Nuno Lobo Antunes - em Nome Do Pai
Nuno Lobo Antunes - em Nome Do Pai
Nuno Lobo Antunes - em Nome Do Pai
ISBN: 9789892321899
LUA DE PAPEL
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Sou carpinteiro, e das minhas mos nasce a canga que subjuga os animais
e o arado que revolve a terra. Mas, se de pronto se quebram perante a fora
animal ou a pedra que encontram, a quem lamentar seno a mim prprio,
que escolhi a madeira e a moldei a meu jeito? Como pode Deus culpar os
homens das suas falhas quando somos a obra que as suas mos criaram?
Alm disso, o destino do homem h muito est escrito por quem o antecedeu
e, no movimento das mos ou no desenho da boca, acontece ao neto revelar
o av.
Se assim para o que fcil de ver, no se pode neg-lo ao que subtil,
como certos talentos, a vivacidade de esprito ou at a bondade. A verdade
que os dons que generosidade de Deus atribumos no nos foram
destinados, mas a uma linhagem que com outras se cruza na grande
variedade das gentes que somos.
Devemos ao Criador todas as coisas belas e boas que a vida nos serve. Se
nos censura por sermos ingratos, como pai benevolente no deveria ditar
pena severa, porque sem as nossas faltas as virtudes no seriam notadas, da
mesma forma que a montanha se avista melhor quando da plancie se
ergue.
No podemos emprestar ao Senhor apenas uma parcela do que fazemos,
mas antes o todo, como a inclinao para o bem e o mal. Sendo filhos de
quem somos, e se certo que o fruto no cai longe da rvore, enganam-se
os que julgam que do Criador vem apenas o bem, pois tal contrrio
experincia de todos, e minha em particular, e disso podereis ser juzes.
Decidireis se fui vtima ou carrasco, porque eu prprio no sei, j que
encontro razes de um lado e do outro, como quase sempre acontece.
A noite terminou. Sentado no alto deste monte vejo no horizonte surgir o sol
que, empurrado por mo misteriosa, a custo se ergue como a pedra de Ssifo.
A minha narrativa nasceu com a manh. Quando o dia chegar ao fim, ela
fechar a porta, porque h uma harmonia ditada por quem tudo regula, e a
que tambm a mim cabe obedecer. Um dia ir conter a vida de um homem.
Deus Todo-Poderoso criou o tempo para que houvesse uma histria. Toda
a vida tem um princpio e um fim, porque quando se nasce o Senhor vira a
ampulheta, maior ou menor de acordo com o seu desejo, e nada mais
somos do que areia que escorre.
Com o avanar da idade os msculos definham, a mente enfraquece e, no
meu caso, mais cresce o corao, como se o rolar dos anos consumisse a
carne e revelasse o esprito.
Deixei de saber, passei a sentir, por vezes interrogo-me se no perdi o
rumo. Ouo dentro de mim vozes que se combatem e me rasgam por
dentro, porque so opostos os seus argumentos, contraditrias as suas ordens.
Assaltaram a minha razo e mandam umas que no pense, outras que no
acredite e, embora grite para que me deixem, da minha mente se vo
apossando, at no saber quem comanda os meus passos.
Aquele que no alcana princpio ou fim criou o tempo para que houvesse
ordem e nele coubesse o nascimento e a morte, e que entre ambos
pudssemos escolher entre o vento e o amor, e nos dssemos a conhecer.
Tenho de recuar nos dias para encontrar a razo do que hoje fao.
Lembrar-me de onde vim, e quem encontrei nos anos em que havia espao
na memria e estava longe o desencanto.
Nasci na Cidade do Po. Assim a chamavam, porque quem entrava em
Belm numa noite de inverno, logo sentia o calor da lenha, o ondular da
seara, a brancura da farinha que o trigo contm. Chegada a noite,
adormecia em paz no aconchego da manta feita macia pela gua e leve
pelo fogo. Cidade do Po, porque a mesa estava sempre posta para o
viajante, pobre ou estrangeiro, e nunca se recolhia a toalha das boas vindas.
A me de David, rei de Israel, a deu luz, e disso muitos se orgulham,
embora por insensatez, porque servos ali foram nascidos, e o trigo cuida de
todos por igual. Falta peso balana que celebra alguns, mas esquece os que
no so teis vaidade. Para as crianas os pais tm majestade que chegue,
ainda que sejam escravos, e na memria da meninice so mais vezes
importantes os servos do que os senhores.
No conheci os meus avs, e o meu pai no falava da infncia, mas sei
que casou jovem. Esperava seguir a palavra do Senhor e multiplicar os seus
fiis, j que o Criador colocou vida sobre a terra para que mais vida
houvesse.
Porm, a mulher que escolheu no foi abenoada, e no deu flor ou fruto.
De nada valeram os sacrifcios, mos e altares tingidos de sangue, rebanhos
dizimados em oferendas. Dez anos passaram sem que concebesse um filho,
pois o seu tero manteve-se vazio, como se rocha fosse lanada a
semente.
Rogou que velhas lhe segredassem remdios infalveis, poes e ervas,
sigilos de mulher. Procurou rabis e mdicos, jejuou e, no templo, entregou
tudo o que possua.
Cumpria os mandamentos e todos os preceitos. No entanto, o Senhor no
ouvia os seus queixumes e no olhava por ela. Por isso, em cada ms que
passava envelhecia muitos anos, numa melancolia que lhe consumia a
vontade. Nos momentos de nudez no sentia um bero, mas um tmulo.
Porque no tinha prstimo, e o que dela se poderia obter todas as
mulheres podem dar, foi enviada de volta para a casa de onde sara, com
carta de divrcio e restituio de dote. Nunca a conheci, mas creio que se
consumiu e, como coisa sem prstimo, no cho ficou esquecida.
A minha me era apaixonada pela cor, o meu pai era escravo do olfacto.
Pelas paredes da casa acomodavam-se os dois sentidos, quando as roseiras
enlaavam as pedras e o barro, no enleio de quem ama. Foi assim que
vislumbrei os meus pais quando, em certa noite, fui atrado por um choro
sumido, lamento abafado que, no silncio da noite, me fez espreitar o seu
quarto.
Por vezes, deitado no cho, coberto pela manta que a minha me tecera,
fingia dormir, e de soslaio olhava o meu pai que descansava a palma da
mo sobre o ombro da sua mulher. A ponta dos dedos procurava no decote a
pele que o reclamava. Ela sorria, e achava engraadas as coisas atrevidas
que os dedos diziam.
Eu suspeitava que se teria enganado aquele que tudo sabe. Ele disse a Eva:
Procurars com paixo a quem sers sujeita: o teu marido. Porm,
servo aquele que ama, seja mulher ou homem, e o meu pai era prisioneiro e
no senhor. Percebi que nunca se tinha apaixonado o que clamava: Eu sou
Aquele que Sou, e interrogava-me sobre o que aconteceria se tal
sucedesse.
Tinha dezasseis anos quando fui com o meu pai a Jerusalm celebrar a
Pessach. H muitos anos, o Deus guerreiro imps ao fara a sua Lei e,
perante a recusa do egpcio em libertar-nos, o anjo vingador passou
benvolo por sobre a casa dos judeus, enquanto destrua os primognitos dos
opressores, fossem eles nascidos da mulher, ou de animais grados ou
midos. Celebrvamos a vida de quem nosso, e a fora que, ao ferir o
inimigo, libertara o nosso povo.
Era longa a jornada at ao Templo, e perigoso o caminho que salteadores
e feras vigiavam. Connosco seguiam familiares e vizinhos. Pelo caminho
juntavam-se peregrinos que engrossavam o grupo que, medida que
crescia, mais seguro se tornava. Os msculos gemiam, faltava o ar, mas a
vontade resistia. As sombras que antecipam a noite faziam a sua apario e,
quando a lua surgiu, Jerusalm no se avistava. Era intil prosseguir
caminho, porque nas trevas se escondem os que se aproveitam dos homens
de f.
O meu pai decidiu pernoitar numa estalagem das muitas que naquela
poca se preparavam para acolher os peregrinos. Para nos receber, sobre a
mesa foi lanada toalha branca, lentilhas, figos, po e azeitonas, tmaras e
mel, e todos os que tinham fome se saciaram. Os homens ensopavam em
azeite o po sem levedura, e amenizavam as ervas azedas com os quatro
clices de vinho que a tradio impe e a alegria requer. No andar de baixo
acumulavam-se os animais, que faziam chegar ao piso de cima odores e
rudos, numa intimidade entre homens e bichos que a noite acentuava.
Enquanto vacas, ovelhas e cabras roam o feno da sua rao, os homens
comentavam os incidentes da viagem, e os velhos buscavam, nos restos da
memria, histrias que valia a pena recordar.
De repente calaram-se as vozes, as paredes tremeram, e o tecto parecia
ceder perante o rugido que de perto seguia os relmpagos que cruzavam a
noite. Traos de luz uniam o cu e a terra, que se fundia e quebrava em
lamentos roucos, como ondas que bramissem no deserto.
Era enorme o espectculo, na beleza do fogo que o cu incendiava.
Tremia a casa e estremeciam os homens, na angstia de ser aquele o dia
em que o Senhor esmagava um carreiro de peregrinos porque, ainda que
dispostos a mostrar fidelidade e a agradecer os favores outrora conferidos,
traziam, todos somados, quantidade suficiente de pecados para justificarem
a interveno divina que, ao espezinhar, purifica.
Por momentos a tempestade parecia ceder, como fera que volta ao covil.
Pausa para o cu descansar e vivermos em silncio os momentos em que o
corpo descansa. Mas eram breves as trguas que o cu concedia e, de novo,
estremecia a casa e a noite.
O silncio do meu pai quando se ergueu contrastava com o ribombar dos
troves que assustavam a terra amedrontada. Olhou em volta, acenou a uns
e outros como quem se vai retirar, e agarrou-me no brao para que o
acompanhasse. Nada me disse, e eu nada perguntei. Foi no meio do
ribombar ameaador da voz dos cus e das fascas que os olhos da noite
lanavam sobre a terra que o meu pai me encaminhou para uma sala no
canto mais afastado da casa.
