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Personagens Psicopáticos No Palco

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1

PERSONAGENS PSICOPÁTICOS
NO PALCO (1906)

Macbeth: – Curai-a! Não podeis acalmar um espírito


doente, arrancar-lhe da memória os pesares arraigados,
apagar as angústias gravadas no cérebro e, com um doce
antídoto que faça esquecer, aliviar o peito oprimido do
peso perigoso que comprime o coração?
Médico: – É preciso que o doente seja seu próprio
médico.
William Shakespeare

Personagens psicopáticos no palco é um texto curto, mas bastante útil para


as nossas reflexões: “Contém, em seis páginas, um número considerável
de ideias profundas que mereceriam ser mais amplamente desenvolvidas
[...]”.1 De certa forma, tentamos desenvolvê-las. Escrito provavelmente

1
  Jones, apud Regnault, 2001, p. 145.

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em 1906, Freud não o publicou em vida. Pela data, torna-se pioneiro na
abordagem da estética entre os demais que escolhemos. O trabalho foca o
drama e o teatro, como A interpretação dos sonhos, que o precedeu, e textos
posteriores, como Alguns tipos de caráter elucidados pela psicanálise, em que
Freud aborda a bissexualidade a partir de Macbeth (Freud, 1900, 1916a).
A importância da estrutura e do conteúdo dos dramas escritos para os
realmente vividos é fundamental. Freud abre sua reflexão com a poética de
Aristóteles e deixa clara a intenção de abordar a estética. Depois, circula
por ideias que vão da arte em si ao efeito que ela provoca no espectador.
Efeito e catarse ocupam um lugar central. Ele relembra a noção aristoté-
lica de que o drama consiste em despertar terror e comiseração. Desde o
começo, avultam frases significativas:

Para tal finalidade, o fator primordial é, indubitavelmente,


o desabafo2 dos afetos do espectador; o gozo daí resultante
corresponde, de um lado, ao alívio proporcionado por
uma descarga ampla, e de outro, sem dúvida, à excitação
sexual concomitante [...] Ser espectador participante do
jogo dramático significa, para o adulto, o que representa o
brincar para a criança, que assim gratifica suas expectativas
hesitantes de se igualar aos adultos. (Freud, 1906, p. 292).

Com menções à catarse e ao efeito da arte, o parágrafo retoma noções


importantes do pensamento estético freudiano: a noção de descarga – a
ab-reação que une a catarse aristotélica às ideias de Freud e Breuer – e
de representação dos afetos proporcionadas pela arte. Há a aproximação
com a brincadeira infantil, como veremos no texto sobre criação literária
e devaneios, publicado dois anos depois.
A importância do disfarce, presente nas várias formas de arte, aparece
em cada linha e entrelinha de Freud, legitimada por poetas: “E que coisa
é a poesía senão um fingimento de coisas úteis, cobertas e veladas (com
mui) velada cobertura?”3 (Marquês de Santillana apud Berenger Carísomo,
1987, p. 45). A sensação de gozo e triunfo que a arte oferece em relação
aos conflitos tem a ver com esse disfarce, fingimento ou cobertura e a

