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A Medicina e o Nascimento Da Clínica de Foucault

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Artigo do dossiê: Medicina e saúde em O nascimento da clínica de Michel Foucault

MEDICINA E SAÚDE EM O NASCIMENTO DA CLÍNICA DE MICHEL FOUCAULT

MEDICINE AND HEALTH IN THE BIRTH OF THE CLINIC BY MICHEL FOUCAULT

Rosele Branco

RESUMO
Uma leitura de O nascimento da clínica, de Michel Foucault, especialmente do capítulo “Uma
consciência política”, traz à tona um dos aspectos que constituiu o saber médico, o qual seria
justamente a preocupação com a saúde da população. Conforme descrito por Foucault, a
dispersão do discurso médico para o espaço social trouxe implicações para a racionalidade
médica que ainda nos atingem na atualidade. Este artigo pretende acompanhar as análises
arqueológicas de Foucault nesse livro e estabelecer os principais pontos de relevo e as pontes
para as análises futuras em sua trajetória filosófica. Entre os pontos, podem-se destacar a
instituição de uma medicina higienista do estado, as estatísticas, a necessidade de formar
médicos, as relações estratégicas. Vai-se concluir o artigo com considerações finais acerca da
instauração do discurso médico nas suas contingências históricas; acerca da constituição dos
próprios médicos nas faculdades e corporações; e dos vínculos com os estudos posteriores de
Foucault com o que ele denominará biopolítica.
PALAVRAS-CHAVE: arqueologia; Foucault; Nascimento da clínica; medicina; saúde.

ABSTRACT
A reading of The Birth of the Clinic by Michel Foucault, especially of the chapter “A Political
Consciousness”, brings up one of the aspects that constituted the medical knowledge that is
precisely the concern for the health of the population. As described by Foucault, the dispersion
of medical discourse into the social space has brought implications for medical rationality that
still affect us today. The article intends to follow Foucault's archaeological analyses in this book
and establish the main points of importance and bridges for future analyses in his philosophical
trajectory. Among the points, can be highlighted the institution of a state hygienist medicine,
statistics, the need to train doctors, the strategic relations. It can be concluded with
considerations about the constitution of the medical discourse and its historical contingencies;
about the constitution of physicians themselves in colleges and corporations; and the links with
Foucault's later studies on what he will call biopolitics.
KEYWORDS: archaeology; Foucault; Birth of the clinic; medicine; health.


Mestra e Doutora em Filosofia pela PUC-SP, graduada em medicina (UFPR). E-mail:
roseleb@terra.com.br.

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INTRODUÇÃO

O conteúdo deste artigo se baseia na minha tese de doutorado em Filosofia que teve por
objetivo compreender a formação do discurso médico, conforme abordado por Michel Foucault
em seu livro O Nascimento da clínica (NC), de 1963. O foco do interesse de Foucault pela
medicina pode ter vindo da sua atuação no hospital psiquiátrico, e também durante as pesquisas
nas bibliotecas de medicina ao escrever História da loucura, sua tese que fora publicada apenas
dois anos antes.
Na trajetória filosófica de Foucault, o livro NC elabora uma arqueologia do olhar
médico, porque no seu projeto arqueológico ele explorava historicamente quais as
convergências que constituíram as formações discursivas na modernidade, no limiar dos
séculos XVIII e XIX. A pesquisas arqueológicas foucaultianas encontram sua originalidade
justamente em considerar as descontinuidades históricas e descrever as formações discursivas
e suas verdades no interior das contingências, dos acontecimentos e dos acasos de cada época.
Portanto, para Foucault, a racionalidade médica tal como a conhecemos hoje nasceu naquele
momento histórico preciso.
A primeira frase do “Prefácio” de NC avisa o que viria nos seus capítulos: “este livro
trata do espaço, da linguagem e da morte; trata do olhar” (FOUCAULT, 2008a). O olhar médico
seria a expressão que sintetizava a forma objetiva e penetrante que o saber médico assumiria na
modernidade. Em sua formação, como se acompanha no desenvolvimento do livro, esse saber
médico seria constituído mediante a lógica de uma linguagem descritiva que poderia enunciar
a verdade científica; a partir dos espaços que esse olhar explorava, e pelos princípios da
anatomia patológica na dissecção dos cadáveres. A linguagem médica é um dos princípios do
método clínico, visto que se trataria de um discurso descritivo dos elementos da doença ou da
anatomia do corpo e suas alterações, para obter o conhecimento da doença. O método clínico
se valeria da descrição detalhada daquilo que o exame médico vê, partindo da lógica ingênua
de que ver e dizer é conhecer. A morte era abordada na constituição do método clínico
principalmente por meio da anatomia patológica de Javier Bichat, em que a dissecção dos
cadáveres viria a fundamentar o conhecimento anatômico das doenças e o funcionamento do
corpo vivo. Foucault não deixa de perceber este paradoxo, que é conhecer a vida, por meio da
morte.
Na sua abordagem filosófica dos saberes, Foucault fez várias investigações sobre os
espaços, sua arquitetura e seu funcionamento. Seus estudiosos sugerem que Foucault

