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Tese Direito Ao Piropo
Tese Direito Ao Piropo
Tese Direito Ao Piropo
Porto
maio 2016
Escola de Direito
Universidade Católica Portuguesa - Porto
Porto
maio 2016
"Quando se quer mudar os costumes e as maneiras,
não se deve mudá-las pelas leis."
(Montesquieu, 1748)
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 10
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CONCLUSÃO .......................................................................................................... 50
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 52
JURISPRUDÊNCIA ................................................................................................ 61
ABREVIATURAS E SIGLAS
Ac./acs. Acórdão/acórdãos
Al. Alínea
APAV Associação Portuguesa de Apoio à Vítima
APMJ Associação Portuguesa de Mulheres Juristas
AR Assembleia da República
Art./arts. Artigo/artigos
BE Bloco de Esquerda
Cap. Capítulo
CDS-PP Centro Democrático Social – Partido Popular
CE Conselho da Europa
Cf. Conferir
CI Convenção de Istambul
CP Código Penal
CRP Constituição da República Portuguesa
CS Código de Seabra
CT Código do Trabalho
CTM Classificação de Transtornos Mentais
DAR Diário da Assembleia da República
Diretiva n.º 2006/54/CE Diretiva n.º 2006/54/CE do Parlamento Europeu e
do Conselho, de 5 de julho relativa à aplicação do
princípio da igualdade de oportunidades e
igualdade de tratamento entre homens e mulheres
em domínios ligados ao emprego e à atividade
profissional
Diretiva n.º 2012/29/UE Diretiva n.º 2012/29/UE do Parlamento Europeu e
do Conselho, de 25 de outubro que estabelece
normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à
proteção das vítimas da criminalidade
DL Decreto-Lei
DL n.º 496/77 Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro
DL n.º 48/95 Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março
7
DN Diário de Notícias
Ed. Edição
EM Estado-membro
GREVIO Group of Experts on Action against Violence
against Women and Domestic Violence
L Lei
L n.º 65/98 Lei n.º 65/98, de 2 de setembro
L n.º 99/2001 Lei n.º 99/2001, de 25 de agosto
L n.º 59/2007 Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro
L n.º 83/2015 Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto que autonomiza o
crime de mutilação genital feminina, criando os
crimes de perseguição e casamento forçado e
alterando os crimes de violação, coação sexual e
importunação sexual, em cumprimento do disposto
na Convenção de Istambul
L n.º 103/2015 Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto que cria o sistema
de registo de identificação criminal de condenados
pela prática de crimes contra a autodeterminação
sexual e a liberdade sexual do menor
L n.º 129/2015 Lei n.º 129/2015, de 3 de setembro que estabelece
o regime jurídico aplicável à prevenção de
violência doméstica, à proteção e à assistência às
vítimas
L n.º 130/2015 Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro que altera o
Código de Processo Penal e aprova o Estatuto da
Vítima
L n.º 141/2015 Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro que aprova o
Regime Geral do Processo Tutelar Cível e procede
à primeira alteração da Lei n.º 103/2009, de 11 de
setembro que estabelece o regime jurídico do
apadrinhamento civil
MDEPM Manual de Diagnóstico e Estatística das
Perturbações Mentais
NU Nações Unidas
8
N.º/n.ºs Número/números
PCP Partido Comunista Português
PE Parlamento Europeu
Proc. Processo
Proposta de L 98/X Proposta de Lei 98/X, de outubro de 2006
PS Partido Socialista
PSD Partido Social Democrata
p. e p. Previsto e punido
Rec. 19 Recommendation 19 to the Convention of the
Elimination of all Forms of Discrimination Against
Women
Ss. Seguintes
STJ Supremo Tribunal de Justiça
StGB alemão Código Penal alemão
StGB austríaco Código Penal austríaco
StGB suíço Código Penal suíço
TC Tribunal Constitucional
TRC Tribunal da Relação de Coimbra
TRE Tribunal da Relação de Évora
TRG Tribunal da Relação de Guimarães
TRL Tribunal da Relação de Lisboa
TRP Tribunal da Relação do Porto
UE União Europeia
UMAR União de Mulheres Alternativa e Resposta
Vol. Volume
v.g. Verbi gratia: por exemplo
vd. Vide: veja
9
INTRODUÇÃO
Neste contexto, e tendo sempre presente o bem jurídico que se visa proteger,
começámos por apreciar a evolução legislativa dos crimes sexuais no CP Português e a
forma como as sucessivas alterações sistemáticas foram sendo jurídico-penalmente
contempladas ao longo dos tempos (Cap. I). De seguida, procedemos à análise e
caracterização de duas das três condutas ilícitas deste tipo legal de crime (atos de carácter
exibicionista e constrangimento a contacto de natureza sexual), sem deixarmos de
atender, para cada uma delas, à destrinça entre crime de dano e crime de perigo (Cap. II).
Terminaremos esta parte, depois de uma breve alusão à Convenção de Istambul,
designadamente no que concerne ao assédio sexual e suas implicações em matéria de
crime de importunação sexual, com um conjunto de considerações dedicadas à
incriminação de propostas de teor sexual, como terceira modalidade deste tipo de crime,
refletindo se o seu sentido e alcance se justificam à luz do bem jurídico tutelado (art. 18.º,
n.º2). Esta constitui a finalidade última deste trabalho, sem deixarmos de nos
comprometer com posições pessoais que melhor aprofundaremos no Cap. III.
10
Ficamos crentes, sem falsas modéstias, que também nós poderemos, por esta via,
participar na desejável mudança de mentalidades e contribuir para um acordar de
consciências na sociedade portuguesa, contrariando o Direito Penal dos Bons Costumes,
mas defendendo a liberdade e as adequadas relações socioculturais que deverão existir
entre homens e mulheres, sem desrespeito pela sua individualidade e pelo seu direito à
diferença.
11
Capítulo I – Evolução legislativa dos crimes sexuais no
Código Penal Português
Os crimes sexuais têm sido alvo, ao longo dos tempos, de um tratamento dogmático
com múltiplas variantes. Há que reconhecer, como afirma Figueiredo Dias, que
tendencialmente se operou uma “alteração das concepções comunitárias sobre a
dignidade penal dos factos contra a liberdade e autodeterminação sexual, no sentido da
sua maximização.”1
Para uma tal tendência parece ter concorrido não só a divulgação e o alarde social
provocado por situações de criminalidade sexual que, outrora, passavam despercebidas à
generalidade dos cidadãos, de que são exemplos paradigmáticos o caso “affaire Dutroux”
(na Bélgica) ou o processo “Casa Pia” (em Portugal), como igualmente a possibilidade
legítima de se poder recorrer a Organizações Comunitárias e Internacionais, tendo em
vista salvaguardar, em última instância, a proteção de grupos maioritariamente
vitimizados, tais como crianças, mulheres e idosos.
Acresce que o fundado receio de uma utilização abusiva das redes sociais (via
internet), servindo como atração para a prática de atos desta natureza, não terá deixado
de contribuir para uma maior atenção a este tipo de problemática.
De qualquer modo, importa garantir em todos os casos o necessário equilíbrio entre
a proteção efetiva das vítimas e os “exageros fundamentalistas, umas vezes a roçar a
irracionalidade, outras a demagogia.”2
Seja como for, parece-nos fundamental, antes de mais, começar por apreciar
genericamente as alterações legislativas que mais relevaram para a nossa legislação penal,
em matéria de crimes sexuais, particularmente no que ao crime de importunação sexual
respeita, objeto deste nosso trabalho.
1
FIGUEIREDO DIAS, 2012, 710.
2
FIGUEIREDO DIAS, 2012, 710 e 711.
3
Em particular no seu art. 27.º que preceituava que “a responsabilidade criminal consiste na obrigação de
reparar o dano causado na ordem moral da sociedade”, in ANTUNES, 2005, 59.
12
(contra a moralidade e os bons costumes), onde o bem jurídico supraindividual tutelado
era a moral social sexual4, e não o indivíduo, enquanto Pessoa.
O legislador preocupou-se em manter a proteção da moralidade e pudor sexuais,
como se objetiva pela individualização dos crimes de ultraje público ao pudor (art. 390.º):
“compreendiam-se as acções imorais (cópula, ação impúdica ou ação indecente)
praticadas por meio de actos, gestos ou atitudes que, não acompanhadas de violência,
ofendessem o pudor público, não sendo consensual a necessidade de uma pessoa certa e
determinada se sentir ultrajada”5, de atentado ao pudor, onde a sua ação se destinava
concretamente a uma pessoa, protegendo-se a honestidade violada em concreto, por
referência a uma vítima específica (arts. 391.º e 398.º), de estupro voluntário e de violação
(art. 392.º), de adultério (art. 401.º) e de lenocínio (arts. 215.º e 216.º).
