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Decolonialidade, Educação e Antirracismo - VERS FINAL

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Decolonialidade, Educação e Antirracismo

Organizadores:
Ricardo Cesar Rocha da Costa (IFRJ)
Eliane Almeida de Souza e Cruz (SEEDUC-RJ)
George Vidipó (SME-RJ)
Roberto Carlos Costa da Silva (IFRJ-GEPECD)
Luiz Rafael Gomes (UFRRJ-PPGEO)

Decolonialidade, Educação e Antirracismo

São Gonçalo – RJ
2021
Ficha Técnica

Copyright © Autores, 2021. Fragmentos dos artigos que constam desta coletânea
podem ser reproduzidos, desde que a fonte seja devidamente citada. Para reprodução
do artigo na íntegra, deve-se consultar os seus autores.
Contatos: educacaoculturasdecolonialidad@gmail.com

Revisão: Organizadores e autores dos artigos e resenhas. Agradecemos a colaboração


de Suzana dos Santos Matos, membro do grupo de pesquisa.
Diagramação: George Vidipó
Imagem da Capa: Ilustração de Joaquín Torres García
Projeto da Capa: George Vidipó, sobre a bandeira Whipala (*) e o mapa invertido de
Joaquín Torres García (**)

(*) A bandeira estilizada Whipala é um símbolo sagrado das nações quíchuas e aimarás,
expressando o pensamento filosófico andino, que incluem a Pacha-Kama (início-fim
universal) e Pacha-Mama (cosmos). Resgatada em tempos mais recentes, passou a
representar as concepções de organização, harmonia, irmandade e reciprocidade dos
povos dos Andes (cf. Gabriel Santos. Esquerda OnLine. Disponível em:
https://esquerdaonline.com.br/2019/11/14/wiphala-a-bandeira-simbolo-da-uniao-das-
nacoes-andinas/ Acesso: mar.21.

(**) “He dicho Escuela del Sur; porque en realidad, nuestro norte es el Sur. No debe
haber norte, para nosotros, sino por oposición a nuestro Sur. Por eso ahora ponemos el
mapa al revés, y entonces ya tenemos justa idea de nuestra posición, y no como
quieren en el resto del mundo. La punta de América, desde ahora, prolongándose,
señala insistentemente el Sur, nuestro norte.” (Joaquín Torres García. Universalismo
Constructivo, Buenos Aires: Poseidón, 1941).

IFRJ – Campus São Gonçalo. Rua Dr. José Augusto Pereira dos Santos, s/nº,
CIEP 436 Neusa Goulart Brizola, Neves - São Gonçalo – RJ, CEP: 24425-005
Dedicamos este trabalho às milhares de perdas que tivemos
e continuamos tendo em função da pandemia
e do descaso governamental, citando em especial
o professor Vitor Sueth Santiago, então
coordenador de Pesquisa do IFRJ-Campus São Gonçalo,
e o amigo do grupo de pesquisa, o professor e teólogo Max Cassin.
Sumário

PREFÁCIO 11

APRESENTAÇÃO 13

PARTE I – Memórias
A organização e a trajetória de um grupo de pesquisa no debate sobre a
decolonialidade
Eliane Almeida de Souza de Cruz e Ricardo Cesar Rocha da Costa 21

PARTE II – Decolonialidade e educação


O que são colonialidade e opção decolonial? 45
Luiz Fernandes de Oliveira
Pedagogia decolonial antirracista: tecendo o conceito 71
Eliane Almeida de Souza de Cruz
Reflexões sobre práticas pedagógicas decoloniais 85
Márcia Guerra, Hyago Thomaz e Daniel Carvalho

PARTE III – Decolonialidade e epistemologia antirracista


O significado de raça dentro da colonialidade do ser e do saber 103
Luiz Rafael Gomes
Laicidade da escola pública brasileira: desafios para a consolidação do 117
Estado Democrático de Direito
Maria Eugênia Brêttas Veiga
Intolerância religiosa e racismo religioso: por uma perspectiva 131
decolonial
Geiziane Angélica Souza Costa

PARTE IV – Cosmologias e epistemologias africanas


Princípios da epistemologia africana 145
Kynni Kayode Fernandes Duarte
A filosofia africana: ubuntu 159
Fábio Borges-Rosario
Ferreiros africanos escravizados: a interculturalidade na história da 177
siderurgia brasileira
Roberto Carlos Costa da Silva
RESENHAS
Discurso sobre o colonialismo, de Aimé Césaire 195
Antonio de Castro Alves
Leitura, impressões e interpretações a partir do livro Pode o subalterno 199
falar? de Gayatri Chakravorty Spivak
Paulo Gomes Coutinho

SOBRE A AUTORIA DOS TEXTOS 213

ANEXOS

Relação de membros e participantes do Grupo de Pesquisa 219


Memória imagética 223
11

PREFÁCIO

Há um projeto de destruição da educação pública em curso. Este processo não se deu a partir
dos efeitos da crise sanitária provocada pelo SARS-COV-2. Estas instituições sobrevivem aos
processos de privatização, sorrateiros, emergindo como alternativas à asfixia orçamentária e
financeira, transvestindo-se em parcerias público/privadas para se sobrepor ao cotidiano de
escassez.
De fato, os efeitos da pandemia para as atividades pedagógicas e acadêmicas são imensuráveis.
O espaço escolar se constrói com base nos encontros, partilhas e vivências. A escola tem
cheiros, rostos, olhares, suor, lágrimas, compromisso ético-político e afetos. Desde março de
2020 os espaços estão vazios, os encontros são virtuais e os olhares se expressam por meio das
telas.
Diante de tantas agruras e forças hegemônicas que nos fazem crer que ao Brasil, país de
capitalismo dependente, cabe intelectualidade subalterna e subjugada, entretanto, há
resistências, há produção de conhecimento que não concebe um país para a subalternidade.
O livro Decolonialidade, Educação e Antirracismo sintetiza o esforço de pesquisas e reflexões
coletivas que se põem no campo da resistência à subordinação teórica (e política) predominante
nas ciências humanas e sociais. Trata-se de uma produção abertamente crítica à colonialidade
do saber, às epistemologias eurocentradas e ao apagamento histórico de saberes alicerçados
pelo racismo estrutural e fermentados pelas relações capitalistas contemporâneas.
Seria possível elencar outros atributos, igualmente importantes, dos textos aqui reunidos. Por
hora, é fundamental destacar o seu caráter coletivo, construído nos horários de descanso dos
autores e autoras. Foram numerosas tardes de sábado passadas no IFRJ/Campus São Gonçalo
em seminários, grupos de estudos e muitas horas dedicadas ao trabalho em suas casas.
Aqui não há uma tentativa de romantização do excesso de trabalho e da ausência de
financiamento das pesquisas. Pelo contrário, pretende-se valorizar a rebeldia simbolizada pelo
pensamento crítico e contra-hegemônico no Brasil de 2021, onde uma instituição pública de
ensino como o IFRJ é tão fundamental para que outros trabalhos semelhantes floresçam.
Temos vivido processos de luto e perdas simbólicas diariamente em função da maior crise
sanitária que já se abateu sobre o país. São dias muito duros, perdemos amigos e colegas de
trabalho. Por isso é tão alentadora a publicação destes escritos e a percepção de que a educação
pública segue viva e pulsante. Certamente, nossos companheiros Vitor Santiago e Max Cassin
subscreveriam estas linhas.

Niterói, 19 de abril de 2021

Gleyce Figueiredo de Lima


IFRJ/Campus São Gonçalo - Diretora de Pesquisa, Extensão e Assistência Estudantil
12
13

APRESENTAÇÃO

São só dois lados da mesma viagem


O trem que chega é o mesmo trem da partida
A hora do encontro é também despedida
A plataforma dessa estação é a vida desse meu lugar
É a vida!
Milton Nascimento

A presente coletânea é resultado da trajetória de quase quatro anos de atividades do


Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade. Nesse período, desde o
nosso primeiro encontro, em 27 de maio de 2017, em uma sala de aula do Instituto Federal do
Rio de Janeiro, no campus São Gonçalo, até a sequência de reuniões remotas de 2020, no
contexto de uma pandemia inimaginável para todxs nós, tivemos muitas idas e vindas, muitas
chegadas e partidas, como na canção de Milton, a maior voz latino-americana da história da
música popular brasileira.
Podemos afirmar que o lançamento deste livro significa não somente um resgate da
memória desses tempos, como também uma celebração da vida, em meio a um cenário marcado
por tantas dificuldades e tantas tristezas. Representa igualmente a vontade política militante de
resistência e de reafirmação da luta por uma sociedade-outra, a busca de novas perspectivas
epistemológicas e olhares a partir de referências não-eurocentradas, mas sim insurgentes,
subversivas, antirracistas, decoloniais. Significa, sobretudo, a tentativa de resgate das histórias
e concepções de mundo periféricas, cujos povos tiveram seus saberes e suas ciências
invisibilizadas e subalternizadas pelo poder colonizador do homem branco de origem europeia,
nesse longo processo de acumulação de capital que gerou este mundo hegemonizado por
opressões racistas, sexistas e LGBTfóbicas.
Seguimos na luta, portanto, e esperamos que esta nossa primeira publicação inspire a
necessidade de reformulação e reorganização política e pedagógica necessárias à revolução
dessa ordem de coisas, sem a qual os seres humanos nunca alcançarão a paz e a solidariedade
cotidiana que deva existir entre todos os povos – mesmo após a superação da crise sanitária em
que nos encontramos.
Feitas essas considerações políticas iniciais, passemos à apresentação da obra. Ela é
subdividida em quatro partes temáticas diferentes, acrescida de uma seção reservada para
resenhas bibliográficas. A Parte I, que intitulamos “Memórias”, apresenta um artigo que
14

objetiva recuperar a história do grupo de pesquisa, desde o seu início, em 2017, até o final de
2020. Seus autores, Eliane Cruz e Ricardo Costa, participaram de toda essa trajetória, sendo
hoje co-coordenadores do grupo e coorganizadores desta coletânea. O texto procura não
somente descrever as ações e as pautas debatidas pelo grupo ao longo desse período, mas
sintetizar, de passagem, algumas questões teóricas presentes nas referências sobre as quais nos
debruçamos. Consideramos esse primeiro registro como fundamental para a preservação dessa
memória, servindo também como um dos apontamentos necessários à avaliação dos erros e dos
acertos cometidos, visando ao planejamento dos próximos passos, a partir deste ano de 2021.
Fica colocado o desafio a que xs demais componentes do grupo produzam também suas análises
e propostas de ação e de discussão teórico-política.
A Parte II, “Decolonialidade e educação”, é subdividida em três artigos. No primeiro
deles, o professor da UFRRJ, Luiz Fernandes de Oliveira, uma das referências brasileiras nas
reflexões sobre o pensamento decolonial, apresenta exatamente um texto que enumera diversos
embates e questões relacionadas à produção intelectual do grupo de pesquisa latino-americano
Modernidade/Colonialidade (MC), como ficaram conhecidos esses pensadorxs, de origens
distintas, que se reuniram no final do século XX para gestar e desenvolver o conceito de
decolonialidade. Nada melhor do que abrir a coletânea com um artigo introdutório, mas bastante
abrangente e ilustrativo do debate a que o nosso grupo de pesquisa se propôs a fazer durante
esses tempos. Agradecemos ao Luiz Fernandes pela sua excelente e generosa contribuição,
assim como pela palestra de abertura do I Seminário organizado pelo grupo, em novembro de
2018. Com exceção desse artigo do professor Luiz, todos os demais reunidos nesta coletânea
foram redigidos por participantes efetivos do nosso grupo de pesquisa.
Na mesma pegada do artigo anterior, na sequência da Parte II, a professora Eliane Cruz
desenvolve um desdobramento teórico da produção do grupo MC, que é a Pedagogia
Decolonial Antirracista: tecendo o conceito, título do seu texto, um fragmento extraído da sua
tese de doutoramento, defendida em março de 2020, na UFRRJ. Seu artigo apresenta essa
pedagogia, nascida sob a inspiração da Pedagogia Crítica, de Paulo Freire, como um campo de
disputa de narrativas e de enfrentamento do racismo epistêmico presente nas práticas e nos
currículos escolares. Seu objetivo é a busca de processos pedagógicos libertadores e
emancipadores da condição humana subalternizada pela lógica opressora reproduzida e
introjetada nas salas de aula das classes subalternas.
Esta seção é finalizada com mais uma produção gerada no âmbito das discussões do
grupo e das aulas da Especialização em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-
brasileiras, do IFRJ - Campus São Gonçalo. No artigo Reflexões sobre práticas pedagógicas
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decoloniais, a professora Marcia Guerra e seus orientandos Hyago Thomaz e Daniel Carvalho,
inspirados igualmente no pensamento de Paulo Freire, relatam suas experiências de formação
acadêmica e de exercício do magistério, revelando como o curso de Pós-Graduação do IFRJ e
as leituras decoloniais atravessaram e modificaram suas práticas de sala de aula, até então
marcadas pela perspectiva eurocêntrica. O texto reflete também a experiência dos autores na
oficina “África em sala de aula: novos temas, novas linguagens”, apresentada na VII Jornada
de Educação e Relações Étnico-raciais do MAR - Museu de Arte do Rio, em novembro de 2019,
evento que contou com parceria do curso de Pós do IFRJ e do nosso grupo de pesquisa.
A Parte III, “Decolonialidade e epistemologia antirracista”, também é subdividida em
três artigos. No primeiro deles, O significado de raça dentro da colonialidade do ser e do saber,
o co-coordenador do grupo, Luiz Rafael Gomes, apresenta a ideia de raça como imposição da
modernidade colonial europeia, que é uma das construções teóricas do grupo MC. A partir daí,
o autor, em seu texto, estabelece um diálogo bastante profícuo entre os pensadores decoloniais
e as reflexões do jamaicano Stuart Hall, especialista em estudos culturais, e do antropólogo
congolês, radicado no Brasil, Kabengele Munanga.
No artigo seguinte, a professora Maria Eugênia Brêttas Veiga debate o tema Laicidade
da escola pública brasileira: desafios para a consolidação do Estado Democrático de Direito.
Veiga desenvolve o seu texto demonstrando que a grande contribuição da laicidade para a
democracia está em acolher a diversidade e promover o diálogo em busca do respeito a cada
um e a todos. Seu trabalho se propõe a provocar uma reflexão crítica sobre o conceito e
concepção de estado laico na sociedade brasileira e refletir os efeitos que a laicidade provoca
na vida de cada pessoa e, consequentemente, no contexto escolar, concluindo ser necessário
fomentar esse debate no cotidiano das escolas, para que professores/as percebam a importância
de se trabalhar a diversidade. Só assim, segundo a autora, será possível assegurar o
reconhecimento dos direitos humanos – sociais, religiosos, étnicos, sexuais, reprodutivos – em
uma sociedade construída historicamente no marco de um pluralismo religioso de caráter
hierárquico.
O terceiro e último texto dessa parte é de autoria da professora Geiziane Angélica de
Souza Costa, intitulado Intolerância religiosa e racismo religioso: por uma perspectiva
decolonial. Seu artigo visa discutir as questões que envolvem os crimes de intolerância
religiosa, especificamente os casos de racismo religioso, nos quais os praticantes de
religiosidade afro-brasileira, em razão da hegemonia colonial, mantiveram suas crenças como
forma de resistência. Como ressalta o título do trabalho, Geiziane apresenta as suas reflexões
sobre o tema a partir de uma leitura decolonial, demarcando as práticas de resistência presentes
16

nas visões de mundo apresentadas pelas religiosidades de matriz africana, em seu


enfrentamento poderoso do maniqueísmo expresso pelo pensamento ocidental que se manifesta
na religiosidade cristã.
Mais uma vez, temos mais três artigos subdividindo a Parte IV, “Cosmologias e
epistemologias africanas”. A seção se inicia com o desenvolvimento do tema a partir de um
ensaio de Kynni Kayode Fernandes Duarte, Princípios da epistemologia africana. Kynni
Kayode é daqueles jovens intelectuais que apontam para as trilhas da escrita da transgressão,
da condução e da proposição. O autor nos convida a compreender o tema através do resgate dos
valores socioculturais e estruturais basilares de pensamentos ancestrais de povos subsaarianos,
do negro-africano, o maior berço cultural das matrizes afro-brasileiras, a Nação Yorubá, ou o
povo Nagô, que se localiza, principalmente, na atual Nigéria, mas também em parte do Bením
e minoritariamente em países como Togo e Serra Leoa, entre outros. Segundo Kynni, o
primeiro ponto que se deve ter em mente é que em África existem diversos grupos étnicos,
povos, nações, e que, apesar dos valores socioculturais, filosofias, tradições, religiões e visões
de mundo diferentes, alguns costumes e algumas infraestruturas e pilares epistemológicos se
fazem universais: ética/caráter, ancestralidade e coletividade/comunidade. Sua escrita é
carregada de conceitos de decolonialidade, contudo não apresentados explicitamente nesse
texto. Trata-se de uma escrita decolonial, onde o ser decolonial desperta a consciência para a
mudança, para a subversão da ordem da matriz colonial de poder, de ser e saber ao revelar as
atrocidades da modernidade/colonialidade. O texto do autor avança nesse caminho ao
desenvolver alguns pontos da epistemologia da cultura nagô e seus fundamentos estratégicos
de existência/sobrevivência/reexistência.
Fábio Borges-Rosario é o autor do artigo seguinte, A filosofia africana: ubuntu. Apesar
do diálogo intenso com o teor do trabalho anterior da coletânea, o texto do professor Fábio tem
uma especificidade didática, ou seja, ele se preocupa em relatar as reflexões produzidas em
duas oficinas com educadorxs: a primeira, oferecida no I Seminário organizado pelo grupo de
pesquisa, “Educação e transdisciplinaridade no pensamento decolonial”, em 2018, e a segunda,
na VII Jornada de Educação e Relações Étnico-raciais do Museu de Arte do Rio, um ano depois,
um evento que ocorreu de forma integrada ao nosso II Seminário, como registrado
anteriormente. O objetivo das oficinas, explicitado no artigo, foi o de aproximar xs participantes
de um rol de filósofos africanos e afro-descendentes da atualidade que, se lidos
desconstrutivamente/decolonialmente, possibilitam soçobrar os impactos do discurso racista na
educação básica brasileira, com a perspectiva de sua superação como promessa, numa
17

intervenção filosófica que observe o reconhecimento e a igual valorização das raízes africanas
da nação brasileira, ao lado das indígenas, europeias e asiáticas.
Por fim, a seção termina com o trabalho do historiador Roberto Carlos Costa da Silva,
Ferreiros africanos escravizados: a interculturalidade na história da siderurgia brasileira. O
artigo é um fragmento do seu Trabalho de Conclusão de Curso apresentado na Especialização
em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras do IFRJ, que teve como base
uma ampla pesquisa bibliográfica que envolveu as construções de fornos de metalurgia nas
áreas de minerações do Brasil Colônia e Império, comparando-as com as práticas de fundição
do ferro que eram características em tempos anteriores nos continentes europeu e africano. Sua
conclusão é surpreendente aos olhos viciados pela colonialidade: as técnicas de fundição e da
forja de ferro empregadas pelos ferreiros africanos e seus descendentes eram uma tecnologia
africana - e não europeia! Assim, Roberto Carlos, em seu artigo, denuncia o silenciamento, a
invisibilização e a subalternização cultural imposta pela colonialidade, ignorando a ciência e os
saberes tradicionais proporcionados pelas nações negras na diáspora forçada africana. Mesmo
com este spoiler que, nós, organizadorxs da obra, soltamos em relação às considerações finais
do autor, afirmamos que vale a pena conhecer os caminhos bibliográficos traçados pelo Roberto
em seu trabalho para se chegar ao resultado que já adiantamos nesta Apresentação.
A coletânea se encerra com uma seção de Resenhas, com a apresentação de duas
generosas contribuições por parte de colegas do grupo. Na primeira, o professor Antonio de
Castro Alves, do IFRJ, apresenta e debate as ideias do poeta e político nascido na Martinica,
Aimé Césaire, em sua obra Discurso sobre o colonialismo. Em seu texto, Antonio Alves chama
a atenção para a formulação de Césaire da colônia como o lugar do “outro irracional da Europa”.
Nesse processo, a subjetivação do colono acaba por “fazê-lo incorporar como naturais todas as
formas de violência racial”, que seriam permitidas com a representação das colônias como
território selvagem, onde tudo é permitido. O autor, nessa breve resenha e com essas
provocações, indica elementos importantes para a reflexão teórico-política, relacionando na
obra citada de Césaire o seu debate sobre as práticas e as ideias vinculadas ao colonialismo com
a ascensão do nazi-fascismo na Europa no início do século XX. Além disso, Alves aponta os
diálogos possíveis de Césaire acerca da decolonialidade, assim como autores como Achille
Mbembe, Franz Fanon e Walter Benjamin.
Na segunda resenha, o professor Paulo Gomes Coutinho apresenta sua leitura,
impressões e interpretações sobre a intelectual indiana Gayatri Spivak e sua obra Pode o
subalterno falar? O texto reflete uma síntese apresentada por Coutinho e debatida em um dos
encontros remotos mais frutíferos e recompensadores do grupo de pesquisa ocorrido em 2020
18

– a ponto de estimular o autor a assumir a tarefa de redigir e apresentar o seu trabalho para esta
publicação. Como vocês, leitores, poderão observar, o professor Paulo Coutinho formulou uma
resenha de grande fôlego teórico, procurando “traduzir” e tornar acessível as formulações de
Spivak, apresentando sua crítica aos estudos culturais, às concepções pós-coloniais e aos
autores pós-estruturalistas, como Michael Foucault e Gilles Deleuze – em discussões tais como,
a título de exemplo, a ausência aparentemente deliberada de Foucault no debate marxiano sobre
o conceito de ideologia, e o questionamento acerca do papel assumido pela teoria e pelo
intelectual em relação à prática política, segundo as formulações de Deleuze. Spivak aponta,
dessa forma, segundo Coutinho, para essa “negligência dos pensadores eurocentrados” em
relação à condição dos sujeitos subalternos, transformados em objetos pelas violências da
colonização. Enfim, esta é apenas uma, dentre tantas questões apontadas por Coutinho em sua
leitura e seus apontamentos sobre Spivak. Esperamos ter estimulado vocês, leitorxs, à leitura
da resenha de Coutinho e, por consequência, o desafio de conhecer e dialogar com o pensamento
de Gayatri Spivak.
Confiamos ter cumprido com a tarefa de apresentar a todxs esta obra construída
coletivamente, fruto de diversas reflexões a que nos permitimos como uma estratégia de
resistência e de enfrentamento político e intelectual. Aguardamos ansiosos pelas leituras e pelas
necessárias devolutivas a respeito do resultado deste nosso esforço teórico.
Apostamos na certeza de tempos futuros menos sombrios e mais esperançosos!
Continuem se cuidando! Por aqui, continuaremos resistindo!
Saudações antirracistas e decoloniais!

Abril de 2021

Coordenadorxs do grupo e organizadorxs da coletânea


19
20
21

A ORGANIZAÇÃO E A TRAJETÓRIA DE UM GRUPO DE PESQUISA


NO DEBATE SOBRE A DECOLONIALIDADE

Eliane Almeida de Souza de Cruz


SEEDUC-RJ
hexlili@hotmail.com

Ricardo Cesar Rocha da Costa


IFRJ – Campus Arraial do Cabo
ricardo.costa@ifrj.edu.br

Podemos dizer que existiram duas vertentes no processo de organização do grupo de


estudos e pesquisas centrados na investigação sobre o tema da decolonialidade, responsável
pela edição desta obra. A primeira iniciativa nesse sentido foi tomada por parte dxs discentes1
da primeira turma de especialistas formada pela Pós-Graduação Lato Sensu em Ensino de
Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras, que ingressou no Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro – IFRJ, no campus São Gonçalo, em 2011.
Naquele momento – meados de 2014 –, um ano após ter ocorrido a maioria das defesas dos
Trabalhos de Conclusão de Curso por parte da turma citada, a demanda apresentada,
necessariamente, era a continuidade e o aprofundamento dos estudos desenvolvidos durante o
curso, principalmente com o objetivo de pleitear ingresso de parte desses estudantes em
programas de mestrado relacionados à temática da Especialização. Durante alguns meses, o
grupo conseguiu mobilizar para a sua proposta um dos docentes do curso de Pós e mais duas
ou três estudantes das turmas posteriores. A tentativa, entretanto, não logrou êxito, em função
da dispersão e descontinuidade dxs participantes, além da ausência de um foco temático que
aglutinasse xs interessadxs, impedindo, assim, a consolidação de um planejamento de estudos
e de propostas de pesquisas.
A segunda vertente se deu alguns anos depois, em 2017, a partir da iniciativa de três
remanescentes da primeira tentativa, o mesmo professor e dois ex-estudantes da Pós do IFRJ,
oriundos das suas duas primeiras turmas. Eles participavam ativamente, então, de outro grupo
de pesquisa, o GPMC – Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e
Culturas, organizado no final de 2011 e coordenado pelo docente da Universidade Federal Rural

1
A insurgência linguística usaremos o “x” para classificar o gênero da palavra, numa desobediência ao cânone de
uma categorização frasal que privilegia o masculino.
22

do Rio de Janeiro (UFRRJ), Luiz Fernandes de Oliveira, que havia concluído e defendido, em
2010, a sua tese de doutoramento na PUC – Rio de Janeiro, sob a orientação da Drª Vera Maria
Candau, intitulada História da África e dos africanos na escola: desafios políticos,
epistemológicos e identitários para a formação dos professores de História (OLIVEIRA,
2012). O professor Luiz Fernandes havia assumido como referência teórica central do seu
trabalho as contribuições de grupo de pesquisa relativamente pouco conhecido no universo
acadêmico brasileiro, intitulado “Modernidade/Colonialidade”, integrado por diversxs
intelectuais atuantes em universidades da América Latina, tais como Aníbal Quijano, Enrique
Dussel, Ramón Grosfoguel, Arturo Escobar, Catherine Walsh, Walter Mignolo, Santiago
Castro-Gómez, dentre outros. Registre-se que a professora Catherine Walsh, linguista norte-
americana radicada no Equador, onde leciona na Universidade Andina Simón Bolívar, no curso
de doutorado em Estudos Culturais da América Latina, participou da arguição da banca de
defesa de Luiz Fernandes de Oliveira, na PUC.
As reuniões gerais do GPMC e das equipes vinculadas às suas linhas de pesquisa
ocorriam mensalmente, via de regra, em bairros da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro e
em cidades da Baixada Fluminense. Além do deslocamento geográfico para quem residia do
outro lado da Baía de Guanabara (Niterói, Itaboraí e São Gonçalo), associou-se também como
elemento dificultador a carga horária em sala de aula e outras atividades assumidas por esses
três participantes. Com isso, retomou-se a proposta de mais uma vez tentar organizar um grupo
de pesquisa com base no IFRJ, campus de São Gonçalo. Desta vez, entretanto, tendo como
referência os debates promovidos nos encontros periódicos do GPMC, esse novo projeto
assumia como proposta de estudos, debates e pesquisas a perspectiva teórica proporcionada
pelo tema colonialidade/decolonialidade, mas acrescida pelo diálogo com a vasta produção em
torno das pesquisas sobre a temática etnicorracial desenvolvida durante o curso de Pós-
Graduação do IFRJ e – uma “inesperada novidade”, podemos dizer – o pensamento e a
produção marxiana e marxista. Dessa articulação teórica é que surge o primeiro nome de
batismo do grupo: Grupo de Pesquisa Culturas, Marxismo e Decolonialidade – GPCMD.
Em 27 de maio de 2017 ocorria a primeira reunião visando à organização do novo
grupo de pesquisa, com convidados interessados nos eixos teóricos elencados acima. Além dxs
especialistas pós-graduadxs do citado curso do IFRJ, a iniciativa desta vez conseguiu agregar
outrxs docentes desse curso, alunxs das turmas em atividade naquele momento, e diversxs
professores e professoras do próprio IFRJ, de outro campus/cursos, e outras redes de ensino
públicas e privadas. Da listagem inicial de possíveis interessadxs, elaborada pelxs presentes a
esse primeiro encontro constava 33 nomes, que foram devidamente consultados e aceitaram
23

participar do grupo, sendo convidaxs para o segundo encontro. Na listagem citada tínhamos:
05 docentes da Pós oferecida pelo IFRJ; 01 docente do IFRJ, do campus Nilópolis; 20
estudantes e ex-estudantes do curso; e 06 educadores de outras redes de ensino e militantes de
movimentos sociais. Para o segundo encontro do grupo, entretanto, ocorrido em 15 de julho
desse ano, compareceu praticamente a metade dessa lista, totalizando 15 pessoas – quantidade
de participantes que tem se mantido a cada reunião, em média, nestes quase quatro anos de
existência do grupo. “Olhando pelo espelho retrovisor”, ou seja, comparando os integrantes do
grupo de pesquisa ativos em março de 2021 com a lista elaborada em maio de 2017,
contabilizamos a permanência de 12 membros desde então, sendo que oito deles estavam
presentes nesses primeiros encontros, com os demais se integrando no decorrer do tempo. Mais
do que números, simplesmente, esse dado representa a consolidação efetiva de um grupo
interessado, que garantiu a existência institucional e a oficialização do grupo de pesquisa junto
à Reitoria do IFRJ e o seu registro posterior junto ao CNPq.
Dessa forma, o grupo de pesquisa e de estudos, enfim, se constituiu a partir desse
momento enquanto um espaço rico e prazeroso para debate e aprofundamento teórico-prático,
com reflexões voltadas para o fazer pedagógico, tanto pensando no “chão da escola”, como nos
movimentos sociais, tomando também como referências as leituras e as trocas de experiências
entre os seus participantes. No mesmo viés, a proposta de organização do grupo pretendia
contribuir com os estudos e a vida acadêmica e produção intelectual dos seus membros, com a
pretensão de se investir na organização de eventos científicos e publicações diversas – mas
sempre com a preocupação central de servir como instrumento de construção político-
pedagógica da práxis cotidiana, tendo como foco a formação política e a organização da luta da
classe trabalhadora, pobre, negra e periférica.

O debate teórico inicial

Em função da novidade que o tema da colonialidade/decolonialidade significava para


quase a totalidade dos participantes, o grupo de pesquisa pautou seus primeiros debates em
função da compreensão dos conceitos e elaborações teóricas formuladas originalmente pelos
intelectuais que se debruçavam nessas questões desde a década de 1990. Dessa forma, o então
GPCMD realizou seus encontros de 2017 discutindo o surgimento dos termos colonialidade e
decolonialidade, assim como a definição do que seria uma pedagogia decolonial e a concepção
de interculturalidade crítica, segundo Catherine Walsh (2005), ou seja, a elaboração de uma
pedagogia que se afirmasse não somente como uma crítica aos processos de ensino-
24

aprendizagem reprodutores de visões de mundo eurocêntricas, mas que, também, se impusesse


como uma “insurgência educativa propositiva” por parte dos movimentos sociais, construindo
“outras formas de pensar e produzir conhecimento”, a partir daqueles que foram subalternizados
e invisibilizados pela colonialidade, como foram os povos indígenas, os negros, as mulheres e
a população LGBTQIA+ (cf. OLIVEIRA, 2018, p. 100-102). Recorremos também às ideias de
racismo/sexismo epistêmico e epistemicídio, debatendo as contribuições do sociólogo porto-
riquenho Ramón Grosfoguel, professor do Departamento de Estudos Étnicos da Universidade
da California/Berkeley, nos EUA. Segundo ele, os conhecimentos produzidos por homens e
mulheres em todo o planeta são inferiorizados pelos homens ocidentais, que detêm “o privilégio
epistêmico de definir o que é verdade, o que é a realidade e o que é melhor para os demais”, se
transformando num mecanismo de permanência do colonialismo, do imperialismo e do
patriarcado (GROSFOGUEL, 2016, p. 25).
Outro autor destacado para debate nesses primeiros encontros foi o sociólogo peruano
Aníbal Quijano, a partir do seu artigo Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina
(2005). Neste trabalho, Quijano discute, entre uma série de outras questões de relevância, a
construção da ideia de “raça” e de que forma essa concepção não somente proporcionou
“legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista” da América pelos europeus,
como contribuiu para a “naturalização” da dominação colonial, estabelecendo relações de
superioridade/inferioridade e de dominantes/dominados entre os povos a partir de uma
classificação social da população mundial sob o ponto de vista europeu, pretensamente
“universal” (ver QUIJANO, 2005, p. 228). Essa perspectiva apresentada por Quijano foi
complementada pela leitura e debate de outro artigo, no qual novamente Grosfoguel, em
parceria com o professor de sociologia da Universidade de Brasília, Joaze Bernardino-Costa,
discorrem sobre a prevalência da ideia de raça nos processos de dominação colonial nas
“margens/fronteiras externas” dos imperialismos ao redor do planeta, mas também
estabelecendo “margens/fronteiras internas” em cada país/região – o que seria um
“colonialismo interno”, segundo eles, citando também Pablo Gonzales Casanova (2002) – com
“uma divisão de privilégios, de experiências e de oportunidades entre negros e brancos,
populações indígenas e brancos, tal como exemplifica a história do Brasil” (BERNARDINO-
COSTA; GROSFOGUEL, 2016, p. 20).
Após essas discussões iniciais, que objetivavam romper com o “estranhamento” inicial
em relação aos usos e sentidos dos termos colonialidade/decolonialidade, e suas categorias
derivadas, o grupo de pesquisa buscou a interseção dessa temática com outras leituras teóricas
– sem deixar de lado, no entanto, a centralidade do debate sobre a decolonialidade. A cada
25

encontro os temas e textos de referência eram levantados e sugeridos pelos membros do grupo,
com a auto-indicação de que um dos participantes, de acordo com suas leituras prévias e seus
interesses mais imediatos em termos de pesquisa, apresentasse uma síntese das contribuições
trazidas por cada autor/a selecionadx, para debate e intervenção de todos e todas, que eram
corresponsáveis pelo estudo e pelas devidas anotações críticas para compartilhamento em cada
encontro mensal.
Seguindo essa dinâmica de trabalho, o grupo de pesquisa, na sequência desse debate
teórico introdutório, entre o final de 2017 e ao longo dos dois anos seguintes, promoveu
discussões acerca da pedagogia do oprimido, com a leitura de textos de referência de Paulo
Freire sobre o tema, como o livro que traz esse título e, em outro momento, a publicação
Educação como prática da liberdade; analisou e debateu a obra de Franz Fanon, Peles negras,
máscaras brancas;2 discutiu o feminismo negro e o conceito de interseccionalidade, 3
trabalhando autoras como Angela Davis, Kimberlé Crenshaw e Lélia Gonzalez – esta última
reconhecida como uma precursora brasileira do pensamento decolonial (cf. CARDOSO, 2014);
debateu a Filosofia africana e a ideia de ubuntu (BORGES-ROSÁRIO, 2019; 2020); promoveu
um instigante debate sobre o tema Direito e Racismo articulando as reflexões de Lilia M.
Schwarcz, Giorgio Agamben, Pedro Serrano e Jorge Zaverucha; realizou um evento aberto
sobre a questão da democracia na América Latina, em 27 de abril de 2019, com destaque para
as experiências de organização da participação pela base – conselhos comunais – em curso na
Venezuela (com a presença do professor da UERJ/FFP, Eduardo Scheidt, pesquisador sobre o
tema – consultar, entre outros artigos, SCHEIDT, 2017); e estabeleceu um diálogo bastante
frutífero entre o pensamento decolonial e o marxismo por alguns caminhos distintos: pela crítica
às práticas e concepções clássicas e eurocêntricas (cf. GRASFOGUEL, 2012), pela formulação
de um marxismo crítico e libertário (LOWY, 1997) e pela construção de um marxismo
americano e indígena, como proposto pelo revolucionário peruano José Carlos Mariátegui (cf.
TIBLE, 2009). Apesar de reconhecer que cada um desses temas mereceria uma ampla discussão
e desenvolvimento sob o ponto de vista do debate teórico, deixaremos essas questões para outro
momento – evidentemente, a cargo dxs companheirxs que se debruçaram mais profundamente
sobre esses temas –, pela razão de fugir ao escopo deste artigo. Fica este registro dessas

2
As leituras de Paulo Freire e Franz Fanon foram analisadas e apresentadas de forma bastante sistematizada pelos
professores e membros do grupo de pesquisa Sergio Oliveira e Antonio de Castro Alves, respectivamente, em
momentos distintos de muita inspiração e trocas extremamente enriquecedoras.
3
Sobre interseccionalidade, consultar Crenshaw (2002), professora da Universidade da California – Los Angeles
e uma das primeiras intelectuais negras norte-americanas a sistematizar e publicizar amplamente esse conceito.
26

atividades e temas, de qualquer maneira, para se ter uma ideia do trabalho que vem sendo
desenvolvido pelo grupo de pesquisa, apesar de contar com menos de quatro anos de existência.
Como citado no caso específico da América Latina e da Venezuela, o grupo de
pesquisa inseriu em seu cronograma de trabalho a realização de diversos eventos abertos, com
ampla divulgação para possíveis interessadxs, tendo como referência o seu objetivo de
contribuir para a formação política, em geral, e especificamente de educadores na crítica e na
releitura de suas concepções e práticas político-pedagógicas. A partir dessas experiências
exitosas, tomamos a iniciativa de organizar dois eventos de maior porte. O primeiro deles foi o
I Seminário Educação e Transdisciplinaridade no Pensamento Decolonial, realizado durante
um sábado inteiro, em 24 de novembro de 2018, das 9h às 17h, utilizando o auditório e algumas
salas de aula do IFRJ – Campus São Gonçalo e, um ano depois, nos dias 29 e 30 de novembro
de 2019 – sexta à noite e, novamente, durante todo o sábado –, no mesmo auditório. O nosso II
Seminário, intitulado Educação, Racismo e Decolonialidade, que contou com uma parceria
institucional com a Pós-Graduação Especialização em Ensino de Histórias e Culturas Africanas
e Afro-brasileiras do IFRJ e com o Museu de Arte do Rio – MAR, localizado na região portuária
da cidade do Rio de Janeiro, que resultou na organização de uma programação conjunta durante
a sua VII Jornada de Educação e Relações Étnico-Raciais, nessa mesma semana, a partir da
terça-feira, dia 26 de novembro (ver OLIVEIRA, NICHOLS e SOUZA, 2020).4

O I Seminário Educação e Transdisciplinaridade no Pensamento Decolonial


A proposta de organização desse seminário, por parte do grupo de pesquisa, em 24 de
novembro de 2018, teve como meta atingir um público-alvo de estudantes de licenciaturas e
educadorxs das diversas redes de ensino públicas e privada da Região Metropolitana do Rio de
Janeiro. De fato, as inscrições realizadas através da Internet a partir de um formulário, alcançou
quase duas centenas de interessadxs. No dia agendado, entretanto, o evento contou com a
participação de 38 pessoas, de acordo com a sua lista de presença, compreendendo estudantes
da UFF, UFRJ, UERJ/FFP, IFRJ, UCR, CEDERJ, UNIVERSO, PUC-Rio, UMOPAR,
UNESA, e docentes da SEEDUC-RJ, da SEE de São Paulo, das Prefeituras Municipais de
Itaboraí, Niterói e Rio de Janeiro, da rede federal (IFRJ) e da rede privada da região. Portanto,
apesar da presença relativamente pequena em relação ao número de inscritos, houve uma grande
diversidade institucional entre os seus participantes.

4
Cf., na obra citada, a Programação do evento, p. 250-257, e o artigo de COSTA, que procura descrever e levantar
questões sobre o significado dessa parceria, p. 27-35.
27

A programação contou, na parte da manhã, com uma palestra de abertura, seguida de


debate, com o Prof. Dr. Luiz Fernandes de Oliveira (UFRRJ), que discorreu exatamente sobre
o tema-título do seminário. No período da tarde os presentes se subdividiram em quatro
Oficinas Pedagógicas, com os seguintes temas e responsáveis, membros do grupo de pesquisa:
“Descolonização, colonialidade, decolonialidade: introdução conceitual”, com Eliane Almeida
de Souza e Cruz; “Filosofia e produção de material didático”, com Fábio Borges-Rosário;
“Repensando decolonialmente a História do Brasil: o papel dos ferreiros escravizados”, com
Roberto Carlos Costa da Silva; e “Pedagogia decolonial versus Escola ‘sem’ Partido”, com
Ricardo Cesar Rocha da Costa.
A avaliação geral dos participantes em relação ao evento foi extremamente positiva,
como revelou o debate ocorrido na plenária final, após a realização das oficinas e uma breve
apresentação/compartilhamento das experiências por parte dxs participantes de cada sala.
Importante também destacar que participantes do seminário se integraram logo a seguir ao
grupo de pesquisa, permanecendo como seus membros efetivos até a data de redação deste
relato.

O II Seminário e a VII Jornada de Educação e Relações Étnico-Raciais do MAR

A avaliação positiva em relação ao I Seminário teve como desdobramento a


organização de mais um evento desse porte, no final de 2019, nos dias 29 e 30 de novembro,
no auditório do IFRJ – Campus São Gonçalo, com o objetivo de alcançar o mesmo público-
alvo do evento anterior e pesquisadorxs sobre as temáticas anunciadas.
Diferentemente da dinâmica adotada no seminário anterior, desta vez a palestra de
abertura ocorreu na noite de sexta-feira, dia 29, com a presença do professor de geografia da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Faculdade de Formação de Professores –
UERJ/FFP, situada em São Gonçalo, Dr. Denílson Araújo de Oliveira, que discorreu sobre o
tema-título do evento, “Educação, racismo e decolonialidade”. Já o dia 30, sábado, manhã e
tarde, transcorreu com a apresentação de seis mesas temáticas. Ressaltamos a importância dos
temas propostos para debate, representando parte das questões e preocupações teóricas que
perpassavam o grupo naquele momento. Alguns temas já haviam sido abordados anteriormente
nos encontros, sendo retomados durante o seminário para publicização geral e aprofundamento
das discussões. Todas as mediações foram realizadas por integrantes do grupo de pesquisa, de
acordo com o seguinte roteiro:
28

Mesa 1: “A invisibilidade das autoras pretas: discutindo a importância da


representatividade preta na educação”, com Taiane Corrêa de Paula
(UERJ/FFP; pesquisadora do Grupo de Pesquisa Ressonâncias Decoloniais),
com mediação de Eliane Almeida de Souza e Cruz;

Mesa 2: “Venezuela Hoje: as comunas venezuelanas e suas lutas


anticoloniais”, com Eduardo Scheidt (UERJ/FFP). Mediador: Sergio Oliveira
da Silva;

Mesa 3: “A reinvenção social dos trabalhadores adultos a partir da formação


universitária”, com Jorge Custódio (FAETEC). Mediador: George Vidipó;

Mesa 4: “Rastros de uma necropolítica no Poder Judiciário brasileiro”, com


Adriano Negris (UERJ) e “Juventudes e questões raciais no sistema
socioeducativo”, com Patrícia Elaine Pereira dos Santos (UERJ/FFP).
Mediador: Fábio Borges do Rosário;

Mesa 5: “Epistemologia e cosmologia Yorubá”, com Kynni Kayode


(Graduando em Direito na UCR e membro do grupo de pesquisa). Mediador:
Roberto Carlos Costa da Silva;

Mesa 6: “Quando a professora é negra? A negritude no espaço escolar”, com


Ludmyla Gonçalves (Coletivo Cláudia e Silva). Mediador: Luiz Rafael
Gomes.

Muito importante registrar também que no intervalo da manhã de sábado do seminário


presenciamos a realização de uma performance teatral intitulada “Suspeita!”, criada e
conduzida pelo Coletivo Madalena Anastácia, um grupo de mulheres negras organizado com
base nas concepções do Teatro do Oprimido, fundado por Augusto Boal no Rio de Janeiro, na
década de 1960, e que desde então obteve reconhecimento internacional pelo seu
comprometimento político-pedagógico. Uma das integrantes do coletivo, Jucieni Oliveira, é
membro do grupo de pesquisa e especialista formada pela Pós-Graduação do IFRJ. A
performance citada é uma denúncia visceral do racismo estrutural e foi realizada
propositadamente no pátio da escola, no mesmo momento de intervalo das turmas de ensino
médio do campus São Gonçalo, como uma forma de interação entre o evento de caráter
acadêmico e a comunidade escolar, como um convite à reflexão desses adolescentes e jovens,
assim como os demais educadores e servidores presentes àquele momento.
O II Seminário do grupo de pesquisa contou com cerca de 50 inscritos e participantes
nos seus dois dias de realização e, da mesma forma que no evento anterior, agregou novos
integrantes ao grupo.
Como citado anteriormente, a programação do II Seminário foi incorporada na
programação geral da VII Jornada de Educação e Relações Étnico-Raciais do Museu de Arte
29

do Rio - MAR, iniciada nessa mesma semana, a partir do dia 26 de novembro. Essa parceria foi
construída a partir de um contato realizado pelas educadoras do MAR com a coordenação da
Pós-Graduação em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras, naquele
momento, ocupada por um dos coordenadores do grupo de pesquisa, Ricardo Costa. A reunião
de organização, ocorrida no museu, contou com a presença do coordenador citado e de outra
docente da Pós, a professora Márcia Guerra Pereira, que também é integrante do grupo de
pesquisa. Assim, se estabeleceu essa parceria inédita entre o MAR e o IFRJ, sendo este
representado não somente pelo curso de Pós-Graduação, mas também pelo nosso grupo de
pesquisa.
Na programação geral do MAR, em função da parceria estabelecida, o curso de
Especialização do IFRJ indicou a pedagoga e professora Luana Luna Teixeira como uma das
participantes da Mesa Redonda de abertura do evento, no dia 26, sobre “Racismo Religioso,
Educação e Convívio na Diferença”, no papel também de representante das religiões de matriz
africana. Compuseram a mesa o pastor Henrique Vieira - que é também ator, poeta e professor
de história e sociologia – e o padre Mauro Luiz da Silva, diretor e curador do Museu de
Quilombos e Favelas Urbanos (MUQUIFU) e doutorando em ciências sociais pela PUC/Minas.
No dia 29/11, sexta, no período da manhã, a professora Márcia Guerra Pereira coordenou a
oficina “África em sala de aula: novos temas, novas linguagens”, com a participação de um
grupo de alunos da turma de 2019 da Pós-Graduação: Carol Gonçalves, Caroline Macedo,
Cleide Belisário, Daniel Carvalho, Hyago Thomaz e Vitória Curitiba. No mesmo dia, à tarde,
o ex-aluno da Pós e atual membro do grupo de pesquisa, Fábio Borges do Rosário, ofereceu o
minicurso “Ubuntu: uma introdução à filosofia africana”. As reflexões compartilhadas nesse
evento foram registradas posteriormente pelo e-book publicado pelo MAR, lançado por ocasião
da sua VIII Jornada, em novembro de 2020 (cf. os artigos de LUNA, 2020; BORGES-
ROSÁRIO, 2020; e GUERRA, THOMAZ e CARVALHO, 2020).
Em relação à participação dos membros do grupo de pesquisa no evento do MAR,
registramos que os pós-graduandos Hyago Thomaz e Daniel Carvalho, oficineiros no dia 29,
são estudantes inseridos no registro do grupo junto ao CNPq, e a ex-aluna da Pós do IFRJ,
Priscilla Hygino Donato, que apresentou na VII Jornada uma comunicação que teve como base
o TCC defendido ao final do curso (cf. DONATO, 2020), participou de reuniões do grupo de
pesquisa em 2018.
30

O grupo de pesquisa e seus encontros remotos durante a pandemia em 2020

No primeiro encontro do grupo de pesquisa em 2020, ocorrido no dia 07 de março,


numa sala de aula do IFRJ- campus São Gonçalo, deliberamos pela retomada do debate
histórico-conceitual sobre as definições e características da colonialidade/decolonialidade,
assumindo como referência para reflexão o artigo da cientista política da Universidade Federal
de Pelotas, Luciana Ballestrin, “América Latina e o giro decolonial” (2013). Neste trabalho, a
autora se propõe a resgatar a trajetória e as formulações do grupo de pesquisa
Modernidade/Colonialidade (MC), acrescentando o elemento que ela considera como “um
movimento epistemológico fundamental para a renovação crítica e utópica das ciências sociais
na América Latina no século XXI: a radicalização do argumento pós-colonial no continente por
meio da noção de ‘giro colonial’” (op. cit., p. 89). Entre outras questões que apresenta no seu
artigo, tais como uma breve revisão bibliográfica dos chamados “estudos pós-coloniais” – com
os quais se dá um rompimento teórico por parte do grupo Modernidade/Colonialidade –,
Ballestrin chama a nossa atenção em especial para o termo ‘giro decolonial’, cunhado
originalmente em 2005 pelo filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres, um dos
integrantes do MC5. Segundo ela, esse termo representa “o movimento de resistência teórico e
prático, político e epistemológico, à lógica da modernidade/colonialidade” (p. 105). Significa,
portanto, uma síntese em relação às questões teóricas levantadas pelo pensamento decolonial –
algumas delas apresentadas rapidamente neste texto.
Infelizmente, logo após a realização desse primeiro encontro, o país também foi
atingido pela pandemia do coronavírus, que assolou o planeta nesse início de ano,
interrompendo, ainda em março, as possibilidades de reuniões e aulas presenciais, com o
fechamento de escolas e outros espaços possíveis para encontros de reflexão e partilhas teórico-
práticas.
Após um breve período inicial de interrupção das atividades, impactados pelas notícias
do que ocorria no mundo, a avalanche de informações sobre essa nova doença e as perdas de
vidas humanas provocadas pela covid-19, a coordenação do grupo de pesquisa, em consonância
com os seus demais integrantes, encaminhou a retomada dos estudos e debates de forma remota,
inclusive como uma alternativa para se manter o contato entre os seus membros e cuidar da
nossa saúde mental, estimulando a reflexão e a solidariedade em relação ao momento difícil
vivido por todas e todos. Não foi um processo “fácil”, tendo em vista o avanço assustador da

5
O termo ‘giro colonial’ é imediatamente incorporado pelos intelectuais do grupo Modernidade/Colonialidade,
como se observa, por exemplo, na obra organizada por CASTRO-GÓMEZ e GROSFOGUEL (2007).
31

pandemia, cada vez mais provocando o adoecimento e dando fim à vida de pessoas queridas,
amigos e parentes. Em termos operacionais, não foi nada simples também, já que o país não
oferece condições adequadas de acesso à Internet para a população em geral – condição na qual
se incluem os diversos integrantes do grupo de pesquisa. Decidiu-se, de qualquer forma, pelo
encaminhamento dessa experiência de tentativa de contato e partilha, para avaliação posterior,
mesmo com todas essas limitações e problemas envolvidos.
Nesse sentido, foi organizada e executada uma programação de leituras e encontros
remotos durante o ano de 2020, com a discussão de diversos autores, obras e temas. Num
primeiro momento, já em abril, no dia 18, continuando essas reflexões no dia 02 de maio,
retomamos o diálogo da decolonialidade com a teoria marxista, debatendo o pensamento de
intelectuais fundamentais como o filósofo e militante comunista italiano Antonio Gramsci e a
filósofa indiana Gayatri Chakravorty Spivak, provocando uma reflexão sobre a noção de
subalternidade sob o ponto de vista das periferias, ou seja, da classe trabalhadora ainda mais
invisibilizada e oprimida pela lógica do capital. As referências utilizadas nesse debate foram
dois artigos que constam da coletânea organizada por Marcos Del Roio, em 2017, escritos pelos
professores Edmundo Fernandes Dias e Giovanni Semeraro, e um livro da própria Spivak,
publicado pioneiramente aqui no Brasil pela UFMG em 2010.6 Pela relevância e a compreensão
da importância da divulgação do pensamento de Gayatri Spivak, esta primeira publicação do
grupo de pesquisa traz uma excelente resenha da obra citada, redigida pelo integrante do grupo
responsável pela síntese apresentada no encontro de abril, o professor Paulo Gomes Coutinho.
O debate sobre a realidade da periferia como o necessário “lugar de fala” dos chamados
“subalternos” trouxe à tona o papel político e ideológico que as diversas denominações
religiosas cristãs têm desempenhado no país em relação à conjuntura, com a sua postura
hegemonicamente conservadora contribuindo para a desinformação e a manipulação política
por parte de lideranças mal intencionadas, além do negacionismo em relação às conquistas da
ciência e à necessidade de se buscar as informações necessárias para se evitar o alastramento
ainda mais acentuado da contaminação, como as medidas de distanciamento social e os
cuidados básicos com a higiene e, num segundo momento, a busca pela vacinação em massa,
única forma efetiva e comprovadamente eficaz no combate à pandemia. Assim, entendemos
que uma das formas de se compreender melhor essa conjuntura adversa passaria não somente
pelo debate sobre o papel assumido pela religião nas regiões periféricas, em geral, mas também
se pensar nas alternativas que desempenharam um papel histórico importante na segunda

