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Entrevista Gerard Duménil Sobre Crise Neoliberalismo

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Neoliberalismo e

dominação de classe: uma


análise marxista do
capitalismo contemporâneo
Entrevista com Gérard Duménil

por Paula Marcelino e Henrique Amorim*

Resumo:
O texto que segue é uma entrevista realizada com o economista Gérard Duménil por
ocasião da sua visita ao Brasil nos meses de outubro de novembro de 2006. A entrevista
está centrada na abordagem do autor sobre as questões do capitalismo contemporâneo:
o neoliberalismo, as classes sociais e a posição da Amércia Latina nessa ordem
econômica. Destaque para o fato de Duménil, em conjunto com Dominique Lévy,
trabalharem com uma periodização espeífica do capitalismo, cuja singularidade está em
afirmar que o neoliberalismo é uma nova hegemonia da finança, tal como a ocorrida no
final do século XIX e início do século XX.

Gérard Duménil é economista, diretor de pesquisas no Centre National de la


Recherche Scientifique (CNRS), França e trabalha há vários anos com o economista
Dominique Lévy. É membro do comitê de redação da revista Actuel Marx, co-
dirigindo a coleção Actuel Marx Confrontation da Presse Universitaires de France.
É co-presidente, juntamente com o filósofo Jacques Bidet, do Congresso Marx
Internacional, que reúne aproximadamente mil pesquisadores de várias partes do
mundo a cada três anos na cidade de Paris.
Durante vários anos coordenou os “Seminários de Estudos Marxistas” em
Paris que contavam com a participação, entre outros, de Suzanne de Brunhoff,
François Chesnais, Michel Husson e Dominique Lévy. A partir desses seminários,
várias obras foram publicadas; entre eles destaca-se La finance Capitaliste (Coleção

* Paula Marcelino é doutoranda em Ciências Sociais na Unicamp, autora do livro:A logística da


precarização: terceirização do trabalho na Honda do Brasil. São Paulo: Expressão Popular,
2004. Henrique Amorim é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e autor do livro: Teoria social
e reducionismo analítico: para uma crítica ao debate sobre a centralidade do trabalho. Caxias
do Sul/RS: EDUCS, 2006.

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Actuel Marx Confrontation, 2006) e Uma Nova Fase do Capitalismo?, publicada
no Brasil em 2003 pela editora Xamã.
Duménil é ativo na associação altermundialista francesa ATTAC, coordenando
várias publicações e participando ativamente nos Fóruns Sociais Mundiais.
Sua vasta produção teórica em artigos e livros é consagrada à análise do
mundo atual, em especial ao neoliberalismo e ao imperialismo. A América Latina
é, nesse momento, objeto privilegiado de seus estudos. Juntamente com Michel
Löwy, Duménil prepara um número especial da prestigiosa Actuel Marx sobre
as lutas sociais na América Latina. Entre suas principais obras pode-se destacar:
Le concept de loi économique dans le capital (Maspero, Paris, 1977), que contém um
prefácio de Louis Althusser; Économie Marxiste du Capitalisme (La Découverte, 2000);
Crise et Sortie de la Crise: ordres et desordres neolibéraux (PUF, Actuel Marx Confrontation,
2000) – livro também publicado nos Estados Unidos sob o título “Capital
Resurgent” (Harvard University Press, 2000) e no prelo em espanhol pela editora
Fondo de Cultura Económica de México.
Duménil e Lévy mantém um sítio permanentemente atualizado onde está
disponível a quase totalidade da produção dos autores: http://
www.jourdan.ens.fr/levy
Outros sítios indicados: Actuel Marx: http://netx.u-paris10.fr/actuelmarx/;
Congresso Marx Internacional (que esse ano terá como tema “Altermundialismo-
Anticapitalismo”): http://netx.u-paris10.fr/actuelmarx/cm5/index5.htm

1) Nas suas obras recentes o senhor trabalha com uma periodização


específica do capitalismo que já fornece os primeiros elementos analíticos
da sua compreensão do período atual. O senhor poderia expor as
principais fases dessa periodização e suas características fundamentais?
Não existe uma maneira única de periodizar o capitalismo, tudo depende
do critério adotado: as tendências da técnica e da distribuição (em especial os
movimentos das taxas de lucro), a transformação das formas institucionais onde
se exprime a propriedade do capital (a empresa individual ou a sociedade por
ações etc.), a estrutura de classe (a emergência das classes intermediárias), as
modalidades de poder das classes dominantes e os compromissos que essas
classes estabelecem com outras classes. Para compreender a história do
capitalismo, é necessário combinar essas diferentes perspectivas.
Eu vou adotar o último dos pontos de vista citados acima, aquele dos
poderes de classe remontando ao final do século XIX, pensando, sobretudo, o
caso dos Estados Unidos. No final do século XIX a fração mais avançada do
capitalismo estadunidense caracterizava-se pela aparição de um novo setor