Com os ns dos dedos deu duas pancadas discretas e, antes que a porta se
abrisse, desfez a fora que o prendia ao meu brao. Virou costas e, com um
passo que se aligeirava, afastou-se de mim, deixando atrs de si um rasto de
incenso. Fiquei s, sentinela a uma porta fechada, envolto em relmpagos
que troves festejavam. O tempo deteve-se, mas apenas alguns segundos,
porque aps um rudo de trinco que se eleva, de um fecho que gira ou
desliza, a madeira livre rodou com lentido. De dentro do quarto, escapando
da penumbra, surgiram perfumes que conhecia: rosa, sndalo, blsamo,
mas tambm o odor acre que sentia exalar do corpo da minha me quando,
cansada de certas noites, se erguia pela manh.
Na ombreira, a contra luz, surgiu uma figura de mulher, um perfil apenas
vislumbrado, como ao anoitecer os cumes redondos das montanhas. A
mulher pegou-me na mo, olhou-me nos olhos e sorriu, e com delicada
persuaso, que afastou o medo e o espanto, chamou-me para dentro.
Um leito de linho, almofadas de cetim, e velas que queimavam odores
doces contrastavam com a fria do cu que emprestava tambores. Os seus
olhos eram dois mundos negros debruados a verde. Lembravam-me lagos
noite, e debrucei-me sobre eles como se buscasse gua do fundo de um
poo. No se importou que assim a olhasse, e com gentileza fez-me sentar e
lavou-me os ps sem mais erguer os olhos, com a delicadeza de quem se
orgulha de servir, porque o faz com arte. Depois secou-os, pegou-me na
mo e recostou-me entre almofadas, como se fossem o seu peito.
Tomou conta de mim e, como uma me guia o seu filho, entre odores
intensos e texturas que nunca tinha experimentado e nem mesmo Galeno
me avisara que existiam, levou-me por caminhos que desconhecia, at
sentir que algo tinha mudado no meu ser. Temi que parte de mim tivesse
ficado amputada quando de dentro dela sasse, mas antes de o confirmar, e
tal como o sangue se esgota em borbotes quando irrompe das artrias,
tambm em soluos se escapou a minha alma.
Quando fechei os olhos, senti-me em paz, embora pouco depois a fadiga
doce e indolente desse lugar exaltao de um guerreiro que sente os
msculos tensos, ainda que sem avistar o inimigo. Pensei que o sublime se
resume a um instante, e que se pode condensar a criao num s momento.
Foi quando tudo terminou, que uma nova viagem comeou. Senti a pele, o
volume e os pelos. As ausncias e as presenas, a geografia de um corpo,
fendas, cumes e riachos, pas que podia explorar caminhando com os dedos,
viajando de rastos como a cobra, sorvendo cheiros como a serpente
agitando a lngua, perscrutando como um bicho, na exaltao do predador
que, quando finca, se sente presa.
Sa agradecendo a generosidade daquele corpo que o meu pai comprara.
Na manh seguinte partimos para Jerusalm. O cu estava limpo. Ouvia-
se o coro de pssaros que desperta a manh, e fazia-se sentir a presena do
Deus que ao homem ofertara um jardim.
Percebi, aos vinte anos, que os olhos do meu pai tinham mudado. Por
vezes perdiam o brilho e pareciam descansar, como se partissem do cais das
convices seguras para na viagem embaterem na dvida que cansa,
porque implica nascer mais uma vez.
Tinha envelhecido. De incio vestia com ironia os conselhos que buscava.
Queria saber o que eu pensava, mas no o fazia de forma clara, e
disfarava as intenes. Corria a vida, e chegava a hora de passar o
testemunho. Desistindo ento do embuste que a si prprio se fantasia, fazia-
me sentar a seu lado, e ouvia atento, e em silncio, as respostas que lhe
dava. Espantava-me que nos tornasse irmos o seu aceno de cabea, no
assentimento de quem partilha o pensamento.
Surpreendi-o algumas vezes a comentar com os amigos a arte que de
mim nascia, ou a fora dos meus braos, ou at a gentileza do meu carcter.
Quando me colocava a mo sobre o ombro, sentia uma diferena, uma
espcie de confisso subtil, como algum que fraquejasse e procurasse
amparo, e no mais pudesse afianar a firmeza que garante a proteco.
Na balana da vida aumentava o meu peso e, se era certo que o dele
menos valia, a verdade que a mudana lhe trazia paz, e um sorriso.
Cheirava a Outono, e as mos do meu tio Benjamim pareciam folhas de
oliveira agitadas pela brisa. Eu assumia a responsabilidade de bancos e
mesas, portas e janelas, rodas e arados. Com os aparos da madeira construa
miniaturas de carroas. As crianas, temendo que me arrependesse de lhes
oferecer tanta riqueza, guardavam-nas entre as vestes, como bandidos que
possuem um tesouro. Eu sorria ao testemunhar o fim do crculo que to bem
servira a minha infncia.
Passaram anos sem que de novo tivesse conhecido a mulher. Bastava-me
a memria daquele dia, e a sensualidade da matria que a minha arte
transformava. Porm, um dia o meu pai sentiu a primavera. Olhou para
mim, mediu a fora dos meus braos, a firmeza da minha vontade, e
compreendeu que chegara a hora.
Saiu de casa e bateu a porta, porque tinha de ajudar o filho a cumprir o
que a natureza ordenava. Percorreu as ruas enquanto sorvia o ar,
procurando entre os odores que das casas transpiravam o perfume que lhe
garantisse que era certa a sua escolha.
Estava calor e Belm suava. Cidade como um corpo ansioso que de si
liberta os odores que noutras ocasies esconde. Numa casa cheirou fortuna,
noutra juventude, e noutra ainda a erva da melancolia, mas em nenhuma
algo que em pleno o satisfizesse.
Armou-se ento de um cajado e partiu, peregrino em busca de uma
mulher que, ao rasgar-se, oferecesse as crianas que transportam consigo a
histria dos antepassados, e o nome da famlia.
Num dos extremos da cidade falaram-lhe da filha de um mercador que
vira os seus barcos afundarem-se e, com eles, a honra e a fortuna. Vivo,
praguejando contra a sorte que o fizera mergulhar na desventura, trazia
perto de si o nico bem que lhe restava: a filha, a quem chamava Salom e
que, havia pouco, tinha terminado os seus dias de criana.
Ao passar por ela, o meu pai estacou. Ergueu a cabea e aspirou o ar.
No sentiu odores de tecidos, nem cheiros a leos, nem o calor do ouro ou a
frieza da prata. Na verdade, dela nada vinha que exaltasse os sentidos. Uma
vez mais encheu os pulmes como fazem as feras. Para seu grande espanto
o ar no continha rudos ou palavras, mas apenas o silncio que o grito do
nada. O meu pai, prudente como era, e tendo na vida sofrido a urgncia do
desejo e sido prisioneiro por amar, entendeu que aquela rapariga que nada
exalava era fonte segura, cho que no tremia, ar que no ventava. Pensou
que a um homem que famlia tem de provir era um fardo a menos uma
mulher sem perfume, e desejou para o filho quem o no fizesse sofrer.
Soube que nos uniam antepassados comuns, o que era bom, porque entre
ns duraria o que a ns pertencia. Pediu licena para visitar a casa do
mercador, e deu-lhe a saber a inteno da sua visita:
Tenho um filho que se fez homem, e mais no disse.
A sabedoria de ambos h muito os ensinara que para ter era preciso dar e,
como homens experientes em negcios, olharam-se nos olhos e de pronto se
conheceram, pelo que no demorou muito at que tivesse sido acordado o
contrato e acertado o dote e o resgate.
Ao retirar uma jovem de sua casa, teria de restituir ao pai o que at ento
gastara com a filha, indemnizando-o por ter arrebatado quem era capaz de
trabalhar. Acertado o justo valor, ambos beberam pela mesma taa o vinho
da celebrao, selando, perante testemunhas, o acordo entre as famlias.
Convidaram-me a conhecer Salom. Quando os nossos olhos se
cruzaram, espantou-me no sentir calor ou frio e no reconhecer no seu
olhar estao do ano, ms de vindima ou de searas, mas apenas o tempo de
guas paradas, o nada da noite ou do frio, o silncio que se segue ao grito da
guia. Procurei adivinhar que perfume o meu pai tinha nela reconhecido,
mas no fui capaz.
No antecipei exaltaes, mas um futuro feito do tempo que passou, po
sem levedura, a segurana do que se no move. Nada me permitia contestar
a sabedoria de meu pai, que ao viver tantos anos entre cheiros intensos
decerto saberia o que convinha a um jovem que no conseguia colher do ar
os ensinamentos que ele transporta, e que apenas tinha como slido o que as
suas mos acariciam.
A Salom disse o meu nome, e em que me ocupava. Falei de como
ficaria grato se aceitasse a proposta e se juntasse minha famlia. Prometi
ao seu pai que, durante um ano, me teria ao seu servio no que necessitasse
e que a madeira pudesse dar. Depois o meu corao bateu mais forte, secou
a boca, e a garganta engoliu uma refeio de nada. Antes que o embarao
enchesse a sala, ofereci-lhe um anel. Ela no respondeu, mas de olhos
baixos pegou na minha oferenda e, ao aceit-la, selou o seu compromisso, e
a mim se consagrou.
Bebemos o vinho pelo mesmo copo, a bno foi lanada e, para sempre,
ficou fechado o nosso acordo: inquebrantvel, solene, porque trado
implicava a morte.
Achei-a gentil. Decerto vivera os poucos anos que tinha em grande
recato. Nada conhecia da vida ou dos homens. Ao pensar nisso enterneci-
me, e jurei que cuidaria da rapariga sem cheiro e sem luz, porque tinha sido
pequena a dimenso do seu mundo e era vulnervel a sua alma. Porque o
futuro para uma criana, dado que escasso o passado, no pode ser
sonhado, jurei a mim mesmo que no trariam dor os dias do porvir.
Um ano durou o nosso noivado. Nesses meses, Salom aprontou o enxoval
e, atravs das mulheres da famlia, foi preparada para o casamento e o que
ele exige. Durante meses, mos delicadas banharam-na em leos
perfumados, para que ficasse sedosa a sua pele, e apagadas as marcas que o
trabalho sempre deixa. Sobre os homens, seus desejos e vontades, no sei
que perguntas fez, nem que respostas ouviu, mas suponho que no final
esperou para saber, porque a experincia dos outros nem aos prprios
muitas vezes aproveita.