6
Assim como temos procedido de maneira geral neste texto, para fins didáticos e de registro da memória do grupo
de pesquisa, os trabalhos citados constam das Referências, ao final deste artigo.
32

metade do século XX e que poderiam, de alguma forma, ainda servir como ferramentas de
reflexão nestes tempos mais sombrios. A iniciativa do grupo, então, no encontro agendado para
30 de maio sob o título “Religião e decolonialidade”, foi resgatar o debate sobre a Teologia da
Libertação (TL), mas procurando as interseções teóricas presentes no pensamento decolonial,
como é explicitada na Filosofia da Libertação, conforme a formulação de um membro do grupo
Modernidade/Colonialidade e um dos mais antigos intelectuais ligados à TL, Enrique Dussel
(1977; 2013), assim como outras leituras que contribuíssem para as reflexões sobre esse tema
tão importante (cf. ROSS, 2013; ANDRADE, 2018).
Finalmente, para o encontro seguinte, em 27 de junho, decidimos debater diretamente
a pandemia sob uma perspectiva de leitura decolonial, ou seja, tomando como referência de que
forma essa crise afetou e é entendida pelos povos periféricos. Para esse fim, fizemos uma
prazerosa leitura de uma das reflexões formuladas nesta conjuntura pelo filósofo indígena
Aílton Krenak, O amanhã não está à venda (2020), acompanhada por uma reflexão não menos
importante de um sociólogo português vinculado diretamente ao pensamento decolonial,
Boaventura de Sousa Santos, A cruel pedagogia do vírus (2020). Estes dois textos, tomados
como parâmetro central para os debates do grupo, foram acompanhados por outras leituras
complementares, também importantes e fundamentais, que incidiram igualmente no encontro,
abordando categorias e questões totalmente relacionadas a estes tempos, tais como
“necrocapitalismo” e sua relação com o que vem sendo chamado de “neofascismo”
(DORNELLES, 2020), a “necrofilia colonialista” em curso (MORAES, 2020), e o resgate
histórico da necessária solidariedade da classe trabalhadora como instrumento da luta política
e das resistências populares em permanente construção para os enfrentamentos colocados na
ordem do dia (VIEIRA e GHIBAUDI, 2020).
No encontro remoto seguinte, que ocorreu em 01 de agosto, retomamos as discussões
sobre outro tema abordado anteriormente, que são os estudos sobre gênero, mas desta vez
recorrendo a leituras mais específicas, debatendo o tema sob a perspectiva decolonial. Assim,
optamos pela leitura de dois trabalhos de fundo, como os textos da intelectual argentina que
havia falecido então recentemente, em 14 de julho, María Lugones, com o seu artigo
Colonialidad y Género (2008), e de uma intelectual nigeriana cuja obra tem sendo cada vez
mais reconhecida academicamente, mas ainda não traduzida no Brasil, Oyèrónké Oyèwùmí.
Seu artigo debate o conceito de gênero estabelecendo os antagonismos explícitos entre a
concepção eurocêntrica e as epistemologias africanas (2004). Como complemento, recorremos
também à professora de Direito, Camilla de Magalhães Gomes, para contribuir à compreensão
do Gênero como categoria de análise decolonial (2018).
33

Em 29 de agosto o encontro virtual do grupo de pesquisa se configurou como uma


aula/palestra ministrada pelo professor de geografia, psicanalista e integrante do grupo, Marcelo
Japiassú, acerca da vida, do pensamento e da contribuição intelectual do psicanalista Wilhelm
Reich. Tendo como referência de leitura básica a obra Escuta, Zé Ninguém!, publicada
originalmente em 1946, Japiassú apresentou algumas das ideias centrais de Reich acerca da
subjetividade e da sexualidade como forma de dominação e de conquista, ou seja, como uma
das formas de violência e de submissão que é articulada com outros níveis de poder e pela qual
também é exercida a colonialidade, segundo a sua proposta de reflexão. Presenciamos um
debate bastante rico e instigante, em especial pelo fato desse autor não ser abordado
academicamente pelas ciências sociais há bastante tempo. Ao final da reunião, como
encaminhamento, sugeriu-se que em outro momento realizássemos uma retomada da leitura e
da exposição do pensamento e da produção de Reich, citando-se especificamente o seu trabalho
A psicologia de massas do fascismo, pela atualidade oferecida pelo tema.
Setembro de 2020, com o prosseguimento da pandemia com toda a sua força genocida,
retomamos a discussão sobre racismo e gênero num debate interseccionado com a questão da
sexualidade, mas a partir do olhar e da perspectiva da masculinidade negra. Para esse fim,
indicamos aos componentes do grupo de pesquisa o acesso a dois longas-metragens nacionais,
Rainha Diaba (1974), dirigido por Antônio Carlos Fontoura e estrelado por Milton Gonçalves,
e um filme mais recente, Madame Satã (2002), dirigido por Karim Aïnouz, com Lázaro Ramos
no papel principal. Como subsídios à discussão, a cargo de um dos coordenadores do grupo,
Roberto Carlos Costa da Silva, foram indicadas também as leituras de dois breves artigos
militantes sobre a masculinidade negra (ÒKÒTÓ, Táiwò, 2019; ÒKÒTÓ, Dêge M., 2020).
Por fim, quase finalizando este “inventário” sobre as ações do grupo de pesquisa,
recuperamos a memória do último encontro realizado em 2020, no dia 31 de outubro, também
de forma remota, como era exigido pela conjuntura. O tema, apresentado pelo professor Sérgio
Oliveira, foi mais um resgate e aprofundamento de discussões passadas, como a religiosidade
popular e o misticismo que compõem a realidade social das periferias do Brasil e da América
Latina a partir do pensamento de José Carlos Mariátegui, segundo as reflexões do intelectual
marxista Michael Löwy (2005). Dessa forma, tivemos mais um encontro e tema instigantes para
encerrar essa temporada reclusa de estudos.
34

O I Seminário Integrado de Educação Popular

Originalmente, era parte da proposta de cronograma e do planejamento para 2020 a


realização de um III Seminário do grupo de pesquisa, mas optamos pelo seu adiamento, em
função da sobrecarga que as diversas atividades remotas estavam determinando para a vida dos
componentes do grupo de pesquisa, com uma totalidade de professorxs e estudantes com cargas
horárias intensas diante dos seus computadores, aliado ao cenário de incertezas em relação à
pandemia, reforçadas pela condução desastrada e genocida do (des)governo de extrema-direita
que assumiu a gestão do país após as eleições de 2018. Além da preocupação constante com a
possibilidade de contaminação pelo vírus transmissor da covid-19, esse cenário
inquestionavelmente afetava a saúde mental de todxs.
Apesar dessas considerações, o grupo de pesquisa, atendendo a um convite do já citado
GPMC – Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturas, vinculado
à UFRRJ, assumiu a coorganização do I Seminário Integrado de Educação Popular, juntamente
com diversas instituições, movimentos, coletivos e grupos de pesquisa. Além do GPMC, faziam
parte da iniciativa o Grupo Tortura Nunca Mais, a Associação de Docentes da UFF – ADUFF,
o Grupo de Estudos sobre Cultura e Educação Popular, o Instituto Búzios, a Iniciativa de Direito
à Memória e Justiça Racial, o SEPE da região Angra dos Reis/Paraty, o Coletivo Casulo, dentre
outros.
O I Seminário Integrado de Educação Popular apresentou como tema “Educação e
formação em tempos de aridez: em que mundo e que seres humanos deveremos formar?". O
projeto original do seminário, em uma de suas versões para discussão, apresentava como
objetivo a produção de “uma reflexão complexa sobre a formação humana nestes tempos em
que a catástrofe se apresenta como regra geral, de modo que essa formação seja pensada
observando o mundo a nossa volta, mas de forma alguma se encerrando nele”.
A proposta metodológica previa a realização de discussões temáticas quinzenais em
Grupos de Trabalho – GT coordenados pelas instituições e coletivos responsáveis pela
realização do Seminário, sempre de forma remota. O encontro geral de abertura ocorreu em 25
de julho, sendo seguido pela apresentação de oito grupos de trabalho, com as seguintes
temáticas: 1. Movimentos sociais, agroecologia, luta pela terra e soberania alimentar; 2. Saúde
e educação popular; 3. Movimentos sociais, políticas educacionais e educação popular; 4.
Movimentos sociais, direitos humanos e necropolítica; 5. Juventudes, direitos humanos e
movimentos sociais; 6. Movimentos sociais e movimento negro brasileiro; 7. Movimentos
sociais e pedagogia decolonial; 8. Movimentos sociais e redes de solidariedade nas periferias.
35

Nosso grupo de pesquisa, juntamente com o GPMC, coordenou o GT 7, que ocorreu


nos dias 23 e 24 de outubro – sexta à noite e manhã e tarde de sábado - através das plataformas
Stream Yard (dias 23, noite, e 24, manhã) e Google Meet (a plenária final, dia 24, à tarde). Os
eixos de discussão foram os seguintes: Colonialidade e pedagogia decolonial; Papel pedagógico
dos movimentos sociais; Movimentos sociais e a escola; Opção decolonial, limites acadêmicos
e potência militante e Diálogos pedagógicos entre opção decolonial e marxismo.
Como resultado desse movimento, o Grupo de Trabalho contou com a apresentação
de 16 trabalhos relacionados aos eixos acima, apresentados não somente por pesquisadores
vinculados aos dois grupos de pesquisa organizadores, como também de cidades como Feira de
Santana, na Bahia, e Recife, Pernambuco. Se inscreveu para acompanhar as discussões um total
de 89 pessoas, despertando o interesse de professorxs, estudantes e militantes de movimentos
sociais de diversas regiões do país.
Pelas razões expostas e diante das circunstâncias conjunturais em que nos
encontrávamos nesse período, em outubro de 2020, podemos avaliar que o Seminário cumpriu
minimamente com a sua proposta original, com o nosso grupo de pesquisa contribuindo da
melhor forma possível para alcançar os objetivos pretendidos pelo evento.

A questão dos nomes do grupo e o seu registro oficial junto ao CNPq

Como citamos no início deste texto, o grupo de estudos e pesquisas que veio a se
formar e se consolidar a partir de 2017 se intitulava inicialmente como Grupo de Pesquisa
Culturas, Marxismo e Decolonialidade – GPCMD. Com o passar do tempo, entretanto, o grupo
foi renomeado algumas vezes, com pequenas diferenças. A título de exemplo, por ocasião da
primeira publicização de maior porte do grupo, quando da organização o I Seminário Educação
e Transdisciplinaridade no Pensamento Decolonial, no final de 2018, os folhetos e cartazes de
divulgação já traziam uma pequena alteração: Grupo de Estudos e Pesquisas Culturas,
Marxismo e Decolonialidade. Já no II Seminário e na parceria com o Museu de Arte do Rio, no
final de 2019, o nome foi alterado novamente para Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Culturas
e Decolonialidade, inclusive com a elaboração de uma logo que reproduzia esse título. Por fim,
na chamada pública para a inscrição de trabalhos para o GT 7 do I Seminário Integrado de
Educação Popular, no segundo semestre de 2020, o grupo foi renomeado mais uma vez: Grupo
de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade.
De fato, essa inconstância em relação ao nome, que se repetia nas logomarcas do
grupo, indicava um determinado problema de identidade, de afirmação do nome do grupo de
36

pesquisa, a ponto de seus próprios componentes, ao se inscreverem em eventos acadêmicos, se


confundirem e registrarem a sua filiação ao grupo de formas distintas.
Tal problema não foi resolvido até os dias de hoje. Durante o ano de 2020, porém,
obtivemos o registro do grupo junto à Reitoria do IFRJ e ao CNPq, órgão vinculado ao Governo
Federal responsável pela análise e certificação oficial dos grupos de pesquisa. Como somos
ligados institucionalmente ao IFRJ, em função da nossa origem no curso de Pós-Graduação em
Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras, o encaminhamento das informações
para certificação teve que passar necessariamente pela Pro-Reitoria de Pós-Graduação,
Pesquisa e Inovação – PROPPI. Nesse processo, entretanto, fomos informados pela PROPPI de
que o CNPq não aceita a formalização de grupos com mais de 10 pesquisadores. Em maio de
2020, quando encaminhamos essa solicitação, tínhamos exatamente 20 pesquisadores atuantes,
além de alguns estudantes. Com isso, “a saída”, debatida e encaminhada na época, nos
encontros mensais do grupo, foi o encaminhamento do processo de formalização de dois
grupos, com dois nomes oficiais e dois coordenadores (“líderes”, segundo a terminologia do
CNPq) distintos, a saber:
GRUPO DE PESQUISA CULTURAS E DECOLONIALIDADE. Líder: Ricardo
Cesar Rocha da Costa. Participação de 10 pesquisadores (limite) e 01 estudante.
GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE EDUCAÇÃO E
DECOLONIALIDADE – GEPED. Líder: Fernando Ribeiro Gonçalves Brame. Participação de
10 pesquisadores (limite) e 05 estudantes.
Esses dois grupos foram formalizados apresentando justificativas e linhas de pesquisa
diferentes. Na prática, a proposta do grupo de pesquisa continuou a mesma desde o seu início,
assim como seus objetos de estudo e seus participantes. Somos um único grupo, de fato, atuando
sem qualquer tipo de subdivisão. A formalização junto ao CNPq teve como objetivo central a
possibilidade de certificação e respaldo acadêmico no currículo Lattes para os seus membros –
na maior parte, especialistas formados na Pós-Graduação do IFRJ a qual o grupo tem origem,
e docentes das redes pública e privada da região – participarem de processos de seleção para
mestrado e doutorado e concursos para docência nas diversas redes de ensino, assim como em
universidades. Na possibilidade da publicação de editais, por parte da Reitoria do IFRJ, de
fomento a grupos de pesquisa, para aquisição de acervo bibliográfico, editoração de obras
acadêmicas ou custeio de eventos científicos, a nossa participação se dará, se assim o
definirmos, através de um único grupo certificado, com o outro, no máximo, atuando como
parceiro para a realização da mesma proposta.
37

Como uma forma de unificar esses dois nomes oficiais no cotidiano do grupo, sugere-
se a adoção de um nome genérico que contemple os interesses centrais em discussão: GRUPO
DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCAÇÃO, CULTURAS E DECOLONIALIDADE. Só o
tempo poderá dizer se este nome, finalmente, se afirmará para nomear o grupo de pesquisa
daqui por diante.
No mesmo sentido do que foi ressaltado acima, o grupo de pesquisa conta, hoje, com
uma coordenação constituída por cinco de seus membros, que assinam a organização desta
coletânea, conforme deliberação da totalidade dos membros do grupo, em meados de 2019. Sob
o ponto de vista “oficial”, essa deliberação democrática não poderia ter ocorrido, pois o
chamado “líder” do grupo precisa necessariamente reunir entre seus pré-requisitos o título de
doutor e o vínculo formal com o IFRJ. Portanto, à margem das exigências institucionais,
entendemos que o mais importante e relevante é o processo de debate, de construção
participativa e de formação política e pedagógica que este coletivo se propõe a fazer,
independentemente das normas oficiais.
Nesta data, na revisão final deste texto, em março de 2021, contabilizamos 25
pesquisadores e pesquisadoras participantes durante todo o ano de 2020, sendo que alguns
destes não constam da certificação oficial porque não haviam confirmado o seu
comprometimento em continuar atuando no grupo por ocasião do encaminhamento do registro.
Outros se aproximaram do grupo após o processo de certificação junto ao CNPq. Além desses
25 integrantes, o grupo conta também com a participação de 05 estudantes da turma de 2019 da
Pós-Graduação oferecida pelo IFRJ no campus São Gonçalo. Nos Anexos a esta obra constam
todas as informações quanto ao registro do grupo de pesquisa junto ao CNPq, com as
justificativas apresentadas, os nomes completos e a formação acadêmica dos componentes e as
suas respectivas linhas de pesquisa.

Considerações finais
Como foi possível observar neste artigo, nosso objetivo central, que entendemos ter
sido cumprido, era o de fazer uma apresentação geral do processo de desenvolvimento do grupo
de pesquisa, destacando as temáticas debatidas e as iniciativas desenvolvidas ao longo desses
quase quatro anos de existência. Entendemos que as referências presentes neste texto cumprem
também com o papel de registrar parcialmente a memória dos debates realizados, não somente
para situar os eventuais futuros interessados nas discussões teóricas citadas, como para atualizar
minimamente aqueles/as pesquisadores/as que se integraram ao grupo de pesquisa no decorrer
desse período. Esperamos que o Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e
38

Decolonialidade prossiga com firmeza em sua jornada, contribuindo para a formação política
e pedagógica de professorxs, estudantes e da comunidade em geral, no sentido de darmos nossa
pequena parcela de contribuição para que tenhamos, um dia, uma sociedade organizada a partir
dos subalternizados pela modernidade capitalista, que resgate e afirme politicamente as
epistemologias dos povos e culturas historicamente invisibilizados pela colonialidade europeia.

Março, 2021
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O QUE SÃO COLONIALIDADE E OPÇÃO DECOLONIAL? 1


Luiz Fernandes de Oliveira
UFRRJ
axeluiz@gmail.com

Em 2006, entrei em contato pela primeira vez com as formulações de um grupo de


pesquisadores denominados “Modernidade/Colonialidade” (MC). E a primeira afirmação que me
chamou atenção foi a de Catherine Walsh (2005), citando um pensador árabe-islâmico Abdelkebir
Khatibi: “Descolonizar-se, esta é a possibilidade do pensamento” (p. 22).
À época não era claro para mim o significado profundo desta ideia da autora e dos autores
que veremos mais adiante. Porém, no contexto de reflexão sobre a luta antirracista em educação, fui
percebendo que as questões levantadas por estes autores do grupo MC faziam referência às
possibilidades de um pensamento crítico a partir dos subalternizados pela modernidade capitalista e,
na esteira dessa perspectiva, a tentativa de construção de um projeto teórico voltado para o
repensamento crítico e transdisciplinar, caracterizando-se também como força política para se
contrapor às tendências acadêmicas dominantes de perspectiva eurocêntrica de construção do
conhecimento histórico e social.
Mergulhando nesta literatura, fui percebendo algumas afinidades com a questão da luta
antirracista em educação, que questiona os padrões eurocêntricos de interpretação da realidade
brasileira, pois uma das principais proposições epistemológicas do grupo MC é o questionamento da
geopolítica do conhecimento, entendida como a estratégia modular da modernidade. Esta estratégia,
de um lado, afirmou suas teorias, seus conhecimentos e seus paradigmas como verdades universais e,
de outro, invisibilizou e silenciou os sujeitos que produzem “outros” conhecimentos e Histórias. Para
a perspectiva teórica decolonial foi este o processo que constituiu a modernidade, cujas raízes se
encontram na colonialidade. Implícita nesta ideia está o fato de que a colonialidade é constitutiva da
modernidade, e esta não pode ser entendida sem levar em conta os nexos com a herança colonial e as
diferenças étnicas que o poder moderno/colonial produziu.
Em julho de 2002, Arturo Escobar, apresentou em grandes linhas as teorizações deste grupo,
num trabalho apresentado no III Congresso Internacional de Latinoamericanistas em Amsterdam,
intitulado “Mundos e conhecimentos de outro modo”. O trabalho analisava e relatava a perspectiva

1
Texto extraído de parte da minha tese de doutorado, defendida no ano de 2010. Após mais de uma década, alguns
conceitos que este texto trabalha ganharam força no debate acadêmico e educacional e, ainda hoje, o considero
adequado para a compreensão de processos de luta antirracistas em educação (publicado também em OLIVEIRA,
2012, p. 39-69).
46

de um grupo que busca um projeto epistemológico novo. Trata-se de uma construção alternativa à
modernidade eurocêntrica, tanto no seu projeto de civilização, como em suas propostas epistêmicas.
O postulado principal do grupo é que “a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não
derivada” (MIGNOLO, 2005, p. 75). Ou seja, modernidade e colonialidade são as duas faces da
mesma moeda. Graças à colonialidade, a Europa pode produzir as ciências humanas com um modelo
único, universal e objetivo na produção de conhecimentos, além de deserdar todas as epistemologias
da periferia do ocidente. As principais categorias de análise do grupo se constituem nos conceitos e
noções sobre o mito de fundação da modernidade, a colonialidade (derivando daí a colonialidade do
poder, do saber e do ser), o racismo epistêmico, a geopolítica do conhecimento, a diferença colonial,
o pensamento liminar, a transmodernidade e a interculturalidade crítica.
Escobar, alerta que o programa de investigação MC deve ser entendido como uma maneira
diferente de pensamento em relação às grandes narrativas produzidas pela modernidade europeia
como a cristandade, o liberalismo e o marxismo. Castro-Gómez (2005), por outro lado, esclarece que
as questões que o grupo levanta se inserem num contexto discursivo mais amplo, conhecido na
academia europeia e norteamericana como a teoria pós-colonial. Entretanto, reitera que essas questões
não são simples recepções das teorias pós-coloniais (SAID, 2001; BHABBA, 1999; GILROY, 2001
entre outros), como se fossem sucursais latinoamericanas. São, ao contrário, uma especificidade
latinoamericana que estabelece um diálogo com a teoria pós-colonial e se situa em outra perspectiva,
porém fora do eixo moderno/colonial.

Modernidade e Colonialidade

Para compreender essa perspectiva teórica, necessitamos iniciar com a crítica contundente
de Enrique Dussel ao mito de fundação da modernidade.
Dussel, em seu artigo “Europa, modernidade e eurocentrismo”, de 2005, propõe uma
mudança de interpretação sobre o significado do conceito de “Europa”. No entanto, deixa claro o
quanto esta questão é difícil de discutir, pois se trata de um estudo que pode reverter concepções
profundamente enraizadas na construção do conhecimento europeu.
Para o filósofo argentino, “a Europa moderna (em direção ao Norte e ao Oeste da Grécia)
não é a Grécia originária, está fora de seu horizonte”. Com isso, ele deixa muito claro que a diacronia
47

unilinear Grécia-Roma-Europa (Esquema 1) “é um invento ideológico de fins do século XVIII


romântico alemão; é uma manipulação conceitual posterior do ‘modelo ariano’, racista”.
Esquema 1

(Fonte: DUSSEL, 2005, p. 59)

Segundo o autor, é difícil perceber que se trata de uma invenção ideológica “que rapta a
cultura grega como exclusividade europeia e ocidental” (DUSSEL, 2005, p. 59) e cuja intenção é
fazer entender que, desde as eras grega e romana, essas foram o centro da História mundial. Ao
contrário das visões predominantes que associam uma evolução do pensamento de Platão, passando
por Santo Agostinho a Descartes, ou seja, a sequência greco-romana, cristã, moderna como sendo
unilinear, Dussel mostra que a sequência histórica do mundo Grego à Europa moderna, passa por
outra perspectiva:
Esquema 2

(Fonte: DUSSEL, 2005, p. 57)

Como está exposto, “a influência grega não é direta na Europa latino-ocidental (passa pelas
setas a e b). A sequência c da Europa moderna não entronca com a Grécia, nem tampouco diretamente
48

com o grupo bizantino, mas sim com todo o mundo latino-romano ocidental cristianizado” (DUSSEL,
2005, p. 57).
O mito de fundação da modernidade para Dussel se encontra na assertiva de que o conceito
de Europa é eurocêntrico, provinciano e regional, através de uma ideia de autoemancipação, uma
saída da imaturidade por um esforço autóctone da razão que proporciona à humanidade um pretenso
novo desenvolvimento humano. É neste sentido que para Dussel se explica as descrições de Hegel
sobre a “História universal”.
No esquema 2 ilustrado por Dussel, percebe-se que empiricamente nunca houve uma
História mundial até 1492, pois para o autor:

Antes dessa data, os impérios ou sistemas culturais coexistiam entre si. Apenas com
a expansão portuguesa desde o século XV, que atinge o extremo oriente no século
XVI, e com o descobrimento da América hispânica, todo o planeta se torna o “lugar”
de “uma só” História Mundial.
A Espanha, como primeira nação “moderna” (com um Estado que unifica a
península, com a Inquisição que cria de cima para baixo o consenso nacional, com
um poder militar nacional ao conquistar Granada, com a edição da Gramática
castelhana de Nebrija em 1492, com a Igreja dominada pelo Estado graças ao
Cardeal Cisneros etc.) abre a primeira etapa “Moderna”: o mercantilismo mundial.
As minas de prata de Potosi e Zacatecas (descobertas em 1545-1546) permitem o
acúmulo de riqueza monetária suficiente para vencer os turcos em Lepanto, vinte e
cinco anos depois de tal descoberta (1571). O Atlântico suplanta o Mediterrâneo.
Para nós, a “centralidade” da Europa Latina na História Mundial é o determinante
fundamental da Modernidade. Os demais determinantes vão correndo em torno dele
(a subjetividade constituinte, a propriedade privada, a liberdade contratual etc.) são
o resultado de um século e meio de “Modernidade”: são efeito, e não ponto de
partida. A Holanda (que se emancipa da Espanha em 1610), a Inglaterra e a França
continuarão pelo caminho já aberto (DUSSEL, 2005, p. 61).

Dussel nos apresenta uma segunda etapa da “modernidade”, ou seja, da revolução industrial
e do iluminismo, que aprofunda e amplia o horizonte no qual o início se encontra o século XV.

A Inglaterra substitui a Espanha como potência hegemônica até 1945, e tem o comando da
Europa Moderna e da História Mundial (em especial desde o surgimento do Imperialismo,
por volta de 1870). Esta Europa Moderna, desde 1492, “centro” da História Mundial,
constitui, pela primeira vez na História, a todas as outras culturas como sua “periferia”
(Ibid, p. 61).

A partir desse entendimento, podemos perceber que embora toda cultura apresente um
comportamento etnocêntrico, o caso específico do etnocentrismo europeu parece ser o único que pôde
pretender uma identificação com a “universalidade-mundialidade”. Pois, segundo Dussel, ocorreu
historicamente uma unificação entre uma ideia de universalidade abstrata com uma universalidade
concreta hegemonizada pela Europa como o centro. É quando Dussel formula a ideia de que o “ego
49

cogito”, a consciência de si, foi antecedida em mais de um século pelo “ego conquiro” (eu conquisto),
prática luso-hispânica que impõe sua vontade sobre as Américas:

A conquista do México foi o primeiro âmbito do ego moderno. A Europa (Espanha) tinha
evidente superioridade sobre as culturas Azteca, Maia, Inca etc, em especial por suas armas
de ferro — presentes em todo o horizonte euro-afro-asiático. A Europa moderna, desde
1492, usará a conquista da América Latina (já que a América do Norte só entra no jogo no
século XVII) como trampolim para tirar uma “vantagem comparativa” determinante com
relação a suas antigas culturas antagônicas (turco-muçulmana etc.). Sua superioridade será,
em grande medida, fruto da acumulação de riqueza, conhecimentos, experiência etc., que
acumulará desde a conquista da América Latina (Ibid, p. 63).

Nesta lógica de raciocínio, a modernidade pode realmente nascer quando se deram as


condições históricas de sua origem efetiva: 1492, uma empírica mundialização, uma organização
colonial e “o usufruto da vida de suas vítimas, num nível pragmático e econômico” (Ibid, p. 63).
Mignolo (2005) explicita melhor este mito, desconstruído por Dussel, quando recorda que:

[...] a emergência do circuito comercial do Atlântico teve a particularidade (e este aspecto


é importante para a ideia de “hemisfério ocidental”) de conectar os circuitos comerciais já
existentes na Ásia, na África e na Europa (rede comercial na qual a Europa era o lugar mais
marginal do centro de atração, que era a China, e que ia desde a Europa até as
“ÍndiasOrientais”) (Abu-Lughod, 1989;Wolff, 1982), com Anáhuac e Tauantinsuiu, os
dois grandes circuitos até então sem conexão com os anteriores; separados tanto pelo
Pacífico como pelo Atlântico (2005, p. 75).

Isto pode ser ilustrado nas figuras que seguem:

Alguns dos circuitos comerciais existentes entre 1330 e A emergência do circuito comercial do Atlântico interligou
1550, segundo Abu-Lughod (1989). Até esta data, existiam os circuitos assinalados na ilustração anterior com pelo
também outros no Norte da África, que ligavam o Cairo a menos dois não interligados até então: o circuito
Fez e a Tombuctu (África ocidental). (Fonte: MIGNOLO, comercial que tinha seu centro em Tenochtitlán e se
2005, p. 76). estendia pelo Anáhuac; e o que tinha seu centro em
Cusco e se estendia pelo Tawantinsuiu. (Fonte:
MIGNOLO, 2005, p. 77).
50

A partir desta constatação, Mignolo defende a tese de que a emergência da ideia de um


“hemisfério ocidental” deu lugar a uma mudança radical no imaginário e nas estruturas de poder do
mundo moderno/colonial.2 Nesta perspectiva, a cristandade na Europa, até o final do século XV, era
marginal, identificando-se com Jafé e o ocidente, distinguindo-se da Ásia e da África.
A partir do século XVI, com o triplo fato da derrota dos mouros, da expulsão dos judeus e
da expansão atlântica, mouros, judeus e ameríndios (e com o tempo também os africanos
escravizados), todos eles passaram a configurar, no imaginário ocidental cristão, a diferença
(exterioridade) no interior do imaginário.
Quando o grupo MC postula que “a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não
derivada”, ele formula a ideia de que a modernidade na Europa e a colonialidade no resto do mundo,
constituíram a imagem hegemônica sustentada na colonialidade do poder, o que torna difícil pensar
que pode haver modernidade sem colonialidade.
Assim, a modernidade, como um novo paradigma da História, surge no século XV com a
conquista do Atlântico, e o século XVII e XVIII, com o iluminismo e a revolução industrial,
representam um desenvolvimento posterior no horizonte aberto pelas navegações luso-hispânicas.
Neste sentido, o mito da modernidade é justificado, em seus aspectos históricos, sociais e
epistemológicos, como uma civilização que se autodescreve como mais desenvolvida e superior, e
esta obriga a desenvolver os mais “primitivos”, ‘bárbaros”, como exigência moral. No mais, o
caminho de tal processo deve ser aquele seguido pela Europa, mas se o bárbaro se opuser ao processo
civilizador, a práxis moderna deve exercer a guerra justa colonial. O caminho, portanto, é a violência
“inevitável” de um “herói” civilizador que salva o indígena colonizado e o africano escravizado, além
de outras violências no campo epistemológico. Dussel (1995) explica que esta é a razão da diferença
entre sua posição e o pós-modernismo, pois, enquanto esses criticam a razão moderna como uma
razão do terror, Dussel crítica a razão moderna por causa do mito irracional que ela esconde. 3
A crítica ao mito de fundação da modernidade feita por Dussel coaduna-se com a tese de
Quijano (1997) sobre a colonialidade do poder, que implica na classificação e reclassificação da

2 Mignolo faz referência ao conceito de imaginário como construção simbólica mediante a qual uma comunidade
(racial, nacional, imperial, sexual etc.) se define a si mesma. Esse imaginário forma uma estrutura de diferenciação
com o simbólico e o real. Mignolo destaca, neste exemplo, o sentido geopolítico e o emprego na fundação e
formação do imaginário de um sistema-mundo moderno colonial.
3 Nas palavras de Dussel: “Se a Modernidade tem um núcleo racional ad intra forte, como “saída” da humanidade
de um estado de imaturidade regional, provinciana, não planetária, essa mesma Modernidade, por outro lado, ad
extra, realiza um processo irracional que se oculta a seus próprios olhos. Ou seja, por seu conteúdo secundário e
negativo mítico, a “Modernidade” é justificativa de uma práxis irracional de violência” (DUSSEL, 2005, p. 62).
51

população do planeta4, em uma estrutura funcional para articular e administrar essas classificações,
na definição de espaços para esses objetivos e em uma perspectiva epistemológica para conformar
um significado de uma matriz de poder na qual canalizar uma nova produção de conhecimento.
Segundo Quijano (2007) colonialismo e colonialidade são dois conceitos relacionados,
porém distintos. O colonialismo se refere a um padrão de dominação e exploração onde:

O controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma


população determinada possui uma diferente identidade e as suas sedes centrais estão, além
disso, em outra jurisdição territorial. Porém nem sempre, nem necessariamente, implica
relações racistas de poder. O colonialismo é, obviamente, mais antigo, no entanto a
colonialidade provou ser, nos últimos 500 anos, mais profunda e duradoura que o
colonialismo. Porém, sem dúvida, foi forjada dentro deste, e mais ainda, sem ele não teria
podido ser imposta à inter-subjetividade de modo tão enraizado e prolongado (2007, p. 93).

Quijano nos esclarece que ocorreram dois processos históricos que emergem no século XVI:
o primeiro consistiu em codificar, na ideia de raça a diferença entre conquistadores e conquistados e
o segundo, numa nova estrutura de controle do trabalho, dos recursos e dos produtos. Estas estruturas,
afirma Quijano, traduziam todas as outras já conhecidas, em torno e em função do capital e do
mercado mundial. Assim, o novo padrão envolvia a articulação entre raça e capitalismo na criação e
expansão crescente da rota comercial atlântica.
Nelson Maldonado-Torres (2009), interpreta esta formulação de Quijano como um modelo
de poder específico moderno que interliga a formação racial, o controle do trabalho, o Estado e a
produção de conhecimento. Porém, num outro texto (2007), de forma mais esclarecedora, diferencia
colonialismo e colonialidade da seguinte forma:

Colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberanía de um povo


reside no poder de outro povo ou nação e que constitui tal nação num império. Diferente
desta ideia, a colonialidade se refere a um padão de poder que emergiu como resultado do
colonialismo moderno, porém, ao invés de estar limitado a uma relação formal de poder
entre os povos ou nações, refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade
e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e
da ideia de raça. Assim, ainda que o colonialismo tenha precedido à colonialidade, esta
sobrevive após o fim do colonialismo. A colonialidade se mantém viva nos manuais de
aprendizagem, nos critérios para os trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na
autoimagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos, e em tantos outros aspectos de nossa

4 É conveniente destacar que cultura, na acepção de Mignolo (2003), é precisamente uma palavra chave dos
discursos coloniais que classificam o planeta, especialmente na expansão colonial do século XIX e XX, de acordo
com a etnicidade e um sistema de signos. “Do século XVIII até aproximadamente 1950, a palavra cultura tornou-
se algo entre natureza e civilização” (MIGNOLO, 2003, p. 38).
52

experiência moderna. Enfim, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente


(MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131).

Assim, o colonialismo é mais do que uma imposição política, militar, jurídica e


administrativa. Este, na forma da colonialidade, chega às raízes mais profundas e sobrevive ainda
hoje, apesar da descolonização ou emancipação das colônias latinoamericanas, asiáticas e africanas
nos séculos XIX e XX. O que estes autores nos mostram é que apesar do fim dos colonialismos
modernos, a colonialidade sobrevive.
É preciso lembrar que, com a emancipação jurídico-política de países da África ou da Ásia,
processo que culmina nos anos setenta, iniciaram-se elaborações teóricas sobre uma época pós-
colonial (BHABHA, 1999; SAID, 2001, HALL, 2003, entre outros), indicando que o colonialismo
teria terminado. Apesar do colonialismo tradicional ter chegado ao seu fim, para os autores
latinoamericanos acima mencionados, as estruturas subjetivas, os imaginários e a colonização
epistemológica ainda estão presentes.
É nesta perspectiva que Quijano (2007) propõe o conceito de “colonialidade do poder”. Este
seria uma estrutura de dominação que submeteu a América Latina, a África e a Ásia. O termo faz
alusão à invasão do imaginário do outro, ou seja, a sua ocidentalização. Mais especificamente, um
discurso que se insere no mundo do colonizado, porém também se reproduz no locus do colonizador.
Neste sentido, o colonizador destrói o imaginário do outro, invisibilizando-o e
subalternizando-o, enquanto reafirma o próprio imaginário. Assim, a colonialidade do poder reprime
os modos de produção de conhecimento, os saberes, o mundo simbólico, as imagens do colonizado,
e impõe novos. Opera-se então, a naturalização do imaginário do invasor europeu, a subalternização
epistêmica do outro não europeu e a própria negação e esquecimento de processos históricos não
europeus. Essa operação pode se realizar sob várias formas, como a sedução pela cultura colonialista
e o fetichismo cultural que o europeu cria em torno de sua cultura, realizando uma verdadeira
aspiração pela cultura europeia por parte dos sujeitos subalternizados. Portanto, o eurocentrismo não
é a perspectiva cognitiva somente dos europeus, mas também do conjunto daqueles educados sob sua
hegemonia.
A colonialidade do poder construiu a subjetividade do subalternizado, exigindo que se pense
historicamente a noção de raça: “a colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do
53

padrão mundial do poder capitalista. Funda-se na imposição de uma classificação racial/étnica da


população mundial como pedra angular deste padrão de poder [...]” (QUIJANO, 2007, p. 93).
Quijano explicita que o conceito de raça é uma abstração, uma invenção que nada tem a ver
com processos biológicos. É no século XVI que se cria a união entre cor e raça e este conceito joga
um papel fundamental no desenvolvimento do capitalismo moderno a partir do século XIX.
Mignolo (2003) argumenta, por sua vez, que essa formulação difere dos debates promovidos
por Said (2001) e os pós-coloniais, pois estes situavam a questão do colonialismo num domínio
geopolítico restrito, desconsiderando o momento crucial e constitutivo da modernidade/colonialidade.
Como vimos anteriormente, a conquista da América significou não somente a criação de
uma nova “economia-mundo”, mas, também, a formação do primeiro grande discurso do mundo
moderno. Em uma perspectiva diferente da de Said com a questão do orientalismo, o qual afirmava
que o discurso sobre o outro teria sido gerado pela França e pelo Império Britânico, Mignolo
argumenta diversamente, ao dizer que este orientalismo correspondeu à segunda modernidade. O
primeiro discurso sobre o outro, nos marcos imperiais, segundo Mignolo, surge na primeira
modernidade no longo século XVI, com o “discurso da limpeza do sangue”. Este discurso e a conexão
do Mediterrâneo com o Atlântico, lança as fundações tanto da modernidade como da colonialidade
do poder.
O princípio da “pureza de sangue” foi formalizado na Espanha, no começo do século XVI,
e estabeleceu um corte final entre cristãos, judeus e mouros. No caso dos mouros, foi realizado um
corte fronteiriço externo e, no caso dos judeus, um corte interno no sistema emergente no
Mediterrâneo. Mignolo (2003) sublinha este aspecto por considerar que a “pureza de sangue” resulta
do começo de um novo circuito comercial associado a uma rearticulação do imaginário racial e
patriarcal, que se expressa nestas duas ideias: pureza de sangue e direito dos povos:

[...] na Península Ibérica do século XVI, o Atlântico se organizava de acordo com um


princípio diferente e oposto: os “direitos dos povos”, que emergiram dos debates iniciais
de Valladolid entre Gines de Sepúlveda e Bartolomé de Las Casas sobre a humanidade dos
ameríndios e foi seguido de longos debates na escola de Salamanca sobre cosmopolitismo
e relações internacionais (2003, p. 55).

A ideia de “pureza de sangue” tinha um caráter punitivo, entretanto, a afirmação dos


“direitos dos povos”, segundo Mignolo, foi a primeira tentativa legal (de natureza teológica) de redigir
um cânone de direito internacional. Este último, como se observa na História europeia, foi
reformulado como um discurso secular em torno da ideia dos direitos dos homens e do cidadão no
século XVIII. Aqui podemos perceber uma diferença importante. Enquanto a ideia de “pureza de
sangue”, busca a articulação de uma nova fronteira, o direito dos povos, é uma perspectiva que busca
54

a “universalidade” do ser humano “[...] tal como era vista numa Europa já consolidada e possibilitada
pelas riquezas que fluíam do mundo colonial [...]” (Ibid., p. 56).
Se o período colonial, nestas formulações, não é concebido como anterior à modernidade,
mas como sua face oculta, há também outro aspecto a ser considerado que diz respeito à colonialidade
do poder, ou seja, à perspectiva epistemológica. Pois, neste contexto, a população dominada nas novas
identidades que lhe haviam sido atribuídas foram também submetidas à hegemonia eurocêntrica
como maneira de conhecer.
O imaginário dominante do sistema mundial moderno funcionou como máquina para
subalternizar outros conhecimentos, estabelecendo um padrão epistemológico planetário. Esta
assertiva, é melhor compreendida através do seguinte argumento:

A resposta de Kant para a questão formulada no título de seu ensaio ‘O que é


Iluminismo?’ já tem mais de 200 anos: ‘O Iluminismo é o êxodo da humanidade,
através de seus próprios esforços, do estado de imaturidade culpada... A preguiça
e a covardia são as razões pelas quais a maior parte da humanidade permanece
prazerosamente num estado de imaturidade... hoje lhe perguntaríamos: deveríamos
considerar que todos estes sujeitos – um africano na África ou um escravo nos
Estados Unidos no século XVIII; um índio no México ou um mestiço latino-
americano – permanecem num estado de imaturidade culpada? (DUSSEL, 1995,
p. 68, apud MIGNOLO, 2003, p. 92).

Para Quijano, ao mesmo tempo em que se afirmava uma dominação colonial, forjava-se
uma complexa concepção cultural denominada racionalidade e estabelecia-se um paradigma
universal de conhecimento, onde existe uma humanidade racional (a Europa) e o resto do mundo.
Esta formulação nos leva aos conceitos de colonialidade do saber e à geopolítica do conhecimento.
Entretanto, vamos apresentar as argumentações de Santiago Castro-Gómez (2005) para elucidar um
pouco mais a questão epistemológica atribuída à Europa e ao resto do mundo.
Para Castro-Gómez, a colonialidade do poder faz referência a um tipo hegemônico de
produção do conhecimento que ele denominou de “la hybris del punto cero” referindo-se a uma forma
de conhecimento humano que possui pretensões de objetividade e cientificidade partindo do
pressuposto de que o observador não forma parte do observado. O termo hybris refere-se aos gregos
que relatavam como pecado da hybris, ou seja, quando os homens queriam elevar-se ao status de
deuses. O ponto zero equivale ao poder de um Deus que pode ver sem ser visto, ou seja, que pode
55

observar o mundo sem prestar conta de nada, nem a si mesmo, configurando uma legitimidade a
observação e instituindo uma visão de mundo reconhecida como válida e universal. Para esse autor,

[...] o ponto zero é o princípio epistemológico absoluto, mas também o controle social e
econômico do mundo. Segue a necessidade que teve o Estado espanhol (e logo depois as
demais potências hegemônicas do sistema mundo) para eliminar qualquer sistema de
crença que não favoreceu a visão capitalista do homus economicus. Já não poderiam
coexistir diferentes formas de "ver o mundo", mas se deveria taxonomizá-las de acordo
com uma hierarquia de tempo e espaço. As outras formas de conhecer foram declaradas
como pertencentes ao "passado" da ciência moderna, como "doxa" que enganava os
sentidos, como "superstição" que impediam a passagem para a “maioridade", como
"obstáculo epistemológico" para a obtenção da certeza. A partir da perspectiva do ponto
zero, os conhecimentos humanos foram ordenados em una escala epistemológica que vai
desde o tradicional até o moderno, desde a barbárie até a civilização, desde a comunidade
até o indivíduo, desde a tirania até a democracia, desde o individual até o universal, desde
o oriente até o ocidente. Estamos, então, diante de uma estratégia epistêmica de domínio
[...] (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 63-64).

A crítica de Castro-Gómez chega à conclusão de que a epistemologia europeia se


fundamentou na projeção em um sujeito cognoscitivo transcendental e em um sujeito empírico
europeu, que é branco, masculino, heterossexual e pertencente à classe média. Destaca ainda que é
uma ilusão observar e capturar uma totalidade se não se leva em consideração o próprio locus de
observação. Neste sentido, a epistemologia moderna se construiu presumindo uma perspectiva
universal de observação e um locus privilegiado de enunciação cego para a observação de seu próprio
locus.
Dussel (2009) argumenta que toda a filosofia moderna se fecha numa reflexão sobre o
conhecimento puramente centrada na Europa. E mais, confirma a pretensão europeia de objetividade
e a íntima relação entre o “ego cogito” e o “ego conquiro”, citando alguns dos principais filósofos
europeus:
O ser humano adquire confiança em si mesmo. Com a invenção da pólvora desaparece da
guerra a inimizade individual. O homem descobre a América, os seus tesouros e os seus
povos, descobre a natureza, descobre-se a si mesmo (HEGEL, 1970, v. 20, p. 62, apud
DUSSEL, 2009, p. 287).

Será sempre justo e conforme ao direito natural que tais gentes [os indígenas das Américas]
se submetam ao império de príncipes e nações mais cultas e humanas, para que, pelas suas
virtudes e pela prudência de suas leis, abandonem a barbárie e se submetam a uma vida
56

mais humana e ao culto da virtude (GINES DE SEPÚLVEDA [renascentista], 1967, p. 85,


apud DUSSEL, 2009, p. 296).

Portanto, a construção do conhecimento filosófico se realiza como cânone e tradição que


silenciam a produção de outros conhecimentos fora da Europa. Esta afirmação leva a outras: a
constituição das categorias de colonialidade do saber e de racismo epistêmico.
A colonialidade do saber operou a inferioridade de grupos humanos não europeus do ponto
de vista da produção da divisão racial do trabalho, do salário, da produção cultural e dos
conhecimentos. Por isso, Quijano fala da colonialidade do saber, entendida como a repressão de
outras formas de produção de conhecimento não europeus que nega o legado intelectual e histórico
de povos indígenas e africanos, por exemplo, reduzindo-os, por sua vez, à categoria de primitivos e
irracionais, pois pertencem a uma “outra raça”. Esta ideia é bem ilustrada nos aspectos eurocêntricos
e racistas nas obras dos mais reconhecidos pensadores considerados clássicos das ciências sociais. Ou
seja, a colonialidade do saber se revela em algumas das obras mais reconhecidas pelo mundo
acadêmico:
Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima
do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um
Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados
de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou
um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer
outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe
mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial
é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às
capacidades mentais quanto à diferença de cores [...] (KANT, 1993, p. 75-76).

Sobre os nativos americanos:


Mansidão e indiferença, humildade e submissão perante um crioulo (branco nascido na
colônia), e ainda mais perante um europeu. [...] ainda custará muito até que europeus lá
cheguem para incutir-lhes uma dignidade própria. A inferioridade desses indivíduos, sob
todos os aspectos, até mesmo o da estatura, é fácil de se reconhecer (HEGEL, 1999, p. 74-
75).

Augusto Comte, no seu famoso Curso de Filosofia Positiva se pergunta, na Lição 52, “Por
que a raça branca possui, de modo tão pronunciado, o privilégio efetivo do principal desenvolvimento
social e por que a Europa tem sido o lugar essencial dessa civilização preponderante?” Ele mesmo
responde: “Sem dúvida já se percebe, quanto ao primeiro aspecto, na organização característica da
57

raça branca, e, sobretudo quanto ao aparelho cerebral, alguns germes positivos de sua superioridade”
(COMTE, apud ARON, 1982, p. 121-122).
Sobre um dos expoentes da segunda modernidade:
O escravo moderno não difere do senhor apenas pela liberdade. Mas ainda pela origem.
Pode-se tornar livre o negro, mas não seria possível fazer com que não ficasse em posição
de estrangeiro perante o europeu. E isso ainda não é tudo: naquele homem que nasceu na
degradação, naquele estrangeiro introduzido entre nós pela servidão, apenas reconhecemos
os traços gerais da condição humana. O seu rosto parece-nos horrível, a sua inteligência
parece-nos limitada, os seus gostos são vis, pouco nos falta para que o tomemos por um
ser intermediário entre o animal e o homem (TOCQUEVILLE, 1977, p. 262).

Sobre as crenças religiosas dos povos não europeus, o fundador da sociologia acadêmica
afirma: “(...) umas podem ser ditas superiores às outras no sentido em que elas põem em jogo funções
mentais mais elevadas, são mais ricas em ideias e sentimentos, nelas figuram mais conceitos, menos
sensações e imagens, sua sistematização é mais engenhosa” (DURKHEIM, 1978, p. 205-206).
E, no mais “radical” de todos, surge uma argumentação, que para o grupo MC confirma a
hegemonia da colonialidade:
[...] não podemos esquecer que estas idílicas comunidades aldeãs [da civilização indiana],
por muito inofensivas que possam parecer, foram sempre o sólido alicerce do despotismo
oriental, confinaram o espírito humano ao quadro mais estreito possível, fazendo dele o
instrumento dócil da superstição, escravizando-o sob o peso de regras tradicionais,
privando-o de toda a energia histórica (MARX, 1982, p. 517).

Toda esta hegemonia epistemológica da modernidade europeia, se traduz num racismo


epistêmico, ou, como afirma Grosfoguel (2007), sobre como a “[...] epistemologia eurocêntrica
ocidental dominante não admite nenhuma outra epistemologia como espaço de produção de
pensamento crítico nem científico” (p. 35).
Walter Mignolo (2005), nesta linha de raciocínio, afirma que as ciências humanas,
legitimadas pelo Estado, cumpriram um papel fundamental na invenção do outro. Além disso, essas
ciências, incluindo a História, criaram a noção de progresso. Com a ideia de progresso, se estabeleceu
uma linha temporal onde a Europa aparecia como superior.
Esta realidade significou aquilo que Castro-Gómez (2005) afirma sobre a História e as áreas
afins, ou seja, a etnografia, a geografia, a antropologia, a paleontologia, a arqueologia etc. que, ao
estudar o passado das civilizações, seus produtos culturais e institucionais, permitiram, muitas vezes,
elaborar comparações a respeito do mundo europeu e, nesse sentido, justificaram o colonialismo. Para
este autor, os cânones, o modelo, o padrão de comparação é o “centro” da História Mundial, ou seja,
58

a Europa. Aqui, o outro foi visto como mera natureza, uma visão que se popularizou no século XVIII
e que teve suas repercussões na obra de Hegel sobre a Filosofia da História.5
Mignolo (2003) escreve que os espanhóis julgavam e hierarquizavam a inteligência e a
civilização dos povos tomando como critério a escrita alfabética. Porém, no século XVIII e XIX, o
critério de avaliação passa a ser a História. Ou seja, os povos “sem História” situam-se em um tempo
“anterior” ao “presente”. Assim, com base na colonialidade do poder:

[...] o eurocentrismo torna-se, portanto, uma metáfora para descrever a colonialidade do


poder, na perspectiva da subalternidade. Da perspectiva epistemológica, o saber e as
Histórias locais europeias foram vistos como projetos globais, desde o sonho de um Orbis
universalis christianus até a crença de Hegel em uma História universal, narrada de uma
perspectiva que situa a Europa como ponto de referência e de chegada (2003, p. 41).

Para Mignolo, a expansão ocidental após o século XVI não foi somente econômica e
religiosa, mas também a expansão das formas hegemônicas de conhecimento e de um conceito de
representação do conhecimento e cognição impondo-se como hegemonia epistêmica, política e
historiográfica, estabelecendo assim a colonialidade do saber.
Se a colonialidade do poder criou uma espécie de fetichismo epistêmico (ou seja, a cultura,
as ideias e conhecimentos dos colonialistas aparecem de forma sedutora que se busca imitar),
impondo a colonialidade do saber sobre os não europeus, se evidenciou também uma geopolítica do
conhecimento, ou seja, o poder, o saber e todas as dimensões da cultura se definiam a partir de uma
lógica de pensamento localizado na Europa. Assim, Mignolo (2005) também afirma que estes
processos, marcados por uma violência epistêmica, conduziram também a uma geopolítica
linguística, já que as línguas coloniais ou imperiais, cronologicamente identificadas no grego e no
latim na antiguidade, e no italiano, português, castelhano, francês, inglês e alemão na modernidade,
estabeleceram um monopólio linguístico, desprezando as línguas nativas, e, consequentemente,
subvertendo ideias, imaginários e as próprias cosmovisões nativas fora da Europa.
Para Mignolo (2003), e também para Dussel (1990), a presunção de considerar a América
Latina como o “outro”, por exemplo, pode explicar as sucessivas construções de exterioridade nas
Histórias coloniais e, por consequência, as similaridades entre outras regiões (Mundo Árabe, África
negra, Índia, Sudeste Asiático e China). Dussel faz a conexão desta ideia, fundamentando a
colonialidade do saber com o pensamento moderno pós Descartes, que pressupunha uma ontologia

5 É famosa a afirmação de Hegel que: “A África não é uma parte histórica do mundo. Não tem movimentos,
progressos a mostrar, movimentos históricos próprios dela. Quer isto dizer que sua parte setentrional pertence ao
mundo europeu ou asiático. Aquilo que entendemos precisamente pela África é o espírito ahistórico, o espírito não
desenvolvido, ainda envolto em condições de natural e que deve ser aqui apresentado apenas como no limiar da
História do mundo” (HEGEL, 1999, p. 174).
59

de totalidade enquanto metafísica da alteridade como negatividade. O conceito moderno do ser


moderno é agora secular, construído sobre a negação do outro, o ser é agora o ego, um ego sem Deus,
ou seja, uma totalidade egotista que confirmaria, segundo Dussel, o postulado de Hegel para quem o
conhecimento e a totalidade são o absoluto.
Na ascensão desta ideia, segundo Mignolo (2003), este processo não só foi articulado como
“emancipação” do ocidente, mas também desqualificou e racializou todas as outras pessoas e formas
de sociedade. Ou seja, exatamente no momento na qual a ideia de Europa cristã e ocidental se
articulava em sua diferença em relação aos “infiéis” e “bárbaros” na sua margem na primeira
modernidade e, nos outros cantos do planeta (Oriente, Ásia e África), na segunda modernidade.
Quando se formula o conceito da colonialidade do saber, na afirmação de que a Europa se
constituiu como racional e pode ter sujeitos enquanto as outras culturas não são racionais, está se
formulando também a ideia de que há uma correlação entre epistemologia e economia, por um lado,
e, por outro, entre epistemologia e colonização, na medida em que a constituição da Europa como
entidade geopolítica se realiza a partir da qual se mede, se estuda e se classifica o resto do mundo.
Esta afirmação se expressa numa célebre e já consagrada formulação de Marx Weber:

Sendo produto da moderna civilização europeia, o estudioso de qualquer problema da


História universal não pode deixar de indagar a que conjunto de circunstâncias deve
atribuir-se o fato de que na civilização ocidental, e nela apenas, surgiram fenômenos
culturais que (como nos apraz pensar) traçam uma linha de desenvolvimento dotada de
valor e significação universal.
Somente no Ocidente existe uma ciência num grau de desenvolvimento que hoje
reconhecemos como válido. Resumindo, conhecimento e observações de grande
sofisticação já existiram em outras partes do mundo, sobretudo na Índia, China, Babilônia,
Egito. Mas na Babilônia e em outros lugares faltava à astronomia - o que torna seu
desenvolvimento tanto mais espantoso - a base matemática que, pela primeira vez, lhe
forneceram os gregos. A geometria indiana carecia de prova racional... Às ciências
naturais indianas faltava o método experimental (WEBER, 1992, p. 13).

