Decolonialidade, Educação e Antirracismo - VERS FINAL
Decolonialidade, Educação e Antirracismo - VERS FINAL
Decolonialidade, Educação e Antirracismo - VERS FINAL
Organizadores:
Ricardo Cesar Rocha da Costa (IFRJ)
Eliane Almeida de Souza e Cruz (SEEDUC-RJ)
George Vidipó (SME-RJ)
Roberto Carlos Costa da Silva (IFRJ-GEPECD)
Luiz Rafael Gomes (UFRRJ-PPGEO)
São Gonçalo – RJ
2021
Ficha Técnica
Copyright © Autores, 2021. Fragmentos dos artigos que constam desta coletânea
podem ser reproduzidos, desde que a fonte seja devidamente citada. Para reprodução
do artigo na íntegra, deve-se consultar os seus autores.
Contatos: educacaoculturasdecolonialidad@gmail.com
(*) A bandeira estilizada Whipala é um símbolo sagrado das nações quíchuas e aimarás,
expressando o pensamento filosófico andino, que incluem a Pacha-Kama (início-fim
universal) e Pacha-Mama (cosmos). Resgatada em tempos mais recentes, passou a
representar as concepções de organização, harmonia, irmandade e reciprocidade dos
povos dos Andes (cf. Gabriel Santos. Esquerda OnLine. Disponível em:
https://esquerdaonline.com.br/2019/11/14/wiphala-a-bandeira-simbolo-da-uniao-das-
nacoes-andinas/ Acesso: mar.21.
(**) “He dicho Escuela del Sur; porque en realidad, nuestro norte es el Sur. No debe
haber norte, para nosotros, sino por oposición a nuestro Sur. Por eso ahora ponemos el
mapa al revés, y entonces ya tenemos justa idea de nuestra posición, y no como
quieren en el resto del mundo. La punta de América, desde ahora, prolongándose,
señala insistentemente el Sur, nuestro norte.” (Joaquín Torres García. Universalismo
Constructivo, Buenos Aires: Poseidón, 1941).
IFRJ – Campus São Gonçalo. Rua Dr. José Augusto Pereira dos Santos, s/nº,
CIEP 436 Neusa Goulart Brizola, Neves - São Gonçalo – RJ, CEP: 24425-005
Dedicamos este trabalho às milhares de perdas que tivemos
e continuamos tendo em função da pandemia
e do descaso governamental, citando em especial
o professor Vitor Sueth Santiago, então
coordenador de Pesquisa do IFRJ-Campus São Gonçalo,
e o amigo do grupo de pesquisa, o professor e teólogo Max Cassin.
Sumário
PREFÁCIO 11
APRESENTAÇÃO 13
PARTE I – Memórias
A organização e a trajetória de um grupo de pesquisa no debate sobre a
decolonialidade
Eliane Almeida de Souza de Cruz e Ricardo Cesar Rocha da Costa 21
ANEXOS
PREFÁCIO
Há um projeto de destruição da educação pública em curso. Este processo não se deu a partir
dos efeitos da crise sanitária provocada pelo SARS-COV-2. Estas instituições sobrevivem aos
processos de privatização, sorrateiros, emergindo como alternativas à asfixia orçamentária e
financeira, transvestindo-se em parcerias público/privadas para se sobrepor ao cotidiano de
escassez.
De fato, os efeitos da pandemia para as atividades pedagógicas e acadêmicas são imensuráveis.
O espaço escolar se constrói com base nos encontros, partilhas e vivências. A escola tem
cheiros, rostos, olhares, suor, lágrimas, compromisso ético-político e afetos. Desde março de
2020 os espaços estão vazios, os encontros são virtuais e os olhares se expressam por meio das
telas.
Diante de tantas agruras e forças hegemônicas que nos fazem crer que ao Brasil, país de
capitalismo dependente, cabe intelectualidade subalterna e subjugada, entretanto, há
resistências, há produção de conhecimento que não concebe um país para a subalternidade.
O livro Decolonialidade, Educação e Antirracismo sintetiza o esforço de pesquisas e reflexões
coletivas que se põem no campo da resistência à subordinação teórica (e política) predominante
nas ciências humanas e sociais. Trata-se de uma produção abertamente crítica à colonialidade
do saber, às epistemologias eurocentradas e ao apagamento histórico de saberes alicerçados
pelo racismo estrutural e fermentados pelas relações capitalistas contemporâneas.
Seria possível elencar outros atributos, igualmente importantes, dos textos aqui reunidos. Por
hora, é fundamental destacar o seu caráter coletivo, construído nos horários de descanso dos
autores e autoras. Foram numerosas tardes de sábado passadas no IFRJ/Campus São Gonçalo
em seminários, grupos de estudos e muitas horas dedicadas ao trabalho em suas casas.
Aqui não há uma tentativa de romantização do excesso de trabalho e da ausência de
financiamento das pesquisas. Pelo contrário, pretende-se valorizar a rebeldia simbolizada pelo
pensamento crítico e contra-hegemônico no Brasil de 2021, onde uma instituição pública de
ensino como o IFRJ é tão fundamental para que outros trabalhos semelhantes floresçam.
Temos vivido processos de luto e perdas simbólicas diariamente em função da maior crise
sanitária que já se abateu sobre o país. São dias muito duros, perdemos amigos e colegas de
trabalho. Por isso é tão alentadora a publicação destes escritos e a percepção de que a educação
pública segue viva e pulsante. Certamente, nossos companheiros Vitor Santiago e Max Cassin
subscreveriam estas linhas.
APRESENTAÇÃO
objetiva recuperar a história do grupo de pesquisa, desde o seu início, em 2017, até o final de
2020. Seus autores, Eliane Cruz e Ricardo Costa, participaram de toda essa trajetória, sendo
hoje co-coordenadores do grupo e coorganizadores desta coletânea. O texto procura não
somente descrever as ações e as pautas debatidas pelo grupo ao longo desse período, mas
sintetizar, de passagem, algumas questões teóricas presentes nas referências sobre as quais nos
debruçamos. Consideramos esse primeiro registro como fundamental para a preservação dessa
memória, servindo também como um dos apontamentos necessários à avaliação dos erros e dos
acertos cometidos, visando ao planejamento dos próximos passos, a partir deste ano de 2021.
Fica colocado o desafio a que xs demais componentes do grupo produzam também suas análises
e propostas de ação e de discussão teórico-política.
A Parte II, “Decolonialidade e educação”, é subdividida em três artigos. No primeiro
deles, o professor da UFRRJ, Luiz Fernandes de Oliveira, uma das referências brasileiras nas
reflexões sobre o pensamento decolonial, apresenta exatamente um texto que enumera diversos
embates e questões relacionadas à produção intelectual do grupo de pesquisa latino-americano
Modernidade/Colonialidade (MC), como ficaram conhecidos esses pensadorxs, de origens
distintas, que se reuniram no final do século XX para gestar e desenvolver o conceito de
decolonialidade. Nada melhor do que abrir a coletânea com um artigo introdutório, mas bastante
abrangente e ilustrativo do debate a que o nosso grupo de pesquisa se propôs a fazer durante
esses tempos. Agradecemos ao Luiz Fernandes pela sua excelente e generosa contribuição,
assim como pela palestra de abertura do I Seminário organizado pelo grupo, em novembro de
2018. Com exceção desse artigo do professor Luiz, todos os demais reunidos nesta coletânea
foram redigidos por participantes efetivos do nosso grupo de pesquisa.
Na mesma pegada do artigo anterior, na sequência da Parte II, a professora Eliane Cruz
desenvolve um desdobramento teórico da produção do grupo MC, que é a Pedagogia
Decolonial Antirracista: tecendo o conceito, título do seu texto, um fragmento extraído da sua
tese de doutoramento, defendida em março de 2020, na UFRRJ. Seu artigo apresenta essa
pedagogia, nascida sob a inspiração da Pedagogia Crítica, de Paulo Freire, como um campo de
disputa de narrativas e de enfrentamento do racismo epistêmico presente nas práticas e nos
currículos escolares. Seu objetivo é a busca de processos pedagógicos libertadores e
emancipadores da condição humana subalternizada pela lógica opressora reproduzida e
introjetada nas salas de aula das classes subalternas.
Esta seção é finalizada com mais uma produção gerada no âmbito das discussões do
grupo e das aulas da Especialização em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-
brasileiras, do IFRJ - Campus São Gonçalo. No artigo Reflexões sobre práticas pedagógicas
15
decoloniais, a professora Marcia Guerra e seus orientandos Hyago Thomaz e Daniel Carvalho,
inspirados igualmente no pensamento de Paulo Freire, relatam suas experiências de formação
acadêmica e de exercício do magistério, revelando como o curso de Pós-Graduação do IFRJ e
as leituras decoloniais atravessaram e modificaram suas práticas de sala de aula, até então
marcadas pela perspectiva eurocêntrica. O texto reflete também a experiência dos autores na
oficina “África em sala de aula: novos temas, novas linguagens”, apresentada na VII Jornada
de Educação e Relações Étnico-raciais do MAR - Museu de Arte do Rio, em novembro de 2019,
evento que contou com parceria do curso de Pós do IFRJ e do nosso grupo de pesquisa.
A Parte III, “Decolonialidade e epistemologia antirracista”, também é subdividida em
três artigos. No primeiro deles, O significado de raça dentro da colonialidade do ser e do saber,
o co-coordenador do grupo, Luiz Rafael Gomes, apresenta a ideia de raça como imposição da
modernidade colonial europeia, que é uma das construções teóricas do grupo MC. A partir daí,
o autor, em seu texto, estabelece um diálogo bastante profícuo entre os pensadores decoloniais
e as reflexões do jamaicano Stuart Hall, especialista em estudos culturais, e do antropólogo
congolês, radicado no Brasil, Kabengele Munanga.
No artigo seguinte, a professora Maria Eugênia Brêttas Veiga debate o tema Laicidade
da escola pública brasileira: desafios para a consolidação do Estado Democrático de Direito.
Veiga desenvolve o seu texto demonstrando que a grande contribuição da laicidade para a
democracia está em acolher a diversidade e promover o diálogo em busca do respeito a cada
um e a todos. Seu trabalho se propõe a provocar uma reflexão crítica sobre o conceito e
concepção de estado laico na sociedade brasileira e refletir os efeitos que a laicidade provoca
na vida de cada pessoa e, consequentemente, no contexto escolar, concluindo ser necessário
fomentar esse debate no cotidiano das escolas, para que professores/as percebam a importância
de se trabalhar a diversidade. Só assim, segundo a autora, será possível assegurar o
reconhecimento dos direitos humanos – sociais, religiosos, étnicos, sexuais, reprodutivos – em
uma sociedade construída historicamente no marco de um pluralismo religioso de caráter
hierárquico.
O terceiro e último texto dessa parte é de autoria da professora Geiziane Angélica de
Souza Costa, intitulado Intolerância religiosa e racismo religioso: por uma perspectiva
decolonial. Seu artigo visa discutir as questões que envolvem os crimes de intolerância
religiosa, especificamente os casos de racismo religioso, nos quais os praticantes de
religiosidade afro-brasileira, em razão da hegemonia colonial, mantiveram suas crenças como
forma de resistência. Como ressalta o título do trabalho, Geiziane apresenta as suas reflexões
sobre o tema a partir de uma leitura decolonial, demarcando as práticas de resistência presentes
16
intervenção filosófica que observe o reconhecimento e a igual valorização das raízes africanas
da nação brasileira, ao lado das indígenas, europeias e asiáticas.
Por fim, a seção termina com o trabalho do historiador Roberto Carlos Costa da Silva,
Ferreiros africanos escravizados: a interculturalidade na história da siderurgia brasileira. O
artigo é um fragmento do seu Trabalho de Conclusão de Curso apresentado na Especialização
em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras do IFRJ, que teve como base
uma ampla pesquisa bibliográfica que envolveu as construções de fornos de metalurgia nas
áreas de minerações do Brasil Colônia e Império, comparando-as com as práticas de fundição
do ferro que eram características em tempos anteriores nos continentes europeu e africano. Sua
conclusão é surpreendente aos olhos viciados pela colonialidade: as técnicas de fundição e da
forja de ferro empregadas pelos ferreiros africanos e seus descendentes eram uma tecnologia
africana - e não europeia! Assim, Roberto Carlos, em seu artigo, denuncia o silenciamento, a
invisibilização e a subalternização cultural imposta pela colonialidade, ignorando a ciência e os
saberes tradicionais proporcionados pelas nações negras na diáspora forçada africana. Mesmo
com este spoiler que, nós, organizadorxs da obra, soltamos em relação às considerações finais
do autor, afirmamos que vale a pena conhecer os caminhos bibliográficos traçados pelo Roberto
em seu trabalho para se chegar ao resultado que já adiantamos nesta Apresentação.
A coletânea se encerra com uma seção de Resenhas, com a apresentação de duas
generosas contribuições por parte de colegas do grupo. Na primeira, o professor Antonio de
Castro Alves, do IFRJ, apresenta e debate as ideias do poeta e político nascido na Martinica,
Aimé Césaire, em sua obra Discurso sobre o colonialismo. Em seu texto, Antonio Alves chama
a atenção para a formulação de Césaire da colônia como o lugar do “outro irracional da Europa”.
Nesse processo, a subjetivação do colono acaba por “fazê-lo incorporar como naturais todas as
formas de violência racial”, que seriam permitidas com a representação das colônias como
território selvagem, onde tudo é permitido. O autor, nessa breve resenha e com essas
provocações, indica elementos importantes para a reflexão teórico-política, relacionando na
obra citada de Césaire o seu debate sobre as práticas e as ideias vinculadas ao colonialismo com
a ascensão do nazi-fascismo na Europa no início do século XX. Além disso, Alves aponta os
diálogos possíveis de Césaire acerca da decolonialidade, assim como autores como Achille
Mbembe, Franz Fanon e Walter Benjamin.
Na segunda resenha, o professor Paulo Gomes Coutinho apresenta sua leitura,
impressões e interpretações sobre a intelectual indiana Gayatri Spivak e sua obra Pode o
subalterno falar? O texto reflete uma síntese apresentada por Coutinho e debatida em um dos
encontros remotos mais frutíferos e recompensadores do grupo de pesquisa ocorrido em 2020
18
– a ponto de estimular o autor a assumir a tarefa de redigir e apresentar o seu trabalho para esta
publicação. Como vocês, leitores, poderão observar, o professor Paulo Coutinho formulou uma
resenha de grande fôlego teórico, procurando “traduzir” e tornar acessível as formulações de
Spivak, apresentando sua crítica aos estudos culturais, às concepções pós-coloniais e aos
autores pós-estruturalistas, como Michael Foucault e Gilles Deleuze – em discussões tais como,
a título de exemplo, a ausência aparentemente deliberada de Foucault no debate marxiano sobre
o conceito de ideologia, e o questionamento acerca do papel assumido pela teoria e pelo
intelectual em relação à prática política, segundo as formulações de Deleuze. Spivak aponta,
dessa forma, segundo Coutinho, para essa “negligência dos pensadores eurocentrados” em
relação à condição dos sujeitos subalternos, transformados em objetos pelas violências da
colonização. Enfim, esta é apenas uma, dentre tantas questões apontadas por Coutinho em sua
leitura e seus apontamentos sobre Spivak. Esperamos ter estimulado vocês, leitorxs, à leitura
da resenha de Coutinho e, por consequência, o desafio de conhecer e dialogar com o pensamento
de Gayatri Spivak.
Confiamos ter cumprido com a tarefa de apresentar a todxs esta obra construída
coletivamente, fruto de diversas reflexões a que nos permitimos como uma estratégia de
resistência e de enfrentamento político e intelectual. Aguardamos ansiosos pelas leituras e pelas
necessárias devolutivas a respeito do resultado deste nosso esforço teórico.
Apostamos na certeza de tempos futuros menos sombrios e mais esperançosos!
Continuem se cuidando! Por aqui, continuaremos resistindo!
Saudações antirracistas e decoloniais!
Abril de 2021
1
A insurgência linguística usaremos o “x” para classificar o gênero da palavra, numa desobediência ao cânone de
uma categorização frasal que privilegia o masculino.
22
do Rio de Janeiro (UFRRJ), Luiz Fernandes de Oliveira, que havia concluído e defendido, em
2010, a sua tese de doutoramento na PUC – Rio de Janeiro, sob a orientação da Drª Vera Maria
Candau, intitulada História da África e dos africanos na escola: desafios políticos,
epistemológicos e identitários para a formação dos professores de História (OLIVEIRA,
2012). O professor Luiz Fernandes havia assumido como referência teórica central do seu
trabalho as contribuições de grupo de pesquisa relativamente pouco conhecido no universo
acadêmico brasileiro, intitulado “Modernidade/Colonialidade”, integrado por diversxs
intelectuais atuantes em universidades da América Latina, tais como Aníbal Quijano, Enrique
Dussel, Ramón Grosfoguel, Arturo Escobar, Catherine Walsh, Walter Mignolo, Santiago
Castro-Gómez, dentre outros. Registre-se que a professora Catherine Walsh, linguista norte-
americana radicada no Equador, onde leciona na Universidade Andina Simón Bolívar, no curso
de doutorado em Estudos Culturais da América Latina, participou da arguição da banca de
defesa de Luiz Fernandes de Oliveira, na PUC.
As reuniões gerais do GPMC e das equipes vinculadas às suas linhas de pesquisa
ocorriam mensalmente, via de regra, em bairros da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro e
em cidades da Baixada Fluminense. Além do deslocamento geográfico para quem residia do
outro lado da Baía de Guanabara (Niterói, Itaboraí e São Gonçalo), associou-se também como
elemento dificultador a carga horária em sala de aula e outras atividades assumidas por esses
três participantes. Com isso, retomou-se a proposta de mais uma vez tentar organizar um grupo
de pesquisa com base no IFRJ, campus de São Gonçalo. Desta vez, entretanto, tendo como
referência os debates promovidos nos encontros periódicos do GPMC, esse novo projeto
assumia como proposta de estudos, debates e pesquisas a perspectiva teórica proporcionada
pelo tema colonialidade/decolonialidade, mas acrescida pelo diálogo com a vasta produção em
torno das pesquisas sobre a temática etnicorracial desenvolvida durante o curso de Pós-
Graduação do IFRJ e – uma “inesperada novidade”, podemos dizer – o pensamento e a
produção marxiana e marxista. Dessa articulação teórica é que surge o primeiro nome de
batismo do grupo: Grupo de Pesquisa Culturas, Marxismo e Decolonialidade – GPCMD.
Em 27 de maio de 2017 ocorria a primeira reunião visando à organização do novo
grupo de pesquisa, com convidados interessados nos eixos teóricos elencados acima. Além dxs
especialistas pós-graduadxs do citado curso do IFRJ, a iniciativa desta vez conseguiu agregar
outrxs docentes desse curso, alunxs das turmas em atividade naquele momento, e diversxs
professores e professoras do próprio IFRJ, de outro campus/cursos, e outras redes de ensino
públicas e privadas. Da listagem inicial de possíveis interessadxs, elaborada pelxs presentes a
esse primeiro encontro constava 33 nomes, que foram devidamente consultados e aceitaram
23
participar do grupo, sendo convidaxs para o segundo encontro. Na listagem citada tínhamos:
05 docentes da Pós oferecida pelo IFRJ; 01 docente do IFRJ, do campus Nilópolis; 20
estudantes e ex-estudantes do curso; e 06 educadores de outras redes de ensino e militantes de
movimentos sociais. Para o segundo encontro do grupo, entretanto, ocorrido em 15 de julho
desse ano, compareceu praticamente a metade dessa lista, totalizando 15 pessoas – quantidade
de participantes que tem se mantido a cada reunião, em média, nestes quase quatro anos de
existência do grupo. “Olhando pelo espelho retrovisor”, ou seja, comparando os integrantes do
grupo de pesquisa ativos em março de 2021 com a lista elaborada em maio de 2017,
contabilizamos a permanência de 12 membros desde então, sendo que oito deles estavam
presentes nesses primeiros encontros, com os demais se integrando no decorrer do tempo. Mais
do que números, simplesmente, esse dado representa a consolidação efetiva de um grupo
interessado, que garantiu a existência institucional e a oficialização do grupo de pesquisa junto
à Reitoria do IFRJ e o seu registro posterior junto ao CNPq.
Dessa forma, o grupo de pesquisa e de estudos, enfim, se constituiu a partir desse
momento enquanto um espaço rico e prazeroso para debate e aprofundamento teórico-prático,
com reflexões voltadas para o fazer pedagógico, tanto pensando no “chão da escola”, como nos
movimentos sociais, tomando também como referências as leituras e as trocas de experiências
entre os seus participantes. No mesmo viés, a proposta de organização do grupo pretendia
contribuir com os estudos e a vida acadêmica e produção intelectual dos seus membros, com a
pretensão de se investir na organização de eventos científicos e publicações diversas – mas
sempre com a preocupação central de servir como instrumento de construção político-
pedagógica da práxis cotidiana, tendo como foco a formação política e a organização da luta da
classe trabalhadora, pobre, negra e periférica.
encontro os temas e textos de referência eram levantados e sugeridos pelos membros do grupo,
com a auto-indicação de que um dos participantes, de acordo com suas leituras prévias e seus
interesses mais imediatos em termos de pesquisa, apresentasse uma síntese das contribuições
trazidas por cada autor/a selecionadx, para debate e intervenção de todos e todas, que eram
corresponsáveis pelo estudo e pelas devidas anotações críticas para compartilhamento em cada
encontro mensal.
Seguindo essa dinâmica de trabalho, o grupo de pesquisa, na sequência desse debate
teórico introdutório, entre o final de 2017 e ao longo dos dois anos seguintes, promoveu
discussões acerca da pedagogia do oprimido, com a leitura de textos de referência de Paulo
Freire sobre o tema, como o livro que traz esse título e, em outro momento, a publicação
Educação como prática da liberdade; analisou e debateu a obra de Franz Fanon, Peles negras,
máscaras brancas;2 discutiu o feminismo negro e o conceito de interseccionalidade, 3
trabalhando autoras como Angela Davis, Kimberlé Crenshaw e Lélia Gonzalez – esta última
reconhecida como uma precursora brasileira do pensamento decolonial (cf. CARDOSO, 2014);
debateu a Filosofia africana e a ideia de ubuntu (BORGES-ROSÁRIO, 2019; 2020); promoveu
um instigante debate sobre o tema Direito e Racismo articulando as reflexões de Lilia M.
Schwarcz, Giorgio Agamben, Pedro Serrano e Jorge Zaverucha; realizou um evento aberto
sobre a questão da democracia na América Latina, em 27 de abril de 2019, com destaque para
as experiências de organização da participação pela base – conselhos comunais – em curso na
Venezuela (com a presença do professor da UERJ/FFP, Eduardo Scheidt, pesquisador sobre o
tema – consultar, entre outros artigos, SCHEIDT, 2017); e estabeleceu um diálogo bastante
frutífero entre o pensamento decolonial e o marxismo por alguns caminhos distintos: pela crítica
às práticas e concepções clássicas e eurocêntricas (cf. GRASFOGUEL, 2012), pela formulação
de um marxismo crítico e libertário (LOWY, 1997) e pela construção de um marxismo
americano e indígena, como proposto pelo revolucionário peruano José Carlos Mariátegui (cf.
TIBLE, 2009). Apesar de reconhecer que cada um desses temas mereceria uma ampla discussão
e desenvolvimento sob o ponto de vista do debate teórico, deixaremos essas questões para outro
momento – evidentemente, a cargo dxs companheirxs que se debruçaram mais profundamente
sobre esses temas –, pela razão de fugir ao escopo deste artigo. Fica este registro dessas
2
As leituras de Paulo Freire e Franz Fanon foram analisadas e apresentadas de forma bastante sistematizada pelos
professores e membros do grupo de pesquisa Sergio Oliveira e Antonio de Castro Alves, respectivamente, em
momentos distintos de muita inspiração e trocas extremamente enriquecedoras.
3
Sobre interseccionalidade, consultar Crenshaw (2002), professora da Universidade da California – Los Angeles
e uma das primeiras intelectuais negras norte-americanas a sistematizar e publicizar amplamente esse conceito.
26
atividades e temas, de qualquer maneira, para se ter uma ideia do trabalho que vem sendo
desenvolvido pelo grupo de pesquisa, apesar de contar com menos de quatro anos de existência.
Como citado no caso específico da América Latina e da Venezuela, o grupo de
pesquisa inseriu em seu cronograma de trabalho a realização de diversos eventos abertos, com
ampla divulgação para possíveis interessadxs, tendo como referência o seu objetivo de
contribuir para a formação política, em geral, e especificamente de educadores na crítica e na
releitura de suas concepções e práticas político-pedagógicas. A partir dessas experiências
exitosas, tomamos a iniciativa de organizar dois eventos de maior porte. O primeiro deles foi o
I Seminário Educação e Transdisciplinaridade no Pensamento Decolonial, realizado durante
um sábado inteiro, em 24 de novembro de 2018, das 9h às 17h, utilizando o auditório e algumas
salas de aula do IFRJ – Campus São Gonçalo e, um ano depois, nos dias 29 e 30 de novembro
de 2019 – sexta à noite e, novamente, durante todo o sábado –, no mesmo auditório. O nosso II
Seminário, intitulado Educação, Racismo e Decolonialidade, que contou com uma parceria
institucional com a Pós-Graduação Especialização em Ensino de Histórias e Culturas Africanas
e Afro-brasileiras do IFRJ e com o Museu de Arte do Rio – MAR, localizado na região portuária
da cidade do Rio de Janeiro, que resultou na organização de uma programação conjunta durante
a sua VII Jornada de Educação e Relações Étnico-Raciais, nessa mesma semana, a partir da
terça-feira, dia 26 de novembro (ver OLIVEIRA, NICHOLS e SOUZA, 2020).4
4
Cf., na obra citada, a Programação do evento, p. 250-257, e o artigo de COSTA, que procura descrever e levantar
questões sobre o significado dessa parceria, p. 27-35.
27
do Rio - MAR, iniciada nessa mesma semana, a partir do dia 26 de novembro. Essa parceria foi
construída a partir de um contato realizado pelas educadoras do MAR com a coordenação da
Pós-Graduação em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras, naquele
momento, ocupada por um dos coordenadores do grupo de pesquisa, Ricardo Costa. A reunião
de organização, ocorrida no museu, contou com a presença do coordenador citado e de outra
docente da Pós, a professora Márcia Guerra Pereira, que também é integrante do grupo de
pesquisa. Assim, se estabeleceu essa parceria inédita entre o MAR e o IFRJ, sendo este
representado não somente pelo curso de Pós-Graduação, mas também pelo nosso grupo de
pesquisa.
Na programação geral do MAR, em função da parceria estabelecida, o curso de
Especialização do IFRJ indicou a pedagoga e professora Luana Luna Teixeira como uma das
participantes da Mesa Redonda de abertura do evento, no dia 26, sobre “Racismo Religioso,
Educação e Convívio na Diferença”, no papel também de representante das religiões de matriz
africana. Compuseram a mesa o pastor Henrique Vieira - que é também ator, poeta e professor
de história e sociologia – e o padre Mauro Luiz da Silva, diretor e curador do Museu de
Quilombos e Favelas Urbanos (MUQUIFU) e doutorando em ciências sociais pela PUC/Minas.