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financeiro (os grandes bancos) que preside a formação das grandes sociedades
por ações. Simultaneamente forma-se uma burguesia financeira a certa distância
das empresas, doravante gerenciadas por quadros assalariados. Eu chamo
« finança » essa nova entidade social que aparece nessa época, reunindo a fração
superior desta burguesia e as instituições financeiras onde se concentra seu poder.
Ao lado dessa finança sobrevive uma classe de capitalistas, como proprietários
no sentido tradicional do termo. No contexto de uma crise maior (nos anos de
1890) e de uma violenta luta de classes (greves, formação de um partido socialista
etc.), afirma-se uma primeira hegemonia da finança, no sentido definido acima.
A relação entre essa finança e as camadas capitalistas tradicionais é aquela de um
compromisso onde essas camadas ocupam uma posição subalterna. A crise de
1929 marcará, simultaneamente, a incapacidade da finança de controlar a
instabilidade macroeconômica e a eliminação de uma grande parte do setor
tradicional. Sob o efeito do triplo choque da Grande Depressão, da Primeira
Guerra e da emergência da União Soviética como potência mundial, a finança
perde sua hegemonia ao final da guerra, com um compromisso social que
podemos chamar de “keynesiano” ou “social-democrata”, onde o poder das
classes capitalistas encontrava-se “contido”. Um compromisso é estabelecido,
“à esquerda”, entre os quadros1 dos setores público e privado e as classes
populares de operários e assalariados2. As desigualdades sociais são fortemente
reduzidas e o poder de compra e a proteção social progridem (essas décadas,
permanecem, contudo, imperialistas e destruidoras do meio ambiente). A crise
estrutural dos anos 1970, que provoca uma nova queda das taxas de lucro,
fornece as condições econômicas que permitem à luta das classes capitalistas –
reprimidas até então, mas não eliminadas – a condução à restauração de sua
proeminência, numa “segunda hegemonia financeira”: o neoliberalismo. Os
poderes e rendas das classes capitalistas são restaurados; a progressão do poder
de compra das classes populares é bloqueada ou muito fortemente reduzida; as
proteções sociais são enfraquecidas; a pressão imperialista é renovada através da
abertura das fronteiras comerciais e financeiras, a alta das taxas de juros, etc.

2) Qual é a sua definição de neoliberalismo? Qual é o marco do


surgimento dessa etapa do capitalismo?
O neoliberalismo não é, de maneira alguma, um modelo de desenvolvimento.
É uma nova ordem social marcada pelo restabelecimento da hegemonia da
1 Em francês, “cadres”, assalariados superiores, responsáveis pela administração das empresas e
aparelhos do Estado.
2 Em francês, “employés”: trabalhadores assalariados excluindo quadros e operários, como
empregados comerciais ou pequenos funcionários de escritórios. Os quadros concentram a
iniciativa e a autoridade; os operários produzem no sentido estrito.

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finança, isto é, frações superiores das classes capitalistas e instituições financeiras.
É o resultado de uma luta de classes. Seu objetivo é assegurar o poder e a renda
das classes capitalistas. Nisso ele obteve um grande sucesso. Seus métodos são: 1)
novas formas de gestão das empresas voltadas para os acionistas; 2) políticas
econômicas visando à estabilidade dos preços e taxas de juros reais elevadas; e 3)
abertura das fronteiras comerciais (livre mercado) e financeiras (livre circulação de
capitais) entre países de níveis de desenvolvimento muito desiguais. Uma conseqüência
dessa abertura das fronteiras é colocar-se em concorrência trabalhadores do mundo
inteiro, cujo objetivo é rebaixar os salários e os direitos trabalhistas.
Essa etapa do capitalismo é resultado de uma luta de classes. É um ato
político. Foi permitida pelas condições da crise estrutural dos anos 1970 e pela
incapacidade dos protagonistas do antigo compromisso em debelar a inflação.
Esses elementos conduziram a uma saída regressiva da crise, permitindo o
restabelecimento de uma forma de hegemonia financeira.