Enfim, através da colonialidade do saber, as dimensões constitutivas dos conhecimentos


locais modernos (europeus) construíram uma eficácia naturalizadora (Lander, 2005) perante o mundo
não europeu. O curioso é que esta naturalização é cega a processos históricos fora da Europa, realidade
60

que espanta os mais críticos e aqueles estudiosos abertos a possibilidade da crítica se escandalizam
com certas interpretações históricas que beiram ao grotesco, como, por exemplo, este relato:

Ao estudar os conhecimentos astronômicos dos Dogon6 nos anos 40, [do século XX]
Marcel Griaule e os seus discípulos ficaram fascinados com o nível de conhecimentos
existente. Recentemente, o conhecido astrônomo Carl Sagan, da Universidade Cornell de
Nova Iorque, decidiu avaliar esses mesmos conhecimentos Dogon, e concluiu que os
‘Dogon, em contraste com todas as sociedades pré-científicas, sabiam que os planetas,
incluindo a terra, giram sobre si próprios e à volta do Sol’ [...] Como é que se pode explicar
este extraordinário conhecimento científico? Sagan não duvidou um segundo que deve ter
sido devido a um gaulês que atravessou aquelas paragens, e que provavelmente estava mais
avançado do que a ciência da época (LOPES, 1995, p. 19-20).

Concordando com Mignolo (2003), é possível afirmar que o discurso da História do


pensamento europeu é, de um lado, a História da modernidade europeia e, de outro, a História
silenciada da colonialidade europeia, pois, enquanto a primeira é uma História de autoafirmação e de
celebração dos sucessos intelectuais e epistêmicos, a segunda é uma História de negações e de rejeição
de outras formas de racionalidade e História.
Em função das elaborações sobre modernidade, colonialidade e mundo moderno/colonial,
é desenvolvido o conceito de colonialidade do ser com Mignolo (2003) e Maldonado-Torres (2007).
Para eles a relação entre poder e conhecimento conduziu ao conceito de ser. Mignolo formula a
relação entre estes termos:

A ciência (conhecimento e sabedoria) não pode ser separada da linguagem, as línguas não
são apenas fenômenos culturais em que as pessoas encontram a sua identidade; elas
também são o lugar onde se inscreve o conhecimento. E, dado que as línguas não são algo
que os seres humanos têm, mas algo de que os seres humanos são, a colonialidade do poder
e a colonialidade do conhecimento engendraram a colonialidade do ser (MIGNOLO, 2003,
p. 688).

A colonialidade do ser para estes autores se refere à experiência vivida da colonização e seus
impactos na linguagem, que responde à necessidade de explicitar a pergunta sobre os efeitos da
colonialidade na experiência da vida e não somente na mente dos colonizados.
Catherine Walsh (2005) recorda as palavras de Frantz Fanon (1983) para relacionar
colonialismo a não existência: “em virtude de ser uma negação sistemática da outra pessoa e uma
determinação furiosa para negar ao outro todos os atributos de humanidade, o colonialismo obriga as

6 Dogon é um povo que habita o Mali e o Burkina Faso. Os Dogon do Mali são uma sociedade que vive em uma
remota região no interior da África ocidental. São cerca de 200 mil pessoas e a sua maioria vive em aldeias
localizadas nas escarpas de Bandiagara, ao leste do Rio Níger.
61

pessoas que ele domina a perguntar-se: em realidade quem eu sou?” (Fanon, apud WALSH, 2005,
p. 22) – e mais:

O mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não basta ao colonizador limitar fisicamente


o colonizado, isto é, com seus policiais e guardas, o espaço do colonizado. Como que para
ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie
de quintessência do mal. A sociedade colonizada não é apenas descrita como uma
sociedade sem valores. […] O indígena é declarado impermeável à ética. Ausência de
valores, e também negação dos valores. Ele é, ousemos dizer, o inimigo dos valores. Neste
sentido, ele é o mal absoluto. Elemento corrosivo, destruindo tudo de que se aproxima,
elemento deformante, desfigurando tudo o que se refere à estética ou à moral, depositário
de forças maléficas […] (FANON, 2005, p. 57-58).

A colonialidade do ser é pensada como uma negação de um estatuto humano para africanos
e indígenas, por exemplo, na História da modernidade colonial. Esta negação, implanta problemas
reais em torno da liberdade, do ser e da História do indivíduo subalternizado por uma violência
epistêmica.
A violência epistêmica se constrói em torno ao conceito de raça, no qual novas categorias
foram criadas como branco, negro, índio, mestiço etc., e relaciona sujeitos numa classificação social
de forma vertical. Maldonado-Torres (2007) deduz daí que a ideia de seres não europeus como
inferiores produziu formas de desumanização. Por outro lado, Dussel (2009) afirma que a negação
que o ser europeu faz do outro colonizado, a forma como desconhece a alteridade e o modo como
relega o diferente, o converte em um não-ser. Essa, portanto, foi a experiência vivida na colonialidade.
Maldonado-Torres ainda afirma que o privilégio do conhecimento na modernidade e a
negação de faculdades cognitivas nos sujeitos racializados, fornecem as bases para uma negação
ontológica do outro não europeu. Ou seja, a ausência da racionalidade está vinculada na modernidade
com a ideia de ausência de ser nos sujeitos racializados. Neste sentido, podemos entender melhor a
ideia de Fanon de que, em um mundo anti-negro, o negro não tem resistência ontológica diante dos
olhos dos brancos (FANON, 1983).
Seguindo as formulações de Fanon sobre os condenados da terra, Maldonado-Torres (2007)
caracteriza também a colonialidade do ser como experiências invisibilizadas, não como simples
sujeitos, mas na sua própria humanidade. Esta seria uma das expressões primeiras da colonialidade
do ser.
62

Diferença colonial e opção decolonial em educação

A partir dessas considerações teóricas, a questão central neste projeto de emancipação


epistêmica é a coexistência de diferentes epistemes ou formas de produção de conhecimento entre
intelectuais, tanto na academia, quanto nos movimentos sociais, colocando em evidência a questão da
geopolítica do conhecimento. Geopolítica do conhecimento como a estratégia da modernidade
europeia que afirmou suas teorias, seus conhecimentos e seus paradigmas como verdades universais
e invisibilizou e silenciou os sujeitos que produzem “outros” conhecimentos. Foi este o processo que
constituiu a modernidade, que não pode ser entendida sem se tomar em conta os nexos com a herança
colonial e as diferenças étnicas que o poder moderno/colonial produziu.
Segundo Escobar (2003), a modernidade como globalização atualmente está em todas as
partes, já que esta é a radicalização e universalização da modernidade ocidental em todos os cantos
do planeta. Porém, hoje emerge uma série de noções alternativas, colocando em crise a centralidade
da herança da Europa. Por exemplo, a perspectiva de que a modernidade não é um fenômeno europeu,
mas um fenômeno global com distintas localidades e temporalidades.7
Essa perspectiva considera a colonialidade como constitutiva da modernidade, ou seja,
segundo Mignolo (2003) “nos ombros da modernidade está o peso e a responsabilidade da
colonialidade”. Daí surge a proposta de se introduzir epistemes invisibilizadas e subalternizadas,
fazendo-se a crítica ao mesmo tempo da colonialidade do poder, ou seja, a utilização da raça como
critério fundamental para a divisão dos povos em níveis, lugares e papéis sociais e com uma ligação
estrutural à divisão do trabalho.
Como foi visto, a colonialidade do poder, do saber e do ser são conceitos centrais dentro do
projeto de investigação desses estudos latino-americanos. Outro conceito é a diferença colonial, ou
seja, pensar a partir das ruínas, das experiências e das margens criadas pela colonialidade do poder na
estruturação do mundo moderno/colonial, como forma de fazê-los intervir em um novo horizonte
epistemológico transmoderno (DUSSEL, 2005), ou seja, alternativas múltiplas de vida, de formas de
ser, pensar e conhecer, diferentes da modernidade europeia, porém em diálogo com esta. Este novo
horizonte epistemológico, por sua vez, tem uma utilidade estratégica e política.8
A perspectiva da diferença colonial requer um olhar sobre enfoques epistemológicos e sobre
as subjetividades subalternizadas. Supõe o interesse por outras produções de conhecimento distintas

7 Escobar faz referência aos estudos pós-coloniais que também fazem uma crítica ao discurso monotópico
ocidental.
8 Dussel propõe o conceito de transmodernidade na perspectiva de uma Filosofia da Libertação: “A Modernidade
nasce realmente em 1492: esta é nossa tese. Sua real superação (como subsuntion, e não meramente como
Aufhebung [revogação] hegeliana) é subsunção de seu caráter emancipador racional europeu transcendido como
63

da modernidade ocidental. Diferentemente da pós-modernidade, que segue pensando a partir do


ocidente moderno, a construção de um pensamento crítico outro, parte das experiências e Histórias
marcadas pela colonialidade. O eixo que se busca é a conexão de formas críticas de pensamento na
América Latina assim como de outros lugares subalternizados do mundo, enfim, a decolonialidade
da existência, do conhecimento e do poder.
Nesta perspectiva crítica, Catherine Walsh (2005) reflete sobre os processos educacionais a
partir de conceitos como: “pensamento-outro”, “decolonialidade” e “pensamento crítico de fronteira”.
“Pensamento-outro” provém do autor Árabe-islâmico Abdelkebir Khatibi, que parte do
princípio da possibilidade do pensamento a partir da decolonização, ou seja, a luta contra a não
existência, a existência dominada e a desumanização. É uma perspectiva semelhante a do conceito de
“colonialidade do ser”, ou seja, uma categoria que serve como força para questionar a negação
histórica de afrodescendentes e indígenas.
Contestando as concepções de que diversos povos não ocidentais seriam não modernos,
atrasados e não civilizados, decolonizar-se cumpre um papel fundamental do ponto de vista político
e epistemológico. Walsh esclarece que a partir dos movimentos sociais em toda a América Latina, a
decolonialidade implica partir da desumanização e considerar as lutas dos povos historicamente
subalternizados pela existência, para a construção de outros modos de viver, de poder e de saber.
Portanto, decolonialidade é visibilizar as lutas contra a colonialidade a partir das pessoas, das suas
práticas sociais, epistêmicas e políticas.
Walter Mignolo (2003) destaca que o “pensamento-outro”, caracterizado como opção
decolonial, se expressa na diferença colonial, que representa um reordenamento da geopolítica do
conhecimento em duas direções: a crítica da subalternização na perspectiva dos conhecimentos
invisibilizados e a emergência do pensamento liminar como uma nova modalidade epistemológica na
interseção da tradição ocidental e a diversidade de categorias suprimidas pela lógica ocidental e
eurocêntrica. Na perspectiva deste autor, diferença colonial diz respeito à classificação do planeta no
imaginário colonial/moderno realizada pela colonialidade do poder, uma estratégia que transformou
diferenças em valores. Neste sentido, o que foi subalternizado e considerado interessante apenas como
objeto de estudo - os conhecimentos subalternos - passa a ser pensado como locus de enunciação, ou
“gnose liminar”, na expressão de Mignolo (2003) “a gnose liminar é a razão subalterna lutando para
colocar em primeiro plano a força e criatividade de saberes, subalternizados durante um longo
processo através do qual se construíram a modernidade e a razão moderna” (p. 36). Cabe esclarecer

projeto mundial de libertação de sua Alteridade negada: “A Trans-Modernidade” (como novo projeto de libertação
político, econômico, ecológico, erótico, pedagógico, religioso etc.) seria a realização do processo de integração
que inclui a “Modernidade/Alteridade” mundial (DUSSEL, 2005, p. 66).
64

que não se trata de resgatar autenticidades subalternizadas pela colonialidade, mas as marcas deixadas
pela diferença colonial nas fissuras entre modernidade e colonialidade presentes em diversas Histórias
locais.
Mignolo (2003) cita um exemplo quando descreve o marxismo modificado pelas línguas e
pela cosmologia ameríndia do movimento Zapatista e a epistemologia ameríndia transformada pela
linguagem do marxismo, ou seja, um diálogo trans-epistemológico que reescreve uma História de
quinhentos anos de opressão.
Outro exemplo para o autor é quando Fanon (1983), afirma que para um negro que trabalha
numa plantação de açúcar, a única solução é lutar, mas que ele “embarcará nessa luta, e a levará
adiante, não como resultado de uma análise marxista ou idealista, mas simplesmente porque não pode
conceber a vida de outra maneira” (FANON, apud MIGNOLO, 2003, p. 126). Mignolo quer destacar
aqui que Fanon “não está negando a poderosa análise da lógica do capitalismo efetuada por Marx”,
mas está “chamando a atenção para a força da consciência negra, e não apenas da consciência de
classe” (Ibid., p. 126).
Assim, estes discursos significam uma atenção aos locus de enunciação decolonial como
formação discursiva emergente e como forma de articulação de uma racionalidade subalterna.
Mignolo sugere ainda que a razão subalterna deva ser entendida como um conjunto diverso de práticas
teóricas (dos movimentos sociais e da academia) emergindo dos e respondendo aos legados coloniais
na interseção da História euroamericana moderna, ou seja, pensar na constituição de um novo sujeito
epistemológico que pensa a partir das e sobre as fronteiras da modernidade/colonialidade.
O diálogo trans-epistemológico significa o rompimento de dicotomias, ou seja, a leitura do
mundo a partir de conceitos dicotômicos ao invés de organizar o mundo em dicotomias. No cerne
dessa perspectiva teórica se situa o pensamento liminar nas fronteiras do sistema mundial
colonial/moderno. Esta formulação traz embutida um projeto teórico denominado “diversalidade
global” ou “razão humana pluriversal” que não representa pensar a diferença dentro do universal, mas
a diversalidade do pensamento enquanto projeto universal, pois “o pensamento é, ao mesmo tempo,
universal e local: o pensamento é universal no sentido muito simples de que é um componente de
certas espécies de organismos vivos e é local no sentido de que não existe pensamento no vácuo”
(MIGNOLO, 2003, p. 287).
Neste processo, também se encontra a estratégia da interculturalidade como princípio que
guia pensamentos, ações e novos enfoques epistêmicos. O conceito de interculturalidade é central na
(re)construção do “pensamento-outro”. É a interculturalidade como processo e como projeto político.
Amadurecendo este pensamento, Walsh (2005) vem considerando também a questão do
“posicionamento crítico de fronteira” na diferença colonial. O pensamento de fronteira significa fazer
65

visível outras lógicas e formas de pensar, diferentes da lógica eurocêntrica e dominante. O


pensamento de fronteira se preocupa com o pensamento dominante, mantendo-o como referência,
como vimos em Fanon, mas sujeitando-o ao constante questionamento e infectando-o com outras
Histórias e modos de pensar. Walsh considera esta perspectiva como componente de um projeto
intercultural e decolonizador, permitindo uma nova relação entre conhecimento útil e necessário na
luta pela decolonização epistêmica.
Além disso, o pensamento de fronteira permite construir variadas estratégias entre grupos e
conhecimentos subalternizados, como, por exemplo, entre povos indígenas e povos negros. É o
estabelecimento de lugares epistêmicos do “pensamento-outro” como a Universidade Intercultural
Indígena do Equador ou a “etno-educação afro” (WALSH, 2007). Estes espaços, como posições
críticas de fronteira, podem oferecer possibilidades de propor outros conhecimentos e cosmovisões
num diálogo crítico, mas também com os conhecimentos e modos de pensar tipicamente associados
ao mundo ocidental.
Este (re)pensamento crítico, que pode se constituir desde a colonialidade incluindo os novos
movimentos sociais e a intelectualidade, tem como ideia criar novas comunidades interpretativas que
ajudem a ver o mundo de outra forma. Percebe-se, portanto, que este enfoque quer se constituir como
um projeto alternativo ao racismo epistêmico e à colonialidade do ser, do saber e do poder. Walsh
(2007) afirma que a denominada pedagogia decolonial poderia servir no campo educativo a elevar os
debates em torno da interculturalidade para outro nível, ou seja,

“[...] ao problema da “ciência” em si, ou seja, o modo em que a ciência, como um dos
pilares centrais do projeto da modernidade/colonialidade, teve uma contribuição vital para
o estabelecimento e manutenção da hierarquia racial, históricas e atuais, em que os brancos,
especialmente os homens brancos europeus continuam no topo (WALSH, 2007, p. 9).

Nesta perspectiva, faz-se necessário aprofundar a discussão sobre o conceito de


interculturalidade crítica e sua incidência no campo educacional, a denominada pedagogia decolonial.
Para Catherine Walsh, a interculturalidade crítica significa:

O conceito de interculturalidade é central à (re)construção de um pensamento crítico-outro


— um pensamento crítico de/desde outro modo —, precisamente por três razões
principais: primeiro porque está vivido e pensado desde a experiência vivida da
colonialidade [...]; segundo, porque reflete um pensamento não baseado nos legados
eurocêntricos ou da modernidade e, em terceiro, porque tem sua origem no sul, dando
66

assim uma volta à geopolítica dominante do conhecimento que tem tido seu centro no norte
global (Idem, 2005, p. 25).

A interculturalidade tem um significado intimamente ligado a um projeto social, cultural,


político, ético e epistêmico em direção a decolonização e a transformação social. É uma perspectiva
carregada de sentido pelos movimentos sociais indígenas latino-americanos e negros e que questiona
a colonialidade do poder, do saber e do ser. Também denota outras formas de pensar e posicionar-se
a partir da diferença colonial, na perspectiva de um mundo “outro”.
É neste sentido que a interculturalidade não é compreendida somente como um conceito ou
termo novo para referir-se ao simples contato entre o ocidente e outras civilizações, mas como algo
inserido numa configuração conceitual que propõe um giro epistêmico, capaz de produzir novos
conhecimentos e outra compreensão do mundo, sem perder de vista a colonialidade do poder, do saber
e do ser. Essa interculturalidade representa a construção de um novo espaço epistemológico que
promove a interação entre os conhecimentos subalternizados e os ocidentais.
O conceito de interculturalidade se diferencia de outras formulações na medida em que está
associado às formulações de Dussel e Mignolo sobre a “razão do outro” fora dos marcos eurocêntricos
de crítica epistemológica. Ou seja, tem relação com a colonialidade do poder e a diferença colonial.
A razão do outro é a perspectiva de diálogo simétrico e não a razão imperial moderna.
No campo educacional, esta perspectiva não se restringe a mera inclusão de novos temas
nos currículos ou nas metodologias pedagógicas, mas se situa na perspectiva da transformação
estrutural e sócio-histórica. Expressa uma crítica as formulações teóricas multiculturais que não
questionam as bases ideológicas do Estado-Nação, partem de lógicas epistêmicas eurocêntricas e, no
campo educacional, sob o pretexto de incorporar representações e culturas marginalizadas, podem se
limitar a estereótipos e reforçar processos coloniais de racialização.
Para Walsh, muitas políticas públicas educacionais na América Latina (incluindo o Brasil),
vêm se utilizando dos termos interculturalidade e multiculturalismo como forma somente de
incorporar as demandas e os discursos subalternizados no aparato estatal em que o padrão
epistemológico eurocêntrico e colonial continua hegemônico.
Na contramão desta perspectiva meramente inclusiva, Walsh (2007) propõe a perspectiva
da interculturalidade crítica como expressão da pedagogia decolonial:

[...] a interculturalidade crítica, [...] é uma construção das e a partir das pessoas que
sofreram uma subjugação e subordinação histórica. Uma proposta e um projeto político
que poderia também alargar e envolver as pessoas numa aliança, e também, busca de
alternativas à globalização neoliberal e à racionalidade ocidental, e que luta pela
transformação social de modo a criar condições de poder, de conhecimento e do ser
67

diferente. Concebida desta forma, a interculturalidade crítica não é um processo ou um


projeto étnico, nem um projeto da diferença em si. [...], é um projeto de existência, de vida
(2007, p. 8).

Falar de interculturalidade crítica e de pedagogia decolonial é expressar o colonialismo que


construiu a desumanização dirigida aos subalternizados pela modernidade europeia e pensar na
possibilidade de crítica teórica a geopolítica do conhecimento. Esta perspectiva é pensada a partir da
ideia de uma prática política contraposta a geopolítica hegemônica monocultural e monorracional,
pois trata-se de visibilizar, enfrentar e transformar as estruturas e instituições que têm como horizonte
de suas práticas e relações sociais a lógica epistêmica ocidental, a racialização do mundo e a
manutenção da colonialidade do poder. Enfim, para iniciar um diálogo intercultural “autêntico” tem
que haver uma visibilização das causas do não diálogo, e isto passa, necessariamente, pela crítica à
colonialidade do saber e a explicitação da diferença colonial. Walsh (2007) afirma que “[…] assumir
esta tarefa, implica um trabalho decolonial, dirigido a romper as correntes e libertar as mentes (como
diziam Zapata Olivella e Malcolm X); e desafiar e derrubar as estruturas sociais, políticas e
epistêmicas da colonialidade [...]” (Ibid., p. 9).
A autora elabora a partir desta construção teórica a noção de pedagogia decolonial, ou seja,
uma práxis baseada numa insurgência educativa propositiva - portanto não somente denunciativa -
onde o termo insurgir representa a criação e a construção de novas condições sociais, políticas e
culturais e de pensamento. Em outros termos, a construção de uma noção e visão pedagógica que se
projeta muito além dos processos de ensino e de transmissão de saber, uma pedagogia concebida
como política cultural, envolvendo não apenas os espaços educativos formais, mas também as
organizações dos movimentos sociais.
Walsh afirma que esta perspectiva ainda está em processo de construção nos sistemas
educativos, mas cita as formulações e práticas educacionais de Paulo Freire (1987), além das
teorizações de Frantz Fanon (1983 e 2005) sobre a consciência do oprimido e a necessidade de
construção da humanização dos povos subalternizados, como referências fundamentais.

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70
71

PEDAGOGIA DECOLONIAL ANTIRRACISTA: TECENDO O CONCEITO

Eliane Almeida de Souza e Cruz


SEEDUC-RJ
hexlili@hotmail.com

Este texto é um recorte da escrita da tese Pedagogia Decolonial Antirracista: ações


pedagógicas para uma construção possível, que refletiu a minha formação, as minhas práticas
pedagógicas, as memórias e as mudanças-permanências no saber-fazer da docência decolonial
antirracista. Defendida e aprovada em 17 de março de 2020, via webconferência,1 no início de
uma pandemia de Coronavírus (Covid19) que iria modificar, significativamente, as nossas
vidas. Aprendemos a reinventar a vida, as relações pessoais, sociais e econômicas; foi uma
avalanche da propagação de atividades ao vivo, shows de teatro de música, dança, rituais
religiosos (quase todas as religiões), debates, conferências, seminários, cursos, aulas remotas,
etc. Tem sido um cotidiano diferente, carregado de muitas angústias, tristezas, alegrias, afetos
virtuais, reaproximação e afastamento de amigxs, parentes, amores. São tempos de um
refazimento, em todos os sentidos, diante do caos e das incertezas que foi lançada em nós. Mas,
o ofício da docência sempre foi também um refazimento diante das vicissitudes da sala de aula,
espaço esse, necessário para uma mudança substancial no tecido social. Nesse sentido, o
objetivo dessa escrita é elaborar o conceito de uma Pedagogia Decolonial Antirracista.

O campo teórico foi cerzido no movimento intelectual da


Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade2 gestado no fim dos anos 90, do século passado,
por certo, não está sendo base para as reflexões no campo da Educação, e tem sido utilizado em
várias áreas das Ciências Humanas e Sociais, como campo teórico-metodológico.

Então, no ano de 1999, Arturo Escobar num congresso latino-americano em


Amsterdam, apresentou a conferência Mundos e Conhecimentos de Outro Modo, e que causou
um estranhamento e desconhecimentos por parte dos participantes que têm a sua base no

1
A defesa foi realiza pela Internet na Plataforma Zoom.
2
Decolonialidade (com ou sem hífen) demarca uma identidade do grupo Modernidade/Colonialidade, pois a
supressão da letra S apresenta uma distinção histórica entre o projeto decolonial do grupo, que tem a ideia de um
Pensamento-Outro. Já Descolonialidade, são os contornos históricos da descolonização política-administrativa,
via libertação nacional (África e Ásia) durante a Guerra Fria (BALLESTRIN, 2013).
72

pensamento europeu dominante, pois este perpassa por uma superioridade racial/étnica, cultural
e epistêmica, e que também se expressa na dominação da Natureza, enquanto um espaço para
a destruição do meio físico e cultural, pois a Colonialidade

É um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder


capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população
do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos
planos, meios e dimensões materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e
da escala societal. (QUIJANO, 2010, p. 84)

Segundo Palermo (2014), o conceito de Modernidade pode ser caracterizado por três
autores decoloniais:

1- A Modernidade para Dussel é um mito, é uma invenção eurocêntrica com a


genealogia que tem o seu ponto de partida as civilizações gregas e as romanas; a
Europa era periferia, era o extremo ocidental de outro centro de poder inter-regional:
a Índia, o Mediterrâneo Oriental e a Ásia (DUSSEL, 2005);
2- Quijano, a Modernidade é identificada pelo e com o surgimento do modo de
produção capitalista e das suas relações entre a produção e o trabalho, e
principalmente, nessa relação fundada na diferença racial, que aparece no discursivo
de dominação após o século XV;
3- Mignolo, concorda com Dussel, pois para ele a Modernidade se dá a partir da
construção de novas cartografias comerciais e das relações de poder.
4- Todas as imbricações dessas relações, Quijano (2010) denomina de
Colonialidade do Poder.

O primeiro ao mito da perspectiva da Modernidade/Colonialidade se refere à fundação da


universalidade dessa humanidade europeia que caracteriza por alguns elementos destacados nesse
discurso: eu penso/eu conquisto; a subjetividade europeia como padrão, a fala do outro negada/nós (a
minha fala do colonizador que prevalece); razão e ciência em detrimento as emoções e intuições;
locais de hegemonia política e cultural (Espanha, Portugal, Itália, Inglaterra, França e Holanda). Sendo
que foi uma invenção das classes dominantes europeias a partir do contato com a América, que
sustenta numa classificação racial/étnica da população mundial e que determina o padrão de poder
em suas dimensões societária, de gênero e de raça, constituindo o Sistema Mundo de uma
eurocentralidade universal.
73

Nessa nova ordem mundial, do século XV, provoca uma virulenta invasão em Pindorama3
e Aby Ayala4, o período das “grandes navegações/invasões”; esses locais foram apossados
pelos europeus, e, também, no mesmo momento, foi estabelecida a diferenciação “racial” entre
os seres humanos, a partir de um caráter teológico, ou seja, um Racismo Teológico, através do
mito de Cam, sendo que esse mito irá permanecer por longos séculos como alicerce de uma
diferença entre seres humanos e não humanos, entre senhorxs e escravizadxs.
A tríade Modernidade/Capitalismo/Sistema Mundo, e para Dussel (2010) existe uma razão
universal da Europa,5 e esta estabelece uma conquista epistêmica na qual o etnocentrismo europeu
representou o único caminho que pôde pretender a uma identificação com a universalidade-
mundialidade.
A Modernidade foi inventada a partir de uma violência colonial, de feridas coloniais
(PALERMO, 2014, p. 07), que está imbricada com a tríade patriarcalismo, racismo e epistemicídio –
homem, branco, heteronormativo e cristão passa exercer o poder nas relações socioeconômicas, além
de explicitar as diferenças raciais como elemento de diferenciar entre aquelxs que tem o domínio
daquelas que serão dominados por caracteres físicos ,e a grande consequência da Colonialidade é a
destruição da cultura do outro. Uma legitimidade para a destruição da área conquistada de Aby Ayala
/ “América”, onde as classes dominantes europeias inventaram que somente sua razão era universal,
negando a razão do outro não europeu que havia nesse território colonizado por eles.
A segunda perspectiva é a da Colonialidade que implica na classificação e reclassificação
da população do planeta, em uma estrutura funcional para articular e administrar essas classificações,
na definição de espaços para esses objetivos conformar um significado de uma matriz de poder na
qual canalizar uma nova produção de conhecimento.
Colonialidade representa, apesar do fim do colonialismo6, um padrão de poder que emergiu
como resultado do colonialismo moderno, porém, ao invés de estar limitado a uma relação formal de

3
Palavra derivada do Tupi-Guarani (terra das Palmeiras), nome que os nativos chamavam as terras brasileiras, e
que uma designação o local mítico livre dos males.
4
Literalmente significa terra em plena madureza ou terra de sangre vital. O nome era dado ao continente pelos
povos Kuna, originário da região Darien (Panamá) e no Norte da Colômbia. Hoje muitos intelectuais indígenas ou
não passam a usar oficialmente o nome do continente, numa referência à ancestralidade e legitimidade do nome
em oposição ao nome dado pelos colonizadores, América, é uma posição ideológica desse grupo se expressa por
um enfrentamento das bases políticas, sociais, culturais de subordinação e de silenciamento das culturas nativas
indígenas desse continente.
5
O conceito de Europa é um invento ideológico de fins do século XVIII (romântico alemão), que se limita em
direção ao Norte e Oeste da Grécia até os atuais países da Croácia e Sérvia; a sequência do mundo medieval, e
finalmente, o Mundo Moderno Europeu, a partir de 1492. A Europa constituiu-se como o ― Centro da História
Mundial‖, e a constituição de todas as outras culturas como sua ― periferia‖. Poder-se-á compreender que, ainda
que toda cultura seja etnocêntrica, o etnocentrismo europeu moderno é o único que pode pretender identificar-se
com a universalidade-mundialidade. (DUSSEL, 2005)
6
Domínio político de controle sobre um território ocupado e administrado por um grupo de indivíduos com
poder militar ou por representantes do governo de um país ao qual esse território não pertencia, contra a vontade
74

poder entre os povos ou nações. Além disso, refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a
autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e
da ideia de raça. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131)
A Colonialidade sobrevive até hoje nos manuais de aprendizagem, nos critérios para os
trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações dos
sujeitos, e em tantos outros aspectos de nossa experiência moderna (idem).
No seu livro, La Poscolonialidad Explicada a los Niños, Castro-Goméz (2005) destaca
que existe uma cumplicidade objetiva do capitalismo com as forças violentas que explodem no
território colonial (FANON, 1968, p.50), a Colonialidade entra em conjunto com a Modernidade, sem
dúvida, a Colonialidade é constitutiva de todos os componentes políticos/sociais/ideológicos da
Modernidade.
Portanto, para Maldonado-Torres (2007), a Colonialidade tem suas bases em quatro
eixos, que foram determinantes para uma negação e uma subordinação daqueles que foram
colonizados pelos europeus:

1- Colonialidade do Poder que estabelece num sistema de classificação racial e


sexual, numa formação e distribuição de identidades sociais de grupos superiores e
inferiores, ou seja, delimita uma hierarquização da formação identitária entre
homem/mulher e entre brancos/negros/indígenas/mestiços. Ocasionando um conflito
que permanece imbricado nas estruturas contemporâneas em várias sociedades. Por
certo, a manutenção desta hierarquia se configura pela homogeneidade dos centros
de poder, de um poder branco/homem/europeu e na negação de outras formas de
identidade mulher/negro/indígenas.

2- Colonialidade do Saber determinando uma posição de que existe uma única


perspectiva de conhecimento: Eurocêntrica, e descarta qualquer existência ou
visibilidade de outras racionalidades epistêmicas. Esta Colonialidade se evidencia,
principalmente, no sistema educativo, desde a escola básica (Educação Infantil,
Fundamental e Média) até nas universidades (graduação e pós-graduação). Esses são
locais que sempre estão evidenciando os saberes e a ciência europeia como padrão
científico-acadêmico e intelectual, e, num grande silenciamento de outros diferentes
saberes e realidades de outros espaços geoepistêmicos7.

dos seus habitantes que, das muitas vezes, são desapossados de parte dos seus bens (como terra arável ou de
pastagem) de seus saberes de sua cosmovisão, de seu ser, de direitos políticos. Mesmo que o colonialismo acabe,
a colonialidade permanece.
7
Conhecimento que cada território possui.
75

3- Colonialidade do Ser que estabelece todo um constructo discriminatório e


preconceituoso para descaracterizar outros povos, principalmente negros e indígenas,
como bárbaros, não civilizados, não gente, os sem almas, ou seja, o não ser; são
grupos impermeáveis de ética, ausência de valores e também negação de valores
Fanon (1968), imputando a eles um trato de inferioridade, subalternização e
desumanização, de uma racionalidade moderna que assim os definiu. Este é um
desenho criado para considerar esses grupos como não humanos. Ocasionando a
“Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de
inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural – toma posição
diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana” (Op. Sit.,
p.34).

4- Colonialidade da Mãe Natureza e da Vida onde a Modernidade/Colonialidade


encontra a sua base na dissociação de princípios mútuos entre a Natureza e a
Sociedade, além de uma Colonialidade cosmológica. Descartando, totalmente, a
relação do Ser Humano/Natureza e vice-versa. O caráter milenar de cultuar a
Natureza (biofísico), os humanos e o espiritual, incluindo a ancestralidade, foi
esquecida; a quebra destes princípios, o mágico-espiritual e social, que sempre
ocorreu em várias sociedades, para a integração da vida entre os seres vivos e o meio
ambiente.

Esses quatro eixos da Colonialidade se espalharam pelos locais de domínio colonial


europeu, e, suplantaram suas bases epistêmicas hegemônicas, na América Latina, na África e
na Ásia, avançou com esse poder simbólico (BOURDIEU, 1974), mas, também, com intenso e
voraz poder físico e material.
Evidentemente, o Colonialismo iniciado no século XV promoveu a concreticidade de
duas violências, uma ao eliminar várias comunidades nativas, desde o Norte, à parte Central e
Sul, do continente americano, provocando um genocídio. E uma segunda, que é a Colonialidade
que ainda persiste nas sociedades colonizadas “a sedução pela cultura colonialista, o fetichismo
cultural que o europeu cria em torno de sua cultura, estimulando uma forte aspiração à cultura
europeia por parte dos sujeitos subalternizados” (OLIVEIRA; CANDAU, 2011, p.83).

As categorias binárias, oriente-ocidente, primitivo-civilizado, irracional-racional,


mágico/mítico-científico, tradicional-moderno justificam a superioridade e a
inferioridade – razão e não razão, humanização e desumanização (colonialidade do
76

ser) – e pressupõem o eurocentrismo como perspectiva hegemônica (colonialidade


do saber). (WALSH, 2009, p.131)

O ethos da Colonialidade eurocêntrica passa a representar os cânones de uma vida, de


uma história, de uma religiosidade, das relações sociais, políticas e culturais com características
naturalizadas, perpetuadas e hegemônicas para todas as outras sociedades que tiveram a sua
interferência política, social e cultural por séculos, e que ainda, na contemporaneidade,
determinam nestes padrões de poder, de vida, de saber e de ser.

Assim, a influência da Colonialidade é desdobrada na vida cotidiana e, nos currículos


escolares. Portanto, o giro decolonial (GROSFOGUEL, 2013, p. 459) questiona os caminhos
retilíneos estabelecidos como os possíveis, como locais de enunciação dos sujeitos como
detentores de uma verdade inabalável, sempre sinalizando os caminhos e movimentos sinuosos
e serpentinos (WALSH, 2013, p. 24) da Ciência.

De certo, os paradigmas eurocêntricos hegemônicos que desde o século XVI,


continuam a inspirar à filosofia e às ciências ocidentais do sistema-mundo
patriarcal/capitalista/colonial/moderno assumem um ponto de vista universalista, neutro e
objetivo. (GROSFOGUEL, 2013, p. 458)
Dussel (1995), filósofo da libertação latino-americano, denominou esse saber
universal de geopolítica do conhecimento da eurocentralidade, consiste em identificar a
racionalidade/saber universal a partir de um único território, de uma única cultura, de uma única
civilização, de uma única filosofia, de um único ser humano e dentre outros elementos (estética,
beleza, corpo, sexualidade, etc.), que passam a ser considerados como universais. (DUSSEL,
1995, p. 80-97).

Pedagogia Decolonial Antirracista

Nesse sentido, é necessário pensar as estratégias pedagógicas que transgridam (bell


hooks8, 2013) a ordem da Colonialidade (política, ontológica, epistêmica, espiritual,
existencial), que mostrem as fissuras e rachaduras das lutas de resistências históricas, numa
busca para a libertação freireana e para uma nova humanidade (FANON, 1968; 2008); do
pensamento crítico da leitura do mundo, das práticas e estratégias de existência por certos

8
bell hooks, pseudônimo de Glória Jean Watkins, inspirado na sua bisavó materna, Bell Blair Hooks. Em seus
escritos a autora usa as letras minúscula que pretende dar enfoque ao conteúdo da sua escrita e não à sua pessoa.
– ver: https://tricycle.org/magazine/bell-hooks-buddhism/. Acesso em 17 jan. 2018.
77

grupos alijados do processo de humanização, que foram escravizadxs9, subordinadxs e


colocadxs num âmbito de não-humano (FANON, 1968; 2008; FREIRE, 1996;1997); é uma
práxis forjada na insurgência, na análise, na transformação e na intervenção social e política do
cotidiano.
Assim, a Pedagogia Decolonial Antirracista propõe um caminho contínuo que
visibilize e alavanque as lutas históricas para explicitar o lugar da Exterioridade (DUSSEL,
1997), ou seja, o lugar da/do outra/outro e da (s) construção (construções) alternativa (s) das
memórias coletivas, das lembranças dos povos indígenas e negros que se
mantiveram/salvaguardaram como parte de seu ser, de sua existência e de sua resistência
(WALSH, 2013). Esse é um processo histórico de grande duração, de resistências, de
insurgências, de alternativas, de “camuflagem”10, ou ressignificação do pedagógico e do
decolonial passam a externar a sua razão, o sentido político, social, cultural e de existência.
Pedagogia Decolonial Antirracista é um campo de disputa das narrativas homogêneas,
ou seja, da narrativa da Colonialidade/Carrego Colonial11, e, portanto, busca aliar
conhecimentos adquiridos na sua formação docente, nas experiências de vida, tanto no campo
teórico quanto prático dos movimentos sociais, para enfrentar o racista epistêmico na Escola,
entranhado no currículo escolar e submetido a uma lógica reprodutivista de um status quo da
negação e da subalternização (CRUZ, 2016).
Pedagogia Decolonial Antirracista faz parte desse outro paradigma metodológico
desafiante de descortinar saberes silenciados e negados pela Colonialidade, nesse sentido, ela
propõe um caminho contínuo que visibilize as lutas históricas e que alavanque para desvelar o
lugar da Exterioridade (DUSSEL, 1997), ou seja, o lugar da/do outra/outro e da (s) construção
(construções) alternativa (s) das memórias coletivas, das lembranças dos povos indígenas e
negros que se mantiveram/salvaguardaram como parte de seu ser, de sua existência e de sua
resistência (WALSH, 2013).
A Pedagogia Decolonial Antirracista tem seu cerne na Pedagogia Crítica, iniciada nos
anos 1960, do século XX, a partir de Paulo Freire (WALSH, 2013), é uma pedagogia que aponta
para uma educação Decolonial moldada em ideias e ações para um desmonte dos constructos

9
Muitas das vezes, será utilizada nessa escrita a grafia “x” e ou “as/os”, numa demarcação de não definição do
gênero específico da norma culta da gramática portuguesa, a generalização por base masculina. Trata-se de um
posicionamento político e linguístico decolonial para uma escrita.
10
Considero que as lutas de pessoas que vivam sob o domínio do poder de outro grupo (religioso, linguístico,
simbólico, etc.) conseguiram camuflar/ocultar as verdadeiras intenções e aspectos de seu aparato cultural e
exercerem ou manterem, às duras situações, a sua etnicidade. Um bom exemplo para isso é a religião Candomblé
no Brasil, uma resistência de camuflagem religiosa e linguística.
11
Termo cunhado por Simas (2019), com um sentido das especificidades políticas, sociais, culturais etc. que a
Colonialidade inculcou como ideologia eurocentrada do sentido da existência, no território de colonização.
78

de que alguns conhecimentos que são considerados como válidos e outros que não são;
visibilizar saberes outros. É uma Pedagogia da Transgressão (hooks, 2013), pois tem por
objetivo nomear, visibilizar e compreender os problemas estruturais e psicoexistencial (racial,
gênero e classe) que se apresentam, e antes de tudo, busca incessantemente, restaurar a
humanidade daquelxs que a foi negada, através de ações transformadoras de uma determinada
realidade sociopolítica e cultural.
Ao afirmar que existem as brechas, fissuras e rachaduras de/no Pensamento Outro, que
se estabeleçam como um projeto político-social-epistêmico, que expresse e exija uma
Pedagogia Decolonial Antirracista, a partir de propostas e práticas pedagógicas que reafirmem
as resistências e as insurgências dos processos, práticas e condições distintas (WALSH, 2009),
dos saberes silenciados e negados e que são legítimos. Também é uma metodologia essencial e
indispensável para uma prática e um processo sociopolítico produtivo e retroprodutivo,
fundamentada na realidade das pessoas, nas suas subjetividades, nas suas histórias e nas suas
lutas (WALSH, 2014, p. 22).
Então, o ponto nevrálgico dos currículos escolares é o de possibilitar que Pensamentos-
Outros, visibilizem outras epistêmes, além de que questionem quais são os saberes considerados
como válidos e outros como não válidos; desafie à razão universalista da
Modernidade/Colonialidade.
De certo, há a necessidade de que outras epistemes possibilitem a enunciação a partir
vozes, de lugares e de contextos diferentes, pois, nesse sentido, Grosfoguel (2013, p. 459),
salienta que o essencial é o lugar geopolítico e corpo-político do sujeito que fala, e acredita que
as instituições, e nessa escrita, principalmente, a escola, pode abarcar numa educação mais
plural e diversa, possibilitando a legitimidade de/para uma educação decolonial antirracista que
respeite os saberes locais, os saberes dos discentes, dxs docentes e da comunidade. Portanto, o
Pensamento-Outro é fator preponderante de uma educação decolonial, libertadora e
emancipadora como me ensina Paulo Freire (1996).
Proponho o desmonte de uma estrutura ideológica que condicionou uma visão de
mundo baseada na Modernidade/Colonialidade, e assim, discutir epistemes outras, e não
somente aquelas já se condicionaram como verdadeiras.
Cabe a nós, docentes, compreendermos que as tensões e os desafios estão presentes na
disputa de conteúdos e na sua seleção; de um lado os propostos por uma normatização, por uma
homogeneidade de saberes, estéticas e filosofias de vida seculares, que ainda em muitos espaços
escolares, se mantem numa estrutura de via única. Mas de outra, que seja desestabilizadora e,
79

além disso, que traga um olhar diferente dos saberes negados, invisibilizados, silenciados e
considerados como “ilegítimos”.
Por certo, a escola não se constitui somente num local dessa homogeneidade, também
é um local onde se constrói novos paradigmas, de mudanças e de ampliação de novas visões de
mundo. Ela é um espaço de tensão, de disputas entre saberes considerados como legítimos e
saberes descartados.
Então, compreender que o significado da Educação Decolonial Antirracista é
fundamentado em um projeto teórico voltado para o pensamento crítico e transdisciplinar,
fazendo referência às possibilidades de um pensamento crítico a partir dos subalternizados pela
modernidade capitalista e, voltada para uma educação onde se construa uma existência coletiva
do conhecimento, um conhecimento vivido-experimentado, tanto no âmbito individual quanto
no social (OLIVEIRA, 2016).
Certamente, ainda perdura um conhecimento propagado nas instituições escolares
calcado numa visão ideológica eurocentrada-hegemônica, e legitimada por uma Ciência que
tem suas bases estabelecidas no binômio Modernidade/Colonialidade; e, assim, elas possuem
um discurso ideológico e o transmite em seus conteúdos, ideias consideradas como absolutas
ou de certeza inabalável.
Considero que a Educação é um ato político entre educador e educando, e como tal
proposição, o conhecimento é construído e problematizado. É um ato de conscientização crítica
da realidade, em que o ser humano age sobre o mundo, e sobre o outro. Desta forma, o currículo
não está descontextualizado da situação existencial das pessoas envolvidas no ato de conhecer.
Portanto, é primordial que na elaboração de um currículo escolar, estejam envolvidos a/o
docente e a/o discente, e que sejam utilizadas, elaboradas e reelaboradas as experiências
próprias das/os alunas/os na construção do currículo. O currículo é transformador, como o
próprio ser humano que em sua essência se modifica, compartilha os saberes entre os seus, pois
ora se ensina, ora se aprende; e nessa partilha do conhecimento todos se transformam, tal como
deve ser também o currículo.
Na contemporaneidade, desenvolver práticas pedagógicas que dialoguem com um
pensamento crítico, decolonial e antirracista, que possibilite visibilizar positivamente o corpo
negro/negro/transgênero/etc e de seus feitos culturais na História da humanidade, é de
importância fundamental. Quanto mais discutirmos a questão racial, ou outras questões nas
escolas e em outros espaços, mais proporcionaremos a desconstrução das ideias que
massacraram e subalternizaram uma identidade “determinada”, pois o sistema
Modernidade/Colonialidade estabeleceu uma imposição de organização de vida, de formas, de
80

estética, da lógica, da maneira de se manifestar e de pensar a vida, impôs uma organização de


vida; portanto, é urgente nos espaços sociais, e aqui na escola, concretizar uma luta antirracista,
antissexista, antitransfobica, etc.
Decolonizar é trazer outro pensamento frente ao processo de insubordinação do
discurso dominante, é a reapropriação de um discurso hegemônico e tornar a significar e a
reapropriar-se de seu próprio discurso, de sua própria maneira de pensar, de estruturar o espaço,
a linguagem. Novas formas de discursos de conquista emancipatórias e que decolonizar
significa uma análise crítica de imposições culturais estabelecidas como cânones de poder, de
saber e de ser.
Consideramos que a Pedagogia Decolonial Antirracista não está limitada unicamente
às instituições de Educação; ela está além do espaço da transmissão de conhecimento, pois
nesse sentido, são pedagogias transgressoras que existem nas diversas maneiras da relação de
poder, de trocas e de reflexão-ação presentes nas lutas diárias que elas exercem nos movimentos
sociais, nos coletivos de mulheres, de negros, de sem-teto, de sem-terra, etc. Também, são
territórios de pedagogias sociais para as lutas cotidianas (de ação-reflexão e reflexão-ação), e
assim, buscam em sua especificidade da pedagogia, caminhos que levem a uma mudança do
status quo estabelecido como padrão, trajetórias sinuosas, realimentadas e reestabelecidas nas
propostas que esses movimentos desenvolvem.
Pensar na Pedagogia Decolonial Antirracista é pensar numa educação que tem como
objetivo o de educar a si e a/o outra/o, a partir de sua realidade de existência, de seus paradigmas
próprios de existência; que as pessoas se eduquem numa perspectiva da ação de protagonismo,
que tenha uma atitude ativa/participativa/opinativa/propositiva, e parte, principalmente, de sua
existência/experiência, de sua realidade cotidiana, de seu dia-a-dia. Não desconectar de sua
realidade, de sua existência de seu viver coletivamente. Ela parte da dinâmica da subjetividade
da existência, e faz um elo de conhecimento entre o seu viver/existir e a
educação/ação/luta/participação.
Também, existe a necessidade de um diálogo intercultural com o objetivo de fortalecer
as identidades que foram negadas, que historicamente sofreram um processo de submissão e
subalternização, pois esta negação naturalizou a diferença e ocultou a desigualdade social.
Visibilizar as práticas e as manifestações culturais deste grupo é ponto relevante como
constructos de uma nova dinâmica cultural de hibridização e das novas identidades que estão
se constituindo, pois:
81

Educar na perspectiva intercultural implica, portanto, uma clara e objetiva intenção


de promover o diálogo e a troca entre diferentes grupos, cuja identidade cultural e
dos indivíduos que os constituem são abertas e estão em permanente movimento de
construção, decorrente dos intensos processos de hibridização cultural (CANDAU,
2006, p.103).

Assim, a educação intercultural questiona a própria noção de identidade como sendo


algo unificado, fechado e estável; pois, tal como a identidade, a educação intercultural está em
constante mudança e tensão entre o ideal e o real do cotidiano escolar e na construção da
identidade.
Para Candau (2006), existe um arcabouço epistêmico que se baseia na Colonialidade,
e que se reflete constantemente nos currículos escolares e, consequentemente, para a quebra
desses paradigmas é necessário:
1- Desconstruir o universo de preconceitos e discriminações presentes na sociedade
brasileira.
2- Questionar o caráter monocultural e etnocêntrico europeu que estão explicito ou
implicitamente.
3- Articular as políticas públicas e as práticas pedagógicas no reconhecimento e na
valorização da diversidade cultural nacional.
4- Resgatar o processo de construção de nossa identidade nacional, salientando os
vários atores que dela participaram.
5- Promover a interação das experiências sistemáticas com o outro, das diferentes
maneiras de viver e de se expressar no mundo, num constante diálogo com o outro.
6- Promover o empoderamento do outro, que aqui classificamos os atores sociais
que por longos anos estiveram silenciados quanto a sua contribuição na formação da
nação.
7- Reconstruir uma dinâmica educacional que esteja conectada a uma
interculturalidade epistêmica e que não focalize especificamente um determinado
grupo, mas que dialogue com todos os atores do processo de construção da cultura
nacional.
8- Entender as relações culturais como complexas que estão imbricadas com a
relação de poder, e compreender quais relações de poder (social, político e
econômico) estão vinculadas numa subordinação e numa hierarquização racial,
impostas numa sociedade que possui uma estigmatização indelével racial e
historicamente constituída.
82

Os pontos citados acima fecham com a principal ideia da autora, que é a de promover
uma educação antirracista e na construção de um currículo intercultural; onde a escola deverá
fazer não somente estas ações em momento de efemérides, mas em todo o processo da relação
ensino-aprendizagem, que afete na seleção do currículo, na organização social escolar (classe,
raça e gênero), na linguagem (visual e discursiva), na prática pedagógica, no papel do
profissional de educação e, fundamentalmente, na comunidade escolar, no seu desdobramento
para o diálogo com esse outro:

É necessário que experimentemos uma intensa interação com diferentes modos de


viver e expressar-se [...] desenvolver projetos que suponham uma dinâmica
sistemática de diálogos e construção conjunta entre diferentes pessoas e/ou grupos
de diversas procedências sociais, étnicas, religiosas, culturais, etc. [...] Trata-se de
um enfoque global, que deve afetar todos os atores e todas as dimensões do processo
educativo (CANDAU, 2009, p. 10).

O que propomos na prática de uma educação baseada na interculturalidade é um


constante diálogo entre conhecer, reconhecer e respeitar às diferenças culturais e históricas, ou
seja, que a Alteridade se torne um elemento permanente do saber. Que busquemos novas
maneiras de explicitar diferentemente os saberes que foram silenciados e invisibilizados.

A interculturalidade orienta processos que têm por base o reconhecimento do direito


à diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e desigualdade social.
Tenta promover relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos que
pertencem a universos culturais diferentes, trabalhando os conflitos inerentes a esta
realidade (CANDAU, 2009, p.108).

A Interculturalidade e a Pedagogia Decolonial Antirracista não ignoram as relações de


poder presentes nas relações pessoais e interpessoais, mas avança e incorpora outras questões
ligadas, principalmente, nas relações raciais que são importantes para a reflexão e para a
transformação sociocultural, política e econômica da contemporaneidade.

