazer em produzir imagens, em sair do fundo, que é próprio do

Apolíneo. Este é um afirmador da vida, sejam as imagens boas ou não. A experiência

apolínea é cúmplice da produção da vida, esta experimentada esteticamente é o mundo

superior.

E quanto mais bela a forma mais terá a idéia de eternidade. Nietzsche é

apaixonado pela idéia grega de eternidade onde a vida se potencializa de tal modo que

se eterniza sem ter a negação, fazendo dela uma potência criadora.


O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 9

O outro princípio da dualidade estabelecida por Nietzsche é o Dionisíaco. Este

ultrapassa o mundo do sofrimento pelo mergulho à unidade do próprio universo, uma

experiência mística, levando ao inconsciente. Dionisío é o deus do vinho, liga-se a

música e a arte não-figurada. A experiência dionisíaca rompe com o princípio de

individualização (Apolo). É a perda de si mesmo, de sua individualização, e essa idéia

de perda de si nos remete à de terror. Essa experiência vai selar o laço que une pessoa a

pessoa, eliminando todas as diferentes individualizações.

O apolíneo e o dionisíaco têm entre eles um movimento incessante, o devir. E

este produz formas. Eles através desse movimento atuam juntos para produzir o mundo,

porém não são frutos de uma produção da consciência.

Portanto, temos a unidade do Apolíneo com o Dionisíaco, juntos formando o

devir, a vida.

Desse modo, Nietzsche parte do princípio de que o universo humano é

constituído de forças conflitantes, sendo que cada força é em princípio um centro

explosivo tentando uma síntese precária que tende a dominar as demais, incorporá-las,

crescer às expensas delas, aumentamos, assim, o setor próprio de dominação, pois tal é

o impulso de cada singularidade conflitante.

Podemos ter como desfecho, o seguinte fragmento da obra “O nascimento da

tragédia” – “... A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio, vincula-se a nossa

cognição de que no mundo helênico existe uma enorme contraposição, quanto a origens

e objetivos, entre a arte do figurador plástico, a apolínea, e a arte não-figurada da


O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 10

música, a de Dionísio : ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na

maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre

novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum

“arte” lançava apenas aparentemente a ponte; até que, por fim, através de um

miraculoso ato metafísico da “vontade” helênica, apareceram emparelhados um com o

outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram

a tragédia ática...”.4

4
NIETZSCHE, Friedrich “O Nascimento da Tragédia”. Companhia das Letras, São Paulo,1996. p.27
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 11

2. A Tensão Apolíneo - Dionisíano em “O Nascimento


da Tragédia”

Nietzsche abre O nascimento da tragédia apontando para dois "impulsos

artísticos da natureza": o apolíneo e o dionisíaco. Apolo é o princípio de individuação, é

o princípio de luz que faz surgir o mundo a partir do caos originário; é o princípio

ordenador que, tendo domado as forças cegas da natureza, submete-as a uma regra. Dá

forma às coisas, delimitando-as com contornos precisos, fixando seu caráter distintivo e

determinado, seu sentido individual, modelando o movimento de todo elemento vital,

imprimindo a cada um a cadência – a forma do tempo –. Apolo impõe ao devir uma lei,

uma medida.

Se já conhecemos Dionísio como divindade grega, precisamos conhece-lo como

a força tensão proposta por Nietzsche. Dioniso, o nome grego para o êxtase, é o deus do

caos, da desmesura, da fúria sexual e do fluxo de vida; é o deus da fecundidade da terra

e da noite criadora do som: é o deus da música, arte universal, mãe de todas as artes.

Seu espaço está sob o mundo das aparências, das formas, da beleza, da justa medida.

Nascido da fome e da dor, perseguido e dilacerado pelos deuses hostis, Dioniso renasce

a cada primavera, e aí cria e espalha alegria. Despertadas as emoções dionisíacas, o

homem, em êxtase, sente que todas as barreiras entre ele e os outros homens estão

rompidas, que todas as formas voltam a ser reabsorvidas pela unidade mais originária e
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 12

fundamental – o Uno primordial (das Ur-Eine) – onde só existe lugar para a intensidade.

Nesse mundo das emoções inconscientes, que abole a subjetividade, o homem perde a

consciência de si e se vê ao mesmo tempo no mundo da harmonia e da desarmonia, da

consonância e da dissonância, do prazer e da dor, da construção e da destruição, da vida

e da morte.

Não é necessária uma atenção redobrada para se ver que a distinção do apolíneo

e do dionisíaco, tal como Nietzsche a concebe, apóia-se certamente na oposição entre a

representação e a vontade. Apolo, visto como deus do brilho, da aparência, da bela

aparência e da ilusão, simboliza o mundo da representação, isto é, da individuação e da

razão suficiente; Dioniso, identificado como deus da fúria sexual e do fluxo de vida,

como figura que reúne em sua natureza dor e prazer, manifesta o Uno Primordial, a

vontade mesma para além da representação.