3) Quais são as principais diferenças e semelhanças entre a primeira


e a segunda hegemonias financeiras?
O ponto comum entre as duas hegemonias financeiras diz respeito a sua
própria natureza: trata-se da dominação de uma fração superior das classes
capitalistas, dominação na qual o papel das instituições financeiras é preponderante.
Hilferding já havia compreendido bem essa relação entre frações de classe e
instituições na sua definição de « capital financeiro ».
Através desta noção, ele designou o dispositivo institucional de concentração
dos capitais nas instituições financeiras e o fato de estarem esses capitais à
disposição das empresas; esse dispositivo não implicava, segundo ele, uma
dominação dos “magnatas da finança” sobre os “magnatas da indústria”, mas
a dominação dos grandes capitalistas, controlando o conjunto da grande
economia, sobre o conjunto da economia financeira e não financeira. Esses
elementos fundamentais são característicos das duas hegemonias financeiras,
aquela que Hilferding conheceu e aquela que prevalece no neoliberalismo.
Na medida em que as duas hegemonias financeiras são separadas por meio
século, é preciso atentar para um conjunto de diferenças. Uma primeira diferença
é a natureza e a amplitude das instituições financeiras. Para Hilferding, tratava-se
dos grandes bancos dos Morgan ou dos Rockefeller. No capitalismo do final
do século XX, esses grandes bancos se metamorfosearam em gigantescas Financial
Holding Companies, cuja atividade é muito diversificada e, sobretudo, é preciso
somar a elas os fundos de investimentos (em particular, os de pensão), assim
como as instituições mais ou menos públicas como os bancos centrais, o Fundo

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Monetário Internacional (FMI) ou o Banco Mundial. Uma segunda diferença
refere-se às etapas da mundialização; ela está muito mais avançada no capitalismo
contemporâneo. Pode-se observá-la no plano do comércio e do investimento,
pela multiplicação dos acordos bilaterais ou no seio da Organização Mundial
do Comércio (OMC). A isto se acrescenta a metamorfose do sistema monetário
mundial, desde o padrão-ouro até a liberação das transações monetárias e
financeiras contemporâneas (tendo em vista a dominância do dólar e as novas
tecnologias de informação). Uma terceira diferença diz respeito à realização da
revolução keynesiana, quanto a sua forma centralizada de controle da estabilidade
macroeconômica, pelas políticas monetárias e orçamentárias. O neoliberalismo
não colocou em questão esses procedimentos macroeconômicos que na primeira
hegemonia financeira não estavam presentes e que fizeram muita falta. Em uma
economia onde os mecanismos do crédito já estavam bem desenvolvidos, a
ausência da política monetária central, durante essa primeira hegemonia, levou à
multiplicação e ao aprofundamento das recessões, que se transformavam,
freqüentemente, em crises financeiras. O neoliberalismo mudou os objetivos
dessas políticas: marcadamente, a prioridade foi dada à estabilidade dos preços
em detrimento do pleno emprego. Mas o Estado neoliberal continua engajado,
talvez mais que nunca, na estabilização do nível geral de atividade e do sistema
financeiro. Enfim, um quarto aspecto essencial, de natureza política, é o
estabelecimento de um compromisso de classe. A primeira hegemonia financeira
foi atravessada por uma “tensão”, combinação de luta e cooperação, entre as
frações das classes capitalistas gestadas na metamorfose institucional do começo
do século e as classes capitalistas tradicionais. Na segunda hegemonia, essa
contradição interna é secundária, ao menos nos Estados Unidos e na Europa
(sem dúvida, menos na América Latina). Ao contrário, o compromisso entre as
classes capitalistas e as frações superiores dos quadros joga um papel central na
segunda hegemonia financeira, sobretudo nos Estados Unidos. Essa diferença
abre uma possibilidade de superação da ordem neoliberal nesse início do século
XXI, em condições muito diferentes daquelas que prevaleciam na segunda metade
do século XX (o pós Grande Depressão). Podemos antecipar que as formas –
regressivas para as classes dominantes à época – de desestabilização da primeira
hegemonia financeira na Grande Depressão e na Segunda Guerra Mundial, não
se repetirão. É pouco provável que uma crise maior ou uma guerra mundial
produzam uma nova grande ameaça sobre as classes capitalistas, as quais se
imporia um novo compromisso como aquele do pós-guerra. O que se estabelece
nos Estados Unidos aponta muito mais na direção oposta. Reconfigurações já
estão sendo trabalhadas nesse país, o que reforça a hegemonia da finança. Observa-
se nos Estados Unidos uma fusão entre grandes proprietários e a alta gerência.