No dia 29/11, sexta, no período da manhã, a professora Márcia Guerra Pereira coordenou a
oficina “África em sala de aula: novos temas, novas linguagens”, com a participação de um
grupo de alunos da turma de 2019 da Pós-Graduação: Carol Gonçalves, Caroline Macedo,
Cleide Belisário, Daniel Carvalho, Hyago Thomaz e Vitória Curitiba. No mesmo dia, à tarde,
o ex-aluno da Pós e atual membro do grupo de pesquisa, Fábio Borges do Rosário, ofereceu o
minicurso “Ubuntu: uma introdução à filosofia africana”. As reflexões compartilhadas nesse
evento foram registradas posteriormente pelo e-book publicado pelo MAR, lançado por ocasião
da sua VIII Jornada, em novembro de 2020 (cf. os artigos de LUNA, 2020; BORGES-
ROSÁRIO, 2020; e GUERRA, THOMAZ e CARVALHO, 2020).
Em relação à participação dos membros do grupo de pesquisa no evento do MAR,
registramos que os pós-graduandos Hyago Thomaz e Daniel Carvalho, oficineiros no dia 29,
são estudantes inseridos no registro do grupo junto ao CNPq, e a ex-aluna da Pós do IFRJ,
Priscilla Hygino Donato, que apresentou na VII Jornada uma comunicação que teve como base
o TCC defendido ao final do curso (cf. DONATO, 2020), participou de reuniões do grupo de
pesquisa em 2018.
30
5
O termo ‘giro colonial’ é imediatamente incorporado pelos intelectuais do grupo Modernidade/Colonialidade,
como se observa, por exemplo, na obra organizada por CASTRO-GÓMEZ e GROSFOGUEL (2007).
31
pandemia, cada vez mais provocando o adoecimento e dando fim à vida de pessoas queridas,
amigos e parentes. Em termos operacionais, não foi nada simples também, já que o país não
oferece condições adequadas de acesso à Internet para a população em geral – condição na qual
se incluem os diversos integrantes do grupo de pesquisa. Decidiu-se, de qualquer forma, pelo
encaminhamento dessa experiência de tentativa de contato e partilha, para avaliação posterior,
mesmo com todas essas limitações e problemas envolvidos.
Nesse sentido, foi organizada e executada uma programação de leituras e encontros
remotos durante o ano de 2020, com a discussão de diversos autores, obras e temas. Num
primeiro momento, já em abril, no dia 18, continuando essas reflexões no dia 02 de maio,
retomamos o diálogo da decolonialidade com a teoria marxista, debatendo o pensamento de
intelectuais fundamentais como o filósofo e militante comunista italiano Antonio Gramsci e a
filósofa indiana Gayatri Chakravorty Spivak, provocando uma reflexão sobre a noção de
subalternidade sob o ponto de vista das periferias, ou seja, da classe trabalhadora ainda mais
invisibilizada e oprimida pela lógica do capital. As referências utilizadas nesse debate foram
dois artigos que constam da coletânea organizada por Marcos Del Roio, em 2017, escritos pelos
professores Edmundo Fernandes Dias e Giovanni Semeraro, e um livro da própria Spivak,
publicado pioneiramente aqui no Brasil pela UFMG em 2010.6 Pela relevância e a compreensão
da importância da divulgação do pensamento de Gayatri Spivak, esta primeira publicação do
grupo de pesquisa traz uma excelente resenha da obra citada, redigida pelo integrante do grupo
responsável pela síntese apresentada no encontro de abril, o professor Paulo Gomes Coutinho.
O debate sobre a realidade da periferia como o necessário “lugar de fala” dos chamados
“subalternos” trouxe à tona o papel político e ideológico que as diversas denominações
religiosas cristãs têm desempenhado no país em relação à conjuntura, com a sua postura
hegemonicamente conservadora contribuindo para a desinformação e a manipulação política
por parte de lideranças mal intencionadas, além do negacionismo em relação às conquistas da
ciência e à necessidade de se buscar as informações necessárias para se evitar o alastramento
ainda mais acentuado da contaminação, como as medidas de distanciamento social e os
cuidados básicos com a higiene e, num segundo momento, a busca pela vacinação em massa,
única forma efetiva e comprovadamente eficaz no combate à pandemia. Assim, entendemos
que uma das formas de se compreender melhor essa conjuntura adversa passaria não somente
pelo debate sobre o papel assumido pela religião nas regiões periféricas, em geral, mas também
se pensar nas alternativas que desempenharam um papel histórico importante na segunda
6
Assim como temos procedido de maneira geral neste texto, para fins didáticos e de registro da memória do grupo
de pesquisa, os trabalhos citados constam das Referências, ao final deste artigo.
32
metade do século XX e que poderiam, de alguma forma, ainda servir como ferramentas de
reflexão nestes tempos mais sombrios. A iniciativa do grupo, então, no encontro agendado para
30 de maio sob o título “Religião e decolonialidade”, foi resgatar o debate sobre a Teologia da
Libertação (TL), mas procurando as interseções teóricas presentes no pensamento decolonial,
como é explicitada na Filosofia da Libertação, conforme a formulação de um membro do grupo
Modernidade/Colonialidade e um dos mais antigos intelectuais ligados à TL, Enrique Dussel
(1977; 2013), assim como outras leituras que contribuíssem para as reflexões sobre esse tema
tão importante (cf. ROSS, 2013; ANDRADE, 2018).
Finalmente, para o encontro seguinte, em 27 de junho, decidimos debater diretamente
a pandemia sob uma perspectiva de leitura decolonial, ou seja, tomando como referência de que
forma essa crise afetou e é entendida pelos povos periféricos. Para esse fim, fizemos uma
prazerosa leitura de uma das reflexões formuladas nesta conjuntura pelo filósofo indígena
Aílton Krenak, O amanhã não está à venda (2020), acompanhada por uma reflexão não menos
importante de um sociólogo português vinculado diretamente ao pensamento decolonial,
Boaventura de Sousa Santos, A cruel pedagogia do vírus (2020). Estes dois textos, tomados
como parâmetro central para os debates do grupo, foram acompanhados por outras leituras
complementares, também importantes e fundamentais, que incidiram igualmente no encontro,
abordando categorias e questões totalmente relacionadas a estes tempos, tais como
“necrocapitalismo” e sua relação com o que vem sendo chamado de “neofascismo”
(DORNELLES, 2020), a “necrofilia colonialista” em curso (MORAES, 2020), e o resgate
histórico da necessária solidariedade da classe trabalhadora como instrumento da luta política
e das resistências populares em permanente construção para os enfrentamentos colocados na
ordem do dia (VIEIRA e GHIBAUDI, 2020).
No encontro remoto seguinte, que ocorreu em 01 de agosto, retomamos as discussões
sobre outro tema abordado anteriormente, que são os estudos sobre gênero, mas desta vez
recorrendo a leituras mais específicas, debatendo o tema sob a perspectiva decolonial. Assim,
optamos pela leitura de dois trabalhos de fundo, como os textos da intelectual argentina que
havia falecido então recentemente, em 14 de julho, María Lugones, com o seu artigo
Colonialidad y Género (2008), e de uma intelectual nigeriana cuja obra tem sendo cada vez
mais reconhecida academicamente, mas ainda não traduzida no Brasil, Oyèrónké Oyèwùmí.
Seu artigo debate o conceito de gênero estabelecendo os antagonismos explícitos entre a
concepção eurocêntrica e as epistemologias africanas (2004). Como complemento, recorremos
também à professora de Direito, Camilla de Magalhães Gomes, para contribuir à compreensão
do Gênero como categoria de análise decolonial (2018).
33
Como citamos no início deste texto, o grupo de estudos e pesquisas que veio a se
formar e se consolidar a partir de 2017 se intitulava inicialmente como Grupo de Pesquisa
Culturas, Marxismo e Decolonialidade – GPCMD. Com o passar do tempo, entretanto, o grupo
foi renomeado algumas vezes, com pequenas diferenças. A título de exemplo, por ocasião da
primeira publicização de maior porte do grupo, quando da organização o I Seminário Educação
e Transdisciplinaridade no Pensamento Decolonial, no final de 2018, os folhetos e cartazes de
divulgação já traziam uma pequena alteração: Grupo de Estudos e Pesquisas Culturas,
Marxismo e Decolonialidade. Já no II Seminário e na parceria com o Museu de Arte do Rio, no
final de 2019, o nome foi alterado novamente para Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Culturas
e Decolonialidade, inclusive com a elaboração de uma logo que reproduzia esse título. Por fim,
na chamada pública para a inscrição de trabalhos para o GT 7 do I Seminário Integrado de
Educação Popular, no segundo semestre de 2020, o grupo foi renomeado mais uma vez: Grupo
de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade.
De fato, essa inconstância em relação ao nome, que se repetia nas logomarcas do
grupo, indicava um determinado problema de identidade, de afirmação do nome do grupo de
36
Como uma forma de unificar esses dois nomes oficiais no cotidiano do grupo, sugere-
se a adoção de um nome genérico que contemple os interesses centrais em discussão: GRUPO
DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCAÇÃO, CULTURAS E DECOLONIALIDADE. Só o
tempo poderá dizer se este nome, finalmente, se afirmará para nomear o grupo de pesquisa
daqui por diante.
No mesmo sentido do que foi ressaltado acima, o grupo de pesquisa conta, hoje, com
uma coordenação constituída por cinco de seus membros, que assinam a organização desta
coletânea, conforme deliberação da totalidade dos membros do grupo, em meados de 2019. Sob
o ponto de vista “oficial”, essa deliberação democrática não poderia ter ocorrido, pois o
chamado “líder” do grupo precisa necessariamente reunir entre seus pré-requisitos o título de
doutor e o vínculo formal com o IFRJ. Portanto, à margem das exigências institucionais,
entendemos que o mais importante e relevante é o processo de debate, de construção
participativa e de formação política e pedagógica que este coletivo se propõe a fazer,
independentemente das normas oficiais.
Nesta data, na revisão final deste texto, em março de 2021, contabilizamos 25
pesquisadores e pesquisadoras participantes durante todo o ano de 2020, sendo que alguns
destes não constam da certificação oficial porque não haviam confirmado o seu
comprometimento em continuar atuando no grupo por ocasião do encaminhamento do registro.
Outros se aproximaram do grupo após o processo de certificação junto ao CNPq. Além desses
25 integrantes, o grupo conta também com a participação de 05 estudantes da turma de 2019 da
Pós-Graduação oferecida pelo IFRJ no campus São Gonçalo. Nos Anexos a esta obra constam
todas as informações quanto ao registro do grupo de pesquisa junto ao CNPq, com as
justificativas apresentadas, os nomes completos e a formação acadêmica dos componentes e as
suas respectivas linhas de pesquisa.
Considerações finais
Como foi possível observar neste artigo, nosso objetivo central, que entendemos ter
sido cumprido, era o de fazer uma apresentação geral do processo de desenvolvimento do grupo
de pesquisa, destacando as temáticas debatidas e as iniciativas desenvolvidas ao longo desses
quase quatro anos de existência. Entendemos que as referências presentes neste texto cumprem
também com o papel de registrar parcialmente a memória dos debates realizados, não somente
para situar os eventuais futuros interessados nas discussões teóricas citadas, como para atualizar
minimamente aqueles/as pesquisadores/as que se integraram ao grupo de pesquisa no decorrer
desse período. Esperamos que o Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e
38
Decolonialidade prossiga com firmeza em sua jornada, contribuindo para a formação política
e pedagógica de professorxs, estudantes e da comunidade em geral, no sentido de darmos nossa
pequena parcela de contribuição para que tenhamos, um dia, uma sociedade organizada a partir
dos subalternizados pela modernidade capitalista, que resgate e afirme politicamente as
epistemologias dos povos e culturas historicamente invisibilizados pela colonialidade europeia.
Março, 2021
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39
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1
Texto extraído de parte da minha tese de doutorado, defendida no ano de 2010. Após mais de uma década, alguns
conceitos que este texto trabalha ganharam força no debate acadêmico e educacional e, ainda hoje, o considero
adequado para a compreensão de processos de luta antirracistas em educação (publicado também em OLIVEIRA,
2012, p. 39-69).
46
de um grupo que busca um projeto epistemológico novo. Trata-se de uma construção alternativa à
modernidade eurocêntrica, tanto no seu projeto de civilização, como em suas propostas epistêmicas.
O postulado principal do grupo é que “a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não
derivada” (MIGNOLO, 2005, p. 75). Ou seja, modernidade e colonialidade são as duas faces da
mesma moeda. Graças à colonialidade, a Europa pode produzir as ciências humanas com um modelo
único, universal e objetivo na produção de conhecimentos, além de deserdar todas as epistemologias
da periferia do ocidente. As principais categorias de análise do grupo se constituem nos conceitos e
noções sobre o mito de fundação da modernidade, a colonialidade (derivando daí a colonialidade do
poder, do saber e do ser), o racismo epistêmico, a geopolítica do conhecimento, a diferença colonial,
o pensamento liminar, a transmodernidade e a interculturalidade crítica.
Escobar, alerta que o programa de investigação MC deve ser entendido como uma maneira
diferente de pensamento em relação às grandes narrativas produzidas pela modernidade europeia
como a cristandade, o liberalismo e o marxismo. Castro-Gómez (2005), por outro lado, esclarece que
as questões que o grupo levanta se inserem num contexto discursivo mais amplo, conhecido na
academia europeia e norteamericana como a teoria pós-colonial. Entretanto, reitera que essas questões
não são simples recepções das teorias pós-coloniais (SAID, 2001; BHABBA, 1999; GILROY, 2001
entre outros), como se fossem sucursais latinoamericanas. São, ao contrário, uma especificidade
latinoamericana que estabelece um diálogo com a teoria pós-colonial e se situa em outra perspectiva,
porém fora do eixo moderno/colonial.
Modernidade e Colonialidade
Para compreender essa perspectiva teórica, necessitamos iniciar com a crítica contundente
de Enrique Dussel ao mito de fundação da modernidade.
Dussel, em seu artigo “Europa, modernidade e eurocentrismo”, de 2005, propõe uma
mudança de interpretação sobre o significado do conceito de “Europa”. No entanto, deixa claro o
quanto esta questão é difícil de discutir, pois se trata de um estudo que pode reverter concepções
profundamente enraizadas na construção do conhecimento europeu.
Para o filósofo argentino, “a Europa moderna (em direção ao Norte e ao Oeste da Grécia)
não é a Grécia originária, está fora de seu horizonte”. Com isso, ele deixa muito claro que a diacronia
47
Segundo o autor, é difícil perceber que se trata de uma invenção ideológica “que rapta a
cultura grega como exclusividade europeia e ocidental” (DUSSEL, 2005, p. 59) e cuja intenção é
fazer entender que, desde as eras grega e romana, essas foram o centro da História mundial. Ao
contrário das visões predominantes que associam uma evolução do pensamento de Platão, passando
por Santo Agostinho a Descartes, ou seja, a sequência greco-romana, cristã, moderna como sendo
unilinear, Dussel mostra que a sequência histórica do mundo Grego à Europa moderna, passa por
outra perspectiva:
Esquema 2
Como está exposto, “a influência grega não é direta na Europa latino-ocidental (passa pelas
setas a e b). A sequência c da Europa moderna não entronca com a Grécia, nem tampouco diretamente
48
com o grupo bizantino, mas sim com todo o mundo latino-romano ocidental cristianizado” (DUSSEL,
2005, p. 57).
O mito de fundação da modernidade para Dussel se encontra na assertiva de que o conceito
de Europa é eurocêntrico, provinciano e regional, através de uma ideia de autoemancipação, uma
saída da imaturidade por um esforço autóctone da razão que proporciona à humanidade um pretenso
novo desenvolvimento humano. É neste sentido que para Dussel se explica as descrições de Hegel
sobre a “História universal”.
No esquema 2 ilustrado por Dussel, percebe-se que empiricamente nunca houve uma
História mundial até 1492, pois para o autor:
Antes dessa data, os impérios ou sistemas culturais coexistiam entre si. Apenas com
a expansão portuguesa desde o século XV, que atinge o extremo oriente no século
XVI, e com o descobrimento da América hispânica, todo o planeta se torna o “lugar”
de “uma só” História Mundial.
A Espanha, como primeira nação “moderna” (com um Estado que unifica a
península, com a Inquisição que cria de cima para baixo o consenso nacional, com
um poder militar nacional ao conquistar Granada, com a edição da Gramática
castelhana de Nebrija em 1492, com a Igreja dominada pelo Estado graças ao
Cardeal Cisneros etc.) abre a primeira etapa “Moderna”: o mercantilismo mundial.
As minas de prata de Potosi e Zacatecas (descobertas em 1545-1546) permitem o
acúmulo de riqueza monetária suficiente para vencer os turcos em Lepanto, vinte e
cinco anos depois de tal descoberta (1571). O Atlântico suplanta o Mediterrâneo.
Para nós, a “centralidade” da Europa Latina na História Mundial é o determinante
fundamental da Modernidade. Os demais determinantes vão correndo em torno dele
(a subjetividade constituinte, a propriedade privada, a liberdade contratual etc.) são
o resultado de um século e meio de “Modernidade”: são efeito, e não ponto de
partida. A Holanda (que se emancipa da Espanha em 1610), a Inglaterra e a França
continuarão pelo caminho já aberto (DUSSEL, 2005, p. 61).
Dussel nos apresenta uma segunda etapa da “modernidade”, ou seja, da revolução industrial
e do iluminismo, que aprofunda e amplia o horizonte no qual o início se encontra o século XV.
A Inglaterra substitui a Espanha como potência hegemônica até 1945, e tem o comando da
Europa Moderna e da História Mundial (em especial desde o surgimento do Imperialismo,
por volta de 1870). Esta Europa Moderna, desde 1492, “centro” da História Mundial,
constitui, pela primeira vez na História, a todas as outras culturas como sua “periferia”
(Ibid, p. 61).
A partir desse entendimento, podemos perceber que embora toda cultura apresente um
comportamento etnocêntrico, o caso específico do etnocentrismo europeu parece ser o único que pôde
pretender uma identificação com a “universalidade-mundialidade”. Pois, segundo Dussel, ocorreu
historicamente uma unificação entre uma ideia de universalidade abstrata com uma universalidade
concreta hegemonizada pela Europa como o centro. É quando Dussel formula a ideia de que o “ego
49
cogito”, a consciência de si, foi antecedida em mais de um século pelo “ego conquiro” (eu conquisto),
prática luso-hispânica que impõe sua vontade sobre as Américas:
A conquista do México foi o primeiro âmbito do ego moderno. A Europa (Espanha) tinha
evidente superioridade sobre as culturas Azteca, Maia, Inca etc, em especial por suas armas
de ferro — presentes em todo o horizonte euro-afro-asiático. A Europa moderna, desde
1492, usará a conquista da América Latina (já que a América do Norte só entra no jogo no
século XVII) como trampolim para tirar uma “vantagem comparativa” determinante com
relação a suas antigas culturas antagônicas (turco-muçulmana etc.). Sua superioridade será,
em grande medida, fruto da acumulação de riqueza, conhecimentos, experiência etc., que
acumulará desde a conquista da América Latina (Ibid, p. 63).
Alguns dos circuitos comerciais existentes entre 1330 e A emergência do circuito comercial do Atlântico interligou
1550, segundo Abu-Lughod (1989). Até esta data, existiam os circuitos assinalados na ilustração anterior com pelo
também outros no Norte da África, que ligavam o Cairo a menos dois não interligados até então: o circuito
Fez e a Tombuctu (África ocidental). (Fonte: MIGNOLO, comercial que tinha seu centro em Tenochtitlán e se
2005, p. 76). estendia pelo Anáhuac; e o que tinha seu centro em
Cusco e se estendia pelo Tawantinsuiu. (Fonte:
MIGNOLO, 2005, p. 77).
50
2 Mignolo faz referência ao conceito de imaginário como construção simbólica mediante a qual uma comunidade
(racial, nacional, imperial, sexual etc.) se define a si mesma. Esse imaginário forma uma estrutura de diferenciação
com o simbólico e o real. Mignolo destaca, neste exemplo, o sentido geopolítico e o emprego na fundação e
formação do imaginário de um sistema-mundo moderno colonial.
3 Nas palavras de Dussel: “Se a Modernidade tem um núcleo racional ad intra forte, como “saída” da humanidade
de um estado de imaturidade regional, provinciana, não planetária, essa mesma Modernidade, por outro lado, ad
extra, realiza um processo irracional que se oculta a seus próprios olhos. Ou seja, por seu conteúdo secundário e
negativo mítico, a “Modernidade” é justificativa de uma práxis irracional de violência” (DUSSEL, 2005, p. 62).
51
população do planeta4, em uma estrutura funcional para articular e administrar essas classificações,
na definição de espaços para esses objetivos e em uma perspectiva epistemológica para conformar
um significado de uma matriz de poder na qual canalizar uma nova produção de conhecimento.
Segundo Quijano (2007) colonialismo e colonialidade são dois conceitos relacionados,
porém distintos. O colonialismo se refere a um padrão de dominação e exploração onde:
Quijano nos esclarece que ocorreram dois processos históricos que emergem no século XVI:
o primeiro consistiu em codificar, na ideia de raça a diferença entre conquistadores e conquistados e
o segundo, numa nova estrutura de controle do trabalho, dos recursos e dos produtos. Estas estruturas,
afirma Quijano, traduziam todas as outras já conhecidas, em torno e em função do capital e do
mercado mundial. Assim, o novo padrão envolvia a articulação entre raça e capitalismo na criação e
expansão crescente da rota comercial atlântica.
Nelson Maldonado-Torres (2009), interpreta esta formulação de Quijano como um modelo
de poder específico moderno que interliga a formação racial, o controle do trabalho, o Estado e a
produção de conhecimento. Porém, num outro texto (2007), de forma mais esclarecedora, diferencia
colonialismo e colonialidade da seguinte forma:
4 É conveniente destacar que cultura, na acepção de Mignolo (2003), é precisamente uma palavra chave dos
discursos coloniais que classificam o planeta, especialmente na expansão colonial do século XIX e XX, de acordo
com a etnicidade e um sistema de signos. “Do século XVIII até aproximadamente 1950, a palavra cultura tornou-
se algo entre natureza e civilização” (MIGNOLO, 2003, p. 38).
52
a “universalidade” do ser humano “[...] tal como era vista numa Europa já consolidada e possibilitada
pelas riquezas que fluíam do mundo colonial [...]” (Ibid., p. 56).
Se o período colonial, nestas formulações, não é concebido como anterior à modernidade,
mas como sua face oculta, há também outro aspecto a ser considerado que diz respeito à colonialidade
do poder, ou seja, à perspectiva epistemológica. Pois, neste contexto, a população dominada nas novas
identidades que lhe haviam sido atribuídas foram também submetidas à hegemonia eurocêntrica
como maneira de conhecer.
O imaginário dominante do sistema mundial moderno funcionou como máquina para
subalternizar outros conhecimentos, estabelecendo um padrão epistemológico planetário. Esta
assertiva, é melhor compreendida através do seguinte argumento:
Para Quijano, ao mesmo tempo em que se afirmava uma dominação colonial, forjava-se
uma complexa concepção cultural denominada racionalidade e estabelecia-se um paradigma
universal de conhecimento, onde existe uma humanidade racional (a Europa) e o resto do mundo.
Esta formulação nos leva aos conceitos de colonialidade do saber e à geopolítica do conhecimento.
Entretanto, vamos apresentar as argumentações de Santiago Castro-Gómez (2005) para elucidar um
pouco mais a questão epistemológica atribuída à Europa e ao resto do mundo.
Para Castro-Gómez, a colonialidade do poder faz referência a um tipo hegemônico de
produção do conhecimento que ele denominou de “la hybris del punto cero” referindo-se a uma forma
de conhecimento humano que possui pretensões de objetividade e cientificidade partindo do
pressuposto de que o observador não forma parte do observado. O termo hybris refere-se aos gregos
que relatavam como pecado da hybris, ou seja, quando os homens queriam elevar-se ao status de
deuses. O ponto zero equivale ao poder de um Deus que pode ver sem ser visto, ou seja, que pode
55
observar o mundo sem prestar conta de nada, nem a si mesmo, configurando uma legitimidade a
observação e instituindo uma visão de mundo reconhecida como válida e universal. Para esse autor,
[...] o ponto zero é o princípio epistemológico absoluto, mas também o controle social e
econômico do mundo. Segue a necessidade que teve o Estado espanhol (e logo depois as
demais potências hegemônicas do sistema mundo) para eliminar qualquer sistema de
crença que não favoreceu a visão capitalista do homus economicus. Já não poderiam
coexistir diferentes formas de "ver o mundo", mas se deveria taxonomizá-las de acordo
com uma hierarquia de tempo e espaço. As outras formas de conhecer foram declaradas
como pertencentes ao "passado" da ciência moderna, como "doxa" que enganava os
sentidos, como "superstição" que impediam a passagem para a “maioridade", como
"obstáculo epistemológico" para a obtenção da certeza. A partir da perspectiva do ponto
zero, os conhecimentos humanos foram ordenados em una escala epistemológica que vai
desde o tradicional até o moderno, desde a barbárie até a civilização, desde a comunidade
até o indivíduo, desde a tirania até a democracia, desde o individual até o universal, desde
o oriente até o ocidente. Estamos, então, diante de uma estratégia epistêmica de domínio
[...] (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 63-64).
Será sempre justo e conforme ao direito natural que tais gentes [os indígenas das Américas]
se submetam ao império de príncipes e nações mais cultas e humanas, para que, pelas suas
virtudes e pela prudência de suas leis, abandonem a barbárie e se submetam a uma vida
56
Augusto Comte, no seu famoso Curso de Filosofia Positiva se pergunta, na Lição 52, “Por
que a raça branca possui, de modo tão pronunciado, o privilégio efetivo do principal desenvolvimento
social e por que a Europa tem sido o lugar essencial dessa civilização preponderante?” Ele mesmo
responde: “Sem dúvida já se percebe, quanto ao primeiro aspecto, na organização característica da
57
raça branca, e, sobretudo quanto ao aparelho cerebral, alguns germes positivos de sua superioridade”
(COMTE, apud ARON, 1982, p. 121-122).
Sobre um dos expoentes da segunda modernidade:
O escravo moderno não difere do senhor apenas pela liberdade. Mas ainda pela origem.
Pode-se tornar livre o negro, mas não seria possível fazer com que não ficasse em posição
de estrangeiro perante o europeu. E isso ainda não é tudo: naquele homem que nasceu na
degradação, naquele estrangeiro introduzido entre nós pela servidão, apenas reconhecemos
os traços gerais da condição humana. O seu rosto parece-nos horrível, a sua inteligência
parece-nos limitada, os seus gostos são vis, pouco nos falta para que o tomemos por um
ser intermediário entre o animal e o homem (TOCQUEVILLE, 1977, p. 262).
Sobre as crenças religiosas dos povos não europeus, o fundador da sociologia acadêmica
afirma: “(...) umas podem ser ditas superiores às outras no sentido em que elas põem em jogo funções
mentais mais elevadas, são mais ricas em ideias e sentimentos, nelas figuram mais conceitos, menos
sensações e imagens, sua sistematização é mais engenhosa” (DURKHEIM, 1978, p. 205-206).