Juntou as jias que haviam pertencido sua me, mais o que pde
comprar com o esplio do mercador.
Numa arca guardou a tnica cor de prpura. Pensou que no me
agradaria a sua transparncia de gua e, em potes de alabastro e nforas
delicadas, recolheu os pigmentos que a tornariam desejvel aos meus olhos.
Ao ferro e ao chumbo foi buscar brilho e cor. Pensou que dessa forma
romperia com a monotonia ocre do deserto, e me lembraria uma flor ou um
osis e, se assim fosse, seria delicado com a sua cintura quando a tomasse,
gentil com a minha mo quando a colhesse e devagar saciasse a minha
sede, porque com temperana que se cheira o perfume da rosa.
Durante doze meses aguardou que o breu da noite fosse interrompido pela
luz dos archotes e se quebrasse o silncio num alarido de festa e de tumulto.
Haveria msica, mel e vinho, danas e cantares. Poetas declamariam
louvores sua beleza. Votos de fertilidade celebrariam um novo
encarceramento, uma outra priso.
Pela minha parte fiz o que devia, porque ao homem cumpre construir o
tecto que a famlia abriga. Levantei argila, pedra e ramos de rvore, como
os pssaros quando fazem o seu ninho. Tomou forma a nossa morada, numa
construo ligada casa do meu pai.
Pelo tempo estipulado servi, sem um momento de cio, o mercador a
quem tinha resgatado a filha. Fosse dia ou noite, quem passasse ouvia, vindo
da carpintaria, o rudo dos instrumentos ferindo a madeira, e um homem
acorrentado sua palavra.
Nesse ano no mais vi Salom, nem a sua imagem de vidro. Com o
tempo, a mulher sem cheiro perdeu a forma. Dissolveu-se a memria, e
restou apenas a ideia de que existia, tal como Deus no Cu; mas Salom era
bruma que o vento no levava, pois estava prometido o que havia de ser.
Os dias correram o ano, at que de novo surgiu a brisa que inflama os
homens, as plantas e os bichos. As roseiras de casa de meu pai despontaram
do seu sono, e aromas de renascimento entraram pelas janelas. Salom no
sabia se o perfume vinha dos leos que a banhavam, ou se era a primavera
que floria.
Dentro de mim erguia-se um sentimento de urgncia, de fazer parte do
coro que cantava a terra frtil. Sentia-me pronto a semear e a colher.
Chamei os amigos e pedi-lhes que se vestissem de ouro e prata, pois tinha
chegado a hora e estava preparada a minha casa. Pela noite nos juntmos e,
quando a lua estava bem alta, abandonmos a morada de meu pai para
tomar a minha noiva. Era uma daquelas noites em que o ar nos abraa e a
negrura nos serve de agasalho.
Noite limpa, sem ndoas, s com estrelas. Entre as vielas prosseguia a
procisso. Archotes ardiam nas mos dos jovens que, com brados e
cantares, despertavam as gentes que dormiam. Ces faziam coro. Dos
terraos surgiam mulheres que entoavam gritos de regozijo, sem saberem
bem o que celebravam, excepto que a noite profanada prometia novas
vidas. Por isso, vozes renovadas se ouviriam quando outras vidas se
calassem.
Ao sentir o alvoroo que se aproximava, Salom compreendeu que tinha
chegado a hora. Com a ajuda da famlia, num frenesim nervoso que ordens
desordenadas aumentavam, reuniu o que lhe pertencia. Eu caminhava
frente do cortejo e achei-a bela quando surgiu adornada de moedas de prata
que, presas do cabelo, pareciam chuva que cara sobre si. Familiares e
amigos rodeavam-na como vendedores de um bazar, elogiando a sua
perfeio como quem exalta uma pea de tecido.
De volta a casa de meu pai, tinha-se alargado o cortejo e aumentado o
alarido. Toda a cidade festejava, e os convidados celebravam uma
felicidade que no lhes pertencia.
Salom seguia a meu lado, transportada na liteira que escravos
seguravam. Quis ver se nos seus olhos batia o corao, mas o vu tornava-a
invisvel, fantasma apenas notado pelos panos que lhe davam forma.
Apiedei-me dela, queria dar-lhe a mo, dizer-lhe que tambm eu no sabia
que viagem era aquela, que correntes nos levariam, onde estavam os portos
que nos deviam acolher, e que eram insensatos os que, entre gritos,
celebravam um barco deriva.
Na casa de meu pai todos lavaram as mos para que entrassem puros,
embora a gua, para que banhe a alma, tenha de ir mais fundo. Ao chegar o
ltimo conviva, que balbuciava pedidos de perdo, foi encerrada a porta e,
de imediato, os convidados prosseguiram os festejos entre nacos de borrego,
bolos de mel, vinho, frutas e tudo o que aquece o corpo e a alma. Todos se
serviram entre gargalhadas e abraos, porque o vinho faz esquecer.
Sentados num estrado que um dossel cobria, recostados em almofadas de
seda ou de cetim, ramos espectadores de uma festa que nos devia servir,
mas que outros celebravam. Estendiam-nos a mo folhas de figueira, que
ofereciam tmaras, mel e amndoas.
Olhei para Salom. Tentei dirigir-lhe a palavra, dar-lhe as boas vindas,
ench-la de sossego, mas da minha boca nada saiu porque era grande a
aflio, e o que lhe poderia dizer tinha o sabor da mentira. Bebi ento mais
um clice de vinho, e outro aps este, e pareceu-me que o corpo se elevava.
Discreto, toquei junto minha perna e senti que o membro obedecia.
Perante os brios que entre dentes o vinho destilavam, peguei na mo da
menina que tinha resgatado, tal como o meu pai um dia me fizera e, sem
nada dizer, ordenei que me seguisse.
Tocavam-se os dedos ao de leve e, atrs de ns, como ces que farejam
uma cadela disponvel, seguiam dois amigos, rodas de carroa rangiam em
silncio. Estaquei perante uma porta, como outrora tinha feito, quando pela
primeira vez conhecera a mulher. Olhei ento para o seu vestido, de leve
toquei a manga, e pressenti um corpo que tremia. Foi fcil abrir a porta,
fazer escancarar a arena que nos esperava. Demos dois passos e entrmos
no destino. Cerrmos a entrada, e deixmos de fora quem, naquele teatro,
estava a mais.
Do outro lado da margem ficou quem nos seguia. Aguardavam que dois
corpos num apenas se fizessem e, ao terem disso notcia, pudessem anunciar
que estava consumado o propsito da festa.
Salom e o seu marido estavam frente a frente, no embarao de duas
crianas que se encontram e se interrogam se tm parceiro para brincar.
Toquei-lhe o cabelo. Desprendeu-se uma moeda que rolou pelo cho at se
aquietar. Pedi-lhe que levantasse o vu, e os seus olhos pareciam os de um
bicho que perante a luz se encandeia. Peguei-lhe na face como se fosse uma
menina. Beijei-lhe a boca. Sabia que os trajes que a adornavam lhe
protegiam o pudor e garantiam louvores de homens e mulheres. Sentia-a
ansiosa do meu olhar, quando me revelasse sem adornos a sua nudez. Temia
ser como certas rvores que no inverno se mostram feias ao deixar cair as
folhas que as vestem.
Dos ombros retirei o manto, e o que vi a mim apontado deixou-me grato.
Fechei os olhos e recordei os perfumes da infncia. O calor do vero, o
amarelo das searas, o ocre do deserto. Deitei-a a meu lado e recordei o
espalhar das mars e o som das ondas, que so o arrulhar de pombos sobre a
praia.
Visitou-me o azul do cu e do mar, o silncio do deserto, os cascos dos
cavalos que galopam, e toda a festana que se derrama sobre um homem
que sente crescer dentro de si a fora que d vida.
Nada digo que traia a intimidade que se no deve revelar, porque a outros
no cabe saber o que apenas ao marido e mulher diz respeito.
Se a histria que vos conto pertence a Deus e aos homens e fala de carne
e sangue, suor e loucura, palavras e dor, sempre vos direi que o homem que
se d a conhecer a muito cuidado obrigado, porque a terra devagar ser
lavrada, o casco do barco o mar fere gentil, e o bater das asas que vida d
impulso ao nada se segura, quando rema no vcuo, em direco ao cu.
CAPTULO II
Todo o primognito me pertence
[xodo 13,12]
Do alto da montanha o Senhor fez rolar a pedra da vida, que consigo outras
pedras arrastou.
Deus deu ao homem uma companheira, e determinou que dos dois corpos
se fizesse um e perdurasse o que Ele tinha iniciado. Emergindo de um mar
de sangue, anunciado por gritos de dor, surge de um ventre rasgado o fruto
do que o senhor ordenou e, no sofrimento, choramos lgrimas de alegria.
A quem pertence um filho? Eis a questo. Poder-se-ia argumentar que
da mulher que o gerou, porque no seu ventre cresceu, e do seu leite se
alimentou. Em tempo de aflio o homem recua infncia, e dela se
lembra.
Mas tambm do pai, de quem por igual copia as feies e, na juventude,
bebe os segredos da arte que lhe servir de sustento.
dele que o filho colhe o que a vida ensina, e no seu conselho encontra
refgio quando surge a dvida. Se assim , porque reclama Ele o
primognito? Que cime encerra esse desejo? Porque se assemelha ao
ladro que usurpa o que no seu? Porqu o primeiro e no o ltimo? Ou o
do meio? Poder-se-iam oferecer os que se chamassem Jacob, ou outro
nome qualquer que ao Senhor aprouvesse.
O Criador tem na mesma mo a generosidade e a avareza: ordena que
nos multipliquemos, mas depois reclama o nosso contributo.
Eu recuso a devolver-lhe o que meu, e no dia do juzo final direi que
impe ao homem mais do que o dzimo, e dele se inveja, porque o senhor s
exige do escravo o que deseja possuir, tal como aquele que difama s o faz
por reconhecer no injuriado as virtudes que no tem.
Saram de minha casa quando a lua se insinua. Reparo agora que o sol se
aproxima do seu pico. O passado encurta-se medida que envelhece. As
minhas ltimas palavras caram na terra porque no h vento que as
transporte. Mas que importa? Deus exige o primognito, porque inveja o
amor que o fez nascer.