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4) Muitas correntes teóricas nas áreas das Ciências Sociais de prestígio
na atualidade consideram a luta de classes e a análise a partir dela um
anacronismo. Nas suas análises, o senhor afirma que a compreensão de
todo o capitalismo, inclusive da sua fase atual, não é possível sem a
compreensão das classes sociais e de sua luta. Qual é o papel da luta de
classes na origem do neoliberalismo? Qual é a co-relação de forças entre
as classes sociais hoje?
A recusa ou a incapacidade de ver na luta de classes o famoso motor da
história não é surpreendente da parte das classes dominantes ou das escolas de
pensamento que, intencionalmente ou não, são suas propagandistas. Entretanto,
não se compreende nada da história do capitalismo sem se reconhecer este
papel determinante, em particular na análise do neoliberalismo. A contenção ou
a repressão dos lucros das classes capitalistas no compromisso keynesiano é um
fato histórico que se pode verificar nas modalidades de dispositivos institucionais
(de regulação monetária e financeira, tais como as normas de taxas de juros ou
os limites à conversibilidade) e nas rendas e patrimônios das classes mais
abastadas, que se pode apreender quantitativamente. O neoliberalismo continuou,
na América Latina, o trabalho dos regimes fascistas; na Europa e nos Estados
Unidos a imposição da ordem neoliberal fez-se ao preço da repressão dos
movimentos grevistas e das lutas populares (pensemos em Margaret Thatcher e
Ronald Reagan). Mas, todos os componentes da luta das classes capitalistas,
desde a Segunda Guerra Mundial até nossos dias, visam retomar o controle dos
espíritos (universitários, prêmios Nobel, mídias, etc.), testemunhas de uma
estratégia concebida e formulada desde os primeiros anos da perda da hegemonia
(ler sobre o assunto Von Hayek).
É bem mais surpreendente constatar a oposição que nós encontramos
(Dominique Lévy e eu) assim que apresentamos essa interpretação de classe do
neoliberalismo, há aproximadamente dez anos. As coisas progridem, por exemplo,
David Harvey, a sua maneira, a retomou na sua Pequena História do
Neoliberalismo, mas, no decorrer da minha última passagem pelo Brasil, eu
ainda ouvi teóricos da extrema esquerda marxista pura e dura, qualificarem esta
tese de subjetivista, visto que ela dá peso excessivo à estratégia organizada de
uma classe, ou fração de classe. A essa leitura da história, prefere-se uma
interpretação que caracteriza o neoliberalismo como fruto do desenvolvimento
objetivo e necessário da evolução do capitalismo, ocupado há dois séculos em
cavar seu túmulo com o mesmo empenho. Na análise que nós realizamos sobre
a história do capitalismo, tentamos sempre combinar concretamente – o que
requer muito trabalho – as condições objetivas e o jogo da luta de classes; no
qual seria um erro subestimar as vontades ativas. É difícil manter o equilíbrio a

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todo instante, mas o objetivo é esse. O princípio geral foi anunciado por Marx:
os homens fazem sua própria história, mas em condições determinadas
(subentende-se, em larga medida, “condições econômicas”).

5) Dentro dessa validade teórico-prática da luta de classes e do


materialismo histórico, como é possível pensar para além do marxismo?
Ou ainda, pensar para além é romper ou atualizar categorias de análise
propostas por Marx?
Na análise de classe do neoliberalismo é necessário reconhecer a natureza
social da ordem dominante no decorrer das primeiras décadas do compromisso
do pós-guerra. Nesse compromisso, os quadros assalariados dos setores público
e privado jogaram um papel central. Essa centralidade refere-se a sua capacidade
de “gerenciar” as organizações (empresas ou outras) ou de definir e colocar em
ação políticas de aportes sociais alternativos: exprimindo um compromisso de
esquerda com as classes populares (operários e outros assalariados) ou com
certas frações das classes capitalistas. Os quadros detinham uma espécie de
monopólio nesse sentido. De certa maneira, como classe média, eles podem
oscilar entre um lado e outro, em direção à direita ou à esquerda. De um lado
ou de outro das barreiras sociais, eles podem obter condições de vida vantajosas.
Somente a luta das classes populares os torna suscetíveis ao engajamento do
“bom” lado, como ocorrido no compromisso keynesiano.
É aqui que um marxista estereotipado e cristalizado pode tornar-se um
obstáculo à análise teórica, recusando-se a considerar a natureza de classe nas
relações de constituição das classes intermediárias de quadros e empregados.
Primeiramente, é preciso parar de confundir essas classes com uma pequena
burguesia; em segundo lugar, é necessário reconhecer a polarização de classe
em seu seio, entre, de um lado, os quadros que concentram as tarefas de
concepção, de organização e de direção em suas mãos, e, de outro lado, os
assalariados encarregados de tarefas de execução (cujo modelo pode ser as
condições do trabalho produtivo, quando determinadas condições objetivas
– contato com o cliente ou com a proximidade dos quadros – não o
interditassem).
Esta revolução do pensamento, que Marx antecipou largamente, é, entretanto,
muito difícil para muitos marxistas. Mas a verdadeira dificuldade para eles é a
renúncia da estratégia tradicional do “movimento operário”, que conduz, nos
países que se reclamam socialistas, à emergência de uma classe de quadros
sobre as bases estabelecidas pela vanguarda revolucionária (ler sobre esse assunto
Moshe Lewin).