Criticamente, Vera Raposo afirma que “em 1982 o novo Código Penal foi incapaz
de romper definitivamente com toda e qualquer ascendência moralista, não se coibindo
de prever os crimes relativos ao pudor”9 enquanto Figueiredo Dias e Costa Andrade
afirmam que se aceita “pacificamente que a liberdade e a autenticidade da expressão
sexual são os únicos bens jurídicos que o direito penal está legitimado a tutelar nesta
área.”10
4
PEREIRA, 1996, 43.
5
ALFAIATE, 2009, 26.
6
RAMOS, 1994.
7
“O abandono da denominação de crimes contra os costumes, que se mantinha no Anteprojecto de
Eduardo Correia, mas que caiu, não surtiu o efeito real do abandono do paradigma de criminalizar como
crimes sexuais as condutas que atentassem contra a moral e os bons costumes” in ALFAIATE, 2009, 31.
8
Entendida como um “padrão rígido de comportamento a nível sexual” in CUNHA, 2002, 351.
9
2003, 934.
10
1997.
13
Foi a partir desta altura que a sociedade não só começou a ver o abuso sexual de
crianças como um problema de interesse público, como também passaram a ser
criminalizados os “Atos homossexuais com Adolescentes” (art. 175.º).
11
“Agora estamos perante a protecção da liberdade sexual das pessoas e já não de um interesse da
comunidade”, in ACTAS CP, FIGUEIREDO DIAS, 1993, 246.
12
Direito constitucionalmente consagrado no n.º1 dos arts. 25.º, 26.º e 27.º da CRP.
13
CUNHA, 2003, 196 e ss.
14
CUNHA, 2002, 351.
15
Por crimes contra os costumes entendiam-se, numa perspetiva estrita, as tipificações do CP de 1886 de
ultraje público ao pudor e ultraje à moral pública e, numa visão mais ampla, “o conjunto de infracções
penais que têm em conjunto a sua estreita relação com a vida sexual e as normas morais que a regem numa
certa colectividade e em dado momento histórico” in FIGUEIREDO DIAS, 1983, 1371.
16
Isto conduziu a que os crimes sexuais se desprendessem da conformação de valores comunitários,
consagrando a regra do carácter semi-público destes crimes.
14
As primeiras duas secções tutelam a esfera sexual da pessoa e, por isso, protegem
tanto a liberdade como a autodeterminação sexual do indivíduo, deixando, assim, de
tutelar a moral ou o pudor sexual. No entanto, o que as diferencia é o facto de na primeira
essa proteção abranger todas as pessoas, sem qualquer aceção de idade, enquanto a
segunda apenas se dirige a menores de certa idade, criminalizando condutas que não
seriam crimes se praticados entre adultos (ou seriam crimes de menor gravidade). Nesta
segunda secção, pelos motivos supra aludidos, acresce ainda o bem jurídico do livre
desenvolvimento da personalidade do menor, em particular na esfera sexual.
Também, em 1995, substituiu-se o conceito de “atentado ao pudor” (art. 205.º, n.º3
do CP de 1982) pelo de “acto sexual de relevo”17, foi criado o crime de importunação
sexual, embora sob a epígrafe de “Actos Exibicionistas” que se manteve até 2007 (art.
171.º), e introduziu-se o abuso sexual de crianças.
Por sua vez, se o DL n.º 48/95 atualizou a criminalidade sexual, passando a proteger
e a autonomizar unicamente como bem jurídico a liberdade e a autodeterminação sexual,
foi com a L n.º 65/9818 que se adaptou o CP às políticas assimiladas pela UE no domínio
da luta contra a pedofilia, criminalizando-se condutas que até então não estavam previstas
no nosso ordenamento jurídico-penal.
Tais alterações legislativas não só vieram equiparar o coito oral à cópula e ao coito
anal, considerados os mais ofensivos atos sexuais de relevo, como autonomizar o crime
de assédio sexual19 (art. 163.º, n.º2 – coação sexual-assédio – e art. 164.º, n.º2 – violação-
assédio).
Por outro lado, a L n.º 99/2001 veio agravar a criminalização de atos sexuais que
envolvessem menores, designadamente no que diz respeito à atuação e utilização dos
mesmos em material pornográfico, em circuitos videográficos e em redes sociais, entre
outros. Alterou, igualmente, os artigos 169.º, 170.º, n.º2, 172.º, 176.º e 178.º da redação
dada pela lei anterior.
Também os crimes de tráfico de pessoas e de lenocínio passaram a ser mais
abrangentes, prescindindo, desde logo, da exploração, pelo agente, da situação de
abandono ou de necessidade da vítima.
17
A doutrina dominante segue uma interpretação objetivista do conceito in FIGUEIREDO DIAS, 2012,
718. Ao invés, GONÇALVES, 2007, 624 considera essencial a intenção libidinosa do agente.
18
Influenciada pelo CP Francês de 1994.
19
Entendido como forma de coação sexual fundada no abuso de autoridade resultante de uma relação de
dependência hierárquica, económica ou de trabalho.
15
Quanto ao crime de importunação sexual, este não sofreu quaisquer alterações com
as duas últimas reformas referidas.
A Revisão do CP de 2007, por força da L n.º 59/2007, foi, sem dúvida, a que
acarretou mudanças mais significativas em praticamente todos os crimes sexuais.
Desde logo, diminuiu o âmbito do conceito de ato sexual de relevo, equiparando a
penetração vaginal e anal com objetos ou partes do corpo à cópula e, desta forma,
subtraindo os atos de penetração com objetos ou partes do corpo ao regime da coação
sexual e submetendo-os a um regime mais grave, como é o da violação.
Passou a ser considerado crime a importunação sexual (art. 170.º), alterando a
epígrafe anterior e alargando o seu âmbito ao constrangimento a contacto de natureza
sexual20 (visando punir atos que não tenham a gravidade e a dignidade própria de ato
sexual de relevo) “praticado contra a vontade da vítima e na presença da mesma ou sobre
esta (que seja constrangida a presenciar ou suportar) e, em tal medida, seja
importunada”21. Consequentemente, configuraram-se “dois ilícitos diferentes: a
importunação de outra pessoa através da prática, perante ela, de actos de carácter
exibicionista, e a importunação de outra pessoa por meio de constrangimento a contacto
de natureza sexual.”22
Criaram-se, também, os crimes de recurso à prostituição de menores (art. 174.º), de
pornografia de menores (art. 176.º) e a incriminação do lenocínio de menores passou a
incluir todos os menores, e não apenas os com idade inferior a 16 anos.
Eliminou-se, finalmente, a diferença punitiva entre atos heterossexuais e
homossexuais com adolescentes, que passaram a estar equiparados23(“Atos sexuais com
adolescentes” previsto no art. 173.º), exigindo-se sempre como requisito o “abuso de
inexperiência da vítima” com mais de 14 anos e menos de 16.24
Na verdade, na versão anterior existiam dois tipos legais (o que era revelador de um
“desvalor especial da homossexualidade” e da convicção de que só as relações
heterossexuais é que eram “normais”25): os heterossexuais (art. 174.º), onde se exigia a
inexperiência da vítima e os homossexuais (art. 175.º), onde não se fazia referência a tal
20
ANTUNES, 2008, 208.
21
Cf. Ac. do TRE de 15-05-2012.
22
RODRIGUES e FIDALGO, 2012, 816.
23
Para mais desenvolvimento MATTA, 2005.
24
FIGUEIREDO DIAS e ANTUNES, 2012, 856 e BELEZA, 1998, 91 e ss.
25
ANTUNES, 1999, 570.
16
inexperiência, o que levou a doutrina maioritária a questionar-se sobre a
constitucionalidade do tratamento diferenciado das referidas condutas.
O TC julgou, então, inconstitucional “por violação dos arts. 13.º, n.º226, e 26.º, n.º127
da Constituição, a norma do art. 175.º do Código Penal, na parte em que pune a prática
de atos homossexuais com adolescentes mesmo que se não verifique, por parte do agente,
abuso da inexperiência da vítima”28 assim como na “parte em que na categoria de atos
homossexuais de relevo se incluem atos sexuais que não são punidos nos termos do art.
174.º do mesmo Código.”29
Desta forma, “estão hoje ultrapassados – mesmo enterrados – todos os
preconceitos que envolviam a homossexualidade e, sobretudo, os comportamentos e
práticas que, preconceituosamente, pretendiam conexionar marginalidade e
homossexualidade.”30
26
“Princípio da Igualdade.”
27
“Outros Direitos Pessoais.”
28
Cf. Ac. do TC de 10-05-2005.
29
Cf. Ac. do TC de 05-07-2005.
30
LOPES e MILHEIRO, 2015, 7.