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privilegiava nas suas análises a espacialidade, e não a temporalidade, mesmo quando delimitava
as rupturas entre determinadas épocas, por exemplo, ao tratar dos solos dos conhecimentos
possíveis em cada época.
Neste artigo, vou deter-me apenas na questão dos espaços que o saber médico explorou,
especialmente em explicitar como a medicina se disseminou para os espaços públicos, fato que
estava ligado ao tema da saúde da população. Portanto, para Foucault, essa dispersão do saber
médico para outras áreas e as suas implicações no papel que o médico passou a exercer perante
a sociedade foram uma das condições que constituíram a medicina moderna.

1 MEDICINA DAS EPIDEMIAS

Esquematicamente, conforme o pensamento de Foucault em NC, o saber médico


moderno se constituiu por meio de certa geometria discursiva dos corpos e de uma geografia
da doença.
Na geometria dos corpos, a analítica de Condillac fora a inspiração para o
estabelecimento de uma lógica orgânica descritiva que se fundava em ver e dizer a doença,
sendo que a anatomia patológica estabeleceu as relações de geometrização no interior dos
corpos. Esses modelos ligavam o saber do indivíduo à sua própria finitude, e foram inicialmente
os principais fundamentos para o positivismo da medicina.
Na geografia da doença, pode-se acompanhar a experiência médica em três espaços
privilegiados: (1) no corpo anatômico; (2) no hospital e, (3) no espaço social. Com a expansão
do campo de ação do discurso médico, novas formas de relações discursivas se estabeleceram
e outros fundamentos foram adicionados à positividade da medicina, é o que se verá em seguida.
No capítulo II de NC, “Uma consciência política”, Foucault analisa como o
acontecimento das epidemias fez com que a medicina do século XVIII voltasse definitivamente
o seu olhar para os fenômenos gerais da população e redobrasse o seu espaço de atuação para
regiões geográficas mais extensas do que o hospital. Era a cidade inteira que deveria ser o objeto
do saber, não somente o indivíduo doente. Embora não se reconhecesse muito bem como os
“miasmas” e os “fermentos” poderiam transmitir a febre maligna, a varíola, a disenteria, entre
outras, essa não era uma questão fundamental para a medicina da época, porque a epidemia era
tida como a ação de uma causa geral e singular que se abatia acidentalmente uma vez em um
local, por exemplo, Marselha em 1721, Bicêtre em 1780, Rouen em 1769, Paris em 1785. Então,
foi a problematização das epidemias que fez com que as análises populacionais e os fenômenos

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climáticos, topográficos, físicos, higiênicos, de distribuição local devessem ser observados,


descritos, controlados, regulamentados.
Foucault afirma que no final do século XVIII outra forma de experiência da medicina
estava em vias de se institucionalizar e de se constituir, porque a observação das epidemias
exigia o treinamento de um olhar múltiplo de vigilância, novos conceitos e novas abrangências.
Aparecem instituições do Estado que irão regulamentar o exercício social da medicina:
a polícia sanitária e a Sociedade Real de Medicina. A polícia sanitária tinha funções ambientais
de fiscalização da salubridade das instalações, do comércio, dos cemitérios etc., em todo o
território da província; também funções educacionais, porque deveria orientar as pessoas desde
o modo de se vestir, de se alimentar, como agir para evitar e curar as doenças; e, por fim, tinha
como tarefa controlar o trabalho dos médicos. A Sociedade Real de Medicina, criada por um
decreto de 1776, e composta por médicos cujo principal mentor fora Vicq d’Azyr, tinha o papel
de estudo amplo das epidemias, elaboração dos fatos, controle e prescrição das medidas
indicadas aos médicos e à população. Ela acabou tornando-se o órgão oficial, com recursos e
poder político, para fazer emergir uma nova consciência social da medicina.
Pelo lado da constituição do saber, a medicina das epidemias se oporia, portanto, à
medicina classificatória anterior, que era baseada na percepção individual de uma essência
mórbida, porque agora se trata de analisar uma série de casos, integrá-los no tempo e no espaço,
comparar, decifrar, buscar analogias e coerências que possam determinar a causa. Trata-se
também de distribuir e educar as pessoas, e ainda controlar os médicos para prestar assistência
e informações. Nas palavras de Foucault, ambas, contudo, partilhavam o novo aspecto político
e social da medicina, como se lê a seguir.

