Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

BRANCO Et Al - Direitos Fundamentais em Processo

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 849

DIREITOS FUNDAMENTAIS EM PROCESSO

Estudos em Comemoração aos 20 Anos da


Escola Superior do Ministério Público da União

Organizadores
Paulo Gustavo Gonet Branco
Manoel Jorge e Silva Neto
Helena Mercês Claret da Mota
Cristina Rasia Montenegro
Carlos Vinícius Alves Ribeiro
DIREITOS FUNDAMENTAIS EM PROCESSO
Estudos em Comemoração aos 20 Anos da
Escola Superior do Ministério Público da União
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO


Antônio Augusto Brandão de Aras
Procurador-Geral da República
Humberto Jacques de Medeiros
Vice-Procurador-Geral da República

ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO


Paulo Gustavo Gonet Branco
Diretor-Geral
Manoel Jorge e Silva Neto
Diretor-Geral Adjunto
Carlos Vinícius Alves Ribeiro
Secretário de Educação, Conhecimento e Inovação
Graziane Madureira Baptista
Secretária de Comunicação Social
Ivan de Almeida Guimarães
Secretário de Administração
Rajiv Geeverghese
Secretário de Tecnologia da Informação
DIREITOS FUNDAMENTAIS EM PROCESSO
Estudos em Comemoração aos 20 Anos da
Escola Superior do Ministério Público da União

Organizadores
Paulo Gustavo Gonet Branco
Manoel Jorge e Silva Neto
Helena Mercês Claret da Mota
Cristina Rasia Montenegro
Carlos Vinícius Alves Ribeiro

Brasília-DF
2020
© Copyright 2020. Todos os direitos autorais reservados.

ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO


SGAS Quadra 603 Lote 22 ∙ 70200-630 ∙ Brasília-DF
www.escola.mpu.mp.br ∙ divep@escola.mpu.mp.br

DIVISÃO DE EDITORAÇÃO E PUBLICAÇÕES


Lizandra Nunes Marinho da Costa Barbosa

NÚCLEO DE PREPARAÇÃO E REVISÃO TEXTUAL


Carolina Soares

NÚCLEO DE PRODUÇÃO GRÁFICA


Sheylise Rhoden

PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS E REVISÃO DE PROVAS GRÁFICAS


Carolina Soares, Davi Silva do Carmo, Sandra Maria Telles e
Lizandra Nunes Marinho da Costa Barbosa

CAPA
Sheylise Rhoden

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Natali Andrea Gomez Valenzuela e Sheylise Rhoden

Recursos gráficos de capa e miolo: www.freepik.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Biblioteca da Escola Superior do Ministério Público da União)

D598 Direitos fundamentais em processo: estudos em comemoração aos


20 anos da Escola Superior do Ministério Público da União /
organizadores: Paulo Gustavo Gonet Branco, Manoel Jorge e Silva
Neto, Helena Mercês Claret da Mota, Cristina Rasia Montenegro,
Carlos Vinícius Alves Ribeiro. -- Brasília : ESMPU, 2020.
848 p.

ISBN 978-65-88299-96-8
ISBN (eletrônico) 978-85-9527-045-9

1. Direitos e garantias individuais – Brasil. 2. Violência doméstica –


Brasil. 3. Igualdade de gênero. 4. Justiça restaurativa – Brasil. 5. Acesso
à informação – Brasil. 6. Direito à saúde – Brasil. 7. Direitos humanos
– proteção. 8. Trabalho infantil – Brasil. 9. Segurança pública – Brasil. I.
Branco, Paulo Gustavo Gonet. II. Silva Neto, Manual Jorge e. III. Mota,
Helena Mercês Claret da. IV. Montenegro, Cristina Rasia. V. Ribeiro,
Carlos Vinícius Alves. VI. Título.

CDD 341.27

As opiniões expressas nesta obra são de exclusiva responsabilidade


dos autores.
SOBRE OS ORGANIZADORES

PAULO GUSTAVO GONET BRANCO


Subprocurador-Geral da República. Doutor em Direito, Estado e Constituição
pela Universidade de Brasília. Mestre em Direitos Humanos pela University of
Essex. Professor do Corpo Permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu (Mestrado e Doutorado Acadêmico em Direito Constitucional) e do curso de
Graduação em Direito do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

MANOEL JORGE E SILVA NETO


Subprocurador-Geral do Trabalho. Doutor e mestre em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Professor-adjunto da Universidade Federal da
Bahia. Professor-colaborador da Universidade de Brasília. Professor visitante de
Direito Constitucional Comparado na Universidade François Rabelais, na França,
e na Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. Membro da Academia Brasileira
de Direito do Trabalho (Cadeira n. 64), da Academia de Letras Jurídicas da Bahia
(Cadeira n. 32), do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior.

HELENA MERCÊS CLARET DA MOTA


Promotora de Justiça Militar. Mestre em Direito Internacional Humanitário e
Direitos Humanos Internacionais pelo Washington College of Law. Especialista em
Direito Internacional dos Conflitos Armados e em Direito Ambiental pela Univer­
sidade de Brasília. Membro do Conselho Editorial do Ministério Público Militar
no biênio 2012-2014. Coordenadora do Conselho Editorial do Ministério Público
Militar no biênio 2017-2019.

CRISTINA RASIA MONTENEGRO


Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.
Douto­randa em Direito Civil pela Universidade de Buenos Aires. Especialista em
Ministério Público e Ordem Jurídica pela Fundação Escola Superior do Ministério
Público do Distrito Federal e Territórios.

CARLOS VINÍCIUS ALVES RIBEIRO


Promotor de Justiça no Estado de Goiás. Doutor e mestre em Direito de Estado
pela USP. Pós-doutor em Democracia pela Universidade de Coimbra. Pós-doutorando
em Direito de Estado pela USP como visiting researcher na Universidade de Yale.
Professor titular de Direito Administrativo no IDP. Membro auxiliar da Presidência
do Conselho Nacional do Ministério Público.
SUMÁRIO

Prefácio à obra coletiva Direitos fundamentais em processo – Estudos em comemoração aos


20 anos da Escola Superior do Ministério Público da União................................................... 11

A assistência judiciária às mulheres em situação de violência doméstica nas ações penais


como direito fundamental
Alexandre Carrinho Muniz e Tammy Fortunato...................................................13

O direito fundamental à igualdade de gênero em juízo


Ana Paula Guimarães e Luísa Faria........................................................................27

O direito fundamental do lazer na pandemia de Covid-19


Andréa Marília Demetrio Gaia Vieira....................................................................55

Acordo de Não Persecução Penal e a Justiça Restaurativa: mais um passo no caminho da


transformação social
Andrey Borges de Mendonça, Fernão Pompêo de Camargo
e Katia Herminia Martins Lazarano Roncada.......................................................65

Gestão de pessoas e a garantia dos direitos fundamentais: construindo organizações


saudáveis em tempos de pandemia
Cléria Nunes e Cynthia de Moura Orengo..............................................................95

Novas tecnologias e controle social: desafios jurídicos contemporâneos


Douglas Camarinha Gonzales e L’Inti Ali Miranda Faiad.................................. 117

Direito à saúde, princípio da precaução e a pandemia de Covid-19


Duciran Van Marsen Farena.................................................................................. 131

A inversão do ônus da prova – Ferramenta de eficácia social no fornecimento de


medicamentos não relacionados no SUS aos indivíduos hipervulneráveis
Elton Oliveira Amaral............................................................................................. 151

Direito à cidade e mobilidade urbana: reinventando o modal bicicleta


Fabiana de Alcantara Pacheco Coelho.................................................................. 161

O devido processo legal e o processo administrativo tributário


Felipe Alexandre Abrantes Souza..........................................................................201
O trabalho precoce e a afronta à dignidade de crianças e adolescentes que trabalham
Fernanda Brito Pereira e Martha Diverio Kruse.................................................. 211

Dispensa coletiva – O trabalho como valor jurídico, social e econômico


Fernanda Daher Caram Farah..............................................................................221

Novos contornos do princípio da segurança jurídica aplicado ao Direito Administrativo


Fernanda Marinela.................................................................................................241

A retomada das rédeas da cidadania: o direito humano fundamental à participação popular


Fernanda Pereira Amaro........................................................................................249

O Supremo Tribunal Federal e os direitos fundamentais: método reconstrutivo e as


possibilidades e limites à interpretação constitucional
Gabriela Costa e Silva.............................................................................................271

Os direitos das vítimas e da sociedade e os fins da pena


Galtiênio da Cruz Paulino......................................................................................295

“Aqui não tem muita coisa”: os desafios vivenciados por mulheres de Pintadas-BA no
enfrentamento da violência doméstica e familiar
Geiziane Oliveira de Jesus e Márcia Santana Tavares..........................................303

Aspectos jurídicos da vulnerabilidade psicológica e sexual da criança à pornografia


Guilherme Schelb..................................................................................................... 317

Acordo de colaboração premiada e direitos fundamentais: desafios da consolidação de


uma justiça penal negociada
Iuri do Lago Nogueira Cavalcante Reis, Yuri Coelho Dias e
Leandro Barbosa da Cunha.................................................................................... 331

Do direito fundamental ao meio ambiente à Constituição ambiental


João Carlos de Carvalho Rocha..............................................................................347

A defesa de direitos previstos na Constituição Federal e o mandado de injunção: a


evolução jurisprudencial e legal da eficácia do mandado de injunção no ordenamento
jurídico brasileiro
José Mauro Queiroz Rocha e Erika Conceição Gelenske Cunha.........................367

A pirâmide de congruência dos direitos fundamentais com a linha da dignidade humana:


a materialização e a concretização da dignidade humana
José Pedro dos Reis...................................................................................................389

Saúde pública: evolução do modelo brasileiro e interfaces com o direito à felicidade


Leonardo Weber R. Araújo..................................................................................... 411
Estabilidade gestacional provisória extensiva ao homem
Loize Menezes dos Santos e Bruna Christiane Dantas Campos..........................437

Direitos fundamentais em processo: a proteção constitucional à honra e à imagem da


pessoa-residente e a discriminação de origem como ofensa aos direitos individuais
Manoel Jorge e Silva Neto.......................................................................................453

O direito de acesso à informação com o advento das novas tecnologias e sua violação no
combate à pandemia de Covid-19
Maria da Glória Teles Farias, Camila Cardoso Takano e
Lucas Gonçalves da Silva........................................................................................467

O dever fundamental de boa gestão processual no MPF


Maria Viveiros Peixoto Volkmer Fell.....................................................................479

Direito à educação e atuação coordenada do Ministério Público Federal (2001-2020)


Mario Luis Grangeia...............................................................................................505

Cidadania e o novo normal: da justiça cosmopolita às práticas de efetividade jurisdicional


Matheus Muniz Guzzo............................................................................................ 519

Estado e criminalidade: a omissão estatal em relação à segurança pública no Brasil


Maximiliano de Oliveira Rodrigues....................................................................... 531

Homeschooling (ensino domiciliar) x direito fundamental à educação: um direito dos pais?


Mona Lisa Duarte Aziz...........................................................................................555

O discurso por trás da autonomia do Uber: limites e possibilidades da economia do


compartilhamento sob o olhar da Justiça do Trabalho
Nathália Guimarães Ohofugi.................................................................................579

Breve nota sobre ativismo judicial na concretização de direitos fundamentais


Paulo Gustavo Gonet Branco.................................................................................593

A definição de Pessoa de Boécio vista através da Suma Teológica de Tomás de Aquino:


uma raiz a ser resgatada na proteção contemporânea à dignidade da pessoa
Paulo Vasconcelos Jacobina....................................................................................601

Possibilidades de influência da paisagem urbana sobre a saúde pública


Plinio Daniel Lins Brandão Veas........................................................................... 617

O derramamento de óleo na costa nordestina e a responsabilização civil pelos danos


existenciais causados aos povos das águas
Ramiro Rockenbach da Silva Matos Teixeira de Almeida...................................635
A equidade no ordenamento jurídico brasileiro
Reis Friede................................................................................................................661

Limites à autonomia privada do empregado em acordos individuais restritivos a direitos


fundamentais no ambiente de trabalho
Ricardo José das Mercês Carneiro..........................................................................671

A saúde e segurança do trabalho dos profissionais da saúde da rede pública durante a


pandemia da Covid-19 no Brasil
Séfora Graciana Cerqueira Char............................................................................685

Crimes culturalmente motivados: o abandono de gemelares Guarani sob a perspectiva


do Direito brasileiro
Tainá Viana e Marcelo Beckhausen.......................................................................705

Contextos históricos e direitos humanos


Tarcísio Henriques..................................................................................................721

A “disforia de gênero” infantojuvenil e o direito fundamental da proteção integral da


criança e do adolescente: um debate necessário
Tatiana Almeida de Andrade Dornelles................................................................733

Trabalho infantil no Brasil: um olhar sobre a antítese do trabalho decente e sua relação
com o trabalho escravo contemporâneo
Thalita Santos Lima................................................................................................ 751

A quebra de sigilo de dados baseada em coordenadas geográficas e o princípio da


proporcionalidade
Tiago Dias Maia e Galtiênio da Cruz Paulino......................................................769

A Recomendação (2000)19 do Conselho da Europa e o Inquérito n. 4.781 do Supremo


Tribunal Federal
Túlio Fávaro Beggiato.............................................................................................789

O Brasil diante do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos


Vladimir Aras.......................................................................................................... 819
PREFÁCIO À OBRA COLETIVA DIREITOS FUNDAMENTAIS EM
PROCESSO – ESTUDOS EM COMEMORAÇÃO AOS 20 ANOS
DA ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO

Na doutrina de Bobbio, “o problema fundamental em relação aos direitos do


homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um
problema não filosófico, mas político [...]. Não se trata de encontrar o fundamento
absoluto – empreendimento sublime, porém desesperado –, mas de buscar, em
cada caso concreto, os vários fundamentos possíveis. Mas também essa busca
de fundamentos possíveis – empreendimento legítimo e não destinado, como o
outro, ao fracasso – não terá nenhuma importância histórica se não for acom-
panhada pelo estudo das condições, dos meios e das situações nas quais este ou
aquele direito pode ser realizado”.1
A advertência do saudoso jusfilósofo italiano resplandece como autêntico
mantra intelectual para investigar o estado da arte dos direitos fundamentais
em nossos dias.
Pouco importa a geração/dimensão dos direitos fundamentais, pois viceja
hesitação doutrinária e jurisprudencial, seja no que concerne à efetividade dos
direitos civis e políticos constituídos a partir da Revolução Francesa de 1789 e
na Independência Americana de 1776; seja com relação aos direitos sociais que
surgiram como contraponto ao Liberalismo Burguês e aferrados ao manifesto de
Marx e Engels de 1848; seja relativamente aos direitos transindividuais de terceira
geração/dimensão, que protegem o ar que respiramos (tomando de empréstimo
a expressão de Mauro Cappelletti); seja, por fim, quanto aos direitos atinentes à
democracia, à informação ou ao pluralismo. O fato, perceptível a não mais poder,
é a dificuldade dos juristas do nosso tempo quanto à realização dos direitos bási-
cos da gente do nosso tempo.
Por isso é que, não obstante as dificuldades inerentes à realização de direitos
fundamentais na atualidade, volto-me à alentada obra coletiva publicada em
comemoração aos 20 Anos da Escola Superior do Ministério Público da União,
cuja leitura preenche-nos com renovada alegria e esperança. Alegria porque o
aniversário da ESMPU é cercado pela generosidade característica do ato de ensi-
nar, materializada na própria organização de Congresso homônimo, responsável
por agregar todas as instituições coirmãs, que estiveram conosco ao longo de
todos esses anos; esperança porque a nossa ESMPU consegue demonstrar objeti-
vamente que a dedicação e o compromisso com o ato de educar é tarefa de hoje,
de amanhã, de sempre.

1 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1992. p. 24.
Direitos Fundamentais em Processo – Estudos em Comemoração aos 20 Anos
da Escola Superior do Ministério Público da União é obra que já nasce clássica.
Disse-o muito bem Cora Coralina, a poetisa maior da Cidade de Goiás: “Feliz
aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”. E a felicidade brota da
sublime alteridade: professor, aluno e escola são, reciprocamente, ajudantes e aju-
dados; informantes e informados.
Há muito a comemorar. Há muito a realizar!
Vida longa à ESMPU!

Brasília, novembro de 2020.

Antônio Augusto Brandão de Aras


Procurador-Geral da República
A ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA ÀS MULHERES EM
SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NAS AÇÕES
PENAIS COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Alexandre Carrinho Muniz1
Tammy Fortunato2

Sumário: 1 Introdução. 2 A igualdade de gênero enquanto direito fundamental. 3 A


tutela assistencial da mulher em situação de violência doméstica para preservação de
direitos fundamentais. 4 Da assistência judiciária como direito fundamental da mulher
em situação de violência doméstica nas ações penais. 5 Considerações finais.

1 ∙ INTRODUÇÃO
A violência doméstica é um tema de relevância quando se busca um tratamento
igualitário entre os gêneros. O legislador, ao elaborar a Lei Maria da Penha (Lei
n. 11.340/2006), teve a preocupação com garantir assistencialismo às mulheres em
situação de violência doméstica e familiar, visando o acolhimento institucional
daquela que já se encontra fragilizada pela violência sofrida.
Em tempo de pandemia, não só no sentido da propagação da COVID-19 mas
principalmente no que diz respeito à generalização da violência doméstica, com
diversos estudos constatando o aumento da violência praticada contra as mulheres
durante este período, é cada vez mais importante a garantia dos direitos fundamen-
tais às mulheres, previstos não apenas na legislação ordinária mas especialmente na
Constituição da República (CR) e leis internacionais.
A igualdade de gênero, reconhecida constitucionalmente no que tange aos
direitos e obrigações, foi uma das grandes conquistas dos movimentos feministas,
embora ainda haja muito a ser feito.
Neste artigo será tratada a igualdade entre homens e mulheres enquanto direito fun-
damental; a presença do patriarcado na sociedade de hoje; e a atual falta de assistência
jurídica às mulheres que se encontram em situação de violência doméstica e familiar.
A consequência da falta de assistencialismo à mulher será amplamente discu-
tida, abrangendo não só a omissão legal mas também o descumprimento desse
direito fundamental da mulher em situação de violência doméstica.

1 Promotor de Justiça (MPSC). Professor na pós-graduação de Direito Material e Processual Penal


na Escola do Ministério Público de Santa Catarina e em outros cursos de pós-graduação. Mestre
em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Especialista em Direito
Processual Penal pela Escola do Ministério Público de Santa Catarina/UNIVALI.
2 Advogada. Especialista em Direito e Negócios Internacionais pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC).

13
Assim, o tópico 2 tratará da igualdade de gênero enquanto direito fundamen-
tal, identificando as bases de um tratamento equitativo sob todos os aspectos,
com o princípio da isonomia jurídica irradiando sobre todas as normas a ela
pertinentes, a fim de que eventuais interpretações sejam todas direcionadas sem-
pre a uma finalidade específica, que é a proteção da mulher contra violências de
qualquer espécie.
No tópico 3, tratar-se-á das políticas de assistência à mulher em situação de vio-
lência doméstica como instrumentos destinados a garantir a reposição do desequi-
líbrio ocorrido por causa das violências que sofreram e de como tais mecanismos,
pela conexão que têm com os direitos que procuram proteger, são igualmente tidos
como fundamentais, até porque sua omissão implica tornar inócuo o interesse que
procura preservar.
Finalmente, no quarto tópico, analisar-se-á um desses mecanismos de proteção
assistencial, notadamente a assistência judiciária a que a mulher em situação de vio-
lência doméstica tem direito, não cumprido no cotidiano forense, nas ações penais
em que figura como vítima.