31
Para mais desenvolvimento BELEZA, 1986, 155 e ss; ANTUNES, 2010, 154 e ss e CUNHA, 2011, 465.
32
Protegendo bens comunitários como a moral e o poder público.
33
Dizem respeito aos “comportamentos que ofendem ou põem em perigo os específicos bens jurídicos que
se inscrevem na esfera sexual das pessoas ofendidas”, in FIGUEIREDO DIAS, 1983, 1376.
17
De facto, a criminalidade sexual, contextualizada no âmbito do Direito Penal, deve
e tem de ser tratada de forma diferenciada da restante criminalidade, uma vez que pode
acarretar (o que não é de todo infrequente) consequências particularmente nefastas e
duradouras para a sua vítima, não lhe dando, enquanto sujeito passivo "a oportunidade
de manifestar a sua vontade sobre o ato de natureza sexual em que se viu envolvida.”34
34
LOPES e MILHEIRO, 2015, 122.
18
Capítulo II – O tipo legal de crime de Importunação
sexual à luz do bem jurídico tutelado
Trata-se de um crime de resultado, uma vez que exige que se faça prova35 da
importunação, isto é, que a pessoa se sinta importunada ou incomodada. “Importunar”
significa “ação ou efeito de importunar. Incómodo, aborrecimento, coisa que molesta e
cansa.”36
Propomo-nos, nesta fase, abordar em particular duas das modalidades típicas deste
tipo legal de crime: os atos de carácter exibicionista e os contactos de natureza sexual,
deixando para o Capítulo seguinte a reflexão sobre a problemática gerada, na L n.º
83/2015, da expressão “formulando propostas de teor sexual”, que, no âmbito do art.
170.º, passou também a ser considerada como conduta ilícita.
Para cada uma das três modalidades acima referidas, há que questionar a dicotomia
de classificação existente entre crime de dano e crime de perigo. Ou seja, a importunação
em si mesma limita a liberdade sexual das pessoas? Ou implica um dano para a sua
liberdade de circulação em geral? Ou, ao invés, pressupõe apenas um perigo para a
liberdade sexual?
Ora, assumindo a importância de dar resposta a uma tal questão, através da análise
do tipo legal de crime nas suas várias condutas, como procuraremos fazer de seguida, a
verdade é que, do ponto de vista teórico, a destrinça entre crime de dano e crime de perigo
não parece oferecer dificuldades de maior, uma vez que ela decorre da forma como o bem
jurídico é posto em causa pela atuação do agente.
Assim, quando a “realização do tipo incriminador tem como consequência uma
lesão efectiva do bem jurídico”, estaremos perante um crime de dano, mas quando “a
realização do tipo não pressupõe a lesão, mas antes se basta com a mera colocação em
perigo do bem jurídico”37, tratar-se-á de um crime de perigo.
35
Estamos perante um crime, cujo procedimento criminal depende de queixa (art. 178.º do CP, salvo se for
praticado contra menor ou dele resultar suicídio ou morte da vítima).
36
in a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Não obstante o contexto em que é empregue, pode
também significar “insistência, instância prolongada” ou “exigência e imposição.”
37
FIGUEIREDO DIAS, 2011, 309.
19
Consequentemente, no âmbito da importunação sexual, podemos afirmar que, do
ponto de vista do bem jurídico da liberdade sexual, o crime será de dano, desde que a
pessoa se sinta importunada e o agente a queira importunar (por atuação dolosa, pelo
menos na forma de dolo eventual), pressuposto exigível para preencher este tipo legal de
crime.
Por outro lado, será crime de perigo se se entender que o tipo legal exige que os
atos praticados pelo agente (sejam eles de carácter exibicionista, contactos de natureza
sexual ou propostas de teor sexual) criem o fundado receio de que se sigam outros atos
(mais graves) de natureza sexual.
38
Têm como fonte o artigo 194.º (Exhibitionismus) do StGB suíço, o §183.º (Exhitionistiche Handlugen)
do StGB alemão, na versão anterior a 1998, e o §218.º do StGB austríaco (Sexuelle Belästigung und
öffentliche geschlechtliche Handlungen) in ALBUQUERQUE, 2015, 675.
39
Não obstante, muitas vezes, esse perigo existe mesmo, mas o problema é saber se se tem de provar a
existência desse perigo em concreto.
40
“Ultrapassa a mera imoralidade, constituindo importunação sexual(...)o acto em que o arguido chama
a atenção de menor, de quinze anos de idade, para a sua pessoa e, quando aquela olha na sua direcção,
retira das calças o seu pénis, exibindo-lho”, in Ac. do TRC de 26-02-2014.
41
Deriva do conceito de “atentado ao pudor” que, nos termos do art. 205.º, n.º3 do CP de 1982, se definia
como “o comportamento pelo qual outrem é levado a sofrer, presenciar ou praticar um acto que viola, em
grau elevado, os sentimentos gerais de moralidade sexual”, in FIGUEIREDO DIAS, 2012, 721.
42
Note-se que aqui não se exige que depois se sigam outros atos, é o próprio ato em si que pode pôr em
perigo ou causar um dano à liberdade sexual.
43
RODRIGUES e FIDALGO, 2012, 818.
20
Assim, “o agente pode ser punido por ‘atemorizar’ a vítima, homem ou mulher
(colocando em perigo a sua liberdade de autodeterminação sexual), mas não pela sua
imoralidade intrínseca.”44
Para além disso, é determinante para o preenchimento deste ilícito que ele ocorra
perante a vítima, independentemente de qualquer contacto físico entre agressor e vítima,
bastando que esta seja forçada a observar o ato exibicionista, qualquer que seja o grau de
afetação sexual que uma tal situação lhe suscite. Mas, na verdade, quando referimos que
os atos exibicionistas são praticados perante a vítima, será verdadeiramente a sua
44
RODRIGUES e FIDALGO, 2012, 820. Também Figueiredo Dias, ao afirmar “se é função do direito
penal proteger os bens jurídicos fundamentais da comunidade e só eles, decorre daí o mandamento de
banir do seu âmbito todas e quaisquer excrescências moralistas” in 1976, 78. No mesmo sentido, DÍEZ
RIPOLLÉS, 1985, 20 e 21; NATSCHERADETZ, 1985, 61 e ROXIN, 1976, 23.
45
O gesto obsceno pode constituir ato exibicionista, Cf. ALVES, 1995, 71, RODRIGUES, 1999, LEAL-
HENRIQUES e SANTOS, 2002, 290 e LEITE, 2011, 71.
46
Esta perspetiva tem vindo a ser maioritariamente seguida pela doutrina, face à concordância com a
inserção sistemática do crime e justificação da sua incriminação. Seguem este entendimento, o Ac. do TRP
de 06-05-2009 e o Ac. do TRC de 26-02-2014. No mesmo sentido, RODRIGUES, 1999, 534 e
ALBUQUERQUE, 2008, 468, que sustentam que o ato exibicionista só tem relevância penal se constituir
um perigo a que se lhe siga a prática de um ato sexual que ofenda a liberdade de autodeterminação sexual,
in Acs. do TRP de 16-12-2009 e 09-03-2011.
47
Cf. GARCIA e RIO, 2014, 714 e 715 e Ac. do TRP de 06-05-2009. Contra: Ac. do TRP de 09-03-2011.
21
liberdade de autodeterminação sexual que está em causa, ou antes a sua liberdade pessoal
de ação (esfera pessoal íntima) ou de omissão?
48
MENEZES DIAS, 2008, 253 e 257. Também neste sentido FIGUEIREDO DIAS, 2012, que “recusa a
dignidade penal a ‘meros contactos de natureza sexual’ que, por definição não se traduzam em qualquer
ato sexual de relevo, rejeitando ainda fundamento para a incriminação dos actos exibicionistas perante
adultos.”
49
Significa intangibilidade sexual ou falta de capacidade de determinação sexual.
50
MUÑOZ CONDE, 2004.
51
Em conformidade com a exposição de motivos da Proposta de L 98/X ao referir que o crime de
importunação sexual é criado para “garantir a defesa plena da liberdade sexual.”
52
Esta proteção legislativa parece-nos adequada uma vez que as condutas em causa são suscetíveis de afetar
gravemente o desenvolvimento global da vítima.
53
No caso de ser menor é indiferente que o ato exibicionista tenha, ou não, ocorrido contra a sua vontade.
54
Contra este entendimento ALVES, 1995, 72. Note-se que, em Espanha, o delito de exibicionismo e
provocação sexual, no art. 185.º do CP, visa a proteção de menores e incapazes e já não a de adultos.