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6) As classes sociais têm papel importante para a fundamentação da
teoria social de Marx, como explicar a ausência de uma leitura sistemática
sobre esse tema [da] obra desse autor?
Eu acredito que a obra de Marx referente às classes sociais é largamente
estudada. O problema é a esclerose dos modos de pensamento. A teoria marxista,
como prática, é ainda muito freqüentemente fechada no academicismo: nenhuma
idéia pode ser avançada se não for emprestada de um autor. É preciso sair
disso: ousar pensar, em especial, sobre as classes.
7) Para encerrar a questão das classes sociais, o Senhor vê como central
o desenvolvimento desse tema e sua problematização para o
aprofundamento das análises sociais hoje? Por que? A leitura, por
exemplo, do neoliberalismo não necessitaria de uma caracterização do
que são as classes hoje? De como essas classes se ramificam e de como
se embatem na atual fase do capitalismo?
Tendo em vista o que eu já disse anteriormente, a resposta a essa questão é,
evidentemente, positiva. Eu acredito muito no estudo factual. É preciso estudar
concretamente as estruturas de classe e as práticas de classe. Trata-se de um
verdadeiro trabalho de sociólogo, de historiador ou de especialista em ciências
políticas. Incluir esse trabalho no campo da economia, tal como ela é ensinada,
seria uma revolução. Existem numerosos trabalhos nesse sentido, mas é preciso
avançar; sobretudo não temer mostrar que decisões são tomadas e colocadas
em prática, quer se trate da gestão das empresas, quer da definição de políticas
ou da organização das lutas.

8) Dentro dessa perspectiva, como se inseriria a América Latina na


ordem neoliberal? Qual é o papel das economias dos países latinos
americanos no capitalismo mundializado?
A América Latina ocupa um lugar particular no neoliberalismo. Em primeiro
lugar, ela foi a primeira vítima da ordem neoliberal. A América Latina saiu das
primeiras décadas do pós-guerra com uma força de trabalho gozando de certo
poder de compra (a despeito das enormes desigualdades internas de cada país
e mesmo entre eles). Saiu também com uma indústria nacional suficientemente
avançada e autônoma. As classes dominantes dessa região do mundo aspiravam
a se inserir na nova configuração do imperialismo em condições relativamente
vantajosas, mas a abertura neoliberal e o rumo das reformas que ela ocasionou
produziram estragos. Um caso emblemático foi o da Argentina nos anos 1990,
onde as classes dirigentes venderam massivamente suas empresas e exportaram
seus capitais aos Estados Unidos. As políticas neoliberais dessa década criaram
as condições da terrível crise do começo dos anos 2000, e da miséria que ela

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provocou. Tais políticas ainda acentuaram a queda dramática do poder de compra
dos assalariados empregados a partir dos anos 1970.
Desse ponto de vista, a América Latina é radicalmente diferente de um país
como a China que se abre à mundialização neoliberal com uma força de trabalho
muito barata, cujo baixo preço é reforçado por uma taxa de câmbio muito
fraca. Sua classe dirigente está em processo de transformação em direção ao
capitalismo selvagem e seus apetites voltaram-se para os meios de produção
nacionais ainda a serem apropriados (o bolo ainda está em casa).
Porém, em segundo lugar, a América Latina é uma terra de luta e de
resistências sociais. De maneira geral, vista da Europa, é a região do mundo na
qual poderiam emergir as forças mais radicais de desestabilização do capitalismo
neoliberal. A imagem que se impõe é contrastada por lutas populares e sanções
eleitorais, de um lado, acumulação de recuos e ocasiões perdidas, por outro. É
fácil dizer, mas difícil realizar.