2 ∙ A IGUALDADE DE GÊNERO ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL


A desigualdade de gênero faz parte da história da humanidade, na qual o homem
sempre prevaleceu como o mais forte, não somente no aspecto físico mas também
no psicológico e econômico, como chefe da casa e da família, o provedor, e, ainda,
como proprietário da mulher.
Hegel apud Beauvoir (1970, p. 30) remonta ao passado e traz o pensamento
patriarcal de outrora, quando diz que “os dois sexos devem ser diferentes: um será
ativo e o outro passivo e naturalmente a passividade caberá à fêmea”. Trata-se de
mulheres sendo objetificadas, sem direito ao livre pensamento.
Um olhar predominante no século passado sobre a desigualdade entre os gêne-
ros é trazido por Emílio Mira y López apud Lima (2013, p. 38):
Se o ideal do homem adulto normal é, em primeiro lugar, aquisitivo e o impele
para o trabalho, ou à conquista, como meio de assegurar sua vida e a de sua
família, o máximo ideal da mulher é, sem dúvida, em condições normais,
conservador no sentido de que tende ao cuidado e conservação do lar, por
meio da ótima administração do poder (moral ou material) que seu compa-
nheiro lhe proporciona.
Conceitos como os acima mencionados não são mais aceitos pela sociedade
atual, e os movimentos feministas, principalmente os ligados à segunda onda do
feminismo, trouxeram como vértice o estudo da identidade de gênero, buscando a
igualdade. O estudo da relação de gênero pode ser considerado como clássico-mo-
derno e atual (NICKNICH, 2016).
Ao longo da história, mulheres vêm lutando pela igualdade de direitos e deveres,
e somente na CR é que tais garantias lhes foram conferidas (CENTRO FEMINISTA
DE ESTUDOS E ASSESSORIA, 1996).
A igualdade entre os gêneros, tratada no princípio da isonomia, faz-se indispen-
sável, sendo um dos sustentáculos do Estado Democrático de Direito (DIAS, 2011). A
igualdade está prevista no art. 5º da CR, tratada como um dos direitos fundamentais.

14
Chimenti (2005, p. 59) apresenta o princípio da igualdade sob uma dupla análise:
o da igualdade na lei e o da igualdade perante a lei. Igualdade na lei constitui
exigência destinada ao legislador, que, na elaboração da lei, não poderá fazer
nenhuma discriminação. Aliás, a lei punirá qualquer discriminação atentatória
dos direitos e liberdades fundamentais (art.5º, XLI). A igualdade perante a lei
pressupõe que esta já esteja elaborada e se traduz na exigência de que os Poderes
Executivo e Judiciário, na aplicação da lei, não façam qualquer discriminação.
Justamente por ser a igualdade entre homens e mulheres um direito funda-
mental, é que se busca a equiparação/igualdade dos gêneros. A igualdade não deve
existir somente pró-forma, deve existir materialmente também. Lenza (2011, p. 875)
traz que “a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na
medida de suas desigualdades”.
Todo o contexto histórico de desigualdade é trazido à tona quando homens e
mulheres têm tratamento diferenciado, principalmente no que tange à violência
perpetrada contra a mulher.
Quando se trata do assunto violência contra a mulher, avoca-se também o prin-
cípio da dignidade da pessoa humana, previsto já no art. 1º, III, da CR. Nas palavras
de Dias (2011, p. 62), “O princípio da dignidade da pessoa humana é o mais universal
de todos os princípios”, sendo, pois, “um macroprincípio do qual se irradiam todos
os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade e solidariedade, uma
coleção de princípios éticos”.
Um conceito mais amplo sobre o princípio da dignidade da pessoa humana é
trazido por Moraes (2003, p. 60):
a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta
singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida
e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, consti-
tuindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de
modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício
dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima
que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
Toda mulher tem o direito de viver uma vida digna e livre de violência (Decreto n.
1.973/1996), e a desigualdade entre os gêneros protege o homem e vulnera a mulher.
Scardueli (2018, p. 17), sobre a conceituação da violência de gênero, leciona:
A violência de gênero, por sua vez, pode ser entendida como a relação de poder e
de dominação do homem e de submissão da mulher, em que os papéis impostos
às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo
patriarcado e sua ideologia, induzem a relações violentas entre os sexos, indi-
cando que a prática desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim do
processo de socialização das pessoas.
Relações violentas não são mais aceitáveis em nossa sociedade, e muitas mulhe-
res ainda se encontram em situação de violência, seja no âmbito público, seja no
privado. As violências praticadas contra as mulheres em virtude da sua condição de
gênero devem ser amplamente combatidas, por meio da prevenção, da punição, até
chegarmos à erradicação (Decreto n. 1.973/1996).
Ao serem expostas a situações de violência em virtude da questão de gênero,
mulheres têm seus direitos fundamentais violados. E a violação dos direitos da

15
mulher já é, por si, uma violência, pois é obrigação do Estado garantir às mulheres
que seus direitos fundamentais sejam respeitados.
Os direitos fundamentais, entendidos como aqueles indispensáveis à vida, não
podem ser ignorados quando tratamos de igualdade de gênero.
Na concepção de Moraes (2003, p. 39), os direitos humanos fundamentais podem
ser conceituados como
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem
por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra
o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e
desenvolvimento da personalidade humana.
A CR assegurou às mulheres a igualdade de direitos e obrigações em relação aos
homens, trazendo em seu art. 5º, I, de modo explícito, tal isonomia. A igualdade está
garantida na lei, mas, culturalmente, ainda há uma grande diferença entre homens
e mulheres, ou simplesmente, uma grande diferença entre os gêneros, quando tra-
tamos da temática da violência.
A violência cometida contra as mulheres em razão do gênero é tão grave que
temos legislações específicas para preveni-las, puni-las e erradicá-las (Decreto n.
1.973/1996), além da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discri-
minação contra as mulheres (CEDAW) e, por fim, a Lei n. 11.340/2006, quando a
violência é cometida no âmbito privado.
A CR garante a igualdade entre os gêneros, mas, ao mesmo tempo, precisa
garantir às mulheres o seu direito à vida, a viver livre de violência e a ter uma vida
digna. O Estado precisa proteger as mulheres das violências a que são submetidas
diariamente, perpetradas por aqueles que dizem amá-las.
A violência doméstica praticada contra as mulheres em razão do gênero foi tole-
rada até meados do século passado, cabendo a cada Estado legislar sobre o tema
(LIMA, 2013). A violência era utilizada como forma de dominação do masculino
sobre o feminino, como forma de “manutenção da propriedade”, de educar, entre
outras injustificadas razões.
A busca pela igualdade de gênero trouxe uma nova visão sobre as violências
sofridas pelas mulheres, principalmente no âmbito privado, ocasionando uma
mudança cultural e, como consequência, uma mudança na legislação. Neste diapa-
são, traz-se o entendimento de Figueiredo (2018, p. 176):
O direito como fruto da sociedade e do Estado são um espelho que determi-
nado segmento disputa para que seja visto. As mudanças recentes na legislação
penal destacam a importância da manutenção da luta das mulheres. Os ins-
trumentos oficiais como o Direito são passíveis de mudança, lenta, mas é uma
mudança palpável.
Nesse sentido ainda, o movimento de mulheres conhecido por “lobby do batom”,
com o lema “Constituição pra Valer tem que ter Direitos da Mulher” (CENTRO
FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA, 1996, p. 25), iniciou as principais
mudanças no que tange aos direitos das mulheres, entre eles, a igualdade de gênero.
Ainda é preciso, porém, garantir às mulheres, principalmente as que se encon-
tram em situação de violência doméstica e familiar, inviolabilidade de seus direitos,
arduamente conquistados, bem como o seu efetivo acolhimento.

16
Portanto, o direito fundamental da mulher, em virtude do histórico desequilíbrio
no tratamento equitativo de gênero, carrega em si um valor mais forte, contaminando
com a mesma importância todos os direitos que possam ser dele derivados.

3 ∙ A TUTELA ASSISTENCIAL DA MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA PARA PRESERVAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Quando há o estabelecimento da premissa de isonomia de gênero, significa dizer
que o tratamento deverá identificar saliências e depressões que permitam distinguir
quando a tutela deverá ser maior ou menor em determinadas situações.
Ante a histórica omissão do Estado no tratamento equitativo de homens e
mulheres, permitindo que se criasse uma verdadeira cultura de desigualdades delas
em relação a eles (sufrágio, disposição de seus bens, trabalho, guarda de filhos etc.),
a procura pelo reequilíbrio visa estruturar mecanismos que possam reverter tais
iniquidades, cujos efeitos não ocorrem do dia para noite.
Essa omissão estatal é constatada por tratados internacionais, algumas vezes
seguidos por legislações internas, que procuram repor um status de equidade que
permita às mulheres receber o mesmo tratamento dos homens, por meio de tutelas
jurídicas que estabeleçam direitos e garantias.
E, com muito mais razão, no caso de mulheres em situação de violência domés-
tica, tais tutelas jurídicas enumeram uma série de instrumentos com o propósito de,
além de estabelecer a equidade referida alhures, recuperar o deficit decorrente de
violações de natureza física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, quiçá, ainda,
institucional, quando o Estado não providencia tais mecanismos ou, quando o faz,
age ineficientemente, pelo fato de seus agentes, por desídia ou despreparo, acabarem
não atendendo essas mulheres adequadamente.
Na linha do que dispõe a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), com o tri-
nômio prevenção-punição-erradicação, originou-se uma série de políticas assis-
tenciais às mulheres como forma não só de evitar mas também minorar os efeitos
causados pela violação de seus direitos.
Entre tais políticas, as de natureza preventiva, podem-se citar a promoção do
conhecimento e observância do direito da mulher a uma vida livre de violência e
o respeito aos seus direitos humanos, e a modificação dos padrões socioculturais
que estabeleçam premissas de inferioridade ou superioridade que legitimem ou
fomentem a violência contra a mulher e, além disso, o seu atendimento. No âmbito
da punição, citam-se não só a responsabilização do agressor mas também a pres-
tação de serviços adequados à mulher em situação de violência, com atendimento
preparado e especializado, com abrigos e serviços de orientação familiar. E, por
fim, com a finalidade de erradicar a violência contra a mulher, a pesquisa de suas
causas, consequências e frequências, procurando implementar políticas que possam
pôr fim a ela (Convenção de Belém do Pará).
No âmbito da legislação interna, há que se salientar o estabelecimento de uma
rede de atendimento, como forma preventiva da ocorrência ou manutenção da vio-
lência, notadamente a doméstica.

17
A rede de atendimento abrange os serviços responsáveis pela execução dessas
ações e programas, como segurança pública, assistência social, saúde, educação,
trabalho e habitação, com atendimento qualificado, intersetorial e multidisciplinar,
garantido a todas as mulheres em situação de violência (PASINATO, 2015).
Acerca das medidas de prevenção, Piovesan (2012, p. 70) destaca a incorporação
da ótica preventiva, integrada e multidisciplinar:
Para o enfrentamento da violência contra a mulher, a Lei “Maria da Penha”
consagra medidas integradas de prevenção, por meio de um conjunto articu-
lado de ações da União, Estados, Distrito Federal, Municípios e de ações não
governamentais. Sob o prisma multidisciplinar, determina a integração do Poder
Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, com as áreas da segurança
pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação. Realça a
importância da promoção e realização de campanhas educativas de prevenção
da violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como da difusão da Lei
e dos instrumentos de proteção dos direitos humanos das mulheres. Acresce a
importância de inserção nos currículos escolares de todos os níveis de ensino
para os conteúdos relativos a direitos humanos, à equidade de gênero e de raça,
etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. Adiciona
a necessidade de capacitação permanente dos agentes policiais quanto às ques-
tões de gênero e de raça e etnia.
Especificamente nos casos de violência contra a mulher cometida no contexto
doméstico, leia-se, no âmbito privado, a lei trata de coibi-la por meio de uma série
de medidas – seja a natureza preventiva, seja reparadora – que tutelam, juridica-
mente, quem a sofre.
Algumas dessas medidas procuram dotar a mulher com mecanismos de repara-
ção da igualdade, especialmente em face da violência sofrida, com ações integradas,
além do estabelecimento de políticas públicas que resguardem os direitos humanos
das mulheres no âmbito das relações domésticas, com ações integradas de proteção,
de assistência à mulher e as voltadas ao atendimento pela autoridade policial, inci-
dindo em todas as etapas da violência (BIANCHINI, 2018).
Outra medida assistencial citada pela autora é o apoio financeiro à vítima em
situação de violência doméstica, que tenha baixa renda, a fim de que possa romper
o vínculo decorrente da dependência econômica que tem com o agressor.
A Lei Maria da Penha ainda prevê a instituição de curadorias e serviço de
assistência judiciária, em acompanhamento aos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, a fim de a vítima acessar todos os serviços e programas
que a auxiliem a evitar ou romper com o ciclo de violência (BIANCHINI, 2018).
Na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres (ratificada pelo Decreto n. 4.377/2002), a Recomendação Geral n. 33,
sobre o acesso das mulheres à Justiça, propõe aos Estados partes, no item 17, alínea
a, a remoção de impedimentos econômicos que obstem o acesso dessas à Justiça
com o oferecimento de assistência jurídica, assegurando a dispensa de taxas para
emissão e arquivamento de documentos, bem como a redução de custas, a mulheres
de baixa renda e a dispensa àquelas que vivem na pobreza.
Ainda, na alínea f, recomenda:
Establish justice access centres, such as “one-stop centers”, which include a range
of legal and social services, in order to reduce the number of steps that a woman

18
has to take to access justice. Such centres could provide legal advice and aid, start
the legal proceedings and coordinate support services for women across such areas
as violence against women, family matters, health, social security, employment,
property and immigration. They must be accessible to all women including those
living in poverty and/or in rural and remote areas […].
Além disso, há uma série outras recomendações para que seja facilitado o acesso
da mulher à Justiça, como a prestação de assistência, aconselhamento e representa-
ção jurídica gratuita ou a baixo custo nos processos judiciais ou extrajudiciais em
todos os campos do direito, de maneira oportuna, contínua e efetiva, e que tais ser-
viços sejam competentes e sensíveis a gênero, além de informá-la e conscientizá-la
sobre tais serviços.
Portanto, nessa linha de políticas públicas a serem adotadas em favor da mulher,
especialmente daquela em situação de violência doméstica, há uma gama de medidas
e serviços postos à sua disposição, todos com a finalidade de rompimento do ciclo
de violência, vale dizer, de preservação ou recuperação de direitos fundamentais.
É possível, assim, afirmar-se que os serviços assistenciais destinados a tutelar
direitos fundamentais da mulher em situação de violência doméstica guardam
imbricada conexão com esses mesmos direitos, e a omissão dessa assistência signi-
fica negar os próprios direitos em si.

4 ∙ DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL DA


MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NAS AÇÕES PENAIS
O sistema de justiça, composto, entre outros órgãos, pela Advocacia, Ministério
Público e Magistratura, tem o dever de acolher a mulher em situação de violência,
de modo a atendê-la com eficiência, demonstrando a força da Justiça e, principal-
mente, que a mulher está amparada pela lei, capaz de repor o desequilíbrio criado
pela cultura patriarcal que ainda contamina tal sistema.
O legislador, na elaboração da Lei 11.340/06, preocupou-se com a situação de
fragilidade da mulher em situação de violência doméstica e familiar, e, no art. 27
do mencionado dispositivo legal, foi enfático ao expressar: “Em todos os atos pro-
cessuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar
deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei”.
Segundo o STJ (BRASIL, 2018, p. 13), “Ao inserir tais dispositivos na citada lei,
o legislador objetivou tornar a mulher, vítima de violência, mais consciente sobre
seus direitos, bem como das consequências de suas decisões, evitando que ceda à
pressão do seu agressor”.
Ocorre que os direitos garantidos à mulher em situação de violência doméstica e
familiar não estão sendo respeitados, uma vez que, raramente, advogados ou defen-
sores públicos atuam em defesa da vítima na fase processual.
O advogado é indispensável à administração da Justiça, conforme preceitua a
CR, em seu art. 133,3 e a Lei n. 8.906/1994, em seu art. 2º, 4 não podendo, em hipótese

3 “Art. 133 O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e
manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.”
4 “Art. 2º O advogado é indispensável à administração da justiça.”

19
alguma, ser menosprezado pelos demais integrantes do sistema de Justiça, princi-
palmente quando há a aplicação da Lei n. 11.340/2006, que traz a obrigatoriedade
do acompanhamento de advogado.
Observa-se que, numa audiência de instrução, v.g., o homem autor da violência
doméstica comparecerá acompanhado de um advogado (obrigatoriamente, seja
constituído, seja nomeado, ou mesmo um defensor público), o que não tem ocorrido
com a mulher vítima de violência doméstica.
Nas palavras de Silva (2020), “Se ao imputado deve ser assegurada a defesa téc-
nica, em igual condição a mulher vítima de violência doméstica deve ter assegurada
para si a denominada assistência qualificada”.
A previsão legal não é para que o advogado atue como assistente de acusação do
Ministério Público (instituto diverso do referido no art. 27 da Lei Maria da Penha),
mas para que dê assistência jurídica à mulher em situação de violência doméstica e
familiar, orientando-a em relação aos seus direitos e às consequências que os rumos
da ação penal em que consta como vítima possam resultar.
Neste mesmo sentido, cita-se Almeida (2013):
intenção do legislador é que a mulher seja orientada sobre seus direitos, sobre
a consequência de suas decisões, evitando-se assim qualquer tipo de pressão
indevida, primando-se para um verdadeiro protagonismo da mulher em
situação de violência.
Nas ações penais públicas (condicionadas ou não à representação), não cabe
ao Ministério Público defender ou pleitear interesses individuais da mulher
vítima de violência doméstica, como divórcio, partilha de bens, alimentos
etc., pois age representando a sociedade, na satisfação da pretensão punitiva
do Estado, ainda que possa haver reflexos nos direitos da vítima (como direito
à indenização por danos morais ou materiais), mas sem o escopo de garantir
determinados direitos que a ela cabe especificar e pleitear, em nome próprio,
por meio de advogado.
No entanto, havendo violação dos direitos da mulher, no caso a falta de assis-
tência jurídica, os atos praticados são irregulares, podendo gerar nulidade, se
houver prejuízo à mulher. Nas palavras de Bianchini (2016, p. 164), “A ausência
de assistência judiciária torna a mulher ainda mais vulnerável, o que dificulta o
exercício de seus direitos”.
A mulher em situação de violência já se encontra fragilizada e em situação de
vulnerabilidade, e a não observância e aplicação de seus direitos fundamentais a
torna vítima de mais uma violência, neste caso, a violência institucional, em virtude
da omissão do Estado.
Deste modo, a Lei n. 11.340/2006 visa garantir à mulher em situação de violên-
cia todo o amparo judicial de que ela necessita, garantindo que seus direitos não
serão violados e que estará socialmente assistida.
E, a exemplo das demais formas de assistencialismo à mulher em situação de
violência doméstica, aquela prevista no art. 27 da Lei n. 11.340/2006, qual seja, o
acompanhamento de advogado, há uma ênfase legislativa expressando o comando
de que a mulher deverá ser assessorada por advogado, não havendo método de
interpretação diverso que faça concluir diferente.