22
menor previsibilidade, das características da personalidade do agressor e da vítima e da
faixa etária desta, entre outras circunstâncias atendíveis ao mérito da causa.55
Mas, será que a sociedade tem de suportar este tipo de comportamentos? Isto é,
mesmo que não sejam juridicamente ‘perigosos’ no sentido de se seguirem outros atos
sexuais, terão as pessoas/vítimas de restringir a sua liberdade de circulação para não se
sentirem importunadas ou terão de visualizar atos de cariz sexual que lhes são impostos,
tendo consciência de que o direito penal nada pode fazer em relação a isso?
Questão à qual teremos de responder negativamente, à luz dos considerandos já
atrás referidos, relativamente ao crime de dano.
De facto, terá pouco sentido admitir que uma pessoa, no âmbito das suas rotinas
quotidianas (ter de se ausentar da residência, por exemplo), ao ver-se obrigada à
contingência de assistir a este tipo de atos praticados pelo agente, não se sinta incomodada
e/ou importunada. E se o “importunar” é a finalidade/objetivo do crime, tal desiderato é
bastante para que se verifique a incriminação, independentemente de outros atos que
(eventualmente) possam seguir-se.
Uma tal asserção acautela que a punição deste tipo de condutas não deixa de visar
a proteção de um bem jurídico de relevante valor, como seja a tutela da liberdade da
vítima (“importunar”) e não apenas a mera moralidade.
Nunca é de mais sublinhar que não é a questão da tutela da moralidade56 que está
em causa, mas sim a prática, pelo agente, deste tipo de atos perante a vítima desde que
eles, por si só, a importunem, limitando não só a sua liberdade sexual (negativa57), como,
frequentemente, a sua liberdade de circulação (obrigando-a, por exemplo, a mudar de
trajeto), configurando, pois, um crime de dano.
55
Ressalvam-se, porém, as situações em que esses sujeitos baixam as calças como sinal de protesto contra
preceitos morais, ou mesmo quando exibem os órgãos sexuais para o público numa bancada de um estádio
de futebol, v.g. Sentença do Tribunal de Nelas referida por LOPES, 2008, 111, por não haver aqui qualquer
finalidade de índole sexual.
56
A propósito do crime de importunação sexual, “estamos, assim, perante uma opção de política criminal,
por parte do legislador, que entendeu que os referidos comportamentos ainda eram dotados de dignidade
punitiva, sendo que a criminalização da conduta em causa não teve na sua base razões ligadas ao domínio
da moral social ou da moralidade sexual, mas sim apenas a proteção da liberdade pessoal, num dos
domínios em que essa liberdade se projeta”, Ac. do TC de 20-02-2013 in ALBUQUERQUE, 2015, 642.
57
No sentido de não ter de presenciar atos de conteúdo sexual contra a sua vontade.
23
preferencialmente, como advogamos, encaminhado para instituições de saúde adequadas
a este tipo de quadros clínicos, independentemente do grau de imputabilidade
judicialmente admitida, em razão de anomalia psíquica, que não teria cabimento
desenvolver neste contexto.
Destarte, uma coisa é saber se estes atos de importunação lesam o bem jurídico
relacionado com a sexualidade da vítima, outra coisa é saber qual o melhor tratamento a
dar como consequência jurídica do crime para este tipo de situações. E mesmo que seja
considerado como crime, tal facto não implica que se venha a aplicar uma pena de prisão,
pois muitas vezes podem ser aplicadas penas suspensas com a obrigação de tratamento
ou de frequência de programas de educação sexual que, na nossa opinião, seriam mais
adequados.
Na verdade, de acordo com os ditames da Medicina, o exibicionismo - enquanto
transtorno de preferência sexual, ao estar incluído no conceito abrangente de parafilia,
que diz respeito a problemas de orientação sexual, anseios, fantasias, comportamentos
sexuais intensos e variantes do erotismo - deverá justificar, sobretudo, uma intervenção
médica (por decisão judicial), mesmo havendo uma finalidade ou tentativa de continuar
uma atividade sexual com estranhos.58
De qualquer das maneiras, “o bem jurídico tutelado pelo tipo legal de crime em
causa é inquestionavelmente dotado de dignidade bastante para ser merecedor de tutela
penal e por outro lado, embora as condutas objeto de criminalização no referido tipo
legal possam estar próximas do limiar mínimo no que respeita à carência de tutela penal,
não nos podemos esquecer que essa ‘menor’ dignidade penal ou menor danosidade de
tais condutas encontra-se refletida na sanção prevista - pena de prisão até um ano ou
pena de multa até 120 dias.”59
58
MDEPM, 2002, 569 e CTM e de Comportamento da CID-10, 1993, 214.
59
vd. Ac. do TC de 20-02-2013, in ALBUQUERQUE, 2015, 642.
24
2. Constrangimento a contacto de natureza sexual
O que está em causa nesta modalidade típica é a prática, no corpo do sujeito passivo,
de um ato de natureza sexual. Assim sendo, estariam excluídos todos aqueles que não
implicassem um contacto físico60 e todas as palavras ou gestos grosseiros de natureza
sexual dirigidos a terceira pessoa. Para além do contacto físico, é ainda necessário que a
vítima seja constrangida, ou seja, que esse mesmo contacto lhe seja imposto, que seja
praticado contra a sua vontade e que não constitua ato sexual de relevo.61
No constrangimento a contacto de natureza sexual, ainda que se possa colocar o
problema de saber se constitui um crime de dano ou um crime de perigo, a verdade é que
já não acarreta a mesma carga semântica comparativamente com os atos exibicionistas,
constituindo também um crime de dano, uma vez que, para todos os efeitos, havendo um
contacto sexual efetivo, resulta clara a desnecessidade do perigo da ocorrência de outros
atos mais graves, que, aliás, dificilmente terão lugar, atendendo à contextualização em
que tais constrangimentos geralmente se verificam.
60
Concordamos, neste ponto, com a doutrina maioritária, isto é, o agente tem de tocar no corpo da vítima.
No mesmo sentido, RAPOSO, 2003, 951 e MACRÍ, 2010, 81. Em sentido contrário destacamos LEITE,
2011, 60, quando afirma que “restam dúvidas quanto à exigência de que o contacto tenha natureza física
ou se também abrangerá contactos não corporais, tais como conversações intimidadoras e sexualmente
explícitas.”
61
De acordo com a Proposta de L 98/X que esteve na base da L n.º 59/2007, o tipo legal de crime de
importunação sexual abrange “o constrangimento a contactos de natureza sexual que não constituam actos
sexuais de relevo.”
62
2008, 108 e 109.
63
2011, 71-73.
25
E outros há, como Pinto de Albuquerque64, que entende que “o contacto de natureza
sexual pode incluir o toque (com objetos ou partes do corpo) da nuca, do pescoço, dos
ombros, dos braços, das mãos, do ventre, das costas, das pernas e dos pés da vítima” (...)
e que, apesar de “poder não existir uma interpretação inteiramente coincidente” quanto
às condutas deste tipo legal de crime, este “exige sempre a existência de um contacto do
agente na pessoa da vítima e de natureza sexual.”
Somos de opinião que a conduta punida por lei deverá sempre importunar a vítima
e implicar um contacto sexual com ela, que afete de forma relevante a liberdade sexual
da mesma, sem que assuma, contudo, a gravidade de ato sexual de relevo.
Este crime constitui, pois, um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem
jurídico protegido), onde o “constranger” configura um ato de coação, um impedir de
movimentos, capaz de levar e/ou obrigar, através da surpresa ou outro meio/forma de
constrangimento, determinada pessoa a suportar contacto físico de natureza sexual, que,
ao não ser livre, não poderá ser consentido.65
Por outro lado, a tipificação desta modalidade de crime pode ter lugar por qualquer
meio66, incluindo diversas formas de pressão física ou psicológica, surgindo aqui uma
dificuldade acrescida quanto a saber o que se entende por contacto de natureza sexual
com ou sem relevância penal, cujas consequências serão necessariamente diferentes.
64
2008, 468-469.
65
Para mais desenvolvimento sobre a matéria do consentimento ANDRADE, 1991, 384 e ss.
66
Também segue este entendimento ALBUQUERQUE, 2010.
67
RODRIGUES e FIDALGO, 2012, 827; MENEZES DIAS, 2008, 260 e 268.
68
“A instantaneidade e a surpresa do contacto de natureza sexual afastam por um lado a relevância desse
contacto e, por outro, afasta a própria noção de constrangimento”, in MENEZES DIAS, 2008, 267. Numa
outra perspetiva, “o facto de o contacto sexual ser súbito, inesperado ou instantâneo não lhe confere
imediatamente o carácter de coactivo, mas também não lhe retira necessariamente esse carácter”, in
RODRIGUES e FIDALGO, 2012, 828.