CAPTULO III
O Senhor est contigo
[S. Lucas 35]
Hoje, vista do outeiro onde me sento, a manh no assim. A luz parece mais
toldada e o brilho das pedras mais bao, ou sero os meus olhos que se
fecham, cansados do que viram, desejosos de sossego?
Sobre ela quis saber mais. Disseram-me que at idade de doze anos
tinha estado ao servio do templo e pelos sacerdotes guardada e que Ismael,
o rabi que tinha visitado a minha casa, tinha por ela especial afeio.
Decidi procur-lo.
A sua casa ficava distante da minha, j que morava perto da sinagoga, no
centro da cidade, e eu na orla que a separa do deserto, porque sempre quis
estar mais perto do nada que das gentes.
Acolheu-me com um beijo e um abrao fraterno, onde senti a amizade
genuna. Depois fez-me sentar e aguardou que eu falasse.
Rabi Ismael, s um mestre justo e de muito saber. Homem de paz e
tolerncia que conhece a Lei e como interpret-la, porque nem sempre
clara a vontade do Senhor. grande a tua sabedoria, e muitos te procuram
por seres sensato. Pareces compreender que a Palavra de Deus no anda
muito longe do verbo do homem. Porque sabes como esto prximas as
coisas do cu e da terra, e por igual percebes das questes dos dois mundos,
eu te procuro.
Confesso que no tinha este discurso meditado, antes surgiu por albergar
no meu peito ideias confusas sobre a carne e o esprito, serpente enrolada
em rvore de fruto, e no sabia como separ-las.
Amava aquela figura de rapariga e o seu riso, olhar sem mcula de uma
criana. Era despojado de ardor esse sentir. Mas sabia que se a abraasse de
pronto outras foras surgiriam, e a terra de onde brota a vida afastaria para
longe a viso do anjo e daria lugar vontade de arrancar dela as asas,
deixando apenas o corpo da mulher.
No revelei estes sentimentos, antes tratei do negcio que nos tinha
aproximado. Comecei sbrio, falando dos argumentos que um homem deve
usar na ponderao com que decide os seus actos. Repeti razes de um lado
e outro, mas sem particular paixo, como se equilibrasse uma balana.
Interrompi o meu discurso para saudar a mulher do rabi, que por sua
ordem trazia vinho para, segundo ele dizia, saciar a sede de quem h muito
caminhava.
Era uma mulher feia, das que, por nunca terem tido formas, guardam em
si azedume, porque o leite e o mel que as mulheres oferecem parece por
vezes depender de terem os seus corpos a forma de vasilha, que sobre ns
derrama a doura que contm.
Depois pensei em Maria, e na alegria de a poder ver todos os dias.
Imaginava a minha mo j enrugada na planura da sua pele, no contraste
entre quem muito j viveu e quem se mantm ainda inexplorada e curiosa.
Ao am-la assim, esquecia tudo, nada mais via seno um mundo sem
mortes ou doenas, uma existncia sem rancor, cime ou inveja, apenas a
glorificao do sentimento. E apiedava-me do pobre rabi que muito sabia e
pouco vivia, confessando assim uma ignorncia mais funda do que a minha.
Foi por isso, ou porque o vinho liberta a paixo do jugo da prudncia, que
pouco a pouco esqueci a cautela da linguagem reflectida e a propsito do
casamento comecei a discursar sobre a vida, exclamando que a existncia
se justifica pelo que alberga de paixo e de remorso.
Perante a minha exaltao, o rabi respeitado e sbio cofiava a barba sem
saber o que pensar, despido da autoridade das vestes, perante quem se
interrogava com veemncia sobre os fundamentos da existncia e o destino
do povo de Deus. Era claro que eu era uma ovelha que dispensava o seu
pastor, ousando afastar-me do rebanho, mas talvez por ter uma mulher feia,
e um dia ter sonhado com desejos exaltados, no me olhou com censura.
Pense comigo disse-lhe, ao perceber que sobre mim no lanava o
antema Em todo o universo reina a harmonia. Estrelas giram entre si
sem que tombem no vazio do universo. O sol nasce e morre sem que
algum exija um pouco mais de luz para a terra lavrar, ou reclame que se
prolonguem as horas de escurido, para que o homem de manh possa de
novo ressuscitar, hbil e pronto.
No entanto, quando Ele se debrua sobre os assuntos dos homens que a
ordem natural das coisas parece perturbada. O Senhor que sua imagem os
filhos construiu, para que as aces do homem se processem na harmonia
que deseja, armou-se do chicote. Imagine clamava, cada vez mais brio
e portanto mais convicto que nas minhas pobres esttuas crescia a vida, e
dentro delas a seiva tivesse cor, e lhes permitisse que sentissem e errassem
e, ao v-las falhar, lhes gritasse: como ousastes?! e de pronto as esmagasse
indignado, por no terem conseguido elevar-se para alm de mim. O Senhor
exige de ns a perfeio, mas afirmo, porque o sei, que s no sentimento ela
existe.
O rabi permaneceu em silncio. Nos seus olhos vi cansaos e um homem
pronto a desistir, enquanto as mos de patriarca, slidas como arados,
continuavam a lavrar as barbas em gestos lentos de quem pensa.
As mos de um homem contam a sua histria.
No silncio que se seguiu ao meu discurso, o corao bateu mais
depressa. medida que olhava para aquele homem digno, a quem tinha
gritado as minhas verdades e perturbado a paz, instalou-se o arrependimento
que ia crescendo com o medo de ter ido longe demais.
Foi no tom lento de quem mede as palavras que o rabi falou:
Meu amigo, da tua boca saem palavras que traduzem o julgamento do
teu corao. Falas de algo novo, que foge s asperezas da nossa vida que se
consome entre pedras e calor. Dias que a dias se seguem na esperana de
que o Pai, que tanto exige, julgue ter chegado a hora de estender sobre o seu
povo a mo generosa e boa e, ao faz-lo, nos liberte.
Para que Ele de ns se lembre, cumprimos com rigor as suas instrues,
seguindo sem desfalecer regras e preceitos. Mas tu falas de coisas
diferentes. Ao faz-lo corres grandes riscos, porque o homem comum no
compreender o que tu dizes, e bastar um de entre eles erguer-se contra ti
para que de pronto surja um coro que te afronta, e atrs das vozes em
unssono viro os punhos que aniquilam e, ao faz-lo, sossegam as turbas,
porque acreditam que ao destruir apaziguam as foras do destino.
Gosto da tua celebrao do amor e sentimento, e estou certo de que, tendo
agora atingido a idade madura que aperfeioa a reflexo, se tiveres um filho
lhe ensinars esse caminho.
Acontece, porm, que para tal precisa o homem da mulher, e ela deste.
Por isso toma em tua casa a jovem Maria. A meu cargo ficar, e durante
um ano as mulheres a prepararo para que te receba.
Em breve irei propor a seu tio este negcio, mas no antecipo resistncia
porque ela de seu nada tem, a no ser a companhia persistente dos pssaros
que por todo o lado onde v se lhe juntam, fazendo de todas as estaes a
primavera.
Despedimo-nos num abrao fraterno, e prometi que o viria visitar mais
vezes.
A caminho de casa exultava num turbilho de planos, pelo que, embora os
meus passos corressem no presente, o resto de mim vivia no futuro.
Era altura de casar Lia. Tinha de procurar um homem a quem a ausncia
de cheiro ou de calor no perturbasse e, quem sabe, nela matasse a sua
sede, porque tambm fria e sem perfume a gua da nascente.
Depois pintaria a minha casa de cores alegres. Em cada canto uma flor
para que os quartos se assemelhassem a jardins. O sol entraria todos os dias
pelas janelas que mandaria alargar. Quem passasse poderia olhar para
dentro e descobrir o que ser feliz. Tecidos novos, linhos e sedas, estariam
disposio da noiva, para que a perfeio a beleza encontrasse. Em arcas
velhas procuraria os perfumes mais exticos, restos de preciosidades,
herana e memria do meu pai.
Pela cidade fiz saber que Jos o carpinteiro procurava marido para a
filha. Mandei recados pelos mercadores para que onde se encontrasse um
judeu lhe falassem de Lia, a jovem que tendo voz preferia o silncio, tendo
olhos no os erguia, e tendo ouvidos no revelava. Que era formosa para
quem admirasse em silncio as coisas belas e difceis de agarrar, como
aquele instante em que o dia muda de cor e a noite no comeou ainda.
De barco chegou um homem que aparentava a minha idade. Era nobre e
rico, vinha de Alexandria e conhecia bem os gregos e o seu discurso. Trazia
consigo a fama de muita reflexo e o estudo do Livro sagrado. Era
respeitado por todos, e acreditava que a inteligncia iluminava mais do que o
farol da cidade onde nascera.
Carpinteiro, sei que tens uma filha que parece feita de bruma, que
prefere a noite ao dia e que, tendo saudades, se olha ao espelho.
Assim , mas todos ns temos uma aparncia que a sombra criada
pela realidade escondida.
O homem sbio de Alexandria acenou com a cabea e afirmou que sabia
ser assim, pois at o que estava escrito nos livros sagrados muitas vezes no
era mais do que alegorias que permitiam aos homens simples compreender
as coisas grandes.
Disse-me que lera todos os volumes da biblioteca da sua cidade, que
queimara os olhos ao tentar ver para alm do que o farol mostrava, mas que
nunca se instrura num volume por escrever, e que nunca vira uma
paisagem por definir. Era por isso que queria casar com Lia, porque
conhecendo ele o corpo, queria viver com algum que se aproximasse do
puro sentir.
Lembrei-me ento do meu pai que comia os cheiros, e de minha me que
lambia as cores, e de mim mesmo que precisava dos dedos para ver. Depois
pensei em Salom de quem tinham roubado os odores e desbotado o rubor, e
que parecia existir sem consistncia.
A minha filha como o pensamento, ou o nevoeiro que a luz do teu farol
penetra. Se queres ser como ele e atravessar o frio da noite, na tua cama ter
a bruma, agarrar o que indistinto e conhecer de perto o silncio e, depois
de a amares, sentir no teu corpo, no os pingos quentes do suor, mas a vaga
humidade da neblina, leva-a, e tenta ser feliz.