2
  Em itálico no original.
3
  Tradução do autor.

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possibilidade de uma ilusão proporcionada pela vida ao ser representada.
Uma satisfação momentânea, como assinala Freud. E muito necessária,
permitimo-nos acrescentar. Estamos diante do importante arsenal ofere-
cido pela criação artística dentro e fora das sessões: desabafo, descarga,
brincadeira. E elaboração, conforme a vinheta: Inês tinha 6 anos e vivia
num abrigo da região parisiense. A ASE, ou “Ajuda Social à Infância”, a
separou judicialmente da mãe que a negligenciava e do padrasto que batia
nela. Ao ouvir a história O patinho feio, escolhida como a sua predileta,
repetia: “Como ele é triste, como ele é triste!”.
Inês, como outras crianças do abrigo, utilizava a segurança da arte e o
distanciamento oferecido pela metáfora para desabafar um sentimento
que também lhe pertencia. Ela o fazia para brincar com ele e, fora dessa
brincadeira, não conseguia fazer. Da experiência, obtinha prazer e saía
mais integrada, com menos insônia e inibição. Entrava nela para brincar
e saía brincando mais ainda. O resultado era o declínio de certos afetos
depressivos que precisava elaborar para relançar-se à vida. A catarse
constituía o começo do efeito essencial da arte literária sobre ela, espécie
de prenúncio da simbolização que a sucedia. Inês começou a desenhar
patinhos feios e a compor histórias para eles. Com o tempo, os relatos
foram ganhando um final feliz.
Freud assinala a necessidade de que o drama ponha em cena uma ação
que engendre o sofrimento. É como se dissesse que é preciso experimentar
o sentimento, senão na vida, na arte. Ele chama a atenção para a impor-
tância de expressar o conflito, base de toda narrativa. E de toda análise,
que é narrativa. Em seguida, faz uma classificação dos gêneros de drama,
dividindo-os em religioso, social e de caracteres. Depois de mencionar a
poesia lírica, classifica a produção dramática. A sua intenção é chegar ao
drama psicológico moderno, incluindo o que chama de psicopatológico
nas relações entre a obra e o espectador neurótico.4
Freud retoma Hamlet, uma de suas tragédias preferidas, e sugere que
a habilidade de Shakespeare está em historiar a psicopatia para nos iden-
tificarmos com ela em muitos aspectos. Na vida, é preciso identificar-se.
A partir de Freud, a arte aparece como um facilitador, especialmente
diante das lacunas. Às vezes, a identificação ocorre artisticamente como

4
  Lembramo-nos aqui de Georges Politzer (1998), para quem a possibilidade de relato do dra-
ma está no centro da análise e se constitui no carro-chefe das descobertas de Freud.

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uma prótese (Lafforgue, 1995), algo frequente com as crianças separadas
de seus pais, com quem utilizamos o conto na França.
Não retomamos detalhes do texto, senão para dizer que, no contexto
das tragédias amorosas, há a renúncia de um afeto (recalcado), ideia re-
corrente na obra freudiana. Arte e análise tentam resgatá-lo, historiando.
Isso é ainda o que mais tentam. E nos ocorre a pergunta: na vida em si, o
que leva alguém a um analista não são questões amorosas com traumas,
recalques, inibições?
Enfatizamos um ponto que começa no final da frase: “Em Hamlet,5 de
fato, o conflito está tão oculto que coube a mim desvendá-lo.” (Freud, 1906,
p. 296). Para ele, aqui está a habilidade de Shakespeare, artista capaz de
oferecer serventia a seus personagens no palco. E avança:

De fato, não podemos penetrar no conflito do neurótico


quando este já o traz plenamente firmado dentro de si.
Inversamente, quando reconhecemos esse conflito, esque-
cemos que se trata de um doente, da mesma forma que
ele, ao tomar conhecimento de seu conflito, deixa de ser
doente. A tarefa do autor seria colocar-nos nessa mesma
doença, e a melhor maneira de consegui-lo é fazer com que
sigamos o curso de seu desenvolvimento junto com aquele
que adoece. (Freud, 1906, p. 296).

Há um mundo de reflexões estéticas e analíticas no parágrafo. Freud


sugere que a habilidade técnica do escritor está em estruturar uma história
e historiar o conflito. Ou o que recalcamos e oferecemos resistência de
conhecer. É o que nos permite uma identificação com a personagem a fim
de poder reconhecer sem pânico a natureza do conflito e brincar com ele.
Elaborá-lo. Ponderamos que vale o mesmo para o trabalho do analista,
aquele que só pode colaborar com o seu paciente à medida que extrai do
conflito estático e transversal uma história viva, dinâmica, longitudinal,
para mergulhar nela, o que, em termos analíticos, é o processo e a cura.
Freud se mostra aristotélico, mas a sua noção de catarse é peculiar,
original. Para o mestre grego, catarse supunha atenuação, enquanto para
o conjunto da obra do psicanalista significa uma excitação no contato com