26
trabalho. De todo o modo, para certos autores ficam desta maneira excluídas as situações
de engano, erro, manobras ardilosas ou fraudulentas ou de abuso de inexperiência.69
Neste contexto, importa, ainda, reter o facto de alguns autores questionarem a não
especificação dos meios que levam ao constrangimento da vítima, por entenderem que, a
ser assim, estaria em causa o principio da tipicidade.70
A este propósito, do nosso ponto de vista (sem nos alongarmos quanto a esta
matéria), estamos em crer que a norma é suficientemente clara para obviar a tais objeções,
desde logo porque a tutela penal não deixará de atender nunca aos contornos colocados
por cada situação em concreto e aos comportamentos assumidos pelos intervenientes em
presença.71
Posto isto, urge definir o que entendemos por ato sexual de relevo, de que nos
ocuparemos a seguir, mesmo que, em termos doutrinais, não seja possível estabelecer
uma definição precisa de um tal conceito, que, ainda assim, o legislador sobrelevou
enquanto restrição à liberdade e autodeterminação da vítima, em detrimento do
constrangimento a contacto de natureza sexual e da não tipicidade de atos considerados
inexpressivos.
69
Neste sentido, MENEZES DIAS, 2008, 268 afirmando que “pouco ou nada fica para punir com esta
incriminação”, e RODRIGUES e FIDALGO, 2012, 829. Claro que nos casos de erro e engano, não havendo
dolo (de importunar), não há crime. No entanto, as manobras ardilosas ou fraudulentas, ao serem formas
de pressão sobre a vontade da vítima, podem-nos fazer questionar se são formas de constrangimento.
70
Note-se que isto também sucede no art. 163.º e 164.º, n.º2 do CP. Para mais desenvolvimento MENEZES
DIAS, 2008, 261 e RODRIGUES, 2014.
71
No que respeita ao sujeito passivo, remetemos aqui para as considerações anteriormente invocadas quanto
ao crime de importunação sexual por meio de atos exibicionistas.
72
Contrariamente ao que se afirmava na Proposta de L n.º 80/VII, 1997, 526 e ss.
73
Neste sentido Cf. Ac. do TRE de 15-05-2012.
27
2.1. Fronteira com o ato sexual de relevo74
Ato sexual de relevo75 será “todo aquele (comportamento ativo) que, de um ponto
de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um
significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a
liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou pratica”, cujo relevo “representa
um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima.”76. De
acordo com este entendimento, trata-se de “actos graves” e não de um “beliscão
passageiro.”77
74
Conceito inspirado na definição legal do 184.ºc(1) do StGB alemão, in ALBUQUERQUE, 2015, 645.
75
Conceito designado por “acção sexual” no Anteprojeto que esteve na base do Projeto de 1991, que
haveria de ser afastado pela Comissão Revisora.
76
FIGUEIREDO DIAS, 2012, 718 e 719. Esta conceção objetiva de ato sexual de relevo também tem vindo
a ser defendida por autores estrangeiros, tais como Tröndle e Maiwald.
77
In ACTAS CP, FIGUEIREDO DIAS, 1993, 251.
78
Entre nós, Eduardo Correira e Maia Gonçalves.
79
BELEZA, 1994, 51.
80
ALBUQUERQUE, 2015, 640.
28
Deste modo, o ato sexual de relevo abrangerá a cópula81 (quer vulvar, quer
vestibular), o coito anal82, o coito oral83 e a introdução vaginal ou anal com objetos e partes
do corpo (ainda que só toquem a vagina ou o ânus, sem introdução total ou parcial) 84, ao
contrário de comportamentos que se esgotem em meros beliscões ou apalpões.
Posto isto, concordamos inteiramente com este entendimento, uma vez que o
“apalpão”86 ou até mesmo as situações que ocorrem no dia a dia, como o “roçar” ou
pressionar partes do corpo contra partes do corpo de outrem, por exemplo nos transportes
81
Ato pelo qual o pénis de um homem é introduzido na vagina de uma mulher, haja ou não emissio seminis,
in Ac. do STJ de 24-09-2003.
82
Consiste na introdução, total ou parcial, do pénis de um homem no ânus de outra pessoa, com ou sem
emissio seminis.
83
É a introdução, total ou parcial, do pénis de um homem na boca de outra pessoa, com ou sem ereção, in
Ac. do STJ de 23-09-2004, e com ou sem emissio seminis.
84
V.g. de ato sexual de relevo cf. LOPES e MILHEIRO, 2015, 41 e 42. Também os Ac. do TRC de 05-06-
2013 e 02-04-2014 e o Ac. do TRP de 07-10-2009, sobre a prática de ato sexual de relevo.
85
Ou “especiais actos sexuais de relevo”, na designação de FIGUEIREDO DIAS; ou mesmo “actos sexuais
qualificados”, nas palavras de MENEZES DIAS, 2013, 75.
86
Vd. Ac. do TRP de 28-11-2012.
29
públicos ou em espaços fechados, não podem ser considerados como atos sexuais de
relevo, mas sim simples contactos de natureza sexual. Estes casos, normalmente
englobados no “frotteurismo”87(de frotter), tendem a ser tolerados socialmente, a não ser
que haja da parte do agente um aproveitamento intencional dos mesmos e, neste caso, se
a pessoa se sentir importunada, poderá reagir, hoje, pelo art. 170.º.
Outro tanto se dirá a propósito dos vulgos toques, ainda que também aparentemente
cobertos pela adequação social. Convergimos com o entendimento de Figueiredo Dias,
quando afirma que “é de excluir do conceito de ‘acto sexual de relevo’ não apenas os
actos ‘insignificantes ou bagatelares’, mas também aqueles que não representem
‘entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima’, como por
exemplo, os actos que, embora ‘pesados’ ou em si ‘significantes’, por impróprios,
desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade,
ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre
determinação sexual da vítima.”88 Apesar destes atos não serem integráveis no ato sexual
de relevo, poderão alguns deles ser enquadrados no art. 170.º.
Também nas palavras de Leal Henriques e Simas Santos, o conceito de ato sexual
de relevo integra “actos que constituam uma séria e grave ofensa à intimidade e liberdade
do sujeito passivo e invada, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que
constitui a reserva pessoal, o património íntimo que, no domínio da sexualidade, é
apanágio de todo o ser humano.”89
87
“Frotteurismo ou Frotismo: consiste na obtenção de intenso prazer ao roçar-se em outra pessoa sem seu
consentimento”, in Dicionário das Parafilias, maio, 2009. O comportamento ocorre, geralmente, em locais
de grande concentração de pessoas, o que permite ao sujeito ativo escapar sem qualquer tipo de repreensão.
88
2012, 720.
89
Vd. Acs. do TRC de 09-07-2008, 02-02-2011 e 25-01-2012 bem como os do STJ de 07-01-2010 e 09-
12-2010.
90
PEREIRA, 1996, 46.
30
vítima, que é transformada em objeto do prazer do agente, como se de uma coisa se
tratasse e de que ele pudesse dispor desde que esses atos fossem em ‘pequena
quantidade’, ou ‘ocasionais’ ou ‘instantâneos’. A vítima não tem de ser objeto do ‘mau
gosto’ ou ‘despudor’ do agente.”91
Seja como for, não podemos descartar que muitos atos de natureza sexual98, embora
configurando situações que atentem contra os normais sentimentos da vítima na esfera da
sua intimidade, não deverão ser considerados, como típicos atos sexuais de relevo.
91
2015, 646.
92
Vd. Ac. do TRC de 08-09-2010 sobre “o acto de retirar as cuecas da vítima” e o Ac. do STJ de 24-10-
1996 acerca do “acto de esfregar o pénis na vulva de uma menor e no ânus de um menor.”
93
Vd. Ac. do TRL de 25-09-2014 sobre o ato de “apalpar o rabo, de surpresa e contra a vontade da
ofendida.”
94
Vd. Ac. do TRC de 12-01-1996.
95
Vd. o Ac. do TRG de 02-02-2009 em relação a “actos de agarrar as ancas, colocar as mãos no peito por
cima da roupa e apertar os seios.”
96
Vd. Ac. do TRP de 06-05-2009 acerca do toque nas pernas e na zona genital.
97
V.g. “O arguido que agarra a vítima pela cintura, apalpa-lhe o ânus, por duas vezes e tenta tirar-lhe as
calças que vestia, tanto na Lei antiga, como na Lei nova, não pode deixar de ser considerado como acto
sexual de relevo e não mero constrangimento a contacto de natureza sexual” in Ac. do TRC de 22-04-
2009.