E, no mais “radical” de todos, surge uma argumentação, que para o grupo MC confirma a
hegemonia da colonialidade:
[...] não podemos esquecer que estas idílicas comunidades aldeãs [da civilização indiana],
por muito inofensivas que possam parecer, foram sempre o sólido alicerce do despotismo
oriental, confinaram o espírito humano ao quadro mais estreito possível, fazendo dele o
instrumento dócil da superstição, escravizando-o sob o peso de regras tradicionais,
privando-o de toda a energia histórica (MARX, 1982, p. 517).
a Europa. Aqui, o outro foi visto como mera natureza, uma visão que se popularizou no século XVIII
e que teve suas repercussões na obra de Hegel sobre a Filosofia da História.5
Mignolo (2003) escreve que os espanhóis julgavam e hierarquizavam a inteligência e a
civilização dos povos tomando como critério a escrita alfabética. Porém, no século XVIII e XIX, o
critério de avaliação passa a ser a História. Ou seja, os povos “sem História” situam-se em um tempo
“anterior” ao “presente”. Assim, com base na colonialidade do poder:
Para Mignolo, a expansão ocidental após o século XVI não foi somente econômica e
religiosa, mas também a expansão das formas hegemônicas de conhecimento e de um conceito de
representação do conhecimento e cognição impondo-se como hegemonia epistêmica, política e
historiográfica, estabelecendo assim a colonialidade do saber.
Se a colonialidade do poder criou uma espécie de fetichismo epistêmico (ou seja, a cultura,
as ideias e conhecimentos dos colonialistas aparecem de forma sedutora que se busca imitar),
impondo a colonialidade do saber sobre os não europeus, se evidenciou também uma geopolítica do
conhecimento, ou seja, o poder, o saber e todas as dimensões da cultura se definiam a partir de uma
lógica de pensamento localizado na Europa. Assim, Mignolo (2005) também afirma que estes
processos, marcados por uma violência epistêmica, conduziram também a uma geopolítica
linguística, já que as línguas coloniais ou imperiais, cronologicamente identificadas no grego e no
latim na antiguidade, e no italiano, português, castelhano, francês, inglês e alemão na modernidade,
estabeleceram um monopólio linguístico, desprezando as línguas nativas, e, consequentemente,
subvertendo ideias, imaginários e as próprias cosmovisões nativas fora da Europa.
Para Mignolo (2003), e também para Dussel (1990), a presunção de considerar a América
Latina como o “outro”, por exemplo, pode explicar as sucessivas construções de exterioridade nas
Histórias coloniais e, por consequência, as similaridades entre outras regiões (Mundo Árabe, África
negra, Índia, Sudeste Asiático e China). Dussel faz a conexão desta ideia, fundamentando a
colonialidade do saber com o pensamento moderno pós Descartes, que pressupunha uma ontologia
5 É famosa a afirmação de Hegel que: “A África não é uma parte histórica do mundo. Não tem movimentos,
progressos a mostrar, movimentos históricos próprios dela. Quer isto dizer que sua parte setentrional pertence ao
mundo europeu ou asiático. Aquilo que entendemos precisamente pela África é o espírito ahistórico, o espírito não
desenvolvido, ainda envolto em condições de natural e que deve ser aqui apresentado apenas como no limiar da
História do mundo” (HEGEL, 1999, p. 174).
59
que espanta os mais críticos e aqueles estudiosos abertos a possibilidade da crítica se escandalizam
com certas interpretações históricas que beiram ao grotesco, como, por exemplo, este relato:
Ao estudar os conhecimentos astronômicos dos Dogon6 nos anos 40, [do século XX]
Marcel Griaule e os seus discípulos ficaram fascinados com o nível de conhecimentos
existente. Recentemente, o conhecido astrônomo Carl Sagan, da Universidade Cornell de
Nova Iorque, decidiu avaliar esses mesmos conhecimentos Dogon, e concluiu que os
‘Dogon, em contraste com todas as sociedades pré-científicas, sabiam que os planetas,
incluindo a terra, giram sobre si próprios e à volta do Sol’ [...] Como é que se pode explicar
este extraordinário conhecimento científico? Sagan não duvidou um segundo que deve ter
sido devido a um gaulês que atravessou aquelas paragens, e que provavelmente estava mais
avançado do que a ciência da época (LOPES, 1995, p. 19-20).
A ciência (conhecimento e sabedoria) não pode ser separada da linguagem, as línguas não
são apenas fenômenos culturais em que as pessoas encontram a sua identidade; elas
também são o lugar onde se inscreve o conhecimento. E, dado que as línguas não são algo
que os seres humanos têm, mas algo de que os seres humanos são, a colonialidade do poder
e a colonialidade do conhecimento engendraram a colonialidade do ser (MIGNOLO, 2003,
p. 688).
A colonialidade do ser para estes autores se refere à experiência vivida da colonização e seus
impactos na linguagem, que responde à necessidade de explicitar a pergunta sobre os efeitos da
colonialidade na experiência da vida e não somente na mente dos colonizados.
Catherine Walsh (2005) recorda as palavras de Frantz Fanon (1983) para relacionar
colonialismo a não existência: “em virtude de ser uma negação sistemática da outra pessoa e uma
determinação furiosa para negar ao outro todos os atributos de humanidade, o colonialismo obriga as
6 Dogon é um povo que habita o Mali e o Burkina Faso. Os Dogon do Mali são uma sociedade que vive em uma
remota região no interior da África ocidental. São cerca de 200 mil pessoas e a sua maioria vive em aldeias
localizadas nas escarpas de Bandiagara, ao leste do Rio Níger.
61
pessoas que ele domina a perguntar-se: em realidade quem eu sou?” (Fanon, apud WALSH, 2005,
p. 22) – e mais:
A colonialidade do ser é pensada como uma negação de um estatuto humano para africanos
e indígenas, por exemplo, na História da modernidade colonial. Esta negação, implanta problemas
reais em torno da liberdade, do ser e da História do indivíduo subalternizado por uma violência
epistêmica.
A violência epistêmica se constrói em torno ao conceito de raça, no qual novas categorias
foram criadas como branco, negro, índio, mestiço etc., e relaciona sujeitos numa classificação social
de forma vertical. Maldonado-Torres (2007) deduz daí que a ideia de seres não europeus como
inferiores produziu formas de desumanização. Por outro lado, Dussel (2009) afirma que a negação
que o ser europeu faz do outro colonizado, a forma como desconhece a alteridade e o modo como
relega o diferente, o converte em um não-ser. Essa, portanto, foi a experiência vivida na colonialidade.
Maldonado-Torres ainda afirma que o privilégio do conhecimento na modernidade e a
negação de faculdades cognitivas nos sujeitos racializados, fornecem as bases para uma negação
ontológica do outro não europeu. Ou seja, a ausência da racionalidade está vinculada na modernidade
com a ideia de ausência de ser nos sujeitos racializados. Neste sentido, podemos entender melhor a
ideia de Fanon de que, em um mundo anti-negro, o negro não tem resistência ontológica diante dos
olhos dos brancos (FANON, 1983).
Seguindo as formulações de Fanon sobre os condenados da terra, Maldonado-Torres (2007)
caracteriza também a colonialidade do ser como experiências invisibilizadas, não como simples
sujeitos, mas na sua própria humanidade. Esta seria uma das expressões primeiras da colonialidade
do ser.
62
7 Escobar faz referência aos estudos pós-coloniais que também fazem uma crítica ao discurso monotópico
ocidental.
8 Dussel propõe o conceito de transmodernidade na perspectiva de uma Filosofia da Libertação: “A Modernidade
nasce realmente em 1492: esta é nossa tese. Sua real superação (como subsuntion, e não meramente como
Aufhebung [revogação] hegeliana) é subsunção de seu caráter emancipador racional europeu transcendido como
63
projeto mundial de libertação de sua Alteridade negada: “A Trans-Modernidade” (como novo projeto de libertação
político, econômico, ecológico, erótico, pedagógico, religioso etc.) seria a realização do processo de integração
que inclui a “Modernidade/Alteridade” mundial (DUSSEL, 2005, p. 66).
64
que não se trata de resgatar autenticidades subalternizadas pela colonialidade, mas as marcas deixadas
pela diferença colonial nas fissuras entre modernidade e colonialidade presentes em diversas Histórias
locais.
Mignolo (2003) cita um exemplo quando descreve o marxismo modificado pelas línguas e
pela cosmologia ameríndia do movimento Zapatista e a epistemologia ameríndia transformada pela
linguagem do marxismo, ou seja, um diálogo trans-epistemológico que reescreve uma História de
quinhentos anos de opressão.
Outro exemplo para o autor é quando Fanon (1983), afirma que para um negro que trabalha
numa plantação de açúcar, a única solução é lutar, mas que ele “embarcará nessa luta, e a levará
adiante, não como resultado de uma análise marxista ou idealista, mas simplesmente porque não pode
conceber a vida de outra maneira” (FANON, apud MIGNOLO, 2003, p. 126). Mignolo quer destacar
aqui que Fanon “não está negando a poderosa análise da lógica do capitalismo efetuada por Marx”,
mas está “chamando a atenção para a força da consciência negra, e não apenas da consciência de
classe” (Ibid., p. 126).
Assim, estes discursos significam uma atenção aos locus de enunciação decolonial como
formação discursiva emergente e como forma de articulação de uma racionalidade subalterna.
Mignolo sugere ainda que a razão subalterna deva ser entendida como um conjunto diverso de práticas
teóricas (dos movimentos sociais e da academia) emergindo dos e respondendo aos legados coloniais
na interseção da História euroamericana moderna, ou seja, pensar na constituição de um novo sujeito
epistemológico que pensa a partir das e sobre as fronteiras da modernidade/colonialidade.
O diálogo trans-epistemológico significa o rompimento de dicotomias, ou seja, a leitura do
mundo a partir de conceitos dicotômicos ao invés de organizar o mundo em dicotomias. No cerne
dessa perspectiva teórica se situa o pensamento liminar nas fronteiras do sistema mundial
colonial/moderno. Esta formulação traz embutida um projeto teórico denominado “diversalidade
global” ou “razão humana pluriversal” que não representa pensar a diferença dentro do universal, mas
a diversalidade do pensamento enquanto projeto universal, pois “o pensamento é, ao mesmo tempo,
universal e local: o pensamento é universal no sentido muito simples de que é um componente de
certas espécies de organismos vivos e é local no sentido de que não existe pensamento no vácuo”
(MIGNOLO, 2003, p. 287).
Neste processo, também se encontra a estratégia da interculturalidade como princípio que
guia pensamentos, ações e novos enfoques epistêmicos. O conceito de interculturalidade é central na
(re)construção do “pensamento-outro”. É a interculturalidade como processo e como projeto político.
Amadurecendo este pensamento, Walsh (2005) vem considerando também a questão do
“posicionamento crítico de fronteira” na diferença colonial. O pensamento de fronteira significa fazer
65
“[...] ao problema da “ciência” em si, ou seja, o modo em que a ciência, como um dos
pilares centrais do projeto da modernidade/colonialidade, teve uma contribuição vital para
o estabelecimento e manutenção da hierarquia racial, históricas e atuais, em que os brancos,
especialmente os homens brancos europeus continuam no topo (WALSH, 2007, p. 9).
assim uma volta à geopolítica dominante do conhecimento que tem tido seu centro no norte
global (Idem, 2005, p. 25).
[...] a interculturalidade crítica, [...] é uma construção das e a partir das pessoas que
sofreram uma subjugação e subordinação histórica. Uma proposta e um projeto político
que poderia também alargar e envolver as pessoas numa aliança, e também, busca de
alternativas à globalização neoliberal e à racionalidade ocidental, e que luta pela
transformação social de modo a criar condições de poder, de conhecimento e do ser
67
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WEBER, Max. The protestant Ethics and the spirit of capitalism. New York: Routledge, 1992.
70
71
1
A defesa foi realiza pela Internet na Plataforma Zoom.
2
Decolonialidade (com ou sem hífen) demarca uma identidade do grupo Modernidade/Colonialidade, pois a
supressão da letra S apresenta uma distinção histórica entre o projeto decolonial do grupo, que tem a ideia de um
Pensamento-Outro. Já Descolonialidade, são os contornos históricos da descolonização política-administrativa,
via libertação nacional (África e Ásia) durante a Guerra Fria (BALLESTRIN, 2013).
72
pensamento europeu dominante, pois este perpassa por uma superioridade racial/étnica, cultural
e epistêmica, e que também se expressa na dominação da Natureza, enquanto um espaço para
a destruição do meio físico e cultural, pois a Colonialidade
Segundo Palermo (2014), o conceito de Modernidade pode ser caracterizado por três
autores decoloniais:
Nessa nova ordem mundial, do século XV, provoca uma virulenta invasão em Pindorama3
e Aby Ayala4, o período das “grandes navegações/invasões”; esses locais foram apossados
pelos europeus, e, também, no mesmo momento, foi estabelecida a diferenciação “racial” entre
os seres humanos, a partir de um caráter teológico, ou seja, um Racismo Teológico, através do
mito de Cam, sendo que esse mito irá permanecer por longos séculos como alicerce de uma
diferença entre seres humanos e não humanos, entre senhorxs e escravizadxs.
A tríade Modernidade/Capitalismo/Sistema Mundo, e para Dussel (2010) existe uma razão
universal da Europa,5 e esta estabelece uma conquista epistêmica na qual o etnocentrismo europeu
representou o único caminho que pôde pretender a uma identificação com a universalidade-
mundialidade.
A Modernidade foi inventada a partir de uma violência colonial, de feridas coloniais
(PALERMO, 2014, p. 07), que está imbricada com a tríade patriarcalismo, racismo e epistemicídio –
homem, branco, heteronormativo e cristão passa exercer o poder nas relações socioeconômicas, além
de explicitar as diferenças raciais como elemento de diferenciar entre aquelxs que tem o domínio
daquelas que serão dominados por caracteres físicos ,e a grande consequência da Colonialidade é a
destruição da cultura do outro. Uma legitimidade para a destruição da área conquistada de Aby Ayala
/ “América”, onde as classes dominantes europeias inventaram que somente sua razão era universal,
negando a razão do outro não europeu que havia nesse território colonizado por eles.
A segunda perspectiva é a da Colonialidade que implica na classificação e reclassificação
da população do planeta, em uma estrutura funcional para articular e administrar essas classificações,
na definição de espaços para esses objetivos conformar um significado de uma matriz de poder na
qual canalizar uma nova produção de conhecimento.
Colonialidade representa, apesar do fim do colonialismo6, um padrão de poder que emergiu
como resultado do colonialismo moderno, porém, ao invés de estar limitado a uma relação formal de
3
Palavra derivada do Tupi-Guarani (terra das Palmeiras), nome que os nativos chamavam as terras brasileiras, e
que uma designação o local mítico livre dos males.
4
Literalmente significa terra em plena madureza ou terra de sangre vital. O nome era dado ao continente pelos
povos Kuna, originário da região Darien (Panamá) e no Norte da Colômbia. Hoje muitos intelectuais indígenas ou
não passam a usar oficialmente o nome do continente, numa referência à ancestralidade e legitimidade do nome
em oposição ao nome dado pelos colonizadores, América, é uma posição ideológica desse grupo se expressa por
um enfrentamento das bases políticas, sociais, culturais de subordinação e de silenciamento das culturas nativas
indígenas desse continente.
5
O conceito de Europa é um invento ideológico de fins do século XVIII (romântico alemão), que se limita em
direção ao Norte e Oeste da Grécia até os atuais países da Croácia e Sérvia; a sequência do mundo medieval, e
finalmente, o Mundo Moderno Europeu, a partir de 1492. A Europa constituiu-se como o ― Centro da História
Mundial‖, e a constituição de todas as outras culturas como sua ― periferia‖. Poder-se-á compreender que, ainda
que toda cultura seja etnocêntrica, o etnocentrismo europeu moderno é o único que pode pretender identificar-se
com a universalidade-mundialidade. (DUSSEL, 2005)
6
Domínio político de controle sobre um território ocupado e administrado por um grupo de indivíduos com
poder militar ou por representantes do governo de um país ao qual esse território não pertencia, contra a vontade
74
poder entre os povos ou nações. Além disso, refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a
autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e
da ideia de raça. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131)
A Colonialidade sobrevive até hoje nos manuais de aprendizagem, nos critérios para os
trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações dos
sujeitos, e em tantos outros aspectos de nossa experiência moderna (idem).
No seu livro, La Poscolonialidad Explicada a los Niños, Castro-Goméz (2005) destaca
que existe uma cumplicidade objetiva do capitalismo com as forças violentas que explodem no
território colonial (FANON, 1968, p.50), a Colonialidade entra em conjunto com a Modernidade, sem
dúvida, a Colonialidade é constitutiva de todos os componentes políticos/sociais/ideológicos da
Modernidade.
Portanto, para Maldonado-Torres (2007), a Colonialidade tem suas bases em quatro
eixos, que foram determinantes para uma negação e uma subordinação daqueles que foram
colonizados pelos europeus:
dos seus habitantes que, das muitas vezes, são desapossados de parte dos seus bens (como terra arável ou de
pastagem) de seus saberes de sua cosmovisão, de seu ser, de direitos políticos. Mesmo que o colonialismo acabe,
a colonialidade permanece.
7
Conhecimento que cada território possui.
75
8
bell hooks, pseudônimo de Glória Jean Watkins, inspirado na sua bisavó materna, Bell Blair Hooks. Em seus
escritos a autora usa as letras minúscula que pretende dar enfoque ao conteúdo da sua escrita e não à sua pessoa.
– ver: https://tricycle.org/magazine/bell-hooks-buddhism/. Acesso em 17 jan. 2018.
77
9
Muitas das vezes, será utilizada nessa escrita a grafia “x” e ou “as/os”, numa demarcação de não definição do
gênero específico da norma culta da gramática portuguesa, a generalização por base masculina. Trata-se de um
posicionamento político e linguístico decolonial para uma escrita.
10
Considero que as lutas de pessoas que vivam sob o domínio do poder de outro grupo (religioso, linguístico,
simbólico, etc.) conseguiram camuflar/ocultar as verdadeiras intenções e aspectos de seu aparato cultural e
exercerem ou manterem, às duras situações, a sua etnicidade. Um bom exemplo para isso é a religião Candomblé
no Brasil, uma resistência de camuflagem religiosa e linguística.
11
Termo cunhado por Simas (2019), com um sentido das especificidades políticas, sociais, culturais etc. que a
Colonialidade inculcou como ideologia eurocentrada do sentido da existência, no território de colonização.
78
de que alguns conhecimentos que são considerados como válidos e outros que não são;
visibilizar saberes outros. É uma Pedagogia da Transgressão (hooks, 2013), pois tem por
objetivo nomear, visibilizar e compreender os problemas estruturais e psicoexistencial (racial,
gênero e classe) que se apresentam, e antes de tudo, busca incessantemente, restaurar a
humanidade daquelxs que a foi negada, através de ações transformadoras de uma determinada
realidade sociopolítica e cultural.
Ao afirmar que existem as brechas, fissuras e rachaduras de/no Pensamento Outro, que
se estabeleçam como um projeto político-social-epistêmico, que expresse e exija uma
Pedagogia Decolonial Antirracista, a partir de propostas e práticas pedagógicas que reafirmem
as resistências e as insurgências dos processos, práticas e condições distintas (WALSH, 2009),
dos saberes silenciados e negados e que são legítimos. Também é uma metodologia essencial e
indispensável para uma prática e um processo sociopolítico produtivo e retroprodutivo,
fundamentada na realidade das pessoas, nas suas subjetividades, nas suas histórias e nas suas
lutas (WALSH, 2014, p. 22).
Então, o ponto nevrálgico dos currículos escolares é o de possibilitar que Pensamentos-
Outros, visibilizem outras epistêmes, além de que questionem quais são os saberes considerados
como válidos e outros como não válidos; desafie à razão universalista da
Modernidade/Colonialidade.
De certo, há a necessidade de que outras epistemes possibilitem a enunciação a partir
vozes, de lugares e de contextos diferentes, pois, nesse sentido, Grosfoguel (2013, p. 459),
salienta que o essencial é o lugar geopolítico e corpo-político do sujeito que fala, e acredita que
as instituições, e nessa escrita, principalmente, a escola, pode abarcar numa educação mais
plural e diversa, possibilitando a legitimidade de/para uma educação decolonial antirracista que
respeite os saberes locais, os saberes dos discentes, dxs docentes e da comunidade. Portanto, o
Pensamento-Outro é fator preponderante de uma educação decolonial, libertadora e
emancipadora como me ensina Paulo Freire (1996).
Proponho o desmonte de uma estrutura ideológica que condicionou uma visão de
mundo baseada na Modernidade/Colonialidade, e assim, discutir epistemes outras, e não
somente aquelas já se condicionaram como verdadeiras.
Cabe a nós, docentes, compreendermos que as tensões e os desafios estão presentes na
disputa de conteúdos e na sua seleção; de um lado os propostos por uma normatização, por uma
homogeneidade de saberes, estéticas e filosofias de vida seculares, que ainda em muitos espaços
escolares, se mantem numa estrutura de via única. Mas de outra, que seja desestabilizadora e,
79
além disso, que traga um olhar diferente dos saberes negados, invisibilizados, silenciados e
considerados como “ilegítimos”.
Por certo, a escola não se constitui somente num local dessa homogeneidade, também
é um local onde se constrói novos paradigmas, de mudanças e de ampliação de novas visões de
mundo. Ela é um espaço de tensão, de disputas entre saberes considerados como legítimos e
saberes descartados.
Então, compreender que o significado da Educação Decolonial Antirracista é
fundamentado em um projeto teórico voltado para o pensamento crítico e transdisciplinar,
fazendo referência às possibilidades de um pensamento crítico a partir dos subalternizados pela
modernidade capitalista e, voltada para uma educação onde se construa uma existência coletiva
do conhecimento, um conhecimento vivido-experimentado, tanto no âmbito individual quanto
no social (OLIVEIRA, 2016).
Certamente, ainda perdura um conhecimento propagado nas instituições escolares
calcado numa visão ideológica eurocentrada-hegemônica, e legitimada por uma Ciência que
tem suas bases estabelecidas no binômio Modernidade/Colonialidade; e, assim, elas possuem
um discurso ideológico e o transmite em seus conteúdos, ideias consideradas como absolutas
ou de certeza inabalável.
Considero que a Educação é um ato político entre educador e educando, e como tal
proposição, o conhecimento é construído e problematizado. É um ato de conscientização crítica
da realidade, em que o ser humano age sobre o mundo, e sobre o outro. Desta forma, o currículo
não está descontextualizado da situação existencial das pessoas envolvidas no ato de conhecer.
Portanto, é primordial que na elaboração de um currículo escolar, estejam envolvidos a/o
docente e a/o discente, e que sejam utilizadas, elaboradas e reelaboradas as experiências
próprias das/os alunas/os na construção do currículo. O currículo é transformador, como o
próprio ser humano que em sua essência se modifica, compartilha os saberes entre os seus, pois
ora se ensina, ora se aprende; e nessa partilha do conhecimento todos se transformam, tal como
deve ser também o currículo.
Na contemporaneidade, desenvolver práticas pedagógicas que dialoguem com um
pensamento crítico, decolonial e antirracista, que possibilite visibilizar positivamente o corpo
negro/negro/transgênero/etc e de seus feitos culturais na História da humanidade, é de
importância fundamental. Quanto mais discutirmos a questão racial, ou outras questões nas
escolas e em outros espaços, mais proporcionaremos a desconstrução das ideias que
massacraram e subalternizaram uma identidade “determinada”, pois o sistema
Modernidade/Colonialidade estabeleceu uma imposição de organização de vida, de formas, de
80
Os pontos citados acima fecham com a principal ideia da autora, que é a de promover
uma educação antirracista e na construção de um currículo intercultural; onde a escola deverá
fazer não somente estas ações em momento de efemérides, mas em todo o processo da relação
ensino-aprendizagem, que afete na seleção do currículo, na organização social escolar (classe,
raça e gênero), na linguagem (visual e discursiva), na prática pedagógica, no papel do
profissional de educação e, fundamentalmente, na comunidade escolar, no seu desdobramento
para o diálogo com esse outro:
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SIMAS, Luiz Antonio & RUFINO, Luiz. Flecha no Tempo. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.
Hyago Thomaz
IFRJ*
hyagohistoria@gmail.com
Daniel Carvalho
IFRJ*
dscarv27@gmail.com
Estimulada pelo lançamento da publicação dessa coletânea, por mais que tentasse
outros caminhos de escrita, retornava à relevância de partilhar o que fazemos juntos. Quer no
programa de especialização em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileira, quer
no grupo de pesquisa, que surge derivado das aproximações e identificações originadas no
Programa, ambos desenvolvidos no campus de São Gonçalo, do Instituto Federal de Ciência e
Tecnologia do Estado do Rio de Janeiro (IFRJ).
Essa localização é relevante. Aos leitores que não conhecem o município, é importante
frisar que São Gonçalo integra a região metropolitana do Rio de Janeiro e possui cerca de um
milhão de habitantes. Até bem recentemente conhecida como cidade-dormitório, o município
continua a apresentar poucas oportunidades de emprego, elevados níveis de violência urbana e
um secular descaso dos poderes públicos face a sua população. A oferta de ensino superior
público é insuficiente e, por derivação, também são muito limitadas as possibilidades de
pesquisa e qualificação acadêmica na própria cidade.
Não obstante os limites (acesso, horários e instalações) que caracterizam o campus no
qual estamos instalados, sua existência catalisa os interesses de jovens estudantes e
*
Pós-graduando na Especialização Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras – Lato Sensu,
campus São Gonçalo. Turma de 2019.
86
profissionais em busca de novos horizontes para a vida. No caso da nossa pós-graduação, estes
profissionais são professores, em sua maioria. Mas, também assistentes sociais, empregados em
bancos, integrantes de diferentes tipos de organizações e arranjos produtivos locais. Quase
todos vivem em São Gonçalo.
Enfrentam os problemas comuns da cidade e frequentam pontos de encontro onde a
festa, o bate-papo e a música intensificam essa sensação de pertencimento. Dessa vivência
partilhada, estruturalmente periférica, extraem a motivação para fazer do conhecimento uma
alavanca para mudar a realidade que os cerca e que consideram desigual, injusta e racista.
Essa peculiaridade distingue a Pós-graduação e origina o Grupo de Pesquisa que
também nos alimenta. Seus integrantes têm um propósito com o curso e os debates: mudar a
vida coletiva. Esse traço é o que torna tão particular a experiência de ser ali uma das condutoras
do aprendizado.
Ao começar a dar aulas na Pós, há alguns anos, esse aspecto me encantou e me vi
tomada pelo impulso de preparar aulas e atividades que trouxessem para o grupo as discussões
mais atuais da historiografia, os autores mais polêmicos e os experimentos pedagógicos
inovadores no campo das relações étnico-raciais. Frequentemente, minhas turmas eram as
últimas a sair da instituição e ficávamos todos juntos no ponto de ônibus nos protegendo e nos
apoiando em longas esperas. Ao mesmo tempo, os rigores formais da prática acadêmica eram
esperados, e cobrados. Fui constatando, nesse processo, um hiato incômodo entre os debates e
a produção escrita em todos os níveis: trabalhos, artigos e monografias. Os nexos produzidos
no debate, não se refletiam quando precisavam ser comunicados formalmente. A vida, tão
pulsante em outros momentos, se esvaía.
Buscando compreender esse movimento tão complexo e tão avesso às minhas
expectativas, encontrei em Paulo Freire uma trilha de reflexões que julguei pertinente.