20
Portanto, o propósito do dispositivo é a ampliação da tutela da mulher em
situação de violência doméstica, em todos os atos processuais, excepcionando ape-
nas a legitimidade para requerer medidas protetivas de urgência (justamente para
garantir celeridade), mas incluindo, entre outros atos, por exemplo, a audiência de
ratificação da renúncia ou retratação ao direito de representação, previsto no art. 16
da Lei n. 11.340/2006 (CUNHA; PINTO, 2020).
No mesmo sentido, colhem-se os ensinamentos de Fernandes (2015, p. 227):
Trata-se de importante medida para a defesa e reestruturação da mulher. No
âmbito criminal, a assistência permite o ingresso com a queixa-crime nos delitos
contra a honra e a intervenção da vítima como assistente de acusação. Sob o
aspecto protetivo, defensor ou advogado pode requerer medidas de proteção,
noticiar descumprimento de medida e juntar documentos, independentemente
de habilitação da vítima como assistente.
Nos casos em que a mulher não possua condições financeiras de arcar com os
honorários advocatícios, a assistência judiciária gratuita ser-lhe-á oferecida bem
como os serviços da Defensoria Pública.5 A CR, em seu art. 5º, LXXIV, traz, como
direito, a obrigação do Estado de prestar assistência judiciária àqueles que não tenham
suficiência de fundos para arcar com as custas judiciais e honorários advocatícios.
Todo o assistencialismo à mulher em situação de violência doméstica deve ser
encarado como um mecanismo destinado a garantir esse direito fundamental, cujo
descumprimento é grave e atinge preceitos legais, constitucionais e internacionais.
Um dos fundamentos de reequilíbrio apontado nos mais diversos instrumen-
tos jurídicos em favor da mulher em situação de violência doméstica é, justa-
mente, contrapor a omissão histórica do Estado em fazer valer seus direitos, com
sustentação no sistema de patriarcado que desde sempre relegou a segundo plano
(quando não ignorou) a proteção de seus interesses violados por terceiros, e às
vezes pelo próprio Estado.
E, ao encarar a assistência jurídica como um direito fundamental, será preciso
que haja o reconhecimento dos direitos fundamentais como uma exigência da dig-
nidade da pessoa humana (Mendes, 2016), guardando a conexa relação entre um
e outro, ou seja, entre a assistência a que o Estado se dispôs a oferecer e o direito à
dignidade humana.
A mulher, que se encontra vulnerável e, por consequência, fragilizada em vir-
tude de toda a violência a que foi submetida, se não estiver devidamente acompa-
nhada de um advogado, estará novamente em desvantagem perante o seu agressor.
Diz-se, novamente, uma vez que foi submetida a agressão, seja de modo psicológico,
moral, sexual, patrimonial e físico, seja, agora, pelo desamparo do sistema de jus-
tiça, aquele que deveria zelar pela lei.
O direito previsto no art. 5º, inciso I, da CR, que roga que homens e mulheres
sejam iguais perante a lei, não é respeitado. O homem tem uma maior proteção do
Estado ao responder um processo por violência doméstica, já que o art. 27 da Lei
n. 11.340/2006 não tem sido igualmente atendido. Como diz Mendes (2016, p. 74):

5 Cf. Lei n. 11.340/2006, art. 28: “É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e
familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos
termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado”.

21
Perder direitos é perder poder, e consequentemente, proteção. Daí o porquê
de ser necessário afirmar-se direito fundamental das mulheres à proteção, por
menos efetivo que algumas vezes transpareça ser, dada a cultura machista ainda
existente e, não raras vezes, preponderante, no âmbito da cultura jurídica.
O Estado, ao negligenciar um direito conferido às mulheres em situação de vio-
lência, faz com que haja uma violação aos direitos fundamentais, enfraquecendo
direitos amplamente garantidos e bravamente conquistados.
Lenza (2011, p. 871) diz: “Devemos pensar, também a necessidade de serem
observados os deveres, pois, muitas vezes o direito de um certo indivíduo depende
do dever do outro em não violar ou impedir a concretização do referido direito”. De
fato, muitas vezes precisamos que o outro não viole um direito, como v.g. quando o
já mencionado art. 27 da Lei n. 11.340/2006 é descumprido.
No caso em tela, o Estado deve observar seus deveres para que a mulher em
situação de violência doméstica e familiar tenha seus direitos, entre eles o de
ter um advogado acompanhando-a em todos os atos do processo, garantidos de
forma plena.
Não há escusa para o descumprimento desse dever, pois há comarcas que têm a
Defensoria Pública para fazer o acompanhamento e, onde não houver, pode o juiz
da Unidade de Violência Doméstica nomear um assistente judiciário para acompa-
nhar a mulher, à custa desta, se tiver condições financeiras para tanto e não houver
contratado advogado, ou à custa do Estado quando sua situação financeira não lhe
permitir. Exatamente como ocorre quando um acusado precisa de um advogado
para o acompanhar e postular na ação penal que responda.
Além do mais, não há que se mencionar assistência jurídica integral sem a par-
ticipação de um advogado. Como já referido, a CR, bem como a Lei n. 8.906/1996,
trazem o advogado como indispensável à administração da Justiça.
A ideia de uma provável revitimização da mulher em situação de violência
doméstica é outro fator de justificação de designação de um assistente em seu favor,
pois, não raras vezes, em situações do cotidiano forense, pode se ver em situação
de vulnerabilidade, criando constrangimentos e revolvendo lembranças que a fra-
gilizem mais do que já está. Desse modo, nas palavras de Estrellita apud Mendes
(2016, p. 113-115), após tal experiência, ainda sofre novamente na sala de audiên-
cias, na qual a maioria dos operadores do direito, “olvidando-se de que se trata
de uma vítima inserida em um processo multifacetado, arguem-na com sobras de
objetividade e, sob a ótica da vítima, se transformam em verdadeiros inquisidores”,
submetendo-as novamente ao mesmo sofrimento.
Aliás, nesse sentido, Mendes (2016, p. 113-115) traz a assistência judiciária
como mais um dos serviços postos à disposição da mulher em situação de violência
doméstica, não apenas para prevenir como também para conter esses constrangi-
mentos, criando-se uma facilitação do acesso à Justiça, finalizando, com maestria:
A assistência jurídica da vítima é legal, convencional e constitucional. Um direito
que corresponde, no sistema de justiça criminal, ao dever de sua garantia pelo
Estado sob pena de violação dos direitos ao disposto em nossa Carta Magna,
muito especialmente quanto ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos
documentos internacionais de defesa dos direitos humanos dos quais o Brasil é
signatário. Neste sentido, a assistência da vítima trata-se de verdadeiro sujeito

22
processual sui generis, na medida em que a ele não incumbe a condução de forma
ativa do processo, com função determinante para o alcance da decisão final, caso
dos considerados sujeitos processuais principais (ou essenciais ou diretos), juiz/a,
acusação (Ministério Público ou querelante) e defesa (defesa e réu/ré). No entanto,
por outro lado, não pode ser tido como simplesmente dispensável, posto que sua
função é a de assegurar à vítima, nos autos do processo, o direito a tratamento
digno pelo qual se compreendem não só condições adequadas de escuta e fala,
bem como a impossibilidade de convalidação de ato processual no qual a vítima
seja exposta, por exemplo, a questionamentos vexatórios, humilhantes, deprecia-
tivos e/ou quaisquer outros que perquiram sobre sua moral sem qualquer relação
com o esclarecimentos dos fatos pelos quais responde o réu.
Não se encontra definição melhor do que a de que o acesso à Justiça, por meio de
um dos serviços postos à disposição da mulher em situação de violência doméstica,
qual seja, a assistência judiciária, garante a preservação de direitos fundamentais
da vítima, contaminando essa característica de fundamentalidade o instrumento
criado para tanto.

5 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência praticada contra as mulheres é decorrente da cultura da dominação
do masculino sobre o feminino, atitude que não é mais (ou não deveria ser mais)
tolerada pela sociedade atual e os organismos internacionais, que recriminam toda
e qualquer forma de violência, principalmente no âmbito doméstico.
Mulheres em situação de violência doméstica enfrentam um momento delicado
em suas vidas e precisam se sentir protegidas e confiantes na Justiça, necessitando de
acolhimento, principalmente na fase inicial da ruptura do ciclo da violência domés-
tica, momento em que procuram, costumeiramente, ajuda nos órgãos policiais.
A política de assistência às mulheres em situação de violência doméstica faz
parte do conjunto de medidas necessárias não só à contenção dessa pandemia como
também à prevenção e reposição do equilíbrio tão mencionado entre homens e
mulheres, mas ainda não integralmente respeitado.
Os direitos fundamentais, para que possam ser preservados, precisam de ins-
trumentos que permitam efetivar tal garantia, guardando intrínseca relação com o
interesse defendido, tendo as políticas assistenciais esse propósito, ou seja, em situa-
ção de vulnerabilidade, assegurar que os direitos fundamentais da mulher serão
resguardados, seja cessando a violência, seja prevenindo-a, seja remediando-a, com
medidas reparatórias e punição ao agressor.
Nesse ponto, uma das políticas assistenciais é a designação de advogado à mulher
em situação de violência doméstica que figure como vítima na ação penal, destinada
a fortalecer sua participação no processo penal, inclusive quanto aos direitos que ela
tenha em decorrência da violência sofrida, bem como outros que ela precise exercer.
A assistência judiciária à mulher em situação de violência doméstica que figure
como vítima na ação penal, cujo objetivo é o de minimizar sua vulnerabilidade,
precisa ser encarada como garantia fundamental.
Concluindo, o art. 27 da Lei n. 11.340/2006 deve ser encarado como comando
obrigatório em virtude do caráter de direito fundamental que possui.

23
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Dulcielly Nóbrega. Da assistência judiciária: artigos 27 e 28 da Lei n.
11.340/2006. Instituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos, São Paulo, 16 jul. 2013.
Portal Compromisso e Atitude – Lei Maria da Penha. Disponível em: http://www.
compromissoeatitude.org.br/da-assistencia-judiciaria-artigos-27-e-28-da-lei-no-11-
3402006-por-dulcielly-nobrega-de-almeida/. Acesso em: 27 ago. 2020.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução Sérgio Milliet. 4. ed. São
Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
BIANCHINI, Alice. Lei n. 11.340/2006: aspectos assistenciais, protetivos e criminais da
violência de gênero. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha. Lei n. 11.340/2006: aspectos assistenciais,
protetivos e criminais da violência de gênero. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
BRASIL. Decreto 1.973, de 1º de agosto de 1996. Brasília, DF: Presidência da República.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/d1973.htm. Acesso
em: 5 de ago. de 2020.
BRASIL. Decreto 4.377, de 13 de setembro de 2002. Brasília, DF: Presidência da República.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm . Acesso
em: 1º set. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial n. 827782/RJ. Relator:
ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 7 de agosto de 2018. Disponível em: https://ww2.
stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=85
824078&num_registro=201503158943&data=20180807&tipo=0. Acesso em: 5 ago. 2020.
CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA. Guia dos direitos da mulher. 2.
ed. Rio de Janeiro: Record – Rosa dos Tempos, 1996.
CHIMENTI, Ricardo Cunha. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
COMMITTEE ON THE ELIMINATION OF ALL FORMS OF DISCRIMINATION
AGAINST WOMEN – CEDAW. Recomendação n. 33, de 23 de julho de 2015. Reco­
mendação geral para o acesso das mulheres na justiça. New York: UN Woman, 2015.
Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/Treaties/CEDAW/Shared%20Documents/1
_Global/CEDAW_C_GC_33_7767_E.pdf . Acesso em: 1º set. 2020.
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Capítulo 32 – Violência doméstica:
Lei n. 11.340/ 2006. In: Leis penais especiais: comentadas. CUNHA, Rogério Sanches;
PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó (Coord.). 3. ed., atual. e ampl. Salvador:
JusPodivm, 2020. p. 1617-1720.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. rev. e atual. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011.
FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Lei Maria da Penha: o processo penal no caminho
da efetividade. Abordagem jurídica e multidisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015.
FIGUEIREDO, Natália Sant’Anna. Violência sexual contra a mulher: uma análise
criminológica. In: BOITEUX, Luciana; MAGNO, Patrícia Carlos; BENEVIDES, Laize
(Org.). Gênero, feminismos e sistemas de justiça: discussões interseccionais de gênero,
raça e classe. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2018. p. 161-180.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2011.

24
LIMA, Paulo Marco Ferreira. Violência contra a mulher: o homicídio privilegiado e a
violência doméstica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
MENDES, Soraia da Rosa. Processo penal feminista. São Paulo: Atlas, 2020.
MENDES, Soraia da Rosa. A violência de gênero e a lei dos mais fracos: a proteção como
direito fundamental exclusivo das mulheres na seara penal. In: GAUDÊNCIO, Theresa
Karina de Figueiredo (Org.). A mulher e a justiça: a violência doméstica sob a ótica dos
direitos humanos. Brasília: AMAGIS, 2016. p. 63-78.
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos
arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência.
5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
NICKNICH, Mônica. Direito, trabalho e mulher: diálogos como princípio da frater­ni­
dade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
PASINATO, Wânia. Oito anos de Lei Maria da Penha: entre avanços, obstáculos e desafios.
Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 533-545, maio-agosto/2015.
PIOVESAN, Flávia. A proteção internacional dos direitos humanos das mulheres. R.
EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 57 (edição especial), p. 70-89, jan.-mar. 2012.
SCARDUELI, Márcia Cristiane Nunes. Lei Maria da Penha e a violência conjugal:
discursos, sujeitos e sentidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
SILVA, Franklyn Roger Alves. Assistência qualificada da mulher vítima de violência no
processo penal. Consultor Jurídico – Conjur, São Paulo, jul. 2019. Disponível em: https://
www.conjur.com.br/2019-jul-18/franklyn-roger-assistencia-vitima-violencia-processo-
penal. Acesso em: 5 de ago. 2020.

25
O DIREITO FUNDAMENTAL À IGUALDADE
DE GÊNERO EM JUÍZO
Ana Paula Guimarães1
Luísa Faria2

Sumário: 1 Introdução. 2 As gerações – ou dimensões – de direitos fundamentais. 2.1


Igualdade de gênero no contexto das gerações de direitos fundamentais: o descompasso
temporal entre os direitos de homens e mulheres. 2.2 A incorporação da luta contra a
discriminação à ordem jurídica brasileira. 2.3 Igualdade de gênero: dimensão individual
e difusa. 3 Tutela jurídica de direitos transindividuais. 3.1 Processo coletivo na
confluência das ondas de democratização da justiça. 3.2 Aspectos essenciais do processo
coletivo: conceito e disciplina. 3.3 O direito à igualde de gênero em juízo. 4 Estudo de
caso: ACP n. 5014547-70.2020.4.03.6100. 5 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O estudo proposto trata do direito fundamental à igualdade de gênero enquanto
pretensão juridicamente tutelável no âmbito do processo coletivo. O artigo busca
elucidar o modo como direitos fundamentais e processo coletivo relacionam-se
segundo o binômio direito-garantia fundamentais, já que somente com o adequado
acesso à justiça pode-se assegurar, com efetividade, a proteção do direito material
de titularidade transindividual.
A justificativa para a investigação científica empreendida escora-se em pelo
menos três argumentos. O primeiro, de ordem circunstancial, consiste na situação
de maior fragilidade imposta às mulheres por ocasião da pandemia de Covid-19 no
Brasil. Conforme dados compilados pelo Fórum de Segurança Pública no documento
“Violência doméstica durante a Covid-19”, o número de feminicídios entre março e
abril de 2020 experimentou um crescimento de 22,2% se comparado com o mesmo
período de 2019. No mesmo contexto, o número de denúncias recebidas pelo canal
Ligue-180 cresceu, apenas em abril, 37,6%.3
Sabe-se que a violência física se insere num contexto maior de discriminação
de gênero que se reflete, em nossa sociedade, pelos mais diferentes meios, desde
campanhas publicitárias até a composição de órgãos de cúpula do Estado, revelando

1 Assistente Técnica do Gabinete da Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa


Econômica (CADE). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
2 Assistente Técnica da Coordenação-Geral de Análise Antitruste 1 do Conselho Administrativo de
Defesa Econômica (CADE). Graduada em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).
3 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Violência doméstica durante pandemia de
Covid-19 Edição 02. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/
violencia-domestica-durante-pandemia-de-covid-19-edicao-02/. Acesso em: 3 set. 2020.

27
estruturas que, intencionalmente ou não, relegam a mulher a uma posição de vul-
nerabilidade, violência e preconceito. Nesse sentido, o crescimento de dados sobre
violência doméstica durante a crise sanitária chama a atenção para a necessidade de
se repensar – ou de se pensar mais seriamente – as políticas e instrumentos capazes
de interferir e alterar esse quadro, evitando a caminhada trágica que desemboca em
agressões físicas e no feminicídio.
O segundo argumento, notadamente pedagógico, diz respeito à necessidade de
pulverizar, na comunidade jurídica, iniciativas disruptivas, que apresentam novos
padrões de atuação para os operadores do direito. Nesse sentido, a propositura de
ação civil pública com fundamento em violação ao direito à igualdade de gênero e
à proteção da mulher é evento significativo ao passo que demonstra a existência de
nexo de causalidade entre condutas discriminatórias e danos sofridos por um grupo
específico titular desse direito transindividual, especialmente prejudicado, além de
lesão, ainda que indireta, a toda a sociedade.
A relevância de se discutirem essas iniciativas no mundo acadêmico é dupla-
mente benéfica por democratizar o debate ora travado, que passa a ser acrescido
da contribuição de outros atores do meio científico, além de contribuir para a
“pavimentação” de novos caminhos a serem seguidos por operadores do Direito na
proteção desse importante direito transindividual.
A terceira razão diz respeito à necessidade de se proceder a uma denúncia cien-
tífica da violação sistemática que o direito fundamental à igualdade de gênero sofre
na sociedade brasileira, a despeito dos diversos compromissos assumidos por nossa
República no combate a esse tipo de violação.
Nesse contexto, o itinerário traçado pelo trabalho se inicia com a apresentação
do direito fundamental à igualdade de gênero, suas origens histórias e transforma-
ções, desde o reconhecimento até a assunção da feição dúplice de direito individual
a transindividual. Paralelamente, observa-se como foi a incorporação desse direito
fundamental ao ordenamento jurídico brasileiro.
A segunda seção destina-se ao estudo do processo coletivo em sua interface
com o direito à igualde de gênero, com enfoque em aspectos da técnica proces-
sual especialmente desenvolvidos para assegurar o adequado acesso à justiça
nessas demandas. Neste ponto, frisa-se que identificar os conflitos de gênero
com uma categoria própria de processos contribui para a construção de uma
cultura jurídica capaz de reunir o binômio direito e processo, visualizando,
assim, o direito à igualdade de gênero acoplado à garantia processual das ações
coletivas, sem o que essa prerrogativa permanece um mero aforismo do orde-
namento jurídico.
Na terceira seção, apresenta-se um breve estudo de caso da ACP 5014547-
70.2020.4.03.6100, com destaque para o modo como a ação proposta costura os
diversos elementos trabalhados na exposição sobre o direito à igualdade de gênero
e sua tutela pelo processo coletivo.
Na conclusão, reforça-se a necessidade de leitura conjunta do direito à igualdade
de gênero e do processo coletivo como elementos imprescindíveis e indissociáveis
para a efetividade do direito fundamental em questão.