98
V.g. simples beijo, ou sua tentativa contra a vontade da vítima. Contrariamente, o Ac. do TRL de 28-05-
1997 sobre “beijos procurados nas zonas erógenas do corpo, como os seios, a púbis, o sexo” cf. GARCIA;
RIO, 2014, 682 e 686. Também, neste sentido, constituindo ato sexual de relevo, o ‘beijo lingual’ ou com
31
Cabem aqui o toque seja com objetos, seja com partes do corpo, na nuca, no
pescoço, nos ombros, nos braços, nas mãos, no ventre, nas costas, nas pernas e nos pés
da vítima. Há quem defenda, ainda, que constitui a modalidade de contacto de natureza
sexual “a aproximação física do corpo do agente ao da vítima de modo que quase se
toquem, incluindo a aproximação frente a frente e da frente do agente às costas da vítima,
mas excluindo a aproximação das costas do agente às costas da vítima.”99
Em suma, todos estes atos, que não configuram atos sexuais de relevo, constituem,
hoje, contactos de natureza sexual a serem enquadrados no art. 170.º do CP, por não
deixarem de afetar, de forma mais ou menos proeminente, a liberdade sexual da vítima.
a ‘carícia insistente’, in FIGUEIREDO DIAS, 2012, 720 e LOPES e MILHEIRO, 2015, 41 e 42, ao
considerarem, como ato sexual de relevo, o “beijo lingual e a excitação do clitóris de uma paciente na
ocasião de um exame ginecológico.”
99
ALBUQUERQUE, 2015, 677.
32
Capítulo III – A nova incriminação do art. 170.º à luz da
trigésima oitava alteração ao Código Penal
pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto
Como é que podemos aceitar que, em pleno século XXI, ainda não tenhamos
conseguido pôr termo a esta sórdida discriminação em razão do género?
100
Nomeadamente a Diretiva 2012/29/UE e a Diretiva n.º 2006/54/EC.
101
Nos trabalhos preparatórios, em sede do CE, apenas estava focada na violência doméstica.
102
Até este momento, 13 Estados ratificaram a CI, tendo sido Portugal o 1.º EM da UE a aderir.
33
Admite (ultrapassando a visão adotada na legislação nacional pela L n.º 112/2009
que não identifica as mulheres como principal grupo alvo de violência) que “a natureza
estrutural da violência exercida contra as mulheres é baseada no género103, e que a
violência contra as mulheres104 é um dos mecanismos sociais cruciais pelo qual as
mulheres são forçadas a assumir uma posição de subordinação em relação aos
homens.”105
103
Art. 3.º, al. c) da CI.
104
Art. 3.º, al. d).
105
Preâmbulo da CI.
106
A 4 de maio de 2015.
107
Art. 66.º, n.º2 da CI.
108
CRUZ, 2015, 93.
34
proteção das mesmas, o que inclui medidas operacionais preventivas e de recolha de
provas (n.º2).
No seu art. 51.º impõe-se, ainda, o dever de as partes adotarem medidas quer para
garantir que todas as autoridades competentes avaliem o risco de mortalidade, a
gravidade da situação e o risco de repetição da violência, de modo a gerirem o risco e,
se necessário, garantirem segurança e apoio coordenados (n.º1), quer para que a
avaliação do risco tenha devidamente em conta o facto de os perpetradores de atos de
violência abrangidos pela Convenção possuírem ou terem acesso a armas de fogo, em
todas as fases da investigação e da aplicação das medidas de proteção (n.º2).
109
SOTTOMAYOR, 2015, 106.
110
Art. 29.º do CT.
35
O que acontece nestes casos é que a maioria das vítimas não apresenta queixa por
vergonha, medo de perder o emprego ou de represálias. Falamos de um tipo de violência
sobre as mulheres que “integra comportamentos como conversas indesejadas sobre sexo,
anedotas ou expressões com conotações sexuais, contacto físico não desejado,
solicitação de favores sexuais, pressão para ‘encontros’ e saídas, criação de um
ambiente pornográfico, abuso sexual e violação, entre outros.”111
111
ISABEL DIAS, 2008, 13.
112
Baseado em SOTTOMAYOR, 2015, 75.
113
SOTTOMAYOR, 2015, 116.
114
MAGALHÃES, 2011, 107.
36
De facto, a L n.º 83/2015 foi o primeiro passo dado pelo Estado Português por forma
a cumprir a CI, analisando e adequando as medidas em que a lei penal se mostrava
insuficiente para proteger os direitos humanos das mulheres, nomeadamente a sua
liberdade e autodeterminação sexual e integridade pessoal. Com semelhantes
preocupações, podemos referir as leis n.ºs 103/2015, 129/2015, 130/2015 e 141/2015.
No entanto, a recente alteração ao CP decorrente da já referida L n.º 83/2015, apesar
de não ter autonomizado, nos mesmos termos da CI115 e do adotado por outros países116,
o crime de assédio sexual nas ruas e no trabalho, incluiu, dentro do crime de importunação
sexual, a expressão de “propostas de teor sexual”, que abrange algumas formas de assédio
verbal ou gestual.
E se é certo que muito se evoluiu em Portugal nesta matéria, não é menos verdade
que há ainda um longo caminho a percorrer, uma vez que os casos quer de violência
doméstica, quer de atentados contra mulheres ou de abusos sexuais continuam a acontecer
com frequência inusitada, a que importa dar resposta, comprometendo o Todo Social.
De facto, a igualdade de direitos já consagrada na Lei não só tem de se refletir no
nosso quotidiano e na realidade do quadro social e cultural em que vivemos, como
igualmente implica que cada um de nós, enquanto cidadão, saiba contribuir de forma pró-
ativa para a mudança do status quo instalado.
115
Também a APMJ, em sede de parlamento, sugeriu uma redação para o crime de assédio sexual. Vd. teor
in apmj.pt.
116
V.g. Brasil, Espanha e França.
37
1.1. Confronto com o crime de Difamação e de Injúria
O que importa reter é que esse mesmo bem jurídico inclui quer o valor pessoal ou
interior de cada indivíduo, enraizado na sua dignidade, quer a própria reputação ou
consideração exterior119, como salientava Figueiredo Dias ao afirmar que “a
jurisprudência e a doutrina jurídico-penais portuguesas têm correctamente recusado
sempre qualquer tendência para uma interpretação restritiva do bem jurídico ‘honra’,
que o faça contrastar com o conceito de ‘consideração’(...)ou com os conceitos jurídico-
constitucionais de ‘bom nome’ e de ‘reputação’. Nomeadamente nunca teve entre nós
aceitação a restrição da ‘honra’ ao conjunto de qualidades relativas à personalidade
moral, ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção
entre opinião subjectiva e opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e
sociais da pessoa; ou a defesa de um conceito quer puramente fático, quer – no outro
extremo – estritamento normativo.”120
117
COSTA, 2012, 905.
118
Para mais desenvolvimento COSTA, 2012, 907-911; ANDRADE, 1996, 79 e SILVA DIAS, 1989, 19.
119
Cf. Ac. do TRL de 17-05-2006.
120
FIGUEIREDO DIAS, Ano 115º, 105.
38
De todo o modo, estes dois tipos legais de crime, não obstante serem crimes
dolosos, distinguem-se entre si uma vez que, enquanto na difamação a violação da honra
é levada a cabo com a intervenção de um terceiro, a injúria se concretiza numa ofensa
que é praticada de forma direta, isto é, perante a vítima, sendo esta uma pessoa
identificável. Para além disso, este último apresenta uma das mais baixas molduras penais
abstratas previstas no CP (pena de prisão até 3 meses ou pena de multa de 120 dias),
tradutora da forma como o legislador valorou o bem jurídico honra, nas suas múltiplas
refracções, embora tal facto não deva constituir prova inequívoca da sua menor
dignidade penal.121
Seja como for, é imperioso proceder à comparação entre estes crimes e o assédio
sexual, nomeadamente o de rua, isto é, verbal, previsto no art. 40.º da CI e no art.170.º do
CP.
Um dos primeiros pontos sobre o qual importa refletir é o conteúdo sexual,
humilhante e invasivo, contido nas palavras usadas para cometer assédio sexual, sem
propriamente levar em linha de conta a defesa do bom nome ou reputação, cuja proteção
se encontra prevista nos crimes de difamação e de injúria. Acresce que o bem jurídico
tutelado por estas normas penais é, como já tivemos oportunidade de referir
anteriormente, o bom nome da pessoa, a sua honra ou consideração, enquanto na
penalização do assédio sexual se protege a liberdade sexual, a autonomia e a livre
circulação, por se tratar de bens jurídicos mais íntimos e integradores da personalidade.122
Tal como afirma Clara Sottomayor, “o assédio sexual atinge direitos fundamentais
mais profundos do que aqueles que são protegidos pela injúria, uma vez que ofende a
integridade psíquica e sexual, a liberdade de ocupar o espaço público, a liberdade de
existir e a liberdade de expandir a personalidade.”123
Segundo a mesma autora, o assédio sexual diferencia-se também destes crimes pela
intencionalidade e significado social em que se consubstancia. Referimo-nos, por
exemplo, à pressão que, maioritariamente, é exercida sobre mulheres, impelindo-as a
evitar o espaço público, remetendo-as para a esfera da vida privada e familiar, numa
manifestação de desprezo pelo simples facto de serem mulheres a quem se atribui o mero
estatuto de objeto sexual124.