Principalmente ao ser alertada pelo autor pernambucano sobre as práticas que nos levam, ainda
que não percebamos, à domesticação da indignação e da rebeldia presentes entre os estudantes.
A prática de produção textual tem, em nossos dias, sido marcada pelo rigor formal. É
imperioso escrever no formato de “artigo científico”, no qual cada reflexão precisa estar
alicerçada remissivamente aos que já pensaram antes de nós. Nos anos iniciais da formação
acadêmica, aí incluída a especialização, muitos de nós acreditamos ser primordial dominar essa
dimensão da linguagem. A tal ponto que poderíamos adaptar a fala de Freire para o cenário da
própria Pós, pensada originalmente para a educação básica:
87
Tenho claro que precisamos refletir coletiva e constantemente sobre as práticas que
implementamos e, neste diapasão, tenho produzido alterações em nossos encontros. Ao mesmo
tempo em que visamos o ensinar e o aprender o conhecimento já existente, trabalhamos a
produção dos conhecimentos não existentes. Novas maneiras de pensar e de fazer. Cada vez
mais aproximando a sala de aula de uma oficina ou laboratório, onde a reflexão/ação dos
participantes permite que estes articulem conhecimento teórico e vivências concretas, narrando
o processo em seguida. Estamos tateando nesta senda, e as reflexões do Hyago Thomas e do
Daniel Carvalho, alunos e integrantes do grupo de pesquisa, somam-se as minhas neste artigo.
Elas estão organizadas em torno de três eixos principais. A maneira pela qual o
conhecimento da perspectiva decolonial nos fez refletir em muitos momentos sobre nossa
formação anterior como historiadores, e como as universidades e o próprio ensino de história
dos cursos de formação acabam sendo, de diversas maneiras, atravessados por uma perspectiva
eurocêntrica. A partir dessa observação, Hyago e Daniel pensam as maneiras pelas quais o curso
de Especialização em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras do IFRJ os
transformou significativamente como profissionais da educação, engajados na luta por uma
educação antirracista, multicultural e pluriétnica.
Por fim, demonstraremos como os debates e reflexões do curso nos habilitaram a
construir de forma autônoma e a pôr em prática, estratégias pedagógicas decoloniais,
materializadas tanto nas atividades do Movimento de Educação Popular +Nós, quanto na
oficina "África em sala de aula: novos temas, novas linguagens" apresentada na VII Jornada de
Educação e Relações Étnico-raciais do MAR, em 2019.
88
contemporânea, “apesar do colonialismo tradicional ter chegado ao fim, para os autores do grupo
“Modernidade/Colonialidade” as estruturas subjetivas, os imaginários e a colonização
epistemológica ainda estão fortemente presentes”. (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p.19).
Por meio dos conceitos de colonialidade do saber elaborado por Aníbal Quijano, de
epistemicídio, por Boaventura Santos e de violência epistêmica cunhado por Santiago Castro
Gómez, podemos compreender a dimensão com que a colonialidade invalida outras formas de
produção de conhecimento, que não aquelas produzidas na Europa. Ao mesmo tempo em que
silencia e invalida os “conhecimentos outros”, o europeu afirma suas formas de validação do
conhecimento, suas teorias e paradigmas como “verdades universais”. A geopolítica do
conhecimento consiste, portanto, numa estratégia de constituição da modernidade europeia, que
não pode ser compreendida sem levar em conta as relações coloniais anteriores.
A crítica do grupo Modernidade/Colonialidade, que origina a colonialidade do poder,
do saber e do ser, traz à tona e promove o reconhecimento de epistemologias subalternizadas,
invisibilizadas e invalidadas pela perspectiva eurocêntrica. Tal pensamento inaugura
formalmente a perspectiva que hoje chamamos decolonial, mas já ganha outras vertentes e
adeptos e é, ao nosso ver, uma abordagem histórica que traz à tona as histórias, os saberes outros
que foram silenciados e suprimidos durante tanto tempo, e de forma crucial transformou nossa
atividade como profissionais de educação e pesquisadores
Experiências de Formação
1
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/07/portugueses-nem-pisaram-na-africa-diz-
bolsonaro.shtml. Acesso em 30 ago. 2020.
90
e cultura afro-brasileira e africana nas instituições escolares. Ainda que venhamos de certos
progressos em ações afirmativas, o que se vê são avanços ainda incompletos. Grande parte
desse atraso em se efetivar uma transformação maior no âmbito racial brasileiro vem, inclusive,
do processo educacional brasileiro e de lacunas na formação dos próprios docentes envolvidos
nessa questão. A formação acadêmica de história e disciplinas onde o assunto é mais
determinante, quase sempre segue ainda moldes racistas, redutivos e com pouco empenho em
se envolver na profundidade do tema.
Neste sentido, o curso de Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileira
do IFRJ, tem uma importância pedagógica fundamental e também política: preparar e orientar
os profissionais de educação acerca dos conhecimentos necessários à abordagem da história da
África e da cultura africana e afro-brasileira, na maior parte das vezes ausentes dos currículos
de formação desses professores, e desenvolver competências e habilidades para que estes
profissionais tenham autonomia para a criação de estratégias pedagógicas em prol de uma
educação antirracista, multicultural e pluriétnica.
Para nós, torna-se nítida a importância do curso de Ensino de Histórias e Culturas
Africanas e Afro-brasileiras, oferecido pelo IFRJ, pois ele rompe com a perspectiva
eurocêntrica do conhecimento, que torna válido somente os saberes e as formas de conhecer o
mundo elaborado pelos europeus, e nos dá não só a oportunidade de conhecermos as histórias,
culturas, organizações sociais e cosmovisões dos povos africanos e afro-brasileiros, como
também de ir além, “ouvi-los contar a sua própria história”, a partir de seu prisma. Uma história
que tem a África como ponto de partida e não o pensamento colonial como centro.
Estudamos em Universidades diferentes, mas muito do que experimentamos foi
comum, assim como a forma pela qual a Especialização no IFRJ nos impactou. Optamos por
narrá-las em separado, entretanto. Individualizar a descrição dessas memórias nos pareceu
traduzir melhor as experiências vividas, possibilitando que o leitor aquilate os sentimentos que
as acompanham.
Hyago Thomaz
do Egito ganhava destaque, mas era considerada como algo à parte da África. Os seus conteúdos
estavam incluídos em “História Antiga I” e não nos de História da África.
Em geral, nós nos aproximávamos dos povos africanos, ao passo que estes tinham um
ponto de contato com os europeus, figuras centrais que, não obstante toda a dinâmica
contemporânea da historiografia, ainda conduziam a história do “nosso” mundo. Concluímos o
curso sem lermos um historiador ou intelectual africano sequer, mas dialogamos com
intelectuais europeus como John Thorton e Paul Lovejoy. Não quero, com isso, desconsiderar
o trabalho destes historiadores, mas apontar que não podemos, de forma alguma, estudar a
história da África tendo como referência apenas o olhar do europeu sobre ela, segundo
epistemologias próprias europeias e a partir de problemáticas que eram de interesse basicamente
europeu. Diante desse pressuposto, considero que muito do que vimos na universidade (e a
afirmação também vale para o Daniel), encaixa-se na lógica explicitada por Paulin J.
Hountondji: “por história africana entende-se normalmente o discurso histórico sobre África, e
não necessariamente um discurso histórico proveniente de África ou produzido por africanos”.
(HOUNTONDJI, 2009, p. 121).
Quando decidi pesquisar a Umbanda, como trabalho monográfico, foi difícil encontrar
orientador que, conhecendo o tema, se disponibilizasse a me ajudar com referenciais teóricos e
bibliografia. Pensar a formação da Umbanda no Rio de Janeiro só com base em pensadores que
nunca viram um despacho e preocupavam-se apenas com as relações de classe era uma
dificuldade extra.
O primeiro contato que tivemos com textos de autores africanos e mesmo afro-
brasileiros, foi no curso do IFRJ quando nos foram apresentados Hampaté Bá, Kabengele
Munanga, e Abdias do Nascimento, entre outros. A coleção História Geral da África nos deu a
possibilidade de conhecer a produção de uma história da África de “dentro pra fora”, a partir
do olhar, da visão de mundo e da cultura dos povos africanos. Compreendi que isso é possível
e fundamental.
No IFRJ, também, os debates e as trocas entre os colegas com áreas de formação
diversas, forneceram-nos uma experiência das mais enriquecedoras possível. Com o professor
Ivan Pimentel, por exemplo, tivemos um contato mais aprofundado com o conceito de
decolonialidade, momento que certamente inspirou a todos. As aulas sobre literatura africana e
afro-brasileira, além do debate sobre o cinema africano com a professora Janaína Oliveira,
inscrevem-se na nossa memória afetiva, assim como as aulas da professora Dóris Barros, nas
quais de maneira muito singela, nos conectamos com nossa ancestralidade em uma dinâmica
92
muito emocionante, ao escrevermos pequenos poemas sobre nossa trajetória de vida com
palavras de origem bantu.
Sei que estas experiências, leituras e discussões nos marcaram profundamente como
profissionais da educação, e servirão de norte para a realização de pesquisas e estratégias
pedagógicas futuras, com o fim incessante de contribuir com a construção de uma escola
antirracista.
Daniel Carvalho
dela que acompanhei os debates iniciais no IFRJ sobre a forma de organização da sociedade,
uma visão artística totalmente nova, a importância da oralidade para a história local africana e
da humanidade, a pensar os conteúdos didáticos sobre a África a partir dela própria (e não sobre
os subvalores constituídos), a importância regional dos contos africanos, a repensar socialmente
após o entendimento e aplicação da semiótica, da utilização de recursos audiovisuais como o
cinema para a construção de identidades e de tantas outras coisas, mas que no fundo sempre
mostraram como as histórias não contadas da África revelam toda essa construção colonial
ainda presente nos dias atuais.
No decorrer da pós, além da oportunidade de todos esses debates, pude vivenciar uma
rede de solidariedade entre colegas de turma e professores. Eram diálogos constantes, afetos,
lanches e cafés da manhã. Diálogos que ultrapassaram os muros do Instituto e nos deram
coragem para produzir, coletivamente, conteúdos didáticos para a sala de aula em evento
ocorrido no Museu de Arte do Rio de Janeiro. E se espalharam por produções pessoais que vão
desde atividades sobre ancestralidade, passam por cultura popular como a capoeira e a inserção
em movimentos sociais de propostas pedagógicas decoloniais, como é o meu caso na construção
do +Nós. Em todas carregamos um pouco desse Nós produzidos nos diálogos.
O texto que inaugura essa distinção historiográfica que citei acima foi A tradição viva,
de Hampatê Bá. Ele que me fez questionar como eu, formado em uma Universidade e em um
curso de História de prestígio, pude ter passado a graduação inteira sem nunca ter lido ou sequer
ou ouvido falar na tradição oral como possibilidade metodológica que os saberes africanos nos
ensinam. Outro marco que serviu como "ponto de partida" nas escritas e na vida social foi a
leitura do capítulo Máscara de Silenciamento, de intelectual portuguesa Grada Kilomba, que a
cada leitura me mostra novas facetas do seu texto.
Se as obras de Grada Kilomba e Hampatê Bá se apresentaram como sementes dessas
ideias que foram se formando durante o ano de 2019, foi na disciplina "Brasil dos africanos e
dos afro-brasileiros" (através da produção do já mencionado trabalho "Outras abordagens,
outras Áfricas") em que o cérebro pareceu virar ao avesso e todos os conteúdos já aprendidos
nos anos acadêmicos passaram a ter um outro significado, uma outra abordagem.
O Hyago lembrou de alguns professores, eu acrescento alguns outros: Márcia Guerra,
com toda sua confiança depositada e estímulo a produzir e pensar academicamente; Ângela
Coutinho e suas incríveis formas de enxergar as semióticas em nosso cotidiano; Omar Nicolau
e sua capacidade de desembaralhar caminhos de estudo; e o Otávio Meloni, que me apresentou
aos contos que preencheram uma lacuna que há muito existia no meu diálogo entre produção
literária e conteúdo histórico.
94
Hyago Thomaz
2
http://www.afroflix.com.br/sobre-o-site/. AFROFLIX é uma plataforma que disponibiliza conteúdos
audiovisuais online que possuem pelo menos uma área de atuação técnica/artística assinada por uma pessoa negra.
São filmes, séries, web séries, programas diversos, vlogs e clipes que são produzidos OU escritos OU dirigidos
OU protagonizados por pessoas negras.
95
Daniel
3
Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2015/11/Apostila-Jogos-infantis-africanos-e-
afro-brasileiros.pdf. Acesso em 24 ago. 2020.
96
Tal máscara foi uma peça muito concreta, um instrumento real que se tornou parte
do projeto colonial europeu por mais de trezentos anos. Ela era composta por um
pedaço de metal colocado no interior da boca do sujeito Negro, instalado entre a
língua e a mandíbula e fixado por detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno
do queixo e a outra em torno do nariz e da testa. Oficialmente, a máscara era usada
pelos senhores brancos para evitar que africanos/as escravizados/ as comessem cana-
de-açúcar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal função
4
Um dos substantivos utilizados pelo pedagogo para caracterizar os excluídos sociais.
97
era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar tanto
de mudez quanto de tortura. (KILOMBA, 2019, p. 33)
Juntos outra vez, para concluir que não há teoria decolonial sem prática decolonial
5
Importante ressaltar que a conjuntura em que ela contextualiza é a do golpe de estado no país em 2015, cenário
que se agrava ainda mais atualmente, principalmente com os casos de covid19. ver:
https://www.geledes.org.br/por-que-a-covid-19-e-tao-letal-entre-os-negros/. Acesso em 30 ago. 2020
98
Para sistematizar esses – e muitos outros pontos abordados (por ela e por nós) – a
pedagoga reafirma a importância da Lei 10.639/2003 como um marco de reeducação social e
dos movimentos sociais, utilizando o conceito de proposta pedagógica como unificadora e
propulsora desses inúmeros movimentos decoloniais que vêm se organizando.
A união desses elementos discutidos ao longo do texto está na apresentação de
propostas pedagógicas decoloniais utilizadas nas pautas do Movimento de Educação Popular
+Nós, por exemplo, que podem ser melhor entendidas e aplicadas após o ingresso no curso de
especialização em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras. Ao longo de sua
trajetória, o +Nós sempre se esforçou para organizar debates horizontais em sala de aula e nas
lutas sociais contra as políticas que atacam as classes populares.
Ao afirmar que o movimento negro atua como "sistematizador de saberes", podemos
ter, como exemplo, a atividade "Somos Sementes", ocorrida na UERJ em 2018, quando
levamos mais de 400 estudantes de todas as nossas unidades até então para um evento coletivo,
fraternal e que foi o lançamento de nossa cartilha que incentiva e informa sobre as demandas e
importâncias de se abrir uma turma de pré-vestibular popular. Essa fonte de saberes se amplia
e inspira ainda mais ao ter, como pano de fundo, a homenagem à Marielle Franco, que inclusive
muito colaborou em nossas trincheiras e tantas outras.
Os conteúdos compartilhados e aprendidos no curso de pós-graduação também
ajudaram a pensar, organizar melhor as didáticas e os desafios educacionais. Além da oficina
realizada no MAR em 2019, também reforçamos as atividades políticas e pedagógicas do +Nós.
Seguimos colhendo frutos dessas sementes plantadas nos marcos da educação popular e da
pedagogia decolonial, apontando que o caminho pode ser difícil, mas ele segue sendo um só:
construindo lado a lado alternativas que tornem o mundo um lugar mais fácil de se viver.
Mas ao refazermos nossas trajetórias, pensando em seus entrecruzamentos e desvios,
vemos o chão que temos pela frente. Começamos esse artigo com o relato da professora Marcia
Guerra, no qual ela nos conta das mudanças que colocou em prática buscando resguardar o
nosso pensamento da domesticação acadêmica. O racismo não é apenas um objeto de estudo, o
racismo é uma prática hedionda e cabe a nós contribuir para a sua erradicação. E o faremos com
luta, o faremos com raiva. Mesclando nossas experiências com a teoria, fecundando e criticando
ambas todo o tempo. Pois, precisamos nos recriar a cada momento, perceber não só o que
somos, mas como o somos. Somos outros, diversos. Estamos criando outras bases para pensar
a nós mesmos, onde não ocupemos e nem reproduzamos o lugar colonial. Tarefa difícil, mas
sem a qual não poderemos ser nós mesmos.
99
Referências
+NÓS. Cartilha Pré-Vestibular Popular +Nós: Somos Sementes. Arquivo pessoal, 2018.
BÁ, A. Hampatê. A tradição viva. In: História Geral da África, I: Metodologia e pré-história
da África / editado por Joseph Ki-Zerbo. – 2ª ed. rev. – Brasília: UNESCO, 2010, p. 167-212.
CANDAU, Vera Maria Ferrão; OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. Pedagogia Decolonial e
Educação Antirracista e intercultural no Brasil. In: Educação em Revista. Belo Horizonte, v.26,
n.01, p. 15-40, abr. 2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
SANTOS, Boaventura Sousa. Para além do Pensamento Abissal. In: SANTOS, Boaventura
Sousa; MENESES, Maria Paula (org). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina.
AS, 2009.p. 23-71.
Iniciaremos nossa discussão buscando decifrar alguns aspectos que levam a construção
dos significados, dentro da colonialidade moderna ocidental. Para tanto termos como base
teórica decolonial e antirracista para elaboração do pensamento crítico a partir dos
subalternizados pela lógica eurocêntrica. Construindo um projeto político e teórico voltado
reconstrução do pensamento científico a partir dos saberes e perspectivas secularmente
invisibilizados.
Teremos como base principal desse artigo os estudos do sociólogo jamaicano,
especialista em estudos culturais, Stuart Hall (2010), que nos demonstra alguns caminhos para
um entendimento sobre a construção dos significados, e importância da linguística e do
significado das palavras nas relações cotidianas estabelecidas no tecido social e suas
repercussões. Seguimos pela pista dos significados para compreender como a ideia de raça
nasce com a imposição da modernidade colonial europeia e como tal conceito é articulado pela
colonialidade do saber e do poder. Nessa etapa contaremos como principais contribuições os
trabalhos de Munanga (2003), Quijano (2005), Mignolo (2005), Maldonado-Torres (2007).
Dessa maneira, partimos de alguns questionamentos para endossar nossa análise:
Como uma ideia se propaga a ponto de se tornar uma unanimidade dentro de um grupo social?
Esse movimento é neutro e igualitário? Busca representar a diversidade presente nesse grupo?
A quem serve esses significados? Quais atores sociais detêm de fato o controle sobre a
construção dos significados de uma sociedade? Essas são algumas questões que
desenvolveremos ao longo do nosso trabalho. Julgamos importante entendermos como os
significados são construídos dentro de uma cultura.
Através de seu estudo, Hall (2010) nos oferece algumas pistas de como os significados
são construídos dentro das culturas. Uma primeira explicação vem do campo da linguística,
através do linguista e filósofo suíço Ferdinand de Saussure. Em seu argumento a diferença é
*
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(PPGGEO-UFRRJ).
104
humanidade. Dessa maneira, como nos mostra Hall, praticamente nenhuma oposição binária é
neutra:
O polo dominante faz uso de sua imposição geradora, e inclui o Outro em suas
operações discursivas. Estabelecendo uma constante relação de poder dentro do jogo de
oposições binárias. Quando o colonizador europeu chega ao Novo Mundo e subjuga os povos
existentes sob um mesmo termo, ele impõe a essas populações o estabelecimento de um padrão
específico de relação de poder, produzindo e hegemonizando discursos eurocêntricos
impregnados de intencionalidades.
Partindo da escola russa de linguística, Hall nos mostra que o principal argumento para
a produção de significados: “es que necesitamos la ‘diferencia’ porque sólo podemos construir
significado a través del dialogo con el ‘Outro’.” (HALL, 2010, p. 420). O significado não estaria
só na relação binária, ele também é construído a partir do diálogo com o outro. Não se apresenta
no discurso do interlocutor e sim no processo de troca estabelecido pelo diálogo.
Sendo dialógica a produção do significado, ele pertence aos interlocutores pela
metade. Quando uma das partes se apropria da palavra, e dá a ela suas intenções próprias torna-
se dono de seu significado, torna-se significador do termo. Os significados estão dessa forma,
em permanente disputa. Não são termos consagrados e cristalizados passados a toda uma
cultura, como heranças das gerações passadas, verdades inabaláveis e eternas. Os significados
estão em constante disputa, dentro do diálogo entre o “eu” e o “outro”. 1 “Outro” que passa a
ganhar protagonismo dentro do processo de construção do significado, por seu caráter
fundamental.
Mas, estando o significado em constante disputa, entre os interlocutores e receptores
dos discursos, as partes nunca carregaram um significado pleno, pois esse jamais será fixado,
1
Segundo Hall (2010), para a escola de lingüística russa: “[…] o significado, argumentó Bajtín, se establece
através del dialogo, es fundamentalmente dialógico. Todo lo que decimos y queremos decir se modifica por la
interacción y el interjuego con otra persona. El significado se origina a través de la ‘diferencia’ entre los
participantes en cualquier diálogo. En síntesis, el ‘Outro’ es esencial para el significado.” (HALL, 2010, p. 420).
106
segundo a teoria de Mikhail Bakhtin (1981). Uma vez que a disputa pela sua produção mantenha
o significado em constantes manuseios e modificações, este nunca existirá em sua plenitude.
Nesse campo e disputa a inferiorização das distintas representações de cada significado é uma
forma de criar uma hierarquia e invisibilizá-lo, logo o objetivo da disputa é a desconstrução dos
significados dominantes impostos pelo colonizador.
Ser negro africano ou branco europeu não poderia ser definido pelos negros
incivilizáveis, nem pelos brancos civilizados, já que a significância dos termos se encontra em
disputa entre os atores, numa construção social de constante diálogo entre, por exemplo, os
“eus” (brancos) e seus “outros” (negros). Entretanto no jogo das disputas os civilizados
impuseram seus significados para todos os “outros” subjugados.
Segundo Hall (2010) a cultura depende de condições para gerar seus significados, nos
fala que para a antropóloga Mary Douglas:
essas populações seriam assimiladas ao projeto colonial como servos. Fórmula do etnocídio
largamente utilizado, inclusive ainda hoje, pelo neocolonialismo capitalista.
O próprio termo descoberta busca ocultar muitas violências, físicas, epistêmicas,
subjetivas, simbólicas. Da imposição da descoberta, a construção do descoberto. Na descoberta
temos o descobridor e o descoberto. Quem descobre situa quem é descoberto em uma relação
de poder e saber, ao se autodeclarar superior e detentor do saber legitimado. Como nos aponta
Santos (2004):
2
Para Hall (2010): “las fronteras simbólicas son centrales a toda cultura. Marcar la ‘diferencia’ nos conduce,
simbólicamente, a cerrar rangos, apoyar la cultura y estigmatizar y a expulsar cualquier cosa que se defina como
impura, anormal. Sin embargo, paradójicamente, también hace poderosa la idiferencia” y extrañamente atractiva
precisamente porque es prohibida, tabú, amenazante para el orden cultural.” (HALL 2010, p. 422).
108
significado, no jogo ambíguo de sua demarcação. Marcar a diferença entre culturas é significá-
las. E consequentemente a desvalorizar qualquer outra forma que fuja aos padrões aceitos como
normalidade.
Entretanto esse sistema classificatório não é permanente. Nem tudo pode ser
classificado, pertencer a uma categoria delimitada. Existem os que não podem se encaixar
pondo a prova todo o sistema de significados, desestabilizando a cultura pondo em xeque sua
veracidade absoluta, e toda a estrutura da lógica do poder hegemônico que impõe essas
verdades. Ao ultrapassar a fronteira simbólica, o novo elemento rompe com os códigos e regras
que mantinham os significados puros em suas categorias. Tornando-se um risco ao sistema de
classificação dessa cultura.
Sendo o diferente um tabu, dentro do sistema de significados que indica a normalidade,
este se torna uma ameaça. Por ser estranho ao contexto é, por consequência, atraente aos que o
compõe. Portanto, perigoso para a estabilidade e “pureza” das categorias presentes no sistema
de classificação. Pondo em risco significados estabelecidos, e responsáveis pela manutenção da
dominação simbólica presente no discurso do opressor.
Quando uma mulher negra põe-se a falar em uma roda de desconhecidos brancos, em
um espaço de poder ou fato cotidiano, de certo modo causa desconforto a seus interlocutores,
uma vez que tal atitude possa ser interpretada como fora da normalidade do padrão de
significados de nossa cultura racista. Onde está cristalizado a imagem da norma
comportamental e posição social nas quais somos inseridos pela lógica hegemônica.
Esse acontecimento citado acima pode causar estranheza a quem finge não viver em
uma sociedade racialmente estratificada, onde mesmo as diferenças de classe são atravessadas
pela diferenciação racial. O racismo é uma importante ferramenta das elites para o controle dos
mais pobres de forma geral, incluindo não negros, entretanto o estigma racial é latente e sua
reprodução institucional.
Mas como se forjou o conceito de raça e a que serve sua aplicação? Para responder a
essa pergunta precisamos entender como se constrói o significado de raça na colonialidade do
saber e do poder. Para Quijano (2005) e Maldonado-Torres (2007) a colonialidade é um padrão
de poder global que atua no imaginário dos indivíduos ocidentalizando-os, uma estrutura de
dominação que subjugou todos os territórios e povos assolados pelo colonialismo, que segundo
os autores, caracteriza-se por um controle político e econômico, onde uma nação se apodera
dos recursos de outra, seu território, um saque.
A colonialidade é a face subjetiva que perdura nas mentes colonizadas pela episteme
eurocêntrica, ao contrário do colonialismo clássico que já não é mais admitido pela agora
109
modernidade colonial. A colonialidade para existir exerce a colonialidade do saber onde todas
as outras matrizes de produção do conhecimento são subalternizadas, aniquiladas, e
invisibilizadas, apenas os saberes ocidentais de perspectiva eurocentrada são levados em
consideração. Este tema é caro a nós uma vez que “A identidade étnica e racial é, desde o
começo, uma questão de saber e poder”. (SILVA, 2010, p. 100).
As primeiras ciências a usarem o conceito de raça foram a Zoologia e a Botânica. Nelas
o conceito é uma importante ferramenta de classificação e tipificação das diversas espécies
existentes. Como todo conceito, o de raça não está isento da variabilidade intrínseca às diversas
inserções em variadas escalas temporais e espaciais. Durante o período medieval em parte da
península europeia o conceito de raça teve o sentido de ascendência comum. Como uma
descendência comum, mobilizadora e unificadora de indivíduos que partilham mesmas
culturas, características físicas, interesses sociais.
Um exemplo é o dos nobres franceses dos séculos XVI e XVII que utilizavam o
conceito de raça para diferenciar-se do restante da população e justificar sua dominação sobre
os gauleses, pois se identificavam como descendentes dos germanos, vistos como superiores.
A dominação justificava-se também por supostas características herdadas pelos nobres
(francos) dos germanos, homens de sangue puro, considerados de raça superior, o que lhes
garantia como nos mostra Munanga (2003):
É justamente o degrau dessa concentração que define a cor da pele, dos olhos e do
cabelo. A chamada raça branca tem menos concentração de melanina, o que define
a sua cor branca, cabelos e olhos mais claros que a negra que concentra mais
melanina e por isso tem pele, cabelos e olhos mais escuros e a amarela numa posição
intermediária que define a sua cor de pele que por aproximação é dita amarela. Ora,
a cor da pele resultante do grau de concentração da melanina, substância que
possuímos todos, é um critério relativamente artificial. (MUNANGA, 2003, p. 3).