E, no entanto, no final das contas, quando se trata das figuras terciárias, que devem
distribuir a doença, a experiência médica e o controle do médico nas estruturas sociais,
a patologia das epidemias e a das espécies se encontram diante das mesmas
exigências: a definição de um estatuto político da medicina e a constituição, no nível
de um estado, de uma consciência médica encarregada de uma tarefa constante de
informação, controle e coação; exigências que “compreendem objetos tanto relativos
à polícia quanto propriamente da competência da medicina”. (FOUCAULT, 2008a,
p. 27).

E a seguir, ele continua.

A Sociedade [Real de Medicina] não agrupa mais apenas os médicos que se


consagram ao estudo dos fenômenos patológicos coletivos; tornou-se o órgão oficial
de uma consciência coletiva dos fenômenos patológicos; consciência que se

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manifesta, no nível da experiência como no nível do saber, tanto de forma cosmopolita


quanto ao espaço da nação. (FOUCAULT, 2008a, p. 29).

Foucault assinala que essa nova consciência coletiva foi um acontecimento que mudou
a percepção médica e, assim, tornou-se uma das condições de possibilidade do saber médico
moderno. Foi a medicina das epidemias que possibilitou o fortalecimento desse espaço que vai
da percepção do doente às medidas do Estado. Nesse momento, fica clara a emergência dessa
consciência política que, aliás, dá nome ao capítulo.

2 “UMA CONSCIÊNCIA POLÍTICA”

Foucault (2008a, p. 30) resume as características desse exercício médico, político e


social como um “novo estilo de totalização”. O movimento de totalização descrito por Foucault
inclui vários pontos importantes, conforme os parágrafos a seguir.
O modelo de saber torna-se um quadro aberto e indefinidamente prolongável. Um
trabalho coletivo de vários olhares que introduzem numerosas séries paralelas sobre temas
indefinidos. Observações sobre as doenças, o clima, a água, o ar, o terreno, descrição de casos
etc. são motivo de observação e de descrição. Não se trata mais de uma reorganização exaustiva
em um quadro fechado.
As informações devem ser constantes e sempre atualizadas em direção a uma percepção
geral infinita, não mais um conhecimento enciclopédico em busca de uma sistematização final.
Na trama complexa das séries que se entrecruzam é que o conhecimento se dá, onde o
médico pode reconhecer o caso individual. Deve-se acompanhar as reflexões de Foucault no
extrato a seguir.

O que constitui agora a unidade do olhar médico não é o círculo do saber em que ele
se completa, mas esta totalização aberta, infinita, móvel, sem cessar, deslocada e
enriquecida pelo tempo, que ele percorre sem nunca poder detê-lo: uma espécie de
registro clínico da série infinita e variável dos acontecimentos. Mas seu suporte não é
a percepção do doente em sua singularidade, é uma consciência coletiva de todas as
informações que se cruzam, crescendo em uma ramagem complexa e sempre
abundante, ampliada finalmente até as dimensões de uma história, de uma geografia,
de um Estado. (FOUCAULT, 2008a, p. 31).

Quando se colocam em destaque esses fatores, observa-se que o encontro do médico


com o doente está intermediado por um olhar médico que procura circunscrever a patologia
individual dentro de uma rede de informações. Veja-se ainda:

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O que define o ato do conhecimento médico em sua forma concreta não é, portanto, o
encontro do médico com o doente, nem o confronto de um saber com uma percepção;
é o cruzamento sistemático de várias séries de informações homogêneas […] mas cuja
interligação faz surgir, em sua dependência isolável, o fato individual. (FOUCAULT,
2008a, p. 32).