O homem de Alexandria pediu para a ver. Lia surgiu bela como uma
miragem. Osis de repouso, gua de beber e sombra. Tudo isto enquanto
misterioso sopro ondulava devagar a sua tnica e lhe realava a figura.
Ao v-la recuei uns anos, comparei, e pensei que era mais bela a filha do
que a me.
No tratei de contratos e no fiz exigncias. O judeu do Egipto no pediu
dote.
Nessa mesma noite levou-a no barco para Alexandria. Diz quem com
eles viajou que, fosse de noite ou de dia, enquanto durou a jornada mal se
via o topo do mastro, pois que em volta da noiva se acolhia o nevoeiro, e
dentro dele parecia soar o som que o vento faz nos bzios e que os velhos
marinheiros aprenderam a temer, porque anunciava as rochas e seus
cumes.
Fiquei s, ou antes, com mais tempo para ter a companhia de Maria.
estranho, mas no voltei ao mercado. Poderia t-lo feito encoberto.
Dissimulado como um ladro emboscado na estrada que usasse os olhos
para roubar, e para si guardar um pouco da presena de quem ainda no lhe
pertencia. Mas h momentos na vida em que percebemos que a luz, o brilho
da terra e a serenidade do ar nos so dirigidos, porque mais ningum os pode
apreciar da mesma forma. Esses instantes em que a vida se aquieta a
memria guarda como oferendas que o Deus generoso nos destina, como se
fosse Ele o homem, a vida o altar, e ns a divindade. Esses momentos so
frgeis como conchas, e intil tentar repetir as horas, porque nenhum dia
voltar a ser como foi.
Outras vezes voltei a casa do rabino, at que ficou acordada a data em
que me iria encontrar com Maria, e na presena da sua famlia mostrar
quem era e ao que vinha.
Intil recitar detalhes, expor rituais que todos conhecem.
No trazia comigo ouro ou diamante. Ofereci-lhe a obra mais perfeita
que tinha composto. O seu corpo redondo era macio e quente, e tinha de ser
seguro com a gentileza com que se pega o barro frgil. Foi assim que lhe
falei, ao pedir que recebesse o que em sua homenagem lhe ofertava porque,
se o fizesse, a mim aceitaria, j que nada distingue o criador da obra criada.
Maria: Passaram os dias e correram as noites na procura de oferenda
que vos servisse. No conheci descanso, nem dei por que as horas
morressem. Na minha oficina o dia era penumbra e a noite uma caverna.
Envolto num manto de sombras a minha mente partiu a cruzar fronteiras.
De frica recusei o ouro cujo brilho desmaia quando vos v. Da sia
desprezei gemas de cores exticas, porque no vosso colo nada seriam seno
o que a natureza lhes destinou no princpio e no fim: pedras apenas que os
homens pisariam antes de serem notadas.
Fui em caravanas cruzar o deserto. Entrei em tendas, busquei miragens,
mas nada vi que vos pudesse servir. Demandei os meus filhos, mandei
emissrios, e pombos com escritos lancei para o ar, para que me dissessem
se entre as ervas, perfumes e leos se encontrava algo que tivesse mistrio e
acrescentasse uma gota que fosse ao vosso encanto. De volta recebi o que
de mais raro existe na terra, mas os aromas que entontecem faziam-me
sbrio, comparados com o que me inebria sentir-vos por perto.
Ervas que curam a melancolia de nada serviam como presente, porque o
doente era eu.
Enviei marinheiros, e ao vento pedi que no se enganasse a quem
empurrar; s correntes que arrastam quem nelas confia que no os trassem
e, com cuidados de me, gentis os levassem ao porto indicado. Mas as cores
que de volta trouxeram, emprestadas pelas algas, bzios e peixes, flores
rastejantes do fundo do mar que agitam mil braos ao ritmo lento de
silenciosa msica, nada tinham que acrescentasse encanto a quem era
perfeito.
Passaram os dias, correram as noites. Se a terra e o mar, como maus
mercadores, nada exibiam que alimentasse o meu sonho, busquei no cu o
que o mundo no tinha. Insano, foi entre as estrelas que busquei a luz pura de
que a lua s vezes se veste. Mas ela avara, e nem com um pouco de si me
deixou ficar.
Adormeci exausto. O sonho levou-me ao mercado do cu, onde a
bondade, a perfeio e o silncio, todas essas coisas difanas tm textura.
Foi a que encontrei uma rapariga que num cesto levava as maiores venturas
e que em si mesma as usava, porque era de muito brilho a luz que dela
vinha. Roguei que mas desse para oferecer ao meu amor. Esse encontro de
nada serviu, porque ela era como o sol que mal se consegue olhar, pelo que
no foi de pronto que reconheci aquela que a virtude vestia. Quando acabei
de falar, de joelhos no cho beijei a sua mo, porque reis vs a jovem que
pelo cu passeava.
Do sonho acordei com o rudo de asas. No sei de onde surgiu aquele
pssaro, porque estavam fechadas portas e janelas, e a luz entrava apenas
por aqueles espaos que as traves de madeira deixam entre si. Nada tinha de
extraordinrio, embora nunca antes tivesse visto tal criatura. Era pequeno
como um pardal, de olhar vivo, e tinha um jeito especial de colocar a
cabea de lado enquanto me observava, como se desde h muito me
conhecesse.
Durante longo tempo nos olhmos, at que peguei num pedao de
madeira e comecei a mold-lo pouco a pouco. Assim como do barro nasceu
o homem, daquele fragmento de rvore, onde decerto muitos pssaros
poisaram, foi surgindo uma ave, rplica exacta da que na intimidade da
minha oficina me fazia companhia. No sei quem guiou as minhas mos ou
afinou os meus instrumentos, mas a verdade que, quando terminei, senti
que naquele pedao de madeira obra de um homem que no ordena a
vida batia um corao.
esse pssaro o que melhor tenho para vos oferecer. Ele como o amor:
se nas vossas mos o apertardes com muita fora, como uma priso que o
ar no deixa entrar, tem dificuldade em respirar e instala-se a agonia at
que morra. Mas se abrirdes as mos como quem j no o deseja guardar,
partir livre em busca de outros cus.
Ela sorriu para mim e estendeu os braos para que deixasse ao seu
cuidado a ave de madeira em que batia um corao. Com gentileza afagou-
o e, para espanto de todos, o pssaro de madeira ergueu a cabea e
comeou a cantar, e a ele se juntaram todos os outros que celebravam
Maria.
Ao aceitar a minha ddiva, a noiva recebeu quem a ofertou, pelo que ali
ficou selado o compromisso entre o homem que esculpia pssaros e a
rapariga que eles pareciam conhecer e celebrar.
Maria recolheu ao seu quarto e parecia feliz. Sentia-a minha, como
quando as mulheres a um homem se querem dedicar de verdade, ainda que
lhe possam reconhecer defeitos, porque todos tm alma de criana e
necessitam que os amem para que cresam.
Quando ela se afastou, o rabi e eu sorrimos numa alegria cmplice, e
entre abraos bebemos o vinho que nos transforma quando celebramos os
momentos felizes.
Para festejar necessrio apagar a memria e desprezar o futuro,
ignorar que somos escravos do que o dia nos reserva quando a manh
desperta. Foi por isso que, ligados por aquela irmandade infantil de que s os
homens so capazes, nas nforas procurmos esquecer os deveres. O rabi
sugeriu que por uma noite se deixassem esquecidas, abandonadas num
canto, as pedras da lei. Eu concordei com entusiasmo, enquanto dissertava
sobre razes e seiva, ramos e frutos, sem que fosse claro se falava de
rvores ou mulheres.
Foram chamados vizinhos e amigos para connosco celebrarem. Alargou-
se o crculo e expandiu-se a irmandade. De pronto surgiu msica e dana, e
tornaram-se pags as gargalhadas que atraam os mais curiosos, intrigados
com o que se passava na casa do rabino. Naquela noite o corao no se
oprimiu, porque se ignoraram os passos dos soldados romanos que na rua
calcavam as pedras, os templos conspurcados por dolos, e os impostos que
os publicanos para si guardavam.
Poucos dias na minha vida tero sido de tanta alegria.
O rabi prometeu, com o consentimento da famlia, em sua casa recolher
a minha noiva at que eu a fosse buscar. Eu parti com a exaltao e
ansiedade com que pela primeira vez se recebe a mulher.
Imaginei planos, esbocei desenhos inebriado de ideias para que a minha
casa fosse digna de a receber, e ao nela entrar o seu corao se alegrasse e
lhe trouxesse a paz que todos sentimos quando estamos seguros.
Tinham de ser perfeitas as escolhas que o meu amor inspirava. No
podia, na construo da nossa casa, arriscar ver nos seus olhos qualquer
sombra de desiluso no momento em que, entre alaridos festivos, entrasse
naquela que iria ser a sua morada.
Ela era jovem, virgem de homem e de desassossegos, uma criana que
da vida pouco experimentara. Voltei infncia para saber que conforto lhe
dar. Vivi na memria, e quem visse os meus olhos saberia que habitava de
novo os dias em que era feliz.
Mas no bastava cruzar o tempo ao revs, descontar os anos e ver-me de
novo espantado. A dvida tolhia o meu passo no embarao da escolha: A
frescura da gua ou a brisa do vento? O aconchego quente que vem do
deserto ou o conforto domstico que a braseira empresta? O ocre do barro
que nos faz lembrar de onde viemos e que nos faz sentir em harmonia com
a terra, ou as cores garridas que servem de enfeite mas no nascem
connosco?
Queria levantar a casa perfeita, um corpo que o nosso corpo reveste,
definido pela amplido das janelas, pela pedra ou pelo barro, e por tudo o
mais que, no sendo essencial, celebra e ocupa o lugar onde nos recolhemos
quando a noite cai e nos faz sentir donos de algo.
De vrias partes do mundo vieram conselheiros, artistas e artesos. A
todos ouvi e generoso despedi com mais do que mereciam, porque nada
mostraram que me servisse. Quando o ltimo partiu, voltei s coisas simples.
De plpebras cerradas procurei o que me fizera feliz.