111
A América torna-se assim, o primeiro lugar no mundo onde o novo padrão de poder é
imposto, constituindo-se como um novo espaço/tempo (QUIJANO, 2005) dentro da
historiografia humana. Onde as relações sociais são ditadas pelos padrões eurocêntricos de
civilidade, e de desenvolvimento cultural e social. Esse movimento constituiu-se através de dois
eixos fundamentais: a elaboração de uma nova ideia de raça e a reorganização de antigas
relações de trabalho.
O primeiro eixo a raça, é fundamental para a marcação da diferença, e consequente
hierarquização entre colonizados e colonizadores. Baseando-se em pressupostos biológicos e
positivistas é justificada uma situação natural de dominação, em que uns indivíduos se
consideram superiores em relação a outros. A ideia de raça é fundamental e constitutiva das
relações de poder necessárias ao projeto colonial. Com base na ideia eurocêntrica de raça todas
as populações do mundo foram classificadas, hierarquizadas e inseridas num padrão de poder
global.
O segundo eixo constituinte é a reorganização e junção das diversas formas de controle
social do trabalho3, estabelecidas historicamente, em função de um novo tipo de mercantilismo,
germinador de um mercado mundial capitalista. Em especial a instituição da escravidão do índio
cativo das Américas, e mais largamente do negro da África. Condição fundamental para o
desenvolvimento das produções agrícolas, e da extração de metais e bens florestais, principais
atividades econômicas existentes nas colônias, trabalhos feitos exclusivamente pelas ditas raças
inferiores.
A ideia moderna de raça surge junto à invasão da América. Essa teoria legitimou-se,
também, na comparação dos diferentes fenótipos, agora presentes na América, “identidades
sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras.” (QUIJANO, 2005,
p. 107). As diferenças entre os fenótipos foram referenciadas pelos colonizadores pela diferença
entre a cor da pele dos que constituíam as sociedades coloniais. A cor das pessoas passou a
representar o principal fundamento de categorização racial e hierarquização social nas
sociedades coloniais.
Antes da chegada dos europeus, os povos das Américas tinham suas próprias
denominações e identidades, assim como os da África. A ideia de raça imposta serve também,
3
Segundo Quijano, “Na medida em que aquela estrutura de controle do trabalho, de recursos e de produtos
consistia na articulação conjunta de todas as respectivas formas historicamente conhecidas, estabelecia-se, pela
primeira vez na história conhecida, um padrão global de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos.
E enquanto se constituía em torno de e em função do capital, seu carter de conjunto também se estabelecia com
característica capitalista. Desse modo, estabelecia-se uma nova, original e singular estrutura de relações de
produção na experiência histórica do mundo: o capitalismo mundial.” (QUIJANO, 2005, p. 108).
113
4
Para Quijano, a hierarquização das populações de todo o mundo ocorreu “na medida em que as relações sociais
que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares
e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se
impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação
social básica da população.” (QUIJANO, 2005, p. 107).
5
A diversidade da África pode ser verificada através da observação do mapa dos grupos etnicolinguísticos do
continente publicado em 1996, publicado no Library of Congress Geography and Map Division e disponível na
Divisão de Geografia e Cartografia da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos com o número de identificação
digital: g8201e.ct001294.
114
O sentido hoje atribuído à visão eurocêntrica de mundo deve muito a posição central
que os reinos europeus adquiriram em relação aos atores econômicos antagônicos durante o
período pré-colonial. Com o início da expropriação das sociedades aborígenes e produção de
bens agrícolas nas Américas, foi possível estabelecer o comércio ultramarino, estruturador do
círculo comercial do Atlântico mundializando o capitalismo em sua fase inicial.
Através da superexploração das colônias nas Américas, onde com a mão de obra
escravizada foi propiciado o aumento da produção de gêneros como açúcar e algodão, capaz de
atender à demanda do mercado interno europeu – produtor de manufaturas –, e produzindo
também, excedentes a serem comercializados com outras regiões do globo, como a costa da
África onde eram trocados por mais seres humanos escravizados. A expropriação das colônias
e exploração do tráfico de seres humanos garantiram condições econômicas e políticas capazes
de produzir as transformações sociais, culturais e cientificas ocorridas nesse período na
península europeia
Essa mundialização de aspectos econômicos se constituiu ideologicamente a partir de
antigos e novos mitos, acerca do progresso, da humanidade, e principalmente sobre o Outro.
Como os referenciais de desenvolvimento civilizatórios eurocentrados e a ideia de raça. Que,
como vimos, é um mecanismo de classificação social utilizado até hoje para hierarquizar todos
os habitantes da Terra.
Conhecimentos e imaginários sistematizados na Europa ocidental entre os séculos
XVII, XVIII, foram, ao logo do tempo, tornando-se comuns em todo o mundo ocidental,
vitimado pela dominação econômica e cultural da burguesia europeia. Expandindo, em mesmo
lastro, seu capital, seus mercados, sua cultura, o domínio político/territorial através das sedes
115
Referências
HALL, S. El espectáculo del “Otro”. In: Sin garantías: Trayectorias y problemáticas en estudios
culturales, 2010.
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade
e etnia. 3° Seminário Internacional de Relações Raciais e Educação. Palestra conduzida em
PENESB-RJ. 05 de novembro de 2003.
SANTOS, Boaventura de Souza. O fim das descobertas imperiais, Jornal da AGB, 2004
Introdução
Esses movimentos [em defesa do Estado Laico] crescem à medida que oportunistas
ocupantes de cargos públicos utilizam os mandatos recebidos nas eleições para
beneficiar instituições religiosas – as de suas respectivas crenças ou de suas
convenientes bases de apoio eleitoral. (OLÉ, 2019)
*
Doutoranda em Educação.
118
público, garantindo um leque mais amplo de escolhas na vida privada de cada cidadão ou
cidadã. Ao mesmo tempo que o Estado Laico impõe que o Estado não sofra interferência dos
grupos religiosos, igualmente garante que os grupos religiosos não sofram interferência do
Estado.
O Estado Laico, ao promover esse espaço público de respeito à dignidade humana, que
reconhece cada ser humano como autônomo para tomar decisões sobre sua vida, permite um
espaço de justiça pelo reconhecimento atribuído a todos como sendo de igual valor em face da
cidadania; na busca da compatibilização dos direitos no cotidiano, propicia um espaço de
construção da paz social, não controle imposto pelo arbítrio, mas reconhecimento de cada
cidadão e de cada cidadã como capazes de viver o respeito aos outros. Como expresso por
Norberto Bobbio (1992), “se o outro deve chegar à verdade deve fazê-lo por convicção íntima
e não por imposição”.
A grande contribuição da laicidade para a democracia está em acolher a diversidade,
por promover o diálogo em busca do respeito a cada um e a todos. Justiça e pacificação,
portanto, não pelo controle de consciências, mas pelo diálogo de posicionamentos diversos e a
luta pela dignidade humana.
Segundo Lafer, o que identifica preliminarmente a existência de um “espírito laico”
que caracteriza a modernidade:
[...] é um modo de pensar que confia o destino da esfera secular dos homens à razão
crítica e ao debate e não aos impulsos da fé e às asserções de verdades reveladas.
Isto não significa desconsiderar o valor e a relevância de uma fé autêntica, mas
atribui à livre consciência do indivíduo a adesão, ou não, a uma religião. (LAFER,
2007)
Uma reflexão sobre os pressupostos das liberdades laicas implica dialogar com os mais
variados segmentos da sociedade, investir na possibilidade de uma solução para pluralidade de
convicções e práticas religiosas sem a interferência do Estado, pois, para preservar a
Democracia, é imprescindível reconhecer as diferenças, superar a intolerância e promover a
diversidade, à luz dos Direitos Humanos, a fim de assegurar que cada cidadão e cidadã possa
viver segundo sua crença, sem receio de ser perseguido ou perseguida por seu pertencimento
religioso.
É preciso ressaltar que o debate sobre a laicidade deve caminhar lado a lado com outros
direitos, como os da mulher, os do negro, os do índio, pois é essencial assegurar o Estado
Democrático de Direitos.
119
[...] Igreja Católica figura no seu topo vindo as demais, por assim dizer, a reboque e,
de outro lado, ao poder político que a Igreja católica foi reunindo ao longo dos
séculos, atuando como um importante ator na arena pública e no jogo político,
reduzindo, desta forma, os efeitos laicizantes da separação jurídica Igreja-Estado.
(ORO, 2011, p. 235)
inclusive as que têm implicações éticas ou morais, são elaboradas com a participação de todos
– dos crentes e dos não crentes, enquanto cidadãos.
O Estado Laico não pode admitir imposições de instituições religiosas, para que tal ou
qual lei seja aprovada ou vetada, nem que alguma política pública seja mudada por causa dos
valores religiosos. Todavia, ao mesmo tempo, o Estado Laico não pode desconhecer que os
religiosos de todas as crenças têm o direito de influenciar a ordem política, fazendo valer, tanto
quanto os não crentes, sua própria versão sobre o que é melhor para toda a sociedade.
Segundo o Observatório da Laicidade da Educação (2019), pode-se afirmar que um
Estado laico não é confessional, concordatário ou ateu. Não é confessional, pois este privilegia
uma certa religião ou um grupo de religiões, transferindo para elas recursos financeiros
públicos, direta ou indiretamente, sancionando legalmente suas diretrizes morais e introduzindo
nos currículos escolares das escolas públicas sua(s) doutrina(s). O Estado confessional pode ter
uma religião exclusiva, proibindo as demais, ou privilegiar uma(s) e tolerar outras. O Estado
brasileiro era confessional durante o Império, assim como são confessionais Estados
contemporâneos, como a Grã-Bretanha, o Irã, Israel e a Dinamarca, que possuem religiões
privilegiadas, respectivamente o Cristianismo de Confissão Anglicana, o Islamismo, o
Judaísmo e o Cristianismo de Confissão Luterana.
O Estado Laico tampouco é um Estado concordatário. Concordata é um termo próprio
do universo simbólico da Igreja Católica, a única organização religiosa que tem um Estado para
representá-la, o Vaticano. Concordatas são, então, tratados firmados entre os governos de dois
Estados, o Vaticano e um outro.
Se a concordata com a Itália não foi a primeira, constitui a matriz das que a Igreja
Católica estabelece com diferentes governos, com esse nome ou com outro. O governo fascista
italiano firmou com o Vaticano uma concordata (Tratado de Latrão), pelo qual o primeiro
reconheceu certas propriedades eclesiásticas, introduziu o catecismo católico no currículo das
escolas públicas e símbolos religiosos católicos nas escolas e outros estabelecimentos públicos,
além de outros privilégios econômicos e políticos.
O Vaticano, por sua vez, reconheceu o Estado italiano (que se constituiu a partir da
unificação estatal, em 1870, que incorporou os Estados pontifícios). Mesmo depois da queda
do fascismo, o Estado italiano vem renovando a concordata com o Vaticano. Tampouco o
Estado Laico também não é ateu, porque este proclama que toda e qualquer religião é alienada
e alienante, em termos sociais e individuais.
121
Para combater a alienação, o Estado ateu combate, então, toda e qualquer religião. Se
não consegue proibi-la completamente, dificulta ao máximo suas práticas, inibe sua difusão e
desenvolve contínua e sistemática propaganda antirreligiosa.
A União Soviética e os Estados socialistas constituídos no leste europeu, assim como
a República Popular da China, estabeleceram regimes ateus, com base na concepção de que
toda e qualquer religião seria fonte de alienação do povo. Houve diferentes graus na efetivação
da política ateísta, mais radical na Alemanha Oriental do que na Polônia, por exemplo, onde
todo o aparato formativo da Igreja Católica manteve-se em operação, acabando por se tornar
um dos principais elementos de dissolução do “socialismo real”.
Os termos acima têm origem religiosa cristã, todos eles significam “o outro”. Há quem
entenda que o termo laico provém de leigo, portanto, diretamente do universo religioso; outros,
no entanto, entendem que laico provém de laikós, do grego antigo, que significa povo. Com
uma origem ou com outra, o termo laico foi redefinido de modo a designar um atributo do
Estado.
A laicidade expressa, então, a emersão das várias faces dos direitos civis como o
habeas corpus, a liberdade de consciência e de expressão, de ir e vir e de culto. A laicidade
implica também a não convivência do Estado com uma confissão oficial e não interferência
entre os domínios de cada qual. Como disse Cavour, primeiro-ministro do reino da Itália em
1861: Igreja livre em um Estado livre.
O significado contemporâneo de laico é imparcialidade do Estado diante das crenças
religiosas ou contrárias a elas. Assim, o “braço secular” do poder político era o governo
propriamente dito. Por exemplo, depois de alguém ser condenado pela Inquisição, era “entregue
ao braço secular”, que o executava. Por outro lado, leigo era a designação de alguém que, dentro
da Igreja, não tinha a preparação para as funções clericais, nem feito os votos que levavam ao
sacerdócio.
Já o termo secularização vem de século que, por sua vez, tem sua etimologia no latim
de saeculus, saeculi, cujo significado refere-se a um período de cem anos. O século era
sinônimo do mundo material, é este tempo em que se vive o cotidiano com todas as suas
características, em oposição ao mundo religioso, fora do mundo terreno, ocupando espaços
próprios. Dessa forma, o termo secular deu origem ao termo secularização, expressão que
designa o processo de mudança pelo qual a sociedade deixa de ter instituições legitimadas pelo
122
sagrado, baseadas no ritualismo e na tradição, tornando-se cada vez mais profana (ou secular),
baseada na individualidade, na racionalidade e na especificidade.
Um tanto diferente da laicidade, campo próprio do Estado, a secularização, é inerente
à sociedade civil. Embora não idênticas, laicidade e secularização podem convergir entre si. A
aplicação da categoria de secularização e sua associação com o processo de mudança religiosa,
de ruptura com as práticas e com as crenças de tipo tradicional abarca um conjunto de religiões
distintas, a saber: catolicismo, pentecostalismo, kardecismo, candomblé, umbanda...
O conceito propriamente dito qualifica e diz respeito, sobretudo, a uma dimensão
específica: “a erosão da religião dominante tradicional” (PIERUCCI; PRANDI, 1987). Um
exemplo de secularização seria o declínio da religião católica no Brasil e suas perdas enquanto
modeladora do desenvolvimento do panorama religioso brasileiro.
Para certos sociólogos, o processo de secularização é mais abrangente do que a
laicização do Estado – o processo de secularização da Sociedade abrangeria o da laicização do
Estado. Para outros, todavia, há uma relativa independência entre esses processos, de modo que
a laicização do Estado pode ir mais longe do que a secularização da sociedade, ou o contrário.
A questão de distinguir ou não ambos os conceitos de laicidade e secularização é
matéria de “disputa teórica legítima”, sobretudo, entre pesquisadores franceses, espanhóis,
portugueses e latino-americanos. Não é o caso, aqui, de optar exclusivamente por um ou outro
lado dessa refrega. De todo modo, cabe reconhecer, de um lado, a delimitação conceitual mais
precisa ou restrita do termo laicidade. De outro, cabe observar que o conceito de secularização,
quando referido especificamente ao processo de secularização do Estado, do ensino, da política,
da esfera jurídica, por exemplo, nada perde em precisão em relação ao de laicidade.
Há países que mantêm estreita relação com uma sociedade religiosa, havendo mesmo
religião de Estado, mas que a sociedade é bastante secularizada, como a Grã-Bretanha e a
Dinamarca. Outros, por sua vez, têm Estado Laico em uma sociedade com instituições
permeadas pelo sagrado, como os Estados Unidos e a Índia. Outros, ainda, ocupam posições
intermediárias e transitivas. Na Argélia e na Turquia, o Estado Laico sofre fortes pressões para
fundir-se com o Islamismo dominante na sociedade e assumir as prescrições do Alcorão, para
o corpo político. No Brasil e na Itália, a secularização da sociedade avança enquanto a laicidade
do Estado está freada.
O caminho da sociedade na construção da laicidade passa no primeiro momento
enaltecendo a figura do soberano, depois acontece a dessacralização do poder, a laicização do
direito, do Estado e a afirmação de direitos civis e elaborar a constituição das leis.
Como afirma Bobbio (1992, p. 61):
123
Um Estado Laico não implica a laicidade da sociedade civil. Esta se caracteriza como
uma esfera autônoma e própria para o exercício, sem interferência do Estado, da liberdade
religiosa e de consciência, tutelada pelas garantias individuais dos direitos humanos.
124
Laicidade à brasileira
O Brasil adotou o regime jurídico da separação entre Igreja e Estado, mas esta forma
jurídica recebeu ao longo da história uma formulação própria, em que, não por acaso, a Igreja
Católica tendeu a receber uma discriminação positiva de parte do Estado enquanto as religiões
tidas como minoritárias tenderam a receber uma discriminação negativa.
A separação Estado e Igreja no Brasil, estabelecida com a República, não pôs fim aos
privilégios católicos nem à discriminação estatal e religiosa às demais crenças. No período
colonial (1500-1822) e imperial (1822-1889), o catolicismo foi a única religião legalmente
aceita, não havendo liberdade religiosa em nosso país. Nesse período, ou seja, durante 400 anos,
[...] o Estado regulou com mão de ferro o campo religioso: estabeleceu o catolicismo
como religião oficial, concedeu-lhe o monopólio religioso, subvencionou-o,
reprimiu as crenças e práticas religiosas de índios e escravos negros e impediu a
entrada das religiões concorrentes, sobretudo a protestante, e seu livre exercício país.
(MARIANO, 2001, p. 127-128).
[...] foi a única das três que assumiu o Estado Laico como ponto de partida, não como
elemento coadjuvante. Redigida em linguagem acessível, pois destinada a
distribuição ampla, o texto começa por mostrar o que o Estado Laico não é: Estado
ateu, católico, evangélico, espírita, do candomblé, da umbanda, nem budista. O
Estado Laico é aquele que garante que possamos ser tudo isso ou nada disso.
(CUNHA, 2018, p. 267)
A luta contra a intolerância religiosa e o racismo proposta pelo documento pode não
atingir seu objetivo. Assim, Cunha declara ainda em seu texto que:
constituirá disciplina de matrícula dos horários normais das escolas públicas de Ensino
Fundamental” (BRASIL, 1997).
É naturalizada, no interior das escolas públicas, a presença de práticas religiosas
cristãs; várias pesquisas, teses e dissertações acadêmicas comprovam isso. Ao observar os
dados da Avaliação Nacional do Rendimento Escolar do Ensino Fundamental, promovida pelo
MEC – Prova Brasil – que é aplicada a cada dois anos testes de conhecimento aos alunos dos
quintos e nonos anos das escolas públicas, constata-se que o ensino religioso é obrigatório.
Outrossim, há presença da religião nas escolas públicas. Ela pode ser observada nos
nomes das escolas, nas imagens de santos e santas, nos textos inscritos nos murais, nas
festividades, nas orações puxadas pelos professores antes das aulas e da merenda, e,
particularmente, na disciplina Ensino Religioso.
Igualmente, em escolas privadas conveniadas com as prefeituras, havia missionárias
que conduziam atividades religiosas, inclusive a preparação para a eucaristia. Os valores morais
eram apresentados aos alunos como se fossem intrinsecamente religiosos, não havendo
possibilidade de discussão fora desse campo.
Um dos principais objetivos das políticas para a educação sobre diversidade sexual
apontado nas ações e deliberações mencionadas acima é o de contribuir para amenizar um
fenômeno que marca a sociedade brasileira, sobretudo nas escolas: a homofobia, definida
resumidamente como a rejeição ou aversão a homossexuais e à homossexualidade. Também
nesse sentido, a valorização e o respeito pela livre expressão afetivo-sexual e identidade de
gênero constituem-se benefícios para coletividade.
Considerações finais
O Brasil é um país continental com mais de 200 milhões de habitantes e com as mais
diversas matrizes religiosas e filosóficas. De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE, 2011), há no país seguidores da fé católica, evangélica e
espírita, do candomblé, da umbanda, de outras tradições indígenas e afro-brasileiras, do
judaísmo, islamismo, hinduísmo, budismo, além de agnósticos e ateístas.
128
Percebe-se, no momento atual do processo político social brasileiro, que vivemos hoje
sob a hegemonia do sistema capitalista que provoca uma polarização direita-esquerda, ou seja,
mercado versus justiça social.
A direita, apoiada pela bancada evangélica, mais radical e mais intransigente em
relação ao direito à livre orientação sexual e identidade de gênero, é fortalecida pelo apoio do
agronegócio e por uma frente parlamentar composta por políticos que defendem o armamento
civil, flexibilização de leis relacionadas a armas e contra políticas desarmamentistas.
A esquerda, centralizada na luta por direitos humanos, pelo respeito à diversidade
religiosa, articulada a questão de identidade, mais recentemente, com o aprofundamento das
questões de gênero e sexualidade, prega o direito à livre orientação sexual e identidade de
gênero e o reconhecimento da diversidade sexual e levanta a bandeira do respeito à diferença e
da liberdade religiosa.
Perceba-se que – para desespero de muitos e muitas –, por conta das disputas em torno
de poderes econômicos, sociais, políticos, étnicos, religiosos e as questões que envolvem gênero
e sexualidade, o crescimento de comportamentos conservadores, agressivos preconceituosos
que têm estimulado os movimentos sociais a reivindicarem, seja por leis específicas, seja por
inclusão das expressões “orientação sexual” e “identidade de gênero”, a explicitação dessas
temáticas em termos de legislação e políticas públicas visando à proteção da população LGBTI
– a sigla oficial – e à criação de instrumentos de combate à intolerância, nesse caso, chamada
“homofobia”.
Essa dicotomia tem acirrado os ânimos dos dois lados. Essas contradições são
manipuladas de tal forma a comprometer a laicidade do Estado, a efetivação dos direitos
constitucionais e humanos, pondo em risco a própria Democracia.
Grande é o nosso desafio: construir uma sociedade mais justa, igualitária, amorosa,
feliz, sustentável, administrando as políticas laicas, em que se busca o diálogo entre o trabalho
da academia e dos movimentos sociais, na perspectiva de construir relações cidadãs e
igualitárias no campo dos direitos humanos e dos direitos sexuais. A escola pública e laica pode
ser o alicerce e o escudo para assegurar os direitos fundamentais de igualdade e da liberdade
para uma Nação tão plural como o Brasil.
129
Referências
BRASIL. Lei nº 9.475, de 22 de julho de 1997.Dá nova redação ao art. 33 da Lei nº 9.394, de
20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário
Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, p. 15824, 23jul. 1997.
PIERUCCI, A. F.; PRANDI, R. Assim como não era no princípio: religião e ruptura na obra de
Candido Procopio Ferreira de Camargo. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo: n.17, p. 29-35,
1987.
Introdução
*
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação - Processos Formativos e Desigualdades Sociais.
132
naturalizar todo o racismo. Logo, pode-se observar que os crimes que envolvem as religiões
afro-brasileiras vão além da intolerância religiosa, mas são pautados no racismo, por isso o
termo racismo religioso.
1
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/05/1455758-umbanda-e-candomble-nao-sao-
religioes-diz-juiz-federal.shtml?cmpid=menupe Acesso em 20 de jul. de 2020.
134
a retirada dos vídeos do YouTube, alegando que tais vídeos, ainda que expressem ser de mau
gosto, refletiam no exercício regular da liberdade de expressão2.
Os crimes de intolerância religiosa podem e devem ser denunciados. O atual Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), possui o Disque 100 funcionando
24h por dia, de segunda a domingo, para atendimento de qualquer denúncia a violação dos
direitos, incluindo intolerância religiosa. É assegurado o sigilo e o anonimato nas denúncias
que também podem ser feitas através do site www.disque100.gov.br.
As denúncias coletadas tanto através do telefone quanto por intermédio do site estão
disponíveis para consulta abrangendo os períodos de 2011 ao primeiro semestre do ano de 2019.
Porém, é interessante observar os dados expressos nos gráficos abaixo para uma breve análise.
O primeiro deles, com o número total de denúncias registradas:
Número de denúncias de
intolerância religiosa feitas ao
disque 100
800
759
600
556 537
400 506
354
200
231
15 109 149 5
0
2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Série 1 Série 2
Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH)
2
Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/05/juiz-federal-volta-atras-e-afirma-que-cultos-
afro-brasileiros-sao-religioes.html Acesso em 21 de jul. de 2020.
135
233
2019 (1º semestre)
26
18
261
1
2018
4
72
47
275
2017
54
52
478
2016
74
69
394
2
2015 1
2
14
37
50
2014
17
13
121
2013
9
15
71
2012
4
5
1
2011
estejam interferindo nas denúncias dos crimes que são subnotificados, uma vez que a mídia
jornalística aponta casos que não entraram para as estatísticas.
Dentro desse contexto colonial é que se coloca a perspectiva decolonial, como prática
de oposição e intervenção, reagindo ao processo europeu nas Américas.
A religiosidade foi utilizada como forma de dominação e poder. A teoria comtiana dos
três estágios da humanidade (teológico, metafísico e o positivo), agregada ao evolucionismo de
Charles Darwin e de Herbert Spencer, propiciam as visões evolucionistas sobre cultura e
religiosidade, da mesma forma que Tylor buscava uma origem comum das religiões no que
chamou de animismo. Émile Durkheim, igualmente, defende que todos os elementos religiosos
essenciais do pensamento deveriam encontrar-se, em forma germinal, nas religiões ditas
“primitivas” (HERMAMM, 1997). Por essa perspectiva, as religiões praticadas pelos povos
originários da América como também dos vindos de África, eram mais do que compreendidas
como primitivas, mas como ilegítimas, demonizadas, devendo ser abolidas.
No caso especialmente da América portuguesa, em que o processo de escravização de
povos africanos se deu em larga escala, a religião era o elo entre o escravizado e o seu espírito
livre. Através de seus orixás, inquices e voduns, os negros poderiam manter suas raízes, sua
cultura. A religião foi um instrumento de organização para estes escravizados, ponto de
resistência cultural. Assim, a imposição de uma fé católica se fez em uma reconfiguração do
imaginário popular, por práticas de aculturação, hibridismo cultural, mas, sobretudo,
popularmente chamada de sincretismo.
Bastide aponta que a própria palavra sincretismo em si já induz ao erro, uma vez que
este afirma que “procurava um fenômeno de fusão ou, pelo menos, de penetração de crenças,
de simbiose cultural, uma espécie de química dos sentimentos mistos. Mas o pensamento do
negro se move num outro plano, o das participações, das analogias, das correspondências”
(FERRETI, 2013, p. 58). O sincretismo existente entre a religião europeia cristã e as
religiosidades ameríndias e africanas não foi um processo harmônico, visto que as culturas em
encontro não estavam na mesma posição. Não se trata de que uma seja inferior à outra, mas,
sim, na posição de desigualdade, entre dois grupos: o dominador e o dominado, expressando as
relações de poder existentes no campo cultural (DIAS, 2008).
Segundo Carvalho (2006), a ideia romanceada do sincretismo como característica
brasileira, positiva e única, é contraposta pelo autor Muniz Sodré, que compreende o
138
sincretismo como um conceito negativo, em que essa áurea encantadora dá lugar a uma dura
realidade que tenta esconder a discriminação.