121
COSTA, 2012, 937.
122
SOTTOMAYOR, 2015, 119.
123
SOTTOMAYOR, 2015, in mariacapaz.pt.
124
SOTTOMAYOR, 2016, 83.
39
A CI considera o assédio sexual como violência de género125, dirigida sobretudo e
de uma forma desproporcionada às mulheres, por via da desigualdade de poder e de
hierarquia, por regra existentes entre assediador e vítima, contrariamente ao que se
verifica no crime de injúria. Com efeito, este último, para o qual não relevam as questões
de género, tende a ocorrer entre pessoas sem relação de hierarquia entre si e
independentemente do seu conhecimento relacional, como tantas vezes se verifica em
discussões insultuosas ocorridas no âmbito da circulação rodoviária.
Na verdade, há naturalmente palavras que acarretam um desvalor objetivamente
ofensivo quando proferidas em quadros situacionais próprios, as quais não terão,
supostamente, o mesmo significado em contextos socioculturais onde a pessoa está
inserida seja ao nível da sua vivência familiar, seja no âmbito da conjugalidade.
125
A autonomização do assédio corresponde a um processo semelhante ao que conduziu à tipificação da
violência doméstica. Este abrange comportamentos já previstos na ofensa à integridade física ou na ameaça,
mas cuja individualização visou refletir a natureza familiar ou parafamiliar da relação entre as partes e o
contexto sociocultural em que o crime é praticado, tornando-o objeto de um juízo de reprovação jurídica
mais intenso, in SOTTOMAYOR, 2016, 84.
126
“A sociedade que impede ou estigmatiza a sua expressão, através de mecanismos subtis de censura e
de uma atitude de incredulidade, pratica uma grave violação dos direitos humanos”, in SOTTOMAYOR,
2007.
127
SOTTOMAYOR, 2015, 117 e 119.
128
1998, 92.
40
2. Adição do termo “propostas de teor sexual” no tipo legal de
crime
Esta alteração teve origem no Projeto de L n.º 661/XII/4ª, apresentado pelo Grupo
Parlamentar do BE (da autoria da Deputada Cecília Honório), que propôs a iniciativa
legislativa de autonomizar o tipo legal de assédio sexual no CP129, abrangendo “desde o
assédio sexual entre professores e alunos, passando pela agressão a que as jovens e
mulheres estão sujeitas na rua, até aos custos para o desenvolvimento da personalidade
de jovens adolescentes, vítimas privilegiadas destes comportamentos.” Esta deputada
começou, desde logo, por sublinhar que os compromissos, por parte de Portugal, com a
CI, no combate a todas as formas de violência de género estão longe de se esgotar na
questão legal, face aos aspetos socioculturais ainda dominantes no nosso país, havendo,
neste particular, um longo caminho a percorrer.
Também a Deputada Isabel Moreira (PS) enfatizou, no âmbito do mesmo Grupo de
Trabalho, a propósito dos Direitos Humanos, que o “livre desenvolvimento da
personalidade tem vindo a ser negado a mulheres e raparigas de uma forma ultrajante.”
No entanto, apesar da insistência por parte do BE, tal iniciativa não conseguiu
alcançar os objetivos pretendidos, por discordância quer do PSD, quer do PS, quer do
CDS-PP, por entenderem que o assédio sexual se encontra abrangido noutros tipos legais
de crime, nomeadamente na proposta de alteração da importunação sexual e na nova
redação prevista para o crime de perseguição130, para além de entenderem que o Direito
Penal só deverá ser chamado a intervir quando uma tal intervenção, suficientemente
ponderada e adequada aos fins em vista, se julgar, de todo, indispensável.
Foi com a entrada em vigor da L n.º 83/2015, que o crime de importunação sexual
foi objeto de um aditamento da expressão “formulando propostas de teor sexual”131, como
nova conduta censurável.
129
Desaparecendo o crime de importunação sexual, que seria consumido pelo crime de coação; este último
passaria a punir todos os atos sexuais não consentidos, sem restrição dos atos sexuais de relevo. Vd. teor in
app.parlamento.pt.
130
Projeto de L 647/XII, apresentado pelo Grupo Parlamentar do PSD e CDS.
131
Aprovado com votos a favor do PSD, PS, CDS-PP e PCP e abstenção do BE.
41
Neste contexto, interessa, antes de mais, não só indagar o que se pretendeu
criminalizar e qual o sentido da formulação aprovada, bem assim como se existiriam, ou
não, outras formas mais adequadas para tratamento jurídico-penal do problema em
questão (que vem dando azo a tantas e diversas interpretações), se não mesmo questionar
da importância da sua aplicabilidade prática.
132
ALBUQUERQUE, 2015, 642.
133
In 2016, capazes.pt.
42
grosseiras, humilhantes e embaraçosas (dirigidas às mulheres), assim como convites
constrangedores, comentários de mau gosto à sua aparência física, conversas indecorosas
sobre sexo, solicitação de favores sexuais e outras formas de pressão para encontros,
saídas, etc.
Na verdade, isto está em sintonia com o próprio bem jurídico que a norma pretende
tutelar. Por um lado, a liberdade sexual em geral, no sentido de a pessoa poder ouvir
afirmações de teor sexual de quem quiser e onde quiser não fica prejudicada; por outro
lado, a proteção de um direito a estar só, “na esfera íntima da personalidade que
configura a sexualidade e o corpo, mesmo em locais públicos”134, fica salvaguardada.
Finalmente, resulta claro que, seja qual for a modalidade considerada deste tipo de
crime, estaremos sempre perante um crime de dano, porque na afirmação “importunar
outra pessoa” não deixa de estar implícito um dano/incómodo para a vítima, quaisquer
que sejam as intenções do agente no sentido de vir, ou não, a praticar outros atos que
constituam perigo para esta, a que, aliás, a lei não faz referência.
Nas palavras de Dias Pereira, a prática do crime de importunação sexual “ofende a
liberdade sexual, a liberdade de não ser importunado por terceiros, sem solicitação, fora
de um âmbito de adequação social, para uma prática de extrema intimidade e que tem,
na maior parte das vezes, um sentido des-subjetivante, apenas transformando a pessoa,
normalmente uma mulher, num objeto, numa res, à mercê de uma observação do único
sujeito da relação, o que viola o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da
CRP).”135
134
O bem jurídico tem, desta forma, um carácter misto: “proteção da liberdade sexual, da reserva da
intimidade da esfera sexual, mesmo em espaços públicos, e da integridade moral”, in 2016, capazes.pt.
135
In 2016, capazes.pt.
43
2.1. Criminalização do ‘piropo’?
136
Vd. dn.pt.
137
Vd. rtp.pt de 28-12-2015.
138
Vd. visão.sapo.pt de 28-12-2015.
139
LOPES e MILHEIRO, 2015.
140
Como afirma Clara Sottomayor “esta alteração(...)abrange uma intenção de proposta ou revelação ou
intenção, de forma que nem todos os assédios sexuais estão englobados.”. Contrariamente, “O assédio
inclui comportamento sexual indesejado como contacto físico ou avanços, comentários sexuais coloridos
e propostas sexuais, seja por ações ou palavras” in Rec. 19.
141
“O medo que os piropos geram nas mulheres é um medo simbólico, irracional, corresponde mais a uma
lembrança do que nos pode faltar, a qualquer momento: a esfera de segurança e de conforto.” in LEITE,
2015, in mariacapaz.pt.
44
mesmo tratando-se de sociedades patriarcais, ainda eivadas por uma cultura machista e
sexista dominante.
Como afirma Ferreira Leite, “o autor do piropo limita-se a fazer um comentário –
que pode ser tão suave que ainda seja visto como um elogio simpático, ou tão ofensivo
que apenas se pode qualificar como uma “ordinarice” indescritível – à distância, ao
passar ou ao aproximar-se de uma pessoa. O autor do assédio acompanha as expressões
verbais – que podem nem existir – de um comportamento invasivo e sexualmente
agressivo.”142
Expressões como “olá princesa!”, “ó jóia, anda cá ao ourives”, “os teus pais devem
ser piratas, és cá um tesouro”, “ó anjo, doeu-te muito quando caíste do céu?”, “acreditas
em amor à primeira vista, ou tenho de passar outra vez?”, são exemplos banais de
‘piropos’ que as mulheres, desde o início da sua adolescência, costumam ouvir
involuntariamente em locais públicos.