28
2 ∙ AS GERAÇÕES – OU DIMENSÕES – DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Padrões de comportamentos são esperados de todo e qualquer ser humano
desde seu nascimento. Nossa própria estrutura de raciocínio é criada de modo a
estabelecer estereótipos e fazer associações, para que consigamos responder a estí-
mulos e comportamentos de forma mais rápida, gastando menos energia para tanto
(KAHNEMAN, 2012).
Para além disso, os padrões de comportamento impostos e esperados social-
mente podem ser modificáveis a depender de uma série de fatores: o lugar onde
se nasce, a classe social a que se pertence, a cor de pele que se possui, a orienta-
ção sexual que se entende adequada e aceitável dentro de um contexto, e, é claro,
o gênero a que se pertence, característica à qual daremos enfoque ao longo deste
estudo. À medida que a sociedade foi-se modernizando, no entanto, os padrões de
comportamento esperados começaram a ser questionados e, junto com esse ques-
tionamento, assistimos à ruptura de limitações impostas e, consequentemente, a
uma leva de conquistas de direitos sociais e civis básicos.
Como exemplo desse movimento, é possível citar os relatos que, desde a Grécia
antiga, retratam que as mulheres eram proibidas de votar, uma vez que não eram
consideradas cidadãs, conquanto no mundo ocidental moderno o direito de voto
feminino seja a regra. Mais que isso, a sociedade moderna é calcada na busca de
uma pretensa igualdade, capaz de permitir que algumas mulheres até consigam se
alçar ao papel principal no âmbito político de importantes países, como é o caso de
Ângela Merkel, chanceler da Alemanha.
É bem verdade que as conquistas civis relativas às mulheres e à igualdade de
gênero foram alicerçadas no reconhecimento dos direitos fundamentais de modo
geral, e, portanto, foram sendo construídas à medida que foram surgindo as gera-
ções de direitos fundamentais como um todo. Nesse sentido, a fim de que seja pos-
sível entender o direito à igualdade de gênero, faz-se necessário entender o contexto
de reconhecimento dos direitos fundamentais em geral nas sociedades ocidentais.
A primeira geração de direitos seria aquela relativa à liberdade, a segunda à
igualdade e a terceira à fraternidade, nos moldes dos ditames da Revolução Francesa
do século XVIII. Nesse momento histórico, de transição para a sociedade moderna
e dos regimes absolutistas para as repúblicas (HUBERMAN, 1981), consagraram-se
os direitos ligados à liberdade e à prestação negativa estatal, ou seja, os direitos rela-
tivos às limitações de intervenções estatais em demasia. Assim, reconheceram-se os
homens como livres e iguais perante a lei, como detentores de legitimidade como
possuidores de propriedade, privacidade e segurança.
Os direitos de segunda geração ou dimensão, no entanto, passam por momento
histórico de entendimento de um papel estatal modificado, no qual entende-se que
este deve ser mais ativo, além de funcionar como fiscal do cumprimento das regras
jurídicas estabelecidas, se abstendo do papel de promotor de uma vida digna aos
cidadãos. A partir da propagação das doutrinas socialistas, o medo de que,  se  o
Estado tomasse um papel ativo diante dos cidadãos acabaria por minar as liberda-
des individuais conquistadas, cedendo espaço ao reconhecimento do fato de que a
igualdade e a liberdade formais, ou seja, somente postas nos diplomas legais sem

29
que houvesse qualquer ação do Estado no sentido de promovê-las, não as fazia pro-
duzir resultados no mundo factual, real.
Embora os direitos de segunda geração sejam entendidos como titularizados
pelo indivíduo e oponíveis ao Estado, passou-se a reconhecer que as condições
materiais para a concretização destes eram dever estatal. Nessa seara, para que os
direitos fundamentais reconhecidos pela primeira dimensão (especialmente aque-
les ligados à igualdade) pudessem ser levados a cabo, o Estado deveria promover as
condições materiais para que até mesmo as camadas mais miseráveis da população
tivessem acesso a eles. Constituem esses direitos aqueles ligados ao direito à saúde,
à educação, à previdência social, ao acesso à justiça, entre outros.
Como ensina Paulo Bonavides (2004, p. 572), junto com a segunda geração dos
direitos fundamentais também nasceu a teoria objetiva dos direitos fundamentais,
de acordo com a qual os valores e as garantias institucionais seriam o alicerce para
a universalidade concreta desses direitos. Segundo essa concepção, tão importante
quanto a proteção dos indivíduos é a proteção das instituições. Nessa geração, houve
o reconhecimento das seguintes garantias institucionais: as destinadas a indepen-
dência, estabilidade e autonomia do funcionalismo público, a independência dos
juízes, a exclusão de tribunais de exceção, entre outras.
Mais tarde, especialmente no período relativo à segunda metade do Século XX,
entendeu-se pelo surgimento dos direitos de terceira geração, relativos à fraterni-
dade – ou solidariedade – entre as pessoas, e, portanto, dotados de sentido cole-
tivo, de titularidade coletiva ou difusa. Caracterizados por elevado teor humano
(BONAVIDES, 2004, p. 569), tais direitos dizem respeito à autodeterminação dos
povos, ao desenvolvimento, a um meio ambiente equilibrado, à propriedade sobre o
patrimônio comum da humanidade.
O ordenamento brasileiro, vale dizer, traz uma diferenciação acerca dos direitos
de titularidade difusa, coletiva e individuais homogêneos. Tais definições e diferen-
ciações foram inseridas no ordenamento brasileiro por meio do Código de Defesa
do Consumidor (CDC) e são importantes para que possamos entender o tipo de
compensação bem como a natureza processual e a ação relativa e respectiva a cada
um dos tipos de direitos violados. Nessa seara, traz o art. 81 do CDC:
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá
ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os
transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeter-
minadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código,
os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria
ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação
jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decor-
rentes de origem comum.
Alguns autores, no entanto, para além das três gerações de direitos fundamen-
tais, entendem já ter havido uma quarta ou até mesmo uma quinta geração de direi-
tos. Norberto Bobbio (2004), por exemplo, em seu livro A era dos direitos, entende

30
que os limites éticos e os avanços de pesquisas biológicas fundamentam uma quarta
geração de direitos fundamentais, que impõem limites às manipulações do patri-
mônio genético de cada indivíduo. Paulo Bonavides, por sua vez, entende que a
quarta geração de direitos diz respeito à proteção e à positivação da democracia,
que, segundo afirma, corre risco de ser corroída pelos avanços da globalização eco-
nômica e informacional. O mesmo autor também reconhece uma quinta geração
de direitos, relativa ao direito à paz, indispensável à manutenção das democracias
(BONAVIDES, 2008).

2.1 ∙ IGUALDADE DE GÊNERO NO CONTEXTO DAS GERAÇÕES DE


DIREITOS FUNDAMENTAIS: O DESCOMPASSO TEMPORAL ENTRE OS
DIREITOS DE HOMENS E MULHERES
Entendendo as vitórias atinentes a cada uma das gerações de direitos funda-
mentais, podemos compreender o que o direito relativo à igualdade de gênero
consegue endereçar – de direitos civis e liberdades a ações afirmativas estatais
e tutela jurídica de direitos transindividuais. Isso porque, infelizmente, o reco-
nhecimento de direitos fundamentais se deu em momentos temporais bastante
distintos para homens e mulheres.
Com relação aos direitos de primeira geração, por exemplo, apesar de a liber-
dade dos homens ter sido concretizada ainda no contexto da Revolução Francesa,
no final do século XVIII, esta não foi estendida às mulheres – que, no âmbito da
história inglesa, por exemplo, só conquistaram direito ao voto em 1918, após a 1ª
Guerra Mundial. A Constituição americana, na mesma seara, previa o direito ao
voto desde que foi promulgada, em 1787, mas o direito de voto feminino somente
foi incorporado em 1919 (KARAWEJCZYK, 2013). No Brasil, muito embora movi-
mentos de mulheres tenham se iniciado desde os anos de 1850, a questão do voto
feminino somente passou a um amplo debate no contexto do nosso Congresso
Nacional em 1891, conquanto o direito ao voto só passasse a contar com previsão
legal definitiva em 1932, por meio do Código Eleitoral decretado durante a Era
Vargas (D’ALKMIN; AMARAL, 2006).
O atraso relativo à concessão de direitos iguais a ambos os gêneros demonstra a
assimetria de participação nas estruturas de poder por cada um, e, portanto, reflete
as bastante substanciais barreiras que ainda hoje se colocam ao pleno desenvolvi-
mento, autonomia, liberdade, reconhecimento e sucesso feminino nos mais diversos
âmbitos, sejam públicos ou privados. Nesse sentido, muito embora não só tenhamos
a igualdade de gênero como direito constitucionalmente consagrado como ainda
consigamos compreender se tratar de um direito difuso, individual homogêneo,
do modo como é estabelecido pelo nosso ordenamento, e que – como os direitos de
segunda geração – acaba por depender de ação concreta do Estado para que possa
de fato ser alcançado, fato é que esse descompasso nos impede de classificar essa
igualdade. Somente é possível, portanto, entender a absorção das características das
diversas gerações e dimensões de direitos fundamentais como sendo atinentes aos
direitos relativos à igualdade de gênero, não sendo possível, desta feita, classificar
esse direito fundamental como pertencente a uma ou outra geração, visto que o
contexto histórico das conquistas sociais e civis femininas não é correspondente ao
alcance dessas mesmas conquistas por todos os demais cidadãos.

31
Faz-se necessário, contudo, entender acerca das gerações de direitos para que seja
possível ilustrar a complexidade relativa ao direito à igualdade de gênero e a abran-
gência referente aos inúmeros âmbitos de conquistas que essa pretensa igualdade
permite. No entanto, assim como existem as gerações de direitos, do ponto de vista
da luta feminista tais gerações corresponderam às ondas do aludido movimento.
A conquista do sufrágio feminino – fruto da primeira onda do movimento
feminista – é apenas um entre uma série de outros direitos que foram negados às
mulheres ao longo tempo, e que, a depender do contexto sociocultural em que se
vive, ainda permanecem distantes de muitas. Há não muitos anos atrás, a ativista
paquistanesa pela educação Malala Yousafzai ficou mundialmente conhecida após
tomar um tiro na cabeça, com apenas 15 anos, em consequência do exercício de
uma luta pela educação feminina ante o Talibã,4 e ainda há setenta países em que
meninas são agredidas pelo simples fato de quererem estudar.5 Na Índia, a ocorrên-
cia de estupros coletivos é bastante frequente,6 e há até mesmo países em que houve
a descriminalização de agressão doméstica contra mulheres – como a Rússia, em
2017.7 De acordo com estudo realizado pelo Banco Mundial,8 em 104 países as leis
apresentam alguma restrição ao exercício do trabalho feminino.
Embora a situação relativa à igualdade de gênero ao redor de todo o mundo seja
absolutamente estarrecedora, o enfoque escolhido pelo presente artigo diz respeito
tão somente ao contexto no Brasil, que, embora conviva com diversos problemas
de ordem cultural e estrutural referentes a esses direitos, os têm incorporado ao
ordenamento, especialmente a partir do Século XX. É acerca dessa incorporação de
direitos que trataremos adiante.

2.2 ∙ A INCORPORAÇÃO DA LUTA CONTRA A DISCRIMINAÇÃO À ORDEM


JURÍDICA BRASILEIRA
A despeito de a igualdade de gênero ser um direito constitucionalmente reco-
nhecido – de forma expressa por meio do art. 5º, I, e ainda por meio dos arts. 6º e
7º, que tratam do amparo à maternidade e ao aleitamento, das ações afirmativas
na proteção do mercado de trabalho da mulher, da proibição da diferença salarial,
de exercício de funções e de critério de admissão por motivo, entre outros, de sexo
ou estado civil –, é fato que a incorporação desse direito nos demais normativos de
nosso ordenamento bem como na sociedade como um todo é quesito no qual ainda
temos muito a avançar.
Como mencionado, dentro do contexto brasileiro, a conquista do voto feminino
deu-se legalmente a partir do Código Eleitoral da Era Vargas, em 1932. No mesmo

4 Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/10/saiba-quem-e-malala-yousafzai-paquistanesa-
que-ganhou-nobel.html. Acesso em: 30 ago. 2020.
5 Fonte: https://news.un.org/en/story/2015/02/490542-un-rights-report-points-increasing-regularit
y-attacks-girls-seeking-education#.VNjchPnF-FE. Acesso em: 30 ago. 2020.
6 Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50656946. Acesso em: 30 ago. 2020.
7 Fonte: https://www.theguardian.com/world/2017/feb/07/putin-approves-change-to-law-decrimin
alising-domestic-violence. Acesso em: 30 ago. 2020.
8 Fonte: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/32639/9781464815324.pdf.
Acesso em: 30 ago. 2020.

32
sentido da primeira onda do Movimento Feminista europeu, o primeiro passo
para a emancipação das mulheres foi o direito ao voto e, portanto, à participação
nas decisões políticas da comunidade a que pertencem. Conforme lecionado por
Deborah Duprat (2015),
A participação das mulheres no cenário político institucional é realmente indis-
pensável para a efetiva transformação das estruturas sociais. Enquanto minori-
tárias no Parlamento, leis são votadas sem que, de um lado, valores, perspectivas
e reivindicações das mulheres sejam levadas em consideração, e, de outro, se
incorporem suas várias formas de abordar o político.
Antes disso, no entanto, as lutas feministas do Brasil, especialmente ainda
durante o Império, foram centralizadas no direito à educação, com a fundação da
primeira escola para meninas no Brasil pela norte-rio-grandense Nísia Floresta.
A segunda onda do movimento feminista tratou da conquista dos direitos de
ordem trabalhista e previdenciária, direitos que dependiam de uma prestação posi-
tiva estatal. No Brasil, em 1979, houve a aprovação da Convenção para a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e seu Protocolo Facultativo,
consagrando os direitos à liberdade e à igualdade femininas. Os artigos que incor-
poram a convenção elencam não só o direito a uma remuneração sem distinção
entre homens e mulheres, mas também se referem ao recebimento de previdên-
cia social, como asseguram o direito de obter empréstimos bancários, hipotecas e
outras formas de crédito financeiro, de propriedade, aquisição, gestão, administra-
ção, gozo e disposição dos bens, bem como garantem direito à livre escolha sobre
nome, profissão e ocupação, além de assegurar que os direitos e responsabilidades
durante o casamento e por ocasião de sua dissolução fossem igualitários. A despeito
de essa convenção ter sido aprovada em 1979 e assinada pela República Federativa
do Brasil, em Nova York, no dia 31 de março de 1981, apenas passou a ter validade
no ordenamento jurídico brasileiro com a promulgação do Decreto n. 4.377 de
2002, que a regulamentou.
Por fim, a terceira onda do movimento feminista, surgida durante a transição
para o Século XXI, trouxe para o debate o papel e a função da mulher na socie-
dade, bem como a forma de retratação da mulher na mídia e a linguagem usada
para com o gênero feminino. Nesse sentido, para além da consolidação dos direitos
formalmente conquistados e incorporados ao ordenamento, têm-se a necessidade
de igualdade no tratamento entre homens e mulheres, a mudança de estereótipos
e o fim da exigência a um determinado padrão comportamental que seja baseado
somente no gênero.
No ano de 1996, houve a incorporação de outro tratado internacional de suma
importância no avanço do direito das mulheres: a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, também conhecida como
Convenção de Belém do Pará, por ter sido assinada nessa cidade em 9 de junho de
1994. Trata-se do primeiro tratado internacional legalmente vinculante que crimi-
naliza as formas de violência contra a mulher, com especial enfoque sobre a crimina-
lização da violência sexual. Apesar de a Declaração Universal de Direitos Humanos,
assinada em 1948, reconhecer o direito à igualdade de gênero, a Convenção de
Belém do Pará atribui determinados tipos de violência à condição de ser mulher
e estabelece uma ampla gama de agressões possíveis, incluindo as psicológicas. Os
países signatários da convenção, portanto, via seu artigo 7, se comprometeram a

33
tomar todos os tipos de medidas de âmbito jurídico, administrativo e legislativo
para coibir a ocorrência de violência por razões de gênero. In verbis:
a. abster-se de qualquer ato ou prática de violência contra a mulher e velar por
que as autoridades, seus funcionários e pessoal, bem como agentes e instituições
públicos ajam de conformidade com essa obrigação;
b. agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher;
c. incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e
de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a vio-
lência contra a mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas
que forem aplicáveis;
d. adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir,
intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique
ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade;
e. tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou
abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetu-
dinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher;
f. estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeitada a
violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo
acesso a tais processos;
g. estabelecer mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar
que a mulher sujeitada a violência tenha efetivo acesso a restituição, reparação
do dano e outros meios de compensação justos e eficazes;
h. adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias à vigência
desta Convenção.
Embora o Brasil tenha se engajado e assinado o referido tratado internacional,
fato é que a efetiva implementação das previsões dos artigos não foi imediata. O
caso de Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica após uma tentativa
de homicídio, golpe final dos trinta e dois anos que passou sofrendo agressões por
parte do então marido, ganhou repercussão internacional. Maria da Penha entrou
com denúncia contra o Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos
Humanos, e o País acabou sendo responsabilizado pela negligência e omissão em
combater a violência doméstica, resultando na edição da Lei Federal n. 11.340, de 7
de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha.
Assim, o ordenamento brasileiro passou a contar com previsão de sanção
específica para as diversas violências e agressões infligidas às mulheres, sejam de
ordem física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral. Com base na Lei Maria
da Penha, ainda, o Código Penal foi alterado, de modo a incluir na agravante
genérica da pena o cometimento do crime com violência contra a mulher, e o
Código de Processo Penal passou a contar com a possibilidade de instituição de
medidas protetivas de urgência, como aquelas que exigem que o agressor mante-
nha uma distância mínima da vítima, inéditas no ordenamento. Após a Lei Maria
da Penha, outras normas foram inseridas a fim de auxiliar na criminalização da
violência de gênero, como as Leis n. 13.104 e 13.142, ambas de 2015, que tipificam
e tornam crime hediondo o feminicídio.
Com relação ao aborto, no Brasil, a primeira previsão de penalização a quem
incorresse na prática ocorreu no Código Criminal do Império, em 1830. Nessa

34
ocasião, no entanto, não se condenava a gestante, mas quem houvesse realizado
o procedimento. Em 1890, passou-se a também criminalizar a gestante, havendo
maior detalhamento acerca dos tipos penais no Código de 1940. Esse normativo,
no entanto, excetua duas ocasiões em que pode ser realizado aborto no Brasil sem
que sejam criminalizados a mulher ou o médico: segundo os incisos do art. 128, a
prática é permitida para salvar a vida da mulher ou na hipótese de ser a gestação
uma consequência de violência sexual, ou seja, se a gravidez ocorreu como resul-
tado de um estupro. Em 2012, o STF, por meio da DPF n. 147, ampliou os casos de
não punibilidade também para a realização do aborto de bebês anencéfalos. A des-
peito disso, existem projetos de lei em trâmite no Congresso para criminalização do
aborto também para os casos de malformação do feto9 – contra a decisão de 2012 do
Supremo Tribunal Federal, portanto.
Além do projeto para criminalizar o aborto de fetos com malformação, tra-
mitam no Congresso diversos outros projetos, tanto para aumentar quanto para
reduzir as restrições às práticas que atualmente se encontram vigentes no País. Com
relação aos projetos que preveem aumento de restrições, propostos somente no ano
de 2020, tem-se, em suma:
I. O Projeto de Lei n. 1.444, de 2020, que busca proibir, em todas as suas for-
mas, o aborto realizado em locais que prestem serviços de acolhimento ins-
titucional às mulheres.10
II. O Projeto de Lei n. 1.552, de 2020, que busca proibir a utilização de recursos
na aquisição ou manutenção de equipamentos, em serviços ou em quaisquer
outros tipos de atividade que tenham relação, direta ou indiretamente, com o
aborto provocado.11
III. O Projeto de Lei n. 1.945, de 2020, que busca alterar dispositivo do Decreto-Lei
n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para fins de inclusão de
causa de aumento de pena em caso de aborto realizado em razão de microcefalia
ou qualquer outra anomalia ou malformação do feto.12

9 Fonte: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/04/30/projeto-criminaliza-aborto-nos
-casos-de-malformacao-do-feto. Acesso em: 30 ago. 2020.
10 BRASIL. Câmara Legislativa. Projeto de Lei PDL 1.444/2020. Altera as Leis n. 13.979, de 6 de fevereiro
de 2020, e n. 13.982, de 2 de abril de 2020, para estabelecer medidas excepcionais de proteção à mulher e
a seus dependentes em situação de violência doméstica e familiar durante a emergência de saúde pública
de importância internacional decorrente da pandemia da Covid-19. Disponível em: https://www.
camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2242763. Acesso em: 14 out. 2020.
11 BRASIL. Câmara Legislativa. Projeto de Lei PDL 1.552/2020. Dispõe sobre medidas de pro­teção
à mulher em situação de violência durante a vigência do estado de calamidade pública reco­
nhecido pelo Decreto Legislativo n. 6, de 20 de março de 2020, ou, transcorrida sua vigência,
enquanto durarem as medidas de quarentena e de restrições de atividades no contexto da
pandemia da Covid-19. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetrami
tacao?idProposicao=2243066. Acesso em: 14 out. 2020.
12 BRASIL. Câmara Legislativa. Projeto de Lei PDL 1.945/2020. Altera dispositivo do Decreto-
Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para fins de inclusão de causa de
aumento de pena em caso de aborto realizado em razão de microcefalia ou qualquer outra
anomalia ou malformação do feto. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/
fichadetramitacao?idProposicao=2249319. Acesso em: 14 out. 2020.