Senti bater nos olhos a luz da manh, na pele a brisa do final do dia,
enquanto no terrao da minha morada ouvia histrias fantsticas de bichos
com alma de homem e de homens que tambm eram bichos.
Invoquei os bens da minha infncia. Senti no ar o cheiro do po e na boca
a textura suave e quente. Sorri ao pensar que a cama um bolo sado do
forno, to grande que nos podemos pr l dentro.
Brinquei com os ces, senti o calor dos animais no estbulo. Aspirei o
cheiro de tudo o que habitava aquele espao. Aroma a erva e a dejectos, to
bom e forte, como se corresse debaixo da terra para lhe colher virtudes e
depois emergisse naquele espao escuro onde, entre cascos e mugidos, a
vida surge livre do pensamento.
Nessa altura foi fcil escolher, e na casa que constru rosas trepavam
entre as pedras, enchendo de encanto o espao onde Maria amassaria o po.
Mudei as roldanas e coloquei cordas novas no poo, para que no ferisse as
mos na aspereza do trabalho. Junto a ele fiz um banco de pedra que
convidava ao descanso e paz, e ao seu lado plantei uma figueira que
derramava quietude.
No jardim em volta da casa mandei que crescessem laranjeiras vindas da
sia, porque elas anunciam a primavera vestidas de branco, e no vero
pode-se colher um fruto doce que cura sedes e males.
Para que se no pudesse magoar, do cho retirei as pedras mais afiadas, e
nas rvores pendurei casas de madeira onde se podiam acolher os pssaros,
seus amigos.
As crianas vivem num mundo de sonhos. Por isso temi que quando a
noite viesse, Maria se inquietasse com as formas temerosas que as sombras
procuram imitar. Queria que se sentisse segura, como um filho que v os
pais por perto. Ao encontrar um jardim de oliveiras que ficava prximo, de
pronto o comprei, seguro de que em nossa casa nunca faltaria o leo que
arderia nas muitas lamparinas que distribu pelos quartos.
At as sombras seriam iluminadas.
No queria que a minha mulher se sentisse s, por isso um homem que
me devia dinheiro deixou a filha como escrava, para que Maria dela se
servisse e lhe fizesse companhia. Um co dcil de dia mudava de disposio
quando a noite chegava. Sentinela dedicada, assegurava proteco e aviso.
casa acrescentei muitos quartos, porque antevia que o corpo de Maria
iria desabrochar em vitalidade fecunda. O meu desejo emprestaria a fora
necessria para que o campo fosse lavrado e nele se lanasse a semente que
quando encontra hmus que a alimente logo se desenvolve em fruto gordo e
so.
No vos relatarei em detalhe o que nesse ano se passou. Bastar dizer que
foram tempos gratos em que vivia na felicidade dos dias que ho-de vir. A
fantasia criava o cenrio, a mente construa a paisagem, tal como Deus
decerto o fizera, antes de lanar as mos obra de construir o mundo.
A, nessa quimera que a esperana cria, instalei o meu corpo que viveria
rodeado de douras, certo de que os dias passam sem vento ou tempestades
no encantamento do amante em xtase contnuo. Eu, homem capaz do bem
e do mal, estava feliz.
Acreditava que Deus me tinha querido premiar com o que de mais
precioso a vida tem: um amor sem falhas ou fastios. A mim, pobre Jos,
homem de mos speras de desbastar a natureza, miservel nas minhas
fraquezas, outras vezes capaz de alguma grandeza, quando fitando os olhos
do medo de peito aberto o afrontava.
O Senhor permitiu-me olhar com ternura para as coisas e para as gentes,
e nelas me deixou colher o mistrio da sua presena, como abelha que flor
pede emprestada a doura com que constri algo maior. Como poderia
naqueles dias ter encontrado dentro de mim a alegria juvenil de quem
incauto? Donde nascia de novo a iluso que faz parar o tempo?
No falarei dos outros, porque na verdade no os conheo, mas o
carpinteiro, quando era menino, olhava extasiado o deserto que se estendia
para alm do horizonte, no casamento perfeito da ausncia e do silncio. Ao
ver Maria, de novo encontrou a paisagem coerente nas formas, luz e cor,
que fez renascer a exaltao da criana e o levou rendio, servo de quem
o possui, escravo do medo de perder quem foi capaz de o transportar de
novo a um tempo em que o olhar sobre as coisas no era turvado pelo
conhecimento do pas das sombras.
Maria estava longe e perto, intocvel, reclusa, mas guardada para mim na
promessa que ningum pode romper.
O sol fere-me os olhos, e a luz intensa torna difcil que me vire para dentro e
me deixe mergulhar na profundura negra da alma de um homem feito
vscera.
Desde ento correram muitos dias. Invernos amenos, outros nem tanto.
Filhos de filhos nasceram, morreram amigos, crianas fizeram-se homens,
e homens viram o sopro do tempo escrever no pergaminho da pele a histria
de cada um. Raparigas deram flor e fruto, e mais tarde secaram.
Jos, o construtor. Com as minhas mos ergui edifcios, pedra sobre pedra
montei. Construes slidas, coerentes, que resistiam ao vento do deserto e
ao peso dos homens. Assim tinha querido que fosse a minha vida. Pedaos
de existncia uns sobre os outros colocados, como se seguisse os desenhos de
um projecto. Gostaria que, chegada a hora que antecede a morte, de mim
mesmo me soltasse e, contemplando-me distncia, me pudesse orgulhar
do que tinha construdo, porque estava de acordo com a Lei e a vontade do
Senhor.
Bem sei que efmero o contentamento do justo, porque a virtude
permanece em risco at que o corao pare, e apenas pode descansar no
momento exacto em que se suspende a vida e a vaidade. Mas mesmo que o
vento leve consigo as marcas fugidias que neste mundo deixou, o justo
alcana a paz, enquanto eu nada tinha que merecesse ser visto ou imitado,
pois a minha vida tinha desabado, e no cho se acabou coberta em lama.
Via-o a soltar-se da sua mulher quando a noite mais funda e o sono mais
pesado. Imaginava-o a mover-se com cuidados de fera que a presa no
pressente. A erguer-se com lentido, de respirao suspensa, pondo os
msculos ao servio do silncio.
porta do quarto de Maria, o corao batia mais depressa e as mos
tremiam de medo e de gula, na antecipao do corpo que apetecia. Tal
como de uma cama saa, na outra entrava, repetindo gestos e cuidados, para
que se mantivesse incauta a noiva que no lhe pertencia.
Estava seguro de que Maria acordara assustada, sem compreender o
motivo ou inteno. Na penumbra do quarto percebia que uma mo lhe
impunha silncio, por debaixo da tnica sentia outra que no permitia
rplica. Segredadas ao ouvido, Maria reconhecia, abafados pelo cuspo,
promessas, ameaas e suspiros, num dialecto gutural que a ocasio
inventava.
Assim obteve o servo de Deus o que pretendia. Depois, resignada ou
temerosa, ela permitiria que o mestre e benfeitor se servisse da mesa posta.
Por isso a mordia como se fosse po, e dela se inebriava como se fosse
vinho.
Imaginava os argumentos do rabino. Na calada da noite ouvia-o em
surdina assegurar que no era pecado aquele amor, que ao servi-lo ela
agradava a Deus, pois favorecendo o servo contentava o senhor. Lembrar-
lhe-ia que, no tendo famlia nem bens, estaria condenada a servir homens
mais brutos. Que no deveria temer, pois muitos lhe disseram ser eu homem
de pouca vontade, um ermita no deserto da prpria casa, que h muito no
procurava outras sensualidades do que as que obtinha, todos os dias, no uso
do formo.
Imaginava-o arrependido assim que satisfeito o seu desejo, porque no h
nesta vida prazer to intenso e to fugaz. Miragem que, uma vez alcanada,
no mata a fome nem sacia a sede.
O amor dizia Galeno como a Fnix: pssaro que arde no seu
prprio fogo, para de novo renascer das cinzas.
Esgotado o impulso, entre lgrimas repetia que no voltaria a pecar. No
peito de Maria soluava, e com o punho no seu batia em sinal de
arrependimento. Passava os dias em orao, rogando ao Criador que lhe
perdoasse as faltas. Enquanto levantava as mos ao cu, na esperana da
misericrdia do seu Senhor, no seu ntimo culpava a vtima e a si mesmo se
ilibava, porque beleza to tentadora no podia ser obra de Deus.
Porm, na noite seguinte vigiava insone, mantido desperto pelo desejo.
Por momentos afastava para longe a tentao que o consumia, mas dentro
de si sabia que era demasiado forte a corrente que o levava, e que era intil
lutar.
Vencido, esperava ansioso a hora de escapar do seu quarto e, como um
ladro, entrar furtivo no aposento de Maria. De novo a despertava com o
peso do seu corpo, o incmodo das suas barbas, e o resfolgar do homem
velho e pesado que qualquer esforo cansa.
Com rancor lembrei os abraos que trocmos e o vinho que partilhmos.
Tinha vises do seu corpo obeso, da flacidez do seu ventre, da palidez
enjoativa da sua pele submergindo o meu amor, entrando dentro dela em
impulsos cada vez mais violentos. Fera escorrendo baba, enquanto dilacera a
presa.
Quis vomitar.
Mas depois olhei para ela, deitada aos meus ps como co suspenso da
vontade do seu dono. No a expulsei. Era to nova
Durante muito tempo meditei no que faria. A minha mulher era adltera,
e disso a poderia acusar como estava escrito na Lei. s portas da cidade
uma grande multido seria atrada pelo rumor do castigo. Entre gritos,
mulheres rancorosas da beleza de Maria de pronto lanariam pedras
ferindo-a de morte, deixando na areia do deserto um corpo esventrado que
serviria de tmulo a outro corpo pequenino.
Uma massa de sangue seco e, a surgir de entre a tnica, braos que se
no movem. Sobre os seus olhos j sem brilho desceria o nevoeiro, e deles
se serviriam as moscas. Morta, seria crucificada para que todos a vissem.
Ces nela ferrariam os dentes e mendigos rasgariam as suas vestes. Loucos
tocariam a intimidade fria e sem prstimo, e teceriam comentrios ao que
restava da sua figura. sua volta, numa restolhada desconexa, voariam
aves sem rumo.