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85

REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DECOLONIAIS

Os tempos de hoje/nos empurram na busca


da ajuda do outro, na/dependência dessa ajuda.
Só podemos ser nós mesmos/mediados pela fala e escrita
do outro, pontes/ que nos levam até
nossas profundezas.
Madalena Freire

Profª Dr. Marcia Guerra


IFRJ
marcia.pereira@ifrj.edu.br

Hyago Thomaz
IFRJ*
hyagohistoria@gmail.com

Daniel Carvalho
IFRJ*
dscarv27@gmail.com

Estimulada pelo lançamento da publicação dessa coletânea, por mais que tentasse
outros caminhos de escrita, retornava à relevância de partilhar o que fazemos juntos. Quer no
programa de especialização em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileira, quer
no grupo de pesquisa, que surge derivado das aproximações e identificações originadas no
Programa, ambos desenvolvidos no campus de São Gonçalo, do Instituto Federal de Ciência e
Tecnologia do Estado do Rio de Janeiro (IFRJ).
Essa localização é relevante. Aos leitores que não conhecem o município, é importante
frisar que São Gonçalo integra a região metropolitana do Rio de Janeiro e possui cerca de um
milhão de habitantes. Até bem recentemente conhecida como cidade-dormitório, o município
continua a apresentar poucas oportunidades de emprego, elevados níveis de violência urbana e
um secular descaso dos poderes públicos face a sua população. A oferta de ensino superior
público é insuficiente e, por derivação, também são muito limitadas as possibilidades de
pesquisa e qualificação acadêmica na própria cidade.
Não obstante os limites (acesso, horários e instalações) que caracterizam o campus no
qual estamos instalados, sua existência catalisa os interesses de jovens estudantes e

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Pós-graduando na Especialização Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras – Lato Sensu,
campus São Gonçalo. Turma de 2019.
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profissionais em busca de novos horizontes para a vida. No caso da nossa pós-graduação, estes
profissionais são professores, em sua maioria. Mas, também assistentes sociais, empregados em
bancos, integrantes de diferentes tipos de organizações e arranjos produtivos locais. Quase
todos vivem em São Gonçalo.
Enfrentam os problemas comuns da cidade e frequentam pontos de encontro onde a
festa, o bate-papo e a música intensificam essa sensação de pertencimento. Dessa vivência
partilhada, estruturalmente periférica, extraem a motivação para fazer do conhecimento uma
alavanca para mudar a realidade que os cerca e que consideram desigual, injusta e racista.
Essa peculiaridade distingue a Pós-graduação e origina o Grupo de Pesquisa que
também nos alimenta. Seus integrantes têm um propósito com o curso e os debates: mudar a
vida coletiva. Esse traço é o que torna tão particular a experiência de ser ali uma das condutoras
do aprendizado.
Ao começar a dar aulas na Pós, há alguns anos, esse aspecto me encantou e me vi
tomada pelo impulso de preparar aulas e atividades que trouxessem para o grupo as discussões
mais atuais da historiografia, os autores mais polêmicos e os experimentos pedagógicos
inovadores no campo das relações étnico-raciais. Frequentemente, minhas turmas eram as
últimas a sair da instituição e ficávamos todos juntos no ponto de ônibus nos protegendo e nos
apoiando em longas esperas. Ao mesmo tempo, os rigores formais da prática acadêmica eram
esperados, e cobrados. Fui constatando, nesse processo, um hiato incômodo entre os debates e
a produção escrita em todos os níveis: trabalhos, artigos e monografias. Os nexos produzidos
no debate, não se refletiam quando precisavam ser comunicados formalmente. A vida, tão
pulsante em outros momentos, se esvaía.
Buscando compreender esse movimento tão complexo e tão avesso às minhas
expectativas, encontrei em Paulo Freire uma trilha de reflexões que julguei pertinente.
Principalmente ao ser alertada pelo autor pernambucano sobre as práticas que nos levam, ainda
que não percebamos, à domesticação da indignação e da rebeldia presentes entre os estudantes.
A prática de produção textual tem, em nossos dias, sido marcada pelo rigor formal. É
imperioso escrever no formato de “artigo científico”, no qual cada reflexão precisa estar
alicerçada remissivamente aos que já pensaram antes de nós. Nos anos iniciais da formação
acadêmica, aí incluída a especialização, muitos de nós acreditamos ser primordial dominar essa
dimensão da linguagem. A tal ponto que poderíamos adaptar a fala de Freire para o cenário da
própria Pós, pensada originalmente para a educação básica:
87

Daí a impossibilidade de vir a tornar-se um professor crítico se, mecanicamente


memorizador, é muito mais um repetidor cadenciado de frases e de ideias inertes do
que um desafiador. O intelectual memorizador, que lê horas a fio, domesticando-se
ao texto, temeroso de arriscar-se, fala de suas leituras quase como se estivesse
recitando-as de memória — não percebe, quando realmente existe, nenhuma relação
entre o que leu e o que vem ocorrendo no seu país, na sua cidade, no seu bairro.
Repete o lido com precisão, mas raramente ensaia algo pessoal. Fala bonito de
dialética, mas pensa mecanicistamente. Pensa errado. É como se os livros todos a
cuja leitura dedica tempo farto nada devessem ter com a realidade de seu mundo. A
realidade com que eles têm que ver é a realidade idealizada de uma escola que vai
virando cada vez mais um dado aí, desconectado do concreto. (FREIRE, 1996, s/p
[kindle])

Tenho claro que precisamos refletir coletiva e constantemente sobre as práticas que
implementamos e, neste diapasão, tenho produzido alterações em nossos encontros. Ao mesmo
tempo em que visamos o ensinar e o aprender o conhecimento já existente, trabalhamos a
produção dos conhecimentos não existentes. Novas maneiras de pensar e de fazer. Cada vez
mais aproximando a sala de aula de uma oficina ou laboratório, onde a reflexão/ação dos
participantes permite que estes articulem conhecimento teórico e vivências concretas, narrando
o processo em seguida. Estamos tateando nesta senda, e as reflexões do Hyago Thomas e do
Daniel Carvalho, alunos e integrantes do grupo de pesquisa, somam-se as minhas neste artigo.
Elas estão organizadas em torno de três eixos principais. A maneira pela qual o
conhecimento da perspectiva decolonial nos fez refletir em muitos momentos sobre nossa
formação anterior como historiadores, e como as universidades e o próprio ensino de história
dos cursos de formação acabam sendo, de diversas maneiras, atravessados por uma perspectiva
eurocêntrica. A partir dessa observação, Hyago e Daniel pensam as maneiras pelas quais o curso
de Especialização em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras do IFRJ os
transformou significativamente como profissionais da educação, engajados na luta por uma
educação antirracista, multicultural e pluriétnica.
Por fim, demonstraremos como os debates e reflexões do curso nos habilitaram a
construir de forma autônoma e a pôr em prática, estratégias pedagógicas decoloniais,
materializadas tanto nas atividades do Movimento de Educação Popular +Nós, quanto na
oficina "África em sala de aula: novos temas, novas linguagens" apresentada na VII Jornada de
Educação e Relações Étnico-raciais do MAR, em 2019.
88

Outras Histórias, Nossas Histórias

Os países da América que compartilharam a experiência de um passado vivido sob a


exploração colonial europeia dividem, também, as ‘sequelas’ deixadas pelos colonizadores.
Escravização de negros africanos e dos povos nativos; trabalho compulsório; conversões
forçadas ao cristianismo; genocídio. A violência do período colonial, no entanto, não se resumiu
aos aspectos econômicos e políticos: ela se materializou também na forma de uma violência
simbólica, na supressão da cultura e do imaginário dos povos subjugados. O europeu,
primeiramente, apropriou-se dos saberes dos povos americanos que poderiam servir a seus
interesses de exploração, como a utilização dos habitantes locais como guias e o uso dos mitos
e cerimônias locais como instrumentos de conversão (SANTOS, 2009). Aproveitaram as
técnicas de mineração e agricultura, que eram bastante difundidas entre os povos africanos e,
em contrapartida, reprimiram outras matrizes de racionalidades, outras formas de razão, outros
projetos civilizatórios, outras cosmovisões, saberes, linguagens, memórias e imaginários
(CRUZ, 2017). Conhecimentos estes que poderiam de alguma forma servir de empecilho a sua
estratégia de exploração. Por último, ainda forçaram os colonizados a inserirem-se no universo
cultural do colonizador, a aprender novos costumes que facilitassem sua dominação, desde
conhecimentos materiais a subjetivos, sobretudo o religioso. Aníbal Quijano, sociólogo
peruano, um importante pesquisador do pensamento decolonial, complementa:
Todo esse acidentado processo implicou no longo prazo uma colonização das
perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos
resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do
universo das relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura.
(QUIJANO, 2005, p. 121).

Ainda segundo Quijano (2005), a categoria “raça” é desenvolvida em paralelo à


exploração da continente americano pelos europeus. Seu propósito foi legitimar as relações de
dominação e a exploração impostas pela conquista, ou seja, tem por alvo naturalizar e justificar
todas as formas de violência e exploração que se dariam daí por diante, já que os “outros”
seriam povos inferiores e, em muitos casos, considerados “subumanos”.
O fim do Colonialismo, com os processos de independência dos países da América
Latina e, posteriormente, do continente asiático e africano, no entanto, não observou um
rompimento definitivo das relações de poder marcadas pela polaridade “metrópole-colônia”. A
colonialidade emerge do colonialismo e apresenta-se de forma duradoura na estrutura dos países
independentes da América e da África. Segundo Vera Candau, pedagoga brasileira
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contemporânea, “apesar do colonialismo tradicional ter chegado ao fim, para os autores do grupo
“Modernidade/Colonialidade” as estruturas subjetivas, os imaginários e a colonização
epistemológica ainda estão fortemente presentes”. (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p.19).
Por meio dos conceitos de colonialidade do saber elaborado por Aníbal Quijano, de
epistemicídio, por Boaventura Santos e de violência epistêmica cunhado por Santiago Castro
Gómez, podemos compreender a dimensão com que a colonialidade invalida outras formas de
produção de conhecimento, que não aquelas produzidas na Europa. Ao mesmo tempo em que
silencia e invalida os “conhecimentos outros”, o europeu afirma suas formas de validação do
conhecimento, suas teorias e paradigmas como “verdades universais”. A geopolítica do
conhecimento consiste, portanto, numa estratégia de constituição da modernidade europeia, que
não pode ser compreendida sem levar em conta as relações coloniais anteriores.
A crítica do grupo Modernidade/Colonialidade, que origina a colonialidade do poder,
do saber e do ser, traz à tona e promove o reconhecimento de epistemologias subalternizadas,
invisibilizadas e invalidadas pela perspectiva eurocêntrica. Tal pensamento inaugura
formalmente a perspectiva que hoje chamamos decolonial, mas já ganha outras vertentes e
adeptos e é, ao nosso ver, uma abordagem histórica que traz à tona as histórias, os saberes outros
que foram silenciados e suprimidos durante tanto tempo, e de forma crucial transformou nossa
atividade como profissionais de educação e pesquisadores

Experiências de Formação

Em um cenário no qual o Presidente da República afirma e propaga que os portugueses


nunca fizeram escravizações na África1, a importância de aprofundarmos os conteúdos de
Histórias e culturas africanas e afro-brasileiras é evidente e fala por si só.
Historicamente, a estrutura escolar brasileira, tanto na produção de conteúdos e
materiais, quanto nas salas de aula, tendeu a abordar a África sob várias imprecisões e
preconceitos, por descaso ou como reflexo de uma sociedade que se constituiu de esforços
negros, mas renegando essa importância. Os conteúdos que envolvem ou centralizam a questão
racial brasileira, a história e a cultura afro-brasileira e africana – ou mesmo assuntos pontuais
sobre geopolítica e quadro natural africanos – sempre são expostos em formas redutivas,
simplistas e/ou imobilistas. Numa guinada propositiva da emancipação negra, a Lei 10.639/03
é assinada em 9 de janeiro de 2003, que delibera sobre a obrigatoriedade do ensino de história

1
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/07/portugueses-nem-pisaram-na-africa-diz-
bolsonaro.shtml. Acesso em 30 ago. 2020.
90

e cultura afro-brasileira e africana nas instituições escolares. Ainda que venhamos de certos
progressos em ações afirmativas, o que se vê são avanços ainda incompletos. Grande parte
desse atraso em se efetivar uma transformação maior no âmbito racial brasileiro vem, inclusive,
do processo educacional brasileiro e de lacunas na formação dos próprios docentes envolvidos
nessa questão. A formação acadêmica de história e disciplinas onde o assunto é mais
determinante, quase sempre segue ainda moldes racistas, redutivos e com pouco empenho em
se envolver na profundidade do tema.
Neste sentido, o curso de Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileira
do IFRJ, tem uma importância pedagógica fundamental e também política: preparar e orientar
os profissionais de educação acerca dos conhecimentos necessários à abordagem da história da
África e da cultura africana e afro-brasileira, na maior parte das vezes ausentes dos currículos
de formação desses professores, e desenvolver competências e habilidades para que estes
profissionais tenham autonomia para a criação de estratégias pedagógicas em prol de uma
educação antirracista, multicultural e pluriétnica.
Para nós, torna-se nítida a importância do curso de Ensino de Histórias e Culturas
Africanas e Afro-brasileiras, oferecido pelo IFRJ, pois ele rompe com a perspectiva
eurocêntrica do conhecimento, que torna válido somente os saberes e as formas de conhecer o
mundo elaborado pelos europeus, e nos dá não só a oportunidade de conhecermos as histórias,
culturas, organizações sociais e cosmovisões dos povos africanos e afro-brasileiros, como
também de ir além, “ouvi-los contar a sua própria história”, a partir de seu prisma. Uma história
que tem a África como ponto de partida e não o pensamento colonial como centro.
Estudamos em Universidades diferentes, mas muito do que experimentamos foi
comum, assim como a forma pela qual a Especialização no IFRJ nos impactou. Optamos por
narrá-las em separado, entretanto. Individualizar a descrição dessas memórias nos pareceu
traduzir melhor as experiências vividas, possibilitando que o leitor aquilate os sentimentos que
as acompanham.

Hyago Thomaz

Estudei História na Universidade Salgado de Oliveira, instituição privada localizada em


São Gonçalo. Curricularmente, na abordagem que nos era oferecida, o estudo do continente
africano na antiguidade só considerava a África, à medida que esta estabelecia contatos com o
mundo europeu, baseados, em grande parte, nos Gregos e Romanos. Neste sentido, a História
91

do Egito ganhava destaque, mas era considerada como algo à parte da África. Os seus conteúdos
estavam incluídos em “História Antiga I” e não nos de História da África.
Em geral, nós nos aproximávamos dos povos africanos, ao passo que estes tinham um
ponto de contato com os europeus, figuras centrais que, não obstante toda a dinâmica
contemporânea da historiografia, ainda conduziam a história do “nosso” mundo. Concluímos o
curso sem lermos um historiador ou intelectual africano sequer, mas dialogamos com
intelectuais europeus como John Thorton e Paul Lovejoy. Não quero, com isso, desconsiderar
o trabalho destes historiadores, mas apontar que não podemos, de forma alguma, estudar a
história da África tendo como referência apenas o olhar do europeu sobre ela, segundo
epistemologias próprias europeias e a partir de problemáticas que eram de interesse basicamente
europeu. Diante desse pressuposto, considero que muito do que vimos na universidade (e a
afirmação também vale para o Daniel), encaixa-se na lógica explicitada por Paulin J.
Hountondji: “por história africana entende-se normalmente o discurso histórico sobre África, e
não necessariamente um discurso histórico proveniente de África ou produzido por africanos”.
(HOUNTONDJI, 2009, p. 121).
Quando decidi pesquisar a Umbanda, como trabalho monográfico, foi difícil encontrar
orientador que, conhecendo o tema, se disponibilizasse a me ajudar com referenciais teóricos e
bibliografia. Pensar a formação da Umbanda no Rio de Janeiro só com base em pensadores que
nunca viram um despacho e preocupavam-se apenas com as relações de classe era uma
dificuldade extra.
O primeiro contato que tivemos com textos de autores africanos e mesmo afro-
brasileiros, foi no curso do IFRJ quando nos foram apresentados Hampaté Bá, Kabengele
Munanga, e Abdias do Nascimento, entre outros. A coleção História Geral da África nos deu a
possibilidade de conhecer a produção de uma história da África de “dentro pra fora”, a partir
do olhar, da visão de mundo e da cultura dos povos africanos. Compreendi que isso é possível
e fundamental.
No IFRJ, também, os debates e as trocas entre os colegas com áreas de formação
diversas, forneceram-nos uma experiência das mais enriquecedoras possível. Com o professor
Ivan Pimentel, por exemplo, tivemos um contato mais aprofundado com o conceito de
decolonialidade, momento que certamente inspirou a todos. As aulas sobre literatura africana e
afro-brasileira, além do debate sobre o cinema africano com a professora Janaína Oliveira,
inscrevem-se na nossa memória afetiva, assim como as aulas da professora Dóris Barros, nas
quais de maneira muito singela, nos conectamos com nossa ancestralidade em uma dinâmica
92

muito emocionante, ao escrevermos pequenos poemas sobre nossa trajetória de vida com
palavras de origem bantu.
Sei que estas experiências, leituras e discussões nos marcaram profundamente como
profissionais da educação, e servirão de norte para a realização de pesquisas e estratégias
pedagógicas futuras, com o fim incessante de contribuir com a construção de uma escola
antirracista.

Daniel Carvalho

Ingressei na universidade no primeiro semestre do ano de 2011, um ano após concluir


o ensino médio. Sem saber os rumos que a minha trajetória iria seguir, me interessei pelo
conceito de "educação popular" logo nos primeiros meses de graduação, numa conversa com
"veteranos" do curso em que eu conseguia acompanhar pouquíssimas partes do que era falado.
Passei boa parte da minha graduação sem conseguir entender a fundo todas as teorias
e conversas que participei dentro e fora das salas de aula. Além das páginas e mais páginas de
inúmeros textos acadêmicos lidos, o que certamente mais me ajudou na compreensão de sujeito
histórico dentro e fora dos muros acadêmicos foi conseguir acompanhar as disputas políticas
dentro do curso e da universidade; fosse na gestão do centro acadêmico, nas panfletagens de
eleições ou nos debates não muito constantes nos conselhos universitários.
O curso de licenciatura plena em História em que me formei é, sem dúvidas, um
programa de excelência de uma universidade que insiste – com excelência – em continuar a
existir (UERJ/FFP). Contudo, conforme já anunciamos anteriormente, são poucos os espaços
institucionais em que a colonialidade não se faz presente. Mesmo desconhecendo o conceito,
sentia-o ao ver apenas uma disciplina de História da África em toda a grade – e que se baseava
em um único livro, em aulas ministradas por um docente nada defensor de medidas de ações
afirmativas (como a Lei 10.639/2003)
Nessas aulas, inclusive, eram constantes as presenças de reducionismos históricos ao
afirmar que "os negros tinham escravos" e, até mesmo, desonestidade acadêmica ao dizer que
negros eram submissos à condição de escravidão. Ideias como essas que soam ainda pior ao
saber que esse tipo de historiografia foi (e provavelmente ainda é) contada a toda uma geração
que atua com pesquisa e licenciatura na área de História.
Durante a minha (longa) graduação, foi no ano de 2017 em que voltei as minhas
prioridades militantes às agendas do +Nós e não mais às pautas universitárias. E, de lá pra cá,
toda a minha vida política e acadêmica tem tido essa bandeira como prioridade. Foi por meio
93

dela que acompanhei os debates iniciais no IFRJ sobre a forma de organização da sociedade,
uma visão artística totalmente nova, a importância da oralidade para a história local africana e
da humanidade, a pensar os conteúdos didáticos sobre a África a partir dela própria (e não sobre
os subvalores constituídos), a importância regional dos contos africanos, a repensar socialmente
após o entendimento e aplicação da semiótica, da utilização de recursos audiovisuais como o
cinema para a construção de identidades e de tantas outras coisas, mas que no fundo sempre
mostraram como as histórias não contadas da África revelam toda essa construção colonial
ainda presente nos dias atuais.
No decorrer da pós, além da oportunidade de todos esses debates, pude vivenciar uma
rede de solidariedade entre colegas de turma e professores. Eram diálogos constantes, afetos,
lanches e cafés da manhã. Diálogos que ultrapassaram os muros do Instituto e nos deram
coragem para produzir, coletivamente, conteúdos didáticos para a sala de aula em evento
ocorrido no Museu de Arte do Rio de Janeiro. E se espalharam por produções pessoais que vão
desde atividades sobre ancestralidade, passam por cultura popular como a capoeira e a inserção
em movimentos sociais de propostas pedagógicas decoloniais, como é o meu caso na construção
do +Nós. Em todas carregamos um pouco desse Nós produzidos nos diálogos.
O texto que inaugura essa distinção historiográfica que citei acima foi A tradição viva,
de Hampatê Bá. Ele que me fez questionar como eu, formado em uma Universidade e em um
curso de História de prestígio, pude ter passado a graduação inteira sem nunca ter lido ou sequer
ou ouvido falar na tradição oral como possibilidade metodológica que os saberes africanos nos
ensinam. Outro marco que serviu como "ponto de partida" nas escritas e na vida social foi a
leitura do capítulo Máscara de Silenciamento, de intelectual portuguesa Grada Kilomba, que a
cada leitura me mostra novas facetas do seu texto.
Se as obras de Grada Kilomba e Hampatê Bá se apresentaram como sementes dessas
ideias que foram se formando durante o ano de 2019, foi na disciplina "Brasil dos africanos e
dos afro-brasileiros" (através da produção do já mencionado trabalho "Outras abordagens,
outras Áfricas") em que o cérebro pareceu virar ao avesso e todos os conteúdos já aprendidos
nos anos acadêmicos passaram a ter um outro significado, uma outra abordagem.
O Hyago lembrou de alguns professores, eu acrescento alguns outros: Márcia Guerra,
com toda sua confiança depositada e estímulo a produzir e pensar academicamente; Ângela
Coutinho e suas incríveis formas de enxergar as semióticas em nosso cotidiano; Omar Nicolau
e sua capacidade de desembaralhar caminhos de estudo; e o Otávio Meloni, que me apresentou
aos contos que preencheram uma lacuna que há muito existia no meu diálogo entre produção
literária e conteúdo histórico.
94

+NÓS E OFICINA África: novas abordagens, novas linguagens

Hyago Thomaz

As discussões realizadas no curso contribuíram de forma significativa para nossa


formação e nos forneceram a autonomia necessária para elaborar estratégias pedagógicas com
o intuito de levar aos nossos alunos cosmovisões e epistemologias outras, presentes em nossa
sociedade, assim submetendo a epistemologia dominante a um constante questionamento.
Um dos resultados deste esforço foi a produção de um material autoral, produzido
pelos alunos da turma com o objetivo de orientar professores do ensino fundamental, de
diversas disciplinas, com propostas de atividades a serem realizadas com os alunos. Material
este que saiu da sala de aula e foi apresentado no Museu de Arte do Rio - MAR, em um evento
intitulado: VII Jornada de Educação e Relações Étnico-raciais do MAR
Entre os diversos trabalhos apresentados no evento, destacamos o "Cine Escritas" e o
"Outras abordagens, outras Áfricas". O Cine escritas é um projeto de oficina de escrita,
elaborado a partir da plataforma digital de filmes Afroflix2 (plataforma que exibe filmes
predominantemente compostos por atores, atrizes e produtores negros).
A atividade se realiza resumidamente da seguinte forma: primeiro, iniciamos a
execução de um dos filmes disponíveis na plataforma. Após este primeiro momento, os
estudantes devem escrever cinco palavras em um papel, representando momentos do filme
marcantes pra eles, ou palavras que expressem o que sentiram ao observar as imagens. Após
verificarmos as palavras mais citadas, realizamos um breve debate em torno delas, o qual servirá
de base para a escrita de uma redação.
A ideia foi justamente contribuir com os profissionais da educação, demonstrando
possíveis caminhos para a produção de materiais que possam abarcar a transversalidade dos
conteúdos de história da África e culturas afro-brasileiras e indígenas, que devem transitar entre
as várias disciplinas escolares, estabelecendo um campo favorável para o debate de questões
étnico-raciais, por uma perspectiva decolonial.

2
http://www.afroflix.com.br/sobre-o-site/. AFROFLIX é uma plataforma que disponibiliza conteúdos
audiovisuais online que possuem pelo menos uma área de atuação técnica/artística assinada por uma pessoa negra.
São filmes, séries, web séries, programas diversos, vlogs e clipes que são produzidos OU escritos OU dirigidos
OU protagonizados por pessoas negras.
95

Daniel

Na produção de material didático no evento do MAR, construímos a apresentação ao


lado de pessoas muito importantes na minha trajetória no curso de pós-graduação. A nossa
temática foi pensar conteúdos didáticos da "África através da África", um desafio que se
mostrou bem mais difícil do que uma primeira leitura da frase pode aparentar. Com base na
BNCC e nas DCNs, documentos normatizadores dos conteúdos por disciplina/série
nacionalmente, selecionamos os conteúdos didáticos pertinentes ao ensino fundamental II de
Geografia e aos nossos objetivos com a atividade. Então elaboramos jogos didáticos, estratégias
para produção de grafites e para a criação de um universo imaginativo no qual entrelaçávamos
os conteúdos curriculares como espaço, território, relevos, vegetações e origens históricas, além
de reforçar aspectos sociais como solidariedade e identidade.
Produzimos, ainda, os jogos africanos "teka-teka" e shisima3, pinturas e um conjunto
de atividades nas quais se afirmava positivamente a África contemporânea. As propostas
tinham a linha pedagógica de interdisciplinaridade, utilização do espaço escolar para além das
salas de aula e inserção em um universo literário em que as características negras também
fossem destacadas. Ao adaptar para a oficina no MAR, que contou com a participação de
educadores, reduzimos a escala do material: o tabuleiro do shisima foi menor, os grafites foram
feitos em folhas tamanho A5 e o universo dos animais fantásticos foi adaptado para super-
heróis. Apesar das adequações, a função formadora da atividade foi cumprida e realizada pelos
professores presentes multiplicamos leituras e práticas, ampliando sua abrangência.
Foi um dia de atividades intensas em que, nas trocas com outros professores, nos foi
possível afirmar que existe uma outra África, além daquela dos negros escravizados e povos
que permanecem enclausurados no passado e na pobreza que a perspectiva eurocentrada insiste
em propagar.

Sobre o Movimento de Educação Popular +Nós

O +Nós é um Movimento de Educação Popular e possui turmas de pré-vestibular


distribuídas entre os municípios de Duque de Caxias, São Gonçalo, Nilópolis, São João de
Meriti e nos bairros de Realengo, Manguinhos, Ilha do Governador, Cidade de Deus, Complexo
do Alemão e Centro do Rio de Janeiro, além de ter também turmas de reforço escolar nas

3
Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2015/11/Apostila-Jogos-infantis-africanos-e-
afro-brasileiros.pdf. Acesso em 24 ago. 2020.
96

cidades de Niterói, Petrópolis e Duque de Caxias. Impulsionado por um coletivo de juventudes


denominado RUA – Juventude Anticapitalista, que emerge no contexto pós-Jornadas de Junho
de 2013. O +Nós parte da constatação de que a desigualdade social, a falta de investimento nas
escolas públicas e os processos seletivos das universidades promovem uma disparidade
gigantesca de oportunidades, dificultando a entrada e a permanência de pessoas mais pobres no
espaço universitário.
As bases teóricas para a criação dessa ferramenta estão tanto na educação popular
teorizada por Paulo Freire quanto na crítica à colonialidade abordada por uma série de importantes
pensadores, como Grada Kilomba.
Em suas diversas obras, Freire parte do reconhecimento da desumanização
consequente da realidade histórica, dizendo que ela não deve ser assumida como vocação, e sim
sendo resultado de uma ordem opressora e injusta que gera violência dos opressores aos ser
menos4. Suas reflexões teóricas destrincham também as formas de opressões no âmbito
educacional, em que formam estudantes sob a lógica de uma educação bancária e anulam, a
todo tempo, o potencial criativo dos discentes. Como proposição de superar essa imposição,
tratando uma educação problematizadora e com uma essência em torno do diálogo, e, no mais
fundamental, a palavra, entendendo-a como capaz de transformar as estruturas sociais, se
aplicada de forma coletiva, Freire propõe a reflexão sobre os temas geradores, apontando que,
se realizados “por meio de uma metodologia conscientizadora, além de nos possibilitar sua
apreensão, insere ou começa a inserir os homens numa forma crítica de pensarem seu mundo”
(FREIRE, 1987, p. 55).
A questão da palavra segue como objeto de estudo nos tempos contemporâneos,
sobretudo a respeito de questões étnico-raciais, tratando sobre memórias negras descendentes
de escravizadas nos países coloniais, como faz Grada Kilomba (2019). A escritora parte da
apresentação e contextualização da máscara do silenciamento, instrumento muito utilizado para
silenciar os indivíduos vindos do continente africano em busca de advertir que essas marcas
psicológicas não ficaram apenas no passado colonial. Sobre essa questão, a autora elucida:

Tal máscara foi uma peça muito concreta, um instrumento real que se tornou parte
do projeto colonial europeu por mais de trezentos anos. Ela era composta por um
pedaço de metal colocado no interior da boca do sujeito Negro, instalado entre a
língua e a mandíbula e fixado por detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno
do queixo e a outra em torno do nariz e da testa. Oficialmente, a máscara era usada
pelos senhores brancos para evitar que africanos/as escravizados/ as comessem cana-
de-açúcar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal função

4
Um dos substantivos utilizados pelo pedagogo para caracterizar os excluídos sociais.
97

era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar tanto
de mudez quanto de tortura. (KILOMBA, 2019, p. 33)

É nesse sentido que a psicóloga portuguesa estabelece as marcas do colonialismo,


mostrando seu simbolismo nas políticas sádicas aplicadas objetivando a domesticação daqueles
corpos. Essa relação de poder com base na questão racial que se estabeleceu, continua Kilomba,
criou traumas não somente naquelas sociedades, mas também nos dias atuais subjugando os
sujeitos negros no mundo branco, revelando o racismo estrutural que se faz presente de
maneiras sórdidas.
A utilização das bases teóricas a respeito da palavra está presente no cotidiano das
atividades do Movimento de Educação Popular +Nós, ora com a preparação de materiais
pedagógicos voltados para as realidades discentes, ora pelas turmas serem, muitas vezes, um
primeiro espaço em que os estudantes se veem como sujeitos sociais.

Juntos outra vez, para concluir que não há teoria decolonial sem prática decolonial

Ao longo dessas reflexões destacamos que a pedagogia decolonial faz parte de um


movimento histórico que visa a ruptura das estruturas coloniais ainda vigentes em nosso
cotidiano. Estruturas que para serem superadas, exigem que consigamos pensar e agir além das
formas e ideias cujo objetivo e a reprodução da própria subalternidade em que nos encontramos.
É preciso que construamos ferramentas que fortaleçam nesse embate e a pedagogia decolonial
desempenha um papel fundamental nesse processo. A pedagoga Nilma Gomes, em evento na
UERJ, analisou o impacto recente da pedagogia decolonial encetada pelo movimento negro
como protagonista e sistematizador de saberes na sociedade, principalmente nesses tempos
difíceis onde há incertezas e riscos à democracia5.
Nilma Gomes nos mostra como o Brasil está sendo refundado pelo movimento negro
e, ao mesmo tempo refundando o movimento negro no século XXI: afirmando suas identidades,
estabelecendo novos padrões de beleza, de sociabilidade, novas maneiras de fazer política e se
fazendo presente em grupos políticos, acadêmicos, culturais e religiosos. Além disso, podemos
contextualizar o protagonismo de sujeitos sociais como as recentes mobilizações dos motoboys,
fazendo valer suas potências em movimentos organizados e, também, em atos isolados de
racismo, recentemente exibidos e recriminados em nível nacional.

5
Importante ressaltar que a conjuntura em que ela contextualiza é a do golpe de estado no país em 2015, cenário
que se agrava ainda mais atualmente, principalmente com os casos de covid19. ver:
https://www.geledes.org.br/por-que-a-covid-19-e-tao-letal-entre-os-negros/. Acesso em 30 ago. 2020
98

Para sistematizar esses – e muitos outros pontos abordados (por ela e por nós) – a
pedagoga reafirma a importância da Lei 10.639/2003 como um marco de reeducação social e
dos movimentos sociais, utilizando o conceito de proposta pedagógica como unificadora e
propulsora desses inúmeros movimentos decoloniais que vêm se organizando.
A união desses elementos discutidos ao longo do texto está na apresentação de
propostas pedagógicas decoloniais utilizadas nas pautas do Movimento de Educação Popular
+Nós, por exemplo, que podem ser melhor entendidas e aplicadas após o ingresso no curso de
especialização em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras. Ao longo de sua
trajetória, o +Nós sempre se esforçou para organizar debates horizontais em sala de aula e nas
lutas sociais contra as políticas que atacam as classes populares.
Ao afirmar que o movimento negro atua como "sistematizador de saberes", podemos
ter, como exemplo, a atividade "Somos Sementes", ocorrida na UERJ em 2018, quando
levamos mais de 400 estudantes de todas as nossas unidades até então para um evento coletivo,
fraternal e que foi o lançamento de nossa cartilha que incentiva e informa sobre as demandas e
importâncias de se abrir uma turma de pré-vestibular popular. Essa fonte de saberes se amplia
e inspira ainda mais ao ter, como pano de fundo, a homenagem à Marielle Franco, que inclusive
muito colaborou em nossas trincheiras e tantas outras.
Os conteúdos compartilhados e aprendidos no curso de pós-graduação também
ajudaram a pensar, organizar melhor as didáticas e os desafios educacionais. Além da oficina
realizada no MAR em 2019, também reforçamos as atividades políticas e pedagógicas do +Nós.
Seguimos colhendo frutos dessas sementes plantadas nos marcos da educação popular e da
pedagogia decolonial, apontando que o caminho pode ser difícil, mas ele segue sendo um só:
construindo lado a lado alternativas que tornem o mundo um lugar mais fácil de se viver.
Mas ao refazermos nossas trajetórias, pensando em seus entrecruzamentos e desvios,
vemos o chão que temos pela frente. Começamos esse artigo com o relato da professora Marcia
Guerra, no qual ela nos conta das mudanças que colocou em prática buscando resguardar o
nosso pensamento da domesticação acadêmica. O racismo não é apenas um objeto de estudo, o
racismo é uma prática hedionda e cabe a nós contribuir para a sua erradicação. E o faremos com
luta, o faremos com raiva. Mesclando nossas experiências com a teoria, fecundando e criticando
ambas todo o tempo. Pois, precisamos nos recriar a cada momento, perceber não só o que
somos, mas como o somos. Somos outros, diversos. Estamos criando outras bases para pensar
a nós mesmos, onde não ocupemos e nem reproduzamos o lugar colonial. Tarefa difícil, mas
sem a qual não poderemos ser nós mesmos.
99

Referências

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100
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102
103

O SIGNIFICADO DE RAÇA DENTRO DA COLONIALIDADE DO SER


E DO SABER

Luiz Rafael Gomes


UFRRJ*
lrafaelgomes@hotmail.com

Iniciaremos nossa discussão buscando decifrar alguns aspectos que levam a construção
dos significados, dentro da colonialidade moderna ocidental. Para tanto termos como base
teórica decolonial e antirracista para elaboração do pensamento crítico a partir dos
subalternizados pela lógica eurocêntrica. Construindo um projeto político e teórico voltado
reconstrução do pensamento científico a partir dos saberes e perspectivas secularmente
invisibilizados.
Teremos como base principal desse artigo os estudos do sociólogo jamaicano,
especialista em estudos culturais, Stuart Hall (2010), que nos demonstra alguns caminhos para
um entendimento sobre a construção dos significados, e importância da linguística e do
significado das palavras nas relações cotidianas estabelecidas no tecido social e suas
repercussões. Seguimos pela pista dos significados para compreender como a ideia de raça
nasce com a imposição da modernidade colonial europeia e como tal conceito é articulado pela
colonialidade do saber e do poder. Nessa etapa contaremos como principais contribuições os
trabalhos de Munanga (2003), Quijano (2005), Mignolo (2005), Maldonado-Torres (2007).
Dessa maneira, partimos de alguns questionamentos para endossar nossa análise:
Como uma ideia se propaga a ponto de se tornar uma unanimidade dentro de um grupo social?
Esse movimento é neutro e igualitário? Busca representar a diversidade presente nesse grupo?
A quem serve esses significados? Quais atores sociais detêm de fato o controle sobre a
construção dos significados de uma sociedade? Essas são algumas questões que
desenvolveremos ao longo do nosso trabalho. Julgamos importante entendermos como os
significados são construídos dentro de uma cultura.
Através de seu estudo, Hall (2010) nos oferece algumas pistas de como os significados
são construídos dentro das culturas. Uma primeira explicação vem do campo da linguística,
através do linguista e filósofo suíço Ferdinand de Saussure. Em seu argumento a diferença é

*
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(PPGGEO-UFRRJ).
104

fundamental para a produção do significado, garantindo sua existência: “Saussure argumentó


que sabemos lo que significa negro no porque haya alguna esencia de ‘negritud’ sino porque
podemos contrastarla con su opuesto —blanco—. El significado, afirma Saussure, es
relacional.” (HALL, 2010, p. 419). A relação de diferença estabelecida culturalmente entre
preto e branco, é o que garante ambos seus significados dentro do sistema de significados de
uma determinada cultura.
Sabemos quando algo é doce não só pelas sensações que nos causa ao paladar, mas
também porque podemos assinalar sua diferença se comparada, ou melhor, se relacionada com
outros gostos. O sabor doce deve seu significado não só a construção cultural que o define como
doce, mas também, as condições relacionais que propiciam sua existência. O doce só o é, por
ser: não salgado, não amargo, não azedo. A relação binária que marca e diferencia, evidencia a
existência de dois polos contrastados.
No âmbito das relações raciais cotidianas os significados se refazem todo momento,
como exemplo a própria condição de ser negro em uma sociedade extremamente estratificada
e desigual como a nossa, tem suas variáveis dentro da perspectiva de branqueamento e
assimilação dos sujeitos antes excluídos. A ideia de que a posição social pode romper com as
condições estabelecidas pela valorização do fenótipo dos indivíduos mostra um campo de
disputa na construção dos significados, evidenciando assim as regras do jogo jogado.
Entretanto, essas relações não se produzem de forma neutra ou simplesmente
associativa. Já que entendemos, assim como Hall (2010), que as oposições binárias têm uma
função reducionista e simplificadora dentro dos discursos. Servindo, muitas vezes, à
invisibilização de atores e fatos de resistência. Produzindo uma não existência de todos os
outros aspectos que não foram levados em conta na produção desses significados. Sintetizando
e convergindo todas as distinções e versões para dentro de uma estruturação lógica estritamente
rígida por comportar apenas duas partes.
Um exemplo que podemos usar é o da palavra índio. Usada de forma equivocada e
indiscriminada pelo colonizador que, ao chegar à América imaginando ter aportado na Índia.
Chamou então seus habitantes de índios. Esse termo largamente difundido e usado até os dias
atuais, e serve bem ao projeto colonial – vigente – por diluir e invisibilizar a grande diversidade
étnica e cultural existente nas terras ocupadas.
No decorrer da ocupação, o equívoco geográfico foi desfeito, e logo a existência do
Índio foi associada a um estado primitivo. Enquanto o branco europeu, seu oposto, é associado
à civilização é por sua vez dotado de razão, consciente de seus fatos sociais e
reprodutor/impositor de sua civilização, vista como completa e referência única para toda a
105

humanidade. Dessa maneira, como nos mostra Hall, praticamente nenhuma oposição binária é
neutra:

Un polo es usualmente el dominante, el que incluye al otro dentro de su


campo de operaciones. Siempre existe una relación de poder entre los polos
de una oposición binaria. Debemos realmente escribir, blanco/negro,
hombres/mujeres, masculino/femenino, clase alta/clase baja,
británico/extranjero para capturar esta dimensión de poder en el discurso.
(HALL, 2010, p. 420).

O polo dominante faz uso de sua imposição geradora, e inclui o Outro em suas
operações discursivas. Estabelecendo uma constante relação de poder dentro do jogo de
oposições binárias. Quando o colonizador europeu chega ao Novo Mundo e subjuga os povos
existentes sob um mesmo termo, ele impõe a essas populações o estabelecimento de um padrão
específico de relação de poder, produzindo e hegemonizando discursos eurocêntricos
impregnados de intencionalidades.
Partindo da escola russa de linguística, Hall nos mostra que o principal argumento para
a produção de significados: “es que necesitamos la ‘diferencia’ porque sólo podemos construir
significado a través del dialogo con el ‘Outro’.” (HALL, 2010, p. 420). O significado não estaria
só na relação binária, ele também é construído a partir do diálogo com o outro. Não se apresenta
no discurso do interlocutor e sim no processo de troca estabelecido pelo diálogo.
Sendo dialógica a produção do significado, ele pertence aos interlocutores pela
metade. Quando uma das partes se apropria da palavra, e dá a ela suas intenções próprias torna-
se dono de seu significado, torna-se significador do termo. Os significados estão dessa forma,
em permanente disputa. Não são termos consagrados e cristalizados passados a toda uma
cultura, como heranças das gerações passadas, verdades inabaláveis e eternas. Os significados
estão em constante disputa, dentro do diálogo entre o “eu” e o “outro”. 1 “Outro” que passa a
ganhar protagonismo dentro do processo de construção do significado, por seu caráter
fundamental.
Mas, estando o significado em constante disputa, entre os interlocutores e receptores
dos discursos, as partes nunca carregaram um significado pleno, pois esse jamais será fixado,

1
Segundo Hall (2010), para a escola de lingüística russa: “[…] o significado, argumentó Bajtín, se establece
através del dialogo, es fundamentalmente dialógico. Todo lo que decimos y queremos decir se modifica por la
interacción y el interjuego con otra persona. El significado se origina a través de la ‘diferencia’ entre los
participantes en cualquier diálogo. En síntesis, el ‘Outro’ es esencial para el significado.” (HALL, 2010, p. 420).
106

segundo a teoria de Mikhail Bakhtin (1981). Uma vez que a disputa pela sua produção mantenha
o significado em constantes manuseios e modificações, este nunca existirá em sua plenitude.
Nesse campo e disputa a inferiorização das distintas representações de cada significado é uma
forma de criar uma hierarquia e invisibilizá-lo, logo o objetivo da disputa é a desconstrução dos
significados dominantes impostos pelo colonizador.
Ser negro africano ou branco europeu não poderia ser definido pelos negros
incivilizáveis, nem pelos brancos civilizados, já que a significância dos termos se encontra em
disputa entre os atores, numa construção social de constante diálogo entre, por exemplo, os
“eus” (brancos) e seus “outros” (negros). Entretanto no jogo das disputas os civilizados
impuseram seus significados para todos os “outros” subjugados.
Segundo Hall (2010) a cultura depende de condições para gerar seus significados, nos
fala que para a antropóloga Mary Douglas:

[…] la cultura depende de dar significado a las cosas asignándolas a


diferentes posiciones dentro de un sistema de clasificación. La
marcación de la ‘diferencia’ es así la base de ese orden simbólico que
llamamos cultura. (DOUGLAS, 1966, apud HALL, 2010, p. 421).

Na antropologia a diferença ganha o papel de protagonista, pela importância de sua


marcação para a construção dos significados componentes dos sistemas de classificação,
ordenados simbolicamente dentro das culturas. Ao marcar as diferenças entre as culturas o
colonizador significa a sua própria cultura.
O fechamento em si, de diversas culturas ao longo da história restabeleceu suas
fronteiras simbólicas destilando seus sistemas de classificações. A península europeia durante
alguns séculos permaneceu fechada em torno de sua própria cultura, a igreja católica e seus
mecanismos de controle social, influenciaram bastante nesse processo de reprodução social.
Após esse período, grandes transformações nos sistemas de significados ocorreram,
com o renascimento, o iluminismo, e as reformas religiosas e revoluções sociais, culturais,
científicas e políticas. A imposição da religião católica aos povos africanos durante o período
das “descobertas”, para além de ser uma tentativa de salvar aqueles indivíduos sem alma, tinha
como propósito implícito a imposição dos signos culturais do colonizador europeu pelos novos
territórios.
Dessa maneira esperavam não só a assimilação, por parte das populações indígenas,
mas também a destruição de suas culturas. Quando já não restasse nenhum traço dos
significados de suas “culturas selvagens”, ou ao menos estivessem completamente submissos,
107

essas populações seriam assimiladas ao projeto colonial como servos. Fórmula do etnocídio
largamente utilizado, inclusive ainda hoje, pelo neocolonialismo capitalista.
O próprio termo descoberta busca ocultar muitas violências, físicas, epistêmicas,
subjetivas, simbólicas. Da imposição da descoberta, a construção do descoberto. Na descoberta
temos o descobridor e o descoberto. Quem descobre situa quem é descoberto em uma relação
de poder e saber, ao se autodeclarar superior e detentor do saber legitimado. Como nos aponta
Santos (2004):

É a desigualdade de poder e de saber que transforma a reciprocidade da descoberta


na apropriação do descoberto. Toda a descoberta tem, assim, algo de imperial, uma
ação de controle e de submissão. […] O que há de específico na dimensão conceitual
da descoberta imperial é a ideia da inferioridade do outro. A descoberta não se limita
a assentar nessa inferioridade, legitima-a e aprofunda-a. O que é descoberto está
longe, abaixo e nas margens, e essa “localização” é a chave para justificar as relações
entre o descobridor e o descoberto após a descoberta. (SANTOS, 2004, p. 1).

Descobrir é impor ao outro uma inferioridade constituída falsamente como natural,


que passa pela impotência de não poder sobrepor-se ao descobridor. O descoberto, aqui, é
passivo da descoberta que o leva como um vento leva a folha. Localizando-o em uma posição
inferior ao descobridor, a margem, tendo sua existência vista como uma afronta à racionalidade
eurocêntrica. Produzindo a inferioridade a partir do racismo e da desqualificação do Outro,
transformando-o em recurso explorável e descartável.
As relações econômicas e políticas com o novo mundo estabeleceram no sistema
classificatório europeu um novo conjunto de categorias de referência. Uma nova gama de
oposições binárias, servindo a legitimação e imposição de suas prerrogativas socioculturais e
seus interesses econômicos. Formatando de diversas formas a ordem simbólica de sua cultura,
a partir de novas/antigas marcações de diferenças: negros e brancos, primitivo e moderno,
incivilizado e civilizado, razão moderna e instinto irracional, escravizados e senhores. Nessa
organização de significados as oposições binárias estabelecem a diferença, permitindo suas
intencionais classificações e agrupamentos hierarquizados. Já que os significados são
agrupados a partir de suas diferenciações.
Marcar a diferença2 entre culturas nos leva, dentro do campo simbólico a estigmatizar
a outra em detrimento da cultura favorecida dentro do contexto de disputa na construção do

2
Para Hall (2010): “las fronteras simbólicas son centrales a toda cultura. Marcar la ‘diferencia’ nos conduce,
simbólicamente, a cerrar rangos, apoyar la cultura y estigmatizar y a expulsar cualquier cosa que se defina como
impura, anormal. Sin embargo, paradójicamente, también hace poderosa la idiferencia” y extrañamente atractiva
precisamente porque es prohibida, tabú, amenazante para el orden cultural.” (HALL 2010, p. 422).
108

significado, no jogo ambíguo de sua demarcação. Marcar a diferença entre culturas é significá-
las. E consequentemente a desvalorizar qualquer outra forma que fuja aos padrões aceitos como
normalidade.
Entretanto esse sistema classificatório não é permanente. Nem tudo pode ser
classificado, pertencer a uma categoria delimitada. Existem os que não podem se encaixar
pondo a prova todo o sistema de significados, desestabilizando a cultura pondo em xeque sua
veracidade absoluta, e toda a estrutura da lógica do poder hegemônico que impõe essas
verdades. Ao ultrapassar a fronteira simbólica, o novo elemento rompe com os códigos e regras
que mantinham os significados puros em suas categorias. Tornando-se um risco ao sistema de
classificação dessa cultura.
Sendo o diferente um tabu, dentro do sistema de significados que indica a normalidade,
este se torna uma ameaça. Por ser estranho ao contexto é, por consequência, atraente aos que o
compõe. Portanto, perigoso para a estabilidade e “pureza” das categorias presentes no sistema
de classificação. Pondo em risco significados estabelecidos, e responsáveis pela manutenção da
dominação simbólica presente no discurso do opressor.
Quando uma mulher negra põe-se a falar em uma roda de desconhecidos brancos, em
um espaço de poder ou fato cotidiano, de certo modo causa desconforto a seus interlocutores,
uma vez que tal atitude possa ser interpretada como fora da normalidade do padrão de
significados de nossa cultura racista. Onde está cristalizado a imagem da norma
comportamental e posição social nas quais somos inseridos pela lógica hegemônica.
Esse acontecimento citado acima pode causar estranheza a quem finge não viver em
uma sociedade racialmente estratificada, onde mesmo as diferenças de classe são atravessadas
pela diferenciação racial. O racismo é uma importante ferramenta das elites para o controle dos
mais pobres de forma geral, incluindo não negros, entretanto o estigma racial é latente e sua
reprodução institucional.
Mas como se forjou o conceito de raça e a que serve sua aplicação? Para responder a
essa pergunta precisamos entender como se constrói o significado de raça na colonialidade do
saber e do poder. Para Quijano (2005) e Maldonado-Torres (2007) a colonialidade é um padrão
de poder global que atua no imaginário dos indivíduos ocidentalizando-os, uma estrutura de
dominação que subjugou todos os territórios e povos assolados pelo colonialismo, que segundo
os autores, caracteriza-se por um controle político e econômico, onde uma nação se apodera
dos recursos de outra, seu território, um saque.
A colonialidade é a face subjetiva que perdura nas mentes colonizadas pela episteme
eurocêntrica, ao contrário do colonialismo clássico que já não é mais admitido pela agora
109

modernidade colonial. A colonialidade para existir exerce a colonialidade do saber onde todas
as outras matrizes de produção do conhecimento são subalternizadas, aniquiladas, e
invisibilizadas, apenas os saberes ocidentais de perspectiva eurocentrada são levados em
consideração. Este tema é caro a nós uma vez que “A identidade étnica e racial é, desde o
começo, uma questão de saber e poder”. (SILVA, 2010, p. 100).
As primeiras ciências a usarem o conceito de raça foram a Zoologia e a Botânica. Nelas
o conceito é uma importante ferramenta de classificação e tipificação das diversas espécies
existentes. Como todo conceito, o de raça não está isento da variabilidade intrínseca às diversas
inserções em variadas escalas temporais e espaciais. Durante o período medieval em parte da
península europeia o conceito de raça teve o sentido de ascendência comum. Como uma
descendência comum, mobilizadora e unificadora de indivíduos que partilham mesmas
culturas, características físicas, interesses sociais.
Um exemplo é o dos nobres franceses dos séculos XVI e XVII que utilizavam o
conceito de raça para diferenciar-se do restante da população e justificar sua dominação sobre
os gauleses, pois se identificavam como descendentes dos germanos, vistos como superiores.
A dominação justificava-se também por supostas características herdadas pelos nobres
(francos) dos germanos, homens de sangue puro, considerados de raça superior, o que lhes
garantia como nos mostra Munanga (2003):

[…] habilidades especiais e aptidões naturais para dirigir, administrar e dominar os


gauleses, que segundo pensavam, podiam até ser escravizados. Percebe-se como o
conceito de raças “puras” foi transportado da Botânica e da Zoologia para legitimar
as relações de dominação e de sujeição entre classes sociais (Nobreza e Plebe), sem
que houvessem diferenças morfo-biologicas notáveis entre os indivíduos
pertencentes a ambas as classes.". (MUNANGA, 2003, p. 1).

Mesmo sem grandes diferenças morfológicas entre gauleses e francos o discurso de


dominação dos indivíduos “puros” pertencentes às elites, hierarquizou os dois povos, entre
dominados e dominadores. A posição superior ocupada pela elite nessa hierarquia social tem
seu mérito e justificativa nas aptidões específicas de administrar e dirigir, herdadas de seus
antepassados de sangue puro.
Após a descoberta do Novo Mundo a estreita noção de raça humana foi estendida. Com
o acréscimo das “novas espécies”, a ameríndia, a negra, e a asiática. A explicação da existência
dessas outras raças tão diferentes das até então conhecidas foi feita pela Igreja Católica.
Detentora do monopólio da razão no século XVII na península Ibérica, onde os reinos cristãos
110

discutiam a possível humanidade das populações encontradas na África, e na América. Através


de argumentos baseados na mitologia cristã e nas instituições científicas do período, foi
desconsiderada a humanidade dos habitantes dos novos continentes. Logo esses foram
considerados mercadorias, guardadas as devidas hierarquias de controle social impostas pelos
autoconsiderados superiores.
Durante o século seguinte, cientistas e filósofos contestaram o monopólio da razão e
da explicação que detinha a Igreja Católica, as explicações teológicas sobre a história da
humanidade não são mais aceitas. Buscam-se explicações mais elucidativas e racionais,
intelectuais iluministas utilizam o conceito de raça para reabrir o debate sobre a origem dos
novos povos. A explicação acerca dos “outros”, recém-inseridos nas lógicas de reprodução e
expansão dos interesses econômicos dos reinos aos quais pertenciam, carecia de
intencionalidades que justificassem o projeto de dominação.
Por consequência desse esforço intelectual os “outros” foram reconhecidos como
pertencentes a uma espécie animalesca, diferenciada, inferior, primitiva, em vias de
desenvolvimento, inacabada. Neste momento, através do discurso eurocentrado, o conceito de
raça rompe as fronteiras temporais ao estabelecer a não contemporaneidade entre os europeus
e os novos povos africanos e ameríndios. Postos, no século XVI em diferentes estágios de
desenvolvimento dentro da escala eurocêntrica de valores culturais e desenvolvimento social,
cultural, e civilizatório humano.
Com o desenvolvimento dos conceitos iluministas a respeito da filosofia e sociologia
a cor da pele passou a ser a principal referência da diferenciação entre as chamadas raças
humanas. A operação de classificação social dominante foi baseada, dessa forma, no grau de
concentração de melanina presente em cada indivíduo. Aspecto geneticamente irrelevante, uma
vez que a diferença entre as concentrações de melanina tem condições de origens geográficas,
climáticas e ambientais acumuladas historicamente. A melanina tem a função de proteger a pele
da incidência dos raios solares. A diferença na concentração de melanina na pele não é um dado
de relevância classificatória, nesse sentido Munanga (2003) nos diz que:

É justamente o degrau dessa concentração que define a cor da pele, dos olhos e do
cabelo. A chamada raça branca tem menos concentração de melanina, o que define
a sua cor branca, cabelos e olhos mais claros que a negra que concentra mais
melanina e por isso tem pele, cabelos e olhos mais escuros e a amarela numa posição
intermediária que define a sua cor de pele que por aproximação é dita amarela. Ora,
a cor da pele resultante do grau de concentração da melanina, substância que
possuímos todos, é um critério relativamente artificial. (MUNANGA, 2003, p. 3).
111

A cor da pele é um critério de diferenciação artificial, pois não ganha relevância na


distinção de humanos. Uma vez que grupos humanos reproduziram historicamente sua
existência em regiões do planeta onde há maior incidência da radiação solar, tendem a
apresentar maior concentração de melanina, pelo simples processo evolutivo associado às
condições ambientais nas quais decorrem o processo de adaptação. Da mesma forma,
indivíduos que reproduziram historicamente sua condição de existência em ambientes onde a
incidência dos raios solares é menor, apresentam menor concentração de melanina.
O fator melanina/cor da pele não se relaciona de forma alguma, aspectos morais ou
culturais dos seres humanos. Somos, portanto, geneticamente ligados por uma espécie/raça
única, a raça humana. Espacialmente distribuídos por todo o planeta, racial e socialmente
divididos de acordo com a reprodução dos interesses das elites dominantes.
Aceito ou não, o conceito de raça continua a ser utilizado como justificativa para a
hierarquização das sociedades onde os de pele clara impõem-se como superiores aos de pele
mais escura. Relacionando características biológicas, físicas e morfológicas com aspectos
morais e culturais, para estabelecer o grau de humanidade/civilidade de indivíduos e grupos
sociais. Entretanto, Munanga (2003) nos mostra que:

Combinando todos esses desencontros com os progressos realizados na própria


ciência biológica (genética humana, biologia molecular, bioquímica), os estudiosos
desse campo de conhecimento chegaram à conclusão de que a raça não é uma
realidade biológica, mas sim apenas um conceito aliás cientificamente inoperante
para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raças estancas. Ou seja,
biológica e cientificamente, as raças não existem. (MUNANGA, 2003, p. 4).