Nunes (2018) destaca o atual debate sobre candomblé marcado pelo processo de
africanização, almejando uma aproximação às raízes africanas. Tal fenômeno pode ser
observado não só aqui no Brasil, mas também em lugares na América Central, ressaltando que
a aproximação pretendida “não deve ser confundida com essencialismos da tradição” (NUNES,
2018, p. 12), mas na busca por uma alteridade. Processo semelhante ao defendido por algumas
casas de umbanda que objetivam refletir sobre o embranquecimento existente no mito de
fundação da religião pautado na harmonia das três raças e no sincretismo dele decorrente.
Sob o viés do sincretismo pode ser expresso em uma minoria se autodeclarar como
pertencente a essas crenças de matrizes africanas. Mantendo, que muitas das vezes, mascarada
pelo tom sincrético do catolicismo, por questões de aceitação e preconceito que os adeptos
dessas religiões sofrem.
A esse respeito, pode-se observar um fato curioso revelado no último censo realizado
no ano de 2010, em que diferentemente do que se podia imaginar, o estado brasileiro com maior
número de adeptos das religiões afro-brasileiras, não é a Bahia conforme pensado, mas sim o
139
Rio Grande do Sul. Tal fato se dá pela declaração feita, visto que na Bahia é predominante o
número de católicos.
Quijano (2005) aponta que “é tempo de aprender a nos libertarmos do espelho
eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. É tempo, enfim, de
deixar de ser o que não somos” (QUIJANO, 2005, p 126). Todavia, mostrar o que se é ainda
temido pelo preconceito que envolve, já que durante séculos as crenças não europeias foram
marginalizadas e até mesmo criminalizadas como crimes à saúde pública. O Código Penal de
1890, que em seu artigo 157, apontava que “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios,
usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de
moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública”
deveriam ser punidas com penas de prisão por um a seis meses e multa (BRASIL, 1890.).
Os saberes e práticas ancestrais africanas, mesmo perseguidos, resistem. Um terreiro
é um espaço de resistência (NOGUEIRA, 2020). Logo, é necessário romper as amarras do
colonialismo e desfazer os nós que se formaram em nossa sociedade que constituiu o racismo
estrutural e seus desdobramentos também no campo religioso.
Conclusão
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento,
2018.
FERRETTI, Sergio. Repesando o Sincretismo. 2. ed. São Paulo: Edusp/Aché Editora, 2013.
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2591382/mod_resource/content/1/colonialidade_do_
saber_eurocentrismo_ciencias_sociais.pdf Acesso em: 12 jul. de 2020.
NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância religiosa [livro eletrônico]. São Paulo: Pólen, 2020.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no
Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
*
Graduando em Direto.
1
Termo normalmente utilizado por Boaventura de Souza Santos desde o seu livro Pela Mão de Alice (1997),
epistemicídio é, em essência, a destruição de conhecimentos de saberes, e de culturas não assimiladas pela cultura
branca/ocidental.
146
Também tem sido descrita como uma filosofia de vida, que no seu sentido mais
fundamental representa a personalidade, a humanidade, a humanidade e a
moralidade; uma metáfora que descreve a solidariedade grupal onde essa
solidariedade grupal é central para a sobrevivência de comunidades com escassez
de recursos, onde a crença fundamental é definida como motho ke motho ba batho
ba bangwe/umuntu ngumuntu ngabantu que, traduzida literalmente, significa que
uma pessoa só pode ser uma pessoa através dos outros.
Por outras palavras, toda a existência do indivíduo é relativa à do grupo: isto é
manifestado numa conduta anti-individualista para a sobrevivência do grupo, se o
indivíduo quiser sobreviver. É uma orientação basicamente humanista para com os
outros seres. (MOKGORO, 1998, p.16) – Tradução livre deste autor.
O foco principal deste artigo, porém, se dá no maior berço cultural das matrizes afro-
brasileiras, a Nação Yorubá, ou o povo Nagô, que se localiza principalmente na Nigéria, mas
também em parte do Benim e minoritariamente em países como Togo e Serra Leoa, entre
outros. Um seio cultural que transpassa fronteiras imperialistas e que comunga, mesmo com
tanta distância, com a ideologia dos pais e irmãos de Nelson Mandela.
A partir deste breve norteamento semântico, desenvolveremos o conceito ancestral
de comunidade pelo viés yorubano, afastando o termo ubuntu e explicitando, trazendo à tona
o termo Egbé, que em livre tradução seria comunidade, porém trataremos de expandir esta
acepção lexicográfica.
O Iwa Pele (em tradução livre o “bom caráter”), ou a ética para os Yorubá é um
tesouro buscado em cada núcleo familiar, pois se “Deus criou o homem a sua imagem e
semelhança”2, como dizem cristãos, o pai e a mãe são para os filhos como o Deus cristão é
para a humanidade, por isso o cultivo de bons ensinamentos e valores de pais para filhos tem
o poder, a importância e a urgência de todos aqueles que antecederam os pais.
Desta forma, o que um pai semeia no filho enquanto caráter e ética, foi passado pelo
pai dele, que outrora também lhe foi transferido por seu ascendente. Assim, sucessivamente,
o que faz com que um pai tenha muito carinho ao cultivar esses valores em um filho e, um
filho tenha zelo por algo tão antigo e importante, que é essa ética e esses valores socioculturais
fundamentais preservados pela família; ética esta que ajuda o sujeito Yorubá a ter noção e
entendimento de si, ética que dá predicado e identidade ao sujeito, respeitando sempre sua
formação ontológica.
2
“E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do
mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher, os criou.” Gênesis 1:26-27.
148
Os reis iorubas são assessorados por uma sociedade corporativa, de chefes de vilas
e cidades, conhecida como baàlè, que são, por sua vez, assessorados pelos chefes
de linhagem e famílias, conhecidos como baálé. Os baálé tomam suas decisões
com a aprovação dos mais idosos da linhagem familiar, conhecidos como àgbà.
Nesta ordem hierárquica, crianças e jovens não tem autoridade sobre nada, e se,
eles morrem antes de tornarem-se um àgbà, eles não podem ser cultuados como
ancestral. (ABIMBOLA, 1981, p.75)
Aqui fazemos uma assepsia com o pensamento euro ocidental. Não se diz ao sujeito
Yorubá quem ele é, mas de onde ele veio, diferente de nossa lógica ocidental consumista onde
toda propaganda nos diz o que e como ser. Dessa forma o sujeito pode ser muçulmano, cristão,
judeu, rico, pobre, ter o mais novo carro ou iphone, ser transexual ou homossexual, mas tudo
isso são eventuais detalhes de sua identidade, o importante é a construção ética, saber de onde
veio para entender quem se é. Lógica esta corroborada de forma poética por Muniz Sodré no
livro “As nações Ketu”, de Pai Agenor Miranda: "O eu do negro tradicional não é uma
unidade isolada portadora de uma verdade exclusivamente individual. Nele aglutina-se, pelo
contrário, toda a trama fisiológica e psíquica dos ancestrais." (MIRANDA, 2000, p.10)
Na introdução de Muniz Sodré entendemos como os pilares destacados de formas
separadas durante este artigo se aglutinam e se consolidam formando uma estrutura única.
Assim, o coletivo passa a ter duas perspectivas: a perspectiva do colateral, nossa comunidade
e a perspectiva ancestral, a noção de ser um capítulo numa história que não terá fim, mas
eternos recomeços que precisam ser assegurados, visto que toda a trajetória e história dos
meus ancestrais recaem sobre mim e eu sou eu, e que por isso sou um representante vivo dos
meus ancestrais em todo ato, nunca sozinho.
Estes princípios sólidos são conhecidos pelo Yorubá como de Iwa Pele, mas aqui
trataremos como ética, a pilastra central da edificação humana, que tem como seus alicerces
a ancestralidade e a comunidade (Egbé). É importante entender que cada conceito desses tem
desdobramentos profundos, tanto filosóficos quanto litúrgicos e, por mais que sejam
princípios diferentes, eles se espelham, convergem e se retroalimentam, de modo a mostrar
facetas diferentes de uma macroestrutura.
149
costumes ocidentais, pois quem questiona ou critica Deus é herege e a punição divina é
veemente, absoluta e eterna.
Diferentemente, para o yorubá não existe céu ou inferno, ou sequer salvação, pois o
palco da vida é o aqui e agora, e o objetivo de todos é, como supracitado, viver até a última
idade, celebrando a alegria de estar vivo e gozando estar entre amigos. Dessa forma, quando
alguém falece todos festejam e celebram as bonanças que aquele que se foi trouxe em vida
para sua comunidade e família.
Ter muitas pessoas queridas é um reflexo de um bom caráter, e aquele que tem sua
existência celebrada por amigos e familiares recebe o direito de retornar como uma nova vida
dentro dos seus descendentes. Então, quando uma criança nasce, ela vem a ser um amado ente
que se foi e tanto fazia falta. Assim, o yorubá constrói uma estrutura epistemológica de total
e imperiosa valorização da vida de cada indivíduo.
[...] para os antigos iorubas, vida e morte fazem parte de um ciclo que sempre se
repete; a criança que nasce é o velho que retorna. A reencarnação reafirma a vida
e a noção de que viver neste mundo é bom e prazeroso, e renova para o vivente as
possibilidades de realizações capazes de garantir, depois de uma vida de sucessos,
a conquista da eternidade. Vida e morte se alternam e se completam. (PRANDI,
2005).
O clássico conflito grego entre alteridade e identidade para o povo africano não é
visto como um dilema, e sim como uma necessidade. Uma árvore não se faz floresta
solitariamente, são necessárias outras para compor uma floresta; umas que crescem primeiro
e suportam o Sol para fazer sombra, outras que crescem melhor na sombra de suas amigas, e
cada uma com suas peculiaridades e individualidades formam uma vasta floresta. Para os
Yorubá, não somos muito diferentes, precisamos do outro para existir, não existe indivíduo
sem um grupo e tampouco grupo sem indivíduo. Fora do grupo o sujeito não pode se
desenvolver, porém através das experiências, das trocas, aprendemos quem somos, de onde
viemos, nossas necessidades; aprendemos a desenvolver paciência, tolerância, a nos suportar,
a dar nosso melhor, dentre outras virtudes.
Cada ser humano que chega ao mundo, como um mensageiro da “outra dimensão”,
manifesta o sagrado, não sendo visto apenas como produto dos pais. Recebido com
respeito, seu nome deve ser descoberto e não inventado. Pronunciá-lo é saudar esse
ser celeste e convidá-lo para habitar a sociedade dos homens. (ERNY, 1968, p68).
Os yorubá e o gênero
Além desses aspectos introdutórios, existem muitos outros que merecem ser
esmiuçados, como a questão de gênero, ou a própria questão já supracitada no início deste
ensaio sobre a palavra e sua importância. As questões da ordem do pensamento e cultura que
tanto nos foram negadas, tanto foram perseguidas, talvez agora tenham que sair da posição
de subalternas na filosofia e também nas ciências políticas, para reorientar certos vícios e
abusos absurdos e obtusos que nossa sociedade desigual, violenta e que se diz neutra, justa e
standartizada continua replicando década atrás de década, há séculos. A união e a valorização
153
do coletivo não pode ser algo só almejado como objetivo social, mas entranhado enquanto
valor, como algo que cada um de nós deseja proteger genuinamente.
Os modelos que formam nossa cultura, baseados em estratificação por gênero, poder,
dinheiro, cor da pele, diploma, e que aponta quem é ser humano, ou qual ser humano é melhor,
mais merecedor etc., não se sustentam mais. A dignidade tem que ser um princípio social, a
empatia tem que ser um princípio humano.
Dentro do pensamento do negro-africano tradicional não há o que se falar em
patriarcado. Existem diversas organizações, algumas matriarcais, outras patriarcais, mas estas
são desdobramentos de facetas do mesmo polígono; assim masculino e feminino são talvez a
única polarização dentro da cultura, mas não são polos antagônicos como Deus e o Diabo, e
sim polos complementares.
Para termos uma leitura mais acurada, é importante saber que o idioma yorubá, por
exemplo, não faz distinção de gênero. Cachorro, Cadela, Rei, Rainha, Filho, Filha, para todas
essas palavras, se quiser se apontar que é um macho ou uma fêmea, especificamente, devemos
usar auxiliares no masculino ou no feminino; destarte, a própria concepção de Deus, Olorun,
Eledumare, não é polarizada entre masculino ou feminino, em contraponto ao pensamento
judaico cristão. Mais que isso, em todos nós, dentro de cada um, existem aspectos masculinos
e femininos além do gênero biológico e essa feminilidade pode ser mais agravada em um
homem, como a masculinidade mais agravada em uma mulher, sem que deixe de ser quem é,
ou essa pessoa seja vista de forma diferente por conta disto.
Por conseguinte, à luz do pensamento negro-africano e orientados por Oyeronke
Oreywumi, conforme citação a seguir, podemos perceber as capacidades femininas como uma
epistemologia. A essência feminina está na terra igbá nlá, a grande cabaça a qual habitamos.
A essência feminina está na agricultura, na vida, em tudo o que é vivo, em tudo o que um dia
nasceu, a essência feminina está na cura trazida através das folhas, nos grandes mistérios da
noite, do silêncio, do ventre, na maturidade intrínseca à menopausa. Então observamos que
existe a categoria do feminino, mas que nem sempre isso é necessariamente ligado à mulher.
Um exemplo disso existe no candomblé: quando um noviço passa por um ritual iniciático é
chamado então de “Iyawo”, que em uma tradução literal significa “esposa de orixá”. Isso vale
para homens e mulheres, os quais sejam iniciados para orixás masculinos ou femininos, não
importa. A tradução deslocada para “esposa” não representa em absoluto os significados e as
possibilidades de um ou de uma Iya.
154
[…] em caso se nascimento de gêmeos, a primeira criança a nascer será tratada como
júnior e a segunda é privilegiada como sênior. [...] Na cultura se acredita que Táíwò,
o(a) àbúrò (júnior), veio antes ao mundo pois Ké ̣hìndé, o è ̣gbọ́n (sênior), o (a) enviou
antes para verificar se o mundo externo era tranquilo e pacífico para seu nascimento
(OYĚWÙMÍ, 2016, p. 9) – Tradução livre deste autor
Nestes dias sangrentos e noites terríveis, quando um guerreiro urbano não consegue
encontrar rosto mais desprezível que o seu, munição mais mortal do que o
autodesprezo e nenhum alvo mais merecedor de sua mira certeira do que seu irmão,
devemos nos perguntar como chegamos tão tarde e solitário neste ponto.
(ANGELOU, 1991).
justificativa para manter os mesmos sobrenomes nos mesmos cargos, e não fazer uma alteração
substancial no status quo.
E quanto ao povo (2), este tópico conversa mais diretamente com as questões da
construção de identidade e dos resgates propostos neste artigo. Os povos africanos e nativos,
quando foram escravizados, foram impedidos coercitivamente de todas suas práticas culturais.
A primeira perda dos pretos quando chegavam ao Brasil era do próprio nome: eram batizados,
passavam por um ritual cristão a fim de esquecer quem eram, suas terras, seus costumes,
idiomas, e seu próprio nome; tendo suas identidades amputadas de si. Quando conveniente, são
seres integrantes de um só povo brasileiro, que exercem seu direito ao voto e justificam a
posição dos opressores através de uma plutocracia disfarçada de democracia; mas essa mesma
bandeira verde e amarela não se serve num prato de comida. O Povo é uma ficção criada por
opressões coercitivas e ideológicas. As condições não são iguais e nunca foram feitas para
serem iguais, não se pretendem iguais e não se farão iguais, mas o discurso é pasteurizado.
A assimetria dos elementos do Estado com a realidade fática aparece menos evidente
na questão da soberania (3). Ela não é diferente de um “acordo de cavalheiros”, uma leitura
final de que o Estado detém todas as capacidades e se ele deixa de ter é tão somente pelo seu
volitivo. Uma forma dos Estados respeitarem uns as fronteiras dos outros e as decisões internas
uns dos outros, sem maiores desventuras. A questão da soberania pode ser muito peculiar,
dependendo das relações específicas: a soberania frente aos poderes estrangeiros ou de
interesses particulares, das frentes burguesas nacionais; a questão das demarcações das terras
indígenas e quilombolas; ou, sendo mais próximo à minha realidade subjetiva, os desequilíbrios
de poder nas favelas e comunidades no Rio de Janeiro. Os assuntos são um emaranhado
complexo de dissídio com determinada população e determinado espaço; a indústria altamente
lucrativa do tráfico de drogas e da guerra ao tráfico (aqui a neutralidade e abstração dos números
nos distanciam da realidade fática de que tanto os policiais, quanto os traficantes, quanto os
transeuntes que demarcam o tracejado de giz branco no chão, embebidos em vermelho, serão
em absoluta maioria, corpos pretos). Enfim, a soberania é a argamassa que dá liga a toda ao
bom-mocismo dessa quimera que é o Estado, este monstro inventado que tem aspectos reais,
mas ainda assim é uma invenção ficcional.
Por isso, aos pretos que ainda respiram, antes que nos matem é necessário resgatarmos
quem nós somos. Resgatarmos a possibilidade de sermos viventes, de nos organizarmos, de
subverter as opressões o mais rápido possível. Negarmos as imposições do branco e nos
perguntarmos quem somos de fato, entender quem nós somos e nos perguntarmos onde somos
pertencentes. A epistemologia e a cultura nagô são uma possibilidade, uma de milhares, não
157
importa a qual nos coincidirmos, contanto que fundamentemos estratégias de sobrevivência dos
nossos corpos individuais e enquanto coletivo, principalmente pelas gerações vindouras. Nosso
sangue tem que parar de jorrar, não viemos para este mundo para sofrer perdas, muito pelo
contrário. Que os ancestrais nos acompanhem em rumo à ascensão e à felicidade.
Referências
ABIMBOLA, W. Ifá will mend Our broken world: Thoughts on Yoruba religion and culture in
Africa and the Diaspora. Boston: Aim Books, 1997
_____________. La Notion de Personne en Afrique Noir. Paris: Centre National de la
Recherche Scientifique, 1971.
ANGELOU, M. I dare to hope. The New York Times, 25 ago. 1991. Disponível em:
https://archive.nytimes.com/query.nytimes.com/gst/fullpage-
9D0CE1DE173FF936A1575BC0A967958260.html. Acesso em: 17 jul. 2020.
ERNY, P. L'enfant dans la pensée traditionnelle de l'Afrique noire. Paris: Le Livre Africain,
1968.
MOKGORO, Y. Ubuntu and the law in South Africa. Buffalo Human Rights Law Review,
Buffalo: Buffalo Journal of International Law; Buffalo, NY: v. 4, n.3, p. 15-23, nov. 1998.
OYĚWÙMÍ, O. Gender and cultural studies in Africa and diaspora. Nova Iorque: Palgrave
Macmillan US, 2016.
_______. Conceptualizing Gender: The Eurocentric Foundations of Feminist Concepts and the
challenge of African Epistemologies. African Gender in the New Millennium, Cairo:
CODESRIA; Dakar, Senegal, v. 1, p. 1-8, abril, 2002.
PRANDI, R. Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Fábio Borges-Rosario
SEEDUC/RJ
professorfilosofiafabio@gmail.com
Passatempos filosóficos
1
Neologismo criado por Jacques Derrida.
2
Co-cidadania.
161
Ndebele (África do Sul, Zimbabwe, Botswana), Swati (Suazilândia e África do Sul), Xhosa
(África do Sul, Zimbabwe, Lesoto) e Zulu (África do Sul, Lesoto, Suazilândia, Zimbabwe,
Moçambique) e encontra-se sinônimos nas etnias Sesotho (Lesoto), vhutu (Ruanda e Burundi),
tsonga (África do Sul e Moçambique) e swahili (Quenia, Tanzânia, Uganda, República
Democrática do Congo, Ilhas Comores).
As singularidades humanas registram e narram suas histórias, lendas, filosofias, etc.,
seu percurso planetário e sua busca pelo fim das hostilidades e pela construção da hospitalidade
pela voz ou pela escrita. Os arquivos variam, empregam-se pedras, papiros, papel ou a memória,
uns são mais permanentes que outros e, em todos os casos, obtêm-se a preservação dos
acontecimentos e feitos humanos.
Talvez, algumas singularidades humanas ainda devotem muito apreço pela descrição
da origem da espécie, mas se, por economia, ainda se emprega o termo origem nas obras onde
a desconstrução aparece; nestes não se depara com a origem, antes se encontra apenas quase—
origem, disseminação, encontros, travessias, contato entre as etnias, eventos hostis e
acontecimentos hospitaleiros.
Nesta direção, na rota de confissão dos crimes cometidos contra a humanidade nos
eventos hostis e na persecução por acontecimentos hospitaleiros tomo a voz e a escrita das
filósofas e filósofos que atravessaram as margens do pensamento europeu e buscaram noutras
margens pistas para a descolonização e desconstrução do pensamento.
Atravessar as margens como performance desconstrutora do pensamento filosófico
europeu amplamente conhecido e estabelecido no país não significa o abandono do legado
europeu, outrossim, é um apelo a ir além deste. É um convite ao mesmo tempo interessado e
desinteressado a se conhecer outros legados, somando-os ao conhecido.
Talvez, as algumas das pessoas que resolveram os jogos propostos, estavam
desinteressadas pela mensagem e a consideraram como traço [ou seria rastro], como diferente
[ou seria différance] e quiçá persistam em falar da diferença [mas como falar da diferença senão
para hostilizar?]. Outras notaram que a différance é lida, vista, mas nunca pronunciada, e, como
um espectro, evoca a hostilidade e a hospitalidade, e as insere no in-decidível. E se o in-
decidível, ao invés, de paralisá-las, for compreendido como a possibilidade da chegada do
acontecimento, como o im-possível que chega, como a construção da possibilidade de acolher
o outro na sua différance, então surgirá a im-possível possibilidade de reconhecer igualmente
as heranças das etnias americanas, africanas, asiaticas, oceânicas e europeias na nação
brasileira.
162
Os jogos
Jogo: Caça-filósofo
13 1 18 3 5 12 15 13 15 18 1 5 19
Jogo: Caça-filósofo
18 5 14 1 20 15 14 15 7 21 5 18 1
Jogo: Caça-filósofo
23 1 14 4 5 18 19 15 14 6 12 15 18
3
Os poetas [em quiché].
4
Homem sábio; aquele que permanece aprendendo [em egípcio antigo].
163
Jogo: Caça-filósofo
4 18 21 3 9 12 12 1 3 15 18 14 5 12 12
Jogo: Caça-filósofo
10 1 3 17 21 5 19 4 5 18 18 9 4 1
Jogo: Caça-filósofo
13 15 7 15 2 5 18 1 13 15 19 5
Jogo: Caça-termos
Eles apontam que ubuntu significa que nossa mais profunda obrigação moral
é nos tornarmos mais completamente humanos e para realizar isso, é
necessário entrar mais profundamente em comunidade com os outros. Uma
pessoa não pode, portanto, se tornar mais plenamente humana ou reconhecer
seu verdadeiro eu explorando, enganando ou atuando de maneira injusta para
com os outros.
Lesley le Grange
E I M M E M O H A B U N T U P H
O B R I G A S A O O R T U O S U
E Z C O M U N I T A R I O G O M
E O A S T M O B Z X Q W F M R A
164
L D E N P O R T A N T O H U T N
G W U Z X O B R I G A Ç A O U O
N B C O M U N I D A D E U S O S
U P E S S O A S D A O S S E P A
H U M A N A A I N J O T N U B U
E N G A N A N D U O A T U A N D
O B R I G A D O Z E A M N E I R
Jogo Caça-Termos
Ubuntu, palavra existente nos idiomas sul africanos zulu e xhosa que significa
“humanidade para todos”, é a denominação de uma espécie de “Filosofia do
nós”, de uma ética coletiva cujo sentido é a conexão de pessoas com a vida,
a natureza, o divino e as outras pessoas em formas comunitárias. A
preocupação com o outro, a solidariedade, a partilha e a vida em comunidade
são princípios fundamentais da ética ubuntu.
Alexandre do Nascimento
E Q M W S O L I D A R I E D A I
Z T V I V E N T E P A R T I D R
E T I O A T R A A S D E N I O E
U O S C D M I B Z A Ç O O F T A
S D A S I O R M E A S M C I O H
X O N I V I D N R L A E C T I L
V I V O D E U S U S R A T L Ç I
S O L I D A R R T F E L Z C O T
F I L O S O F I A D O N O S A R
E T I C O Q U V N D I V I N D A
V S O L I D A R I E D A D E E P
Jogo: Caça-termo
Ubuntu não é uma palavra mágica que surge para resolver os conflitos e
“salvar” as pessoas diante de disputas políticas. Ubuntu não é uma lei
universal que está viva em todo o continente africano. A palavra ubuntu não
existe em todas as centenas de línguas africanas faladas nos 54 países
africanos; ela esta presente em quatro idiomas: Ndebele, Swati, Xhosa e Zulu.
Renato Noguera
R E Z O L V E R O N A C I R F A
A A F R I K A N D E R E U S O U
M D B E L E S S A C I T I L O P
S U A T B S W A T O N A A F R I
R E S O L V E R P O L I T I C O
X O S A S E N D B E L E Z I L U
Q W E R T U I I O P A S D F G H
J K L Ç Z T X V B N M K L U A B
U N I V A E R S A L S U R L G E
P A R W A O S C O N F L I U T O
S E S S A L V A R O C O N Z T I
Filosofia Africana
atravessada pelos gregos, judeus e árabes. E talvez, cabe perguntar: Se segundo Derrida na
filosofia europeia só há rastros de outros povos porque recusar o rastro egípcio?
Talvez, recusar o rastro egípcio é o derradeiro gesto do eurocentrismo. Neste sentido
compreende-se que estimular a pesquisa sobre a filosofia do Egito potencializa a pesquisa sobre
a pluri-origem da filosofia grega, quiçá contribuirá no esclarecimento das inúmeras passagens
atualmente marginalizadas pelos leitores eurocentrados da filosofia da Grécia clássica, assim
como soçobrar o etnocentrismo.
Soçobrar, afundar, naufragar os efeitos do racismo estrutural que assombra o ensino
no país inicia com o reconhecimento do caráter eurocêntrico que persiste em validar os saberes
europeus e opô-los aos saberes produzidos por etnias de outros continentes. E se desconstruir é
inverter os pares binômicos estabelecidos pelo etnocentrismo, propõe-se aqui a inversão do par
ocidental–não-ocidental, a rasura da fronteira que separa tais conhecimentos, a ampliação das
vozes convocadas ao diálogo, isto é, estabelecer um polidiálogo.
O polidiálogo tem como horizonte estabelecer a inversão do par ocidental–não-
ocidental e nesta direção busco nas filosofias marginais produzidas na África, América, Ásia e
Oceania pistas que permitam re-pensar a tradição filosófica europeia e recusar o eurocentrismo.
Neste sentido diante da brevidade deste trabalho, acolhe-se aqui, as reflexões de pessoas
africanas, americanas e europeias que identificam no conceito de ubuntu elementos para suas
reflexões filosóficas. Logo, nesta leitura outros conceitos – tais como teko porã, etc. – estão
espectralmente acolhidos.