Estremeci perante o que a mente via. De novo a nusea e a certeza de
que no era homem para tais actos. Filho de quem fazia perfume e de uma
mulher que amava a cor, no corria nas minhas veias o sangue de Caim.
O sol continua o seu caminho, prestes a atingir o ponto mais alto. Devo
avanar a minha histria para que saibam o que me trouxe at aqui. Mas
resisto, porque h raros momentos em que a memria, como a vida, devia
estar parada.
Nesse dia tracei o meu destino, ao pretender que acreditava no que Maria
tinha dito. Aquele que ia nascer no era filho de um homem, mas sim do
desejo do Senhor, que de todas as mulheres do mundo a minha escolhera,
para exercer de novo a magia da criao.
Por isso a beijei de forma casta, pois no queria perturbar quem tanto
sofrera s mos de um homem, fosse ele soldado ou representante do
Senhor, ou qualquer outro que dela tivesse abusado.
O sol, como neste momento em que vos falo, estava alto, e as pessoas
recolhiam-se para onde houvesse sombra. Um trinado de pssaro, o chiar de
uma carroa, ou o rudo dos cascos de uma azmola no chegavam a
perturbar a quietude do nosso quarto.
Eu no deixava que a luz entrasse, pois, se tal acontecesse, a minha vida
de novo se viraria para o mundo. No queria sair fora daquelas paredes que
nos protegiam como se fossem muralhas e nos davam a iluso de termos a
terra inteira s para ns. Que no cessasse aquela intimidade, que me
lembrava a ternura desmedida que liga a me a um filho aps o parto.
Era possvel viver uma eternidade sem que o corpo tivesse sede ou fome,
porque o meu amor bastava.
Porm, eu teria de mentir, guardar em mim um segredo terrvel, encenar
uma partilha que no existia, como quando algum omite ao moribundo o
seu estado, fingindo estar de perfeita sade quem j consumiu a vida.
Se o Senhor em vs poisou, que mais posso eu fazer, servo humilde,
seno acatar a vontade que vem do alto, e grato lhe ficar por ter elegido
para tal desgnio um membro da minha famlia? Humilde me curvo perante
a Sua vontade, e agora vos digo, Maria, que muitas profecias se cumprem, e
o destino servo das palavras dos homens sbios a quem aquele que tudo
conhece sussurra as palavras do advir, pois certo que h muito se anuncia
a vinda de um Messias.
certo que fingi acreditar. No devo contudo ser severo no juzo que fao
de mim prprio, pois se certo que a verdade escondi, tambm afirmo que
o mais importante revelei, quando, num delrio mais fundo do que o seu,
inteiramente me despi, ao dizer que a amava em tons de azul.
Coisas tolas dizem os homens para dar colorido aos sentimentos, porque as
suas palavras tingem e perfumam, como se o discurso amoroso fosse
gerado pela me e se reconhecesse filho do pai.
Sim, em tons de azul. Depois de fingir acreditar no que Maria me dizia, e
me pretender submisso e at grato por aquela que seria a vontade do Senhor,
da minha boca saam palavras sem sentido, para uma menina que, de to
jovem, no as poderia entender.
Amo-te em tons de azul, e na minha mente navegava um barco que
cruzava cu e mar, empurrado por ventos contrrios, que ganhava fora
para avanar pelas energias que para trs o impeliam.
Diro talvez que ridculo o homem velho, de quem a carne se desprende
e a pele se enruga no amarrotar das coisas que deixaram de ter prstimo,
jurar amor, como se houvesse na sua vida paisagem para alm do que a
vista alcana, mistrio escondido na fronteira do horizonte. Mas a verdade
que a ela me abracei como se lhe devesse a vida. Ao fingir que acreditava
libertei-me, recriei a minha histria, e num stio diferente me instalei para
de novo nascer.
Beijei os seus cabelos, a face e a fronte como a um filho que se despede,
e derramei sobre ela as lgrimas de quem tem a conscincia de que nada
perante o milagre luminoso de existir e, ao ter tanto e ser to pouco, o
sentimento se exacerba e de si derrama, porque o transborda, o mar
primordial de onde veio.
Nessa noite adormeci cansado, e o meu sono foi agitado por pesadelos em
que bandos de anjos de asas largas desciam sobre a minha casa como
pssaros gigantescos. Diziam-se emissrios do Senhor, e entre os sons de
trompetas que os anunciavam, liam um rolo infindvel onde estavam
escritos os mandamentos, a que se juntara uma clusula nova, que ordenava
dever eu cumprir os Seus desgnios, porque sendo escravo da Sua vontade,
no poderia reclamar para mim a mulher que Ele desejara.
Depois de me imporem a vontade do Senhor, para os cus se erguiam
com movimentos de gara. Ao v-los sumirem-se no alto, eu agitava os
braos para que no partissem, e gritava para que me ouvissem. Reclamava
que era um abuso aquela incumbncia, ordenada contra a minha vontade,
imposta contra o meu desejo. Depois, ao perceber que eram inteis os meus
esforos, caa de joelhos num choro inconsolvel, por ter sido desprezado.
Tinha vontade de morrer, ao ser vtima de quem o prazer de viver me
ofertara.
De manh acordei exausto, coberto de suor, e sentindo ainda os restos de
revolta que, em sonhos, me faziam falar contra o Senhor.
Nasceu coberto de sangue e dor aquele a quem chamei Jesus filho de Jos.
Emergiu da gua e do sal que brotam de dentro da mulher, e foi recebido por
um carpinteiro humilde a quem o cime torturava. Uma alde de arte incerta
empurrou-o para este mundo, e teve como companhia alguns animais
desemparelhados que, inquietos, moviam os quartos traseiros. Foi festejado,
no por trombetas de anjos, mas por cnticos de brios que celebravam,
entre arrotos, impulsos indecentes.
Mas, tal como aquele que se enamora do sol com a cegueira paga o seu
deslumbramento, quanto mais eu amava Maria, maior era a minha dor.
Deitado a seu lado imaginava que outro me roubara os olhos, e no corpo
dela se demorava a contemplar, tanto quanto lhe apetecia, aquela paisagem
a perder de vista. As minhas mos desciam pela cintura, e eu concebia
outras percorrendo os mesmos caminhos, senhoras daquele cho.
Na profundeza da noite um suspiro apenas, o pudor de um prazer que se
recolhe, mas na minha mente logo a fantasia ampliava o som, e o quarto
tremia entre gemidos e gritos provocados pelo gozo arrebatador que outrora
teria experimentado. Vinha at mim a memria dos guinchos da guia que
cruza o ar, enquanto o silncio da plancie amplia a presena da ave de
rapina.
O meu amor por Maria era corda de tortura, que quanto mais o
prisioneiro se debate, com mais fora o estrangula.
Uma mulher feita silncio e uma criana que no me pertencia. Era esta
a minha famlia. Por cima um Deus que de mim se ria, enquanto eu pisava
o cho e comigo arrastava o peso dos dias. E, no entanto, no me podia
queixar, porque de noite a pele de Maria esperava que a minha lhe
emprestasse calor e companhia. Nos seus seios a minha mo, e eu feliz,
como o pedinte miservel que por qualquer golpe de sorte pode fazer
escorrer entre os seus dedos o tesouro de reis. Nesses momentos eu sorria
em beatitude, e nada ou ningum era, neste mundo, mais ditoso.
Quando acordava de manh, com cuidado libertava os meus braos para
que no despertasse. No terrao j Jesus brincava, que a vida agarra-se
cedo.
Ele tinha talento para os animais. Enquanto as aves voltejavam em torno
de Maria como aias de rainha, o menino dominava tudo o que sobre a terra
caminha. Um co de vigia, que ladrava a quem se aproximasse, ao ver
Jesus calava-se e descaa a cauda. Como um servo que reconhece o seu
senhor, baixava a cabea, amolecia as orelhas, humilhava o olhar at que o
menino lhe fizesse uma festa que lhe restitusse o brilho aos olhos, e ao plo.
Fazia-se pastor. Em criana, mesmo quando corria por uma ladeira no
risco iminente de uma queda aparatosa, e no entusiasmo da emoo lanava
os gritos de prazer que a vertigem provoca, no se afastavam as ovelhas
com aquele medo instintivo que tm dos predadores. Era como se
reconhecessem naquela figura de criana, com voz suave e sem a rispidez
de quem teme, no sei se um dono, se um parceiro. Sentado no cho,
parecia minsculo enquanto abraava as ovelhas como um pai a um filho,
numa comunho de amor que enternecia.
Os ces respondiam ao seu assobio com uma prontido alegre e, por onde
caminhasse, instalava-se uma paz imperturbada. Em Nazar comentava-se
que os lobos se afastavam ao avistarem a figura tenra do menino, e por isso
velhas alcoviteiras diziam que Deus o tinha tocado, outras que o Demo o
apadrinhava.
Era popular entre as crianas. Nos jogos e correrias era ele o primeiro a
ser escolhido, e o eleito para comandar. Era destemido, com aquela ousadia
inconsciente dos protegidos pela sorte.
Apesar de reconhecer encantos naquela criana, a sua presena
provocava um desconforto nunca confessado, um vago cime, porque no
podia participar do amor que Maria por ele sentia.
Havia entre os dois uma cumplicidade sem espao. Falavam o discurso
que os olhos conhecem, num dialecto que me exclua. Jesus vivia encostado
ao peito de sua me, como quem reclama territrio conquistado a mim. A
sua pele dela se encostava, como se fossem um. Nesses momentos eu
retirava-me vencido, como co escorraado que incomoda.
No entanto, eu vivia no enlevo da minha mulher. Os meus cabelos,
cansados da vida, embranqueciam e abandonavam este mundo, deixando
clareiras cada vez mais difceis de cobrir. Os msculos perdiam a nitidez das
formas juvenis e, pouco a pouco, vestiam-se de gordura, no amolecer
flcido dos velhos. O cinto que apertava a tnica alargava-se para cingir um
abdmen que se fazia maior com a refeio dos anos.
Mas enquanto o meu corpo perdia a graa, o de Maria resplandecia na
passagem de menina a mulher. Alargava as ancas, mas apenas o necessrio
para que um homem sentisse a fertilidade que continham, porque naquele
espao cabia o mundo e o engenho de existir.