35
IV. A Indicação n. 443/2020, que sugere ao então presidente do Supremo Tribunal
Federal, José Antonio Dias Toffoli, o arquivamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 5.581, que trata da “interrupção de gravidez nas políti-
cas de saúde do País para mulheres grávidas infectadas pelo vírus zica”.13
V. O Projeto de Lei n. 518, de 2020, que busca instituir o dia 22 de janeiro como dia
de Homenagem à Vida Humana, desde a concepção.14
Além disso, impende ressaltar que, após enorme polêmica nacional relativa a
autorização para que uma menina de 10 anos vítima de violência sexual pudesse
realizar aborto,15 em 27 de agosto de 2020,16 o presidente Jair Bolsonaro editou a
Portaria n. 2.282, que impõe uma série de barreiras às vítimas de violência sexual
que optem por abortar. De acordo com a portaria, para conseguir realizar o proce-
dimento, é obrigatório que a equipe médica notifique uma autoridade policial acerca
do ocorrido, bem como realize a coleta de possíveis provas do crime de estupro,
como fragmentos do feto ou do embrião, e ouça a narração em detalhes do crime
por parte da vítima. Além disso, é exigida a assinatura, por parte da vítima, de
termo de responsabilidade no qual ela reconhece que, ao realizar o procedimento,
pode sofrer com sangramentos, infecções e até mesmo vir a óbito.
Exemplos de ações governamentais como a corporificada por essa portaria nos
fazem lembrar da famosa frase atribuída a Simone de Beauvoir, dirigida a todas as
mulheres: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa
para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são per-
manentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.

2.3 ∙ IGUALDADE DE GÊNERO: DIMENSÃO INDIVIDUAL E DIFUSA


Os direitos relativos à igualdade de gênero, nessa seara, após a constatação de
todas as ondas que levaram à sua conquista, devem ser entendidos como transcen-
dentais a uma classificação simplista, no sentido de que se trata de direitos funda-
mentais apenas de uma dimensão individual ou de que são um direito de abran-
gência coletiva. Aliás, essa múltipla abrangência, no sentido de que tanto dizem
respeito aos indivíduos isoladamente considerados quanto a um grupo social, a
uma coletividade, já encontra respaldo na doutrina.
Conforme leciona Bernardo Gonçalves, há direitos que podem ser invoca-
dos tanto de uma perspectiva individual quanto coletiva. É o caso do direito de

13 BRASIL. Câmara Legislativa. Indicação INC 443/2020. Sugere ao Sr. Presidente do Supremo Tribunal
Federal, José Antonio Dias Toffoli, o arquivamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade
n. 5.581, que trata da “interrupção de gravidez nas políticas de saúde do País para mulheres
grávidas infectadas pelo vírus zica”. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/
fichadetramitacao?idProposicao=2249951. Acesso em: 14 out. 2020.
14 BRASIL. Câmara Legislativa. Projeto de Lei PDL 518/2020. Institui o dia 22 de janeiro como dia
de Homenagem à Vida Humana, desde a concepção. Disponível em: https://www.camara.leg.br/
proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2238404. Acesso em: 14 out. 2020.
15 Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-16/menina-de-10-anos-violentada-fara-aborto-le
gal-sob-alarde-de-conservadores-a-porta-do-hospital.html. Acesso em: 3 set. 2020.
16 Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-28/cruzada-antiaborto-tem-nova-vitoria-com-por
taria-que-dificulta-o-procedimento-legal-as-vitimas-de-estupro.html. Acesso em: 3 set. 2020.

36
vizinhança, do o direito a um meio ambiente saudável ou até mesmo do direito
atinente a toda uma categoria profissional: sua dimensão depende da perspectiva
argumentativa, se individual coletiva, social ou difusa de quem o defende em juízo.
Outra questão bastante relevante diz respeito à desnecessidade de que o direito
à igualdade de gênero esteja expressamente posto com tais palavras na Constituição
Federal. O próprio caput do art. 5º, o qual estabelece que “todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza”, já enseja interpretação nesse sentido, e,
ainda que não o fizesse, não seria o primeiro caso de direito fundamental que não
consta do rol do art. 5º. Os direitos econômicos, ambientais, à educação e à saúde
são tutelados por outros dispositivos da Carta Constitucional. Há direitos funda-
mentais que, inclusive, sequer constam da redação atual da Constituição Federal,
embora sejam reconhecidos como tais: o direito a proteção de dados pessoais, por
exemplo, é um direito fundamental que escapa a esse rol.
Desta feita, não há que se falar em discussão relativa à existência e validade do
direito relativo à igualdade de gênero, que, além de ser expresso, está sedimentado
em diversos outros normativos, editados justamente para garantir o seu cumpri-
mento. Trataremos, a partir de agora, da procedimentalização necessária à assun-
ção desse direito fundamental, ou seja, dos diversos caminhos processuais possíveis
para que se possa pleitear o efetivo cumprimento do direito à igualdade de gênero.

3 ∙ TUTELA JURÍDICA DE DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS


Conforme abordado na seção anterior, o direito à igualdade de gênero caracte-
riza-se por sua dupla dimensão, ora individual, ora transindividual. Nesta seção,
daremos enfoque a esta segunda dimensão, tratando especificamente do processo
coletivo como técnica processual adequada para a tutela, em juízo, dos direitos
dessa natureza.

3.1 ∙ PROCESSO COLETIVO NA CONFLUÊNCIA DAS ONDAS DE


DEMOCRATIZAÇÃO DA JUSTIÇA
Em uma contextualização história e cronológica, podemos dizer o que o pro-
cesso coletivo pertence à chamada segunda onda renovatória do processo civil. A
teoria das ondas renovatórias é atribuída aos estudos de Mauro Cappelletti e Bryant
Garth, juristas que, já na década de 1970, tratavam do problema do acesso à justiça.
Para os autores, o direito à jurisdição permaneceu durante quase todo os séculos
XVIII e XIX com feição excessivamente liberal, típica dos Estados burgueses então
vigentes. Somente a partir do século XX, com a ascensão do chamado Estado de
bem-estar social e com o início das discussões sobre direitos de segunda geração,
vocacionados à garantia de igualdade material e direitos de prestação dos indivíduos
contra o Poder Público, é que se passa a encarar o acesso à justiça em sua dimensão
efetiva, e não meramente formal (CAPPELLETTI; GARTH; 1988, p. 9-12).
É nesse contexto que o acesso à justiça é alçado a uma posição cada vez mais
central no ordenamento jurídico, por consistir em “requisito fundamental – o mais
básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que
pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos” (CAPPELLETTI;
GARTH, 1988, p. 12).

37
Ao tratar dos obstáculos que impedem a construção de um sistema processual
civil democrático e apto a cumprir um papel essencial de garantia de direitos nos
Estados democráticos, os autores identificam o problema dos interesses difusos. Em
linha de conceituação, Cappelletti e Garth (1988, p. 26) aduzem que:
Interesses “difusos” são interesses fragmentados ou coletivos, tais como o direito
ao ambiente saudável, ou à proteção do consumidor. O problema básico que eles
apresentam – a razão de sua natureza difusa – é que, ou ninguém tem direito a
corrigir a lesão a um interesse coletivo, ou o prêmio para qualquer indivíduo buscar
essa correção é pequeno demais para induzi-lo a tentar uma ação. (Grifo nosso).
Constatados os obstáculos que impedem o efetivo acesso à justiça dos Estados
modernos, os autores sistematizam a existência de posicionamentos que emergem,
a partir de 1965, em sequência mais ou menos cronológica e que buscam superar os
problemas identificados. Esses posicionamentos constituem o que se convencionou
chamar de ondas renovatórias.
De forma sintética, essas ondas podem ser assim identificadas (CAPPELLETTI;
GARTH, 1988, p. 31): (I) Primeira onda renovatória: assistência judiciária, superação
do obstáculo de custos financeiros para acesso à justiça de grupos hipossuficientes.
(II) Segunda onda renovatória: instrumentalização do processo para permitir a tutela
de interesses difusos na via jurisdicional. (III) Terceira onda renovatória: tentativa de
reestruturar o processo para a superação das barreiras de acesso de forma articulada
e compreensiva, no que os autores chamam de “enfoque de acesso à justiça”.
O que nos interessa mais de perto, enquanto objeto de estudo desta seção, é justa-
mente a segunda onda renovatória, que tem como ponto focal a instrumentalização do
processo civil para a tutela de interesses difusos. Nesse sentido, explicam os autores:
A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para proteção
dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas
partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas duas mesmas
partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que perten-
cessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se
enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as
normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as
demandas por interesses difusos intentadas por particulares. (CAPPELLETTI;
GARTH, 1988, p. 49-50).
Como visto, a discussão sobre a necessidade de se desenvolver um processo
coletivo está intimamente ligada ao movimento de reconhecimento de direitos
fundamentais de feição não individual protegidos pelo ordenamento jurídico, o
que acentua a função instrumental do processo. Isso porque o reconhecimento dos
direitos fundamentais de 3ª geração pelo Estado exige, paralelamente, a disponibi-
lização de formas adequadas para sua tutela. É nesse contexto que se identifica uma
correspondência entre diretos fundamentais transindividuais e o processo coletivo.
Quanto a essa correspondência, Cintra, Grinover e Dinamarco (2015) expli-
cam que o advento da chamada “teoria das liberdades públicas” rendeu ensejo
ao surgimento de uma nova dimensão de direitos fundamentais, inconfundíveis
com os direitos de primeira geração (liberdades negativas) e de segunda geração
(exigência de prestações positivas), fundando, portanto, a categoria própria dos
direitos de terceira geração.

38
Essa terceira geração, conforme tratado em seção anterior deste trabalho, carac-
teriza-se pelos dogmas da solidariedade e transindividualidade, e fundamenta o
reconhecimento de direitos subjetivos incorporados ao patrimônio de seus titulares
(coletividade). Essa nova percepção sobre direitos fundamentais tornou necessária, na
visão dos autores, uma “reestruturação de conceitos jurídicos, que se amoldassem à nova
realidade”. Nesse cenário, Cintra, Grinover e Dinamarco (2015, p. 378) ensinam que
[...] não bastava reconhecer os direitos de solidariedade. Era preciso que o sis-
tema jurídico os tutelasse adequadamente, assegurando sua efetiva fruição. Da
declaração dos novos direitos era necessário passar à sua tutela efetiva, a fim
de se assegurar concretamente as novas conquistas da cidadania. E, como cabe
ao direito processual atuar praticamente os direitos ameaçados ou violados, a
renovação fez-se sobretudo no plano do processo.
De um modelo processual individualista a um modelo social, de esquemas abs-
tratos a esquemas concretos, do plano estático ao plano dinâmico, o processo
transformou-se de individual em coletivo, ora inspirando-se no sistema das
class actions do common law, ora estruturando novas técnicas, mais aderentes
ao sistema político-jurídico de cada país. E nesse campo o Brasil foi precursor e
pioneiro entre os países de civil law.
Em síntese, a leitura do processo coletivo à luz do problema do acesso à justiça
e das ondas renovatórias do processo coloca em perspectiva duas principais ques-
tões. A primeira é a necessidade das técnicas processuais adequadas como forma de
garantia de efetividade ao direito material reconhecido pelos ordenamentos jurídi-
cos. Isso porque o mero reconhecimento de direitos – sua declaração –, desacompa-
nhado da previsão dos poderes necessários para a efetividade – e exigibilidade – do
bem da vida protegido, torna inócuo – ou com efetividade muito reduzida – um
direito fundamental.
Não por acaso nosso modelo constitucional, com respaldo na doutrina constitu-
cionalista, reconhece um sistema de direitos e garantias, ou seja, reconhece-se uma
prerrogativa material e, ao seu lado, uma forma de acesso e concretização do direito
assegurado. É nesse cenário que podemos identificar um binômio direito-garantia
na relação entre direitos transindividuais e processo coletivo.
A segunda questão diz respeito ao caráter essencialmente instrumental do pro-
cesso coletivo, do que podemos inferir que não há como pensar o processo coletivo
senão com base nas peculiaridades e necessidades inerentes ao direito material que
essa técnica processual visa a tutelar. Com efeito, é a partir do paradigma da ins-
trumentalidade que se deve pensar o conceito e a disciplina jurídica do processo
coletivo, temas que passaremos a abordar.

3.2 ∙ ASPECTOS ESSENCIAIS DO PROCESSO COLETIVO:


CONCEITO E DISCIPLINA
Sem a pretensão de apresentar exaustivamente as normas de regência do pro-
cesso coletivo, esta seção volta-se a responder duas questões de acentuada impor-
tância para os fins colimados neste trabalho: (I) o que se entende por processo cole-
tivo; (II) quais contornos de sua disciplina jurídica constituem modulações voltadas
a aperfeiçoar a tutela ao direito à igualde de gênero em seu caráter transindividual.

39
3.2.1 ∙ A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO POSSÍVEL
A proposta de se construir um “conceito possível” busca evitar uma abordagem
excessivamente ontológica. Consequentemente, o que se busca aqui não é perscru-
tar uma suposta natureza própria, constante e indelével do fenômeno processual,
mas a feição que ele assume em contextos de nosso interesse.
Tendo como tônica a função instrumental do processo, adotamos aqui o con-
ceito de Didier, para quem o processo coletivo é aquele cujo objeto consiste em
relação jurídica litigiosa coletiva. Por sua vez, entende o autor:
Uma relação jurídica é coletiva se em um de seus termos, como sujeito ativo ou
passivo, encontra-se um grupo (comunidade, categoria, classe, etc.; designa-se
qualquer um deles pelo gênero grupo) e, se no outro termo, a relação jurídica
litigiosa envolver direito (situação jurídica ativa) ou dever ou estado de sujei-
ção (situações jurídicas passivas) de um determinado grupo. Assim, presentes
o grupo e a situação jurídica coletiva, está-se diante de um processo coletivo.
(DIDIER JR., 2016, p. 29-30).
A definição de processo coletivo a partir da relação jurídica que constitua seu
objeto, e não com base em características desse tipo de processo (regime de forma-
ção da coisa julgada, legitimidade, competência etc.), deve-se à constatação de que
não podemos confundir o regime próprio de garantias processuais desse tipo de
ação ou mesmo sua disciplina jurídica especial com seu conceito, o que importaria
uma subversão da relação de causa e consequência.
Em outras palavras, não é pela disciplina especial do processo que se chega ao
seu conceito, mas sim a partir do conceito que se justifica a aplicação de um regime
próprio. Nessa ordem de ideias, tendo em vista o caráter instrumental do processo,
que se volta a permitir uma tutela jurisdicional de determinados direitos materiais,
o objeto próprio do processo coletivo (relações coletivas) é que exigirá do legislador
e do operador do direito o desenvolvimento de estratégias e regras peculiares, que
contribuam para a garantia de tutela efetiva.
É daí que podemos inferir a seguinte relação de causa-consequência: o reco-
nhecimento de direitos de terceira geração, de titularidade transindividual, é causa
para o desenvolvimento de uma técnica processual adequada a tutela desses inte-
resses, o chamado “processo coletivo”, que se particulariza, justamente, em razão
da relação jurídica especial cuja proteção busca-se assegurar na via jurisdicional.
Vocacionado a atender esses direitos de feição não individual, o processo coletivo
conta com características singulares quanto a aspectos como legitimidade, coisa
julgada e competência, que se configuram como consequência do imperativo da
instrumentalidade da matéria processual.
Em suma, o direito material tutelado, o conceito de processo coletivo e as carac-
terísticas jurídico-processuais são fenômenos que se relacionam segundo o binômio
função/forma, ou seja, o conceito de processo coletivo não extrai características
especiais dessa relação jurídica, na verdade, são estas últimas que decorrem do
objeto próprio do processo coletivo, a partir do qual chegamos a seu conceito.
Em síntese, a existência de direitos com feição própria é a causa para o desen-
volvimento de uma técnica processual diferenciada, que terá como consequência
características próprias de elementos do processo (partes, legitimidade, competên-
cia, coisa julgada etc.).

40
3.2.2 ∙ A DISCIPLINA DO PROCESSO COLETIVO
Conforme buscou-se frisar na seção anterior, o desenvolvimento do processo
coletivo como categoria própria, com disciplina especial, justifica-se pela necessi-
dade de se criarem formas adequadas à proteção de direitos transindividuais. Nesse
sentido, Didier ensina (2016, p. 53):
A tradicional visão individualista do processo se tornou insuficiente e deficitária,
forçando o estabelecimento de novas regras para a tutela dos direitos coletivos e
das situações em que os direitos seriam mais bem atendidos se compreendidos
como coletivos para fins de tutela [...].
Quanto a esse regramento próprio, importa dizer que, no Brasil, não existe
uma disciplina específica – lei ou código – acerca do processo coletivo. Houve uma
tentativa de inserção dessa matéria no Código de Processo Civil de 2015, no art.
333 – Livro I (Do processo de conhecimento e do cumprimento de sentença), Título
I (Do procedimento comum), Capítulo IV (Da conversão da ação individual em
coletiva)17 – que, no entanto, foi integralmente vetado.18
Diante da ausência de disciplina legal específica, as regras do processo coletivo
são extraídas de um conjunto de leis que conformam o chamado “microssistema
de tutela coletiva”. Conforme aduz Didier (2016, p. 52), o microssistema é formado
por um núcleo composto pelo Código de Defesa do Consumidor, Lei da Ação Civil

17 “Art. 333. Atendidos os pressupostos da relevância social e da dificuldade de formação do


litisconsórcio, o juiz, a requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública, ouvido o
autor, poderá converter em coletiva a ação individual que veicule pedido que: I - tenha alcance
coletivo, em razão da tutela de bem jurídico difuso ou coletivo, assim entendidos aqueles definidos
pelo art. 81, parágrafo único, incisos I e II, da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código
de Defesa do Consumidor), e cuja ofensa afete, a um só tempo, as esferas jurídicas do indivíduo
e da coletividade; II - tenha por objetivo a solução de conflito de interesse relativo a uma mesma
relação jurídica plurilateral, cuja solução, por sua natureza ou por disposição de lei, deva ser
necessariamente uniforme, assegurando-se tratamento isonômico para todos os membros do
grupo. § 1º Além do Ministério Público e da Defensoria Pública, podem requerer a conversão os
legitimados referidos no art. 5º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, e no art. 82 da Lei nº 8.078,
de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor). § 2º A conversão não pode implicar
a formação de processo coletivo para a tutela de direitos individuais homogêneos. § 3º Não se
admite a conversão, ainda, se: I - já iniciada, no processo individual, a audiência de instrução e
julgamento; ou II - houver processo coletivo pendente com o mesmo objeto; ou III - o juízo não
tiver competência para o processo coletivo que seria formado. § 4º Determinada a conversão, o
juiz intimará o autor do requerimento para que, no prazo fixado, adite ou emende a petição inicial,
para adaptá-la à tutela coletiva. § 5º Havendo aditamento ou emenda da petição inicial, o juiz
determinará a intimação do réu para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias. § 6º O
autor originário da ação individual atuará na condição de litisconsorte unitário do legitimado para
condução do processo coletivo. § 7º O autor originário não é responsável por nenhuma despesa
processual decorrente da conversão do processo individual em coletivo. § 8º Após a conversão,
observar-se-ão as regras do processo coletivo. § 9º A conversão poderá ocorrer mesmo que o autor
tenha cumulado pedido de natureza estritamente individual, hipótese em que o processamento
desse pedido dar-se-á em autos apartados. § 10. O Ministério Público deverá ser ouvido sobre o
requerimento previsto no caput, salvo quando ele próprio o houver formulado.”
18 Razões do veto: da forma como foi redigido, o dispositivo poderia levar à conversão de ação
individual em ação coletiva de maneira pouco criteriosa, inclusive em detrimento do interesse
das partes. O tema exige disciplina própria para garantir a plena eficácia do instituto. Além disso,
o novo Código já contempla mecanismos para tratar demandas repetitivas. No sentido do veto
manifestou-se também a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

41
Pública e Lei da Ação Popular, que, portanto, são os diplomas que tratam de forma
mais ampla e mais completa da disciplina desses processos; perifericamente, regras
complementares do microssistema poderiam ser extraídas da Lei de Improbidade
Administrativa, da Lei do Mandado de Segurança Coletivo e de outros diplomas
avulsos (podemos exemplificar com a Lei de Defesa da Concorrência, Estatuto da
Igualdade Racial etc.).
A existência do microssistema de tutela coletiva goza, outrossim, de reconheci-
mento na jurisprudência, o que se confirma pelo seguinte julgado de lavra do STJ:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. [...] 8. A lei de improbidade administrativa, juntamente
com a lei da ação civil pública, da ação popular, do mandado de segurança
coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do
Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dos interesses
transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e subsi-
diam-se. (REsp 510.150/MA, Relator: Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado
em 17.2.2004, DJ 29 mar. 2004, p. 173).
Com efeito, as normas que tratam de temas do processo coletivo como legiti-
midade, competência, coisa julgada, execução, litisconsórcio, desistência, entre
outras, encontram-se dispersas entre diversas leis, bem como no próprio CPC e na
Constituição Federal, conformando, portanto, o sobredito microssistema. A relação
que se estabelece entre cada um desses diplomas legais quanto à incidência no pro-
cesso coletivo explica-se pela chamada “teoria do diálogo das fontes”.
Trata-se de teoria introduzida no Brasil por Cláudia Lima Marques e que defende
uma interpretação voltada ao “diálogo sistemático de coerência” entre normas de
aplicação simultânea que regulam o processo coletivo (DIDIER JR., 2016, p. 109).
Nesse cenário, Didier propõe a seguinte sistematização:
Assim, pensando na aplicabilidade e operabilidade destas teorias e considera-
ções, adota-se a seguinte diretriz: para solucionar um problema de processo
coletivo o caminho deve ser mais ou menos o seguinte: a) buscar a solução no
diploma específico (Ex.: sendo uma ação popular na Lei n° 4. 717 /1965). Não
sendo localizada esta solução ou sendo ela insatisfat6ria: b) buscar a solução no
núcleo do microssistema, soma da Lei da Ação Civil Pública com o Tít. III do
CDC (Código Brasileiro de Processos Coletivos). Não existindo solução para o
problema: c) buscar nos demais diplomas que tratam sobre processos coletivos a
ratio do processo coletivo para melhor resolver a questão em coordenação com
as normas do CPC-2015 que não conflitarem com a lógica e os princípios pró-
prios do microssistema e com a Constituição.