Em Nietzsche podemos salientar que a vontade é caos, contradição, e dor. Para

Nietzsche a própria vontade é artista, é nela que se dá a redenção. É a vontade mesma

que se redime na aparência. :

"Com efeito, quanto mais percebo na natureza aqueles onipotentes impulsos


artísticos e neles um fervoroso anseio pela aparência (Schein), pela redenção
através da aparência, tanto mais me sinto impelido à suposição metafísica de que
o verdadeiramente-existente (Wahrhaft-Seiende) e Uno primordial, enquanto
eterno sofredor e pleno de contradição, precisa, ao mesmo tempo, para a sua
perpétua redenção, da visão extasiante da aparência prazerosa" 5.

A vontade, o uno primordial, ou o querer é um ser de natureza emotiva que não

pode ser pensado como repousando em si mesmo, impassível ou pacífico, mas que traz

em si uma guerra sem limites. Vivendo em constante contradição consigo mesmo, em

5
Op. Cit 96. p.4
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 13

incessante dor, esse ser não pode permanecer por muito tempo indeterminado. Uma

força vinda dele mesmo obriga-o a fragmentar-se, a multiplicar-se em seres finitos, a

fixar-se em imagens e a produzir o mundo das formas individuais, da realidade

fenomênica.

O mundo fenomênico, como resultado desse movimento do querer, traz em si as

marcas da dor, do despedaçamento do uno primordial e, para se libertar dessa dor, faz

um segundo movimento, dessa vez estético, reproduzindo o movimento inicial que a

vontade realizou em direção à aparência. Desse último, emana a aparência da aparência

ou a bela aparência do sonho, um bálsamo para o querer, um remédio para libertá-lo

momentaneamente da dor pelo seu desmembramento em indivíduos.

É dessa maneira que Nietzsche, no capítulo IV de “O Nascimento da Tragédia”,

explicita o processo transfigurador do Uno-primordial, que a "natureza artista" realiza

por meio do sonho para criar a bela aparência. Esse não é o único, nem o mais

fundamental estado fisiológico pelo qual a natureza realiza seus impulsos artísticos. O

mais essencial é a embriaguez.

As aparências só adquirem sentido, quando relacionadas ao mundo dionisíaco,

que lhes é metafisicamente anterior: Na embriaguez dionisíaca, no impetuoso percurso

de todas as escalas anímicas, durante as excitações narcóticas ou no desencadeamento

dos impulsos primaveris, a natureza se manifesta em sua força mais poderosa: ela reúne

novamente os indivíduos e faz com que se sintam como uma só unidade, de tal modo

que o principium individuationis aparece como um estado prolongado de fraqueza da

vontade. Quanto mais debilitada estiver a vontade, mais o todo se fragmentará em partes
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 14

isoladas; quanto mais o indivíduo for egoísta e arbitrário, mais fraco será seu

organismo. Por isso, em tais estados, apresenta-se um traço sentimental da vontade, um

"soluço da criatura" pelas coisas perdidas; no prazer supremo, ressoa o grito de espanto,

os gemidos nostálgicos de uma perda irreparável. A natureza exuberante celebra, ao

mesmo tempo, suas saturnais e suas exéquias. (...) As dores despertam prazer, o júbilo

arranca do peito gritos cheios de dor. O deus, o liberador, desatou, em torno dele, todas

as amarras, a tudo transformou.

Na embriaguez, o processo pelo qual a vontade satisfaz seus impulsos artísticos

é o inverso do movimento de produção das aparências. Com o colapso do principium

individuationis pela intensificação das emoções dionisíacas, tudo volta a seu ponto de

origem, à unidade primeira. Com a morte ou aniquilação das individualidades, o homem

retorna ao estado natural, reconcilia-se com a natureza. Essa reunificação gera um

prazer supremo, um êxtase delicioso que ascende desde o íntimo de seu ser e mesmo da

natureza, ressoando em "gritos de espanto" e "gemidos nostálgicos". Com cantos e

danças, esse ser entusiasmado, possuído por Dioniso, manifesta seu júbilo. Dá voz e

movimento à natureza. Voz e movimento que não se acrescentam a ela como algo de

artificial, mas parecem vir de seu âmago.

Contudo, pode-se distinguir em Nietzsche um pensamento oposto ao pessimismo

schopenhaueriano. Nas afirmações em “O Nascimento da Tragédia” já se pode

constatar, por exemplo, que as artes apolíneas "tornam a vida digna e possível de ser

vivida"6; ou ainda, ao tratar do fenômeno dionisíaco, na experiência trágica, que:

6
Op. Cit 96. p.1
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 15

"não obstante terror e piedade, conhecemos a felicidade de viver, não como


indivíduos, mas como este vivente único que engendra e procria e no orgasmo de
quem nos confundimos".7

Essas pontuações no texto de Nietzsche nos sugerem que ele encontra nos

gregos duas vias artísticas: uma, através da arte apolínea; outra, através da arte

dionisíaca.

A profilaxia apolínea contra o pessimismo começou, segundo Nietzsche, no

período homérico. Os gregos desse período superaram o terror e o horror da existência,

produzindo em sua arte "uma radiante glorificação do mundo fenomenal"8.