5
  Em itálico no original.

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a arte. A arte da análise, em que algo se atenua no instinto representado,
mas a experiência não deixa de evocar certa excitação.6 Um alívio através
da forma, algo paradoxal, uma vez que abre novas indagações, conteúdos
e alguma angústia (Regnault, 2001). É preciso uma pitada shakespeariana
em nosso trabalho diário. Tomar a contramão de uma medicina cada vez
mais interessada em abafar angústias e calar os dramas. É preciso ouvir,
contornar, desviar, ir pelas beiradas. Metaforizar. Representar. Expandir.
Ao lidarmos com relatos e personagens, somos também dramaturgos.
A análise não é um método sedativo e, por vezes, provoca angústias.7
Ela se opõe à medicina tradicional, que Freud exerceu no começo. Ele
reitera que o fato de ser outro que sofre no palco, e isso não passar de
um jogo, oferece segurança pessoal para o espectador através do disfarce,
espécie de cantilena repetida ao longo do nosso livro. Diversos autores
apontam a importância da distância existente entre a metáfora, a histó­
ria narrada e os conflitos instintivos de narrador, artista ou público:
“A relação mostrar-ocultar essencial à ideia da ‘realização disfarçada de
um desejo recalcado’ é uma consequência dessa relação de substituição
pela qual ‘o mesmo’ sentido nos é conservado no ‘outro’ sentido.” (Ricoeur,
2010a, p. 183).
Didier Anzieu (1994) construiu a noção de ego-pele e defendeu o papel
fundamental do símbolo para esse construto protetor. Ernst Kris (1968,
p. 37), psicanalista que estudou a arte profundamente, escreveu:

O tema do conto de fada foi, na maior parte das vezes,


escolhido pela criança pelo fato de ser menos perigoso e
proibido; não era um resultado de sua própria imaginação,
mas um modelo de suas emoções oferecido a ela com o
consentimento dos adultos.

6
  Para Ricoeur (2010b), a catarse pode ser considerada uma modalidade de aprendizagem a
partir de uma agitação da consciência com efeitos cognitivos e éticos, além de mera descarga.
Vygotsky (2006), em sua Psicologia da arte, também amplia o conceito de catarse para além de
uma simples descarga nervosa, capaz de chegar a um verdadeiro equilíbrio entre o organismo
e o entorno. Ele evoca o poder das canções de aliviar a vida dura dos trabalhadores desde os
povos da Antiguidade. O autor enfatiza o efeito catártico da arte ao dar vida a energias pode-
rosas que estavam inibidas.
7
  Importante recordar que, para Melanie Klein (1930), as angústias são fundamentais na for-
mação do símbolo.

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A importância clínica disso é enorme, e a obra de Freud situa a cul-
tura e a arte – a possibilidade de abstrair – nessa área intermediária da
mente ou da alma (Delouya, 2016). O recurso permite lidar melhor com
as resistências, desafio constante de uma análise encenada sempre no
limite ou à beira de uma reação terapêutica negativa e uma interrupção
(Freud, 1923a).
Assim foi com Inês, capaz de angustiar-se com o patinho feio a partir
de uma história (drama e metáfora) para elaborar a própria angústia
pela parte feia de sua vida. A partir de Regnault, que pensou a partir de
Freud, que pensou a partir de Aristóteles, vemos o quanto as experiências
analítica e estética se aproximam. Impregnar-se de arte ou de análise tem
a via dupla de atenuar ansiedades inibidoras da expansão do patamar de
vivência, mesmo ao preço de agregar novas dores. É como uma mediação,
um distanciar-se para aproximar-se mais ainda, um passo atrás para dois
à frente, até poder lidar melhor com a realidade que é inevitavelmente
sofrida.
Maria, uma jovem adulta, chega à sessão com um sentimento de culpa
por estar alegre com a notícia da doença grave contraída pela mãe de uma
amiga. A análise do sentimento aponta um deslocamento interessante.
Maria parece realizar uma catarse de seus sentimentos com a própria mãe,
que tanto a maltratou. É como um triunfo através de uma “vingança” ao
imaginar com a mãe da amiga o que não pôde com a sua. A compreensão a
alivia, mas ainda parece faltar capacidade estética para viver os sentimentos
através da arte e de seus personagens dramáticos. A análise, mediante a
transferência, tentará preencher a lacuna.
O texto de Freud finaliza com aquilo que o havia estimulado, uma
crítica à Die Andere, peça de Herman Bahr, encenada à época em Viena.
Ele valoriza a importância da atenção flutuante no processo de resgatar o
que está oculto e provavelmente desencadeou as suas páginas, essas que
seguem vivas em nossas cenas presentes. Se o trabalho é curto, dá conta
de pinçar aspectos essenciais da relação entre arte e psicanálise – catarse,
efeito – para ecoar a cada situação clínica enriquecida por alguma refe-
rência literária como na breve prosa que agora nos ocorre.
Temas essenciais estão presentes nas obras e na vida das pessoas. O da
alma, por exemplo. Ou do pacto da alma com o diabo a ponto de vendê-la,
como em Dostoievski, o dramático, e em Goethe, o dramaturgo. E como
está presente fora das páginas, dentro da clínica cotidiana! Toda criança
está mergulhada no paradoxo desde os primórdios de sua relação com os