Com a constituição das colônias nas Américas e a consequente expansão do


capitalismo colonial europeu, através da reestruturação das relações de trabalho historicamente
estabelecidas, é imposto um novo padrão de poder mundial. A ideia de raça torna-se uma das
bases fundamentais desse sistema de dominação, uma vez que, é a partir das construções
mentais da ideia de raça é feita a hierarquização social das populações em todo o mundo, onde
o racismo é posto a serviço da reprodução capitalista pela primeira vez.
Essa subjetivação coletiva da estratificação racial de toda a humanidade repercute
também o aspecto hierárquico fundador dessa ideia, onde uns homens são mais de
desenvolvidos que outros. A reprodução desse discurso supremacista produz a interiorização
da inferioridade por parte dos grupos que não pertencem ao paradigma estabelecido de
humanidade moderna.
112

A América torna-se assim, o primeiro lugar no mundo onde o novo padrão de poder é
imposto, constituindo-se como um novo espaço/tempo (QUIJANO, 2005) dentro da
historiografia humana. Onde as relações sociais são ditadas pelos padrões eurocêntricos de
civilidade, e de desenvolvimento cultural e social. Esse movimento constituiu-se através de dois
eixos fundamentais: a elaboração de uma nova ideia de raça e a reorganização de antigas
relações de trabalho.
O primeiro eixo a raça, é fundamental para a marcação da diferença, e consequente
hierarquização entre colonizados e colonizadores. Baseando-se em pressupostos biológicos e
positivistas é justificada uma situação natural de dominação, em que uns indivíduos se
consideram superiores em relação a outros. A ideia de raça é fundamental e constitutiva das
relações de poder necessárias ao projeto colonial. Com base na ideia eurocêntrica de raça todas
as populações do mundo foram classificadas, hierarquizadas e inseridas num padrão de poder
global.
O segundo eixo constituinte é a reorganização e junção das diversas formas de controle
social do trabalho3, estabelecidas historicamente, em função de um novo tipo de mercantilismo,
germinador de um mercado mundial capitalista. Em especial a instituição da escravidão do índio
cativo das Américas, e mais largamente do negro da África. Condição fundamental para o
desenvolvimento das produções agrícolas, e da extração de metais e bens florestais, principais
atividades econômicas existentes nas colônias, trabalhos feitos exclusivamente pelas ditas raças
inferiores.
A ideia moderna de raça surge junto à invasão da América. Essa teoria legitimou-se,
também, na comparação dos diferentes fenótipos, agora presentes na América, “identidades
sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras.” (QUIJANO, 2005,
p. 107). As diferenças entre os fenótipos foram referenciadas pelos colonizadores pela diferença
entre a cor da pele dos que constituíam as sociedades coloniais. A cor das pessoas passou a
representar o principal fundamento de categorização racial e hierarquização social nas
sociedades coloniais.
Antes da chegada dos europeus, os povos das Américas tinham suas próprias
denominações e identidades, assim como os da África. A ideia de raça imposta serve também,

3
Segundo Quijano, “Na medida em que aquela estrutura de controle do trabalho, de recursos e de produtos
consistia na articulação conjunta de todas as respectivas formas historicamente conhecidas, estabelecia-se, pela
primeira vez na história conhecida, um padrão global de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos.
E enquanto se constituía em torno de e em função do capital, seu carter de conjunto também se estabelecia com
característica capitalista. Desse modo, estabelecia-se uma nova, original e singular estrutura de relações de
produção na experiência histórica do mundo: o capitalismo mundial.” (QUIJANO, 2005, p. 108).
113

para desmantelar e invisibilizar as diversidades étnicas e culturais já existentes. As identidades,


antes limitadas a servirem como referências geográficas da origem dos indivíduos, passam a
representar um fundamento principal de hierarquização4 social, estabelecendo relações raciais
de dominação. Dividindo as diferentes raças em seus distintos papéis, dentro das relações
sociais estabelecidas pelo padrão racial de dominação.
A colonização e o saque das Américas e da África propiciaram o contato dos europeus
com uma grande diversidade de povos, ainda desconhecidos por eles. Os mais sofisticados,
aliados, ou temidos inimigos, tiveram seus nomes propagados pela história contada pelo
colonizador, enquanto muitos foram desconsiderados e excluídos dessa mesma história. Mesmo
os presentes na história oficial tiveram suas identidades, culturas, geografias e historicidades
invisibilizadas, reduzidas, estigmatizados, transformadas de sua densa diversidade em uma
única nomeação colonial, eram agora somente índios.
As novas identidades raciais não foram fenômenos exclusivos das Américas. Na
também assim denominada África os povos, submetidos ou não à escravidão, tiveram seus
corpos marcados com uma nova identidade generalizadora, agora todos eram apenas negros,
invisibilizando os milhares povos e línguas faladas em todo o continente africano.5
Em trezentos anos todas as identidades de dois continentes inteiros, que juntos somam
uma extensão territorial mais de sete vezes a da península europeia, foram sintetizadas em duas
únicas identidades coloniais: negro e índio. Nesses três séculos iniciais de expansão do padrão
de domínio econômico e social capitalista, duas novas identidades raciais foram acrescentadas
ao imaginário da humanidade, para legitimar as relações de poder necessárias e impostas pelo
projeto colonial. O negro e o índio passam a figurar na recente história moderna. Ou, dentro da
história do padrão de dominação moderno colonial.
Além de lhes serem negados suas geografias, identidades e historicidades, o sistema
cognitivo de dominação ideológica colonial reservou para essas populações um lugar particular
dentro do projeto de construção de uma “cultura humana moderna”. Em uma categoria
diferente, claro. Já que os colonizados eram raças inferiores por natureza, primitivos, diferente
dos europeus, agentes do projeto. Uma vez que para o mito fundador da ideia eurocêntrica de

4
Para Quijano, a hierarquização das populações de todo o mundo ocorreu “na medida em que as relações sociais
que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares
e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se
impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação
social básica da população.” (QUIJANO, 2005, p. 107).
5
A diversidade da África pode ser verificada através da observação do mapa dos grupos etnicolinguísticos do
continente publicado em 1996, publicado no Library of Congress Geography and Map Division e disponível na
Divisão de Geografia e Cartografia da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos com o número de identificação
digital: g8201e.ct001294.
114

modernidade, as populações humanas figuram em uma escala evolutiva linear, partindo de um


estado de natureza plena. E, ao longo de seu desenvolvimento no curso civilizatório alcançam
seu limite, ao se aproximarem da civilização europeia. Referência de última etapa da escala de
evolução social.
Esse ponto de vista evolutivo dentro da expansão colonial propagou a perspectiva
eurocêntrica de conhecimento, e tornou a nova ideia de raça uma ferramenta para naturalização
das relações de dominação. O conceito de raça tornou-se:

o primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis,


lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no
modo básico de classificação social universal da população mundial. (QUIJANO,
2005, p. 108).

O sentido hoje atribuído à visão eurocêntrica de mundo deve muito a posição central
que os reinos europeus adquiriram em relação aos atores econômicos antagônicos durante o
período pré-colonial. Com o início da expropriação das sociedades aborígenes e produção de
bens agrícolas nas Américas, foi possível estabelecer o comércio ultramarino, estruturador do
círculo comercial do Atlântico mundializando o capitalismo em sua fase inicial.
Através da superexploração das colônias nas Américas, onde com a mão de obra
escravizada foi propiciado o aumento da produção de gêneros como açúcar e algodão, capaz de
atender à demanda do mercado interno europeu – produtor de manufaturas –, e produzindo
também, excedentes a serem comercializados com outras regiões do globo, como a costa da
África onde eram trocados por mais seres humanos escravizados. A expropriação das colônias
e exploração do tráfico de seres humanos garantiram condições econômicas e políticas capazes
de produzir as transformações sociais, culturais e cientificas ocorridas nesse período na
península europeia
Essa mundialização de aspectos econômicos se constituiu ideologicamente a partir de
antigos e novos mitos, acerca do progresso, da humanidade, e principalmente sobre o Outro.
Como os referenciais de desenvolvimento civilizatórios eurocentrados e a ideia de raça. Que,
como vimos, é um mecanismo de classificação social utilizado até hoje para hierarquizar todos
os habitantes da Terra.
Conhecimentos e imaginários sistematizados na Europa ocidental entre os séculos
XVII, XVIII, foram, ao logo do tempo, tornando-se comuns em todo o mundo ocidental,
vitimado pela dominação econômica e cultural da burguesia europeia. Expandindo, em mesmo
lastro, seu capital, seus mercados, sua cultura, o domínio político/territorial através das sedes
115

coloniais e, por consequência, da captura de sociedades e culturas, dos imaginários, seus


sistemas de sentidos compartilhados. O eurocentrismo é assim imposto ao mundo como a única
razão aceita.
A secularização do projeto colonial, e do pensamento burguês europeu, juntamente ao
consequente aprimoramento de suas experiências sociais associadas às condições matérias
propiciadas pela invasão e saque das Américas e África, e da escravização dos povos africanos,
possibilitaram a constituição de um sistema econômico mundial pautado nos valores
eurocêntricos de sociedade e cultura. Em outras palavras, um sistema capitalista de dominação
mundial, moderno, branco, patriarcal eurocêntrico, racista, colonial.

Referências

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116
117

LAICIDADE DA ESCOLA PÚBLICA BRASILEIRA:


DESAFIOS PARA A CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO

Maria Eugênia Brêttas Veiga


Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias*
brettasveiga@bol.com.br

Introdução

A laicidade não é um gládio, mas um escudo.


Caroline Fourest

A laicidade é uma resposta ao desafio da pluralidade religiosa no mundo moderno e


contemporâneo. Politicamente, ela emerge das guerras religiosas e da necessidade de encontrar
um modo de convívio possível e pacífico, descartadas as alternativas da opressão de minorias
religiosas e da eliminação da diversidade religiosa. (CANOTILHO, 2003).
Uma análise crítica sobre o conceito e os efeitos sociais da concepção de laico na
sociedade é de grande importância para o mundo atual e, especialmente, para o Brasil. Na atual
conjuntura política brasileira, na medida em que determinados grupos sociais estão ameaçados
em seus direitos por razões morais e religiosas, faz-se necessário fomentar o debate sobre o
Estado Laico e seus efeitos sociais.
De acordo com Observatório da Laicidade na Educação:

Esses movimentos [em defesa do Estado Laico] crescem à medida que oportunistas
ocupantes de cargos públicos utilizam os mandatos recebidos nas eleições para
beneficiar instituições religiosas – as de suas respectivas crenças ou de suas
convenientes bases de apoio eleitoral. (OLÉ, 2019)

A construção laicidade é um movimento social heterogêneo, pois enfrenta antigas e


novas interferências em cada momento da história; e em cada país do globo terrestre, diferentes
demandas são definidas como prioritárias de acordo com a necessidade. Nessa perspectiva,
Lafer (2007) afirma que “o modo de pensar laico está na raiz do princípio da tolerância, base
da liberdade de crença e da liberdade de opinião e de pensamento”.
Por conseguinte, um Estado que se constrói cotidianamente com base na diversidade
e na liberdade avançará na direção de garantir as liberdades que serão respeitadas no espaço

*
Doutoranda em Educação.
118

público, garantindo um leque mais amplo de escolhas na vida privada de cada cidadão ou
cidadã. Ao mesmo tempo que o Estado Laico impõe que o Estado não sofra interferência dos
grupos religiosos, igualmente garante que os grupos religiosos não sofram interferência do
Estado.
O Estado Laico, ao promover esse espaço público de respeito à dignidade humana, que
reconhece cada ser humano como autônomo para tomar decisões sobre sua vida, permite um
espaço de justiça pelo reconhecimento atribuído a todos como sendo de igual valor em face da
cidadania; na busca da compatibilização dos direitos no cotidiano, propicia um espaço de
construção da paz social, não controle imposto pelo arbítrio, mas reconhecimento de cada
cidadão e de cada cidadã como capazes de viver o respeito aos outros. Como expresso por
Norberto Bobbio (1992), “se o outro deve chegar à verdade deve fazê-lo por convicção íntima
e não por imposição”.
A grande contribuição da laicidade para a democracia está em acolher a diversidade,
por promover o diálogo em busca do respeito a cada um e a todos. Justiça e pacificação,
portanto, não pelo controle de consciências, mas pelo diálogo de posicionamentos diversos e a
luta pela dignidade humana.
Segundo Lafer, o que identifica preliminarmente a existência de um “espírito laico”
que caracteriza a modernidade:

[...] é um modo de pensar que confia o destino da esfera secular dos homens à razão
crítica e ao debate e não aos impulsos da fé e às asserções de verdades reveladas.
Isto não significa desconsiderar o valor e a relevância de uma fé autêntica, mas
atribui à livre consciência do indivíduo a adesão, ou não, a uma religião. (LAFER,
2007)

Uma reflexão sobre os pressupostos das liberdades laicas implica dialogar com os mais
variados segmentos da sociedade, investir na possibilidade de uma solução para pluralidade de
convicções e práticas religiosas sem a interferência do Estado, pois, para preservar a
Democracia, é imprescindível reconhecer as diferenças, superar a intolerância e promover a
diversidade, à luz dos Direitos Humanos, a fim de assegurar que cada cidadão e cidadã possa
viver segundo sua crença, sem receio de ser perseguido ou perseguida por seu pertencimento
religioso.
É preciso ressaltar que o debate sobre a laicidade deve caminhar lado a lado com outros
direitos, como os da mulher, os do negro, os do índio, pois é essencial assegurar o Estado
Democrático de Direitos.
119

O fortalecimento da democracia ocorre, então, porque podem e devem conviver, no


espaço público, visões diferentes entre si de um mesmo fenômeno, sem que o Estado tenha que
escolher alguma delas, se o fizesse, estaria a privilegiar um cidadão ou grupo em detrimento de
outros, cabendo, portanto, ao Estado apenas garantir o exercício da liberdade, cumprindo cada
cidadão os equivalentes deveres. Entende-se, assim, que os Estados não nascem laicos, eles se
constroem laicos.
É importante esclarecer que é grande a luta dos grupos laicos e laicistas para assegurar
o reconhecimento dos direitos humanos – sociais, religiosos, étnicos, sexuais, reprodutivos –
em uma sociedade na qual o pluralismo religioso hierárquico foi construído historicamente.
Ari Pedro Oro esclarece que a

[...] Igreja Católica figura no seu topo vindo as demais, por assim dizer, a reboque e,
de outro lado, ao poder político que a Igreja católica foi reunindo ao longo dos
séculos, atuando como um importante ator na arena pública e no jogo político,
reduzindo, desta forma, os efeitos laicizantes da separação jurídica Igreja-Estado.
(ORO, 2011, p. 235)

Na antiguidade, todos os Estados baseavam sua legitimidade no sagrado, de modo que


o rei ou o imperador eram considerados um deus, o seu filho ou o seu enviado. Depois, ele
reinava por direito divino, como se um simples mortal tivesse recebido o poder político de Deus.
Por isso, o poder do governante era considerado sagrado, tirando daí sua legitimidade, que se
espraiava para todo o Estado. Com essa base religiosa, o Estado privilegiava uma religião em
detrimento de outras. Exemplos desses privilégios são abundantes, no passado e no presente,
nos regimes políticos monárquicos e nos republicanos.
Um Estado torna-se laico quando prescinde da religião para sua legitimidade, que
passa a se basear exclusivamente na soberania popular. Ou seja, quando o Estado se abstém da
religião como elemento de coesão social e para a unidade nacional, ele torna-se um Estado
Laico, mesmo sem dizer isso na Constituição.
O primeiro resultado da laicidade é que o Estado se torna imparcial em matéria de
religião, seja nos conflitos ou nas alianças entre as organizações religiosas, seja na atuação dos
não crentes. O Estado Laico respeita, então, todas as crenças religiosas, desde que não atentem
contra a ordem pública, assim como respeita a não crença religiosa. Ele não apoia nem dificulta
a difusão das ideias religiosas nem das ideias contrárias à religião.
O segundo resultado da laicidade do Estado é que a moral coletiva, particularmente a
que é sancionada pelas leis, deixa de ter caráter sagrado, isto é, deixa de ser tutelada pela
religião, passando a ser definida no âmbito da soberania popular. Isso quer dizer que as leis,
120

inclusive as que têm implicações éticas ou morais, são elaboradas com a participação de todos
– dos crentes e dos não crentes, enquanto cidadãos.
O Estado Laico não pode admitir imposições de instituições religiosas, para que tal ou
qual lei seja aprovada ou vetada, nem que alguma política pública seja mudada por causa dos
valores religiosos. Todavia, ao mesmo tempo, o Estado Laico não pode desconhecer que os
religiosos de todas as crenças têm o direito de influenciar a ordem política, fazendo valer, tanto
quanto os não crentes, sua própria versão sobre o que é melhor para toda a sociedade.
Segundo o Observatório da Laicidade da Educação (2019), pode-se afirmar que um
Estado laico não é confessional, concordatário ou ateu. Não é confessional, pois este privilegia
uma certa religião ou um grupo de religiões, transferindo para elas recursos financeiros
públicos, direta ou indiretamente, sancionando legalmente suas diretrizes morais e introduzindo
nos currículos escolares das escolas públicas sua(s) doutrina(s). O Estado confessional pode ter
uma religião exclusiva, proibindo as demais, ou privilegiar uma(s) e tolerar outras. O Estado
brasileiro era confessional durante o Império, assim como são confessionais Estados
contemporâneos, como a Grã-Bretanha, o Irã, Israel e a Dinamarca, que possuem religiões
privilegiadas, respectivamente o Cristianismo de Confissão Anglicana, o Islamismo, o
Judaísmo e o Cristianismo de Confissão Luterana.
O Estado Laico tampouco é um Estado concordatário. Concordata é um termo próprio
do universo simbólico da Igreja Católica, a única organização religiosa que tem um Estado para
representá-la, o Vaticano. Concordatas são, então, tratados firmados entre os governos de dois
Estados, o Vaticano e um outro.
Se a concordata com a Itália não foi a primeira, constitui a matriz das que a Igreja
Católica estabelece com diferentes governos, com esse nome ou com outro. O governo fascista
italiano firmou com o Vaticano uma concordata (Tratado de Latrão), pelo qual o primeiro
reconheceu certas propriedades eclesiásticas, introduziu o catecismo católico no currículo das
escolas públicas e símbolos religiosos católicos nas escolas e outros estabelecimentos públicos,
além de outros privilégios econômicos e políticos.
O Vaticano, por sua vez, reconheceu o Estado italiano (que se constituiu a partir da
unificação estatal, em 1870, que incorporou os Estados pontifícios). Mesmo depois da queda
do fascismo, o Estado italiano vem renovando a concordata com o Vaticano. Tampouco o
Estado Laico também não é ateu, porque este proclama que toda e qualquer religião é alienada
e alienante, em termos sociais e individuais.
121

Para combater a alienação, o Estado ateu combate, então, toda e qualquer religião. Se
não consegue proibi-la completamente, dificulta ao máximo suas práticas, inibe sua difusão e
desenvolve contínua e sistemática propaganda antirreligiosa.
A União Soviética e os Estados socialistas constituídos no leste europeu, assim como
a República Popular da China, estabeleceram regimes ateus, com base na concepção de que
toda e qualquer religião seria fonte de alienação do povo. Houve diferentes graus na efetivação
da política ateísta, mais radical na Alemanha Oriental do que na Polônia, por exemplo, onde
todo o aparato formativo da Igreja Católica manteve-se em operação, acabando por se tornar
um dos principais elementos de dissolução do “socialismo real”.

Estado Laico, leigo ou secular

Os termos acima têm origem religiosa cristã, todos eles significam “o outro”. Há quem
entenda que o termo laico provém de leigo, portanto, diretamente do universo religioso; outros,
no entanto, entendem que laico provém de laikós, do grego antigo, que significa povo. Com
uma origem ou com outra, o termo laico foi redefinido de modo a designar um atributo do
Estado.
A laicidade expressa, então, a emersão das várias faces dos direitos civis como o
habeas corpus, a liberdade de consciência e de expressão, de ir e vir e de culto. A laicidade
implica também a não convivência do Estado com uma confissão oficial e não interferência
entre os domínios de cada qual. Como disse Cavour, primeiro-ministro do reino da Itália em
1861: Igreja livre em um Estado livre.
O significado contemporâneo de laico é imparcialidade do Estado diante das crenças
religiosas ou contrárias a elas. Assim, o “braço secular” do poder político era o governo
propriamente dito. Por exemplo, depois de alguém ser condenado pela Inquisição, era “entregue
ao braço secular”, que o executava. Por outro lado, leigo era a designação de alguém que, dentro
da Igreja, não tinha a preparação para as funções clericais, nem feito os votos que levavam ao
sacerdócio.
Já o termo secularização vem de século que, por sua vez, tem sua etimologia no latim
de saeculus, saeculi, cujo significado refere-se a um período de cem anos. O século era
sinônimo do mundo material, é este tempo em que se vive o cotidiano com todas as suas
características, em oposição ao mundo religioso, fora do mundo terreno, ocupando espaços
próprios. Dessa forma, o termo secular deu origem ao termo secularização, expressão que
designa o processo de mudança pelo qual a sociedade deixa de ter instituições legitimadas pelo
122

sagrado, baseadas no ritualismo e na tradição, tornando-se cada vez mais profana (ou secular),
baseada na individualidade, na racionalidade e na especificidade.
Um tanto diferente da laicidade, campo próprio do Estado, a secularização, é inerente
à sociedade civil. Embora não idênticas, laicidade e secularização podem convergir entre si. A
aplicação da categoria de secularização e sua associação com o processo de mudança religiosa,
de ruptura com as práticas e com as crenças de tipo tradicional abarca um conjunto de religiões
distintas, a saber: catolicismo, pentecostalismo, kardecismo, candomblé, umbanda...
O conceito propriamente dito qualifica e diz respeito, sobretudo, a uma dimensão
específica: “a erosão da religião dominante tradicional” (PIERUCCI; PRANDI, 1987). Um
exemplo de secularização seria o declínio da religião católica no Brasil e suas perdas enquanto
modeladora do desenvolvimento do panorama religioso brasileiro.
Para certos sociólogos, o processo de secularização é mais abrangente do que a
laicização do Estado – o processo de secularização da Sociedade abrangeria o da laicização do
Estado. Para outros, todavia, há uma relativa independência entre esses processos, de modo que
a laicização do Estado pode ir mais longe do que a secularização da sociedade, ou o contrário.
A questão de distinguir ou não ambos os conceitos de laicidade e secularização é
matéria de “disputa teórica legítima”, sobretudo, entre pesquisadores franceses, espanhóis,
portugueses e latino-americanos. Não é o caso, aqui, de optar exclusivamente por um ou outro
lado dessa refrega. De todo modo, cabe reconhecer, de um lado, a delimitação conceitual mais
precisa ou restrita do termo laicidade. De outro, cabe observar que o conceito de secularização,
quando referido especificamente ao processo de secularização do Estado, do ensino, da política,
da esfera jurídica, por exemplo, nada perde em precisão em relação ao de laicidade.
Há países que mantêm estreita relação com uma sociedade religiosa, havendo mesmo
religião de Estado, mas que a sociedade é bastante secularizada, como a Grã-Bretanha e a
Dinamarca. Outros, por sua vez, têm Estado Laico em uma sociedade com instituições
permeadas pelo sagrado, como os Estados Unidos e a Índia. Outros, ainda, ocupam posições
intermediárias e transitivas. Na Argélia e na Turquia, o Estado Laico sofre fortes pressões para
fundir-se com o Islamismo dominante na sociedade e assumir as prescrições do Alcorão, para
o corpo político. No Brasil e na Itália, a secularização da sociedade avança enquanto a laicidade
do Estado está freada.
O caminho da sociedade na construção da laicidade passa no primeiro momento
enaltecendo a figura do soberano, depois acontece a dessacralização do poder, a laicização do
direito, do Estado e a afirmação de direitos civis e elaborar a constituição das leis.
Como afirma Bobbio (1992, p. 61):
123

É com o nascimento do Estado de Direito que ocorre a passagem final do ponto de


vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os
indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No Estado absoluto, os
indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito,
o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos
públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos. (BOBBIO, 1992, p. 61)

Se a laicidade se refere ao contexto político, a secularização é um processo social pelo


qual pessoas, costumes e instituições que estavam sob o domínio do religioso passam para o
domínio da terrenalidade, privilegiando a vontade humana em achar soluções terrenas para os
problemas terrenos. Nela, os indivíduos ou grupos sociais se distanciam da definição dos
valores e das normas religiosas quanto ao ciclo do tempo e quanto a regras e costumes.
Secularização é a presença do racional, do utilitário e da terrenalidade no campo da economia,
da política e dos costumes. Um exemplo interessante é o calendário. Este registro do tempo,
antes religioso, calcado nas datas das festas litúrgicas e comemorações religiosas, agora é um
registro oficial civil, dividido em dias, meses e anos.
A secularização é, pois, um processo que se distancia, na vida social, do sagrado, do
transcendente ou mesmo de um imanente considerado como inviolável ou absoluto. Nesse
sentido, ela revela a perda de hegemonia ou da influência das instituições religiosas sobre o
cotidiano das pessoas, seus hábitos, costumes, opções e sobre as próprias instituições.
A laicidade, então, garante tanto espaços da secularização quanto a expressão da
liberdade de culto. Decorre disto que a laicidade reconhece e garante a mais ampla liberdade de
expressão religiosa, não discrimina os cidadãos por razão de suas crenças ou não crenças, seja
por meio de privilégios, seja mediante vantagens quaisquer. Tal modo de ser converge para uma
postura de neutralidade e de igual distanciamento do Estado ante os cultos e as manifestações
de expressão religiosa e de garantia de liberdade dos cidadãos nesse assunto.
Como nos afiança Zanone:
A relação entre temporal e espiritual, entre norma e fé, não é relação de contraposição
e sim de autonomia recíproca entre dois momentos distintos do pensamento e da
atividade humana. Igualmente a separação entre Estado e Igreja não implica,
necessariamente, um confronto entre os dois poderes. (ZANONE,1986, p. 670)

Um Estado Laico não implica a laicidade da sociedade civil. Esta se caracteriza como
uma esfera autônoma e própria para o exercício, sem interferência do Estado, da liberdade
religiosa e de consciência, tutelada pelas garantias individuais dos direitos humanos.
124

Laicidade à brasileira

O Brasil adotou o regime jurídico da separação entre Igreja e Estado, mas esta forma
jurídica recebeu ao longo da história uma formulação própria, em que, não por acaso, a Igreja
Católica tendeu a receber uma discriminação positiva de parte do Estado enquanto as religiões
tidas como minoritárias tenderam a receber uma discriminação negativa.
A separação Estado e Igreja no Brasil, estabelecida com a República, não pôs fim aos
privilégios católicos nem à discriminação estatal e religiosa às demais crenças. No período
colonial (1500-1822) e imperial (1822-1889), o catolicismo foi a única religião legalmente
aceita, não havendo liberdade religiosa em nosso país. Nesse período, ou seja, durante 400 anos,

[...] o Estado regulou com mão de ferro o campo religioso: estabeleceu o catolicismo
como religião oficial, concedeu-lhe o monopólio religioso, subvencionou-o,
reprimiu as crenças e práticas religiosas de índios e escravos negros e impediu a
entrada das religiões concorrentes, sobretudo a protestante, e seu livre exercício país.
(MARIANO, 2001, p. 127-128).

Em 1891, a primeira constituição republicana oficializou a separação entre Igreja e


Estado, pondo fim ao monopólio católico, secularizando os aparelhos estatais, o casamento e
os cemitérios, e garantindo, pela primeira vez, a liberdade religiosa para todos os cultos.
Para a promulgação republicana da separação Igreja-Estado, grupos ou correntes de
pensamento foram importantes: os republicanos, os positivistas e os protestantes, além dos
maçons que, geralmente, estavam presentes nos três grupos mencionados (GIUMBELLI,
2006).
O processo de laicização brasileiro ocorreu, até certo ponto, de forma amistosa. Por
isso, Mainwaring lembra que, se comparada com outros países, a laicização do Brasil foi uma
das menos conflituosas (MAINWARING, 1989).
A “colaboração recíproca” entre Igreja Católica e Estado vigorou até a Constituição
de 1967, quando foi introduzida uma cláusula restritiva somente para questões de interesse
público nos setores educacional, assistencial e hospitalar.
A partir da Constituição de 1988, proliferaram-se e intensificaram-se os debates e
rivalidades igualmente entre igrejas cristãs e setores laicos e laicistas da sociedade brasileira
sobre questões relativas à liberdade religiosa, ao lugar e ao papel da religião, ao ensino religioso,
à ocupação religiosa do espaço.
A separação republicana entre Igreja e Estado jamais resultou na privatização do
religioso no Brasil, nem muito menos na exclusão mútua entre religião e política. Ademais,
125

diferentemente dos casos francês, uruguaio e mexicano, nunca desencadeou um movimento


anticlerical radical.
Da mesma forma, a laicidade não constitui propriamente um valor ou princípio nuclear
da República brasileira, que deve ser defendido e preservado a todo custo, nem a sociedade
brasileira é secularizada como a francesa e a inglesa, por exemplo, o que, por si só, constitui
séria limitação às pretensões mais ambiciosas de laicistas de todos os quadrantes. Se a laicidade
não é um valor nuclear da República brasileira, ainda assim constitui um valor e uma referência
importantes a que os poderes públicos e suas autoridades costumeira e necessariamente se
remetem para tratar de diferentes casos envolvendo debates e conflitos opondo grupos
religiosos e laicos.
Em um Estado Laico, ninguém pode ser obrigado a seguir crenças ou acatar proibições
religiosas em que não acredita. Outrossim, todos devem ter o direito de adotar crenças e
proibições que preferir em sua vida particular, sem a interferência do Estado. Por isso, um
Estado Laico não se posiciona a favor nem contra alguma religião. Tampouco a favor ou contra
os não religiosos.
Catroga (2006) analisa como a laicidade pode se modular de modos diferentes nas
comunidades políticas, trazendo o caso da França que proíbe o uso de símbolos religiosos nas
escolas. Todavia, uma laicidade à brasileira parece dar um passe livre ao cristianismo
permitindo que escolas, tribunais e outras repartições públicas ostentem símbolos e rituais
cristãos. A baixa problematização dessa situação deve-se muito ao fato de a imensa maioria dos
sujeitos estarem ligados e/ou afetivamente ao cristianismo. A despeito dos valores que
certamente se pode reconhecer nas religiões, existem argumentos e discursos defendidos pelos
religiosos que são extremamente danosos às pessoas identificadas pelas sexualidades
divergentes das normas de gênero.
No Brasil, houve um agravamento dos atos de intolerância; e o debate público, a
discussão acadêmica sobre laicidade são indispensáveis no atual panorama político.
Segundo Luiz Antônio Cunha:

O crescimento dos atos discriminatórios de caráter religioso, principalmente de


evangélicos pentecostais contra os afro-brasileiros, despertou a iniciativa de pessoas
e de instituições para produzirem textos de referência a fim de coibir tais atos.
(CUNHA, 2018 p. 264)

Dessa forma, foram elaborados três textos comentados, também denominados de


cartilhas. Um elaborado em 2009, e outros dois, em 2017. A equipe da vereadora Marielle
126

Franco, em colaboração com o Observatório da Laicidade na Educação, elaborou a Cartilha da


Laicidade: o que é? (OLÉ, 2019).
Cunha afirma que:

[...] foi a única das três que assumiu o Estado Laico como ponto de partida, não como
elemento coadjuvante. Redigida em linguagem acessível, pois destinada a
distribuição ampla, o texto começa por mostrar o que o Estado Laico não é: Estado
ateu, católico, evangélico, espírita, do candomblé, da umbanda, nem budista. O
Estado Laico é aquele que garante que possamos ser tudo isso ou nada disso.
(CUNHA, 2018, p. 267)

A luta contra a intolerância religiosa e o racismo proposta pelo documento pode não
atingir seu objetivo. Assim, Cunha declara ainda em seu texto que:

O assassinato da vereadora Marielle Franco, em março de 2018, não permite prever


a sobrevivência do texto, ao contrário dos outros dois focalizados mais acima, que
contaram com patrocínio de órgãos estatais e de organizações não governamentais.
(CUNHA, 2018, p. 267)

Torres esclarece que, no Brasil, a heteronormatividade é orientada por um discurso


religioso cristianizado devido a uma laicidade precária, algo que tem efeitos danosos nas
políticas públicas.
Ademais, Torres complementa:

A laicidade à brasileira, marcada pela precariedade e incapacidade de uma análise


crítica da heteronormatividade que rege até mesmo as diretivas das decisões de
governantes, a exemplo da suspensão do Kit Anti-homofobia. (TORRES, 2012 p.
114)

A atuação dos parlamentares ligados à igreja católica e às igrejas evangélicas propõem


alteração de projetos de leis visando à contenção do processo de secularização da cultura e da
laicidade do Estado, no Congresso Nacional, desde a Assembleia Constituinte de 1987-1988.
Esses representantes têm se mobilizado também contra a aprovação de direitos civis das
minorias sexuais, como a criminalização da homofobia, a união civil de casais homossexuais e
o direito de adoção de crianças por parte das famílias homoparentais.
Em relação à questão do ensino religioso nas escolas públicas brasileiras, a situação é
ambígua: entre o confessionalismo e a laicidade. Segundo as leis brasileiras, o Estado é Laico
e, portanto, não se tem uma religião oficial, cada cidadão e cidadã têm garantidos a liberdade
individual e de culto, sem espaço para a intolerância, Todavia, a Lei 9.475, de 22 de julho de
1997, determinou, no seu art. 210, § 1º, que “o ensino religioso, de matrícula facultativa,
127

constituirá disciplina de matrícula dos horários normais das escolas públicas de Ensino
Fundamental” (BRASIL, 1997).
É naturalizada, no interior das escolas públicas, a presença de práticas religiosas
cristãs; várias pesquisas, teses e dissertações acadêmicas comprovam isso. Ao observar os
dados da Avaliação Nacional do Rendimento Escolar do Ensino Fundamental, promovida pelo
MEC – Prova Brasil – que é aplicada a cada dois anos testes de conhecimento aos alunos dos
quintos e nonos anos das escolas públicas, constata-se que o ensino religioso é obrigatório.

Os questionários respondidos pelos diretores de todo o país, em 2013, mostraram


que 70% das escolas públicas de Ensino Fundamental ministravam aulas dessa
disciplina. Dentre as que o faziam, 54% confessaram exigir presença obrigatória; e
75% não ofereciam atividades para os alunos que não queriam assistir a essas aulas.
(CUNHA, 2018, p. 197).

Outrossim, há presença da religião nas escolas públicas. Ela pode ser observada nos
nomes das escolas, nas imagens de santos e santas, nos textos inscritos nos murais, nas
festividades, nas orações puxadas pelos professores antes das aulas e da merenda, e,
particularmente, na disciplina Ensino Religioso.
Igualmente, em escolas privadas conveniadas com as prefeituras, havia missionárias
que conduziam atividades religiosas, inclusive a preparação para a eucaristia. Os valores morais
eram apresentados aos alunos como se fossem intrinsecamente religiosos, não havendo
possibilidade de discussão fora desse campo.
Um dos principais objetivos das políticas para a educação sobre diversidade sexual
apontado nas ações e deliberações mencionadas acima é o de contribuir para amenizar um
fenômeno que marca a sociedade brasileira, sobretudo nas escolas: a homofobia, definida
resumidamente como a rejeição ou aversão a homossexuais e à homossexualidade. Também
nesse sentido, a valorização e o respeito pela livre expressão afetivo-sexual e identidade de
gênero constituem-se benefícios para coletividade.

Considerações finais

O Brasil é um país continental com mais de 200 milhões de habitantes e com as mais
diversas matrizes religiosas e filosóficas. De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE, 2011), há no país seguidores da fé católica, evangélica e
espírita, do candomblé, da umbanda, de outras tradições indígenas e afro-brasileiras, do
judaísmo, islamismo, hinduísmo, budismo, além de agnósticos e ateístas.
128

Percebe-se, no momento atual do processo político social brasileiro, que vivemos hoje
sob a hegemonia do sistema capitalista que provoca uma polarização direita-esquerda, ou seja,
mercado versus justiça social.
A direita, apoiada pela bancada evangélica, mais radical e mais intransigente em
relação ao direito à livre orientação sexual e identidade de gênero, é fortalecida pelo apoio do
agronegócio e por uma frente parlamentar composta por políticos que defendem o armamento
civil, flexibilização de leis relacionadas a armas e contra políticas desarmamentistas.
A esquerda, centralizada na luta por direitos humanos, pelo respeito à diversidade
religiosa, articulada a questão de identidade, mais recentemente, com o aprofundamento das
questões de gênero e sexualidade, prega o direito à livre orientação sexual e identidade de
gênero e o reconhecimento da diversidade sexual e levanta a bandeira do respeito à diferença e
da liberdade religiosa.
Perceba-se que – para desespero de muitos e muitas –, por conta das disputas em torno
de poderes econômicos, sociais, políticos, étnicos, religiosos e as questões que envolvem gênero
e sexualidade, o crescimento de comportamentos conservadores, agressivos preconceituosos
que têm estimulado os movimentos sociais a reivindicarem, seja por leis específicas, seja por
inclusão das expressões “orientação sexual” e “identidade de gênero”, a explicitação dessas
temáticas em termos de legislação e políticas públicas visando à proteção da população LGBTI
– a sigla oficial – e à criação de instrumentos de combate à intolerância, nesse caso, chamada
“homofobia”.
Essa dicotomia tem acirrado os ânimos dos dois lados. Essas contradições são
manipuladas de tal forma a comprometer a laicidade do Estado, a efetivação dos direitos
constitucionais e humanos, pondo em risco a própria Democracia.
Grande é o nosso desafio: construir uma sociedade mais justa, igualitária, amorosa,
feliz, sustentável, administrando as políticas laicas, em que se busca o diálogo entre o trabalho
da academia e dos movimentos sociais, na perspectiva de construir relações cidadãs e
igualitárias no campo dos direitos humanos e dos direitos sexuais. A escola pública e laica pode
ser o alicerce e o escudo para assegurar os direitos fundamentais de igualdade e da liberdade
para uma Nação tão plural como o Brasil.
129

Referências

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BRASIL. Lei nº 9.475, de 22 de julho de 1997.Dá nova redação ao art. 33 da Lei nº 9.394, de
20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário
Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, p. 15824, 23jul. 1997.

CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra:


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CATROGA, F. As Teorias da Secularização; A semântica da secularização; A Secularização


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D’AVILA-LEVY, C. M.; CUNHA, L. A. (Orgs.) Embates em torno do Estado laico. São Paulo:
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130

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Candido Procopio Ferreira de Camargo. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo: n.17, p. 29-35,
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TORRES, M. A. A emergência de professoras travestis e transexuais na escola:


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(Doutorado) – Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
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ZANONE, V. Laicismo. In: BOBBIO, N.; Matteucci, N.; PASQUINO, G. Dicionário de


política. Brasília: UNB, p. 670-674, 1986.
131

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E RACISMO RELIGIOSO:


POR UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

Geiziane Angélica de Souza Costa


UERJ*
geizianecosta@hotmail.com

Introdução

Através do racismo epistêmico, a colonialidade se refletiu em uma divisão racial do


trabalho, ocupação de cargos e estratificação social. O racismo epistêmico agiu de modo a
inferiorizar culturas diferentes da europeia, uma vez que para estes, apenas os europeus eram
capazes de produzir conhecimento. Desta forma, a história se perpetuou com uma visão única,
silenciando sujeitos e desconsiderando saberes, culturas e vivências que se encontravam fora
da ordem hegemônica.
A colonialidade do poder, dita por Quijano (2005), se fez e ainda se faz presente como
forma de dominação religiosa, em que outrora se dava pela conversão de indígenas ou do
batismo forçado de africanos escravizados; hoje, se dá por uma ascensão de uma política
apoiada no neopentecostalismo, utilizando até mesmo como slogan de campanha a frase “Deus
acima de todos” em um país constitucionalmente laico, posicionando mais uma vez a
hegemonia do deus judaico-cristão, frente a outras religiosidades e até mesmo a ausência delas.
Este posicionamento proselitista governamental abre espaço para ratificar práticas de
intolerância religiosa, mas especialmente de racismo religioso, em que estes não constituem
sinônimos, e colocam em xeque a laicidade constitucional estabelecida em 1988.
Como intolerância religiosa compreende-se qualquer tipo de desrespeito a diversidade
religiosa ou de crenças, constituindo crime enquadrado no código penal vigente como “ultraje
a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo”, ratificado no artigo 208 como ato
de “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou
perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de
culto religioso”. Tal crime é punido com pena de detenção, de um mês a um ano, ou multa.
Ressalta-se ainda em parágrafo único que “se há emprego de violência, a pena é aumentada de
um terço, sem prejuízo da correspondente à violência” (BRASIL, 1940).

*
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação - Processos Formativos e Desigualdades Sociais.
132

O racismo religioso é um crime que vai além da intolerância religiosa, pois ao se


debruçar às religiões de matrizes africanas, está pautado no racismo estrutural, em um rechaço
ao modo de vida negro, e como tal, deve ser um fenômeno compreendido à parte.

Intolerância religiosa X racismo religioso: estatísticas

A intolerância religiosa pode ser utilizada para se referir à discriminação e preconceito


a praticante das mais variadas crenças. Ressalta-se aqui que a compreensão de preconceito e
discriminação estão pautados no defendido por Almeida (2018), em que o primeiro são
julgamentos que se faz a respeito de certos aspectos da realidade, uma ideia pré-estabelecida a
respeito do comportamento de pessoas por conta da raça ou por conta de algum tipo de
característica própria do seu pertencimento social, trabalhando pautado basicamente com
estereótipos. O segundo é compreendido como diretamente relacionado às relações de poder.
Segundo ele, não existe discriminação que não venha conectada as relações de poder.
Entretanto, o termo intolerância religiosa se torna insuficiente para compreender os casos
relacionados às religiões de matrizes africanas. Segundo Nascimento:

Não é apenas, ou exclusivamente, o caráter religioso que é recusado efetivamente


nos ataques aos templos e pessoas vivenciadoras dessas tradições. É exatamente esse
modo de vida negro, mesmo quando vivenciado por pessoas não negras, que se ataca;
ou seja, mesmo pessoas brancas que vivenciem as tradições de matrizes africanas
podem ser vítimas de um racismo originalmente destinado a elementos negros dessas
tradições. Não se apenas trata de uma intolerância no sentido de uma recusa a tolerar
a diferença marcada pela inferioridade; ou discordância, como podem pensar
algumas pessoas. O que está em jogo é exatamente um desrespeito em relação a uma
maneira africana de viver, um modo negro de organizar as relações com o mundo,
com a comunidade, com a natureza e com as outras pessoas, com os saberes (JESUS,
2003), aliados a elementos culturais indígenas. (NASCIMENTO, 2017, p.54)

O racismo envolve discriminação e preconceito dentro de um modo sistêmico, assim


reproduzindo a formação fruto de um processo histórico e político em que são atribuídas
vantagens associadas a certos grupos e desvantagens a outros grupos. Para Almeida (2018), o
racismo vai além de atos individuais de racismo, mas também está no que se chama de racismo
institucional e racismo estrutural, ambos relacionados ao processo histórico.
Almeida (2018) defende que não existe racismo que não seja estrutural, porque
depende das estruturas sociais para que a discriminação continue sendo um sistema de poder,
apoiado em mecanismos estatais e ideológicos para reproduzir o imaginário social. Entretanto,
esse sistema só funciona se existir instituições que reproduzam esses comportamentos a fim de
133

naturalizar todo o racismo. Logo, pode-se observar que os crimes que envolvem as religiões
afro-brasileiras vão além da intolerância religiosa, mas são pautados no racismo, por isso o
termo racismo religioso.

É fundamental ressaltar o entrecruzamento das relações entre racismo e práticas de


violência, relacionado aos ataques às “religiões de matrizes africanas”. E isto não é
um detalhe, pois como lembra Lélia González (1983), o racismo é uma espécie de
“neurose cultural”, que se beneficia ao esconder seus sintomas, para – não
aparecendo – fingir que não existe e, com isso, dificultando em muito o seu
enfrentamento. Por isso, combater as práticas violentas contra as “religiões” de
matrizes africanas é, também e, sobretudo, combater a herança colonial do racismo
que, embora tenha muitas maneiras de expressar-se, segue mascarada em nosso país
(FERNANDES, 2017 apud NASCIMENTO, 2017, p. 53).

Em todo o Brasil, registram-se diversos casos de terreiros sendo atacados,


vilipendiados, números que não são equivalentes a ataques a mesquitas, igrejas católicas e
templos budistas, por exemplo. A demonização construída em torno da figura de Orixás e
entidades pode ser vista pelas ruas da cidade em que frases como “Só Jesus expulsa o demônio
das pessoas”, estão constantemente presentes em muros, variando muita das vezes, apenas a
palavra demônio, que é substituída por Exu, Pombagira, ratificando uma superioridade de uma
hegemonia religiosa sobre outra.
A perspectiva colonial pode ser observada também no caso ocorrido em abril de 2014,
na qual o juiz Eugenio Rosa de Araújo, titular da 17ª Vara Federal, questiona a legitimidade
das religiões de matrizes africanas. Para o meritíssimo, os cultos afro-brasileiros não eram
detentores de traços que pudessem caracterizá-los como religião, em virtude da ausência de
fundamentos baseados em textos sagrados, como da Bíblia, por exemplo, e por não se
enquadrarem no monoteísmo, configurariam apenas em seitas religiosas1, considerando
unicamente a tradição ocidental e desconsiderando culturas de tradição oral, traço do que
Munanga (2005) chama de “mentalidade envenenada”.
A alegação foi utilizada como justificativa do magistrado para indeferir um pedido do
Ministério Público Federal que objetivava a remoção, em decorrência do caráter preconceito os
vídeos publicados pela Igreja Universal na internet. A repercussão do caso na mídia seguida das
críticas manifestadas pela sociedade ao despacho do juiz, possibilitou a modificação dos termos da
sua decisão judicial. Entretanto, manteve indeferido o pedido do Ministério Público Federal para

1
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/05/1455758-umbanda-e-candomble-nao-sao-
religioes-diz-juiz-federal.shtml?cmpid=menupe Acesso em 20 de jul. de 2020.
134

a retirada dos vídeos do YouTube, alegando que tais vídeos, ainda que expressem ser de mau
gosto, refletiam no exercício regular da liberdade de expressão2.
Os crimes de intolerância religiosa podem e devem ser denunciados. O atual Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), possui o Disque 100 funcionando
24h por dia, de segunda a domingo, para atendimento de qualquer denúncia a violação dos
direitos, incluindo intolerância religiosa. É assegurado o sigilo e o anonimato nas denúncias
que também podem ser feitas através do site www.disque100.gov.br.
As denúncias coletadas tanto através do telefone quanto por intermédio do site estão
disponíveis para consulta abrangendo os períodos de 2011 ao primeiro semestre do ano de 2019.
Porém, é interessante observar os dados expressos nos gráficos abaixo para uma breve análise.
O primeiro deles, com o número total de denúncias registradas:

Número de denúncias de
intolerância religiosa feitas ao
disque 100
800
759
600
556 537
400 506

354
200
231
15 109 149 5
0
2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

Série 1 Série 2
Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH)

O segundo gráfico consta o número de registros às religiões de matrizes africanas. É


interessante ressaltar as nomenclaturas apresentadas como espírita umbandista e cultura afro,
mas, principalmente, ao grande número de não informados o que constitui uma incógnita ao
mapear as estatísticas desses crimes, como também levanta o questionamento do porquê não
expressar sua identidade religiosa, o que ao contrário de nomes, que poderiam possibilitar sua
identificação, e por isso é garantido o anonimato, expressar a qual grupo religioso pertence não
acarretaria em detectar uma pessoa entre os praticantes de uma crença. Não obstante, o medo
existente coloca a identidade religiosa como desconhecida.

2
Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/05/juiz-federal-volta-atras-e-afirma-que-cultos-
afro-brasileiros-sao-religioes.html Acesso em 21 de jul. de 2020.
135

Ocorrências por categoria


Não Informado Umbanda/Quimbanda/Candomblé
Cultura Afro Espírita Umbandista
Candomblé/Umbanda Umbanda
Candomblé

233
2019 (1º semestre)
26
18
261
1
2018
4
72
47
275
2017
54
52
478
2016
74
69
394
2
2015 1
2
14
37
50
2014
17
13
121
2013
9
15
71
2012
4
5
1
2011

0 100 200 300 400 500 600

É interessante observar que a partir de 2016 o número de denúncias de crimes


religiosos apresentou um declínio. Cabe a pergunta se de fato, está ocorrendo uma diminuição
no número de ocorrências ou se o medo e a coação pela atuação do poder paralelo, por exemplo,
136

estejam interferindo nas denúncias dos crimes que são subnotificados, uma vez que a mídia
jornalística aponta casos que não entraram para as estatísticas.

Descolonizando o olhar religioso

A chegada à América em 1492 é marco do início do período moderno. De acordo com


Lilia Schwarcz em O espetáculo das raças, as grandes navegações proporcionaram mais do que
novas terras, mas o contato com o que até então, eram povos desconhecidos. Sucessivamente a
este momento também se dá como uma resposta da Igreja Católica ao movimento conhecido
como Reforma Protestante, tendo a criação da Companhia de Jesus, por Inácio de Loyola (1491-
1556), uma das medidas da chamada Contrarreforma, pelo Concílio de Trento (1545-1563),
visando expandir a fé cristã ao novo mundo. As ordens religiosas eram responsáveis através de
suas missões catequéticas pela formação de aldeamentos tal como “civilizar” os povos
originários da América. Aos “sem fé, sem lei, sem rei”, eram subjugados, dominados e
escravizados.

A partir do século XVI iniciou-se, portanto, a formação do eurocentrismo ou, como


nomeia Coronil (1996), do ocidentalismo, entendido como o imaginário dominante
do mundo moderno/colonial que permitiu legitimar a dominação e a exploração
imperial. Com base nesse imaginário, o outro (sem religião certa, sem escrita, sem
história, sem desenvolvimento, sem democracia) foi visto como atrasado em relação
à Europa. Sob esse outro é que se exerceu o “mito da modernidade” em que a
civilização moderna se autodescreveu como a mais desenvolvida e superior e, por
isso, com a obrigação moral de desenvolver os primitivos, a despeito da vontade
daqueles que são nomeados como primitivos e atrasados (Dussel, 2005). Esse
imaginário dominante esteve presente nos discursos coloniais e posteriormente na
constituição das humanidades e das ciências sociais. (COSTA& GROSFOGUEL,
2016, p. 17)

Dentro desse contexto colonial é que se coloca a perspectiva decolonial, como prática
de oposição e intervenção, reagindo ao processo europeu nas Américas.

Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de


dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova
identidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do
mundo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com
ela à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais
de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso significou uma
nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de
superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou
ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social universal, pois dele
passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual
137

ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram postos numa situação


natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem
como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no
primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis,
lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no
modo básico de classificação social universal da população mundial. (QUIJANO,
2005, p.107-108)

A religiosidade foi utilizada como forma de dominação e poder. A teoria comtiana dos
três estágios da humanidade (teológico, metafísico e o positivo), agregada ao evolucionismo de
Charles Darwin e de Herbert Spencer, propiciam as visões evolucionistas sobre cultura e
religiosidade, da mesma forma que Tylor buscava uma origem comum das religiões no que
chamou de animismo. Émile Durkheim, igualmente, defende que todos os elementos religiosos
essenciais do pensamento deveriam encontrar-se, em forma germinal, nas religiões ditas
“primitivas” (HERMAMM, 1997). Por essa perspectiva, as religiões praticadas pelos povos
originários da América como também dos vindos de África, eram mais do que compreendidas
como primitivas, mas como ilegítimas, demonizadas, devendo ser abolidas.
No caso especialmente da América portuguesa, em que o processo de escravização de
povos africanos se deu em larga escala, a religião era o elo entre o escravizado e o seu espírito
livre. Através de seus orixás, inquices e voduns, os negros poderiam manter suas raízes, sua
cultura. A religião foi um instrumento de organização para estes escravizados, ponto de
resistência cultural. Assim, a imposição de uma fé católica se fez em uma reconfiguração do
imaginário popular, por práticas de aculturação, hibridismo cultural, mas, sobretudo,
popularmente chamada de sincretismo.
Bastide aponta que a própria palavra sincretismo em si já induz ao erro, uma vez que
este afirma que “procurava um fenômeno de fusão ou, pelo menos, de penetração de crenças,
de simbiose cultural, uma espécie de química dos sentimentos mistos. Mas o pensamento do
negro se move num outro plano, o das participações, das analogias, das correspondências”
(FERRETI, 2013, p. 58). O sincretismo existente entre a religião europeia cristã e as
religiosidades ameríndias e africanas não foi um processo harmônico, visto que as culturas em
encontro não estavam na mesma posição. Não se trata de que uma seja inferior à outra, mas,
sim, na posição de desigualdade, entre dois grupos: o dominador e o dominado, expressando as
relações de poder existentes no campo cultural (DIAS, 2008).
Segundo Carvalho (2006), a ideia romanceada do sincretismo como característica
brasileira, positiva e única, é contraposta pelo autor Muniz Sodré, que compreende o
138

sincretismo como um conceito negativo, em que essa áurea encantadora dá lugar a uma dura
realidade que tenta esconder a discriminação.
Nunes (2018) destaca o atual debate sobre candomblé marcado pelo processo de
africanização, almejando uma aproximação às raízes africanas. Tal fenômeno pode ser
observado não só aqui no Brasil, mas também em lugares na América Central, ressaltando que
a aproximação pretendida “não deve ser confundida com essencialismos da tradição” (NUNES,
2018, p. 12), mas na busca por uma alteridade. Processo semelhante ao defendido por algumas
casas de umbanda que objetivam refletir sobre o embranquecimento existente no mito de
fundação da religião pautado na harmonia das três raças e no sincretismo dele decorrente.

Nesse sentido, a preservação da tradição, afirmação de africanidade e negação do


sincretismo se caracterizam como um discurso político socialmente construído. Há
uma plasticidade e capacidade adaptativa, reivindicando um patrimônio cultural
específico para se diferenciar e afirmar sua autodefinição, evidenciando o dinamismo
dos grupos étnicos. Pensamos o candomblé como fenômeno afro-brasileiro e menos
africano, imbricado por campos sociopolíticos, no qual a afirmação de uma pretensa
tradicionalidade se caracteriza como uma disputa sociopolítica. Isso nos mostra que
as tradições são reinterpretadas e transformadas, os discursos que marcam a
diferença que legitima ou desqualifica um terreiro com relação a outros são
encenações na arena de disputa por prestígio. (NUNES, 2018, p. 12-13)

Sob o viés do sincretismo pode ser expresso em uma minoria se autodeclarar como
pertencente a essas crenças de matrizes africanas. Mantendo, que muitas das vezes, mascarada
pelo tom sincrético do catolicismo, por questões de aceitação e preconceito que os adeptos
dessas religiões sofrem.

A pergunta sobre o pertencimento a um culto ou a uma religião consta nos censos


brasileiros desde 1940. Os censos de 1940 e 1950 não davam à população a
oportunidade de responder sobre um possível duplo pertencimento religioso ou
demonstrar algum grau de crença sincrética. Nos censos de 1970, 1980 e 1991, as
religiões afro-brasileiras aparecem sobre uma mesma rubrica – podendo sugerir a
leitura de que essas religiões seriam semelhantes. A separação entre a categorização
da pergunta sobre as religiões afro-brasileiras é recente: a partir do censo de 1991.
A pergunta sobre o culto ou religião é uma pergunta aberta, faz parte apenas do
questionário completo, na qual o entrevistado responde o como considera melhor. A
categorização e feita posteriormente, quando, então são separadas em duas
categorias: Umbanda e candomblé, entendidas pelo IBGE – Instituto Brasileiro de
Geografia Estatística como as religiões afro-brasileiras mais representativas
(RIBEIRO, 2012, p.15).

A esse respeito, pode-se observar um fato curioso revelado no último censo realizado
no ano de 2010, em que diferentemente do que se podia imaginar, o estado brasileiro com maior
número de adeptos das religiões afro-brasileiras, não é a Bahia conforme pensado, mas sim o
139

Rio Grande do Sul. Tal fato se dá pela declaração feita, visto que na Bahia é predominante o
número de católicos.
Quijano (2005) aponta que “é tempo de aprender a nos libertarmos do espelho
eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. É tempo, enfim, de
deixar de ser o que não somos” (QUIJANO, 2005, p 126). Todavia, mostrar o que se é ainda
temido pelo preconceito que envolve, já que durante séculos as crenças não europeias foram
marginalizadas e até mesmo criminalizadas como crimes à saúde pública. O Código Penal de
1890, que em seu artigo 157, apontava que “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios,
usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de
moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública”
deveriam ser punidas com penas de prisão por um a seis meses e multa (BRASIL, 1890.).
Os saberes e práticas ancestrais africanas, mesmo perseguidos, resistem. Um terreiro
é um espaço de resistência (NOGUEIRA, 2020). Logo, é necessário romper as amarras do
colonialismo e desfazer os nós que se formaram em nossa sociedade que constituiu o racismo
estrutural e seus desdobramentos também no campo religioso.

Conclusão

Os crimes de intolerância religiosa, em se tratando das religiosidades de matrizes


africanas, podem e devem ser intitulados como racismo religioso, uma vez que configuram mais
uma vertente do racismo estrutural presente na sociedade, e ambos são exercidos através da
discriminação, processo ao qual se faz mediante uma relação de poder.
O racismo religioso é a manifestação social de que o pensamento colonial ainda se faz
presente, no qual a hegemonia cristã rechaça práticas religiosas diferentes às suas, em uma
construção de demonização e manutenção da marginalidade destas.
A construção de pensamento ocidental dualista de influência maniqueísta que
classifica os fenômenos, pessoas e acontecimentos dentro de uma lógica opositiva entre bem e
mal, certo e errado, impossibilita a compreensão de outras interpretações, como no caso das
religiões africanas, que carregam em si e em sua cosmogonia relacionada à
complementariedade de forças.
As religiosidades de matrizes africanas trazem em si uma visão de mundo, saberes e
práticas, que como tal, constituem uma perspectiva decolonial, uma vez que estas resistiram a
colonialidade e suas crenças ainda se apresentam como resistência frente aos constantes ataques
de racismo religioso.
140

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142
143
144
145

PRINCÍPIOS DA EPISTEMOLOGIA AFRICANA

Kynni Kayode Fernandes Duarte


UNICARIOCA*
kynni.kayode@gmail.com

Sociedades as quais vieram a sofrer com a colonização tiveram diversos tipos de


doenças, algumas psicológicas, outras linguísticas, outras intelectuais, culturais, mas a maior
forma de subjugação e marginalização do conhecimento foi um tipo de morte por dentro, que
permite o corpo ainda viver, mas esvazia-o de predicado: o epistemicídio1.
A proposta deste ensaio é resgatar valores socioculturais e estruturas basilares das
formas de pensamentos ancestrais endêmicas de povos subsaarianos, do negro-africano, de
maneira a conduzir e convidar aqueles que partilham desta leitura experimental a se esvaírem
de uma interação com o mundo externo e consigo mesmos para, enfim, enxergar o mundo por
uma lupa que nos foi negada, exotizada, fetichizada e demonizada a todo tempo.
A vivência em uma sociedade eurocêntrica colonizada como a nossa muitas vezes nos
faz pensar que o “neutro”, “normal” e “correto” é aquilo com o qual interagimos e nos damos
rotineiramente, que viver como vivemos é o correto e as regras do nosso mundo, nossa
concepção de vida, morte, ser humano, sociedade, dinheiro, religião, homem, mulher, são no
mínimo o senso comum de mais polido que uma sociedade dita civilizada e evoluída conseguiu
ou conseguiria produzir, afinal, vencemos a natureza, temos tecnologia; vencemos a dor, temos
remédios; vencemos o preconceito e a injustiça, temos leis que nos asseguram. Mas não,
independente de diplomas, de documentos, ou até de ter ou não linguagem escrita, existem e
existiram diversas sociedades de seres humanos tão ou mais polidas que a nossa, que jamais
aceitariam morte por fome ou a existência da miséria, que valorizariam (ou valorizam) a
dignidade humana como algo absoluto, e enxergam na vida, apesar de todas as mazelas, uma
fonte abundante de sorrisos e alegrias. Este viés de pensamento eurocêntrico é facilmente
observado nesta tradução para o espanhol do aclamado livro “Ifá Will Mend Our Broken
World” de Wande Abimbola:

*
Graduando em Direto.
1
Termo normalmente utilizado por Boaventura de Souza Santos desde o seu livro Pela Mão de Alice (1997),
epistemicídio é, em essência, a destruição de conhecimentos de saberes, e de culturas não assimiladas pela cultura
branca/ocidental.
146

Ivor: ¿Cuál es la diferencia entre tribu, nación y estado de la nación?


Wande: Los Europeos utilizaron este término para nombrar a aquellos que no eran
Europeos. La palabra “tribu”, Jamás fue utilizada para ellos mismos. Los
Holandeses, Checos, Croatas y Belgas, son referidos como grupos étnicos aún
cuando algunos de ellos estén conformados por menos de 5 millones de personas.
Pero los Europeos se referirían a los Yorùbá como tribu, aún cuando estuvieran
conformados por 25 millones de personas. Se referirían hacia los Hausa y los Igbo,
como tribos también. (ABIMBOLA, 1997, p. 85)

Apesar de não possuírem originalmente textos escritos, os diversos livros produzidos


por esses povos são passados e decorados oralmente, palavra por palavra. Por isso, anos de
estudos, dedicação e uma inteligência arrojada são absolutamente necessários. O mesmo
conhecimento que permitiu aos egípcios construir pirâmides, aos Bantu produzirem técnicas de
forja e fundição de ferro e metais milênios atrás, tão modernas que copiamos hoje em grandes
metalúrgicas e siderúrgicas. Essas técnicas e tecnologias também se expandem para as
produções têxteis, economia e muitas outras áreas de conhecimentos. Existem motivos para,
mesmo com a influência do colonizador, grande parte desses conhecimentos se manterem orais;
essa é a função do que os yorubá chamam de ofó, a palavra. E o motivo do porquê entre esses
povos, dentro dessa estrutura de valores e de pensamentos, a palavra falada ter um peso muito
mais relevante do que a palavra escrita, tal como no Direito Romano. Como, de outro lado,
ainda se remetendo ao texto do Abimbola, é estratégico para o colonizador pintar o negro não
como corpos puramente melaninados, mas como corpos primitivos, povos primitivos, tribos,
arcaicos. É uma questão de semiocídio ontológico (SODRÈ, 2017), de apagamento, de se
esterilizar o ser humano e as identidades destes indivíduos em benefício de saques, roubos,
explorações das riquezas das terras, das produções tecnológicas e intelectuais e de sevicio dos
corpos em prol de mão de obra barata, sendo a rubra argamassa extraída aos açoites de corpos
negros em prol da edificação da chamada “civilização” (em linguagem euro ocidental).
Antes de adentrar na filosofia africana o primeiro ponto que se deve ter em mente é
que em África existem diversos grupos étnicos, povos, nações; com valores socioculturais,
filosofias, tradições, religiões e visões de mundo diferentes. Porém, de toda forma, alguns
costumes, mas principalmente algumas infraestruturas e pilares epistemológicos se fazem
universais, os quais seriam: ética/caráter, ancestralidade e coletividade/comunidade.
Esta pequena introdução geográfica e antropológica se faz necessária para uma maior
imersão etnológica e na filosofia Ubuntu, mais próxima de povos do sudeste e do sul africano,
como ocorre na África do Sul, cuja noção central repousa em uma interconexão entre todas
as pessoas, conforme apresenta a citação a seguir:
147

Também tem sido descrita como uma filosofia de vida, que no seu sentido mais
fundamental representa a personalidade, a humanidade, a humanidade e a
moralidade; uma metáfora que descreve a solidariedade grupal onde essa
solidariedade grupal é central para a sobrevivência de comunidades com escassez
de recursos, onde a crença fundamental é definida como motho ke motho ba batho
ba bangwe/umuntu ngumuntu ngabantu que, traduzida literalmente, significa que
uma pessoa só pode ser uma pessoa através dos outros.
Por outras palavras, toda a existência do indivíduo é relativa à do grupo: isto é
manifestado numa conduta anti-individualista para a sobrevivência do grupo, se o
indivíduo quiser sobreviver. É uma orientação basicamente humanista para com os
outros seres. (MOKGORO, 1998, p.16) – Tradução livre deste autor.

O foco principal deste artigo, porém, se dá no maior berço cultural das matrizes afro-
brasileiras, a Nação Yorubá, ou o povo Nagô, que se localiza principalmente na Nigéria, mas
também em parte do Benim e minoritariamente em países como Togo e Serra Leoa, entre
outros. Um seio cultural que transpassa fronteiras imperialistas e que comunga, mesmo com
tanta distância, com a ideologia dos pais e irmãos de Nelson Mandela.
A partir deste breve norteamento semântico, desenvolveremos o conceito ancestral
de comunidade pelo viés yorubano, afastando o termo ubuntu e explicitando, trazendo à tona
o termo Egbé, que em livre tradução seria comunidade, porém trataremos de expandir esta
acepção lexicográfica.
O Iwa Pele (em tradução livre o “bom caráter”), ou a ética para os Yorubá é um
tesouro buscado em cada núcleo familiar, pois se “Deus criou o homem a sua imagem e
semelhança”2, como dizem cristãos, o pai e a mãe são para os filhos como o Deus cristão é
para a humanidade, por isso o cultivo de bons ensinamentos e valores de pais para filhos tem
o poder, a importância e a urgência de todos aqueles que antecederam os pais.
Desta forma, o que um pai semeia no filho enquanto caráter e ética, foi passado pelo
pai dele, que outrora também lhe foi transferido por seu ascendente. Assim, sucessivamente,
o que faz com que um pai tenha muito carinho ao cultivar esses valores em um filho e, um
filho tenha zelo por algo tão antigo e importante, que é essa ética e esses valores socioculturais
fundamentais preservados pela família; ética esta que ajuda o sujeito Yorubá a ter noção e
entendimento de si, ética que dá predicado e identidade ao sujeito, respeitando sempre sua
formação ontológica.

2
“E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do
mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher, os criou.” Gênesis 1:26-27.
148

Essa transmissão verticalizada de conhecimentos e valores implica em uma


valoração hierárquica na filosofia Yorubá e não apenas em retórica, mas sim a episteme
estruturante de uma forma de pensar e interagir com a alteridade. Toda a organização e
estratificação é valorada acima de tudo pela senioridade e os frutos colhidos por uma vida
semeando o respeito.

Os reis iorubas são assessorados por uma sociedade corporativa, de chefes de vilas
e cidades, conhecida como baàlè, que são, por sua vez, assessorados pelos chefes
de linhagem e famílias, conhecidos como baálé. Os baálé tomam suas decisões
com a aprovação dos mais idosos da linhagem familiar, conhecidos como àgbà.
Nesta ordem hierárquica, crianças e jovens não tem autoridade sobre nada, e se,
eles morrem antes de tornarem-se um àgbà, eles não podem ser cultuados como
ancestral. (ABIMBOLA, 1981, p.75)

Aqui fazemos uma assepsia com o pensamento euro ocidental. Não se diz ao sujeito
Yorubá quem ele é, mas de onde ele veio, diferente de nossa lógica ocidental consumista onde
toda propaganda nos diz o que e como ser. Dessa forma o sujeito pode ser muçulmano, cristão,
judeu, rico, pobre, ter o mais novo carro ou iphone, ser transexual ou homossexual, mas tudo
isso são eventuais detalhes de sua identidade, o importante é a construção ética, saber de onde
veio para entender quem se é. Lógica esta corroborada de forma poética por Muniz Sodré no
livro “As nações Ketu”, de Pai Agenor Miranda: "O eu do negro tradicional não é uma
unidade isolada portadora de uma verdade exclusivamente individual. Nele aglutina-se, pelo
contrário, toda a trama fisiológica e psíquica dos ancestrais." (MIRANDA, 2000, p.10)
Na introdução de Muniz Sodré entendemos como os pilares destacados de formas
separadas durante este artigo se aglutinam e se consolidam formando uma estrutura única.
Assim, o coletivo passa a ter duas perspectivas: a perspectiva do colateral, nossa comunidade
e a perspectiva ancestral, a noção de ser um capítulo numa história que não terá fim, mas
eternos recomeços que precisam ser assegurados, visto que toda a trajetória e história dos
meus ancestrais recaem sobre mim e eu sou eu, e que por isso sou um representante vivo dos
meus ancestrais em todo ato, nunca sozinho.
Estes princípios sólidos são conhecidos pelo Yorubá como de Iwa Pele, mas aqui
trataremos como ética, a pilastra central da edificação humana, que tem como seus alicerces
a ancestralidade e a comunidade (Egbé). É importante entender que cada conceito desses tem
desdobramentos profundos, tanto filosóficos quanto litúrgicos e, por mais que sejam
princípios diferentes, eles se espelham, convergem e se retroalimentam, de modo a mostrar
facetas diferentes de uma macroestrutura.
149

A importância do valor epistemológico da ancestralidade é entender também o


contraponto da função social dos idosos e dos nossos mais velhos em uma sociedade de
produção e trabalho, os mesmos acabam sendo um grupo desprestigiado, desvalorizado e visto
com maus olhos, pois em nosso contexto histórico os idosos são vistos, dentro do senso
comum, como pessoas que não produzem ou pouco produzem com sua força de trabalho,
descartáveis, com pouca expectativa de consumo, pouca expectativa de vida, de cidadania
alienada e marginalizada como se sua voz fosse menos capaz e sua vida, seu tempo, um que
já se passou perdendo o destaque em nossa sociedade de consumo.
Diferente do anteposto, o Yorubá centrifica os mais velhos, em verdade é a hierarquia
e estratificação social mais importante.
Os idosos são aqueles que nos permitiram ser quem somos, as grandes árvores com
suas longas copas de conhecimento e experiência, que nos permitiram ser sementes. Hoje
fazem sombra contra o sol das dificuldades, nos permitindo refrescar o pensamento e crescer
fortes.
O tempo do idoso na terra deve ser celebrado e aproveitado. O Yorubá cultua e festeja
a vida e para eles a morte só vem no momento certo, na extrema idade, com saúde, lucidez,
sanidade e muitas pessoas que se ama ao redor. O idoso não pode ser visto como descartável
de forma alguma. Até uma mentira ou um devaneio dito por um idoso tem a outorga do tempo
para transgredirem a realidade e se fazerem verdade. O que culmina na nossa proposta inicial
e no último princípio a ser elaborado: comunidade.
A formação do indivíduo do povo Yorubá se dispõe horizontalmente, onde o Iwa
Pele, a ética, se realiza tão somente de forma prática quanto exteriorizada através de ações, e
o maior valor dessas ações é quando o retorno é coletivo.
Nota-se que não se fala simplesmente de indivíduos que vivem pela comunidade,
mas sim indivíduos que, de forma ampla e panorâmica, executam caleidoscopicamente uma
leitura de si atravessada por suas origens e inseridos a uma ou a diversas comunidades,
enxergando sua ordem de importância uma vez que pertencentes àquelas comunidades. Suas
ações ou palavras, cultivadas e outorgadas por seus ancestrais, vão repercutir nos sujeitos e
nas comunidades.
Enquanto a cultura cristã-europeia foi progenitora ou amplificadora de uma estrutura
epistemológica maniqueísta (céu x inferno) e individualista (só posso salvar a mim), ainda
que desvinculada da religião, esses princípios regram nossa concepção de mundo, uma vez
que nos foram impostos os valores europeus, através da colonização, e os replicamos de forma
absoluta, sem questionar sua origem e fundamentação. Essa é outra herança cristã nos
150

costumes ocidentais, pois quem questiona ou critica Deus é herege e a punição divina é
veemente, absoluta e eterna.
Diferentemente, para o yorubá não existe céu ou inferno, ou sequer salvação, pois o
palco da vida é o aqui e agora, e o objetivo de todos é, como supracitado, viver até a última
idade, celebrando a alegria de estar vivo e gozando estar entre amigos. Dessa forma, quando
alguém falece todos festejam e celebram as bonanças que aquele que se foi trouxe em vida
para sua comunidade e família.
Ter muitas pessoas queridas é um reflexo de um bom caráter, e aquele que tem sua
existência celebrada por amigos e familiares recebe o direito de retornar como uma nova vida
dentro dos seus descendentes. Então, quando uma criança nasce, ela vem a ser um amado ente
que se foi e tanto fazia falta. Assim, o yorubá constrói uma estrutura epistemológica de total
e imperiosa valorização da vida de cada indivíduo.

[...] para os antigos iorubas, vida e morte fazem parte de um ciclo que sempre se
repete; a criança que nasce é o velho que retorna. A reencarnação reafirma a vida
e a noção de que viver neste mundo é bom e prazeroso, e renova para o vivente as
possibilidades de realizações capazes de garantir, depois de uma vida de sucessos,
a conquista da eternidade. Vida e morte se alternam e se completam. (PRANDI,
2005).

Egbé e a importância do pertencimento

O clássico conflito grego entre alteridade e identidade para o povo africano não é
visto como um dilema, e sim como uma necessidade. Uma árvore não se faz floresta
solitariamente, são necessárias outras para compor uma floresta; umas que crescem primeiro
e suportam o Sol para fazer sombra, outras que crescem melhor na sombra de suas amigas, e
cada uma com suas peculiaridades e individualidades formam uma vasta floresta. Para os
Yorubá, não somos muito diferentes, precisamos do outro para existir, não existe indivíduo
sem um grupo e tampouco grupo sem indivíduo. Fora do grupo o sujeito não pode se
desenvolver, porém através das experiências, das trocas, aprendemos quem somos, de onde
viemos, nossas necessidades; aprendemos a desenvolver paciência, tolerância, a nos suportar,
a dar nosso melhor, dentre outras virtudes.

Para o negro-africano o visível constitui manifestação do invisível. Para além das


aparências encontra-se a realidade, o sentido, o ser que através das aparências se
manifesta. Sob toda manifestação viva reside uma força vital: de Deus a um grão de
areia, o universo africano é sem costura. (ERNY, 1968:19).
151

Dentro desta cosmovisão, o Universo visível é pertencente, está inserido no Universo


etéreo e metafísico de forma que não se dissociam. Antes de nascermos neste mundo temos
amigos no Universo Etéreo (Orun) chamados de Egbé Orun, ou seja, nossos amigos espirituais.
Manter uma boa relação com nossos amigos espirituais significa não sofrer de perdas
prematuras (principalmente a morte infantil ou no parto, o maior tabu de todos), significa ter
boas relações sociais no mundo físico, ter oportunidades, carisma, ser bem-visto socialmente e
destaque em geral. Da mesma forma que uma boa relação com o Egbé Orun reflete uma boa
relação com o Egbé Aiye (amigos em geral), todo o Universo reflete uma rede de
correspondências, signos e analogias onde não só o ser humano, mas os animais, as plantas, e
por certo também minerais e outros elementos da natureza como um todo constituem uma única
rede de força.
É possível que se perguntado a um protestante como ele enxerga o sagrado, o mesmo
diria que ser algo apartado do ser humano por sua natureza divina, da mesma forma se
perguntado a um católico, o mesmo diria que seria algo puro e embebido em perfeição. Porém,
para o negro-africano é impossível impor uma cissura entre profano e sacro, pois só existe o
todo e ao todo pertencemos, como tudo a ele pertence. Não existe um dia específico de destino,
como a missa de domingo, ou um local específico. A devoção muitas vezes é familiar e a maior
prova de fé, a maior de todas as rezas é a nossa conduta, o que reitera a necessidade de um bom
caráter e de uma postura ética sempre.

Cada ser humano que chega ao mundo, como um mensageiro da “outra dimensão”,
manifesta o sagrado, não sendo visto apenas como produto dos pais. Recebido com
respeito, seu nome deve ser descoberto e não inventado. Pronunciá-lo é saudar esse
ser celeste e convidá-lo para habitar a sociedade dos homens. (ERNY, 1968, p68).

O ser humano é composto entre elementos individuais e outros simbólicos, sendo os


primeiros de princípio biológico, ligados à herança genética, e os simbólicos são um amparo
mítico, de princípios cósmicos que possibilitam e sustentam a existência humana, tais
elementos seriam: Okan (literalmente coração, mas por extensão inteligência e emoções), Emi
(sopro vital/ espirito, a respiração), Ara (corpo físico) e pelo Ori (literalmente cabeça, mas
neste caso uma cabeça metafísica denominada Ori Inu, a composição divina do ser-humano).
Diz-se que antes de nascermos escolhemos nossos destinos diante de Eledumare
(Deus/Deusa) e tendo Ifá (divindade da sabedoria) como testemunha, corrige-se os
pormenores; por seguinte, então nascemos e no nosso Ori vem gravado esse destino e tudo o
que podemos fazer para nos mantermos dentro dele; o destino não é inexorável, ele é
152

inconstante. Nosso objetivo é perseguir e escolher o destino pré-escolhido antes do


nascimento, tendo o auxílio do Ori, Ifá, egbé Orun, Antepassados e dos Orixás. Deficiências,
casualidades, infortúnios e escolhas vão nos afastar ou aproximar desse destino pré-escolhido
e acredita-se que quando o exercemos atingimos nossa plenitude.
Tal plenitude então só se encontra realizada frente ao sentimento de pertencimento
dentro daquela comunidade. Todos somos diferentes, com capacidades e formas de agregar
diferentes, necessidades que precisam ser supridas, emocionalmente, psicologicamente e
materialmente, diferentes. A plenitude do ser humano se dá por este acúmulo de forças. Estes
sentimentos de invocação do passado e da comunidade não indicam um imobilismo, mas o
entendimento de que existe uma trajetória, e que o indivíduo compreende melhor sua própria
formação ontológica se compreender sua trajetória.
A força do antepassado, existindo de forma presente e participativa na vida de um
indivíduo, o possibilita sempre manter o senso de dignidade e de personalidade, sem que se
polua por forças e influências externas. Uma vez se enxergando como aquela identidade única
composta por uma trajetória, o indivíduo, então, pode encontrar dentro de si seus desejos,
suas possibilidades, anseios, talentos, para enfim compor a comunidade e a partir disso se
catapultar para a mais arrojada e elaborada versão de si mesmo e compor junto aos seus
contemporâneos uma versão melhor do mundo para si, para os colaterais, mas principalmente
para os descendentes daquela comunidade, se tornando então um futuro antepassado que
servirá de incentivo e força motriz para cativar as novas comunidades descendentes. O existir
das singularidades só é possível na comunidade e o das comunidades na colaboração com outras
comunidades. Neste sentido, esse equilíbrio intercomunitário só se torna possível sem a
exploração e a sobreposição, mas, pelo contrário, pelo caminho da idoneidade e justiça.

Os yorubá e o gênero

Além desses aspectos introdutórios, existem muitos outros que merecem ser
esmiuçados, como a questão de gênero, ou a própria questão já supracitada no início deste
ensaio sobre a palavra e sua importância. As questões da ordem do pensamento e cultura que
tanto nos foram negadas, tanto foram perseguidas, talvez agora tenham que sair da posição
de subalternas na filosofia e também nas ciências políticas, para reorientar certos vícios e
abusos absurdos e obtusos que nossa sociedade desigual, violenta e que se diz neutra, justa e
standartizada continua replicando década atrás de década, há séculos. A união e a valorização
153

do coletivo não pode ser algo só almejado como objetivo social, mas entranhado enquanto
valor, como algo que cada um de nós deseja proteger genuinamente.
Os modelos que formam nossa cultura, baseados em estratificação por gênero, poder,
dinheiro, cor da pele, diploma, e que aponta quem é ser humano, ou qual ser humano é melhor,
mais merecedor etc., não se sustentam mais. A dignidade tem que ser um princípio social, a
empatia tem que ser um princípio humano.
Dentro do pensamento do negro-africano tradicional não há o que se falar em
patriarcado. Existem diversas organizações, algumas matriarcais, outras patriarcais, mas estas
são desdobramentos de facetas do mesmo polígono; assim masculino e feminino são talvez a
única polarização dentro da cultura, mas não são polos antagônicos como Deus e o Diabo, e
sim polos complementares.
Para termos uma leitura mais acurada, é importante saber que o idioma yorubá, por
exemplo, não faz distinção de gênero. Cachorro, Cadela, Rei, Rainha, Filho, Filha, para todas
essas palavras, se quiser se apontar que é um macho ou uma fêmea, especificamente, devemos
usar auxiliares no masculino ou no feminino; destarte, a própria concepção de Deus, Olorun,
Eledumare, não é polarizada entre masculino ou feminino, em contraponto ao pensamento
judaico cristão. Mais que isso, em todos nós, dentro de cada um, existem aspectos masculinos
e femininos além do gênero biológico e essa feminilidade pode ser mais agravada em um
homem, como a masculinidade mais agravada em uma mulher, sem que deixe de ser quem é,
ou essa pessoa seja vista de forma diferente por conta disto.
Por conseguinte, à luz do pensamento negro-africano e orientados por Oyeronke
Oreywumi, conforme citação a seguir, podemos perceber as capacidades femininas como uma
epistemologia. A essência feminina está na terra igbá nlá, a grande cabaça a qual habitamos.
A essência feminina está na agricultura, na vida, em tudo o que é vivo, em tudo o que um dia
nasceu, a essência feminina está na cura trazida através das folhas, nos grandes mistérios da
noite, do silêncio, do ventre, na maturidade intrínseca à menopausa. Então observamos que
existe a categoria do feminino, mas que nem sempre isso é necessariamente ligado à mulher.
Um exemplo disso existe no candomblé: quando um noviço passa por um ritual iniciático é
chamado então de “Iyawo”, que em uma tradução literal significa “esposa de orixá”. Isso vale
para homens e mulheres, os quais sejam iniciados para orixás masculinos ou femininos, não
importa. A tradução deslocada para “esposa” não representa em absoluto os significados e as
possibilidades de um ou de uma Iya.
154

Dentro da família Iorubá, omo, a nomenclatura para a criança, é melhor traduzida


como prole. Não há palavras que denotem individualmente menina ou um menino
em primeira instância. No que diz respeito às categorias de marido e esposa dentro
da família, a categoria oko, que normalmente é registrada como o marido em Inglês,
não é especificada por gênero, pois abrange ambos machos e fêmeas. Iyawo,
registrada como esposa, em Inglês refere-se a fêmeas que entram na família pelo
casamento. A distinção entre oko e iyawo não é de gênero, mas uma distinção entre
aqueles que são membros de nascimento da família e os que entram pelo casamento.
A distinção expressa uma hierarquia em que a posição oko é superior a iyawo. Esta
hierarquia não é uma hierarquia de gênero, porque mesmo oko fêmea são superiores
a iyawo fêmea. Na sociedade em geral, mesmo na categoria de iyawo inclui homens
e mulheres, em que os devotos dos Orixás (divindades) são chamados iyawo Orisa.
Assim, os relacionamentos são fluidos, e papéis sociais, situacionais, continuamente
situando indivíduos em papéis modificativos, hierárquicos e não hierárquicos,
contextuais que são. (OYĚWÙMÍ, 2004, p. 6).

Observamos a relação outsider/insider e a relação da senioridade como regra absoluta,


de tal modo que até gêmeos, quando nascem, são escalonados entre mais velho e mais novo.
Assim, ninguém, numa comunidade, nunca é igual, sempre há um mais velho e um mais novo.

[…] em caso se nascimento de gêmeos, a primeira criança a nascer será tratada como
júnior e a segunda é privilegiada como sênior. [...] Na cultura se acredita que Táíwò,
o(a) àbúrò (júnior), veio antes ao mundo pois Ké ̣hìndé, o è ̣gbọ́n (sênior), o (a) enviou
antes para verificar se o mundo externo era tranquilo e pacífico para seu nascimento
(OYĚWÙMÍ, 2016, p. 9) – Tradução livre deste autor

Observamos, então, que a feminilidade é necessária, presente, mas que a concepção de


gênero e da categoria “mulher” pode ser volátil e flexível, conforme a casualidade e ocasião, e
absolutamente não sendo definidora ou mantenedora de estratificação, como observamos nas
sociedades euro-ocidentais envenenadas pela modernidade. Análises de África devem sempre
começar a partir da própria África e através da lupa de seus povos nativos.

Reflexões quanto à necessidade do resgate africano

Nestes dias sangrentos e noites terríveis, quando um guerreiro urbano não consegue
encontrar rosto mais desprezível que o seu, munição mais mortal do que o
autodesprezo e nenhum alvo mais merecedor de sua mira certeira do que seu irmão,
devemos nos perguntar como chegamos tão tarde e solitário neste ponto.
(ANGELOU, 1991).

O liberalismo e o academicismo fazem uma construção história das sociedades de


forma a favorecer uma teleológica que faz entender uma organicidade nas sucessões dos fatos
históricos, quase que ignorando as dinâmicas de poder e colocando o ser humano no centro da
155

abordagem, porém de forma completamente pasteurizada, ignorando as opressões de grupos


marginalizados e disfarçando-as sob forma de neutralidade.
Infelizmente, um ponto onde a retórica e a dialética burguesas não dão conta de
desenganar os números, é na quantidade de sofrimento e morte. Cada um que se vai, cada
homem preto, cada mulher preta, cada criança preta, transexual preto ou preta estirada no asfalto
é mais uma colisão de dores, de expectativas, de famílias, de sonhos, desejos. O colonizador
usou da tática mais perversa e mesquinha de todas para criar seu império, e quando a violência
explícita foi confrontada, o esquema já estava armado. Armado e apontado, com o dedo no
gatilho, seja de projétil, de exploração laboral, ou qualquer outro caso que seja. Mesmo diante
da impossibilidade numa pandemia, uma doença global, a matemática continua a mesma: os
corpos pretos são descartáveis.
Quando o branco assujeitou o preto e retirou dele o senso de identidade, foram-se
também qualquer expectativa de saída desta tosca arapuca. Os corpos pretos passam então a
serem uma mina de trabalho que jorra sangue, à mercê de todo tipo de mazelas, distantes da
cidadania, afastados continuamente de se dotarem de dignidade.
Qualquer estudo básico de formação de Estado diria que os elementos do Estado são
o território (1), o povo (2) e a soberania (3), como se fossem formas orgânicas e naturais do ser
humano se organizar, não convenções oriundas de supressões, conflitos de poder, opressões
sistemáticas e mentiras que apesar de serem obviamente mentiras, são bem disfarçadas de
realidade. Aliás, são tão repetidas como verdades, que acabamos acatando como se verdade
fossem.
Quanto ao território (1), os corpos pretos sempre pertencem àquele que fosse afastado
o suficiente pra não incomodar quem detém as formas de poder ou os dizeres canônicos, mas
ao mesmo tempo próximo o suficiente pra justificar a opressão desse ser juridicamente neutro
e que, na prática, provavelmente é calvo, barrigudo, branco e já passou dos 40. Seja no
legislativo, no executivo ou no judiciário. Alguns deles se declararam constituintes e decidiram
que “todo poder emana do povo”, uma daquelas mentiras que funciona na base teórica abstrata,
mas não conversa em nada com a realidade. Na época da redemocratização, o censo aponta que
pelo menos ¼ do país não era alfabetizado, um quarto convenientemente pertencente ao povo
brasileiro de forma neutra, genérica, sem um recorte específico de cor, classe e gênero; agora,
ponderando as questões da miséria, da hipossuficiência, da marginalização, da fome, o
brasileiro médio nunca teve uma concepção mais arrojada de cidadania e de que é um cidadão;
quem dirá que o mesmo outorga poderes a uma constituição. Outra retórica que usa povo como
156

justificativa para manter os mesmos sobrenomes nos mesmos cargos, e não fazer uma alteração
substancial no status quo.
E quanto ao povo (2), este tópico conversa mais diretamente com as questões da
construção de identidade e dos resgates propostos neste artigo. Os povos africanos e nativos,
quando foram escravizados, foram impedidos coercitivamente de todas suas práticas culturais.
A primeira perda dos pretos quando chegavam ao Brasil era do próprio nome: eram batizados,
passavam por um ritual cristão a fim de esquecer quem eram, suas terras, seus costumes,
idiomas, e seu próprio nome; tendo suas identidades amputadas de si. Quando conveniente, são
seres integrantes de um só povo brasileiro, que exercem seu direito ao voto e justificam a
posição dos opressores através de uma plutocracia disfarçada de democracia; mas essa mesma
bandeira verde e amarela não se serve num prato de comida. O Povo é uma ficção criada por
opressões coercitivas e ideológicas. As condições não são iguais e nunca foram feitas para
serem iguais, não se pretendem iguais e não se farão iguais, mas o discurso é pasteurizado.
A assimetria dos elementos do Estado com a realidade fática aparece menos evidente
na questão da soberania (3). Ela não é diferente de um “acordo de cavalheiros”, uma leitura
final de que o Estado detém todas as capacidades e se ele deixa de ter é tão somente pelo seu
volitivo. Uma forma dos Estados respeitarem uns as fronteiras dos outros e as decisões internas
uns dos outros, sem maiores desventuras. A questão da soberania pode ser muito peculiar,
dependendo das relações específicas: a soberania frente aos poderes estrangeiros ou de
interesses particulares, das frentes burguesas nacionais; a questão das demarcações das terras
indígenas e quilombolas; ou, sendo mais próximo à minha realidade subjetiva, os desequilíbrios
de poder nas favelas e comunidades no Rio de Janeiro. Os assuntos são um emaranhado
complexo de dissídio com determinada população e determinado espaço; a indústria altamente
lucrativa do tráfico de drogas e da guerra ao tráfico (aqui a neutralidade e abstração dos números
nos distanciam da realidade fática de que tanto os policiais, quanto os traficantes, quanto os
transeuntes que demarcam o tracejado de giz branco no chão, embebidos em vermelho, serão
em absoluta maioria, corpos pretos). Enfim, a soberania é a argamassa que dá liga a toda ao
bom-mocismo dessa quimera que é o Estado, este monstro inventado que tem aspectos reais,
mas ainda assim é uma invenção ficcional.
Por isso, aos pretos que ainda respiram, antes que nos matem é necessário resgatarmos
quem nós somos. Resgatarmos a possibilidade de sermos viventes, de nos organizarmos, de
subverter as opressões o mais rápido possível. Negarmos as imposições do branco e nos
perguntarmos quem somos de fato, entender quem nós somos e nos perguntarmos onde somos
pertencentes. A epistemologia e a cultura nagô são uma possibilidade, uma de milhares, não
157

importa a qual nos coincidirmos, contanto que fundamentemos estratégias de sobrevivência dos
nossos corpos individuais e enquanto coletivo, principalmente pelas gerações vindouras. Nosso
sangue tem que parar de jorrar, não viemos para este mundo para sofrer perdas, muito pelo
contrário. Que os ancestrais nos acompanhem em rumo à ascensão e à felicidade.

Referências

ABIMBOLA, W. Ifá will mend Our broken world: Thoughts on Yoruba religion and culture in
Africa and the Diaspora. Boston: Aim Books, 1997
_____________. La Notion de Personne en Afrique Noir. Paris: Centre National de la
Recherche Scientifique, 1971.

ANGELOU, M. I dare to hope. The New York Times, 25 ago. 1991. Disponível em:
https://archive.nytimes.com/query.nytimes.com/gst/fullpage-
9D0CE1DE173FF936A1575BC0A967958260.html. Acesso em: 17 jul. 2020.

ERNY, P. L'enfant dans la pensée traditionnelle de l'Afrique noire. Paris: Le Livre Africain,
1968.

MIRANDA, A. As nações ketû: origens, ritos e crenças: Os candomblés antigos do Rio de


Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2004.

MOKGORO, Y. Ubuntu and the law in South Africa. Buffalo Human Rights Law Review,
Buffalo: Buffalo Journal of International Law; Buffalo, NY: v. 4, n.3, p. 15-23, nov. 1998.

OYĚWÙMÍ, O. Gender and cultural studies in Africa and diaspora. Nova Iorque: Palgrave
Macmillan US, 2016.
_______. Conceptualizing Gender: The Eurocentric Foundations of Feminist Concepts and the
challenge of African Epistemologies. African Gender in the New Millennium, Cairo:
CODESRIA; Dakar, Senegal, v. 1, p. 1-8, abril, 2002.

PRANDI, R. Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e político na pós-modernidade. 4.


ed. São Paulo: Cortez, 1997.

SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017.


158
159

A FILOSOFIA AFRICANA: UBUNTU

Fábio Borges-Rosario
SEEDUC/RJ
professorfilosofiafabio@gmail.com

… a filosofia nunca foi o desenrolar responsável de uma única consignação


originária ligada à língua única ou ao lugar de um único povo. A filosofia não
tem uma única memória. Sob o seu nome grego e na sua memória europeia,
ela foi sempre bastarda, híbrida, enxertada, multilinear, poliglota e nós
precisamos ajustar a nossa prática da história da filosofia, da história e da
filosofia, a esta realidade que foi também uma chance e que mais do que nunca
permanece uma chance.
Se a herança do pensamento (da verdade, do ser) na qual estamos inscritos não
é somente, nem fundamentalmente, nem originariamente grega, é, sem dúvida,
devido a outras filiações cruzadas e heterogêneas, as outras línguas, as outras
identidades que não estão simplesmente juntas como acidentes secundários (o
Judeu, o Árabe, o Cristão, o Romano, o Germânico, etc.); é, sem dúvida,
porque a história europeia não desenvolveu apenas um legado grego; é
sobretudo já porque o Grego jamais se reuniu consigo mesmo ou se
identificou a si-mesmo: os discursos que temos o arquivo a este respeito […]
não são senão um testemunho suplementar desta inquietude e desta não-
identidade a si (eu sublinho).
Jacques Derrida

Durante o Seminário “Educação e transdisciplinaridade no pensamento decolonial”


ofereci a Oficina Filosofia Africana: Ubuntu. Além de apresentar o conceito de ubuntu como
uma chave para a chegada nestas terras da filosofia africana como um horizonte de
descolonização e desconstrução da educação básica e incentivei a resolução de um Passatempo
Filosófico como tática lúdica de compreensão do referido conceito.
Tinha como objetivo aproximar as pessoas participantes de um rol de filósofos
africanos e afrodescendentes da atualidade que se lidos desconstrutivamente possibilitam apelar
o soçobrar dos impactos do discurso racista na Educação Básica brasileira, com a perspectiva
de sua superação como promessa, numa intervenção filosófica que observe o reconhecimento
e igual valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, europeias e
asiáticas, preceito emanado das Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações
160

étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, imprescindíveis


para a ampliação dos direitos sociais e a cidadania dos negros brasileiros. Espero, talvez, que
após a participação os destinatários que se autodenominam brancos ou amarelos tenham
compreendido a ênfase que foi dada à questão do negro como metáfora para a questão do branco
ou do amarelo ou do judeu ou do cigano, isto é, como um deputar da hospitalidade in–
condicional.
Espero, portanto, que os descendentes de asiáticos, assim como, todos os brasileiros,
independentemente de suas ancestralidades étnicas, voltem seus olhares para a filosofia budista
(MONTEIRO, 2015), para a filosofia árabe (AVERRÓIS, 2006) e para a filosofia hebraica
(BURNS, 1975; COSTA, 2015) e judaica (DERRIDA, 1995, 2001). Penso aqui na filosofia
hebraica como a reflexão produzida pelos filósofos clássicos ainda na Palestina ou nos
territórios próximos; e por filosofia judaica a reflexão produzida após a diáspora judaica no ano
70.
Assim como, lembro que as encruzilhadas, rios, estradas que conduzem as florestas e
reservas ameríndias ainda precisam ser percorridas – alguns passos já foram dados (NOGUERA
et BARRETO, 2018) – por todas as pessoas brasileiras que descendem das etnias que vieram para
estas terras e foram acolhidas pelas etnias primevas. Acolhimento que implicou na
escravização, extermínio e segregação destes povos. Resta inconclusa a emancipação nacional
enquanto alguma pessoa ainda estiver subalternizada ou segregada dos direitos humanos.

Passatempos filosóficos

Encetei, na Oficina com Passatempos Filosóficos, um exercício de desconstrução do


pesquisador e do professor e do estudante ao rasurar-se a fronteira que [pressupõe-se] distingue
o formulador do formador e do formando, ao assumir que a desconstrução é o im-possível que
chega apelando à hospitalidade in-condicional de todas e todos na sua différance.
E alerta de que onde há seres vivos só há rastro e différance1, confesso que o
desconhecimento do rastro emigratório do homo sapiens pelo planeta levou as etnias a pautarem
os traços pigmentares e fisionômicos, étnicos, culturais, religiosos, etc., como estigmas da
diferença, como motivadores da segregação, ou como barreiras a serem superadas no horizonte
da convivência pacífica entre todas as singularidades que pertenceram, pertencem ou
pertencerão a Ubuntu2 humana. Ubuntu é um termo pluri-étnico, empregado pelas etnias

1
Neologismo criado por Jacques Derrida.
2
Co-cidadania.
161

Ndebele (África do Sul, Zimbabwe, Botswana), Swati (Suazilândia e África do Sul), Xhosa
(África do Sul, Zimbabwe, Lesoto) e Zulu (África do Sul, Lesoto, Suazilândia, Zimbabwe,
Moçambique) e encontra-se sinônimos nas etnias Sesotho (Lesoto), vhutu (Ruanda e Burundi),
tsonga (África do Sul e Moçambique) e swahili (Quenia, Tanzânia, Uganda, República
Democrática do Congo, Ilhas Comores).
As singularidades humanas registram e narram suas histórias, lendas, filosofias, etc.,
seu percurso planetário e sua busca pelo fim das hostilidades e pela construção da hospitalidade
pela voz ou pela escrita. Os arquivos variam, empregam-se pedras, papiros, papel ou a memória,
uns são mais permanentes que outros e, em todos os casos, obtêm-se a preservação dos
acontecimentos e feitos humanos.
Talvez, algumas singularidades humanas ainda devotem muito apreço pela descrição
da origem da espécie, mas se, por economia, ainda se emprega o termo origem nas obras onde
a desconstrução aparece; nestes não se depara com a origem, antes se encontra apenas quase—
origem, disseminação, encontros, travessias, contato entre as etnias, eventos hostis e
acontecimentos hospitaleiros.
Nesta direção, na rota de confissão dos crimes cometidos contra a humanidade nos
eventos hostis e na persecução por acontecimentos hospitaleiros tomo a voz e a escrita das
filósofas e filósofos que atravessaram as margens do pensamento europeu e buscaram noutras
margens pistas para a descolonização e desconstrução do pensamento.
Atravessar as margens como performance desconstrutora do pensamento filosófico
europeu amplamente conhecido e estabelecido no país não significa o abandono do legado
europeu, outrossim, é um apelo a ir além deste. É um convite ao mesmo tempo interessado e
desinteressado a se conhecer outros legados, somando-os ao conhecido.
Talvez, as algumas das pessoas que resolveram os jogos propostos, estavam
desinteressadas pela mensagem e a consideraram como traço [ou seria rastro], como diferente
[ou seria différance] e quiçá persistam em falar da diferença [mas como falar da diferença senão
para hostilizar?]. Outras notaram que a différance é lida, vista, mas nunca pronunciada, e, como
um espectro, evoca a hostilidade e a hospitalidade, e as insere no in-decidível. E se o in-
decidível, ao invés, de paralisá-las, for compreendido como a possibilidade da chegada do
acontecimento, como o im-possível que chega, como a construção da possibilidade de acolher
o outro na sua différance, então surgirá a im-possível possibilidade de reconhecer igualmente
as heranças das etnias americanas, africanas, asiaticas, oceânicas e europeias na nação
brasileira.
162

Se na Oficina detive-me ao conceito de ubuntu, cabe exclarecer que noutro trabalho


(ROSARIO, 2018) – o que inspirou a oficina – trabalhei com das Ya[s] Tunde[s], Griots, Aj
aqajtzij[s]3, Rekhet4[s], etc.
Conclamei, logo, todas as pessoas presentes a experimentarem a resolução e
elaboração dos jogos. Quiçá, tenham se divertido.

Os jogos

Jogo: Caça-filósofo

13 1 18 3 5 12 15 13 15 18 1 5 19

Dica de resposta: Substitua os números pelas respectivas letras do alfabeto.

Jogo: Caça-filósofo

18 5 14 1 20 15 14 15 7 21 5 18 1

Dica de resposta: Substitua os números pelas respectivas letras do alfabeto.

Jogo: Caça-filósofo

23 1 14 4 5 18 19 15 14 6 12 15 18

Dica de resposta: Substitua os números pelas respectivas letras do alfabeto.

3
Os poetas [em quiché].
4
Homem sábio; aquele que permanece aprendendo [em egípcio antigo].
163

Jogo: Caça-filósofo

4 18 21 3 9 12 12 1 3 15 18 14 5 12 12

Dica de resposta: Substitua os números pelas respectivas letras do alfabeto.

Jogo: Caça-filósofo

10 1 3 17 21 5 19 4 5 18 18 9 4 1

Dica de resposta: Substitua os números pelas respectivas letras do alfabeto.

Jogo: Caça-filósofo

13 15 7 15 2 5 18 1 13 15 19 5

Dica de resposta: Substitua os números pelas respectivas letras do alfabeto.

Jogo: Caça-termos

Eles apontam que ubuntu significa que nossa mais profunda obrigação moral
é nos tornarmos mais completamente humanos e para realizar isso, é
necessário entrar mais profundamente em comunidade com os outros. Uma
pessoa não pode, portanto, se tornar mais plenamente humana ou reconhecer
seu verdadeiro eu explorando, enganando ou atuando de maneira injusta para
com os outros.
Lesley le Grange

E I M M E M O H A B U N T U P H
O B R I G A S A O O R T U O S U
E Z C O M U N I T A R I O G O M
E O A S T M O B Z X Q W F M R A
164

L D E N P O R T A N T O H U T N
G W U Z X O B R I G A Ç A O U O
N B C O M U N I D A D E U S O S
U P E S S O A S D A O S S E P A
H U M A N A A I N J O T N U B U
E N G A N A N D U O A T U A N D
O B R I G A D O Z E A M N E I R

Dicas de resolução: Procure os termos sublinhados.

Jogo Caça-Termos

Ubuntu, palavra existente nos idiomas sul africanos zulu e xhosa que significa
“humanidade para todos”, é a denominação de uma espécie de “Filosofia do
nós”, de uma ética coletiva cujo sentido é a conexão de pessoas com a vida,
a natureza, o divino e as outras pessoas em formas comunitárias. A
preocupação com o outro, a solidariedade, a partilha e a vida em comunidade
são princípios fundamentais da ética ubuntu.
Alexandre do Nascimento

E Q M W S O L I D A R I E D A I
Z T V I V E N T E P A R T I D R
E T I O A T R A A S D E N I O E
U O S C D M I B Z A Ç O O F T A
S D A S I O R M E A S M C I O H
X O N I V I D N R L A E C T I L
V I V O D E U S U S R A T L Ç I
S O L I D A R R T F E L Z C O T
F I L O S O F I A D O N O S A R
E T I C O Q U V N D I V I N D A
V S O L I D A R I E D A D E E P

Dicas de resolução: Procure os termos sublinhados.


165

Jogo: Caça-termo

Ubuntu não é uma palavra mágica que surge para resolver os conflitos e
“salvar” as pessoas diante de disputas políticas. Ubuntu não é uma lei
universal que está viva em todo o continente africano. A palavra ubuntu não
existe em todas as centenas de línguas africanas faladas nos 54 países
africanos; ela esta presente em quatro idiomas: Ndebele, Swati, Xhosa e Zulu.
Renato Noguera

R E Z O L V E R O N A C I R F A
A A F R I K A N D E R E U S O U
M D B E L E S S A C I T I L O P
S U A T B S W A T O N A A F R I
R E S O L V E R P O L I T I C O
X O S A S E N D B E L E Z I L U
Q W E R T U I I O P A S D F G H
J K L Ç Z T X V B N M K L U A B
U N I V A E R S A L S U R L G E
P A R W A O S C O N F L I U T O
S E S S A L V A R O C O N Z T I

Dicas de resolução: Procure os termos sublinhados.