9) Amparando as políticas macro-econômicas neoliberais existe um


discurso neoliberal: de necessidade de desregulamentação do uso da
força de trabalho, da diminuição do papel do Estado na economia, etc.
Por que esse discurso tem repercussão? Em outras palavras, existe uma
base material que sustente esse discurso, quando o que vemos é um
Estado que cada vez mais se coloca presente para administrar os
interesses dos capitalistas?
Toda a história do neoliberalismo desde suas origens é permeada por essa
tensão entre a desregulamentação e a diminuição do papel do Estado, de uma
parte, e seu fortalecimento, de outra. Por exemplo, os Estados Unidos votaram,
em 1980 (no dia seguinte da alta das taxas de lucro, do Golpe de 1979), uma lei
intitulada Deregulation and Monetary Control Act, a lei de desregulamentação e de
controle monetário. A justaposição dos termos é perfeitamente explícita: liberação
da ação das empresas de um lado e fortalecimento do controle exercido pelo
Banco Central sobre a criação monetária de outro. Portanto, maior ou menor
presença do Estado? Resposta: depende. Sim, o neoliberalismo liberou as
empresas de certos entraves, pois se tratava de ter lucros; sim há um enorme
fortalecimento do poder do Banco Central, pois se trata de lutar contra a inflação
que arruinava os ricos. O princípio geral é que os fins são mais importantes que
os meios. Quem negaria que o Estado estadunidense é forte? É verdade no
plano militar, como também no plano econômico. Quem negocia os tratados de
livre-comércio, senão o Estado dos Estados Unidos? Nesse início de século XXI,
a economia estadunidense estaria acabada sem a intervenção maciça do Estado
no que se refere à política macroeconômica, em especial a política de crédito.

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10) É comum ouvirmos hoje, até mesmo como justificativa da
impossibilidade de controle sobre o capitalismo, que o capital financeiro
e o capital produtivo são duas coisas diferentes e independentes. O que
o senhor acha disso? A ruptura entre a base produtiva e o capital financeiro
não seria mais uma ideologia sobre o fim do trabalho?
Não é correto opor capital financeiro a capital não-financeiro no
capitalismo de hoje (nem mesmo no tempo de Hilferding, como vimos). Nas
formas as mais avançadas que reveste a relação capitalista de nossos dias, a
finança (fração superior das classes capitalistas e instituições financeiras) possui
tudo: capital financeiro e não-financeiro. A propriedade do setor produtivo
(de produção de bens ou de serviços) é financeira, pois se materializa em
ações (ou, em um sentido estendido da noção de propriedade, em títulos de
créditos). Tudo é negociável no mercado financeiro. A propriedade das grandes
famílias capitalistas é fortemente diferenciada e mediada pelas sociedades
financeiras que obscurecem a verdadeira natureza da relação de propriedade.
A diferença entre um setor financeiro e não-financeiro existe somente nas
empresas de menor porte onde o papel de proprietários individuais permanece
significativo. Esta é uma das formas de dominação do grande capital sobre o
capital mais fraco e freqüentemente mais endividado.
Para tratar seriamente esta questão, seria necessário considerá-la no quadro
mais geral das relações imperialistas e, tendo em vista a especificidade de
certas economias, como a economia brasileira. O controle do setor financeiro
pelo estrangeiro, isto é, do capital internacional, já está avançado no Brasil
(ainda em curso de realização), e as características familiares da propriedade
de certas empresas podem permanecer acentuadas.

11) Suas análises apontam que o neoliberalismo já apresenta


evidências de esgotamento e fragilização. Quais são esses elementos?
Que saídas são possíveis nesse contexto?
Se deixarmos de lado a questão das resistências políticas que ocorrem
hoje, em especial na América do Sul, as principais contradições se situam nos
Estados Unidos. A formulação mais “compacta” que se pode dar a essas
contradições remete, de um lado, às classes capitalistas estadunidenses e, de
outro, aos Estados Unidos como país.
Do ponto de vista das classes capitalistas estadunidenses, o território do
país não constitui mais um campo de investimentos privilegiado. Uma parte
importante, embora impossível de contabilizar, da fortuna das famílias é
investida no estrangeiro, notadamente por intermédio dos paraísos fiscais.