3.3 ∙ O DIREITO À IGUALDADE DE GÊNERO EM JUÍZO


Muito embora a pretensão deste trabalho não seja perscrutar a disciplina de
regência do processo coletivo, de forma geral, mostra-se pertinente o estudo de
determinados aspectos processuais que assumem feição particular nas ações
envolvendo o direito à igualdade de gênero. Nessa esteira, a presente seção des-
tina-se a elucidar determinados elementos presentes nessas ações, com enfoque
sobre o modo como o direito material em litígio reflete-se na conformação das
regras processuais.

42
3.3.1 ∙ INTERESSE VS. DIREITO SUBJETIVO
Uma primeira discussão importante é saber se as situações jurídicas coletivas,
difusas e individuais homogêneas consubstanciam, em nosso ordenamento, direitos
subjetivos ou interesses. O imbróglio resulta da opção legislativa que, na redação do
art. 81 do CDC, referiu-se a “interesses ou direitos dos consumidores” e “interesses
ou direitos” difusos, coletivos e individuais homogêneos.
A distinção entre interesse e direito subjetivo jaz na doutrina estrangeria, nota-
damente no direito italiano, em que a dualidade de jurisdição justifica a existência de
direitos subjetivos e interesses legítimos como categorias distintas, cuja tutela deve
ser provocada em vias jurisdicionais diversas. Isso porque, conforme ensina Fredie
Didier (2016, p. 66), “[o]s primeiros são julgados pela justiça civil (relações entre parti-
culares); já os interesses legítimos são julgados perante órgãos da justiça administrativa
(relações entre particulares e administração pública ou de interesse social relevante)”.
Com base na terminologia legal, parte da doutrina passou a defender que sua
utilização proposital denotaria a intenção do legislador de conferir a essas posi-
ções jurídicas uma estrutura diferente daquela pertinente aos direitos subjetivos,
de feição marcadamente individualista e, portanto, supostamente inadequada para
subsidiar a tutela, em juízo, de prerrogativas de titularidade transindividual.
Em oposição a essa corrente, Didier (2016, p. 63-69), adotando entendimento
ao qual nos filiamos, explica que os direitos transindividuais são direitos subjeti-
vos, tendo como única particularidade o fato de que sua titularidade pertence a um
grupo – determinado ou indeterminado de indivíduos –, e não a um único sujeito.
Advogar pelo contrário seria forma de limitar a possibilidade de proteção dessas
prerrogativas pela via jurisdicional, já que, não sendo direitos subjetivos, parte da
doutrina acredita que os direitos transindividuais não poderiam, por exemplo, ser
objeto do mandado de segurança coletivo, o que parece ir de encontro à intenção do
ordenamento brasileiro de conferir a proteção mais ampla possível para tais direitos.
É como ensina o autor:
A melhor solução passa, não por admitir a categoria dos “interesses” tuteláveis
pelo processo, mas sim pela ampliação do conceito de direito subjetivo, para
abarcar as diversas “posições jurídicas judicializáveis” que decorrem do direito
subjetivo prima facie (portanto, não expressas) e que merecem igualmente gua-
rida pelo Judiciário. (DIDIER, 2016, p. 68).
Essa visão do direito transindividual como direito subjetivo é especialmente
importante quando tratamos do direito à igualdade de gênero. Isso porque, muito
embora esse direito tenha inclusive assento constitucional, sua exigibilidade em
juízo ainda parece ideia pouco difundida no meio jurídico. Com efeito, se as últimas
décadas testemunharam um aumento exponencial na propositura de ações civis
públicas tratando de temas ambientais, proteção do patrimônio histórico e cultu-
ral, direito do consumidor, probidade administrativa, etc., o mesmo não se pode
dizer de ações que tutelam questões relacionadas à igualdade de gênero. A proteção
jurídica à mulher, em nosso ordenamento, tem um caráter marcadamente penal,
sendo raras e pontuais as ações, na esfera cível, que buscam em juízo a proteção a
determinado direito nessa seara.

43
Entender o direito à igualdade de gênero como direito subjetivo, e não como
mero interesse – ou mera promessa de índole constitucional, despida de verdadeira
força normativa e eficácia –, é passo necessário para a construção lógico-jurídica de
que a lesão a esse direito – como a qualquer outro direito subjetivo em nosso orde-
namento – autoriza o socorro na via jurisdicional, havendo aqui também a estru-
tura obrigacional de credor-devedor que determina a coercibilidade da pretensão.

3.3.2 ∙ A CLASSIFICAÇÃO DO LITÍGIO COMO TRANSINDIVIDUAL


DE INTERESSE LOCAL
Ainda tratando da feição processual da proteção ao direito à igualdade de
gênero, pertinente apresentar a visão de Edilson Vitorelli (2019) sobre o tema. O
autor inseriu na doutrina brasileira, em matéria de processo coletivo, a classifica-
ção desses litígios de acordo com os critérios de conflituosidade e complexidade.
Trata-se de concepção inovadora, já que parte de um paradigma diverso daquele
proposto pelo art. 81 do CDC, que classifica os litígios de acordo com a natureza do
direito transindividual envolvido (coletivo, difuso ou individual homogêneo).
Didier (2016, p. 83), ao comentar a classificação proposta por Vitorelli, sustenta que
sua principal virtude é corrigir uma lacuna do CDC, que, embora tenha previsto as
diferentes espécies de direito transindividuais, não logrou conferir-lhes disciplina pro-
cessual própria, mais bem adaptada à natureza de cada um deles. Nesse toar, ao pro-
por uma classificação fundada no tipo de conflito, Vitorelli oferece a possibilidade de
diferenciar o tipo de procedimento mais apto à abordagem de cada espécie de direito.
A importância da categorização ora apresentada repousa em seu potencial de
resgatar o “referencial humano” associado às violações do direito à igualdade de
gênero. Isso significa dizer que ficam mais perceptíveis o bem jurídico lesado e o
titular afetado, tornando mais fáceis e claros o acesso ao judiciário e ao processo,
bem como a definição de aspectos essenciais da ação como legitimidade e pedidos.
Na sistematização proposta por Vitorelli (2020, p. 77-78), parte-se de dois ele-
mentos básicos dos litígios coletivos: (a) complexidade: atributo do conflito relativo
à lesão com variadas possibilidades de tutela, sendo possível obter a recomposição
ou a proteção ao bem violado por diferentes formas, com resultado prático equiva-
lente. Nas palavras do autor, “[q]uanto mais variados forem os aspectos da lesão e as
possibilidades de tutela, maior será o grau de complexidade do litígio” (VITORELLI,
2019, p. 77); (b) conflituosidade: atributo endógeno ao grupo que titulariza o direito
violado e relaciona-se com a heterogeneidade de posições de seus integrantes em
relação ao litígio. Conforme aduz o autor, “[...] quanto menor for a uniformidade do
impacto da lesão sobre as pessoas, ou seja, quanto mais variado for o modo como
forem atingidos pela lesão, maior será a conflituosidade” (VITORELLI, 2019, p. 77).
Com bases nesses dois aspectos, o autor identifica as ações coletivas pela igual-
dade de gênero na categoria de litígios transindividuais de difusão local. Isso por-
que, segundo destaca Vitorelli (2019, p. 85-88), as mulheres compõem uma minoria
social distinguível e especialmente afetada por determinadas violações que, por-
tanto, não afetam igualmente todos os membros da sociedade (homens e mulheres).
Para o autor, litígios transindividuais de difusão local decorrem de violações
que atingem, de forma específica e grave, uma comunidade determinada, sendo,

44
portanto, peculiares a um grupo. Vitorelli identifica que o grau de vinculação entre
os membros desse grupo determinado poderá ser mais ou menos tênue, consta-
tando, nesse segundo caso, uma subespécie dos litígios locais. Essa subespécie é
marcada pelo fato de que a comunidade especialmente afetada se define a partir
da posição social de dadas pessoas na sociedade, e não propriamente de um laço
especial de natureza histórica, cultural, territorial etc.
Nesse sentido,
O segundo círculo dos litígios locais engloba pelo menos quatro níveis distintos
de solidariedade, que podem ser expressos na seguinte ordem, do maior para o
menor grau: 1) litígios coletivos relativos ao direito do trabalho; 2) litígios coleti-
vos atinentes a vítimas de um mesmo acidente; 3) litígios coletivos relativos aos
tratamentos de saúde disponíveis para pessoas portadoras da mesma doença;
4) litígios coletivos que envolvem minorias sociais em geral, tal como as mino-
rias raciais, de gênero, de orientação sexual etc. (VITORELLI, 2020, p. 85).
É nessa categoria que se localizam os litígios pela garantia do direito à igual-
dade de gênero:
Finalmente, a perspectiva social mais tênue, mas ainda pertencente aos litígios
locais, refere-se aos integrantes de uma minoria. Não parece difícil sustentar, por
exemplo, que os direitos relativos à igualdade de gênero pertencem às mulheres.
Ainda que homens se interessem em viver em uma sociedade em que não haja tal
desigualdade, o interesse feminino nos conflitos transindividuais a ela relaciona-
dos é tão mais pronunciado que torna o masculino irrelevante. [...]
Conquanto se reconheça que esse grupo é o que exibe o vínculo mais tênue,
quando se assume o ponto de vista do litígio, não se pode imaginar que os
homens tenham tanto a dizer quanto as mulheres na definição dos rumos da
tutela do direito à igualdade de gênero. Não cabe ao grupo majoritário impor
ao grupo minoritário sua visão sobre o litígio ou sobre o melhor caminho para
a obtenção da tutela do direito. Do contrário, o grupo minoritário seria vítima
de autoritarismo ou paternalismo (que nada mais é que um “autoritarismo ado-
cicado”), por parte da maioria. Dessa maneira, o interesse das mulheres em que
a igualdade de gênero seja tutelada de acordo com suas visões é tão mais pro-
nunciado que o dos homens que, por comparação, torna as posições masculinas
irrelevantes. É por essa razão que as mulheres, assim como as demais minorias,
podem ser consideradas titulares dos direitos relativos à condição que lhes faz
minoritários. (VITORELLI, 2019, p. 87-88).
Nessa perspectiva, nota-se como a teoria proposta pelo autor representa um
avanço significativo na tutela de direitos transindividuais, ao permitir identificar
em minorias sociais um sujeito titular de determinados direitos, conferindo-lhe
posição própria e adequada para levar às vias competentes as pretensões geradas
por sua violação.
Um bom exercício para se entender a relevância da classificação ora proposta
pode ser encontrado no trabalho de dissertação de Deice Teixeira (2014), em que,
abordando a questão da reprodução de estereótipos de gênero discriminatórios
contra mulheres, a autora enxerga nos produtos publicitários uma violação ao
direito, previsto na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher, a uma educação livre de “padrões estereotipados
de comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de

45
inferioridade ou subordinação”.19 Essa liberdade, no entanto, é desrespeitada
diante de uma publicidade que “reproduz pensamentos e atitudes machistas e
patriarcais” (TEIXEIRA, 2014, p. 131).
A denúncia feita no trabalho científico ganha consistência jurídica quando
subsumida à categoria dos conflitos transindividuais de difusão local, permitindo,
portanto, sua visualização enquanto pretensão juridicamente tutelável por meio do
processo. Localizar os conflitos de gênero em uma categoria própria de processos
contribui para a construção de uma cultura jurídica capaz de reunir o binômio
direito e processo, visualizando, assim, o direito à igualdade de gênero acoplado à
garantia processual das ações coletivas, sem o que essa prerrogativa permanece um
mero aforismo do ordenamento jurídico.

3.3.3 ∙ OS TIPOS DE TUTELA CONFERIDAS


De acordo com os ensinamentos clássicos de Teoria Geral do Processo, as ações
de conhecimento, de acordo com a natureza da tutela requerida pela parte, podem
dar origem a sentenças declaratórias, constitutivas e condenatórias. Correntes mais
modernas apontam ainda mais dois tipos de provimentos possíveis nas ações de
conhecimentos, resultando em classificação quinária dessas ações que passariam a
contar com as modalidades de tutela mandamental e executiva em sentido amplo
(DIDIER, 2016, p. 346-354).
Em síntese, as sentenças declaratórias são aquelas que se limitam a afirmar a
“existência, inexistência ou o modo de ser de uma situação jurídica”, dicção pre-
vista no art.19, I, do CPC, servindo também para declarar a falsidade ou a auten-
ticidade de um documento (art. 19, II, do CPC). Os provimentos constitutivos,
por sua vez, são vocacionados a criar nova situação jurídica ou modificar e/ou
extinguir situação já existente.
As tutelas condenatórias, mandamentais e executivas merecem tratamento con-
junto, já que todas implicam a imposição, ao requerido, do cumprimento de deter-
minada prestação. Nesse cenário, as ações condenatórias são aquelas que buscam a
efetivação de uma prestação de fazer, de não fazer ou de dar.
O cumprimento da prestação, por sua vez, poderá ser realizado de forma direta
– hipótese em que há a sub-rogação na posição do devedor pelo Poder Judiciário,
que efetiva a prestação independentemente da colaboração do requerido –, carac-
terizando, assim, uma ação executiva em sentido amplo. Há casos, no entanto, em
que essa sub-rogação não é possível, exigindo a atuação do devedor para a satisfação
da prestação. Vê-se, dessa forma, que o Poder Judiciário dispõe apenas de meios
indiretos para forçar o cumprimento da prestação, caracterizando a tutela manda-
mental (DIDIER, 2016, p. 354-356).
Entender os diferentes provimentos possíveis em uma ação de conhecimento é
importante para identificar as potencialidades do processo coletivo enquanto ins-
trumento reparatório e preventivo de lesões contra o direito à igualdade de gênero.
Nessa perspectiva, é possível vislumbrar situações em que o mero provimento

19 Artigo 6 da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a


Mulher, de 9 de junho de 1994.

46
declaratório é suficiente para a afirmação desse direito – caso da declaração de
constitucionalidade de uma lei que promova uma ação afirmativa de gênero, como
é a Lei Maria da Penha. Em outros casos, no entanto, é necessário associar as
determinações judiciais condenatórias, sendo que apenas sua aplicação combinada
poderá oferecer resposta idônea para a tutela do direito material.
A título de exemplo podemos pensar na situação em que determinado empre-
gador adota critérios discriminatórios, com base no gênero, para a admissão de
seus empregados e para a promoção interna desses obreiros. Nesse caso, uma tutela
efetiva do direito pode condutar com a condenação em obrigação de não fazer –
não adotar critérios discriminatórios com base no gênero na seleção e promoção de
empregados –, de fazer – promover ações de capacitação para evitar ou coibir discri-
minação de gênero no espaço de trabalho – e de dar – pagar quantia indenizatória
em razão de prática ilícita violadora do direito à igualdade de gênero.
Importante ainda dizer que o entendimento mais recente e pacífico no âmbito
do STJ é que as ações coletivas podem cumular pedido condenatório com presta-
ções de dar e fazer. O precedente paradigmático diz respeito a ação civil pública
em matéria ambiental e enfrenta especificamente a redação do art. 3º da LACP,
que, ao falar sobre o objeto da condenação nessas ações, utiliza-se da expressão
“ou”, o que poderia levar a uma interpretação equivocada de exclusão entre os
dois tipos de prestação referidos.
As conclusões firmadas no precedente em apreço são de todo válidas para qual-
quer ação coletiva, já que em tudo compatíveis com a noção do microssistema de
processo coletivo, além de materialmente adequadas a promover a “integral repara-
ção” dos bens coletivos lesados.
Por fim, quanto à obrigação de dar nas ações coletivas, é oportuno discorrer
sobre a “teoria do dano social”, que oferece suporte a pretensões indenizatórias em
pecúnia relacionadas a lesões ao bem-estar coletivo e ao patrimônio moral de dada
sociedade, afetada por tais atos ilícitos.
A teoria do dano social, no Brasil, tem como fundamento os estudos de Antônio
Junqueira de Azevedo. Em síntese, o autor propõe que, ao lado das formas tra-
dicionais de dano – material, moral, estético –, há uma modalidade que se volta
às “lesões à sociedade no seu nível de vida”, reprimindo condutas que importem
o rebaixamento do patrimônio moral da sociedade (TARTUCE, 2018, p. 488).
Cuida-se de teoria recente, mas que já ganha espaço no ambiente forense, a exemplo
do enunciado 456 da V Jornada de Direito Civil20 e de precedentes dos Tribunais de
Justiça de São Paulo21 e do Rio Grande do Sul.22

20 A expressão “dano” no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas
também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos
legitimados para propor ações coletivas.
21 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça Estadual. Apelação Cível n. 0027158-41.2010.8.26.0564, Relator (a):
Teixeira Leite; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Bernardo do Campo – 3ª
Vara Cível. Data do julgamento: 18.7.2013. Data de registro: 19.7.2013.
22 MATO GROSSO. Tribunal de Justiça Estadual. Recurso Cível n. 71001281054, Primeira Turma
Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Ricardo Torres Hermann, julgado em 12.7.2007.