Filosofia Africana

A legislação antirracista brasileira solicitou a pesquisa e o ensino de filosofia no país


ao elencar como questão o paradigma da mono-origem europeia da filosofia ao deputar a
inclusão das filosofias africanas, asiáticas e ameríndias na educação básica e nos cursos de
graduação e pós-graduação. Com vistas a soçobrar os efeitos do racismo estrutural que
assombra o ensino no país e persiste em silenciar os esforços mundiais de pesquisar o desvio
do eurocentrismo e buscar a descolonização do conhecimento.
Solicitou, abalou o paradigma da origem grega da filosofia. Segundo Marcelo Moraes
(2018. Ver também BURNS, 1975), encontramos no Egito [Kemet] uma experiência de busca da
sabedoria, de amor pelo saber anterior a experiência grega. Noutra via, ouvimos de Derrida que
não há uma origem para a filosofia europeia, antes que sua história é um encontro de rastros,
166

atravessada pelos gregos, judeus e árabes. E talvez, cabe perguntar: Se segundo Derrida na
filosofia europeia só há rastros de outros povos porque recusar o rastro egípcio?
Talvez, recusar o rastro egípcio é o derradeiro gesto do eurocentrismo. Neste sentido
compreende-se que estimular a pesquisa sobre a filosofia do Egito potencializa a pesquisa sobre
a pluri-origem da filosofia grega, quiçá contribuirá no esclarecimento das inúmeras passagens
atualmente marginalizadas pelos leitores eurocentrados da filosofia da Grécia clássica, assim
como soçobrar o etnocentrismo.
Soçobrar, afundar, naufragar os efeitos do racismo estrutural que assombra o ensino
no país inicia com o reconhecimento do caráter eurocêntrico que persiste em validar os saberes
europeus e opô-los aos saberes produzidos por etnias de outros continentes. E se desconstruir é
inverter os pares binômicos estabelecidos pelo etnocentrismo, propõe-se aqui a inversão do par
ocidental–não-ocidental, a rasura da fronteira que separa tais conhecimentos, a ampliação das
vozes convocadas ao diálogo, isto é, estabelecer um polidiálogo.
O polidiálogo tem como horizonte estabelecer a inversão do par ocidental–não-
ocidental e nesta direção busco nas filosofias marginais produzidas na África, América, Ásia e
Oceania pistas que permitam re-pensar a tradição filosófica europeia e recusar o eurocentrismo.
Neste sentido diante da brevidade deste trabalho, acolhe-se aqui, as reflexões de pessoas
africanas, americanas e europeias que identificam no conceito de ubuntu elementos para suas
reflexões filosóficas. Logo, nesta leitura outros conceitos – tais como teko porã, etc. – estão
espectralmente acolhidos.
A filosofia africana contemporânea (SILVÉRIO, 2013) é expressa tanto nas línguas das
etnias do continente quanto escrita nas línguas dos povos europeus. Os filósofos interessam-se:
pela redescoberta do pensamento clássico das etnias, pela interseção entre o pensamento
clássico e o pensamento árabe, pela comunicação entre o pensamento clássico e o pensamento
cristão, pela assimilação do pensamento europeu como tática de modernização das sociedades,
crítica a neocolonização econômica e aproximação da ideologia marxista, pela elaboração de
uma reflexão que reconheça as heranças de cada etnia e os atravessamentos e contaminações
iniciadas com o contato com os pensamentos europeus e asiáticos.
Karin Van Marle [e Drucilla Cornel] (2015) relatam o projeto Ubuntu organizado pela
primeira em 2003, e advogam que feminismo ubuntu fornece as respostas aos dilemas e
contradições que crassam o patriarcalismo e aponta ações que possibilitem a solidariedade.
Lesley le Grange (2015) defende o ubuntu como categoria enriquecedora dos debates
ambientais locais e mundiais, e o emprega como atravessamento conceitual no pensamento do
filosófo norueguês Arne Naess e dos princípios do movimento da ecologia profunda (MEP).
167

Mogobe B. Ramose (1999, 2002) explicita o conceito de ubuntu/botho, justifica sua


dimensão ética e defende que o conceito aponta para a emergência do homo loquens, o homem
falante que cria a política, a religião e a lei. Sua leitura descreve que o homo sapiens aparece na
África e neste inicia sua trajetória ubuntu/botho/humana.
Jacques Derrida (2005) fala do ubuntu/abantu quando analisa os Tribunais de
Reconciliação e da Verdade na África do Sul, encanta-se com o seu sentido de humanidade, de
co-existência, mas crítica a contaminação cristã do conceito como advogada por Desmond Tutu.
Talvez, o interesse do filósofo da hospitalidade in-condicional de todas as singularidades em
sua différance deva-se a im-possibilidade de tradução deste conceito e na abertura ao horizonte
de reflexão que possibilita ao se pensar um perdão, um dom, um direito, uma justiça ubuntu.
Ao advogar a africanidade de Derrida, além de ouvir o próprio, aproximo-me de
Fernando de Sá Moreira (2017) e Paulin Houtondji (2008) quando defendem que a filosofia
africana é a reflexão feita por pessoas nascidas no continente africano, ressaltam ainda que o
adjetivo nesta perspectiva independe do conteúdo do pensamento produzido ou do tempo em
que viveu a pessoa filósofa em questão, já que o termo África é moderno e assim como o
também moderno termo Europa é amplamente aplicado as pessoas que nasceram neste
continente mesmo antes do aparecimento das noções modernas de europeu e ocidental, o
vocábulo africano é também aplicado pelos referidos autores para todas as pessoas que
nasceram em África.

Leituras, escutas e conversas

Os filósofos americanos e europeus que pesquisam a filosofia africana na busca por


elementos e pistas que contribuam para suas reflexões acessam principalmente as obras das
pessoas africanas que trabalham em instituições universitárias no continente ou na América e
Europa. Portanto, as filosofias africanas investigadas estão inseridas no contexto filosófico de
diálogo direto ou indireto com a crise filosófica europeia e com a recusa do eurocentrismo, com
o compromisso com a descolonização da filosofia e em alguns autores com a desconstrução do
pensamento.
Drucilla Cornell (2015), filósofa estadunidense, estuda o feminismo e a desconstrução,
especialmente no projeto Ubuntu desenvolvido na África do Sul com Karin Van Marle, advoga
que o conceito de ubuntu, isto é, o feminismo ubuntu fornece as respostas aos dilemas e
contradições que crassam o feminismo eurocentrado e aponte a emergência do apelo por uma
nova justiça que reconheça plenamente a humanidade de todas as singularidades humanas.
168

Janheinz Jahn (1970), filósofo alemão, apresenta brevemente como as categorias ntu,
muntu, bantu e ubuntu contribuem para o entendimento das culturas negras na África e na
denominada Diáspora Negra. Sua exposição, entretanto, parte das etnias bantu de Ruanda.
Assim como atravessa a fronteira nacional ruandesa acolhendo escritores nigerianos, europeus,
etc. Tal escolha reflete as escolhas do pensador alemão ao ultrapassar a própria fronteira
nacional e pesquisar além das culturas africanas, as culturas árabe e italiana.
Renato Noguera (2012), filósofo brasileiro, busca na ética bantu das etnias da África
do Sul uma rota pluriversal que possibilite soçobrar a perspectiva universalista da filosofia
eurocentrada. Convida escritores sul-africanos, estadunidenses, franceses, alemães ao
polidiálogo que pretende estabelecer na busca por uma educação antirracista.
Nesta direção, Renato Noguera e Marcos Barreto (2018) convidam teko porãs,
guaranis e outras etnias que habitam o território brasileiro para um polidiálogo sobre a infância,
neste os conceitos bantu das etnias sul-africanas e as noções teko porãs confluem em
formulações para novas relações éticas. Este diálogo entre o pensamento bantu e teko porã é
um convite a articulação entre os negro-brasileiros e as etnias primevas para a descolonização
da nação e o reconhecimento que ambos os povos em inúmeros momentos da história nacional
se articularam na luta contra a escravização.
Henrique Cunha Júnior (2010), filósofo brasileiro, visita a educação bantu, explicita
quais categorias atravessam a proposta de ensino nestas sociedades com o intuito de criticar o
caráter racista e etnocêntrico da educação brasileira. Entende que as noções ntu, muntu, bantu
e ubuntu enriquecem o debate educacional brasileiro na direção do soçobrar dos efeitos da
educação eurocentrada.
Alexandre do Nascimento (2014), filósofo brasileiro, diferencia-se dos demais ao
articular a noção de ubuntu com a noção de democracia e com a questão educacional. Entende
que o apelo ético elencado pelo conceito se articulado com autores como Paulo Freire fomenta
um debate sobre uma educação coletiva para a emancipação e a liberdade.
Wanderson Flor do Nascimento (2016) discorre sobre as implicações para o ensino na
educação básica da aprovação da legislação que promete e compromete os estabelecimentos de
ensino com a filosofia africana e elenca a partir da noção de travessia o contato, o conhecimento,
uma tecitura dos saberes filosóficos do ocidente, indígenas, africanos e orientais numa
interlocução ubantizada.
Luiz Dantas (2015) ao verificar a implementação da legislação que deputa o ensino de
filosofia africana na rede estadual de ensino médio paranaense, constata a dificuldade de sua
169

implementação e enuncia o emprego do conceito de ubuntu como um dos caminhos possíveis


para a efetivação da promessa e do compromisso com a justiça performatizados pela lei.
Marcelo Moraes (2017, 2017b, 2018) busca no conceito de ubuntu os elementos para
pensar a descolonização e desconstrução do pensamento iniciada por Jacques Derrida na
Gramatologia e apresentada como estratégia desconstrutora da justiça e como anúncio da
chegada da democracia por–vir. Desconstruir a justiça como pensada pelos filósofos clássicos
e modernos europeus é possível se a atravessarmos pelo quase–conceito de democracia por–
vir. Este remete para pensar que a justiça e a democracia são uma promessa, apontam para um
futuro que nunca será presente, mas que chega ao presente – acontece.
A escuta de Jacques Derrida, nos diz, das denúncias que fez abre caminhos para a
acolhida pelo pensamento de éticas e epistemologias que foram marginalizadas ou esquecidas
pela historiografia e pela filosofia ocidental. Acolher o subalterno, o marginalizado é
reconhecê-lo como o outro. O outro, um construtor de outras epistemologias e éticas, inscritas
em outras formas de escritura, portanto, a acolhida da alteridade não se condiciona pela
interpretação europeia clássica ou moderna, isto é, pelo etnocentrismo. Mas, é a construção de
possibilidades de abertura radical e in–condicional a alteridade.
O rompimento do predomínio do homem branco, racional, hétero e europeu – chamado
por Derrida de mitologia branca – chega como a abertura as produções culturais, científicas e
éticas dos não-europeus – da mulher, do negro, do ameríndio, do homossexual, etc. E nesta via
aberta por Derrida é que segue Marcelo mudando de lugar, de topos, de perspectiva num gesto
desconstrutor da história da humanidade e da filosofia. Os atravessamentos e reterritorializações
propostos, para além da concordância com as outrora feitas por Derrida, fincam solo nos
territórios onde a filosofia promoveu o epistemícidio e o racismo espitemológico.
Moraes desvia da filosofia eurocentrada quando elabora novas perguntas e ao colocar
estes novos lugares como ponto de partida de sua leitura, apresenta um deslocamento topológico
que possibilita uma geopolítica da descolonização. E durante o deslocamento topológico,
taticamente afasta-se da estratégia desconstrutora para descolonizar o pensamento e nesta
performance busca enraizar-se nos solos onde habita a alteridade para se auto-reconhecer como
negro, como descente de africano, como descendente de ameríndio a fim de conhecer, pensar e
repensar a partir do outrem.
Afirma, ainda, que para desconstruir é necessário reconhecer a mitologia branca
enquanto hegemonia e paradigma que só se consolidou e colonizou o pensamento via violência
colonial e econômica promovida contra a América e a África. Assim, desvelar que a filosofia e
a universidade – enquanto principal local de exercício e prática filosófica – são locais
170

privilegiados de legitimação do discurso eurocêntrico. Compreende que ouvir Derrida anunciar


à desconstrução do pensamento e Fanon a descolonização do pensamento é entender que a
filosofia criou um sistema fechado a tudo que chegava de fora, que vinha das margens da Europa
e que desconstruir e descolonizar o pensamento não são destruir com uma única martelada a
estrutura eurocêntrica. Pois, o edifício metafísico e os recursos bélicos europeus são as armas
empregadas na neutralização e colonização daqueles que são considerados uma ameaça ao
Ocidente e por implicação promovem e reforçam o racismo na luta europeia anti-africana, anti-
indígena, anti-negra, etc. Se a violência bélica, filosófica, sexual, narcótica, assim como, a
escravização e o extermínio foram empregados para rebaixar o não-europeu e apagar os
resquícios da singularidade dos povos não-europeus, somente fora da Europa é que se
encontrará os quase–conceitos com a força para deslocar, inverter, desconstruir, descolonizar o
conceito de humanidade. E nesta direção é que compreende na noção de ubuntu a força para
anunciar que a humanidade de cada pessoa chega quando se reconhece a humanidade do
outrem.

O que esperar?

Contra-assino aqui as leituras (RAMOSE, 1999; 2002) que relacionam propor ubuntu
como a raiz ou origem da filosofia africana com a rejeição do acolhimento deste conceito pelas
pessoas não-africanas ou não-descendentes de africanas. O desvio (FINCH III et
NASCIMENTO, 2009, p. 37-69) é um reconhecimento que sempre houveram pessoas brancas
que deslocaram a Europa em seus pensamentos e compreenderam as civilizações europeias
como herdeiras das civilizações africanas. Entendo como afirmado acima que o termo ubuntu
é empregado apenas por quatro das inúmeras etnias que habitam o continente africano, contudo
que a ideia que expressa, o apelo que evoca pode contribuir para a reflexão de todas as etnias
que habitam a África ou qualquer outro continente. E por entender que a legislação antirracista
aponta a pluriversalidade e o conceito de ubuntu como um caminho para o abandono da
universalidade como proposta pelos europeus e aceno na rota de um horizonte pluriversal de
desconstrução e descolonização da filosofia.
E o horizonte pluriversal5 é identificado mesmo nas obras que buscam no ubuntu um
solo onde edificar a descolonização e a desconstrução do pensamento. Pois, nas obras que

5
ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: notas sobre uma posição, p. 93-110. In: NASCIMENTO, 2009;
FINCH III, Charles S. A afrocentricidade e seus críticos, p. 167- 177. In: NASCIMENTO, 2009; NASCIMENTO,
Elisa Larkin. O olhar afrocentrado: introdução a uma abordagem polêmica, p. 181-196. In: NASCIMENTO, 2009.
171

reivindicam o ubuntu como o centro da filosofia africana, isto é, nas filosofias afrocêntricas
dais quais este trabalho é herdeiro, a afrocentricidade é uma tática de deslocamento do lugar da
Europa no pensamento moderno, é uma inversão dos pares binômicos: europeu versus não-
europeu, civilizado versus incivilizado, etc. Tal tática objetivava valorizar a África como o
continente de aparecimento da espécie humana, as civilizações africanas antigas como
ancestrais das civilizações do Oriente próximo e da Europa, etc. Não se pode esquecer todas as
obras africanistas ressaltam seu papel de conscientização das pessoas pretas em África e na
diáspora e seu compromisso com a pluralidade étnica da humanidade, a recusa a qualquer
tentativa de estabelecer um paradigma universalista fundado na África e a responsabilidade dos
africanos e dos seus descendentes na diáspora com a libertação de todas as pessoas humanas
como condição para a autonomia de todos os povos.
A pluriversalidade aqui é entendida como o anúncio do igual reconhecimento de todas
as contribuições singulares e coletivas produzidas pela espécie humana. É reconhecer que a
humanidade de cada singularidade ocorre, chega, acontece quando cada pessoa interage, se
relaciona, acolhe as outras singularidades na sua différance, isto é, contamina-se a
pluriversalidade com ubuntu, com um sentido colaborativo da existência humana, apontando
que o existir das singularidades só é possível na comunidade e o das comunidades na
colaboração com outras comunidades. Nesta direção as comunidades, assim como as
singularidades não se realizam sem serem justas umas com as outras, sem abandonarem
qualquer prática de exploração, engano ou injustiça inter-comunitárias.
Entende-se a partir da escuta de Marcelo Moraes (2017, 2017b, 2018.) que o conceito
Ubuntu, talvez, por economia possa plurear6 nossa busca por uma via jurídica–política–ética
que aponte um horizonte de soçobramento dos efeitos do racismo, do logocentrismo em nosso
país. Acolher sua reflexão sobre o lugar do conceito de ubuntu na filosofia africana apresenta-
se como uma das rotas possíveis para a descolonização e desconstrução do pensamento e no
apelo por uma nova mundialização.
Assimilar (HERNANDES, 2008; SILVÉRIO, 2013, 2013b; MORAES, 2017, 2017b,
2018; FOÉ, 2013; APPIAH, 1998; MBITI, 2001; SILVA, 2013; MBEMBE, 2001, 2014, 2016.)
o pensamento europeu como tática de modernização das sociedades africanas significa importa
as crises e violências que o eurocentrismo gera na Europa e em todos os territórios para onde é
exportado. Ainda que empregue novas roupagens ou figurinos, a globalização tal como pensada

6
Entende-se aqui a importância do conceito de sulear, outrossim, entendo que a legislação antirracista brasileira
aponta para a pluralidade das origens e para um horizonte plural e de co-existência, neste sentido o termo sulear
poderia confundir a pluriversalidade pretendida com a troca do norte como centro por um novo centro, o sul.
172

pela Europa é uma nova tática de exploração e subalternização das demais etnias, isto é, a
globalização é uma neocolonização. Romper com a colonização ou com a neocolonização
ocorre quando se apela novas relações internacionais sem colônias e sem metrópoles, quando
se abre a democracia por–vir.
Ubuntu apela pela pesquisa do pensamento clássico das etnias que habitam o
continente africano. Aponta um olhar tanto para Kemet [Egito] quanto para Núbia, Império do
Sudão, Império de Kerma, Reino de Punt, Reino de Axum, Império Songhai, Reino Mali,
cidades-estados dos Yorubás, Reino do Congo, Reino do Benin, etc., para encontrar em seus
provérbios, seus mitos, suas filosofias caminhos para a descolonização e desconstrução dos
modernos Estados-nação, neocolonizados pelo etnocentrismo de líderes cujo pensamento
colonizado não lhes permitiu compreenderem que a África possui uma história e um papel de
impulsionadora das civilizações humanas que apareceram noutras terras a partir da diáspora
que a espécie empreendeu há milhares de anos.
E mesmo na história moderna do continente, quando da interseção entre o pensamento
clássico e o pensamento árabe, quando das invasões árabes é mister notar as resistências
políticas empreendidas pelas etnias do continente, assim como que mesmo as etnias que foram
ou belicamente ou culturalmente islamizadas, a islamização não ocorreu como um processo de
assimilação cultural dos povos do continente, antes houve negociações, ressignificações, etc.,
entre os valores civilizatórios das etnias do continente e os valores islâmicos. De maneira que
podem ser encontrados rastros de uma interpretação africana do Islã. Nesta rota, invocar esta
herança poderá ser um caminho para evitar a tentativa de neocolonização islâmica em curso
que supostamente em nome de uma leitura literal do cânone islâmico promove violência e
extermínio no continente.
É reconhecer (HERNANDES, 2008; SILVÉRIO, 2013, 2013b; MORAES, 2017,
2017b, 2018; FOÉ, 2013; APPIAH, 1998; MBITI, 2001; SILVA, 2013; MBEMBE, 2001, 2014,
2016) a importância das tentativas que estabelecem a comunicação entre o pensamento clássico
africano e o pensamento cristão, mas assinalar que a reconciliação entre os povos colonizados
pelos cristãos europeus e as etnias que lutam contra a neocolonização será possível se houver
da parte dos cristãos a recusa da violência neocolonial empreendida pela Europa. Assim como
as tentativas de empreendimentos missionários cristãos que solidificados numa suposta leitura
literal do cânone cristão ocidental e por desconhecerem a história das Igrejas Coptas do Egito
e da Etiópia demonizam a história do continente e neste gesto executam um epistemicídio no
continente. As nações africanas, talvez, encontrem possíveis rotas se atravessarem os conceitos
cristãos de justiça, perdão, etc., com a noção de co-existência, com a ideia de ubuntu.
173

Notar a importância do pensamento marxista na formulação da crítica a colonização e


na luta pela emancipação dos povos africanos não significa silenciar a perspectiva eurocêntrica
dos formuladores marxistas durante o século XIX. Ainda, não se pode esquecer que a
apropriação irrefletida destes valores levou para o continente em seu bojo as crises que
assolavam o continente europeu naquele tempo, tal postura, eclipsou caminhos próprios para a
construção da solidariedade no continente. Quiçá, atualmente a crítica a neocolonização
econômica e a aproximação da ideologia marxista para alcançar a emancipação de todas as
pessoas em África independente da origem étnica ou pigmentar passe pela ubantização do
marxismo.
Entendo, portanto, que investigar e pensar juntos com as filósofas e filósofos – que em
África ou fora dela, oriundos de países africanos ou que lá aportam – que elaboram e refletem
reconhecendo as heranças das etnias africanas e os atravessamentos e contaminações iniciadas
com o contato com os pensamentos europeus e asiáticos, talvez, aponte um caminho para se
pensar o Brasil. País herdeiro das etnias americanas primevas e atravessado pelas contribuições
das etnias vindas da África, Ásia e Europa, e, que ainda não confessou os traumas que envolvem
a chegada de cada uma dessas etnias, as violências e epistemícidios promovidos na promoção
da unidade linguística e silenciamento dos idiomas não-europeus, assim como a profissão e
compromisso com um horizonte de reconhecimento e valorização das contribuições de cada
etnia envolvida na construção deste Estado-nação.

Considerações quase-finais?

Quando ouço e convido todas estas pessoas para o polidiálogo, espero apontar que o
acontecimento da pluriversalidade já chegou, e que este chegante solicita a pesquisa e o ensino
da filosofia no país. Abalo deputado pela legislação antirracista que exige um novo marco
jurídico–político–ético no ensino superior e na educação básica.
A escuta das sul-africanas Karin Van Marle, do Lesley le Grange, do Mogobe B.
Ramose, do [africano desenraizado] franco-argelino: Jacques Derrida, do alemão: Janheinz
Jahn, atende a solicitação de valorizar as raízes africanas ao lado das europeias e atentar-se para
leituras que rasuram a fronteira entre filosofia europeia e filosofia africana. Assim como a
audição dos brasileiros Marcelo Moraes, Renato Noguera, Marcos Barreto, Henrique Cunha
Júnior, Alexandre do Nascimento e da estadunidense Drucila Cornell remete para pessoas que
convocam a travessia entre a filosofia africana e a europeia como rota para desconstruir e
descolonizar a filosofia nas Américas.
174

Ubuntu como quase–conceito abala a compreensão do Direito, da Política, da Ética e


da Justiça e orienta para a hospitalidade in-condicional de todas as pessoas. Estremece a
Epistemologia e a Teoria do Conhecimento e orienta para um aprender a aprender, para um
ensinar a aprender e para um fazer com o outro e uma exigência que ambos aprendam juntos.
E, deputa uma nova Ontologia que tenha como horizonte que uma pessoa é pessoa através de
outras pessoas.

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BRASILEIRA

Roberto Carlos Costa da Silva


IFRJ*
rccsilva1045@gmail.com

Ogum cria a forja


Ogum e seus amigos Alaká e Ajero foram consultar Ifá.
Queriam saber uma forma de se tornarem reis de suas aldeias.
Após a consulta foram instruídos a fazer ebó, e a Ogum foi pedido um cachorro como oferenda.
Tempos depois,
Os amigos de Ogum tornaram-se reis de suas aldeias, mas a situação de Ogum permanecia a mesma.
Preocupado, Ogum foi novamente consultar Ifá
E o adivinho recomendou que refizesse o ebó.
Ele deveria sacrificar um cão sobre sua cabeça e espalhar o sangue sobre seu corpo.
A carne deveria ser cozida e consumida por todo seu egbé.
Depois, deveria esperar a próxima chuva e procurar um local onde houvesse ocorrido uma erosão.
Ali devia apanhar da areia negra e fina e colocá-la no fogo para queimar.
Ansioso pelo sucesso, Ogum fez o ebó
E, para sua surpresa, ao queimar aquela areia, ela se transformou na massa que se solidificou em ferro.
O ferro era a mais dura substância que ele conhecia,
Mas era maleável enquanto estava quente.
Ogum passou a modelar a massa quente.
Ogum forjou primeiro um tenaz,
Um alicate para retirar o ferro quente do fogo.
E assim era mais fácil manejar a pasta incandescente.
Ogum então forjou uma faca e um facão.
Satisfeito, Ogum passou a produzir toda espécie de objetos de ferro,
Assim como passou a ensinar seu manuseio.
Veio fartura e abundância para todos.
Dali em diante Ogum Alagbedé, o ferreiro, mudou.
Muito prosperou e passou a ser saudado como Aquele que Transforma a Terra em Dinheiro.
(PRANDI, 2001, p. 96)

Portugal e a metalurgia

O ferro era facilmente encontrado em jazidas superficiais nas regiões da Serra Algarvia
– Serro do Rocio (Aljezur), Adualho (Lagos), Alagoas (Oulé) e Serros Altos (Albufeira).
Mesmo tendo a facilidade de encontrar o minério de ferro, sua produção é mais complexa do

*
Co-coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade - GEPECD.
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que o bronze, nesse período, “... não houve um impacto na tecnologia. Não surgiram novos
tipos adequados a novas necessidades” (PEREIRA, 2008, p. 29). O desempenho e a qualidade
da fundição do ferro estavam diretamente ligados aos diferentes tipos de fornos. Existiam três
tipos: “um grupo mais primitivo, que se valia de um buraco no solo e sem separação da escória;
um segundo grupo com separação vertical da escória e com uma câmara de combustão fechada;
e, por último, um grupo com escorrimento da escória para o exterior”. (SERNEELS apud
PEREIRA, 2008, p. 29). Séculos se passaram e Portugal não conseguira se estabelecer na
produção metalúrgica do ferro. Não por falta de tentativas, mas pela falta de recursos e de uma
estrutura voltada para o seu pleno desenvolvimento. Diante do atraso português e da iniciativa
das elites esclarecidas que tinham como certo o empreendimento da indústria mineira e
metalúrgica a partir do Estado, coube então a D. Rodrigo de Sousa Coutinho o relançamento da
atividade mineira no primeiro ano do século XIX.
Em 1801, através da carta do Príncipe Regente, datada de 18 de maio, é criada a
Intendência Geral de Minas e Metais do Reino. A fim de reconduzir o ressurgimento da nação
portuguesa, o brasileiro José Bonifácio de Andrada e Silva (nascido na cidade de Santos, São
Paulo, em 1763) é nomeado Intendente Geral de Minas e Metais do Reino (GUIMARÃES,
2000, p. 53). Sua nomeação se relacionava ao fato dele ter estudado montanística – o estudo
sobre a natureza dos metais, sua extração e fusão – e docimasia – estudo que tem como objetivo
determinar a proporção dos metais contidos nos minérios. Outros dois nomes o acompanharam
nesse trabalho para o qual fora designado: Joaquim Pedro Fragoso de Sequeira e Manuel
Ferreira da Câmara. Nos dez anos em que transcorreu a sua nova formação como bolsista do
Estado, na Universidade de Freyberg, Saxônia, visitaram estabelecimentos metalúrgicos na
França, Itália, Holanda, Suécia e Dinamarca (GUIMARÃES, 2000, p. 54). Após sua posse
Bonifácio redigiu o Regimento das Minas e Metais do Reino. Este documento lhe dava
competências jurisdicionais, policiais, civis e criminais em tudo o que dissesse respeito à
concessão, registro, administração e política das minas, fundições e bosques portugueses.
No início do século XIX, também os alemães Eschwege e Varnhagen, Guilherme
Feldner e João Martinho Stieffel, foram contratados a fim de reestruturar e aumentar a produção
de ferro e melhorar sua qualidade. Eschwege era formado em Filosofia, Matemática e Ciências
Montanísticas pela Universidade de Freyberg e tinha ano e meio de experiência prática na
construção de fornos. Varnhagen era um jovem de 18 anos que acabara os estudos químicos e
montanísticos. Stieffel era um antigo proprietário de uma fábrica de ferro que falira. Feldner
era topógrafo e desenhista (op. cit., p. 59). Antes da chegada dos técnicos citados, José
Bonifácio iniciou os trabalhos para abertura das minas de ferro de Milhariça e de Água d’Alta;
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promoveu a abertura de pedreiras, com produção voltada para as construções dos fornos;
reativou duas forjas de ferreiro no Engenho da Foz d’Alge, a fim de fabricarem o ferro
necessário para pontes, rodas, foles; e, por fim, reergueu as minas de carvão que se encontravam
desativadas. (BARROS, 1989, p. 18)
Assim que chegaram, os técnicos alemães seguiram para Foz do Alge. O Intendente
Geral imediatamente designou a direção dos fornos a Eschwege; à Varnhagen, a organização
do refino; à Stieffel, a organização das forjas; e a Guilherme Feldner, as minas de carvão de
São Pedro. (BARROS, 1989, p. 19)
Eschwege, ao chegar às ferrarias de Porto Alegre e Trás-os-Montes, observa:

[...] O método ordinário das fundições que usavam era em forninhos pequenos que
eles de um modo mais simples que podia ser, arranjavam, destes forninhos ao pé da
aldeia da Foz do Alge, assim como ainda hoje usam os pretos na África e de que é
filho melhorado o método atual das Fundições da Biscaia. (ESCHWEGE apud
GUIMARÃES, 2000, p. 56)

A avaliação dos técnicos alemães sobre essas primeiras fundições se mostrava negativa
e desanimadora, apesar de todos os esforços feitos por José Bonifácio. O momento político
contribuiu para o insucesso dos germânicos: D. Rodrigo de Sousa Coutinho deixa o Ministério,
dando lugar a D. Luiz de Vasconcelos e Sousa. Este, ao assumir a presidência do Real Erário,
paralisa os trabalhos, acarretando a perda do açude e de todo o carvão. D. Luiz de Vasconcelos
e Sousa se alinha à corrente fisiocrática, hegemônica em Portugal, que defendia que a riqueza
da nação, historicamente, era proveniente da terra. Nesse sentido, o trabalho das minas fugia à
tradição portuguesa, deslocando recursos que deveriam ser alocados na agricultura.
(GUIMARÃES, 2000, p. 53-62)
José Bonifácio, ainda no cargo de Intendente Geral, retomou as atividades siderúrgicas
em 1812, em uma conjuntura político-militar de contra ofensiva a presença francesa em
Portugal. Mas a experiência de implantação da metalurgia, desta vez, não pôde contar com a
maioria dos técnicos alemães, que haviam seguido a Corte para a nova sede do Império nos
trópicos. Apesar de todo empenho nas orientações aos que ali trabalhavam, não foi possível
obter uma produção satisfatória. Aliado ao fator técnico existia também, contra as intenções de
Bonifácio, uma divergência política com a direção da Real Fábrica de Sedas e Águas Livres de
Lisboa, fornecedoras necessárias à Fábrica e à Intendência, que, seguindo a linha fisiocrática já
citada, resistiam ao empreendimento da metalurgia.
Insatisfeito, José Bonifácio licenciou-se em 1819 do seu cargo à frente da Intendência
Geral das Minas e Metais do Reino, retornando em seguida ao Brasil. Assumiu interinamente
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seu ajudante na Intendência e seu assistente no Laboratório Químico da Casa da Moeda de


Lisboa, Alexandre Antônio Vandelli. (BARROS, 1989, p. 22)
A Fábrica de Figueiró dos Vinhos para de produzir ferro, permanecendo em atividade
apenas à mina de carvão de São Pedro da Cova (op. cit., p.22]. Segundo Marques (2010),
Alexandre Vandelli sabia o quanto seria fundamental e necessário para o desenvolvimento de
Portugal a realização da sua Revolução Industrial, assumindo definitivamente os mesmos
preceitos liberais que serviram de fundamento para a Revolução Industrial inglesa – conforme
era o projeto defendido por Bonifácio, ao qual ele pretendia dar continuidade. Nesse sentido, o
domínio da metalurgia do ferro seria uma etapa importante para o processo de independência
econômica de Portugal.
Chamo a atenção para as questões levantadas por Barros (1989), para ele, a falta de
tradição siderúrgica portuguesa estava atrelada à escassez de recursos minerais e mão de obra
de qualidade. Além dos acontecimentos políticos, econômicos e administrativos citados, soma-
se ainda, segundo esse autor, a falta de uma “mentalidade siderúrgica”, que não conseguiu se
consolidar na cadeira de Metalurgia na Universidade de Coimbra, sob a responsabilidade de
José Bonifácio. Barros concluiu, dessa forma, que Portugal não acumulara o conhecimento
necessário no processo de fusão de ferro, a fim de habilitá-lo a empreender tal atividade na
colônia brasileira sem ajuda de estrangeiros (op. cit., p. 24). Neste sentido, a Coroa Portuguesa
irá recorrer a mão de obra qualificada africana.

A metalurgia do ferro em África

Ainda se discute sobre o surgimento da metalurgia do ferro na África, sua origem


histórica, via de regra, é atribuída as teorias que priorizam processos externos como sendo
germinadores de tal ofício. Raymond Mauny defende que a origem é proveniente de objetos de
ferro oferecidos como presentes aos faraós pelos hititas. Esses, após invadirem o Egito, por
volta do século VII a.C., teriam transmitido aos africanos dessa região os segredos da arte de
manusear o ferro. A partir deste momento a “difusão” do metal se daria por todo o continente.
(M’BOKOLO, 2009, p. 68)
“O Egito é uma dádiva do Nilo”, já afirmava Heródoto. O vale do Nilo foi uma dádiva
não só para o Egito, mas também para toda a África quanto à difusão do ferro. O mineral era
muito utilizado, por exemplo, durante o reinado da XXV Dinastia Egípcia. No século I antes da
Era Cristã a civilização de Méroe teria contribuído para a disseminação do mineral pelo
continente (VERCOUTTER, 2010, p. 876). Esta afirmação, entretanto, não é unânime entre
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arqueólogos e historiadores. A grande quantidade de escória encontrada nas proximidades de


Méroe originou a hipótese sobre o alto grau de desenvolvimento tecnológico dos meroítas em
relação à metalurgia do ferro. Com base nessa hipótese, pesquisadores como A. H. Sayce e
Tylecote afirmavam a existência da fusão do mineral nessa região. Já Amborn, após encontrar
uma quantidade considerável de utensílios de cobre, descarta a possibilidade dos meroítas
possuírem um envolvimento com a metalurgia nos termos defendidos por Sayce e Tylecote.
(ALI HAKEM, 2010, p. 316) Para Posnansky, não há prova incontestável sobre a difusão da
metalurgia do ferro a partir do vale do Nilo. (POSNANSKY, 2010, p. 597) De qualquer forma,
esse debate está longe de terminar: em contraposição às conclusões de Amborn, pesquisas
arqueológicas desenvolvidas mais recentemente apontaram para a descoberta de fornos de
produção de ferro na região de Méroe (SHINNIE; KENSE apud ALI HAKEM, 2010, p. 317)
Nesse contexto, com o avanço das datações científicas dos sítios arqueológicos em
várias localidades do continente africano, possibilita um melhor entendimento dos processos de
desenvolvimento da técnica referente a metalurgia do ferro. (M’BOKOLO, 2009, p. 68) A
fundição do ferro necessita de temperatura até 1150ºC para transformar o minério em lingote –
temperatura esta superior ao ponto de fusão do cobre, que é de 1100º C. Além disso, é necessário
ter um conhecimento sobre a adição de carbono e oxigênio durante o processo de fusão – o que
teria sido obtido a partir de um processo de experimentação, como uma transição da fundição
do cobre para o ferro. (POSNANSKY, 2010, p. 598-601)
Sobre a técnica empregada para confeccionar seus utensílios e armas, Alberto da Costa
e Silva assinala que, para fundir o ferro, esses povos empregavam um pequeno forno de poço
raso. Faziam no chão um buraco arredondado, com pouco mais de meio metro de circunferência
e outro tanto de profundidade. Prolongavam para cima a cavidade com um muro cilíndrico de
barro, em cuja base abria os orifícios para os tubos dos foles. (SILVA, 2011, p. 173)
No vale do Kalomba, Zâmbia, foi encontrada uma série de oito fossas de paredes retas
e paralelas, que Van Noten descreve da seguinte forma:

[...] com cerca de 1m de diâmetro e 2m de profundidade, continha potes e cacos de cerâmica


e fragmentos de moldes, objetos de ferro e escórias de ferro fundido. Quatro dessas fossas
apresentavam-se rodeadas por uma trincheira circular, possivelmente restos de uma
superestrutura. Inúmeras peças de escórias de ferro, especialmente um grande bloco de restos
de ferro fundido na base de um forno, e diversos fragmentos de tubos de forja, mostram que
a fundição do ferro era praticada, se não nos sítios de habitação, pelo menos em seus
arredores. (NOTEN, 2010, p.691)

Para a África oriental e austral, M’Bokolo (2009) relata uma grande quantidade de
materiais associados à metalurgia do ferro. Em Uganda, há um registro arqueológico da
ocorrência de um grande desmatamento, por volta de 500 a. C., possivelmente para obtenção
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da lenha para a produção de ferro. No Quênia e Tanzânia, Natal, Transvaal e Botswana, as


técnicas de metalurgia do ferro se difundiram neste vasto território num período de duzentos
anos, entre os séculos II e IV a.C. (M’BOKOLO, 2009, p. 70-71)
O minério de ferro na porção meridional do continente era extraído praticamente da
superfície. Sua fundição foi bem difundida na região e o forno localizava-se no interior das
aldeias. Não se sabe sobre o uso de foles nos fornos, assim como, aparentemente, não se
identificou a existência de práticas rituais por parte dos ferreiros.
A utilização deste mineral trabalhado se fazia em forma de facas, pontas de flechas e
lanças de ferro. As principais minas situavam-se na divisória das bacias dos rios Congo e
Zambeze, no Zimbábue; na Botsuana oriental; no vale do Limpopo e no rio Transvaal oriental
(PHILLIPSON, 2010, p. 766-767).
A palavra “bantu” designa um grupo linguístico que acabou tendo um significado
etnográfico e antropológico, cuja migração para o restante do continente estabelece uma relação
com a difusão da metalurgia do ferro. O termo bantu especifica uma população superior a
duzentos milhões de pessoas e vários idiomas distribuídos em troncos, famílias, subfamílias,
grupos e subgrupos linguísticos. Essa grande família teria se originado de um ponto central da
África. Tal hipótese baseia-se em pesquisa realizada comparando-se os vocabulários e
gramáticas das línguas bantas modernas, tendo como meta encontrar uma raiz comum a todas.
Esse núcleo inicial foi designado pelos especialistas como protobanto. Contudo, é a partir deste
ponto inicial que surgem duas correntes distintas a fim de dar conta do surgimento dos povos e
línguas bantas e, consequentemente, a difusão da metalurgia do ferro. (SILVA, 2011, p. 210)
Segundo M. Posnansky, a teoria de Guthrie estabelecia que o desenvolvimento do
protobanto se deu ao sul da floresta do Zaire. Daí teria se fragmentado no banto oriental e banto
ocidental. A partir dos estudos de alguns vocábulos para determinar o ambiente em que o
protobanto era falado, descobriu-se que as palavras que significam “pescar com linha”, “canoa”,
“remo” e “forjar” eram todas muito comuns e que o termo correspondente a “floresta” em
protobanto estava associada mais a “bosque” do que a “floresta densa”. A conclusão, portanto,
foi de que os protobantos teriam conhecido a metalurgia do ferro antes de se dispersarem, na
metade do primeiro milênio.
Na concepção de J.E.G. Sutton (2010), mais importante do que sua origem é o fato
evidente de que os primeiros bantus dependiam do ferro e eram considerados como o povo que
detinha o segredo da metalurgia.
Sutton considera que a migração dos bantos se deu de forma rápida e ampla, sem
cumprir fases progressivas e muito menos devido a uma campanha militar, mas que essa
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expansão pode ser entendida como um processo de colonização (SUTTON apud SILVA, 2011,
p. 226) que foi concluído ao longo de aproximadamente 2000 anos. Registre-se, no entanto, que
um terço da África oriental, constituído pelos antigos povos cuxitas, resistiu à colonização –
apesar da constatação da existência de interação econômica e cultural, incluindo miscigenação
e assimilação de ambas as partes.
Dentre as “mitologias dos metais”, a mais rica e mais característica foi elaborada em
torno do ferro (ELIADE, 2010, p. 60).
Talvez esse fascínio esteja diretamente ligado às populações que aprenderam a
manusear o ferro meteórico antes de utilizarem os minérios ferrosos encontrados na superfície.
Segundo Eliade, o vocábulo mais antigo aplicado ao ferro era escrito com os sinais “Céu” e
“Fogo” e traduzido por “metal celeste” ou “metal-estrela”. Além do ferro negro do Céu não ser
encontrado com facilidade, sua origem estelar gerou mitos nesse sentido e motivou sua
utilização em diversos rituais. (op. cit., p. 61).
A partir do momento em que foi desvendado o segredo da fundição da magnetita e da
hematita, associada à descoberta dos fornos e da técnica de “endurecimento” do metal,
favoreceu-se ao emprego cotidiano de ferramentas desse metal e enalteceu-se ainda mais sua
sacralidade. (op. cit., p. 62).
A respeito da sacralidade, Eliade esclarece:

[...] Carregados dessa sacralidade tenebrosa, os minérios são enviados aos fornos. É
então que tem início a operação mais difícil e mais temerária. O artesão substitui a
terra-mãe para acelerar e completar o “crescimento”. Os fornos são de alguma forma
uma nova matriz, artificial, onde o minério conclui sua gestação. Daí o número
infinito de precauções, tabus e rituais que acompanham a fundição. (ELIADE, 2010,
p. 62-63).

Além desse universo que envolve a magia e o domínio do fogo e as relações com a
mãe Terra, encontramos ainda o sexualismo do mundo mineral. Mircea Eliade apresenta alguns
destes conceitos existentes entre os ferreiros africanos. Entre os Ewes o ferreiro e as ferramentas
da forja ocupam um lugar de importância considerável na vida religiosa. Supõe-se que o martelo
e a bigorna caíram do Céu e é perante eles onde se faz juramento; o ferreiro é o fazedor de
chuva e pode conduzir uma guerra à feliz término. Para os Yorubas foi “Ogum”, o Primeiro
Ferreiro, quem forjou as primeiras armas, ensinou a caçar aos homens e fundou a sociedade
secreta de “Ogboni”. (op. cit., p.74)
Hampaté Bâ (1997) explica-nos que as tradições africanas têm uma visão religiosa do
mundo. O universo invisível é vivo e constituído de forças em movimento infinito. Porém, no
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interior desta unidade cósmica, tudo se liga e é solidário, e o comportamento do homem em


relação a si mesmo e ao mundo (mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) será objeto de
uma regulamentação ritual muito precisa cuja forma pode variar entre as etnias ou regiões.
Os tradicionalistas são os grandes depositários da memória viva da África. São
portadores dos segredos cósmicos e das ciências da vida, são conhecedores dos acontecimentos
passados transmitidos pela tradição, ou de fatos contemporâneos.
O que a África tradicional mais preza é a herança ancestral. O apego religioso ao
patrimônio transmitido exprime-se em frases como: “Aprendi com meu Mestre”, “Aprendi com
meu pai”, “Foi o que suguei no seio de minha mãe”. Os grandes depositários da herança oral
são os chamados “tradicionalistas”. Memória viva da África, eles são suas melhores
testemunhas.
Sobre os ofícios tradicionais, Hampaté Bâ nos esclarece:

O ferreiro tradicional, é o depositário do segredo das transmutações. Por excelência,


é o “Mestre do Fogo”. Sua origem é mítica, e, na tradição bambara, chamam-no de
“Primeiro Filho da Terra”. Suas habilidades remontam a Maa, o primeiro homem, a
quem o criador Maa Ngala ensinou, entre outros, os segredos da forjadura. Por isso
a forja é chamada de Fan, o mesmo nome do Ovo primordial, de onde surgiu todo o
universo e que foi a primeira forja sagrada. Os elementos da forja estão ligados a um
simbolismo sexual, sendo esta a expressão, ou o reflexo, de um processo cósmico de
criação. Desse modo, os dois foles redondos, acionados pelo assistente do ferreiro,
são comparados aos testículos masculinos. O ar com que são enchidos é a substância
da vida enviada, através de uma espécie de tubo, que representa o falo, para a
fornalha da forja, que representa a matriz onde age o fogo transformador.
(HAMPATÉ BÂ, 1997, p.15)

Ainda sobre os ferreiros, Hampaté Bâ nos informa que o ferreiro tradicional só pode
entrar na forja após um banho ritual de purificação preparado com o cozimento de certas folhas,
cascas ou raízes de arvores, escolhidas em função do dia. Em seguida, o ferreiro se veste de
modo especial, uma vez que não pode entrar na forja vestido com roupa comum.
Todos os dias pela manhã, o ferreiro purifica a forja com defumações especiais feitas
com plantas que ele conhece. Terminadas essas operações, lavado de todos os contatos com o
exterior, o ferreiro encontra-se em estado sacramental. Voltou a ser puro e assemelha-se agora
ao ferreiro primordial. Só então, à semelhança de Maa Ngala, pode ele “criar”, modificando e
moldando a matéria.
A seguir veremos como esses ferreiros foram importantes para a mineração e a
metalurgia do ferro no Brasil Colônia.
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Diáspora e metalurgia no Brasil

Sabemos que a Diáspora africana para as Américas trouxe nos “navios tumbeiros” uma
quantidade de pessoas que compunham várias sociedades e grupos étnicos. Dentro deste
universo vieram os ferreiros. Esses tiveram uma participação muito significativa no
desenvolvimento da produção agrícola e mineração no Brasil Colônia.
Mesmo após uma travessia desumana através do Atlântico Sul, homens, mulheres e
crianças que aportaram e sobreviveram em terra firme mostraram-se capazes de conservar seu
patrimônio cultural. As voltas em torno da “árvore do esquecimento” (QUEIROZ, 2012, p. 35)
não foram suficientes a ponto de apagarem o patrimônio cultural e técnico adquiridos nas
sociedades a que pertenciam.
O tráfico de seres humanos iniciado no século XVI, e que viria terminar no século
XIX. No século XVIII apresentou-se, por parte dos proprietários de lavras mineiros preferência
por africanos possuidores da técnica metalúrgica do ferro. Esta opção possibilitou a fabricação
de ferramentas agrícolas, utensílios domésticos e dos instrumentos para mineração. (PENA,
2004, p.1)
Sobre a captura de ferreiros, Eduardo Spiller nos conta:

Desde meados do século XVII, os portugueses aliados aos Imbangala, desejando


ampliar o seu controle do tráfico na região de Angola, atacaram o reino do Ndongo,
em sua parte leste, apreendendo muitos africanos do grupo étnico pende, situados no
médio rio Kwango e conhecidos por sua grande habilidade na fundição e arte do
ferro. Os pende continuaram a ser fustigados pelos traficantes até pelo menos a
década de 1720, e os ferreiros estiveram entre os capturados e vendidos à escravidão
atlântica. É plausível supor que eles estivessem, ao lado dos ferreiros fanti-aschanti,
da Costa do Ouro, no rol dos africanos mais cobiçados pelos escravistas mineiros.
(PENA, 2004, p. 1).

As técnicas da fundição e da forja de ferro empregadas pelos ferreiros africanos e seus


descendentes, da região centro-africana, nos quilombos ou nas minas, em qualquer região
brasileira, consistia no desenvolvimento de etapas tais como: a preparação do arenito, a
manufatura do carvão ou de outros combustíveis, a construção do forno de fundição, a fundição
propriamente dita, o refino e tratamento do ferro florado para a forja, e, por fim, o acabamento
dos objetos (PENA, 2004, p. 3). O mestre fundidor exercia o controle e o gerenciamento do
processo de fundição. Entre suas atribuições constava definir o número de pessoas para cada
tarefa a ser comprida. Dentre essas tarefas, contava a construção do forno, que poderia ser
familiar, de agregados ou de escravizados. As mulheres preparavam o barro para as paredes do
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forno, geralmente o barro era retirado dos cupinzeiros. Os homens cuidavam das madeiras e
galhos usados como suporte. Os tamanhos dos fornos dependiam da quantidade a ser utilizada
e da qualidade do minério a ser fundido. Por exemplo, os arenitos com baixo teor de ferro era
preciso fornos maiores para alcançar a quantidade de metal desejada. Outro fator importante
que definia a quantidade de metal a ser produzido era vinculado ao período de seca, considerada
a melhor época para a fundição, pois, madeira e minério molhados reduzem a eficiência dos
combustíveis e fornos. (PENA, 2004, p. 3-4).
D. João VI e sua corte chegaram ao Brasil em 1808. Eram esperadas e de fato
ocorreram novas medidas em prol da indústria siderúrgica. Nas palavras de Francisco de Assis
Barbosa (2010), é dele o grande impulso visando à implementação da siderurgia no Brasil. O
principal motivo era o interesse de ordem militar na defesa do imenso território. Nesse sentido,
todos os técnicos metalurgistas empregados no serviço da Coroa eram militares, com a exceção
de Manuel Ferreira da Câmara e José Bonifácio – por sinal, os únicos brasileiros. Os demais
eram Eschwege e Varnhagen, ambos alemães. Eschwege foi para Minas Gerais e Varnhagen
para São Paulo. (BARBOSA, 2010, p. 37)
Nesse novo contexto, no Rio de Janeiro as fundições das primeiras décadas do século
XIX estavam direcionadas à produção de pás, enxadas, enxós e peças para engenhos.
(MOMESSO, 2007, p. 31)
Em 1846, o industrial Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, comprou a
fundição de ferro localizada em Ponta d’Areia – Niterói. O estabelecimento contava com 28
escravos e com poucas máquinas, com a fundição de ferro sendo realizada sob um telheiro. A
fundição de Ponta d’Areia se constituiu, nessa época, no maior empreendimento industrial da
América Latina, combinando trabalho escravo com trabalho assalariado e diversidade de
procedência quanto à nacionalidade dos trabalhadores, como podemos constatar no quadro
acima (op. cit., p. 119).
A fundição de Alexandre Davidson, em 1850, no Rio de Janeiro empregava 13
estrangeiros e 22 escravos. Dentre estes últimos, havia 6 fundidores de ferro e 6 ferreiros. Os
trabalhadores escravizados possuíam especialização e desempenhavam as mesmas funções que
os trabalhadores europeus. (op. cit., p. 100)
Na opinião de Francisco Barbosa (2010), a morte prematura do ministro D. Rodrigo
foi lamentável pelo fato de, após tanto empenho, não pôde presenciar o resultado de suas
esperanças: o ferro líquido sendo produzido pela primeira vez neste país, em 1812, na Fábrica
Patriótica, em Congonhas do Campo, sob a direção do Barão de Eschwege. Há a notícia também
de que o povo de Sorocaba conduziu em procissão, em 1818, as três cruzes de ferro fundido
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pelo Coronel Varnhagen na Real Fábrica de São João do Ipanema. A Fábrica do Morro de
Gaspar Soares, do Intendente Câmara, chegou a produzir, no ano de 1820, novecentas e vinte
arrobas e meia de ferro. Dentre seus feitos, durante a permanência de Dom João VI no Brasil,
destaca-se, em 1817, a vinda do engenheiro francês João Antônio de Monlevade, iniciando uma
extraordinária obra, que fez com que recebesse, décadas depois, a alcunha de patriarca da
siderurgia.
Sobre a Real Fábrica de São João do Ipanema, Barros apresenta o seguinte relato de
Pandiá Calógeras:

Não se sabe se efetivamente vieram os mestres biscainhos pedidos. Há indícios de


que assim não tenha acontecido, pois pelo que se conhece do funcionamento desta
fábrica pelas informações colhidas pelo Barão de Eschewege em 1811, de um antigo
fundidor e pela presença nela de um negro hábil metalúrgico, pode-se inferir que ali
se estabeleceu uma forja segundo os processos usados na costa africana, importada
pelos escravos dessa procedência e que, mais tarde, se estabeleceram em Minas
Gerais de modo predominante”. “Com todos os visos de probabilidade, foi em
Ipanema que se fundou a primeira fábrica de ferro pelo método dos cadinhos.
Eschewege conheceu-lhe as ruínas e, pela descrição do forno que ouvira de um velho
fundidor que ali residia, não resta dúvida que se tratava de um forno de cadinho à
moda africana”. O historiador Aloísio de Almeida, conhecedor da história
sorocabana, admite que o velho Sardinha nas suas tentativas siderúrgicas se valeu de
“um dos escravos africanos que foi o primeiro a introduzir em São Paulo.
(CALÓGERAS apud BARROS, 1989, p. 38)

Em 1853, o Presidente da Província de Minas Gerais indagou ao engenheiro francês


Monlevade a respeito do que ele precisaria para estabelecer uma fábrica de ferro líquido na
região. O engenheiro, então, relacionou os cinco itens que considerava como necessários para
desenvolver o projeto que estava em suas mãos, afirmando que tinha todos eles à sua disposição:
possuía o ferro; área de mato para o carvão; dois ribeirões; madeira em abundância e ainda
dispunha de 150 homens escravizados especializados na arte de produzir ferro, no método de
fabricação do carvão à moda europeia, e no manejo do ferro de todas as formas e tamanhos.
(GOMES, 1983, p. 111)
Os professores da Escola de Minas de Ouro Preto reconhecem a superioridade
numérica dessas fábricas em face do domínio dessa atividade estar a cargo dos africanos e seus
descendentes. A título de ilustração, vale a pena registrar que na Exposição Preparatória do
Estado de Minas à Exposição Mineralógica Internacional, realizada em Santiago do Chile, em
1894, tinha como propósito desenvolver a indústria siderúrgica, apresentaram-se 55 produtores
de ferro, distribuídos em termos de aplicação da técnica metalúrgica, da seguinte forma: 42
188

empregavam o método de cadinhos – técnica africana para produzir ferro; 2 usavam fornos
catalães (BARROS, 1989, p. 56).
Quanto à produção de ferro mineira o Barão Eschwege (2011), discorrendo a respeito
de sua experiência, ressalta a primazia de ter sido fabricado ferro na localidade de Antônio
Pereira, ao cativo pertencente ao Capitão-mor Antônio Alves, e no povoado de Inficionado, por
outro escravo de propriedade do Capitão Durães. A partir desse momento, lavradores e ferreiros
passaram a produzir ferro em quantidade necessária para atender seu consumo. O Barão
justifica tal atitude devido ao impedimento legal de fabricar ferro industrialmente antes da
chegada da Família Real. Outra questão foi a falta de conhecimento do processo de produzir
ferro em grande escala.
A maioria dos ferreiros e grandes fazendeiros que possuíam ferraria segue Von
Eschwege, ou seja, cada um tinha também o seu “forninho de fundição”. Estes eram sempre
diferentes um do outro, pois cada proprietário, na construção, seguia um projeto próprio,
baseado em suas próprias ideias. (ESCHWEGE, 2011, p. 603)
É impossível precisar quando surgiram as primeiras fundições em Minas. No entanto,
é possível afirmar a primeira fabricação de ferro no Brasil é proveniente dos conhecimentos
metalúrgicos africanos introduzidos no período colonial oriundo da Diáspora. A mineração do
ouro nas Minas Gerais foi preponderante para o estabelecimento de fundições e ferrarias, assim
como as grandes fazendas. A confecção das ferramentas que inicialmente eram produzidas com
ferro importado passou a utilizar o ferro local. Essa produção doméstica era realizada com todo
o cuidado, pois sua produção era oficialmente proibida. Aos poucos, esta fabricação caseira do
ferro foi disseminando-se por toda a região aurífera. Surgiram, então, os fornos de cadinhos,
construídos conforme a técnica africana. Essa incipiente indústria siderúrgica que nascera e
cresceu nas sombras do Alvará de 1785 se fazia vital para a economia mineradora. (BARROS,
1989, p. 41).
A indústria siderúrgica brasileira teve em Minas o seu alicerce, como atestam os
depoimentos de Eschwege. Monlevade e de outros metalurgistas e estudiosos a respeito das
condições naturais que beneficiavam a produção de ferro. Entretanto, a evolução da indústria
siderúrgica mineira ao longo do século XIX, como procurei apresentar em diversos momentos
deste trabalho, está vinculada à mescla da mão de obra cativa e seu conhecimento técnico ao
surgimento de inovações trazidas pelos europeus. Contribuiu também nesse sentido o
isolamento geográfico da província mineira, que concorria para o encarecimento das peças
necessárias à exploração aurífera e produção agrícola. Diante desse quadro, o trabalhador cativo
desempenhava importante papel, devido à quantidade necessária de braços de que dependia a
189

manufatura do trabalho artesanal. Claro que não podemos esquecer que o sistema escravista
vigente determinava que todo o trabalho pesado fosse executado por cativo. Porém, como
mencionados anteriormente, vários estabelecimentos empregaram os escravizados em funções
que exigiam especialização. As fundições de Monlevade e de Eschwege foram testemunhas
desse processo, assim como a Fundição Ipanema. (LIBBY, 1988, p. 135).
As forjas espalhadas pelo interior mineiro nos dão a prova necessária para atestar o
quanto era disseminada essa prática. Em 1831 havia um total de 24 forjas em vários distritos
da região metalúrgica da Serra da Mantiqueira e em 22 dessas forjas os trabalhadores estavam
registrados e se constituíam de cativos. O total de 24 forjas contava com 168 escravos e 70
trabalhadores livres. (op. cit., p. 165).
Apesar da vontade e das ações tomadas por D. João VI com o intuito de desenvolver
a siderurgia no Brasil, através da vinda dos engenheiros europeus já mencionados, que
trabalharam em Minas e em São Paulo, assim como, no final do Império, com a criação da
Escola Politécnica do Rio de Janeiro e a fundação da Escola de Minas de Ouro Preto, podemos
afirmar que durante todo o Século XIX permaneceu a exclusividade, da mão de obra cativa e
de libertos, acompanhado da hegemonia, enquanto técnica utilizada na fundição, das forjas de
cadinho. (BARROS,1989, p. 55).