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Importa somente a rentabilidade dos investimentos. Tudo é bom, em particular
nos países onde o custo da força de trabalho é pouco elevado e onde a
ordem impera, como na China. Os ganhos obtidos por intermédio dos paraísos
fiscais são em parte acumulados fora dos Estados Unidos.
Do ponto de vista dos Estados Unidos como país, são os outros países
que financiam: 1. a acumulação do capital no território estadunidense, 2. o
déficit orçamentário e, mesmo, 3. a exportação de capitais para o resto do
mundo. A demanda doméstica estadunidense é satisfeita ao preço de
importações muito elevadas, corolário da fragilidade dos investimentos locais
e da desterritoralização da produção. A evasão para os paraísos fiscais contribui
no déficit orçamentário, quando, na verdade, a estratégia imperialista das classes
capitalistas passa por um Estado forte, logo, dispendioso.
Esse divórcio tem duas conseqüências. De uma parte, essa trajetória requer
o pagamento de um fluxo crescente de dividendos e de juros ao estrangeiro,
e ela só pode progredir na medida em que os estrangeiros permanecem
dispostos a investir nos Estados Unidos, o que a acumulação dos desequilíbrios
exteriores pode comprometer. De outra parte, a sustentação da atividade
econômica nos Estados Unidos torna-se cada vez mais difícil. Todas as
possibilidades são maximizadas. As taxas de juros reais ganham níveis
comparados aqueles dos anos 1950 ou 1960, em plena contradição com os
objetivos do neoliberalismo; o dólar torna-se frágil, pois um dólar elevado,
como as taxas de juros elevadas, poderiam causar uma nova recessão; o
endividamento interno é forçado ao extremo, com riscos de instabilidade
considerável, e mesmo que tudo fosse feito para evitá-lo, poderia igualmente
provocar uma contração da atividade; a gestão das empresas está inteiramente
voltada para a busca da alta dos lucros dos acionistas, enquanto que a quase
totalidade dos benefícios são distribuídos em dividendos, prejudicando, dessa
forma, a acumulação local (o que torna necessário o financiamento exterior).
Tudo faz, portanto, prever a for mação de uma nova fase do
neoliberalismo, ou para além do neoliberalismo. É necessário compreender
que a preocupação central das classes dominantes são seus objetivos, e não os
métodos utilizados para a sua consecução. O que elas não puderam obter
segundo as regras que prevaleceram em vinte anos de neoliberalismo, essas
classes tentarão obter de outra maneira. Uma vez mais, todos os meios são
bons. O Estado dos Estados Unidos fará tudo aquilo que esteja em seu poder
para preservar, de uma parte, a força do país e, de outra, a situação
extremamente favorável de suas classes dirigentes. Somente as lutas populares
poderão desestabilizar o compromisso político entre as classes capitalistas e
as frações superiores dos quadros, em benefício de um compromisso mais

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“à esquerda” ou “menos à direita”. Mas, nada se pode dar como certo no
plano do imperialismo.

12) O que é ser um país imperialista na fase atual do capitalismo


quando os capitais não são apenas capitais nacionais? Quando boa parte
dos lucros capitalistas vai para paraísos ficais?
A situação que eu acabei de descrever corresponde, de fato, a uma
configuração imperialista bem pouco ortodoxa. Essas transformações implicam
reconsiderar certas ambigüidades dos conceitos fundamentais, como no caso
das classes, considerado anteriormente.
O imperialismo é uma característica estrutural do capitalismo, desde sua
origem. Em paralelo à exploração dos trabalhadores produtivos em cada país,
existe uma segunda relação fundamental de exploração (ao lado de várias outras
como as relações de explorações patriarcais) desejosa de que os países mais
avançados façam de seu avanço a alavanca de uma dominação (as ferramentas
para isso são: a abertura das fronteiras comerciais e monetárias entre países com
níveis de desenvolvimento muito desiguais, a corrupção, a subvenção e a guerra).
É esta, portanto, a questão no imperialismo. Evidentemente, estas duas relações
de exploração (capitalista/trabalhador produtivo – país avançado/país menos
avançado) se combinam, pois são as classes capitalistas que desde o início se
beneficiam da relação imperialista.

13) Uma palavra sobre o Brasil. Sabemos que seus estudos sobre a
América Latina não tem como foco principal nosso país, mas como o
senhor vê os processos político-econômicos do Brasil hoje? Qual é a sua
avaliação do governo Lula quanto à sua integração à ordem neoliberal?
A dificuldade que encontra a concepção tradicional de imperialismo face às
configurações contemporâneas se constrói sobre essa dualidade: exploração de
um país sobre um outro ou exploração da classe dominante do país dominante
sobre um país menos avançado (de todas suas classes)? O que se observa nos
Estados Unidos é uma « desconexão » crescente entre o caráter nacional da
dominação imperialista e seu caráter de classe, na qual a força nacional (o braço
diplomático e armado da relação imperialista) continua sendo instrumentalizado
pela classe capitalista, ainda que ela aspire a se autonomizar em um paroxismo de
egoísmo social, como classe dominante mundial (possivelmente em relação às classes
dominantes de outros países).
Como a maioria dos países da América Latina, o Brasil cresce lentamente
desde o começo dos anos 1980. O fluxo de investimentos estrangeiros não
modificou essa situação. O orçamento revela um excedente primário justificado