47
Para Tartuce (2018, p. 496-500), a possibilidade de dano social já teria sido reco-
nhecida inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça, embora sob a alcunha equi-
vocada de “dano moral coletivo”, caso dos Recursos Especiais n. 1.101.949/DF,23 n.
1.487.046/MT24 e n. 1.517.973/PE.25
Diversos autores já se pronunciaram sobre a teoria de Junqueira de Azevedo.
Ana Frazão (2016, p. 284) traz o tema do dano social na perspectiva do direito do
trabalho, situando-o nos casos de violação de normas e direitos trabalhistas que
“transcendem situações individuais, ofendendo interesses coletivos, difusos ou
individuais homogêneos”. Para a autora, o dano social localiza-se ao lado do dano
moral e estético pela natureza extrapatrimonial, os quais “exigem respostas eficazes
do Poder Judiciário, normalmente traduzidas em indenizações que, diante do seu
forte componente preventivo-pedagógico e punitivo, tornam-se verdadeiros instru-
mentos para assegurar a legislação trabalhista”.
Nessa esteira, Frazão (2016, p. 284-285) aduz que o reconhecimento dessa nova
categoria de dano é fruto da concepção de “dano injusto” como noção fundamental
da responsabilidade civil. Por tratar-se de espécie de cláusula geral, o “dano injusto”
é uma noção dotada de plasticidade que permite “a criação de novos direitos, inte-
resses e situações subjetivas”. Para Frazão, a noção de “dano moral coletivo”, hoje
admitida pelo STJ, coincide com a definição de dano social proposta por Antônio
Junqueira de Azevedo.
Outros autores situam ainda o surgimento dessa teoria diante da inadequação
do paradigma dos “danos morais coletivos” como fundamento para a reparação
de danos transindividuais. Nessa ordem de ideias, aduzem Friede e Aragão (2016,
p. 15) que, ao afastar a incidência de dano moral coletivo na tutela de interesses
transindividuais, o STJ teria aberto a porta para a aplicação da teoria do dano
social. Com efeito, os autores defendem que, sempre que houver lesão ao bem-estar
coletivo, entendido como “interesse difuso tutelado pela ordem jurídico-constitu-
cional”, restará configurado o dano social.
A importância dessa teoria para a tutela processual do direito à igualde de gênero
é a possibilidade de permitir a quantificação – apreciação pecuniária – dos danos
causados pela lesão a esse bem. Certamente, a indenização financeira é incapaz de
recompor o dano causado, servindo de mera reparação compensatória. No entanto,
a possibilidade de sua utilização serve de dissuasão à prática ilícita nessa seara, além
de tornar mais atrativo o ajuizamento de ações de reparação por violações à igual-
dade de gênero, o que faz supor maior fortalecimento na tutela dessa prerrogativa.
Ademais, o dano social foi usado como fundamento da Ação Civil Pública n.
5014547-70.2020.4.03.6100, de autoria do Ministério Público Federal, que será tra-
tada na próxima seção.

23 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1101949/DF, Relator: Min. Marco Buzzi, Quarta
Turma, julgado em 10.5.2016, DJe 30 maio 2016.
24 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1487046/MT, Relator: Min. Luis Felipe Salomão,
Quarta Turma, julgado em 28.3.2017, DJe 16 maio 2017.
25 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1517973/PE, Relator: Min. Luis Felipe Salomão,
Quarta Turma, julgado em 16.11.2017, DJe 1º fev. 2018.

48
4 ∙ ESTUDO DE CASO: ACP N. 5014547-70.2020.4.03.6100
A ação, protocolada em 5 de agosto 2020, tem por objeto a
condenação da União (pessoa jurídica de direito público) à reparação e também
o pagamento de indenização por danos extrapatrimoniais ou morais coletivos,
ou ainda, danos sociais, conforme prevê o art. 37, § 6º, da Constituição Federal,
em razão de atos praticados, dolosa e culposamente, por agentes públicos, mais
especificamente declarações públicas carregadas de preconceito e discriminação
contra as mulheres, bem como ações administrativas que afrontam o ordena-
mento jurídico em razão dessa condição (de mulher), declarações essas levadas a
efeito no exercício e na representação das funções públicas.
Por tratar-se de iniciativa bastante recente, não parece possível traçar, por ora,
quais serão seus reais efeitos, seja na perspectiva jurídica – análise dos aspectos
relacionados à admissibilidade e ao mérito da demanda – ou na social – a visão
com a qual ações dessa natureza são recebidas pelo corpo social, sobretudo pelo
grupo que titulariza o direito invocado. No entanto, alguns elementos da ação
reforçam os argumentos até o momento trabalhados acerca da importância da
relação entre direito material e direito processual na proteção de direitos transin-
dividuais, bem como da importância da técnica do processo coletivo como meio
essencial à efetivação desses direitos.
Iniciando pela análise dos pedidos, interessa notar que a abrangência da pretensão
levada a juízo – que incluía a reparação pecuniária destinada ao cumprimento de
obrigações de fazer relativas a divulgação de campanhas publicitárias e estruturação
de políticas públicas – foi delimitada à luz dos preceitos de direito material albergados
no núcleo dos direitos fundamentais, a saber, os postulados da vedação à proteção
insuficiente, da vedação ao retrocesso e à dignidade humana. Essa correlação con-
firma o pressuposto apresentado de que a relação entre processo coletivo e direito à
igualdade de gênero se dá numa perspectiva direito-garantias fundamentais.
Ganha destaque também na ação o fato de que o direito transindividual à igual-
dade de gênero consubstancia verdadeiro direito subjetivo, porquanto previsto não só
na Constituição mas em diversos documentos normativos com os quais se obrigou a
República Federativa do Brasil – caso da Convenção para a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra a Mulher, recepcionada pelo Decreto n. 4.377/2002,
e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994) – Decreto n. 1973/1996.
Tais diplomas normativos representam a face material da proteção a esse
direito, que se soma ao arcabouço legal do microssistema de tutela coletiva, já
apresentado, permitindo, portanto, uma tutela efetiva por meio do acesso ao pro-
cesso. É assim que se destaca como grande contribuição dessa ACP a demonstra-
ção do nexo de causalidade entre a conduta de discriminação de gênero e as lesões
suportadas pelos titulares coletivos:
Mas o problema não é só de simples infidelidade ao compromisso assumido (o
que aliás já é gravíssimo), já que no tocante ao tema aqui tratado as consequências
são funestas, pois mensagens que compactuam (com) e incentivam esse ambiente
adverso às mulheres, esse vezo machista e misógino, colaboram para que não se
avance, ou para que seja prejudicado o avanço, no combate à violência e descri-
minação em relação a elas. [...] Ora, parece indiscutível que a discriminação das

49
mulheres – seja pela objetificação, pelo assédio, pelo menosprezo, pela subvalori-
zação ou pela conivência (direta e indireta) com a violência contra elas praticada
– atinge de modo superlativo a dignidade humana dessa parcela da população.
Em síntese, a ação proposta pelo Ministério Público Federal tem a grande van-
tagem de amarrar diversos conceitos que já vinham sendo trabalhados na doutrina
processualista, oferecendo, assim, sua visualização em situação concreta de aplica-
ção. Dessa forma, parece seguro afirmar que, independentemente do desfecho da
ação, os avanços por ela obtidos já compõem nosso patrimônio jurídico e social.
A utilização da teoria do dano social como fundamento do dever de indeni-
zar também merece destaque, visto que reconhece a possibilidade de existência de
lesões fora da dicotomia de danos morais e danos materiais. Muito embora atual-
mente, em matéria de responsabilidade civil, já haja uma visão mais ampliada do
tema, com a grande aceitação dos chamados danos estéticos e, em menor medida,
do dano moral coletivo, a discussão ainda é incipiente quando se fala em danos
sofridos de forma difusa por uma coletividade.
Ainda nesse ponto, importante relembrar a ressalva feita por Frazão (2016, p.
286) quanto às conclusões de Joseph Stiglitz, laureado com o Prêmio Nobel, para
quem o empoderamento de minorias sociais – no caso, tratava-se dos trabalhadores
– inclui não só recursos para assegurar a repressão pelo descumprimento de nor-
mas protetivas como também a imposição de penalidades financeiras como forma
de punição em caso de violação.
Nesse sentido, a utilização da teoria do dano social permite a visualização de
que determinadas condutas, muito embora não interfiram explicitamente na esfera
individual de cada sujeito de direito, importam prejuízo a todos – na dicção de
Junqueira de Azevedo, um rebaixamento moral –, promovendo um dano percep-
tível e potencialmente letal e reforçando estruturas que, em última análise, condu-
zem à violência física contra determinadas minorias sociais.
Ainda nesse ensejo, a ação, ao elencar diversos indicadores de aumento da vio-
lência – física ou simbólica, mas sobretudo a primeira – relacionada a questões de
gênero, deixa importante lição para os estudos jurídicos no sentido de enxergar, de
forma ampliada, o nexo de causalidade entre conduta e ação nas lesões a direitos
transindividuais. Com efeito, nessas ações, a percepção do dano frequentemente
não será imediata e diretamente imputável a determinados sujeitos passivo e ativo.
Isso, no entanto, não deve representar barreira ao acesso à justiça para demandar
reparação contra violações dessa natureza. Vejamos:
É preciso ainda não olvidar o poder da comunicação dessas manifestações into-
leráveis (considerado o marco legal vigente) e seus efeitos sobre a realidade social
e a persuasão do público, com potencial para reforçar estereótipos e posturas
misóginas e discriminatórias, notadamente quando advindas de pessoas com
poder de influência, que têm, ipso facto, efeitos para gerar danos concretos, con-
forme reconheceu o Relator Ministro Luiz Fux, em passagem de seu relatório/
voto, quando do recebimento da denúncia em face do então parlamentar, atual
Presidente Jair Messias Bolsonaro [...].
A questão da liberdade de expressão é também fortemente tratada na ação, sob a
ótica de que determinadas condutas não se encontram abrigadas dentro do escopo
de proteção ao direito fundamental de cada indivíduo manifestar-se livremente.

50
Nesse sentido, quando se fala em discriminação de gênero, não merece acolhida
esse argumento frequentemente levantado como forma de obstar a ilicitude da con-
duta e o consequente dever de indenizar.
Ademais, a ação em comento chama a atenção para o fato de que, não raro,
violações ao direito de igualdade de gênero estarão acompanhadas de lesões a
outros bens jurídicos – como moralidade administrativa, dignidade humana,
apologia ao preconceito e à desigualdade social etc. –, que poderão incrementar
os fundamentos da ação coletiva.
Por fim, a ACP torna-se paradigma, ainda, por fornecer um panorama amplo e
atualizado sobre os dados de violência e discriminação contra a mulher no Brasil, o
que, sem dúvida, poderá servir de subsídio tanto à propositura de novas demandas
no âmbito do processo coletivo – principalmente orientando os pedidos em cada
ação – quanto à estruturação de políticas públicas que, ao lado da tutela judicial,
promovam o enfretamento desse problema.

5 ∙ CONCLUSÃO
Em um quadro de violação sistemática de direitos fundamentais, pensar estra-
tégias para atribuir-lhes maior proteção e efetividade é não só uma contribuição
científica, mas verdadeiro dever dos operadores de qualquer ciência, sobretudo do
Direito, em relação à sociedade em que atuam. É nesse contexto que, em linha de
conclusão, este artigo reafirma a necessidade de se pensar o direito à igualdade de
gênero ao lado de sua necessária garantia, a saber, o processo coletivo.
Enxergar nas violações ao gênero feminino uma pretensão juridicamente tutelá-
vel por meio de ações coletivas é concretizar a evolução histórica dos direitos fun-
damentais em sua vertente transindividual da solidariedade. Ademais, reconhecer a
titularidade metaindividual desses direitos e sua possibilidade de garantia em juízo
serve de instrumento ao empoderamento de minorias sociais, além de contribuir
para o reconhecimento da legitimidade na persecução desses interesses aos sujeitos
particularmente afetados.
Em síntese, o artigo é concluído confirmando (I) a existência de um relação
necessária entre direito transindividual à igualdade de gênero e sua garantia mate-
rializada no processo coletivo; (II) essa relação quase simbiótica é o que explica
aspectos próprios da técnica processual coletiva voltados a imprimir maior prote-
ção e efetividade ao direito material tutelado; (III) o acesso à justiça, pressuposto
para qualquer outro direito reconhecimento pelo ordenamento, é especialmente
importante na proteção à minoria de gênero, considerando o quadro sistemático de
violação que o Brasil vive; (IV) a existência de iniciativas como a ação civil pública
proposta pelo Ministério Público Federal confirma a possibilidade e as potenciali-
dades associadas à utilização da via jurisdicional como meio de reparação a lesões
provocadas ao direito de igualdade de gênero.

REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação
de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

51
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros,
2004. p. 560-572.
BONAVIDES, Paulo. A quinta geração de direitos fundamentais. Revista Direitos
Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte, n. 3, p. 82-92, abr./jun. 2008. Disponível em:
http://dfj.emnuvens.com.br/dfj/article/view/534/127. Acesso em: 30 ago. 2020.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant G. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie
Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,
Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.
D’ALKMIN, S. M. A conquista do voto feminino no Brasil. Encontro de Iniciação
Científica (ETIC), Presidente Prudente, v. 2, n. 2, 2006. Disponível em: http://intertemas.
toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC/article/view/1219. Acesso em: 30 ago. 2020.
D’ALKMIN, Sônia Maria; AMARAL, Sérgio Tibiriçá. A conquista do voto feminino
no Brasil. Encontro de Iniciação Científica (ETIC), Presidente Prudente, v. 2, n. 2, 2006.
DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil:
processo coletivo. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2016. v. 4.
DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil:
introdução ao direito processual civil, parte geral e processo do conhecimento. 10. ed.
Salvador: JusPodivm: 2019. v. 1.
DUPRAT, Deborah. Igualdade de gênero, cidadania e direitos humanos. In: FERRAZ,
Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão (coord.). Direito à diversidade. São Paulo:
Atlas, 2015.
FRANÇA, Karoline Veiga; BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Interfaces entre bioética
e direito acerca da regulamentação e descriminalização do aborto em defesa da conso­
lidação dos direitos femininos no Brasil. Revista de Gênero, Sexualidade e Direito, v. 3,
n. 2, p. 100-119, 2017.
FRAZÃO, Ana. Dano social e dumping no direito do trabalho: perspectivas e limitações.
Revista Ltr, São Paulo, v. 80, n. 3, p. 284-300, mar. 2016.
FRIEDE, Reis; ARAGÃO, Luciano. Dos danos sociais. Revista da Esmesc, v. 23, n. 29,
p. 13-44, 2016.
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
JÚNIOR, Diógenes; NOGUEIRA, José Eliaci. Gerações ou dimensões dos direitos
fundamentais? Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 100, p. 571-572, maio 2012.
KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012.
KARAWEJCZYK, M. As suffragettes e a luta pelo voto feminino. História: imagem
e narrativas, Rio de Janeiro, n. 17, out. 2013. Disponível em: https://docplayer.com.
br/4887448-As-suffragettes-e-a-luta-pelo-voto-feminino.html. Acesso em: 30 ago. 2020.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
SARTI, Cynthia Andersen. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma
trajetória. Revista Estudos Feministas, v. 12, n. 2, p. 35-50, 2004.

52
SILVA, Salete Maria da. Constitucionalização dos direitos das mulheres no Brasil: um
desafio à incorporação da perspectiva de gênero no direito. Interfaces Científicas –
Direito, v. 1, n. 1, p. 59-69, 2012.
TARTUCE, Flávio. Manual de responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
TAVARES, Jaíse Marien Fraxe et al. Evolução dos direitos das mulheres e desafios
para alcançar a igualdade de gênero no século XXI. Revista de Direito da Amazônia,
v. 1, n. 2, 2020.
TEIXEIRA, Deice da Silva. A propaganda é a alma (arbitrária) do negócio: violência
simbólica e discriminação contra as mulheres na publicidade brasileira. 2014. Disser­tação
(Mestrado em Direito, Estado e Constituição). Faculdade de Direito da Universidade de
Brasília. Brasília-DF. 2014. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/16863.
Acesso em: 3 set. 2020.
TILLY, Louise A. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu, n. 3,
p. 28-62, 1994.
VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos.
2. ed. São Paulo: Thomson Reuter, 2019.
VITORELLI, Edilson. Processo civil estrutural: teoria e prática. Salvador: JusPodivm, 2020.

53
O DIREITO FUNDAMENTAL AO LAZER
NA PANDEMIA DE COVID-19
Andréa Marília Demetrio Gaia Vieira1

Sumário: 1 Introdução. 2 Considerações sobre o lazer. 3 Algumas positivações do direito


ao lazer. 4 Direitos fundamentais. 4.1 O direito fundamental ao lazer. 5 Distanciamento
social na pandemia de COVID-19. 6 Considerações finais.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O Brasil atualmente padece das consequências de uma pandemia que, por
sua magnitude, impôs ao seu povo o distanciamento social. Nesse período, este
afastou daquele o gozo de alguns direitos fundamentais para sua vivência, entre
os quais o lazer.
O lazer normalmente é considerado apenas um direito destinado ao trabalha-
dor; porém, o presente estudo visa demonstrar a sua importância enquanto direito
fundamental e a sua universalidade, que visa dignificar a vida humana e tem como
destinatários todas as pessoas.
Assim, a análise será acerca do lazer enquanto direito fundamental e as conse-
quências da não prática do lazer no contexto da pandemia, ressaltando-se a impor-
tância desse direito intrínseco ao ser humano.

2 ∙ CONSIDERAÇÕES SOBRE O LAZER


Historicamente o lazer é tratado apenas como um tempo de não trabalho, rela-
cionado à recreação e destinado ao trabalhador; porém, ele é um fenômeno muito
mais amplo: um fenômeno social. Não à toa existe um campo de estudo específico
voltado para sua compreensão.
Não há uma definição fechada acerca do que é lazer, os conceitos se diferem de
acordo com os estudiosos da área, seja pelas mudanças de significações ao longo do
tempo, seja pelo enfoque ao defini-lo, podendo ser pela função, pelo objetivo, pela
composição ou pela finalidade.
A origem da palavra lazer vem do latim licere, que significa o que é lícito, permi-
tido. Nos dicionários, temos em Bueno (2007, p. 466) que “lazer” significa “descanso,
ócio, passatempo”; no Priberam (2020) é “1. tempo de que se dispõe livremente para
repouso ou distração; 2. atividade que se realiza nesse tempo”; e no Michaelis (2020)
é definido como “1. descanso ou pausa no trabalho ou em uma atividade; folga, ócio,

1 Servidora Pública (MPPA). Especialista em Planejamento e Gestão do Turismo e do Lazer.

55
repouso; 2. diversão ou ocupação que se escolhe para os momentos de tempo livre;
distração, entretenimento, recreação”.
É importante salientar que lazer e recreação não possuem o mesmo significado,
embora, outrora tenham sido considerados como sinônimos. A palavra recreação
vem do latim recreare, que significa restaurar, renovar, recuperar.
De acordo com Marcellino (2007, p. 2 e 3), devem-se considerar alguns fatores
quando se fala em lazer, são eles: a cultura vivenciada nos seus vários aspectos, a
relação dialética entre lazer e sociedade, o tempo de vivência de valores morais e
culturais e o duplo aspecto educativo (veículo e objeto de educação), ou seja, é o
que se vive no seu tempo disponível de forma desinteressada, apenas em busca da
satisfação. Portanto, para Marcellino, a conceituação de lazer é a cultura – em seu
sentido amplo – vivenciada no seu tempo disponível.
Ainda, para Gomes (2003, p. 6), são aspectos fundamentais para a compreensão
do lazer a inter-relação entre o tempo, a ação, o espaço e o conteúdo cultural; ou seja,
ele é desfrutado durante o tempo livre da pessoa e várias são as ações que podem
ser realizadas em um espaço correspondente à atividade escolhida e com significa-
ção para a satisfação pessoal, tais como: recreativa, artística, política, assistencial,
religiosa, contemplativa, familiar, turística, esportiva, gastronômica etc. Assim, o
lazer é dinâmico e se constitui de uma diversidade de identidades e grupos sociais.
Todas essas atividades são humanizadoras, são necessidades humanas, envol-
vem relações sociais e sentimentos, contribuem com a formação e o engrande-
cimento pessoal e comunitário dentro da sociedade. Por essa razão o lazer é um
direito fundamental, inerente ao ser humano.
Nota-se o aumento de grupos de estudos no campo do lazer de forma transver-
sal e multidisciplinar, o que desperta a sua relevância para a população.
O lazer representa condições de melhoria de vida através do desenvolvimento
humano e social, reconhecendo a necessidade de tempo livre, longe de obrigações
cotidianas, com vistas ao alcance máximo da evolução das aptidões humanas.
Assim, é mister que o Estado desenvolva políticas públicas que visem a constru-
ção, revitalização e manutenção de áreas verdes, espaços e equipamentos de lazer,
além de outras formas de promoção deste direito fundamental, com vistas a garan-
tir à população o acesso ao entretenimento.