Interpuseram, entre eles e as realidades da vida,

"o radiante sonho de nascimento dos olímpicos". Em suas histórias dos deuses,
glorificaram a vida humana. É desse modo que os gregos homéricos seduziram a
si mesmos para continuarem existindo. A existência sob o sol brilhante dos
deuses é olhada como desejável em si mesma”.9

O mundo engendrado pela arte apolínea se coloca sobre a realidade, é ilusório,

mas sugere que os gregos suplantaram o pessimismo, habitando o domínio da fantasia.

O espelho transfigurador da aparência impedia o artista apolíneo de transformar-se e

fundir-se em suas figuras. Deslumbrados com a contemplação das formas e figuras, eles

não viam a realidade íntima de todas as coisas, e, conseqüentemente, o seu sofrimento.

Os gregos sabem, porém, que o apolíneo não oferece a total verdade sobre o

mundo e que a sua solução contra o pessimismo é superficial. Se a solução que oferece

a arte apolínea é superficial, o que se pode dizer da solução dada pela arte dionisíaca?

Para Nietzsche, a tragédia grega tem uma perspectiva melhor. Ela pertence ao mais alto

estágio da cultura grega e "oferece uma visão mais profunda do mundo que a arte

7
Op. Cit 96. § 17
8
Op. Cit 96. § 16
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 16

apolínea"10. Enquanto a arte apolínea tenta nos convencer da alegria da existência pela

glorificação da realidade fenomenal, a arte dionisíaca nos ensina que não devemos

buscar a alegria nos fenômenos, mas atrás deles.11 Mas como isso se dá? Essa é a

questão a que Nietzsche pretende responder com o efeito trágico. Na arte dionisíaca, na

tragédia grega em particular, a destruição do herói trágico traz alegria. Os espectadores,

embora forçados a testemunhar a catástrofe trágica, não ficam cheios de terror, mas, ao

contrário, têm um "consolo metafísico" que os arranca, momentaneamente, do alvoroço

da mudança das figuras. Por um breve momento, a vida, no fundo das coisas, a despeito

da mudança dos fenômenos, é indestrutivelmente poderosa e alegre. Por um breve

momento, identificam-se com o Uno Primordial. O consolo metafísico aparece com

nitidez corporal com o coro de sátiros, coro de seres naturais que vivem

inextingüivelmente por trás de toda a civilização e que, a despeito da mudança das

gerações e da história dos povos, permanecem os mesmos. Com esse coro, consola-se o

heleno profundo, o único igualmente apto para as dores mais suaves e mais cruéis, que

viu o horror da natureza e corre perigo de aspirar a uma negação budista da existência,

que penetrou com olhar afiado até o fundo da terrível tendência ao aniquilamento, o

qual move a chamada história universal.

A arte trágica demonstra uma notável capacidade alquímica de transmudar o

estado de náusea, "estado negador da vontade", em afirmação, de modo que esse horror

possa ser experimentado não como um horror, mas como algo sublime, e esse absurdo

possa ser vivenciado não como absurdo mas como cômico.

9
Op. Cit 96. § 13
10
Op. Cit 96. § 10
11
Op. Cit 96. § 17
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 17

Essa função terapêutica da tragédia, que Nietzsche define como o poder que

"excita, purifica e descarrega" a vida inteira de um povo, não é vista da mesma forma

por Aristóteles, que, na Poética, atribui à ação trágica um poder catártico e paradoxal,

que, ao mesmo tempo, desperta e purga os sentimentos de terror e piedade. Em

Nietzsche, essa função terapêutica é mais que um sedativo ou um calmante, é um

tônico. Ao lado desses sentimentos, que transformam o horror e o absurdo em sublime e

cômico, é gerado um mais poderoso, que está associado à experiência estética dionisíaca

– o sentimento da alegria.
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO 18

Bibliografia:

BRANDÃO, Junito de Souza. “Mitologia Grega”. Vol. III Ed. Vozes,


Petrópolis, 1989.

MACHADO DE ASSIS, J. M. Memórias póstumas de Brás Cubas.Rio de Janeiro,


Editora Nova Aguilar, 1979.

MANN, T. "Schopenhauer". In: Adel des Geistes. Oldenburg, Fischer,1967.

MEUNIER, Mário. “Nova Mitologia Clássica” Ed. Ibrasa, 1976.

NIETZSCHE, F. Werke. Kritische Studienausgabe. Edição organizada por Giogio


Colli e Mazzino Montinari. 15 vols. Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1988.

-----------, Friedrich. “Os Pensadores”. Ed. Nova Cultural, São Paulo,1996.

-----------, Friedrich “O Nascimento da Tragédia”. Companhia das Letras,


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PESSOA, F. Obra Poética. Rio de Janeiro, Companhia José Aguilar Editora, 1974.
SCHOPENHAUER, A. Le Monde comme volonté et comme répresentation. Trad. de
A. Burdeau. Paris, PUF, 1966.

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