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pela pretensa necessidade de pagamento da dívida pública, e as taxas de juros
permanecem muito altas. As tarefas de primeira ordem, como a educação, a
reforma agrária, a construção da infra-estrutura ou a segurança pública, são
negligenciadas em nome dessa ortodoxia.
O governo Lula, a despeito da distribuição de recursos aos mais pobres
como nas « bolsas famílias », curva-se ao modelo neoliberal, sem satisfazer as
reivindicações populares ou aquelas dos proprietários de setores econômicos
que conservam seu caráter nacional. A abertura à mundialização neoliberal é
total: o setor financeiro passa gradualmente ao controle estrangeiro.
O Brasil é atualmente um dos atores da crise da OMC (o fiasco do ciclo de
Doha), face à resistência dos países do centro a abrir seus mercados de produtos
agrícolas. É melhor que uma submissão integral, mas a demanda de um país
como o Brasil não contradiz em nada os objetivos neoliberais. Trata-se somente
de exigir que os países dominantes joguem honestamente o jogo neoliberal que
eles impõem aos outros, aquilo que é um mínimo.
O Brasil jamais toma o lugar de vanguarda das resistências contra o
imperialismo ou o neoliberalismo. Por exemplo, ao mesmo tempo em que a
Argentina anulou uma parte muito importante de sua dívida pública, o Brasil foi
um bom aluno do neoliberalismo e não apoiou esse movimento, nem
verbalmente, nem de fato. Uma oportunidade foi, entretanto, aberta. No que se
refere à luta contra as taxas de juros elevadas, o governo Lula é menos radical
que certos industriais nacionais. O resultado é, portanto, bastante severo.

14) Ao levarmos em conta que a conjuntura política conservadora,


mesmo que não uniforme, prevalece no mundo hoje, como seria possível
vislumbrar uma ação política de esquerda e vinculada a que tipo de
organização política?
É preciso utilizar todas as organizações de luta política disponíveis e expandir
a luta para além dessas organizações. Uma primeira tarefa consiste em resistir a
todos os avanços neoliberais, por exemplo, na desmontagem de proteções sociais,
na redução dos poderes de compra, na privatização do ensino ou no abandono
das estruturas públicas de educação, de assistência social, etc. Os métodos
tradicionais são eficazes (ocupações, greves, manifestações, fóruns...), mas nada
proíbe o emprego de novos métodos: o MST é um exemplo disso. Uma tarefa
urgente é desfazer a lavagem cerebral. A ação deve ser conduzida a todos os
níveis, dirigindo-se a grupos bem informados e formados, ou populares. É
preciso criar meios de difusão alternativos, preservar ou ativar as formas de luta
culturais: teatro, música, quadrinhos...
A utilização das organizações tradicionais como os partidos ou sindicatos

Paula Marcelino e Henrique Amorim • 195


não está excluída, mas a experiência prova que essas estruturas formais
produziram espontaneamente quadros que não resistem a sua própria ascensão,
engajando-se em processos de promoção social. O preceito zapatista que diz
que “o poder corrompe” é justo, mas toda a criatividade dos movimentos
sociais deve visar ultrapassá-lo.

15) E, para finalizar, o que é ser marxista hoje?


O horizonte é sempre a superação de todas as estruturas de classe, as quais
se somam todas outras formas de exploração. Não é suficiente nascer igual,
ainda é preciso dispor de meios econômicos e intelectuais de preservação dessa
igualdade: não uma igualdade de possibilidades, mas uma igualdade realizada.
Por que se referir a um homem morto há mais de um século, ao invés de se
contentar em se engajar na luta de hoje? Porque Marx, outro homem de ação
nas lutas de seu tempo, foi o teórico mais completo do capitalismo e, de uma
maneira mais geral, das sociedades de classe. Eu não vejo como compreender a
sociedade atual e sua história fora da estrutura forças produtivas/relações de produção
– classes (na sua relação com as relações de produção) e luta de classes – Estado. No plano
econômico, eu não vejo como renunciar às teorias marxistas de exploração, de
instabilidade macroeconômica, da transformação técnica ou da centralidade
das taxas de lucro... Nada é perfeito, mas o ponto de partida é exatamente este.
O capitalismo produziu muito bem no século XIX e no século XX a violência
geradora de sua própria eliminação. E podemos dizer que o neoliberalismo
prolonga essa tendência. Marx previu no proletariado a força social suscetível de
mudar o mundo, mas essas experiências soçobraram. Inúmeros marxistas não
fizeram ainda esse balanço justificados pelas suas autoproclamações de “probidade
democrática”. Ser marxista hoje é voltar-se às raízes do pensamento de Marx,
sem perder de vista a história do capitalismo e aquilo que foi o socialismo marxista.
Resumidamente, atualizar tudo, conservando os princípios fundamentais.

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