O olhar médico deverá estar presente generalizadamente no espaço social, ele será, ao
mesmo tempo, o ponto de convergência de uma rede múltipla de vigilância e o ponto de difusão
do saber adquirido. Os médicos serão implantados em todos os lugares do departamento, para
recolher, prestar informações e conduzir a saúde da população.
Entra em jogo o conhecimento estatístico da saúde e da doença, reforçando a
matematização do saber médico. A estatística emerge, porque é preciso controlar os fatos
populacionais e os ataques mórbidos. Pede-se o registro dos nascimentos, das mortes, das razões
de reformas etc. Deve-se, enfim, estabelecer uma “topografia médica” completa de cada região.
Acompanhe-se a seguir:

Coloca-se o problema da implantação dos médicos no campo, deseja-se um controle


estatístico da saúde, graças ao registro dos nascimentos e das mortes (que deveria
mencionar as doenças, o gênero de vida e a causa da morte, tornando-se assim um
estado civil da patologia); pede-se que as razões de reforma sejam indicadas em
detalhe pelo conselho de revisão; finalmente, que se estabeleça uma topografia médica
de cada departamento “com cuidadosos sumários sobre a região, as habitações, as
pessoas, as paixões dominantes, o vestuário, a constituição atmosférica, as produções
do solo, o tempo de sua maturidade perfeita e de sua colheita, assim como a educação
física e moral dos habitantes da região”1. (FOUCAULT, 2008a, p. 33).

E novamente o conhecimento parece tender para um espaço essencial e exterior ao


indivíduo, localizado no cruzamento dos registros, nas séries estatísticas. Não mais no nível dos
sinais e dos sintomas e de seu tratamento, mas no nível das análises das informações numéricas,
biológicas, seriais, reticulares, globais, que tentam diagnosticar e antecipar o futuro.
O médico será o conselheiro higienista, chamado para opinar na vida das pessoas. A
educação e o ensino devem ser reforçados para que cada indivíduo aprenda a vigiar a sua saúde.
Mais uma vez, é importante reler: “E como se não bastasse a implantação dos médicos, pede-
se que a consciência de cada indivíduo esteja medicamente alerta; será preciso que cada cidadão
esteja informado do que é necessário e possível saber em medicina.” (FOUCAULT, 2008a, p.
33).

1
Foucault está citando J.-B. Demangeon, Des moyens de perfectionner la médecine, Paris, ano VII, p.5-9 ; cf.
Audin Rouvière, Essai sur la topographie physique et médicale de Paris. Paris, ano II.

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Portanto, o espaço do exercício médico se constituiu de uma consciência política, pois


sua ação não se restringe ao indivíduo, mas se conforma à vida coletiva da nação.
E, no entanto, essa nova totalização controladora da saúde se estabeleceu sobre os mitos
de um “campo livre” do sonho revolucionário. A medicina viu-se revestida de dois mitos,
Foucault explica, o da profissão médica institucionalizada, militante e dogmática, que atacaria
a doença em todos os lugares; e o mito de um desaparecimento total da doença, em que a
sociedade se veria livre de todos os males, vícios e paixões, sendo que a saúde seria a
consequência de um retorno à vida simples e natural. Foi apenas um sonho, contudo isso levou
a uma inflexão no saber médico e também nos mecanismos políticos para controlar a saúde da
população. Como outra consequência, novos parâmetros surgiram para o conhecimento médico,
especialmente a preocupação em manter os indivíduos saudáveis e a preocupação com o homem
normal. Esse quadro se manteria até o século XIX quando, do conceito regulador de “saúde”,
passa-se à noção de “normalidade”, pois o conhecimento passará a se pautar no tipo de
funcionamento da estrutura orgânica normal. E, então, as ciências do homem se desenvolverão
no caminho das ciências da vida, porque permanecerão apoiadas na biologia, mas também na
medicina, e assim trarão a polaridade do normal e do patológico em seu interior. Veja-se uma
conclusão importante de Foucault.