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pais. Que, idealmente, formam e estimulam almas autônomas sem pacto
com Mefisto, livres para levarem seus corpos aonde quiserem. Para isso,
são ensinadas desde cedo a protegerem corpo, alma, liberdade, essa turma
que não pode existir e soltar-se sem algum enquadre.
Na prática, não é bem assim. Fantasmas, histórias não narradas, metáfo-
ras não atingidas, almas emprestadas e vendidas nas gerações precedentes
e que não puderam ser depuradas por alguma arte, chegam como modelo
compulsivo aos pais. De forma inconsciente, levam-nos adiante repetida-
mente e vão pactuar com as almas nascentes de seus filhos. O resultado é
um imbróglio partido com uma parte de alma liberta e outra vendida ao
diabo da neurose dos pais. Uma análise é conhecer cada uma dessas partes,
e era o que fazia Antônia. Dava-se conta de que estar em Porto Alegre
para uma formação especializada era fruto de uma liberdade adquirida,
conquista natural na relação com os pais. Isso a fazia dormir, tornava-a
satisfeita ao acordar e lhe dava a sensação maravilhosa de pertencimento
a um lugar, por menos tempo que estivesse nele. O lugar, afinal, era den-
tro. Mas também havia insônia e angústia que mostravam uma ligação
marcada por um sentimento de culpa de não estar em sua cidade-natal
para assumir os negócios da família e desfrutar de uma condição melhor
de vida com direito a carro mais caro, apartamento maior e mais viagens.
Isso lhe dava uma sensação ruim nas noites mal dormidas, aquelas de
despertar sentindo-se na hora e no lugar errados.
À medida que uma sensação e outra iam alcançando palavras e as pala-
vras construíam cenas, elas apontavam para onde seus pais conseguiram – e
onde não – estimular a liberdade de sua alma. Então, a primeira e melhor
sensação começava a preponderar, e a segunda, que jamais despareceu,
era agora capaz de dar algumas tréguas. Durante os descansos da alma,
outras e melhores sensações surgiram. Um dia, Antônia contou que sentiu
saudades dos pais pela primeira vez depois de adulta. A nova angústia
confundia-se com mais liberdade e vínculo, ambos suscitados pela arte
narrativa e dramática da psicanálise, que vinha sendo capaz de criar um
palco para que ela pusesse em cena e em palavras todas as suas persona-
gens.8 Fazia-o no que contava e no imbróglio vivido com o seu analista,
que, na transferência, encenava vários tipos de caráter.

8
  “A criação do eu é uma arte narrativa [...]” (Bruner, 2013, p. 94), tradução do autor.

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Certa vez, Antônia disse que não via mais mistério nas buscas, e
contrapus que de minha parte ainda via muito. Ela desejou saber qual,
e eu enfileirei uma série de perguntas que me habitavam: por que razão
relaxava em sua preparação profissional, por que motivos ainda não tinha
encontrado um amor mais duradouro e assim por diante. Ela se espantou
com o meu espanto, que pareceu lhe contagiar com curiosidade e mis-
tério e tudo o que faz parte de uma boa arte dramática como o teatro, a
psicanálise. E a vida. Às vezes, era isso o que a sua análise lhe oferecia.
E não parecia pouco.

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