Mantinha a cintura fina, mas braos e pernas perdiam a fragilidade
infantil, aquele aspecto de ramo seco que um passo quebra, para se
tornarem fortes, sustento de mulher saudvel que cuida da casa e da famlia.
Os seios j no eram ornamento, mas tinham agora um vigor de quem
aguarda impaciente o dia de servir. Eu agradecia vida ter-me dado os anos
suficientes para poder apreciar a mulher na sua pujana. No era j a graa
juvenil, ligeira mas sem peso, antes a mulher perfeita, que o passar dos dias
vai preenchendo de emoes e hmus, o corpo admirvel onde um homem
maduro encontra companhia.
Muitas vezes com ternura lhe beijei a fronte e, como a sua voz menos se
ouvia do que o chilrear dos pssaros, a sorrir lhe chamava Maria a
silenciosa.
Longas horas leva esta histria. O sol para o outro lado se inclina. Os
rebanhos deixaram j a sombra que os acolhia e, de novo dispersos pelos
outeiros, mordiscam o escasso verde que a terra lhes oferece. As ovelhas de
cabea baixa e olhar vago parecem meditar. O garoto distrado que lhes
monta guarda vai lanando pedras pela encosta, num exerccio para
afugentar o enfado.
As vidas de outras vidas se libertam, e est escrito que o filho deixar a casa
de seu pai. este o destino dos homens e dos pssaros, que o ninho com tanto
cuidado engendram, para que, chegada a hora, ele seja abandonado por
aqueles que a cresceram.
O homem s coisas chs se liga. A terra que pisa, os alimentos que ingere,
as dores que sofre. Mas tem depois a sua histria que vai para alm do que
os sentidos tocam, narrao de desenho imperfeito, que a sensibilidade e a
inteligncia atendem e constroem, e so o complemento intangvel de quem
somos.
Na caravana que nos trazia a casa, todos notaram o meu silncio. Alguns
comentavam que em dias tinha envelhecido anos. Estava amarela a minha
pele, com o aspecto macilento de quem carrega doena incurvel.
Emagreci muito, pelo que se cavaram fundas rugas na minha expresso e os
olhos perderam o brilho no embaciamento de quem sofre ou no v.
Regressados, a vida retomou na aparncia o seu rumo. Jesus estudava na
sinagoga, aperfeioava a arte na oficina, apascentava os rebanhos quando a
isso era chamado.
Maria habitava a casa vestindo-a de silncio, enquanto Tiago foi perdendo
a jovialidade da infncia, preferindo a companhia dos amigos da famlia,
que se afundava na areia do tempo que a todos engolia devagar, para um
destino de dor.
Eu falava pouco e, quando o fazia, eram agrestes as palavras, molhadas
em rancor. Nos momentos de maior intimidade de Jesus com a sua me, eu
retirava-me, pois doa aquele encontro onde eu era estrangeiro. Estava a
mais.
Jesus no Templo declarara a sua origem. O absurdo tinha acontecido: O
Deus dos gregos e dos judeus era a mesma criatura, capaz de romper com
as leis que o prprio tinha ditado, cobiando a mulher de outrem num abuso
de poder to vil quanto a diferena que separa o que tudo pode do que nada
possui.
Porm, por vezes insinuava-se a dvida, quando via o filho de Deus igual
ao filho do homem, com todas as necessidades da vida terrena.
Ferindo-se num instrumento, sangrava como eu. Mostrava impacincia
quando as suas mos criavam um objecto menos que perfeito e, por mais de
uma vez, o vi curioso das formas que uma vizinha impdica revelava, ao
dobrar-se para colher gua do poo.
Dos seus orifcios, como qualquer humano ou bicho que se mova em
quatro patas, saam os dejectos.
Um dia notei que ao despertar o seu membro estava hirto, e por mais de
uma vez soube que j era homem, ao notar pela manh, nas vestes de
dormir, as manchas que no enganam, sinal que o sonho d de que terminou
o tempo da infncia.
Mais de uma vez expulsei para longe a ideia impossvel da divindade feita
homem. Seria estril, como quando se cruzam animais de diferente espcie?
Se assim no fosse, estaria a forma de Deus contida na excreo que a
roupa manchara? Deus era um s e invisvel; como poderia a substncia
ejaculada conter o segredo do que no tem forma?
E, no entanto, muitos eram os sinais de que em minha casa crescia um ser
diferente.
Tanta pergunta sem resposta, porque se calava quem a devia esclarecer,
surdo ao meu sofrimento e minha dvida, sem consolar quem clamava
por conforto. Por vezes recolhia-me ao deserto onde o choro no se ouve, e
ao cu levantava os braos e a voz para que me respondesse ou afrontasse.
Mas o cu estava inabitado, e aos meus apelos apenas respondia o grito da
guia, despeitada por lhe ter afugentado a presa.
Como rvore que chegada a hora vai perdendo a seiva, tambm eu
abandonei os meus deveres, olvidei as preces e rompi com os preceitos. Os
meus vizinhos interrogavam-se porque no aparecia na sinagoga, e alguns
afirmavam ter ouvido no Sabat, vindo da oficina, o rudo de quem trabalha.
O carpinteiro desafia as ordens do Senhor, e sobre a sua casa cair a
fria. Quem assim falava, no sabia que o castigo tinha sido executado
muito antes do acto que merecia punio.
Assim era. Senti-me no direito de ignorar as regras, porque impostas por
quem comigo as esqueceu. Nada Lhe devia, estava isento de tributo, e a
minha raiva era profunda.
O povo de Nazar olhava desconfiado a transformao do carpinteiro. Na
rua os acenos de cabea eram tmidos e sem a companhia de um sorriso.
Fizeram-se mais raras as encomendas e, um dia, Tiago voltou a casa de
olhos inchados e expresso de dor, porque os amigos lhe voltavam as costas.
Maria nada dizia. Nos seus olhos no vi censura, nem no seu corpo
rejeio, apenas a expresso de quem escrava do destino e o aceita.
A minha presena no a transformava, como se eu fosse to natural
quanto a paisagem de pedra e p que nos cercava, e igualmente desolado.
Mas quando Jesus se aproximava, os olhos dela tinham o brilho de que eu
gostaria de ser a fonte.
Dentro de mim vivia o cime. Outros sentimentos vis sujavam a
paisagem do meu esprito. certo que tentava expuls-los da minha mente,
arm-la da vontade, cobri-la com o escudo da rectido, mas de nada me
servia. O inimigo invadia, e dentro de mim por vezes emergia o desejo
inconfessvel de que morresse quem me lembrava da minha condio.
E se uma doena o levasse? Um acidente ou descuido. E se Deus quisesse
apagar de sobre a terra a prova da sua iniquidade? Maria decerto sofreria,
mas o tempo gua que lava as dores do passado.
Ento decidi algo que um homem bom nunca faria. Contei as minhas
moedas, completei clculos, antevi o futuro e, no despontar de uma manh,
fui de encontro ao deserto.
Despedi-me antes de partir. A casa e os seus ocupantes envoltos em
silncio. De fora apenas se ouviam os pssaros mais madrugadores, e o sol
ainda mal se anunciava.
Por uma ltima vez os meus olhos percorreram o corpo de Maria, que o
acrescentar dos anos tinha tornado mais redondo. Por momentos enterneci-
me ao pensar que tambm o tempo escultor, e que no caso da minha
mulher tinha trabalhado com cuidado as suas formas.
Depois olhei para Tiago. Pensei que sentiria a minha falta, mas logo
afastei o remorso que se anunciava. Talvez nos primeiros dias se
entristecesse, mas depois viriam os amigos, as ocupaes do quotidiano, e a
memria de mim far-se-ia tnue como bruma que o sol dissolve.
Por fim fui ver Jesus, mas no momento de entrar no seu quarto a vontade
amoleceu, uma nusea discreta emprestou um sabor estranho minha boca.
Abri a porta devagar. Na ombreira permaneci, enquanto olhava o seu corpo
adormecido. Que fora me impedia que o estreitasse como a um irmo? O
meu destino abraava o seu por fora de um enredo que nos tinha sido
imposto. O corao sentiu de novo brotar a zanga, mas ao de leve beijei a
sua mo, porque era to suave a expresso do seu descanso, que dentro de
mim senti no poder durar tanta ventura. Virei as costas e parti.
Estava cansado da carga que todos os dias transportava no meu lombo,
alfobres cheios de algo que, no se vendo, pesava tanto como a rocha.
Comigo levei um asno, ervas vrias e os farrapos de uma existncia que
se consumia todos os dias num sofrimento vo, e a quem a memria da
meninice nada valia, porque se dissolvia como sal em gua, se a trouxesse
at hoje.
Fui peregrinar a minha existncia, errante como tantos da minha raa, na
esperana de, conhecendo mais, compreender melhor. A lei de Deus era o
dedo que apontava o caminho e tornava coerente a minha vida. Mas Ele em
mim a lei quebrara e, se no Senhor no encontrava resposta, onde encontrar
a soluo para a pergunta que todos formulamos o porqu de existirmos?
No falo dos povos ou dos homens como um todo, mas de cada um de ns,
seres singulares de histria nica.
Ningum do ventre de seu pai nasce, ou do seu peito se nutre. Porm, dele
que recebe o alimento de que carece o esprito, e no seu ensinamento cresce,
de forma que se pode dizer que se da me recebe a vida, ao pai deve a razo,
e para um homem vale mais esta do que aquela, porque sem a segunda a
primeira de nada serve.
Vs que me ouvis, ficai a saber que a luz de que tanto gosto tombou no
horizonte. A noite instalou-se, e faz-lhe companhia o frio, manto da morte. Tal
como o dia chegou ao fim, tambm a minha histria caminha para o ocaso.
Acompanhai-me no declnio, porque me sinto muito s.
Est fria a noite que caminha para o seu fim. Buraco negro de um poo
silencioso e, se a ele deitares uma pedra, responde-te o eco fundo que
atemoriza e lembra as vozes que de outro mundo at ns se erguem. Assim
o meu discurso.
Deus onde est? No o vejo, mas o seu dedo remexeu a minha vida.
Ficha Tcnica
ABERTURA
CAPTULO I
CAPTULO II
CAPTULO III
CAPTULO IV
CAPTULO V
CAPTULO VI
CAPTULO VII
Bibliografia