Mas será que podemos considerar que o ‘piropo’ possui o carácter de “proposta de
teor sexual” e que, por isso, tem relevância criminal ao ponto de poder vir a dar pena de
prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias? Isto é, poderá o ‘piropo’ ser considerado
como crime de importunação sexual?
No entanto, há quem defenda que ninguém deve suportar este tipo de comentários
(por exemplo, “olá borracho!”) na via pública, por parte de desconhecidos, pugnando pela
sua incriminação. Não podemos deixar de considerar exagerada uma tal postura, por
142
Vd. 2015, in mariacapaz.pt.
143
In Dicionário da Língua Portuguesa.
45
coartar, no limite, a liberdade de expressão ou o direito de tentar seduzir outrem por meios
inocentes, que não cria, por isso, uma lesão à liberdade das pessoas, à sua liberdade sexual
e à sua liberdade de circulação em geral.
É que, a não ser assim, poderíamos estar a advogar um retorno ao Direito Penal dos
Bons Costumes, onde imperava um sistema patriarcal de dominação das mulheres,
considerando qualquer comentário reprovável, por mais banal e inofensivo que fosse, o
que está longe de servir os propósitos que vimos assumindo.
Ou seja, devemos estar de acordo que as mulheres têm simplesmente de lidar com
o assunto e quedar-se pelo silêncio, cingindo-se ao velho princípio de que “mulher séria
não tem ouvidos”? Ou, ao invés, terem consciência dos impropérios de que são alvo,
denunciando-os e, dessa forma, demandar a aplicação deste novo crime sem pactuar com
a admissibilidade da conduta, em nome da aceitação cultural?
Como afirma Clara Sottomayor, a desigualdade histórica “deve-se ao facto que as
sociedades patriarcais disseram às mulheres, durante milhares de anos, através do
direito, da cultura, das religiões e dos costumes, que o seu corpo era propriedade dos
maridos, que não tinham direito de decidir sobre ele e sobre a sua sexualidade, que não
lhes pertencia. Fazia parte da condição de ser mulher e era imutável como um destino.
Tinha de ser silenciada, sob pena de estigmatização social, ainda hoje visível na
culpabilização sistemática das vítimas ou na desacreditação do seu testemunho.”144
144
2015, 113.
46
E se é verdade que o Direito não deve intervir em áreas que não atinjam uma
gravidade objetiva, sob pena de se confundir com a Moral e de pretender tutelar a
moralidade, com laivos de um puritanismo excessivo, estamos em crer que estas (como
outras) alterações à legislação penal constituirão sempre, que mais não seja, uma forma
de prevenção geral que certamente haverá de facilitar a mudança das relações
socioculturais existentes entre mulheres e homens, com respeito pela sua individualidade
e pelo seu direito à diferença.
Quanto à questão da idade, interessa, antes de mais, referir que o bem jurídico é
mais digno e necessitado de tutela quando tratamos de menores 145. A maioridade, ao
tempo do CS, só se atingia aos 21 anos de idade e foi com o DL n.º 496/77 que se
antecipou para os 18. No entanto, em sede de crimes sexuais, dá-se especial enfoque aos
menores de 14, por se entender que até essa idade carecem de uma proteção absoluta.
O art. 171.º, n.º3, agrava a conduta do crime de importunação sexual se praticado
sobre menores de 14 anos, podendo neste caso o autor ser punido com uma pena de prisão
até 3 anos, donde decorre que a tentativa passa a ser punível.
Concordamos inteiramente com esta agravação, onde o bem jurídico que se
pretende tutelar é a liberdade sexual em sentido amplo146, atendendo ao grau de
maturidade e à personalidade, ainda em fase de formação e desenvolvimento, o que torna
estes menores “extremamente vulneráveis a qualquer comportamento sugestivo.”147
Por outro lado, entendemos que em relação aos jovens este tipo de conduta se revela
mais lesiva e prejudicial, uma vez que muitos deles se sentem inseguros em relação ao
seu próprio corpo, sendo de admitir um prejuízo do seu desenvolvimento, sobretudo na
esfera da sexualidade, passível de distorcer o que é, ou deve ser, a vivência de uma
sexualidade saudável, ao serem vítimas de propostas deste tipo.
E ainda que a lei penal, ao longo das suas disposições, faça distinções etárias mais
ou menos discutíveis ou questionáveis, a verdade é que, no âmbito dos crimes sexuais,
assistimos a uma proteção mais abrangente para os menores de 14 e a uma proteção mais
mitigada para as idades compreendidas entre os 14-16 e os 16-18 anos.
145
“Quando se trata de menores está em causa a sua fragilidade, vulnerabilidade e falta de capacidade
para se auto-determinar”, in MENEZES DIAS, 2013, 71.
146
LEITE, 2004, 28 e ss.
147
LOPES e MILHEIRO, 2015.
47
Contudo, não podemos estar de acordo quando a lei, ao prever a agravação apenas
para menores de 14 anos, equipara as jovens de 15-18 anos a mulheres adultas (com idade
superior a 25 anos), quando vítimas deste tipo de crime, por entendermos preferível um
alargamento da idade dos 14 para os 16 anos (ou até mesmo para os 18) pelo prejuízo
para o desenvolvimento da personalidade148, durante o período da adolescência.
Em todo o caso, importa reter que uma tal constatação não é exclusiva deste tipo de
situações, ocorrendo em muitos dos casos previstos no CP. É importante atualizar aqui as
regras e os pressupostos da doutrina penal e pericial que contribuam para o
esclarecimento da verdade seja relativamente às consequências para a vítima, seja quanto
à autoria material do crime praticado.
De qualquer maneira, a expressão contemplada na lei não nos parece ter sido a mais
feliz, atendendo ao seu carácter impreciso e ambíguo, passível de diversas interpretações
dúbias, aparentemente pouco consentâneas com os princípios orientadores e
hermenêuticos que presidem ao nosso ordenamento jurídico-penal, devendo ter sido
consideradas outras alternativas, em cumprimento do disposto no art. 40.º da CI.
É que nem todas as propostas de teor sexual podem ser consideradas crime, desde
logo aquelas que estão longe de importunar a vítima. Por outro lado, a verdade é que há
palavras ofensivas, obscenas ou humilhantes dirigidas contra aquela, nomeadamente
sobre o seu corpo que, pese embora não constituam verdadeiras propostas/convi-
148
art. 26.º, 69.º e 73.º, n.º2 da CRP.
149
Para mais desenvolvimento CUNHA, 1995, 217 e ss.
48
tes/sugestões para atos de natureza sexual, deverão, efetivamente, estar contempladas no
tipo legal do crime de importunação.
Aliás, bastaria atentarmos na formulação prevista na CI para evitar muitas das
questões e ambiguidades com que nos confrontamos.
Ainda assim, face à redação vigente, manda a prudência que o Direito, na sua
aplicação prática, saiba acautelar soluções equilibradas e justas para cada caso em
concreto, à luz do bem jurídico em causa e das orientações da CI.
49
CONCLUSÃO
2. A igualdade de género deverá ser uma realidade efetiva, sendo de louvar que a
nossa legislação criminal tenha vindo a ser, progressivamente, cada vez menos
discriminatória, tratando da mesma forma quer homens, quer mulheres enquanto vítimas
de agressão contra a sua liberdade sexual;
50
8. A inclusão da nova incriminação do art. 170.º do CP não pode permitir nem um
regresso ao Direito Penal dos Bons Costumes, nem levar ao extremo posturas feministas,
as quais, embora defendidas por alguns, conduziriam a um excesso de criminalização
aleatória e indiscriminada;
9. A aplicação deste crime por parte dos nossos tribunais resulta bastante residual,
exceção feita, eventualmente, em caso de menores;
11. Se por um lado, nem todas as propostas de teor sexual deverão ser objeto de
incriminação, por outro lado, pode haver palavras intrusivas de natureza sexual que, não
sendo verdadeiras propostas, no sentido mais comum do termo, deverão ser abrangidas
por este tipo legal de crime. Em nossa opinião teria sido preferível, pois, precisar melhor
a sua redação, aproximando-a do previsto no art. 40.º da CI, atendendo, desde logo, ao
carácter “intimidante, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo” em causa;
12. No entanto, tendo em conta a formulação pela qual se optou, há que interpretá-
la à luz do bem jurídico, de acordo com a CRP e com a CI, de onde decorre que nas
propostas de teor sexual deverão incluir-se alusões indesejadas, grosseiras e humilhantes
(que são dirigidas maioritariamente às mulheres), assim como convites constrangedores,
comentários ultrajantes à sua aparência física, conversas sobre sexo, solicitação de
favores sexuais e outras formas de pressão que atentam contra a autodeterminação sexual
da vítima.
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