Se as ciências do homem apareceram no prolongamento das ciências da vida, é talvez


porque estavam biologicamente fundadas, mas é também porque o estavam
medicamente: sem dúvida por transferência, importação e, muitas vezes, metáfora, as
ciências do homem utilizaram conceitos formados pelos biólogos; mas o objeto que
elas se davam (o homem, suas condutas, suas realizações individuais e sociais)
constituía, portanto, um campo dividido segundo o princípio do normal e do
patológico. Daí o caráter singular das ciências do homem, impossíveis de separar da
negatividade em que apareceram, mas também ligadas à possibilidade que situam,
implicitamente, como norma. (FOUCAULT, 2008a, p. 39).

Delaporte (2011) explica que, para Foucault, a medicina clínica emergiu de um contexto
cultural e do seu meio socioeconômico, sendo que fazer a sua história requereu uma análise
sincrônica das coerências e das noções da época. A Revolução Francesa foi um acontecimento
exterior, mas que partilhou com o discurso médico a mesma mentalidade e o mesmo ambiente
cultural, inclusive os mesmos paradoxos. Um dos elementos constitutivos da clínica foi uma
“consciência política que toma a forma de uma consciência médica generalizada”, levando ao
surgimento de “uma medicalização militante da sociedade” que “liga as questões da medicina
ao destino dos Estados” (DELAPORTE, 2011, p. 338, tradução nossa). A medicina não será
mais somente um conjunto de técnicas e conhecimentos que buscam a cura das doenças, ela

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passará a se preocupar também com a saúde dos indivíduos. A preocupação com uma
concepção de saúde requeria o estabelecimento dos critérios de normalidade e, também, a
investigação dos modelos fisiológicos normais. Portanto, o projeto de uma medicina de Estado
levou a uma organização do saber médico em torno da normalidade, mais do que em torno dos
critérios de conhecimentos verdadeiros ou falsos. Delaporte (2011, p. 339, tradução nossa)
conclui que a política não impôs, mas sim abriu “novos campos de referência para os objetos
da medicina, por exemplo: a população, os registros estatísticos, o controle médico no exército
ou as instituições de assistência hospitalar”.
Portanto, no nível arqueológico, pode-se reconhecer que as transformações da medicina
fizeram parte de contingências e rupturas no próprio solo do conhecimento e do funcionamento
das práticas discursivas. No contexto, as condições de possibilidade do saber médico moderno
abrangeram as relações discursivas com outros campos institucionais, políticos, sociais,
científicos. Essas relações fizeram com que o saber médico se dispersasse e passasse a exercer
a sua positividade em toda a sociedade. Porque há também um sentido de positividade que se
refere aos conteúdos positivos, aqueles que têm o poder de afirmação sobre as coisas e devem
ser compartilhados. “A saúde substitui a salvação”, Foucault (2008a, p. 219) cita essa afirmação
do médico e historiador da ciência José Miguel Guardia, na “Conclusão” de NC, para resumir
o poder que a medicina terá na sociedade moderna.

3 RELAÇÕES ESTRATÉGICAS

Cabe ainda reconhecer outro movimento presente nesse capítulo II de NC, “Uma
consciência política”, que é a forma como o texto se vincula a trabalhos posteriores de Michel
Foucault. Esse capítulo é o momento indicativo do caminho adiante, o das análises de Foucault
acerca da genealogia dos poderes.
No livro coletivo publicado em 1976, As máquinas de curar: as origens do hospital
moderno, sobre o mesmo tema dos hospitais e das transformações políticas e econômicas do
final do século XVIII, Foucault escreve um capítulo cujo título é “A política da saúde no século
XVIII” (FOUCAULT, 1979)2. Nesse texto, observa-se que ele acrescenta uma camada às
análises das reformas da medicina no século XVIII, porque surgem em relevo as estratégias de

2
Tradução parcial deste capítulo está no texto “A política da saúde no século XVIII”, no livro Microfísica do
poder (FOUCAULT, 2008b). Contudo remeterei sempre ao texto original, com tradução nossa.