Considerações finais

Cabe ressaltar que além de colonizado, o currículo também é colonizador,


consequentemente os livros didáticos produziram a inexistência do “Outro” (CANDAU, 2016)
enquanto sujeito histórico, cultural mantendo a subalternização através da colonialidade do
poder, do ser e do saber. Esses homens, “metalurgistas natos”, foram silenciados pelo sistema
escravista e posteriormente pela invisibilidade causada por uma sociedade que se recusava a
compreender as suas raízes africanas, principalmente se relacionada ao conhecimento
profissional e tecnológico. Assim, como no passado, após anos de luta, pela instituição da
obrigatoriedade do ensino da História da África e dos negros da Diáspora. É primordial, diante
do que se apresenta na conjuntura política atual, resgatar e recontar histórias e personagens
como “os metalurgistas africanos” que trouxeram sua tradição e técnica no trabalho com o ferro
para implantar e sedimentar a siderurgia no Brasil.
190

Referências

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192
193
194
195

DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO, DE AIMÉ CÉSAIRE

CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Curitiba, Letras Contemporâneas, 2010.

Antonio de Castro Alves


IFRJ
antonio.alves@ifrj.edu.br

Se privilegiamos como referência essa edição brasileira para a resenha do Discurso


sobre o colonialismo, de Aimé Césaire (2010, tradução de Anísio Garcez Homem), não
podemos deixar de indicar, contudo, a leitura igualmente proveitosa da edição espanhola das
Ediciones Akal (2006)1

Na edição espanhola, além do Discurso..., encontramos outras obras importantes do


autor: Cultura y colonización, Carta a Maurice Thorez e Discurso sobre la negritud. Negritud,
etnicidad y culturas afro-americanas. Além destes valiosos acréscimos, encontramos no
apêndice, análises de autores do grupo Modernidade/Colonialidade.

***

Aimé Césaire (Martinica, 1913-2008), poeta e político (foi presidente da Câmara de


Fort-de-France) tem uma trajetória política e intelectual que inspira o que, a partir da segunda
metade do século XX, seriam as correntes críticas ao colonialismo, os estudos pós-coloniais e,
sobretudo, o movimento Modernidade/Colonialidade, mais próximo de nós, latino-americanos.
Inspira, no sentido de que o Discurso sobre o colonialismo, escrito entre os anos 1948-1955,
sintetiza uma espécie de genealogia do colonialismo: sua leitura indica caminhos que são
abertos, quando compreendemos que a violência brutal do colonialismo se assenta em
elementos que, ao longo da Modernidade, foram (e ainda o são) o que constituem a Europa.
Esta possível genealogia se inicia com a ideia moderna de Europa, iluminada pela
Razão do século XVIII. Razão, contudo, que não pôde, de modo algum, estender sua pretensa
universalidade à revolução de 1803, no Haiti. É esta racionalidade que, com Césaire, confronta-
se, paradoxal e ironicamente, com um julgamento de natureza ético-política: “A Europa, citada
ante o tribunal da ‘razão’ e ante o tribunal da ‘consciência’, não pode justificar-se (...). A Europa
é indefensável” (p. 15). Trata-se do julgamento da Razão (europeia) que conviveu com as
formas explícitas de violência, quando se trata do encontro com o Outro, que, de estranho e

1
Disponível em https://enriquedussel.com/txt/Textos_200_Obras/Filosofia_liberacion/Discurso_colonialismo-
Aime_Cesaire.pdf Acesso: nov.20.
196

exótico, transfigura-se em selvagem, este que revela uma “carência absoluta” da Lei, e que,
portanto, necessitaria da evangelização, por um lado, e, por outro, liberaria o europeu para o
saque:

O que é, em seu princípio, a colonização? Reconhecer que ela não é evangelização,


nem empreitada filantrópica [...]; nem a expansão de Deus, nem a extensão do
Direito; o gesto decisivo é [..] o do apetite e da força, com a maléfica sombra
projetada por trás por uma forma de civilização [...]”. (p. 17).

Essa questão, proposta à Césaire –– Colonização e Civilização ––, que resultou em seu
Discurso, assume, como resposta, a forma de um libelo. Com fina ironia e aguda consciência política,
Césaire, valendo-se do que, mesmo antes do pós-guerra, já havia sido suficientemente publicizado ( as
decapitações no Vietnam, os estupros nas colônias francesas, as mutilações em Leopoldville...), sem
rodeios, aponta o que subjaz nas argumentações eurocêntricas, tanto nas implícitas, as intelectualizadas,
por um lado, tais como as da análise psicanalítica de Octave Mannoni, sobre o “complexo do
colonizado” (Psychologie de la colonisation, de 1950), contra a qual Fanon dedica um capítulo inteiro
em Pele negra, máscaras brancas, demonstrando o equívoco conceitual, posto que eurocêntrico, desse
complexo; quanto nas explícitas, como em La Réforme intellectuelle et morale (1871), de Ernst Renan,
na qual estabelece a hierarquia biologizante das raças, em que o homem europeu exerceria sua vocação:
ser uma “raça de amos e soldados” (p. 24). São argumentações fundadas na ideia de raça.
Se o século XIX se biologiza, a raça é o pressuposto através do qual se organizam novas formas
de exercício do poder. O que leva Césaire, com perspicácia, a perceber o nazi-fascismo, se nos
permitirmos um neologismo, como um autocolonialismo da Europa. Neste sentido, são as práticas
racistas permitidas na Colônia, porém, dessa vez, aplicadas no continente europeu.
Essa percepção de Césaire é importante, e precisamos ouvi-lo:

[...] se está produzindo uma regressão universal, se está instalando uma gangrena,
se está estendendo um foco infeccioso, e que depois [...] deste orgulho racial
estimulado, dessa jactância desfraldada, o que encontramos é o veneno instilado
nas veias da Europa e o progresso lento, porém seguro, do enselvajamento do
continente. [...] fechamos os olhos diante dele [o nazismo], o legitimamos, porque
até então só se havia aplicado aos povos não europeus (p. 20-21).

Mais adiante, Césaire aproxima nazi-fascismo e branquitude: “[...] não é a humilhação do


homem em si, senão o crime contra o homem branco [...]” (p. 21).
Mas não há colonialismo, nos alerta Césaire, sem o processo de subjetivação do colonizador.
E, mais decididamente, do colono. Trata-se de estimular uma suposta essência do colono, ao ponto de
fazê-lo incorporar como naturais todas as formas de violência racial, calcadas em sistemas míticos
(imaginários) de representação. A colônia seria um território mítico selvagem no qual a representação
simbólica da lei é impossível. A colônia como o outro irracional da Europa. A violência do colono
197

pressupõe, assim, o que Mbembe, em seu conceito de necropolítica2, estabelece para o estatuto da
Colônia: “[...] a colônia representa o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício
de um poder à margem da lei” (p. 32, 2018). Território de uma guerra sem fim.
A ideia de Europa se torna possível quando se funda na ideia de raça. Ou, sob outra perspectiva
mais precisa, se assenta sobre o tripé: eurocentrismo-racismo-colonialismo, como elementos que
convergem entre si, indissociáveis. Há, porém, outra perspectiva não menos convergente, correlata
àquela: capitalismo-branquitude-violência.
Se há uma guerra sem fim neste território, a violência que nele perdura não se restringe à
enunciação simbólica legal de que trata o Direito. Na colônia, a violência é, em grande parte, sem a
mediação que configura toda criação simbólica, todo exercício pelo qual a linguagem cria mundos
possíveis ou que ensina a resistir à toda fragmentação letal. O que nos leva à compreensão de que a
estrutura a perpassar aquelas duas perspectivas correlatas, tem a seguinte dinâmica que lhe é peculiar:
anular, no sentido de desprover o outro de sua humanidade, isto é, de tentar eliminar a possibilidade de
que o colonizado legitime sua humanidade, silenciando a criação e expressividade de sua linguagem
simbólica. O colonizado não poderia ser fala. (Porém, o que dizer do horror colonial simbolizado
oniricamente nos terríveis pesadelos do malgaxe?)
Como nos diz Fanon: “Há na Weltanschauung [visão-de-mundo] de um povo colonizado, uma
impureza, uma tara que proíbe qualquer explicação ontológica”3 (p. 103, 2008). Desse silêncio emerge
o corpo do colonizado como não-ser, coisa-entre-coisas, objeto entre objetos (Fanon). Sem história, sem
memória. A intenção colonial se expressa na necropolítica e no epistemicídio.

***
Como dissemos, Discurso sobre o colonialismo foi escrito no pós-guerra, momento
em que a consciência política da infâmia que representava o colonialismo e as consequentes
revoluções anticoloniais se exacerbava. É, portanto, um clássico, uma vez que a ideia de raça
ainda é o que sustenta todas as outras formas de violência. Presenciamos contemporaneamente
o retorno da violência do colonialismo recalcado, nas figuras recorrentes do neo-colonialismo
e do neo-liberalismo.

Por outro lado, a memória da origem da violência emerge, retorna. Em Bristol,


manifestantes derrubam a estátua de Edward Colston, mercador de escravos.

Talvez, algum dia, caminhando por alguma avenida ou descontraído em alguma praça,
alguém lance a pergunta sobre a origem daquele herói erguido à nossa frente. Quem sabe, a
depender da resposta dada, possamos derrubá-lo de seu pedestal. Afinal, como na 7ª tese sobre

2
MBEMBE, A. Necropolítica. Trad. Renata Santini. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
3
FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
198

o conceito de História, de Benjamin, documentos de cultura são também documentos de


barbárie.
199

LEITURA, IMPRESSÕES E INTERPRETAÇÕES A PARTIR DO LIVRO


PODE O SUBALTERNO FALAR?, DE GAYATRI CHAKRAVORTY
SPIVAK

SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? 2ª reimpressão.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

Paulo Gomes Coutinho


SEEDUC-RJ / SME-Rio de Janeiro
coutinhopg3@gmail.com

Iniciando a leitura

Tenho duas manias diante de um texto. Antes de começar a lê-lo, vou à última página
e leio o último parágrafo do texto/livro e, a outra: tento o tempo todo associar a leitura ao título
da obra. Não foi diferente com Pode o subalterno falar?
Ler o último parágrafo lançou um desafio: quais razões levaram a autora a pensar
assim?
Encontrar o caminho para formar minha opinião (ou resposta) sem a influência prévia
da reposta da autora para a pergunta/título, foi, no mínimo, penoso.
A leitura de “Pode o subalterno falar?” não foi fácil, por ter me deparado com uma
gama de referências, reflexões, proposições enviesadas, oblíquas ao tema.
Dificuldades constatadas e assumidas diante do desconhecimento da obra e da
erudição acadêmica da autora, Gayatri Chakravorty Spivak.49 O texto exige uma leitura atenta
e, como todo texto desafiador, joga-nos (e quase nos força) a uma partilha humilde e despojada.
Partilha com dicionários, com pessoas, com pesquisas às fontes, o que torna a leitura mais lenta
do que normalmente faço.
Ter alguns rudimentos de conceitos filosóficos e epistemológicos da tradição moderna
ocidental (em particular, da modernidade, do marxismo, do estruturalismo e do pós-
estruturalismo) é uma provocação, quase condição que o texto traz. Estudá-lo é preciso.

49
Gayatiri Chakravorty Spivak, 1942, Calcutá, Índia. Doutoramento nos EUA em Literatura Comparada. Ligada
à Teoria Desconstrutivista, em 1988 editou “Estudos Subalternos”. Tradutora de Derrida. Marxista pós-
estruturalista.
200

Depois de escrever sobre o texto, bate em mim a vontade, a necessidade de voltar a ele
para proceder várias releituras, re-visões, conversas e reflexões solitárias e coletivas. Será o
subalterno querendo se capacitar para falar melhor?
Então, o iniciante foi iniciado.

A imersão no texto

O texto tem a parte inicial/introdutória fazendo uma localização geográfica, histórica


e, porque não dizer epistemológica, da autora. A Spivak questiona o pós-colonialismo e os
estudos subalternos que, a partir da percepção de movimentos de resistência e ação política
daquelas pessoas ligadas àquele conjunto de ideias e que apresentam a possibilidade de uma
ação autônoma rumo à libertação. A autora centra a atenção em Gilles Deleuze e de Michael
Foucault para sustentar seu questionamento a respeito daquela autonomia e sugere uma
reflexão: será que os autores ‘pós-coloniais’ defendem esta autonomia, por estarem numa
posição eurocentrada, distante da dinâmica de independência colonial?
Uma análise fora dos parâmetros propostos por Spivak pode nos levar a interpretações
que reforçam preconceitos e relações de dominação (ou subalternidade, de acordo com as
opções). E quais seriam estes padrões propostos por Spivak?
Ocidente como referência geográfica, Europa como referência histórica e o pós-
colonialismo como uma referência filosófica, podem por assim dizer, estruturar, para efeito de
análise, a base da argumentação do texto. Para exemplificar, trazemos:

Algumas das críticas mais radicais produzidas pelo Ocidente hoje são o resultado de
um desejo interessado em manter o sujeito do Ocidente, ou o Ocidente como Sujeito.
A teoria dos "sujeitos-efeitos" pluralizados dá a ilusão de um abalo na soberania
subjetiva, quando, muitas vezes, proporciona apenas uma camuflagem para esse
sujeito do conhecimento. Embora a história da Europa como Sujeito seja narrada
pela lei, pela economia política e pela ideologia do Ocidente, esse Sujeito oculto
alega não ter "nenhuma determinação geopolítica". Assim, a tão difundida crítica ao
sujeito soberano realmente inaugura um Sujeito. (SPIVAK, 2014, p. 25).

A citação nos ajuda a localizar, como abordado anteriormente, o tempo, o espaço


político e a base ideológica, que orientam o pensamento de Spivak. A partir dessa base, a
construção argumentativa do texto vai se desenvolver e nos advertindo do cuidado que devemos
ter ao recorrer a um campo teórico como ferramenta analítica.
No caso específico do texto, temos uma crítica ao arcabouço do pensamento pós-
estruturalista francês. Mesmo estando no campo da crítica ao modelo capitalista, a aplicação
201

direta de suas bases e conceitos, pode nos colocar numa situação de reprodução dos princípios
de hierarquização imperialista: o sujeito ocidental falando para outros sujeitos. O sujeito
Ocidente, numa postura verticalizada, criando (e subordinando) o Outro sujeito.
É dentro desse quadro analítico que o texto nos traz a crítica da autora ao pós-
estruturalismo e encaminha sua pergunta fulcral: dentro dessa proposição ideológica, usando
esse arsenal conceitual, pode o subalterno falar?
A citação a seguir, continuação textual da citação anterior, nos apresenta a reflexão
profunda e dura ao conjunto que chamamos aqui de pós-estruturalismo. Spivak nos convida
pensar com ela:

Argumentarei em favor dessa conclusão considerando um texto de dois grandes


expoentes dessa crítica: "Os intelectuais e o poder: conversa entre Michael Foucault
e Gilles Deleuze.”
Escolhi essa interação amigável entre dois filósofos ativistas da história porque ela
desfaz a oposição entre a produção teórica da autoridade e a prática conversacional
desprevenida, permitindo-nos vislumbrar a trilha da ideologia. Os participantes
dessa conversa enfatizam as contribuições mais importantes da teoria pós-
estruturalista francesa: primeiro, que as redes de poder/desejo/interesse são tão
heterogêneas que sua redução a uma narrativa coerente é contraproducente – faz-se
necessário, portanto, uma crítica persistente; e, segundo, que os intelectuais devem
tentar revelar e conhecer o discurso do Outro da sociedade. Entretanto, ambos os
autores ignoram sistematicamente a questão da ideologia e seu próprio envolvimento
na história intelectual e econômica. (p. 25).

A longa citação faz-se necessária por conter elementos fundamentais para perceber a
forma aguda e direta da crítica ‘spivakiana’: ela localiza o/s sujeito/s, o tempo e o marco teórico
que ela quer alcançar e abordar. Pontua também a contradição que os pensadores carregam: ao
mesmo tempo em que reconhecem a gênese do pensamento que representavam (na
heterogeneidade constante nas redes de poder/desejo/interesses) e o que efetivamente defendem
(reconhecimento e autonomia do discurso do Outro como sujeito e a crítica ao sujeito soberano),
porém, não enxergam “ou ignoram sistematicamente a questão da ideologia” e seu próprio
envolvimento na história intelectual e econômica.
Ignorar a questão da ideologia, nos/dos processos intelectual e econômico, pode nos
levar a negligenciar as duras consequências para a classe trabalhadora, trazidas pelas relações
sociais concretas vividas e impostas pela divisão internacional do trabalho, estabelecidas pelo
modelo capitalista.
Esse ‘ignorar’, segundo a autora, é um “gesto que frequentemente marca a teoria
política pós-estruturalista” (SPIVAK, 2014, p. 28). Um pouco adiante, no texto, a autora nos
202

provoca: “Por que tais oclusões deveriam ser aprovadas precisamente por aqueles intelectuais
que são nossos melhores profetas da heterogeneidade e do Outro?” (SPIVAK, 2014, p. 29).
Ao abordar questões sensíveis e que se tangenciam como ideologia, relações do mundo
do trabalho e relações de poder, o texto vai se aproximando das questões relacionadas com as
representações
Tanto no aspecto da representação propriamente dita, ou seja, a voz, as angústias e
sonhos de muitas pessoas sendo apresentados e representados por outra/s que não aquelas que
imediatamente experienciam tais desejos, quanto no sentido da representação (ou significado
social).
Se no primeiro aspecto a representação coloca em risco as genuínas demandas das
classes representadas, no segundo caso, o aspecto ideológico se apresenta categórico, uma vez
que, o que vai ser representado e reproduzido como legítimo, serão as representações, valores
sociais e subjetividades daqueles que estão no papel de representantes, muitas vezes da classe
dominante, ou que compõem a ideologia dessa classe.
Neste momento, a autora lamenta a pouca dedicação de Michael Foucault à questão da
ideologia e não localizar em nomes como Marx e Freud “divisores de águas de um fluxo
contínuo da história intelectual.”
Desconsiderar a ideologia como fator importante e marcante pode levar a
interpretações distorcidas a respeito das diferenças e da constituição dos grupos sociais. Assim,
ao negar o papel da ideologia dominante, podemos ser conduzidos a uma leitura de que entre
explorados e exploradores está apenas quem controla o poder, deixando de lado as
possibilidades de desejos, significados, valores e reconhecimento.
Em outras palavras, não conhecer o papel da ideologia pode nos levar a crer que as
classes sociais são dois blocos, dois maciços em lados diferentes sem interlocução ou relações.
Se são dois blocos, podemos argumentar que são espelhamentos iguais, mas diferentes. Essa
leitura embaça ou esconde o poder e a persuasão que a classe dominante exerce, justamente por
dominar a indução das representações.
É por isso que dentro da classe dominada são recrutados os elementos que vão agir
como repressores a serviço da classe dominante. A força da ideologia vai buscar acomodar as
formas de reprodução do lucro e a reprodução da lógica do sistema.
No jogo ideológico, existe a captura de elementos da classe dominada, mas não de toda
a classe dominada. Portanto, a ideia de homogeneidade, de bloco monolítico dos subalternos, o
que poderia lhes garantir uma condição de autonomia e poder, perde força.
203

Nesse contexto, onde filósofos dão pouca importância à força da ideologia, Spivak
comenta que tais filósofos sequer aventam a possibilidade da “contradição constitutiva”. Quer
dizer, na constituição do grupo de subalternos, a diversidade é uma marca. Uma questão aqui é
apresentada: ao deixar de lado a questão da ideologia estaríamos considerando a aplicação do
sistema de exploração e controle social, como um processo equivalente em toda parte? Ou seja,
as condições de vida e sobrevivência, de experiências e lutas seriam as mesmas em toda parte?
Pois, se a as tensões ideológicas (que nos ajudam a entender as relações de dominação e
controle) não são relevantes nas relações sociais, é de se considerar que a classe trabalhadora é
um grande bloco uno, homogêneo.
Outra reflexão dentro da perspectiva de estar ao largo da ideológica, é: se todos os
trabalhadores sofrem igualmente os desassossegos da exploração capitalista, independente de
lugar social ou geográfico, estariam em situação de similaridade à da massa de trabalhadores e
intelectuais? Admitir tal equivalência leva de fato, em consideração, as condições de vida e de
produção das populações em diferentes pontos do mundo? Estariam todas as pessoas da classe
trabalhadora nas mesmas condições de produção, representação, de ação e de voz?
Esta opção pelo afastamento da relevância da ideologia, pode nos colocar na oposição
à luta dos subordinados na construção de uma proposta de libertação. Sem uma proposta de
contra-argumentação, sem um escopo teórico que nos oriente na luta pelo poder. Em outras
palavras, sem a percepção de uma ideologia que age nos controlando, como propor a ruptura e
um mundo novo? A relevância do reconhecimento de uma ideologia dominante, nos termos
marxianos, pode nos levar a estruturar um ideário que vá ao sentido contrário: rompendo com
o espelhamento, superando a dicotomia do certo e do errado o maniqueísmo de bom e mal.
O reconhecimento de uma ideologia burguesa, ao mesmo tempo em que nos identifica
como sujeitos pertencentes à uma classe social específica, pode nos oportunizar, como
consequência, à contra hegemonia.
Esse sujeito diferente e que pertence a uma classe específica com características
próprias, em Spivak é heterogêneo, diverso e está em construção. Esta incompletude não é só
no aspecto cultural e está num contexto capitalista de divisão internacional do trabalho (DIT).
Tal diversidade não deveria estar só na voz do intelectual, mas ser a ‘alma’ do subalterno, ser
sua força e também sua voz.
A reflexão sobre a apresentação e representação dos sujeitos terceiro-mundistas, tem
sido feita a partir de epistemologia hegemonizada a partir da Europa ocidental. Assim, por
exemplo, a ideia de trabalho/trabalhador, que no mundo europeu tem uma composição, tem
uma história que é diferente da história e da composição dos outros lugares do mundo.
204

Um dos pontos altos do texto é a reflexão sobre representação. A autora parte de


reflexões de Foucault e Deleuze a respeito da figura e do papel do intelectual. Quando os
pensadores pós-estruturalistas argumentam que o que ‘realmente’ importa é o que “acontece
numa fábrica, numa escola, num quartel, numa prisão, numa delegacia de polícia”, nas
palavras de Deleuze. Esta aparentemente supervalorização da realidade cria um flanco para um
‘empirismo positivista’ colocar-nos-ia numa impossibilidade de reconhecer (ou assumir) o
papel do intelectual: revelar, quando diagnostica a episteme, por meio da sua experiência
concreta, o apelo político dos subalternos. E conclui que:

Nem Deleuze nem Foucault parecem estar cientes de que o intelectual, inserido no
contexto do capital socializado e alardeando a experiência concreta, pode ajudar a
consolidar a divisão internacional do trabalho. (SPIVAK, 2014, p. 37)

Aliás, no texto, o intelectual, pós-estruturalista, é chamado a um questionamento sobre


seu papel e a função do seu trabalho diante da conjuntura de uma sociedade de exploração.
Duas afirmações de Deleuze: “Uma teoria é como uma caixa de ferramentas, não tem nada a
ver com o significante” (SPIVAK, 2014, p. 38) e “Não há mais representação, não há nada além
da ação” – “a ação da teoria e a ação da prática, que relacionam e formam redes” (p. 38),
provocam reflexões a respeito das proposições de intelectuais que comungam dessa visão.
Recorrendo ao texto, temos: “tais declarações favorecem ao intelectual ansioso por provar que
o seu trabalho (intelectual) é exatamente igual ao trabalho manual” e, assim sendo, esta
ansiedade para distinguir, na primeira afirmativa, teoria do teórico, e na segunda a
representação da ação, não estaria reforçando as estruturas de dominação, ao eximir o teórico
do seu papel de produto e crítico epistemológico? E no segundo caso, tirando o valor e
especificidades, a representação, tanto no aspecto das subjetividades (representações,
significações), quanto do direito à voz (representação, defesa do direito à expressão), não estaria
facilitando a consolidação de valores e práticas exploradoras?
O texto de Spivak chama a atenção para a recorrente negligência dos pensadores
eurocentrados a respeito das diversas particularidades dos sujeitos subalternos, associadas, por
exemplo, à DIT e ao imperialismo: a divisão internacional do trabalho cria condições de
subalternidade que muitos intelectuais não percebem ou menosprezam. Assim, ela faz críticas
diretas a Deleuze e a Foucault: para ela, o sujeito subalterno é ‘descentralizado”, uma vez que
as violências da colonização e do imperialismo o tornaria fragmentado, dividido, descontínuo,
não teria as condições de liberdade ou soberania para ser sujeito, mas objeto.
205

Ainda na crítica aos autores pós-coloniais, ressalta que não refletiram sobre as ações e
possibilidades e os desafios das ações contra hegemônicas. A eurocentralidade do pensamento
pós-colonial reforçou uma visão de representação baseada na tradição. Aqui, Spivak recorre às
ideias e aos escritos de Marx para argumentar sua percepção de sujeito pertencente a uma classe
social e como uma classe social se reconhece e se forma, ela retoma a questão da representação
(“falar por”) e da re-presentação, (como uma atitude estética, encenada).
A representação baseada na tradição europeia traz problemas individual e
coletivamente para o sujeito subalterno no mundo capitalista. Ser representado não dá conta de
questões cruciais como: produção, controle e vocalização das ideias, organização e defesa das
ideais específicas do sujeito subalterno. Por exemplo, este indivíduo representado tem sua
condição de sujeito ativo, dificultada uma vez a seu representante, num sistema de
representações e encenações. A probabilidade de apagar o original pertencimento da classe
daquele que representa causa a possibilidade de diminuição da ruptura.
Questões relacionadas à racialidade, sexualidade, pertencimento e consciência de
classe, percepção histórica e social do processo de construção das condições de subalternidade
(impostas pela colonização e pela DIT) não têm o mesmo peso quando representadas do que
quando defendidas pelos próprios ‘sofredores’. Isso porque as texturas micrológicas vão formar
o sujeito e vão também, formar as relações e as texturas macrológicas nas situações concretas
da sociedade e da história.
Ainda no campo da representação, o texto aponta uma questão relevante: a ação dos
intelectuais na divulgação e interpretação do pensamento produzido pelos subalternos. Nesse
sentido, a autora levanta a abordagem de Pierre Macherey a respeito dos silêncios:

O que é importante em um trabalho é o que ele não diz. Não é o mesmo que a
observação descuidada de que é "o que se recusa a dizer", embora isso seja, por si
só, interessante: um método pode ser construído sobre isso, com a tarefa de medir os
silêncios, sejam esses reconhecidos ou não. Mas, mais do que isso, o que o trabalho
não pode dizer é importante, pois aí a elaboração da declaração é executada em um
tipo de jornada ao silêncio. (p. 81).

Spivak debate a respeito do papel do intelectual na divulgação das ideias insurgentes.


O intelectual pode (e deve?) fazer o esforço de expor as ‘ideias insurgentes’ do “emissor”
(classe trabalhadora) e ele (intelectual) agir como “receptor” num esforço, compromisso de
fidelidade às ideias/proposições insurgentes. Spivak diz:
206

O historiador, transformando a "insurgência" em um "texto para o conhecimento", é


apenas um "receptor" de qualquer ato social pretendido coletivamente. Sem qualquer
possibilidade de nostalgia pela origem perdida, o historiador deve suspender (tanto
quanto possível) o clamor de sua própria consciência (ou consciência-efeito, como
sendo operada pelo treinamento disciplinar), para que a elaboração da insurgência,
empacotada em uma consciência-insurgente, não se congele em um "objeto de
investigação" ou, pior ainda, em um modelo de imitação. "O sujeito", inferido pelos
textos de insurgência, pode servir apenas como uma contrapossibilidade para as
sanções narrativas conferidas ao sujeito colonial nos grupos dominantes. (p. 83).

Ao suspender o clamor de sua própria consciência e privilegiar a “elaboração da


insurgência, empacotada em uma consciência-insurgente” o intelectual está agindo como
‘receptor-retransmissor’, falando para outras dimensões, outros e muitos cantos. Seria este um
dos ‘silêncios’ ou uma das coisas ‘não ditas’ no texto: o intelectual falar mais para os outros
que para si mesmo, falar das ideias, desejos e anseios insurgentes e menos dos seus e seus pares?
Em outras palavras, cabe ao intelectual dar voz à voz subalterna. Aqui o verbo não
deve estar no sentido de concessão, de favor. Mas de reconhecer e garantir o direito à voz. O
direito ao protagonismo. Junto ao subalterno, o intelectual deve romper o silêncio e criar os
espaços para que, quem faz e quem luta, fale.
Outro aspecto do silêncio colocado no texto, diz respeito ao ‘silenciamento’ ao
‘apagamento’ de questões fundamentais, como a questão do feminino nas sociedades
colonizadas. O texto é claro em sua análise relacionada à limitada, quase inexistente abordagem
da “noção do feminino”:

É bem conhecido que a noção do feminino (mais do que a do subalterno do


imperialismo) foi usada de maneira semelhante na crítica desconstrucionista e em
certas variedades da crítica feminista. No caso anterior, uma imagem da "mulher"
está em questão - uma imagem cuja predicação mínima como algo indeterminado já
está disponível para a tradição falocêntrica. (p. 84).

O silêncio das abordagens da mulher, do feminino e de questões sexistas, como revela


a citação, é mais silenciada que a questão da subalternidade. Podemos inferir que a mulher (e
suas questões) é a parte subalterna da subalternidade. Tais constatações revelam a “violência
espistêmica do imperialismo”. A situação a seguir é reveladora:

No contexto do itinerário obliterado do sujeito subalterno, o caminho da diferença


sexual é duplamente obliterado. A questão não é a da participação feminina na
insurgência ou das regras básicas da divisão sexual do trabalho, pois, em ambos os
casos, há "evidência". É mais uma questão de que, apesar de ambos serem objetos
207

da historiografia colonialista e sujeitos da insurgência, a construção ideológica de


gênero mantém a dominação masculina. (p. 85)

Nessa plataforma de apagamento e de controle, o imperialismo aplica novas dinâmicas


produtivas, políticas e ideológicas. Aplicando uma política ideológica e efetiva de apagamento
do feminino, da mulher, de terceirização internacional da produção e de flexibilização e redução
de direitos humanos e trabalhistas, o capital vai reduzindo e reprimindo as iniciativas de
revoltas, militâncias e resistências.
Esta situação de ‘engessamento’ político e social nos países periféricos gera uma
situação curiosa, mas não surpreendente:

Não é surpreendente que alguns membros dos grupos dominantes nativos nos países
compradores, membros da burguesia local, sintam-se atraídos pela linguagem da
política de aliança. (p. 89)

No contexto das dinâmicas/engessamentos que imperialismo impõe a situação das


mulheres é a mais dramática, no olhar de Spivak. Segundo a autora, a possibilidade de “alianças
globais”, predominante no “feminismo internacional” defendido entre as mulheres dos países
centrais, não é uma realidade para mulheres do subproletariado urbano. Essas mulheres
encontram-se ‘duplamente na obscuridade’.
Depois de expor suas críticas às análises dos franceses, por não considerar questões
como o trabalho explorado no terceiro mundo, a divisão internacional do trabalho e a existência
de uma violência epistêmica, o texto volta a abordar a questão da possibilidade do sujeito
subalterno ter ou não protagonismo. Tal abordagem esbarra no conceito e sujeito outro, ou seja,
a construção do outro como sujeito passa pela construção de um sujeito, no caso o sujeito
europeu. Nessa construção do sujeito europeu e do sujeito subalterno a questão da mulher é a
mais delicada.
As questões da autonomia, do protagonismo e do poder de fala estão interligadas e,
quando se trata da abordagem desse sujeito mulher, as questões aumentam. Esse desafio é
grande tanto no primeiro mundo quanto nas áreas da periferia do sistema, embora tenha suas
particularidades. Ser negra, pobre, proletária é diferente de acordo com o ‘mundo’ que se vive.
Ela nos ajuda:

A questão da "mulher" parece ser mais a problemática nesse contexto.


Evidentemente te, se você é pobre, negra e mulher, está envolvi de três maneiras. Se,
no entanto, essa formulação é deslocada do contexto do Primeiro Mundo para o
208

contexto pós-colonial (que não é idêntico ao do Terceiro Mundo), a condição de ser


"negra” ou "de cor" perde o significado persuasivo. (p. 110).

Depois de discorrer sobre a importância dos movimentos feministas, marcando as


diferenças entre os movimentos dos EUA e Europa e lembrando que, como tem formação como
subalterna, entende os limites daqueles movimentos em áreas colonizadas, a autora faz um
reconhecimento crítico da importância da psicanálise freudiana. Diz Spivak:

Como mostrou Sarah Kofman, a profunda ambiguidade do uso que Freud faz das
mulheres como um bode expiatório é uma reação-formação de um desejo inicial e
contínuo de dar voz à histérica, de transformá-la em um sujeito da histeria. A
formação ideológica masculino-imperialista, que moldou esse desejo como a
"sedução da filha", faz parte da mesma formação que constrói a categoria monolítica
da "mulher do Terceiro Mundo". (p. 118).

Esta construção do ‘sujeito’ feminino e a posição da mulher nas sociedades da periferia


do sistema vão orientar as argumentações da autora para explicar a dificuldade da mulher
subalterna falar e também a necessidade de construir espaços de fala dessa mesma mulher.
Aqui ela usa figuras fortes relacionadas às mulheres para argumentar a questão da
violência epistemológica. A autora aborda e detalha a prática do SATI (o suicídio de viúvas,
logo após a morte dos maridos) e relata o suicídio de uma jovem que, ‘aproveitando’ a tradição
(um híbrido de tradição nativa com legislação colonialista), burla os rituais daquela tradição
para denunciar, pós-morte a violência contra as mulheres. As investigações da morte da jovem
demonstraram que as condições do suicídio contrariaram e afrontaram a tradição, o que levou
as autoridades imperialistas a decretarem a viúva suicida como louca.
Quando buscamos enfrentar o sistema (que se associa muitas vezes à tradição) o modus
operandi nos trata como loucos, desajustados, delirantes. Spivak vai demonstrar que a tradição
local associada às leis colonialistas, agem para sustentar as desigualdades e os privilégios de
uma sociedade de classes. De outra forma, o uso de concepções estrangeiras pode servir para a
manutenção de desigualdades e injustiças históricas que reforçam desigualdades.

Por último, mas não por fim

Uma questão é posta: quantas vezes uma epistemologia exógena, eurocentrada foi e é
usada por intelectuais pós-colonialistas para explicar e ensinar como são e como devem agir os
subalternos?
209

O uso de tais epistemologias, trazendo e impondo conceitos/teorias estanhas, ajuda a


criar condições de liberdade? Ajudam a criar espaços de fala e de voz, ou consolidam um
sistema de representação onde a acomodação ideológica e a dependência são reforçadas?
Em um novo contexto do capitalismo globalizado/mundializado, ONGs e OSs agem
como novos agentes coloniais, como ‘benevolentes’ representantes e possibilidades para os
subalternos. Reporta a ideologia do empreendedorismo. Mesmo sendo um novo formato do
sistema capitalista, a ideologia baseada no empreendedorismo busca apagar a condição de
subalterno, de trabalhador, da sociedade de classes.
Este discurso defendido e repetido pelos aparelhos de reprodução da ideologia
dominante (mídias e escolas) se assemelharia, em certa medida, com o discurso pós-colonial?
Se ambos, mesmo em campos diferentes e opostos, tratam o subalterno como um sujeito
monolítico e ambos não reconhecem a multiplicidade desse sujeito haveria aí semelhança?
Enquanto o discurso do dominador/explorador enxerga o trabalhador/empreendedor
como sujeito produtor de lucro, o discurso ‘libertador’ pós-colonial enxerga esse mesmo sujeito
como um subalterno que pode, bastando querer, se libertar. Nem um nem outro enxerga esse
sujeito em sua heterogeneidade: classista, racial, sexista, geográfica e histórica.
Aquela, digamos, violência epistêmica acaba por encontrar terreno fértil em terras
exploradas pelo modelo colonialista. Em território colonizado o encontro das formas de
exploração tradicionais juntando-se às recém-chegadas vão se moldando, vão se amalgamando
e ressignificando as formas de subalternização. Utilizando antigas crenças e novas formas, a
dominação imperialista recorrer às crenças e às novas legislações para calar e reprimir as
iniciativas de resistência.
Num cenário de dominação econômica e política, com forte base ideológica que se
consolida à ferro e fogo, com a conciliação de parte considerável da sociedade explorada, seja
da classe dominante historicamente alinhada à lógica da exploração, seja dos setores
empobrecidos educados e convencidos à lógica do capital, temos a impressão de que não, o
subalterno não pode falar. Passa-se a impressão de que não, as mulheres subalternas não terão
seu protagonismo consolidado.
Mas a história é dinâmica. A cada momento surgem pessoas, sujeitos que juntam a
gentes já existentes e formas de resistência (res)surgem. O desafio dessas pessoas é buscar um
protagonismo coletivo, construir espaços de reflexão e de teoria sobre as ações, de escuta e de
fala de tais processos. Assim, coletiva e respeitosamente, podemos confirmar as ideias de Paulo
Freire: já que o mundo não é, ele está sendo, o inédito pode ser viável.
210
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212
213

Antonio Benedito de Castro Alves - Licenciado em Filosofia pela Universidade do Estado do


Rio de Janeiro (UERJ) e bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC). Professor aposentado de Filosofia do IFRJ - Campus São Gonçalo e
docente da Pós-Graduação Lato Sensu em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-
Brasileiras do IFRJ - Campus São Gonçalo. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas
Educação, Culturas e Decolonialidade - GEPECD.

Daniel de Souza Carvalho – Licenciado em História pela Faculdade de Formação de


Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ) e pós-graduando na
Especialização em Ensino de Histórias e Culturas Africanas - Latu Sensu, pelo Instituto Federal
do Rio de Janeiro (IFRJ - Campus São Gonçalo). Coordenador e professor das disciplinas de
História e Filosofia do Movimento de Educação Popular +Nós, na unidade São Gonçalo.
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade - GEPECD.

Eliane Almeida de Souza e Cruz – Licenciada em História pela Faculdade de Formação de


Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ). Especialista em Ensino
de Histórias e Culturas Africanas e Afro-Brasileiras (IFRJ - Campus São Gonçalo). Mestra em
Relações Etnicorraciais pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da
Fonseca (CEFET/RJ). Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação,
Contextos Contemporâneos e Demandas Populares pela Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ). Professora da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro
(SEEDUC). Co-coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e
Decolonialidade - GEPECD.
Fábio Borges-Rosario – Licenciado e bacharel em Filosofia pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Ensino de História e Culturas Africanas e Afro-
brasileiras pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ -
Campus São Gonçalo). Mestre em Filosofia e Ensino pelo Centro Federal de Educação
Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ). Doutorando em Filosofia na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da Secretaria de Estado de Educação do Rio de
Janeiro (SEEDUC). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e
Decolonialidade - GEPECD.

Geiziane Angélica de Souza Costa – Licenciada e bacharel em História pela Universidade


Federal Fluminense (UFF). Pós-graduada em Ensino de História e Ciências Sociais pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Ciência das Religiões pela Faculdade
Internacional Signorelli (FISIG). Mestra e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em
Educação - Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e
Decolonialidade - GEPECD.

George Luiz de Abreu Vidipó – Licenciado em História pelo Centro Universitário Augusto
Motta. Especialista em Ensino de História e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ - Campus São Gonçalo).
Mestre em História pela Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO). Docente de História
da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Co-coordenador do Grupo de Estudos
e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade - GEPECD.
214

Hyago Carneiro Thomaz – Licenciado em História pela Universidade Salgado de Oliveira


(UNIVERSO). Pós-graduando na Especialização em Ensino de Histórias e Culturas Africanas
- Latu Sensu, pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ - Campus São Gonçalo). Membro
do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade - GEPECD.

Kynni Kayode Fernandes Duarte – Bacharelando em Direito no Centro Universitário Carioca


(UNICARIOCA). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e
Decolonialidade - GEPECD.

Luiz Fernandes de Oliveira – Graduado em Sociologia na Università degli studi di Roma Ter,
Itália. Especialista em História da África e dos Negros no Brasil (UCAM). Mestre em Ciências
Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Educação Brasileira
pela PUC-Rio. Professor Associado II do Departamento de Educação do Campo, Movimentos
Sociais e Diversidade, do Curso de Licenciatura em Educação do Campo do Instituto de
Educação e professor do PPGEDUC - Programa de Pós-Graduação em Educação, "Contextos
Contemporâneos e Demandas Populares" da UFRRJ. Membro do Grupo de Pesquisa em
Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturas (GPMC). Militante do Instituto Búzios e
Ogâ do Ilê Axé Iyá Nassô Oká - Ilê Oxum.

Luiz Rafael Gomes – Licenciado em Geografia pela Faculdade de Formação de Professores da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ). Especialista em Ensino das Histórias
e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ - Campus São Gonçalo). Mestrando no Programa de Pós-
Graduação em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGGEO-UFRRJ).
Mediador pedagógico presencial no curso de Licenciatura em Geografia da UERJ pelo
consorcio CEDERJ, no polo Niterói. Co-coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas
Educação, Culturas e Decolonialidade - GEPECD.

Márcia Guerra Pereira – Licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Mestra em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora pelo
Programa de Pós-graduação em Educação, História, Política e Sociedade da PUC-SP. Docente
de História do Instituto Federal do Rio de Janeiro - Campus Rio de Janeiro e da Especialização
em Histórias e Culturas Africanas e Afro-Brasileiras do IFRJ – Campus São Gonçalo. Membro
do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade - GEPECD.

Maria Eugênia Brêttas Veiga – Licenciada em Artes pelo Instituto Metodista Bennett.
Graduada em Arteterapia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Graduada no Curso
Básico de Atores pela UFF. Licenciada em Letras pela Faculdade de Filosofia de Itaperuna.
Bacharel em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Hélio Alonso (FACHA). Mestra pelo
Programa de Doutorado e Mestrado da Universidad Del Mar (UDELMAR, Chile). Doutoranda
em Educação na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT, Portugal).
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade - GEPECD.

Paulo Gomes Coutinho – Licenciado e bacharel em História pela Faculdade de Humanidades


Pedro II (1988). Especialista em Educação de Jovens e Adultos pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) e Especialista em Educação e Relações Raciais pela Universidade
Federal Fluminense (UFF). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação de Ensino em Educação
Básica do Colégio de Aplicação da UERJ (PPGEB-Cap-UERJ). Docente da SEEDUC/RJ e da
SME/Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e
Decolonialidade - GEPECD.
215

Ricardo Cesar Rocha da Costa – Licenciado e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade
Federal Fluminense (UFF). Especialista em História da África e do Negro no Brasil pela
Universidade Candido Mendes (UCAM). Mestre em Ciência Política pela UFF. Doutor em
Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Docente de Sociologia
do IFRJ – Campus Arraial do Cabo e docente da Pós-Graduação Lato Sensu em Ensino de
Histórias e Culturas Africanas e Afro-Brasileiras do IFRJ – Campus São Gonçalo. Co-
coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade -
GEPECD. Líder junto ao CNPq do Grupo de Pesquisa Culturas e Decolonialidade.

Roberto Carlos Costa da Silva – Licenciado em História pela Universidade Estácio de Sá.
Especialista em Ensino das Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ - Campus São Gonçalo).
Co-coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade -
GEPECD.
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GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISAS


EDUCAÇÃO, CULTURAS E DECOLONIALIDADE

RELAÇÃO DE PARTICIPANTES
Data de referência: membros ativos em outubro de 2020

Nome dos Pesquisadores e Estudantes Instituição de Titulação Máxima Área de Formação Situação acadêmica
referência (Ciências Humanas) em 2020/2021

01. Antonio Benedito de Castro Alves IFRJ Mestre Filosofia


02. Cândida M. Bessa da C. A. Rodrigues UERJ Especialista Psicologia; Artes
03. Carla Phelizarda da Silva (*) IFRJ Graduada Direito Pós-graduanda / IFRJ
04. Daniel de Souza Carvalho (*) IFRJ Graduado História Pós-graduando / IFRJ
05. Eliane Almeida de Souza e Cruz SEEDUC/RJ Doutora História
06. Fábio Borges-Rosario SEEDUC/RJ Mestre Filosofia Doutorando / UFRJ
07. Fernando Ribeiro Gonçalves Brame IFRJ Doutor Ciências Sociais
08. Geiziane Angélica de Souza Costa UFF Mestra História Doutoranda / UERJ
09. George Luiz de Abreu Vidipó SME/RJ Mestre História
10. Hyago Carneiro Thomaz (*) IFRJ Graduado História Pós-graduando / IFRJ
11. José Manuel Faria SEEDUC/RJ Mestre História Doutorando / UERJ
12. Jucieni Santos de Oliveira IFRJ Especialista Educação
13. Juliana dos Santos Duarte Bernardo (*) IFRJ Graduada História Pós-graduanda / IFRJ
14. Kynni Kayode Fernandes Duarte (*) UNICARIOCA Graduando Direito
15. Luiz Claudio da Silva SEEDUC/RJ Mestre Educação Doutorando / UFF
16. Luiz Rafael Gomes UERJ/FFP Especialista Geografia Mestrando / UFRRJ
17. Marcelo Japiassú Ramos IFRJ Mestre Geografia
18. Marcia Guerra Pereira IFRJ Doutora História
19. Maria Eugênia Brêttas Veiga UFF Mestra Educação Doutoranda / ULHT
20. Maria Ortélia Moraes O. de Carvalho UNIVERSO Especialista História
21. Michelle Pereira Malaquias (*) IFRJ Graduada História Pós-graduanda / IFRJ
22. Milena Pinheiro da Silva UNIVERSO Especialista História
23. Paulo Gomes Coutinho SEEDUC/RJ Mestre História
24. Ricardo Cesar Rocha da Costa IFRJ Doutor Ciências Sociais
25. Roberto Carlos Costa da Silva IFRJ Especialista História
26. Sérgio Oliveira da Silva FAETEC Mestre Filosofia Doutorando / UERJ
27. Suzana dos Santos Matos SME/RJ Mestra Geografia

(*) vinculados ao GEPECD


como estudantes

Participaram das reuniões do grupo


em 2020 como visitantes:

Camilla Fogaça Aguiar (**) UERJ/FFP Mestra História Doutoranda / UERJ


Eliana Santos (**) IFRJ Especialista Educação
Jane Milan Candido SEEDUC/RJ Especialista Ciências Sociais

(**) Especialistas em Ensino de Histórias


e Culturas Africanas e Afro-brasileiras –
IFRJ-Campus São Gonçalo.
220
221

Memória imagética
[inserir a whiphala, para manter o padrão usado no livro]
222
223

Selfies em grupo no encerramento do encontro de 16 de setembro de 2017, numa sala de aula


do IFRJ, campus São Gonçalo. Presentes na foto, da esquerda para a direita: Fábio Borges-
Rosário, Gleicimar Lima, Fernando Brame, Marcelo Amado, Roberto Carlos Costa, Eliane
Cruz, Ricardo Costa, Sérgio Oliveira, Rafael Callado e José Manuel Faria.

Cartaz de divulgação do I Seminário do grupo, com a programação prevista originalmente para


o dia 24 de novembro de 2018.
224

Folder detalhando os objetivos e o perfil dos participantes previstos para o I Seminário, em


novembro de 2018. As Oficinas programadas estavam sob coordenação dos membros do grupo
à época.
225

Mesa de abertura do I Seminário, em 24 de novembro de 2018, com a presença do convidado


Luiz Fernandes de Oliveira.
226

Cartaz-convite para encontro aberto do grupo, em 30 de março de 2019, sob o tema “Uma
leitura da obra ‘Educação como Prática da Liberdade’, de Paulo Freire”, sob a responsabilidade
do Prof. Sérgio Oliveira.
227

Cartaz-convite para o II Seminário do grupo de pesquisa, em 29 e 30 de novembro de 2019, no


IFRJ – Campus São Gonçalo.

Palestra de abertura do II Seminário, em 29 de novembro de 2019, no Auditório do IFRJ –


Campus São Gonçalo, tendo como palestrante o Prof. Denílson Araújo de Oliveira (UERJ –
Faculdade de Formação de Professores) e como intérprete de Libras a professora Camila
Monteiro Araújo, do IFRJ – Campus São Gonçalo.
228

Kynni Kayode Fernandes Duarte, membro do grupo de pesquisa, apresenta a comunicação


“Epistemologia e Cosmologia Yorubá” durante o II Seminário, em 30 de novembro de 2019.
Local: Auditório do IFRJ-CSG.

A convidada Ludmyla Gonçalves, representando o Coletivo Cláudia e Silva, apresenta a


comunicação "E quando a professora é negra? A negritude no espaço escolar", em 30 de
novembro de 2019. Local: Auditório do IFRJ/CSG.
229

Convite para o Grupo de Trabalho 7, realizado de forma remota em 23 e 24 de outubro de 2020,


no âmbito do I Seminário Integrado de Educação Popular, organizado pelos institutos,
coletivos, fóruns, movimentos sociais e grupos de pesquisa que constam da arte de divulgação.
O GT 7 – Movimentos Sociais e Pedagogia Decolonial foi coordenado pelo Grupo de Estudos
e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade em conjunto com o GPMC – Grupo de
Pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturas, vinculado institucionalmente
à UFRRJ.
230

Convite para a Roda de Conversa “Reflexões sobre a educação em tempos de pandemia”, com
a presença do Prof. Roberto Leher (UFRJ), em 24 de abril de 2021. O encontro remoto contou
com participação aberta para convidados/as.

Encerramento da Roda de Conversa “Reflexões sobre a educação em tempos de pandemia”, em


24 de abril de 2021, após debate a partir da intervenção do Prof. Leher, na primeira parte, e a
discussão do texto “Educação na pandemia: a falácia do ‘ensino’ remoto”, de Dermeval Saviani
e Ana Carolina Galvão (publicado na revista Universidade e Sociedade, ANDES-SN, nº 67,
jan. 2021), na segunda parte. O evento ocorreu de forma remota e foi aberto à participação de
convidados.
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