A filosofia africana contemporânea (SILVÉRIO, 2013) é expressa tanto nas línguas das
etnias do continente quanto escrita nas línguas dos povos europeus. Os filósofos interessam-se:
pela redescoberta do pensamento clássico das etnias, pela interseção entre o pensamento
clássico e o pensamento árabe, pela comunicação entre o pensamento clássico e o pensamento
cristão, pela assimilação do pensamento europeu como tática de modernização das sociedades,
crítica a neocolonização econômica e aproximação da ideologia marxista, pela elaboração de
uma reflexão que reconheça as heranças de cada etnia e os atravessamentos e contaminações
iniciadas com o contato com os pensamentos europeus e asiáticos.
Karin Van Marle [e Drucilla Cornel] (2015) relatam o projeto Ubuntu organizado pela
primeira em 2003, e advogam que feminismo ubuntu fornece as respostas aos dilemas e
contradições que crassam o patriarcalismo e aponta ações que possibilitem a solidariedade.
Lesley le Grange (2015) defende o ubuntu como categoria enriquecedora dos debates
ambientais locais e mundiais, e o emprega como atravessamento conceitual no pensamento do
filosófo norueguês Arne Naess e dos princípios do movimento da ecologia profunda (MEP).
167
Janheinz Jahn (1970), filósofo alemão, apresenta brevemente como as categorias ntu,
muntu, bantu e ubuntu contribuem para o entendimento das culturas negras na África e na
denominada Diáspora Negra. Sua exposição, entretanto, parte das etnias bantu de Ruanda.
Assim como atravessa a fronteira nacional ruandesa acolhendo escritores nigerianos, europeus,
etc. Tal escolha reflete as escolhas do pensador alemão ao ultrapassar a própria fronteira
nacional e pesquisar além das culturas africanas, as culturas árabe e italiana.
Renato Noguera (2012), filósofo brasileiro, busca na ética bantu das etnias da África
do Sul uma rota pluriversal que possibilite soçobrar a perspectiva universalista da filosofia
eurocentrada. Convida escritores sul-africanos, estadunidenses, franceses, alemães ao
polidiálogo que pretende estabelecer na busca por uma educação antirracista.
Nesta direção, Renato Noguera e Marcos Barreto (2018) convidam teko porãs,
guaranis e outras etnias que habitam o território brasileiro para um polidiálogo sobre a infância,
neste os conceitos bantu das etnias sul-africanas e as noções teko porãs confluem em
formulações para novas relações éticas. Este diálogo entre o pensamento bantu e teko porã é
um convite a articulação entre os negro-brasileiros e as etnias primevas para a descolonização
da nação e o reconhecimento que ambos os povos em inúmeros momentos da história nacional
se articularam na luta contra a escravização.
Henrique Cunha Júnior (2010), filósofo brasileiro, visita a educação bantu, explicita
quais categorias atravessam a proposta de ensino nestas sociedades com o intuito de criticar o
caráter racista e etnocêntrico da educação brasileira. Entende que as noções ntu, muntu, bantu
e ubuntu enriquecem o debate educacional brasileiro na direção do soçobrar dos efeitos da
educação eurocentrada.
Alexandre do Nascimento (2014), filósofo brasileiro, diferencia-se dos demais ao
articular a noção de ubuntu com a noção de democracia e com a questão educacional. Entende
que o apelo ético elencado pelo conceito se articulado com autores como Paulo Freire fomenta
um debate sobre uma educação coletiva para a emancipação e a liberdade.
Wanderson Flor do Nascimento (2016) discorre sobre as implicações para o ensino na
educação básica da aprovação da legislação que promete e compromete os estabelecimentos de
ensino com a filosofia africana e elenca a partir da noção de travessia o contato, o conhecimento,
uma tecitura dos saberes filosóficos do ocidente, indígenas, africanos e orientais numa
interlocução ubantizada.
Luiz Dantas (2015) ao verificar a implementação da legislação que deputa o ensino de
filosofia africana na rede estadual de ensino médio paranaense, constata a dificuldade de sua
169
O que esperar?
Contra-assino aqui as leituras (RAMOSE, 1999; 2002) que relacionam propor ubuntu
como a raiz ou origem da filosofia africana com a rejeição do acolhimento deste conceito pelas
pessoas não-africanas ou não-descendentes de africanas. O desvio (FINCH III et
NASCIMENTO, 2009, p. 37-69) é um reconhecimento que sempre houveram pessoas brancas
que deslocaram a Europa em seus pensamentos e compreenderam as civilizações europeias
como herdeiras das civilizações africanas. Entendo como afirmado acima que o termo ubuntu
é empregado apenas por quatro das inúmeras etnias que habitam o continente africano, contudo
que a ideia que expressa, o apelo que evoca pode contribuir para a reflexão de todas as etnias
que habitam a África ou qualquer outro continente. E por entender que a legislação antirracista
aponta a pluriversalidade e o conceito de ubuntu como um caminho para o abandono da
universalidade como proposta pelos europeus e aceno na rota de um horizonte pluriversal de
desconstrução e descolonização da filosofia.
E o horizonte pluriversal5 é identificado mesmo nas obras que buscam no ubuntu um
solo onde edificar a descolonização e a desconstrução do pensamento. Pois, nas obras que
5
ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: notas sobre uma posição, p. 93-110. In: NASCIMENTO, 2009;
FINCH III, Charles S. A afrocentricidade e seus críticos, p. 167- 177. In: NASCIMENTO, 2009; NASCIMENTO,
Elisa Larkin. O olhar afrocentrado: introdução a uma abordagem polêmica, p. 181-196. In: NASCIMENTO, 2009.
171
reivindicam o ubuntu como o centro da filosofia africana, isto é, nas filosofias afrocêntricas
dais quais este trabalho é herdeiro, a afrocentricidade é uma tática de deslocamento do lugar da
Europa no pensamento moderno, é uma inversão dos pares binômicos: europeu versus não-
europeu, civilizado versus incivilizado, etc. Tal tática objetivava valorizar a África como o
continente de aparecimento da espécie humana, as civilizações africanas antigas como
ancestrais das civilizações do Oriente próximo e da Europa, etc. Não se pode esquecer todas as
obras africanistas ressaltam seu papel de conscientização das pessoas pretas em África e na
diáspora e seu compromisso com a pluralidade étnica da humanidade, a recusa a qualquer
tentativa de estabelecer um paradigma universalista fundado na África e a responsabilidade dos
africanos e dos seus descendentes na diáspora com a libertação de todas as pessoas humanas
como condição para a autonomia de todos os povos.
A pluriversalidade aqui é entendida como o anúncio do igual reconhecimento de todas
as contribuições singulares e coletivas produzidas pela espécie humana. É reconhecer que a
humanidade de cada singularidade ocorre, chega, acontece quando cada pessoa interage, se
relaciona, acolhe as outras singularidades na sua différance, isto é, contamina-se a
pluriversalidade com ubuntu, com um sentido colaborativo da existência humana, apontando
que o existir das singularidades só é possível na comunidade e o das comunidades na
colaboração com outras comunidades. Nesta direção as comunidades, assim como as
singularidades não se realizam sem serem justas umas com as outras, sem abandonarem
qualquer prática de exploração, engano ou injustiça inter-comunitárias.
Entende-se a partir da escuta de Marcelo Moraes (2017, 2017b, 2018.) que o conceito
Ubuntu, talvez, por economia possa plurear6 nossa busca por uma via jurídica–política–ética
que aponte um horizonte de soçobramento dos efeitos do racismo, do logocentrismo em nosso
país. Acolher sua reflexão sobre o lugar do conceito de ubuntu na filosofia africana apresenta-
se como uma das rotas possíveis para a descolonização e desconstrução do pensamento e no
apelo por uma nova mundialização.
Assimilar (HERNANDES, 2008; SILVÉRIO, 2013, 2013b; MORAES, 2017, 2017b,
2018; FOÉ, 2013; APPIAH, 1998; MBITI, 2001; SILVA, 2013; MBEMBE, 2001, 2014, 2016.)
o pensamento europeu como tática de modernização das sociedades africanas significa importa
as crises e violências que o eurocentrismo gera na Europa e em todos os territórios para onde é
exportado. Ainda que empregue novas roupagens ou figurinos, a globalização tal como pensada
6
Entende-se aqui a importância do conceito de sulear, outrossim, entendo que a legislação antirracista brasileira
aponta para a pluralidade das origens e para um horizonte plural e de co-existência, neste sentido o termo sulear
poderia confundir a pluriversalidade pretendida com a troca do norte como centro por um novo centro, o sul.
172
pela Europa é uma nova tática de exploração e subalternização das demais etnias, isto é, a
globalização é uma neocolonização. Romper com a colonização ou com a neocolonização
ocorre quando se apela novas relações internacionais sem colônias e sem metrópoles, quando
se abre a democracia por–vir.
Ubuntu apela pela pesquisa do pensamento clássico das etnias que habitam o
continente africano. Aponta um olhar tanto para Kemet [Egito] quanto para Núbia, Império do
Sudão, Império de Kerma, Reino de Punt, Reino de Axum, Império Songhai, Reino Mali,
cidades-estados dos Yorubás, Reino do Congo, Reino do Benin, etc., para encontrar em seus
provérbios, seus mitos, suas filosofias caminhos para a descolonização e desconstrução dos
modernos Estados-nação, neocolonizados pelo etnocentrismo de líderes cujo pensamento
colonizado não lhes permitiu compreenderem que a África possui uma história e um papel de
impulsionadora das civilizações humanas que apareceram noutras terras a partir da diáspora
que a espécie empreendeu há milhares de anos.
E mesmo na história moderna do continente, quando da interseção entre o pensamento
clássico e o pensamento árabe, quando das invasões árabes é mister notar as resistências
políticas empreendidas pelas etnias do continente, assim como que mesmo as etnias que foram
ou belicamente ou culturalmente islamizadas, a islamização não ocorreu como um processo de
assimilação cultural dos povos do continente, antes houve negociações, ressignificações, etc.,
entre os valores civilizatórios das etnias do continente e os valores islâmicos. De maneira que
podem ser encontrados rastros de uma interpretação africana do Islã. Nesta rota, invocar esta
herança poderá ser um caminho para evitar a tentativa de neocolonização islâmica em curso
que supostamente em nome de uma leitura literal do cânone islâmico promove violência e
extermínio no continente.
É reconhecer (HERNANDES, 2008; SILVÉRIO, 2013, 2013b; MORAES, 2017,
2017b, 2018; FOÉ, 2013; APPIAH, 1998; MBITI, 2001; SILVA, 2013; MBEMBE, 2001, 2014,
2016) a importância das tentativas que estabelecem a comunicação entre o pensamento clássico
africano e o pensamento cristão, mas assinalar que a reconciliação entre os povos colonizados
pelos cristãos europeus e as etnias que lutam contra a neocolonização será possível se houver
da parte dos cristãos a recusa da violência neocolonial empreendida pela Europa. Assim como
as tentativas de empreendimentos missionários cristãos que solidificados numa suposta leitura
literal do cânone cristão ocidental e por desconhecerem a história das Igrejas Coptas do Egito
e da Etiópia demonizam a história do continente e neste gesto executam um epistemicídio no
continente. As nações africanas, talvez, encontrem possíveis rotas se atravessarem os conceitos
cristãos de justiça, perdão, etc., com a noção de co-existência, com a ideia de ubuntu.
173
Considerações quase-finais?
Quando ouço e convido todas estas pessoas para o polidiálogo, espero apontar que o
acontecimento da pluriversalidade já chegou, e que este chegante solicita a pesquisa e o ensino
da filosofia no país. Abalo deputado pela legislação antirracista que exige um novo marco
jurídico–político–ético no ensino superior e na educação básica.
A escuta das sul-africanas Karin Van Marle, do Lesley le Grange, do Mogobe B.
Ramose, do [africano desenraizado] franco-argelino: Jacques Derrida, do alemão: Janheinz
Jahn, atende a solicitação de valorizar as raízes africanas ao lado das europeias e atentar-se para
leituras que rasuram a fronteira entre filosofia europeia e filosofia africana. Assim como a
audição dos brasileiros Marcelo Moraes, Renato Noguera, Marcos Barreto, Henrique Cunha
Júnior, Alexandre do Nascimento e da estadunidense Drucila Cornell remete para pessoas que
convocam a travessia entre a filosofia africana e a europeia como rota para desconstruir e
descolonizar a filosofia nas Américas.
174
Encontros
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177
Portugal e a metalurgia
O ferro era facilmente encontrado em jazidas superficiais nas regiões da Serra Algarvia
– Serro do Rocio (Aljezur), Adualho (Lagos), Alagoas (Oulé) e Serros Altos (Albufeira).
Mesmo tendo a facilidade de encontrar o minério de ferro, sua produção é mais complexa do
*
Co-coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade - GEPECD.
178
que o bronze, nesse período, “... não houve um impacto na tecnologia. Não surgiram novos
tipos adequados a novas necessidades” (PEREIRA, 2008, p. 29). O desempenho e a qualidade
da fundição do ferro estavam diretamente ligados aos diferentes tipos de fornos. Existiam três
tipos: “um grupo mais primitivo, que se valia de um buraco no solo e sem separação da escória;
um segundo grupo com separação vertical da escória e com uma câmara de combustão fechada;
e, por último, um grupo com escorrimento da escória para o exterior”. (SERNEELS apud
PEREIRA, 2008, p. 29). Séculos se passaram e Portugal não conseguira se estabelecer na
produção metalúrgica do ferro. Não por falta de tentativas, mas pela falta de recursos e de uma
estrutura voltada para o seu pleno desenvolvimento. Diante do atraso português e da iniciativa
das elites esclarecidas que tinham como certo o empreendimento da indústria mineira e
metalúrgica a partir do Estado, coube então a D. Rodrigo de Sousa Coutinho o relançamento da
atividade mineira no primeiro ano do século XIX.
Em 1801, através da carta do Príncipe Regente, datada de 18 de maio, é criada a
Intendência Geral de Minas e Metais do Reino. A fim de reconduzir o ressurgimento da nação
portuguesa, o brasileiro José Bonifácio de Andrada e Silva (nascido na cidade de Santos, São
Paulo, em 1763) é nomeado Intendente Geral de Minas e Metais do Reino (GUIMARÃES,
2000, p. 53). Sua nomeação se relacionava ao fato dele ter estudado montanística – o estudo
sobre a natureza dos metais, sua extração e fusão – e docimasia – estudo que tem como objetivo
determinar a proporção dos metais contidos nos minérios. Outros dois nomes o acompanharam
nesse trabalho para o qual fora designado: Joaquim Pedro Fragoso de Sequeira e Manuel
Ferreira da Câmara. Nos dez anos em que transcorreu a sua nova formação como bolsista do
Estado, na Universidade de Freyberg, Saxônia, visitaram estabelecimentos metalúrgicos na
França, Itália, Holanda, Suécia e Dinamarca (GUIMARÃES, 2000, p. 54). Após sua posse
Bonifácio redigiu o Regimento das Minas e Metais do Reino. Este documento lhe dava
competências jurisdicionais, policiais, civis e criminais em tudo o que dissesse respeito à
concessão, registro, administração e política das minas, fundições e bosques portugueses.
No início do século XIX, também os alemães Eschwege e Varnhagen, Guilherme
Feldner e João Martinho Stieffel, foram contratados a fim de reestruturar e aumentar a produção
de ferro e melhorar sua qualidade. Eschwege era formado em Filosofia, Matemática e Ciências
Montanísticas pela Universidade de Freyberg e tinha ano e meio de experiência prática na
construção de fornos. Varnhagen era um jovem de 18 anos que acabara os estudos químicos e
montanísticos. Stieffel era um antigo proprietário de uma fábrica de ferro que falira. Feldner
era topógrafo e desenhista (op. cit., p. 59). Antes da chegada dos técnicos citados, José
Bonifácio iniciou os trabalhos para abertura das minas de ferro de Milhariça e de Água d’Alta;
179
promoveu a abertura de pedreiras, com produção voltada para as construções dos fornos;
reativou duas forjas de ferreiro no Engenho da Foz d’Alge, a fim de fabricarem o ferro
necessário para pontes, rodas, foles; e, por fim, reergueu as minas de carvão que se encontravam
desativadas. (BARROS, 1989, p. 18)
Assim que chegaram, os técnicos alemães seguiram para Foz do Alge. O Intendente
Geral imediatamente designou a direção dos fornos a Eschwege; à Varnhagen, a organização
do refino; à Stieffel, a organização das forjas; e a Guilherme Feldner, as minas de carvão de
São Pedro. (BARROS, 1989, p. 19)
Eschwege, ao chegar às ferrarias de Porto Alegre e Trás-os-Montes, observa:
[...] O método ordinário das fundições que usavam era em forninhos pequenos que
eles de um modo mais simples que podia ser, arranjavam, destes forninhos ao pé da
aldeia da Foz do Alge, assim como ainda hoje usam os pretos na África e de que é
filho melhorado o método atual das Fundições da Biscaia. (ESCHWEGE apud
GUIMARÃES, 2000, p. 56)
A avaliação dos técnicos alemães sobre essas primeiras fundições se mostrava negativa
e desanimadora, apesar de todos os esforços feitos por José Bonifácio. O momento político
contribuiu para o insucesso dos germânicos: D. Rodrigo de Sousa Coutinho deixa o Ministério,
dando lugar a D. Luiz de Vasconcelos e Sousa. Este, ao assumir a presidência do Real Erário,
paralisa os trabalhos, acarretando a perda do açude e de todo o carvão. D. Luiz de Vasconcelos
e Sousa se alinha à corrente fisiocrática, hegemônica em Portugal, que defendia que a riqueza
da nação, historicamente, era proveniente da terra. Nesse sentido, o trabalho das minas fugia à
tradição portuguesa, deslocando recursos que deveriam ser alocados na agricultura.
(GUIMARÃES, 2000, p. 53-62)
José Bonifácio, ainda no cargo de Intendente Geral, retomou as atividades siderúrgicas
em 1812, em uma conjuntura político-militar de contra ofensiva a presença francesa em
Portugal. Mas a experiência de implantação da metalurgia, desta vez, não pôde contar com a
maioria dos técnicos alemães, que haviam seguido a Corte para a nova sede do Império nos
trópicos. Apesar de todo empenho nas orientações aos que ali trabalhavam, não foi possível
obter uma produção satisfatória. Aliado ao fator técnico existia também, contra as intenções de
Bonifácio, uma divergência política com a direção da Real Fábrica de Sedas e Águas Livres de
Lisboa, fornecedoras necessárias à Fábrica e à Intendência, que, seguindo a linha fisiocrática já
citada, resistiam ao empreendimento da metalurgia.
Insatisfeito, José Bonifácio licenciou-se em 1819 do seu cargo à frente da Intendência
Geral das Minas e Metais do Reino, retornando em seguida ao Brasil. Assumiu interinamente
180
Para a África oriental e austral, M’Bokolo (2009) relata uma grande quantidade de
materiais associados à metalurgia do ferro. Em Uganda, há um registro arqueológico da
ocorrência de um grande desmatamento, por volta de 500 a. C., possivelmente para obtenção
182
expansão pode ser entendida como um processo de colonização (SUTTON apud SILVA, 2011,
p. 226) que foi concluído ao longo de aproximadamente 2000 anos. Registre-se, no entanto, que
um terço da África oriental, constituído pelos antigos povos cuxitas, resistiu à colonização –
apesar da constatação da existência de interação econômica e cultural, incluindo miscigenação
e assimilação de ambas as partes.
Dentre as “mitologias dos metais”, a mais rica e mais característica foi elaborada em
torno do ferro (ELIADE, 2010, p. 60).
Talvez esse fascínio esteja diretamente ligado às populações que aprenderam a
manusear o ferro meteórico antes de utilizarem os minérios ferrosos encontrados na superfície.
Segundo Eliade, o vocábulo mais antigo aplicado ao ferro era escrito com os sinais “Céu” e
“Fogo” e traduzido por “metal celeste” ou “metal-estrela”. Além do ferro negro do Céu não ser
encontrado com facilidade, sua origem estelar gerou mitos nesse sentido e motivou sua
utilização em diversos rituais. (op. cit., p. 61).
A partir do momento em que foi desvendado o segredo da fundição da magnetita e da
hematita, associada à descoberta dos fornos e da técnica de “endurecimento” do metal,
favoreceu-se ao emprego cotidiano de ferramentas desse metal e enalteceu-se ainda mais sua
sacralidade. (op. cit., p. 62).
A respeito da sacralidade, Eliade esclarece:
[...] Carregados dessa sacralidade tenebrosa, os minérios são enviados aos fornos. É
então que tem início a operação mais difícil e mais temerária. O artesão substitui a
terra-mãe para acelerar e completar o “crescimento”. Os fornos são de alguma forma
uma nova matriz, artificial, onde o minério conclui sua gestação. Daí o número
infinito de precauções, tabus e rituais que acompanham a fundição. (ELIADE, 2010,
p. 62-63).
Além desse universo que envolve a magia e o domínio do fogo e as relações com a
mãe Terra, encontramos ainda o sexualismo do mundo mineral. Mircea Eliade apresenta alguns
destes conceitos existentes entre os ferreiros africanos. Entre os Ewes o ferreiro e as ferramentas
da forja ocupam um lugar de importância considerável na vida religiosa. Supõe-se que o martelo
e a bigorna caíram do Céu e é perante eles onde se faz juramento; o ferreiro é o fazedor de
chuva e pode conduzir uma guerra à feliz término. Para os Yorubas foi “Ogum”, o Primeiro
Ferreiro, quem forjou as primeiras armas, ensinou a caçar aos homens e fundou a sociedade
secreta de “Ogboni”. (op. cit., p.74)
Hampaté Bâ (1997) explica-nos que as tradições africanas têm uma visão religiosa do
mundo. O universo invisível é vivo e constituído de forças em movimento infinito. Porém, no
184
Ainda sobre os ferreiros, Hampaté Bâ nos informa que o ferreiro tradicional só pode
entrar na forja após um banho ritual de purificação preparado com o cozimento de certas folhas,
cascas ou raízes de arvores, escolhidas em função do dia. Em seguida, o ferreiro se veste de
modo especial, uma vez que não pode entrar na forja vestido com roupa comum.
Todos os dias pela manhã, o ferreiro purifica a forja com defumações especiais feitas
com plantas que ele conhece. Terminadas essas operações, lavado de todos os contatos com o
exterior, o ferreiro encontra-se em estado sacramental. Voltou a ser puro e assemelha-se agora
ao ferreiro primordial. Só então, à semelhança de Maa Ngala, pode ele “criar”, modificando e
moldando a matéria.
A seguir veremos como esses ferreiros foram importantes para a mineração e a
metalurgia do ferro no Brasil Colônia.
185
Sabemos que a Diáspora africana para as Américas trouxe nos “navios tumbeiros” uma
quantidade de pessoas que compunham várias sociedades e grupos étnicos. Dentro deste
universo vieram os ferreiros. Esses tiveram uma participação muito significativa no
desenvolvimento da produção agrícola e mineração no Brasil Colônia.
Mesmo após uma travessia desumana através do Atlântico Sul, homens, mulheres e
crianças que aportaram e sobreviveram em terra firme mostraram-se capazes de conservar seu
patrimônio cultural. As voltas em torno da “árvore do esquecimento” (QUEIROZ, 2012, p. 35)
não foram suficientes a ponto de apagarem o patrimônio cultural e técnico adquiridos nas
sociedades a que pertenciam.
O tráfico de seres humanos iniciado no século XVI, e que viria terminar no século
XIX. No século XVIII apresentou-se, por parte dos proprietários de lavras mineiros preferência
por africanos possuidores da técnica metalúrgica do ferro. Esta opção possibilitou a fabricação
de ferramentas agrícolas, utensílios domésticos e dos instrumentos para mineração. (PENA,
2004, p.1)
Sobre a captura de ferreiros, Eduardo Spiller nos conta:
forno, geralmente o barro era retirado dos cupinzeiros. Os homens cuidavam das madeiras e
galhos usados como suporte. Os tamanhos dos fornos dependiam da quantidade a ser utilizada
e da qualidade do minério a ser fundido. Por exemplo, os arenitos com baixo teor de ferro era
preciso fornos maiores para alcançar a quantidade de metal desejada. Outro fator importante
que definia a quantidade de metal a ser produzido era vinculado ao período de seca, considerada
a melhor época para a fundição, pois, madeira e minério molhados reduzem a eficiência dos
combustíveis e fornos. (PENA, 2004, p. 3-4).
D. João VI e sua corte chegaram ao Brasil em 1808. Eram esperadas e de fato
ocorreram novas medidas em prol da indústria siderúrgica. Nas palavras de Francisco de Assis
Barbosa (2010), é dele o grande impulso visando à implementação da siderurgia no Brasil. O
principal motivo era o interesse de ordem militar na defesa do imenso território. Nesse sentido,
todos os técnicos metalurgistas empregados no serviço da Coroa eram militares, com a exceção
de Manuel Ferreira da Câmara e José Bonifácio – por sinal, os únicos brasileiros. Os demais
eram Eschwege e Varnhagen, ambos alemães. Eschwege foi para Minas Gerais e Varnhagen
para São Paulo. (BARBOSA, 2010, p. 37)
Nesse novo contexto, no Rio de Janeiro as fundições das primeiras décadas do século
XIX estavam direcionadas à produção de pás, enxadas, enxós e peças para engenhos.
(MOMESSO, 2007, p. 31)
Em 1846, o industrial Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, comprou a
fundição de ferro localizada em Ponta d’Areia – Niterói. O estabelecimento contava com 28
escravos e com poucas máquinas, com a fundição de ferro sendo realizada sob um telheiro. A
fundição de Ponta d’Areia se constituiu, nessa época, no maior empreendimento industrial da
América Latina, combinando trabalho escravo com trabalho assalariado e diversidade de
procedência quanto à nacionalidade dos trabalhadores, como podemos constatar no quadro
acima (op. cit., p. 119).
A fundição de Alexandre Davidson, em 1850, no Rio de Janeiro empregava 13
estrangeiros e 22 escravos. Dentre estes últimos, havia 6 fundidores de ferro e 6 ferreiros. Os
trabalhadores escravizados possuíam especialização e desempenhavam as mesmas funções que
os trabalhadores europeus. (op. cit., p. 100)
Na opinião de Francisco Barbosa (2010), a morte prematura do ministro D. Rodrigo
foi lamentável pelo fato de, após tanto empenho, não pôde presenciar o resultado de suas
esperanças: o ferro líquido sendo produzido pela primeira vez neste país, em 1812, na Fábrica
Patriótica, em Congonhas do Campo, sob a direção do Barão de Eschwege. Há a notícia também
de que o povo de Sorocaba conduziu em procissão, em 1818, as três cruzes de ferro fundido
187
pelo Coronel Varnhagen na Real Fábrica de São João do Ipanema. A Fábrica do Morro de
Gaspar Soares, do Intendente Câmara, chegou a produzir, no ano de 1820, novecentas e vinte
arrobas e meia de ferro. Dentre seus feitos, durante a permanência de Dom João VI no Brasil,
destaca-se, em 1817, a vinda do engenheiro francês João Antônio de Monlevade, iniciando uma
extraordinária obra, que fez com que recebesse, décadas depois, a alcunha de patriarca da
siderurgia.
Sobre a Real Fábrica de São João do Ipanema, Barros apresenta o seguinte relato de
Pandiá Calógeras:
empregavam o método de cadinhos – técnica africana para produzir ferro; 2 usavam fornos
catalães (BARROS, 1989, p. 56).