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poder. Os médicos deixam de ter o protagonismo das reformas políticas, e as análises passam a
se dar no nível global e anônimo das racionalidades que procuram sistematizar a saúde coletiva,
as quais Foucault chamará de “política de saúde” (FOUCAULT, 1979, p. 7, tradução nossa)3.
Enfatiza que a questão importante para ele fora como, num momento dado e em uma sociedade
definida, a interação individual entre o médico e o paciente pode se articular com uma
intervenção coletiva sobre a doença. E diz que a profissão médica, ou melhor, as “formas de
profissionalização do médico” foram um bom ponto de partida (FOUCAULT, 1979, p. 7,
tradução nossa)4. Ele afirma que o século XVIII foi um momento importante para a medicina,
pelas exigências quantitativas e qualitativas na formação dos médicos, pois fora preciso
multiplicar o número de médicos e padronizar os cursos de medicina, vinculando os
conhecimentos teóricos e os práticos. Os médicos também adquiriram mais prestígio, e a
medicina se destacou de outras formas de cuidado com os doentes.
Foucault passa, então, a descrever a política de saúde do século XVIII, cujos discursos
formariam os médicos a partir de então. Observa-se que ele a resume em consonância à
consciência política da medicina em NC e pontua as suas principais características, como
resumidas abaixo (FOUCAULT, 1979, p. 7-8).

• Uma expansão do objetivo projetado para abranger a prevenção de todas as doenças.


• Um desdobramento da noção de saúde em dois sentidos: tanto normativo, por se colocar
em oposição à doença; quanto num significado descritivo, pois torna a saúde o resultado
observável de um conjunto de dados (frequência das doenças, gravidade, duração,
riscos).
• As variáveis determinantes são caracteristicamente de um grupo ou de uma
coletividade: taxas de mortalidade, vida média, expectativa de vida, doenças epidêmicas
ou endêmicas que atingem uma população.
• O desenvolvimento de intervenções que não são propriamente terapêuticas ou médicas,
mas que interferem nas condições e nos modos de vida, na alimentação, no habitat, no
meio, na forma de educar as crianças etc.
• Enfim, uma integração de certas práticas da medicina à gestão econômica e política,
visando a racionalizar a sociedade. A medicina não é mais simplesmente uma técnica

3
Leia-se: “une politique de santé”.
4
Leia-se: “L’histoire de la ‘profession’ médicale ou plus exactement des différentes formes de
‘professionnalisation’ du médecin s’est révélée, pour analyser ces apport, un bon angle d’attaque”.

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importante na vida e na morte dos indivíduos, ela passou a se integrar às decisões de


conjunto, como um elemento essencial para manter e desenvolver a coletividade.

Nesse texto, Foucault afirma que os cálculos do poder político para gestão da população,
da atividade dos indivíduos e da circulação das coisas e das pessoas visavam, além do bem-
estar, à utilidade para o trabalho. Tratava-se de intervenções refletidas, baseadas em saberes
específicos que apoiavam as técnicas de gestão política e administrativa; ele enfatiza, por
exemplo, as ações da polícia da saúde sobre o corpo social. Nesse mesmo texto, ele destaca três
itens sobre os temas principais que se desenvolveram na política da saúde do século XVIII; são
eles: (1) “o privilégio da infância e a medicalização da família”; (2) “a importância da higiene
e o funcionamento da medicina como instância de controle social”; (3) “perigos e utilidade do
hospital” (FOUCAULT, 1979, p. 11, 13 e 14, tradução nossa)5. Os médicos participaram desses
três temas, seja no suporte às famílias ou atuando na saúde em geral e nos hospitais, ainda no
campo das pesquisas de saúde, sendo subordinados ou fornecendo suporte e informações
técnicas. Adicionalmente, participaram de forma cada vez mais numerosa em diferentes
instâncias de poder, assumindo responsabilidades administrativas ou diretamente nos órgãos
políticos. Foucault afirma que os médicos se beneficiaram dessa intensificação do poder médico
na sociedade. Citando a seguir.

Dessa interpenetração do político e do médico para a transmissão da higiene, o


“excesso de poder” de que se beneficia o médico, comprova-se desde o século XVIII
[...]. O médico torna-se o grande conselheiro e o grande expert senão na arte de
governar, ao menos naquela de observar, de corrigir, de melhorar o “corpo” social e
de mantê-lo em um estado de permanente saúde. E é sua função de higienista, mais
do que seu prestígio de terapeuta que lhe assegura essa posição politicamente
privilegiada no século XVIII e início do século XIX. (FOUCAULT, 1979, p. 14,
tradução nossa).

Em outro texto, uma entrevista, “O olho do poder” (1977), Foucault relata que
descobrira o Panopticon por meio dos estudos dos projetos arquitetônicos hospitalares, na
segunda metade do século XVIII, especialmente aqueles após o incêndio do Hôtel-Dieu, em
1772 (FOUCAULT, 2008c, p. 209-27). Ele descreve o Panopticon como uma tecnologia de
poder inventada por Bentham para assegurar a visibilidade e o controle do maior número
possível de indivíduos, com o menor custo. O princípio vem do projeto arquitetural que reúne

5 “1. Le privilège de l’enfance et la médicalisation de la famille” ; “2. L’importance de l’hygiène et le


fonctionnement de la médecine comme instance de contrôle social” ; “3. Dangers et utilité de l’hôpital ”.

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uma construção com disposição em anel e uma torre de vigilância central. As celas periféricas
no anel são transparentes, tornando os seus ocupantes constantemente visíveis, enquanto a torre
central não permite visão da sua parte interna, sendo impossível verificar a presença ou a
ausência do vigilante. Isso colocaria os ocupantes das celas sob vigilância constante, sem
mesmo saber se estão sendo vigiados ou não, o que até acabaria por levar a um controle
interiorizado do comportamento. Esse mecanismo poderia servir para vigiar um louco, um
doente, um condenado, um operário ou um escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir este artigo pode-se chegar a três considerações sobre a nossa leitura do
capítulo II de NC, “Uma consciência política”, e seus desdobramentos posteriores. A primeira
delas é que a preocupação com a saúde da população e suas implicações científicas, sociais e
políticas foram uma condição de possibilidade do saber médico moderno, tal como o
conhecemos hoje. A partir dessa condição que abrangia o espaço social, acrescida de outras
investigações do tipo de discurso médico objetivo e do aprofundamento corporal da anatomia
patológica foi que se formou o “olhar médico”, tal como Foucault se expressa acerca da
medicina clínica moderna. Essa constatação de que o saber médico é constituído em seus
fundamentos por outros campos discursivos, e mesmo se sobrepõe aos seus campos de atuação,
afasta a pretensa neutralidade da medicina e matiza as suas verdades científicas.
A segunda consideração conclusiva é sobre a profissionalização do médico, porque é a
partir de uma racionalidade objetiva, vigilante, unilateral e matematizada que se vêm
constituindo os médicos nas faculdades e corporações. Ao perceber isso, torna-se possível e
desejável uma reavaliação dessa formação, talvez acrescentando-se uma camada de crítica aos
discursos, e outra camada para busca do genuíno diálogo atencioso com os pacientes. Seria mais
interessante e mais animador poder ampliar os limites de uma nova experiência possível para a
medicina na atualidade.
Por terceiro, pode-se dizer que o tema dos hospitais e da medicina das epidemias nesse
livro publicado em 1963 se vincula às análises que Foucault realizará sobre o que ele denomina
a “biopolítica” e a “normalização da sociedade”, estabelecendo-se, assim, uma ponte de
interesse com as investigações posteriores. Deve-se destacar que, se o governo da saúde da
população parece ser um fato intransponível da nossa modernidade, visto que está nas condições
de possibilidade dos saberes que nos continuem, pode-se mesmo assim questionar como os

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médicos poderiam desenvolver uma nova consciência política; e se interrogar sobre uma nova
forma de estabelecer outros diálogos estratégicos que promovam uma reflexão crítica para uma
racionalidade mais flexível e inclusiva.

REFERÊNCIAS
DELAPORTE, François. Foucault, l’histoire et l’épistémologie. In: L’Herne – Foucault.
Cahier dirigé par Philippe Artières, Jean-François Bert, Frédéric Gros, Judith Revel. Paris:
L’Herne, 2011. p. 335-41.

FOUCAULT, Michel. A política da saúde no século XVIII. In: Microfísica do poder.


Tradução de José Thomaz Brum Duarte. Organização, introdução e revisão técnica de
Roberto Machado. 26.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008b.

FOUCAULT, Michel. La politique de la santé au XVIIIe siècle. In: Les machines à guérir,
aux origines de l´hôpital moderne. 2. ed. Bruxelles: Pierre Mardaga ed., 1979.

FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. 7. ed. Paris: Quadrige/PUF, 2007.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. 6. ed. Rio


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FOUCAULT, Michel. O olho do poder. In: Microfísica do poder. Tradução de Angela


Loureiro de Souza. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 26. ed.
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Sapere aude – Belo Horizonte, v. 12 – n. 23, p. 102-113, Jan./Jun. 2021 – ISSN: 2177-6342
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