Quanto à produção de ferro mineira o Barão Eschwege (2011), discorrendo a respeito
de sua experiência, ressalta a primazia de ter sido fabricado ferro na localidade de Antônio
Pereira, ao cativo pertencente ao Capitão-mor Antônio Alves, e no povoado de Inficionado, por
outro escravo de propriedade do Capitão Durães. A partir desse momento, lavradores e ferreiros
passaram a produzir ferro em quantidade necessária para atender seu consumo. O Barão
justifica tal atitude devido ao impedimento legal de fabricar ferro industrialmente antes da
chegada da Família Real. Outra questão foi a falta de conhecimento do processo de produzir
ferro em grande escala.
A maioria dos ferreiros e grandes fazendeiros que possuíam ferraria segue Von
Eschwege, ou seja, cada um tinha também o seu “forninho de fundição”. Estes eram sempre
diferentes um do outro, pois cada proprietário, na construção, seguia um projeto próprio,
baseado em suas próprias ideias. (ESCHWEGE, 2011, p. 603)
É impossível precisar quando surgiram as primeiras fundições em Minas. No entanto,
é possível afirmar a primeira fabricação de ferro no Brasil é proveniente dos conhecimentos
metalúrgicos africanos introduzidos no período colonial oriundo da Diáspora. A mineração do
ouro nas Minas Gerais foi preponderante para o estabelecimento de fundições e ferrarias, assim
como as grandes fazendas. A confecção das ferramentas que inicialmente eram produzidas com
ferro importado passou a utilizar o ferro local. Essa produção doméstica era realizada com todo
o cuidado, pois sua produção era oficialmente proibida. Aos poucos, esta fabricação caseira do
ferro foi disseminando-se por toda a região aurífera. Surgiram, então, os fornos de cadinhos,
construídos conforme a técnica africana. Essa incipiente indústria siderúrgica que nascera e
cresceu nas sombras do Alvará de 1785 se fazia vital para a economia mineradora. (BARROS,
1989, p. 41).
A indústria siderúrgica brasileira teve em Minas o seu alicerce, como atestam os
depoimentos de Eschwege. Monlevade e de outros metalurgistas e estudiosos a respeito das
condições naturais que beneficiavam a produção de ferro. Entretanto, a evolução da indústria
siderúrgica mineira ao longo do século XIX, como procurei apresentar em diversos momentos
deste trabalho, está vinculada à mescla da mão de obra cativa e seu conhecimento técnico ao
surgimento de inovações trazidas pelos europeus. Contribuiu também nesse sentido o
isolamento geográfico da província mineira, que concorria para o encarecimento das peças
necessárias à exploração aurífera e produção agrícola. Diante desse quadro, o trabalhador cativo
desempenhava importante papel, devido à quantidade necessária de braços de que dependia a
189
manufatura do trabalho artesanal. Claro que não podemos esquecer que o sistema escravista
vigente determinava que todo o trabalho pesado fosse executado por cativo. Porém, como
mencionados anteriormente, vários estabelecimentos empregaram os escravizados em funções
que exigiam especialização. As fundições de Monlevade e de Eschwege foram testemunhas
desse processo, assim como a Fundição Ipanema. (LIBBY, 1988, p. 135).
As forjas espalhadas pelo interior mineiro nos dão a prova necessária para atestar o
quanto era disseminada essa prática. Em 1831 havia um total de 24 forjas em vários distritos
da região metalúrgica da Serra da Mantiqueira e em 22 dessas forjas os trabalhadores estavam
registrados e se constituíam de cativos. O total de 24 forjas contava com 168 escravos e 70
trabalhadores livres. (op. cit., p. 165).
Apesar da vontade e das ações tomadas por D. João VI com o intuito de desenvolver
a siderurgia no Brasil, através da vinda dos engenheiros europeus já mencionados, que
trabalharam em Minas e em São Paulo, assim como, no final do Império, com a criação da
Escola Politécnica do Rio de Janeiro e a fundação da Escola de Minas de Ouro Preto, podemos
afirmar que durante todo o Século XIX permaneceu a exclusividade, da mão de obra cativa e
de libertos, acompanhado da hegemonia, enquanto técnica utilizada na fundição, das forjas de
cadinho. (BARROS,1989, p. 55).
Considerações finais
Referências
ANDAH, B.W. A África ocidental antes do século VII. In: História geral da África II: África
antiga. Brasília: UNESCO, 2010.
BARBOSA, Francisco de Assis. Dom João VI e a siderurgia no Brasil. Brasília: Batel, 2010.
BARROS, Geraldo Mendes. História da siderurgia no Brasil: século XIX. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1989.
BRITTO, Maura Silveira Gonçalves. Artes do ferro entre escravos e libertos: as práticas e a
aprendizagem – Minas Gerais, século XIX. [s.d]. Disponível em
www.ifcs.ufrj.br/arshistoria/doc/arshistoria. Acesso: 10 Jan. 2011.
CANDAU, Vera Maria. (Org). Interculturalizar, descolonizar: uma educação “outra”? Rio de
Janeiro: Rio Letras, 2016.
ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas: da Idade da Pedra aos mistérios
de Elêusis. Volume I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
___. Ferreiros e Alquimistas. Alianza Editorial, 1983. Disponível em: http://groups-
beta.google.com/group/digitalsource. Acesso em: 10 Abr. 2013.
ESCHWEGE, W. Ludwig von. Pluto brasiliensis. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2011.
NOTEN, F. Van. A África Central. In: História geral da África II: África antiga. Brasília:
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PENA, Eduardo Spiller. Notas sobre a historiografia da arte do ferro nas Áfricas Central e
Oriental. In: XVII Encontro Regional de História: O lugar da História. ANPUH/SP. Campinas:
Campinas, 6 a 10 de Setembro de 2004. Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
191
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER,
Edgardo (Org). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciências sociales. Perspectivas
latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005, p.201-246.
SUTTON, J.E.G. A África oriental antes do século VII. In: História geral da África II: África
antiga. Brasília: UNESCO, 2010.
***
1
Disponível em https://enriquedussel.com/txt/Textos_200_Obras/Filosofia_liberacion/Discurso_colonialismo-
Aime_Cesaire.pdf Acesso: nov.20.
196
exótico, transfigura-se em selvagem, este que revela uma “carência absoluta” da Lei, e que,
portanto, necessitaria da evangelização, por um lado, e, por outro, liberaria o europeu para o
saque:
Essa questão, proposta à Césaire –– Colonização e Civilização ––, que resultou em seu
Discurso, assume, como resposta, a forma de um libelo. Com fina ironia e aguda consciência política,
Césaire, valendo-se do que, mesmo antes do pós-guerra, já havia sido suficientemente publicizado ( as
decapitações no Vietnam, os estupros nas colônias francesas, as mutilações em Leopoldville...), sem
rodeios, aponta o que subjaz nas argumentações eurocêntricas, tanto nas implícitas, as intelectualizadas,
por um lado, tais como as da análise psicanalítica de Octave Mannoni, sobre o “complexo do
colonizado” (Psychologie de la colonisation, de 1950), contra a qual Fanon dedica um capítulo inteiro
em Pele negra, máscaras brancas, demonstrando o equívoco conceitual, posto que eurocêntrico, desse
complexo; quanto nas explícitas, como em La Réforme intellectuelle et morale (1871), de Ernst Renan,
na qual estabelece a hierarquia biologizante das raças, em que o homem europeu exerceria sua vocação:
ser uma “raça de amos e soldados” (p. 24). São argumentações fundadas na ideia de raça.
Se o século XIX se biologiza, a raça é o pressuposto através do qual se organizam novas formas
de exercício do poder. O que leva Césaire, com perspicácia, a perceber o nazi-fascismo, se nos
permitirmos um neologismo, como um autocolonialismo da Europa. Neste sentido, são as práticas
racistas permitidas na Colônia, porém, dessa vez, aplicadas no continente europeu.
Essa percepção de Césaire é importante, e precisamos ouvi-lo:
[...] se está produzindo uma regressão universal, se está instalando uma gangrena,
se está estendendo um foco infeccioso, e que depois [...] deste orgulho racial
estimulado, dessa jactância desfraldada, o que encontramos é o veneno instilado
nas veias da Europa e o progresso lento, porém seguro, do enselvajamento do
continente. [...] fechamos os olhos diante dele [o nazismo], o legitimamos, porque
até então só se havia aplicado aos povos não europeus (p. 20-21).
pressupõe, assim, o que Mbembe, em seu conceito de necropolítica2, estabelece para o estatuto da
Colônia: “[...] a colônia representa o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício
de um poder à margem da lei” (p. 32, 2018). Território de uma guerra sem fim.
A ideia de Europa se torna possível quando se funda na ideia de raça. Ou, sob outra perspectiva
mais precisa, se assenta sobre o tripé: eurocentrismo-racismo-colonialismo, como elementos que
convergem entre si, indissociáveis. Há, porém, outra perspectiva não menos convergente, correlata
àquela: capitalismo-branquitude-violência.
Se há uma guerra sem fim neste território, a violência que nele perdura não se restringe à
enunciação simbólica legal de que trata o Direito. Na colônia, a violência é, em grande parte, sem a
mediação que configura toda criação simbólica, todo exercício pelo qual a linguagem cria mundos
possíveis ou que ensina a resistir à toda fragmentação letal. O que nos leva à compreensão de que a
estrutura a perpassar aquelas duas perspectivas correlatas, tem a seguinte dinâmica que lhe é peculiar:
anular, no sentido de desprover o outro de sua humanidade, isto é, de tentar eliminar a possibilidade de
que o colonizado legitime sua humanidade, silenciando a criação e expressividade de sua linguagem
simbólica. O colonizado não poderia ser fala. (Porém, o que dizer do horror colonial simbolizado
oniricamente nos terríveis pesadelos do malgaxe?)
Como nos diz Fanon: “Há na Weltanschauung [visão-de-mundo] de um povo colonizado, uma
impureza, uma tara que proíbe qualquer explicação ontológica”3 (p. 103, 2008). Desse silêncio emerge
o corpo do colonizado como não-ser, coisa-entre-coisas, objeto entre objetos (Fanon). Sem história, sem
memória. A intenção colonial se expressa na necropolítica e no epistemicídio.
***
Como dissemos, Discurso sobre o colonialismo foi escrito no pós-guerra, momento
em que a consciência política da infâmia que representava o colonialismo e as consequentes
revoluções anticoloniais se exacerbava. É, portanto, um clássico, uma vez que a ideia de raça
ainda é o que sustenta todas as outras formas de violência. Presenciamos contemporaneamente
o retorno da violência do colonialismo recalcado, nas figuras recorrentes do neo-colonialismo
e do neo-liberalismo.
Talvez, algum dia, caminhando por alguma avenida ou descontraído em alguma praça,
alguém lance a pergunta sobre a origem daquele herói erguido à nossa frente. Quem sabe, a
depender da resposta dada, possamos derrubá-lo de seu pedestal. Afinal, como na 7ª tese sobre
2
MBEMBE, A. Necropolítica. Trad. Renata Santini. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
3
FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
198
Iniciando a leitura
Tenho duas manias diante de um texto. Antes de começar a lê-lo, vou à última página
e leio o último parágrafo do texto/livro e, a outra: tento o tempo todo associar a leitura ao título
da obra. Não foi diferente com Pode o subalterno falar?
Ler o último parágrafo lançou um desafio: quais razões levaram a autora a pensar
assim?
Encontrar o caminho para formar minha opinião (ou resposta) sem a influência prévia
da reposta da autora para a pergunta/título, foi, no mínimo, penoso.
A leitura de “Pode o subalterno falar?” não foi fácil, por ter me deparado com uma
gama de referências, reflexões, proposições enviesadas, oblíquas ao tema.
Dificuldades constatadas e assumidas diante do desconhecimento da obra e da
erudição acadêmica da autora, Gayatri Chakravorty Spivak.49 O texto exige uma leitura atenta
e, como todo texto desafiador, joga-nos (e quase nos força) a uma partilha humilde e despojada.
Partilha com dicionários, com pessoas, com pesquisas às fontes, o que torna a leitura mais lenta
do que normalmente faço.
Ter alguns rudimentos de conceitos filosóficos e epistemológicos da tradição moderna
ocidental (em particular, da modernidade, do marxismo, do estruturalismo e do pós-
estruturalismo) é uma provocação, quase condição que o texto traz. Estudá-lo é preciso.
49
Gayatiri Chakravorty Spivak, 1942, Calcutá, Índia. Doutoramento nos EUA em Literatura Comparada. Ligada
à Teoria Desconstrutivista, em 1988 editou “Estudos Subalternos”. Tradutora de Derrida. Marxista pós-
estruturalista.
200
Depois de escrever sobre o texto, bate em mim a vontade, a necessidade de voltar a ele
para proceder várias releituras, re-visões, conversas e reflexões solitárias e coletivas. Será o
subalterno querendo se capacitar para falar melhor?
Então, o iniciante foi iniciado.
A imersão no texto
Algumas das críticas mais radicais produzidas pelo Ocidente hoje são o resultado de
um desejo interessado em manter o sujeito do Ocidente, ou o Ocidente como Sujeito.
A teoria dos "sujeitos-efeitos" pluralizados dá a ilusão de um abalo na soberania
subjetiva, quando, muitas vezes, proporciona apenas uma camuflagem para esse
sujeito do conhecimento. Embora a história da Europa como Sujeito seja narrada
pela lei, pela economia política e pela ideologia do Ocidente, esse Sujeito oculto
alega não ter "nenhuma determinação geopolítica". Assim, a tão difundida crítica ao
sujeito soberano realmente inaugura um Sujeito. (SPIVAK, 2014, p. 25).
direta de suas bases e conceitos, pode nos colocar numa situação de reprodução dos princípios
de hierarquização imperialista: o sujeito ocidental falando para outros sujeitos. O sujeito
Ocidente, numa postura verticalizada, criando (e subordinando) o Outro sujeito.
É dentro desse quadro analítico que o texto nos traz a crítica da autora ao pós-
estruturalismo e encaminha sua pergunta fulcral: dentro dessa proposição ideológica, usando
esse arsenal conceitual, pode o subalterno falar?
A citação a seguir, continuação textual da citação anterior, nos apresenta a reflexão
profunda e dura ao conjunto que chamamos aqui de pós-estruturalismo. Spivak nos convida
pensar com ela:
A longa citação faz-se necessária por conter elementos fundamentais para perceber a
forma aguda e direta da crítica ‘spivakiana’: ela localiza o/s sujeito/s, o tempo e o marco teórico
que ela quer alcançar e abordar. Pontua também a contradição que os pensadores carregam: ao
mesmo tempo em que reconhecem a gênese do pensamento que representavam (na
heterogeneidade constante nas redes de poder/desejo/interesses) e o que efetivamente defendem
(reconhecimento e autonomia do discurso do Outro como sujeito e a crítica ao sujeito soberano),
porém, não enxergam “ou ignoram sistematicamente a questão da ideologia” e seu próprio
envolvimento na história intelectual e econômica.
Ignorar a questão da ideologia, nos/dos processos intelectual e econômico, pode nos
levar a negligenciar as duras consequências para a classe trabalhadora, trazidas pelas relações
sociais concretas vividas e impostas pela divisão internacional do trabalho, estabelecidas pelo
modelo capitalista.
Esse ‘ignorar’, segundo a autora, é um “gesto que frequentemente marca a teoria
política pós-estruturalista” (SPIVAK, 2014, p. 28). Um pouco adiante, no texto, a autora nos
202
provoca: “Por que tais oclusões deveriam ser aprovadas precisamente por aqueles intelectuais
que são nossos melhores profetas da heterogeneidade e do Outro?” (SPIVAK, 2014, p. 29).
Ao abordar questões sensíveis e que se tangenciam como ideologia, relações do mundo
do trabalho e relações de poder, o texto vai se aproximando das questões relacionadas com as
representações
Tanto no aspecto da representação propriamente dita, ou seja, a voz, as angústias e
sonhos de muitas pessoas sendo apresentados e representados por outra/s que não aquelas que
imediatamente experienciam tais desejos, quanto no sentido da representação (ou significado
social).
Se no primeiro aspecto a representação coloca em risco as genuínas demandas das
classes representadas, no segundo caso, o aspecto ideológico se apresenta categórico, uma vez
que, o que vai ser representado e reproduzido como legítimo, serão as representações, valores
sociais e subjetividades daqueles que estão no papel de representantes, muitas vezes da classe
dominante, ou que compõem a ideologia dessa classe.
Neste momento, a autora lamenta a pouca dedicação de Michael Foucault à questão da
ideologia e não localizar em nomes como Marx e Freud “divisores de águas de um fluxo
contínuo da história intelectual.”
Desconsiderar a ideologia como fator importante e marcante pode levar a
interpretações distorcidas a respeito das diferenças e da constituição dos grupos sociais. Assim,
ao negar o papel da ideologia dominante, podemos ser conduzidos a uma leitura de que entre
explorados e exploradores está apenas quem controla o poder, deixando de lado as
possibilidades de desejos, significados, valores e reconhecimento.
Em outras palavras, não conhecer o papel da ideologia pode nos levar a crer que as
classes sociais são dois blocos, dois maciços em lados diferentes sem interlocução ou relações.
Se são dois blocos, podemos argumentar que são espelhamentos iguais, mas diferentes. Essa
leitura embaça ou esconde o poder e a persuasão que a classe dominante exerce, justamente por
dominar a indução das representações.
É por isso que dentro da classe dominada são recrutados os elementos que vão agir
como repressores a serviço da classe dominante. A força da ideologia vai buscar acomodar as
formas de reprodução do lucro e a reprodução da lógica do sistema.
No jogo ideológico, existe a captura de elementos da classe dominada, mas não de toda
a classe dominada. Portanto, a ideia de homogeneidade, de bloco monolítico dos subalternos, o
que poderia lhes garantir uma condição de autonomia e poder, perde força.
203
Nesse contexto, onde filósofos dão pouca importância à força da ideologia, Spivak
comenta que tais filósofos sequer aventam a possibilidade da “contradição constitutiva”. Quer
dizer, na constituição do grupo de subalternos, a diversidade é uma marca. Uma questão aqui é
apresentada: ao deixar de lado a questão da ideologia estaríamos considerando a aplicação do
sistema de exploração e controle social, como um processo equivalente em toda parte? Ou seja,
as condições de vida e sobrevivência, de experiências e lutas seriam as mesmas em toda parte?
Pois, se a as tensões ideológicas (que nos ajudam a entender as relações de dominação e
controle) não são relevantes nas relações sociais, é de se considerar que a classe trabalhadora é
um grande bloco uno, homogêneo.
Outra reflexão dentro da perspectiva de estar ao largo da ideológica, é: se todos os
trabalhadores sofrem igualmente os desassossegos da exploração capitalista, independente de
lugar social ou geográfico, estariam em situação de similaridade à da massa de trabalhadores e
intelectuais? Admitir tal equivalência leva de fato, em consideração, as condições de vida e de
produção das populações em diferentes pontos do mundo? Estariam todas as pessoas da classe
trabalhadora nas mesmas condições de produção, representação, de ação e de voz?
Esta opção pelo afastamento da relevância da ideologia, pode nos colocar na oposição
à luta dos subordinados na construção de uma proposta de libertação. Sem uma proposta de
contra-argumentação, sem um escopo teórico que nos oriente na luta pelo poder. Em outras
palavras, sem a percepção de uma ideologia que age nos controlando, como propor a ruptura e
um mundo novo? A relevância do reconhecimento de uma ideologia dominante, nos termos
marxianos, pode nos levar a estruturar um ideário que vá ao sentido contrário: rompendo com
o espelhamento, superando a dicotomia do certo e do errado o maniqueísmo de bom e mal.
O reconhecimento de uma ideologia burguesa, ao mesmo tempo em que nos identifica
como sujeitos pertencentes à uma classe social específica, pode nos oportunizar, como
consequência, à contra hegemonia.
Esse sujeito diferente e que pertence a uma classe específica com características
próprias, em Spivak é heterogêneo, diverso e está em construção. Esta incompletude não é só
no aspecto cultural e está num contexto capitalista de divisão internacional do trabalho (DIT).
Tal diversidade não deveria estar só na voz do intelectual, mas ser a ‘alma’ do subalterno, ser
sua força e também sua voz.
A reflexão sobre a apresentação e representação dos sujeitos terceiro-mundistas, tem
sido feita a partir de epistemologia hegemonizada a partir da Europa ocidental. Assim, por
exemplo, a ideia de trabalho/trabalhador, que no mundo europeu tem uma composição, tem
uma história que é diferente da história e da composição dos outros lugares do mundo.
204
Nem Deleuze nem Foucault parecem estar cientes de que o intelectual, inserido no
contexto do capital socializado e alardeando a experiência concreta, pode ajudar a
consolidar a divisão internacional do trabalho. (SPIVAK, 2014, p. 37)
Ainda na crítica aos autores pós-coloniais, ressalta que não refletiram sobre as ações e
possibilidades e os desafios das ações contra hegemônicas. A eurocentralidade do pensamento
pós-colonial reforçou uma visão de representação baseada na tradição. Aqui, Spivak recorre às
ideias e aos escritos de Marx para argumentar sua percepção de sujeito pertencente a uma classe
social e como uma classe social se reconhece e se forma, ela retoma a questão da representação
(“falar por”) e da re-presentação, (como uma atitude estética, encenada).
A representação baseada na tradição europeia traz problemas individual e
coletivamente para o sujeito subalterno no mundo capitalista. Ser representado não dá conta de
questões cruciais como: produção, controle e vocalização das ideias, organização e defesa das
ideais específicas do sujeito subalterno. Por exemplo, este indivíduo representado tem sua
condição de sujeito ativo, dificultada uma vez a seu representante, num sistema de
representações e encenações. A probabilidade de apagar o original pertencimento da classe
daquele que representa causa a possibilidade de diminuição da ruptura.
Questões relacionadas à racialidade, sexualidade, pertencimento e consciência de
classe, percepção histórica e social do processo de construção das condições de subalternidade
(impostas pela colonização e pela DIT) não têm o mesmo peso quando representadas do que
quando defendidas pelos próprios ‘sofredores’. Isso porque as texturas micrológicas vão formar
o sujeito e vão também, formar as relações e as texturas macrológicas nas situações concretas
da sociedade e da história.
Ainda no campo da representação, o texto aponta uma questão relevante: a ação dos
intelectuais na divulgação e interpretação do pensamento produzido pelos subalternos. Nesse
sentido, a autora levanta a abordagem de Pierre Macherey a respeito dos silêncios:
O que é importante em um trabalho é o que ele não diz. Não é o mesmo que a
observação descuidada de que é "o que se recusa a dizer", embora isso seja, por si
só, interessante: um método pode ser construído sobre isso, com a tarefa de medir os
silêncios, sejam esses reconhecidos ou não. Mas, mais do que isso, o que o trabalho
não pode dizer é importante, pois aí a elaboração da declaração é executada em um
tipo de jornada ao silêncio. (p. 81).
Não é surpreendente que alguns membros dos grupos dominantes nativos nos países
compradores, membros da burguesia local, sintam-se atraídos pela linguagem da
política de aliança. (p. 89)
Como mostrou Sarah Kofman, a profunda ambiguidade do uso que Freud faz das
mulheres como um bode expiatório é uma reação-formação de um desejo inicial e
contínuo de dar voz à histérica, de transformá-la em um sujeito da histeria. A
formação ideológica masculino-imperialista, que moldou esse desejo como a
"sedução da filha", faz parte da mesma formação que constrói a categoria monolítica
da "mulher do Terceiro Mundo". (p. 118).
Uma questão é posta: quantas vezes uma epistemologia exógena, eurocentrada foi e é
usada por intelectuais pós-colonialistas para explicar e ensinar como são e como devem agir os
subalternos?
209
George Luiz de Abreu Vidipó – Licenciado em História pelo Centro Universitário Augusto
Motta. Especialista em Ensino de História e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ - Campus São Gonçalo).
Mestre em História pela Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO). Docente de História
da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Co-coordenador do Grupo de Estudos
e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade - GEPECD.
214
Luiz Fernandes de Oliveira – Graduado em Sociologia na Università degli studi di Roma Ter,
Itália. Especialista em História da África e dos Negros no Brasil (UCAM). Mestre em Ciências
Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Educação Brasileira
pela PUC-Rio. Professor Associado II do Departamento de Educação do Campo, Movimentos
Sociais e Diversidade, do Curso de Licenciatura em Educação do Campo do Instituto de
Educação e professor do PPGEDUC - Programa de Pós-Graduação em Educação, "Contextos
Contemporâneos e Demandas Populares" da UFRRJ. Membro do Grupo de Pesquisa em
Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturas (GPMC). Militante do Instituto Búzios e
Ogâ do Ilê Axé Iyá Nassô Oká - Ilê Oxum.
Márcia Guerra Pereira – Licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Mestra em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora pelo
Programa de Pós-graduação em Educação, História, Política e Sociedade da PUC-SP. Docente
de História do Instituto Federal do Rio de Janeiro - Campus Rio de Janeiro e da Especialização
em Histórias e Culturas Africanas e Afro-Brasileiras do IFRJ – Campus São Gonçalo. Membro
do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade - GEPECD.
Maria Eugênia Brêttas Veiga – Licenciada em Artes pelo Instituto Metodista Bennett.
Graduada em Arteterapia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Graduada no Curso
Básico de Atores pela UFF. Licenciada em Letras pela Faculdade de Filosofia de Itaperuna.
Bacharel em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Hélio Alonso (FACHA). Mestra pelo
Programa de Doutorado e Mestrado da Universidad Del Mar (UDELMAR, Chile). Doutoranda
em Educação na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT, Portugal).
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade - GEPECD.
Ricardo Cesar Rocha da Costa – Licenciado e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade
Federal Fluminense (UFF). Especialista em História da África e do Negro no Brasil pela
Universidade Candido Mendes (UCAM). Mestre em Ciência Política pela UFF. Doutor em
Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Docente de Sociologia
do IFRJ – Campus Arraial do Cabo e docente da Pós-Graduação Lato Sensu em Ensino de
Histórias e Culturas Africanas e Afro-Brasileiras do IFRJ – Campus São Gonçalo. Co-
coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade -
GEPECD. Líder junto ao CNPq do Grupo de Pesquisa Culturas e Decolonialidade.
Roberto Carlos Costa da Silva – Licenciado em História pela Universidade Estácio de Sá.
Especialista em Ensino das Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ - Campus São Gonçalo).
Co-coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Culturas e Decolonialidade -
GEPECD.
216
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219
RELAÇÃO DE PARTICIPANTES
Data de referência: membros ativos em outubro de 2020
Nome dos Pesquisadores e Estudantes Instituição de Titulação Máxima Área de Formação Situação acadêmica
referência (Ciências Humanas) em 2020/2021
Memória imagética
[inserir a whiphala, para manter o padrão usado no livro]
222
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Cartaz-convite para encontro aberto do grupo, em 30 de março de 2019, sob o tema “Uma
leitura da obra ‘Educação como Prática da Liberdade’, de Paulo Freire”, sob a responsabilidade
do Prof. Sérgio Oliveira.
227
Convite para a Roda de Conversa “Reflexões sobre a educação em tempos de pandemia”, com
a presença do Prof. Roberto Leher (UFRJ), em 24 de abril de 2021. O encontro remoto contou
com participação aberta para convidados/as.