3 ∙ ALGUMAS POSITIVAÇÕES DO DIREITO AO LAZER


É importante salientar que o lazer está previsto na Declaração Universal dos
Direitos Humanos (DUDH), que estabelece no artigo 24: “toda a pessoa tem direito
ao repouso e ao lazer, especialmente, a uma limitação razoável da duração do traba-
lho e a férias periódicas pagas” (ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, 1948). Portanto,
no âmbito internacional, trata-se de direito elencado no rol dos Direitos Humanos,
os quais foram criados com intuito de proteção à dignidade da pessoa humana.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 elencou o lazer
como um direito e garantia fundamental expressamente no seu art. 6º, que rege:
“são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

56
Ainda na CRFB/88, o art. 217, § 3°, institui que “o Poder Público incentivará o
lazer como forma de promoção social”, e o art. 227 que:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e
ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à edu-
cação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 
Seguem algumas legislações que remetem aos direitos fundamentais previstos
na Lei Maior brasileira, elencando nelas o lazer, e assim demonstram a importância
desse direito para o ser humano, independente de raça, credo, cor, gênero, idade,
profissão, orientação sexual etc.
A Lei n. 10.741, de 1° de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), prevê o direito
ao lazer em quatro artigos, esses abordam a obrigação da família em assegurá-lo;
indicam que o idoso é sujeito de direitos, entre eles o lazer; garantem a participação
dos idosos em atividades culturais e de lazer, mediante política de descontos em
ingressos; e promovem a realização de atividades de lazer em entidades de atendi-
mento específico para idosos.
A Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), também prevê o direito ao lazer, em cinco de seus artigos rege sobre o dever
da família, da sociedade e do Poder Público em assegurar a efetivação do direito
em comento; incumbe aos municípios o estímulo e a facilitação de recursos e espa-
ços para esse fim; determina que os menores são destinatários desse direito pela
condição de pessoa em desenvolvimento; obriga as entidades com programas de
internação a propiciar o lazer; e ressalta que os adolescentes privados de liberdade
devem realizar atividades de lazer.
A Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, chamada Estatuto da Cidade, regula-
menta os arts. 182 e 183 da CRFB/88, dispondo:
Art. 2° A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes
diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra
urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao
transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e
futuras gerações;
[...]
Art. 26. O direito de preempção será exercido sempre que o Poder Público neces-
sitar de áreas para:
[...]
VI – criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes.
A Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010, o Estatuto da Igualdade Racial, diz:
Art. 4° A participação da população negra, em condição de igualdade de opor-
tunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida,
prioritariamente, por meio de:
[...]
VII - implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrenta-
mento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer,

57
saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financia-
mentos públicos, acesso à terra, à Justiça, e outros.
[...]
Art. 9° A população negra tem direito a participar de atividades educacionais,
culturais, esportivas e de lazer adequadas a seus interesses e condições, de modo a
contribuir para o patrimônio cultural de sua comunidade e da sociedade brasileira.
Art. 10. Para o cumprimento do disposto no art. 9°, os governos federal, esta-
duais, distrital e municipais adotarão as seguintes providências:
I - promoção de ações para viabilizar e ampliar o acesso da população negra ao
ensino gratuito e às atividades esportivas e de lazer;
[...]
Art. 56. Na implementação dos programas e das ações constantes dos planos plu-
rianuais e dos orçamentos anuais da União, deverão ser observadas as políticas
de ação afirmativa a que se refere o inciso VII do art. 4° desta Lei e outras políti-
cas públicas que tenham como objetivo promover a igualdade de oportunidades
e a inclusão social da população negra, especialmente no que tange a:
[...]
§ 1° O Poder Executivo federal é autorizado a adotar medidas que garantam, em
cada exercício, a transparência na alocação e na execução dos recursos neces-
sários ao financiamento das ações previstas neste Estatuto, explicitando, entre
outros, a proporção dos recursos orçamentários destinados aos programas de
promoção da igualdade, especialmente nas áreas de educação, saúde, emprego e
renda, desenvolvimento agrário, habitação popular, desenvolvimento regional,
cultura, esporte e lazer.
A Lei n. 12.852, de 5 de agosto de 2013, o Estatuto da Juventude, assegura o
direito em questão aos jovens de até 29 anos pertencentes a famílias de baixa renda
e aos estudantes, dando acesso aos eventos e equipamentos de lazer através do paga-
mento de metade do valor do ingresso.
A Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência),
expressamente preceitua que os direitos nela contidos são oriundos da CRFB/88,
além de Convenção Internacional, e o lazer é um dos direitos elencados:
Art. 8º É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com
deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde,
à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à edu-
cação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à
reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo,
ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à
dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre
outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas
que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.
[...]
Art. 17. Os serviços do SUS e do Suas deverão promover ações articuladas para
garantir à pessoa com deficiência e sua família a aquisição de informações,
orientações e formas de acesso às políticas públicas disponíveis, com a finalidade
de propiciar sua plena participação social.

58
Parágrafo único. Os serviços de que trata o caput deste artigo podem fornecer
informações e orientações nas áreas de saúde, de educação, de cultura, de esporte,
de lazer, de transporte, de previdência social, de assistência social, de habitação,
de trabalho, de empreendedorismo, de acesso ao crédito, de promoção, proteção
e defesa de direitos e nas demais áreas que possibilitem à pessoa com deficiência
exercer sua cidadania.
[...]
Art. 28. Incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar,
incentivar, acompanhar e avaliar:
[...]
XV - acesso da pessoa com deficiência, em igualdade de condições, a jogos e a
atividades recreativas, esportivas e de lazer, no sistema escolar;
[...]
Art. 42. A pessoa com deficiência tem direito à cultura, ao esporte, ao turismo
e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, sendo-lhe
garantido o acesso:
I - a bens culturais em formato acessível;
II - a programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais e des-
portivas em formato acessível; e
III - a monumentos e locais de importância cultural e a espaços que ofereçam
serviços ou eventos culturais e esportivos.
Art. 43. O poder público deve promover a participação da pessoa com deficiên-
cia em atividades artísticas, intelectuais, culturais, esportivas e recreativas, com
vistas ao seu protagonismo, devendo:
[...]
III - assegurar a participação da pessoa com deficiência em jogos e atividades
recreativas, esportivas, de lazer, culturais e artísticas, inclusive no sistema esco-
lar, em igualdade de condições com as demais pessoas.
Após esse rol de normas, percebe-se que os legisladores começam a atinar
para a importância do lazer na vida das pessoas, e principalmente para o impacto
causado pela sua ausência nos diversos nichos historicamente destituídos de
direitos e oportunidades.
Tais legislações evidenciam o caráter fundamental do lazer na dignidade da
pessoa humana, a universalidade desse direito, além da sua função social e cidadã.
Nos ensinamentos de Silva (2014, p. 123), o Estado Democrático de Direito não
deve se limitar a um conceito de lei, e, sim, ter condições de realizar intervenções
que produzam mudanças na situação da comunidade através da lei, ou seja, deve
sair da esfera puramente normativa para influenciar a realidade social.

4 ∙ DIREITOS FUNDAMENTAIS
Segundo Mendes (2018, p. 199), a consolidação dos direitos fundamentais se
deve a um acúmulo histórico, sendo importante as ideias oriundas do cristianismo
e das teorias contratualistas acerca da natureza humana, visto que influíram sobre-
maneira na Declaração de Direitos da Virgínia e na Declaração Francesa.

59
A evolução dos direitos fundamentais é marcada por três dimensões. As revo-
luções americana e francesa simbolizam a luta pelos direitos individuais referentes
à liberdade; e a Declaração de Direitos da Virgínia juntamente com a Declaração
Francesa marcam a primeira dimensão desses direitos positivados.
A segunda dimensão dos direitos fundamentais eclodiu durante a Revolução
Industrial, representando a busca pela igualdade e pelos direitos sociais, exigindo
uma prestação positiva do Estado a fim de alcançar a justiça social.
A terceira dimensão surge no contexto pós-guerras mundiais, período mar-
cado pelas atrocidades ocorridas nas guerras e pela instituição de regimes auto-
ritários. Assim, emerge a busca da universalização da fraternidade no plano do
direito internacional, tendo como marco a elaboração da Declaração Universal
dos Direitos Humanos.
A partir desse momento é instituído que os direitos fundamentais são aqueles
inerentes ao ser humano e visam a garantia de igualdade, liberdade, justiça e paz a
todo ser humano, dignificando sua existência, com caráter universalista, inaliená-
vel, indivisível, cabendo ao Estado o dever de garanti-los.

4.1 ∙ O DIREITO FUNDAMENTAL AO LAZER


A Constituição oportuniza à sociedade brasileira que as mudanças políticas,
econômicas e sociais desejadas se realizem através da fundamental expressão do
direito positivo que ela representa, exercendo função social e democrática transfor-
madora da coletividade, segundo Silva (2014, p. 123).
O lazer, como já visto, é um direito fundamental previsto na Lei Maior bra-
sileira e na DUDH, embora historicamente seja relacionado basicamente aos
direitos trabalhistas. Percebe-se a importância desse nos mais variados campos
do direito como, por exemplo, o trabalhista, o ambiental e o urbanístico, além
de ser notório que os seus destinatários são variados conforme explicitado nas
legislações citadas no item 3.
Para Silva (2014, p. 319 e 320), o lazer é um direito social que depende de melhor
definição em leis ordinárias, além de possuir função urbanística. Não à toa há
manifestações do direito urbanístico acerca do tema. Sua natureza social decorre
de prestações públicas em função da interferência das condições de trabalho impu-
tadas ao trabalhador, pois estes necessitam de repouso e de qualidade de vida, rela-
cionando-se ainda com o direito ambiental, uma vez que para isso o meio ambiente
deve ser sadio e equilibrado.
Farias (2005, p. 86) também defende que o lazer é um direito urbanístico, e mais,
que, quando se desrespeita o direito ao lazer, este interfere nos índices de violência.
Instituir políticas públicas urbanas, inclusive o lazer, significa garantir a função
social da cidade na prevenção e diminuição da violência urbana.
Há alguns anos subsiste o discurso de que a promoção do lazer, especial-
mente a jovens e adolescentes, é solução para a diminuição da criminalidade,
sempre se colocando esse direito como solução para a questão da segurança
pública, porém o seu gozo é muito mais amplo e deve-se respeitá-lo também por
sua função de alcance da dignidade humana, pessoal e coletiva, perpassando
por outros direitos fundamentais.

60
Diariamente várias pessoas têm seus direitos fundamentais violados, pois o
Estado não consegue materializar tais direitos para todos, o que dificulta, inclusive,
a identificação por parte da sociedade da universalização desses direitos, demons-
trando que para muitos estão no campo imaterial e (ou) teórico.
Mendes (2018, p. 209 e 210) leciona que, embora sejam direitos universais e absolu-
tos, estes devem ser compreendidos em termos, pois é pacífico que podem sofrer limi-
tações ao enfrentar valores de ordem constitucional e outros direitos fundamentais.
A importância do lazer na vida humana, pela ótica do direito, verifica-se no
crescente número de normas referentes a ele, e essas sempre afirmam que cabe ao
Poder Público o dever de proporcioná-lo. Esse aumento de leis demonstra que as
pessoas estão mudando o entendimento acerca do tema e lutando pelo acesso demo-
cratizado a esse direito.
Então, é fundamental que o Estado defenda, respeite, proteja e promova o direito
ao lazer, no mínimo, cumprindo as legislações já existentes.

5 ∙ DISTANCIAMENTO SOCIAL NA PANDEMIA DE COVID-19


O mundo vive um período de pandemia pela transmissão da doença COVID-
19, causada pelo vírus SARS-CoV-2. A doença foi detectada pela primeira vez em
Wuhan, na China, em dezembro de 2019, desde então ela se espalhou pelo mundo,
e em março a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surto como pande-
mia, a disseminação mundial de uma doença (OPAS, 2020).
No Brasil, de acordo com informações do Ministério da Saúde (OLIVEIRA,
2020), foi confirmado que a primeira morte pela doença ocorreu em março. O con-
sórcio de veículos de imprensa, através do G1 (2020), divulgou que, até 3 de setem-
bro de 2020, já se somavam 124.729 mortos pela doença e 4.046.150 infectados.
Nessa conjuntura de pandemia pela COVID-19, vários direitos fundamentais
estão sendo “violados” por causa do distanciamento social aplicado em nome do
direito à vida e à saúde, ambos também direitos fundamentais.
Ressalte-se que tal “violação” corresponde às medidas restritivas de convívio
social impostas em função da pandemia e, neste contexto, o Brasil seguiu as dire-
trizes de organismos internacionais, conforme o item C, 3, “f”2 e “g”3 da Resolução
01/2020 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que impõe às
medidas adotadas que resultem em restrições de direitos ou garantias o respeito
aos princípios da proporcionalidade e da temporalidade com a finalidade estrita de

2 “f. As medidas que os Estados adotem, em particular aquelas que resultem em restrições de direitos
ou garantias, devem ajustar-se aos princípios pro persona, de proporcionalidade e temporalidade e
devem ter como finalidade legítima o estrito cumprimento dos objetivos de saúde pública e proteção
integral, como o devido e oportuno cuidado da população, sobre qualquer outra consideração ou
interesse de natureza pública ou privada.” (OEA/CIDH, 2020).
3 “g. Mesmo nos casos mais extremos e excepcionais, em que possa ser necessária a suspensão
de determinados direitos, o direito internacional impõe uma série de requisitos – tais como
o de legalidade, necessidade, proporcionalidade e temporalidade – dirigidos a evitar que
medidas como o estado de exceção ou emergência sejam utilizadas de maneira ilegal, abusiva
e desproporcional, provocando violações dos direitos humanos ou do sistema democrático de
governo.” (OEA/CIDH, 2020).

61
cumprir os objetivos de proteção integral e saúde pública, evitando que o estado de
emergência seja usado de forma ilegal, abusiva e desproporcional, a fim de que não
provoque violações dos direitos humanos ou do sistema democrático de governo.
Destarte, as medidas limitantes de direitos humanos, aí incluído o direito ao
lazer de forma comunitária, foram estabelecidas em um quadro de excepcional
anormalidade, como também prevê o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos, do qual o Brasil é signatário, em seu artigo 4:
1. Quando situações excepcionais ameacem a existência da nação e sejam pro-
clamadas oficialmente, os Estados Partes do presente Pacto podem adotar, na
estrita medida exigida pela situação, medidas que suspendam as obrigações
decorrentes do presente Pacto, desde que tais medidas não sejam incompatíveis
com as demais obrigações que lhes sejam impostas pelo Direito Internacional
e não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de raça, cor, sexo,
língua, religião ou origem social.
O exposto vai ao encontro da afirmação de Mendes (2018, p. 210 e 211), de que os
direitos fundamentais não são absolutos, uma vez que possuem limitações conforme
alguns casos, principalmente quando se trata de outros direitos fundamentais.
Diante desse quadro, cabe enfatizar que os Ministérios Públicos, das esferas fede-
ral e estadual, atuaram incansavelmente a fim de preservar os núcleos fundamentais.
Ainda nesse sentido, direitos como o de liberdade de locomoção, de lazer, de
liberdade de culto, por exemplo, estão sendo objeto de mitigação pelo Poder Público.
Tal situação tem como consequência o adoecimento psicológico, cujo aumento
de ocorrências tem sido registrado em todos os países afetados, principalmente
casos de depressão, visto que o ser humano é essencialmente um ser social e, por-
tanto, necessita vivenciar suas relações sociais com os diversos grupos (familiar,
profissional, religioso, recreativo etc.).
Por sorte, vive-se um período altamente tecnológico, e este apresenta soluções
para se sobreviver ao isolamento; a maioria se relaciona às atividades de cunho
artístico e cultural, ou seja, aquelas que remetem ao direito ao lazer.
Nesse período houve um aumento significativo de acesso a lives em redes sociais.
Segundo Agrela, Cury e Vitorio (2020), “as buscas por conteúdo ao vivo cresceram
4.900% no Brasil” e isso se deve a uma sensação de vida em comunidade.
Conforme Fiore (2020), a rede social Instagram teve crescimento de 70% no uso
de lives só em março, e psicólogo afirma que isso se deve à tentativa de suprir, atra-
vés da tecnologia, as necessidades do mundo real, uma vez que o ser humano não é
projetado para ficar em casa.
Diversas reportagens e estudos apontam para o crescimento do uso de aplica-
tivos, redes sociais, streaming, assinaturas de TV, da compra de livros etc. como
nunca visto. O que isso deixa nítido é a necessidade humana de manter relações
sociais, bem como a inevitabilidade humana quanto à necessidade do gozo do lazer.
Deve-se lembrar, porém, que existe uma grande parcela populacional que não
tem acesso à internet e nesse momento crucial está ainda mais privada do lazer, uma
população que em épocas de normalidade também não goza de tal direito por falta
de políticas públicas específicas na área, visto que há espaços de lazer privados e, em
regra, em áreas centrais, mas só uma minoria tem acesso a eles.

62
A partir desses dados sobre os eventos virtuais, nota-se que, durante o isola-
mento social, o meio tecnológico tornou-se também um equipamento de lazer e
que, infelizmente, apenas uma parcela da população tem acesso a ele.

6 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
O lazer é direito fundamental social inerente ao ser humano, com papel trans-
formador num contexto de desenvolvimento social, político e cultural, de engran-
decimento pessoal e coletivo. E num Estado Democrático cabe ressaltar o papel do
cidadão a ser exercido no seu tempo livre, bem como das atividades de lazer com
vistas à satisfação de sua condição humana.
Enquanto campo de estudo, tem aumentado significativamente o interesse pelo
lazer e, no âmbito das leis, houve uma ampliação da quantidade de normas que
protegem esse direito.
É necessário que o Estado promova políticas públicas de lazer, visto que é um direito
fundamental e com previsão constitucional e infraconstitucional, de forma que o Poder
Público faça cumprir tais previsões e garanta esse direito inerente ao ser humano.
No atual cenário de pandemia, em que muitos estão em isolamento social, a
busca por atividades de lazer, ainda que através da tecnologia, tem-se agigantado.
Deve-se lembrar que essa busca não é apenas virtual, visto que muitas pessoas têm
descumprido o isolamento social e, como exemplo, assistimos diariamente a noti-
ciários que mostram praias lotadas e realização de festas clandestinas.
Ressalta-se a importância da democratização do acesso ao lazer, visto que os
bairros marginalizados não são contemplados com espaços e equipamentos, nem
públicos, nem privados.
Portanto, é inequívoco que o direito ao lazer é muito mais do que um direito
apenas do trabalhador, ele é universal, é uma ferramenta que permite o alcance da
cidadania plena, destinado a todos sem distinção e sem preconceitos, atribuindo
dignidade à vida.

REFERÊNCIAS
AGRELA, Lucas; CURY, Maria Eduarda; VITORIO, Tamires. Na quarentena, o mundo
virou uma live. Revista Exame, [S. l.], abr./2020. Disponível em: https://exame.com/
revista-exame/o-mundo-e-uma-live/. Acesso em: 1° set. 2020.
BUENO, Francisco da Silveira. Minidicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. São Paulo:
FTD, 2007.
FARIAS, Paulo José Leite. Respeito às funções urbanísticas e a prevenção da criminalidade
urbana: uma visão integrada à luz da Escola de Chicago. Boletim Científico ESMPU,
Brasília, ano 4, n. 16, p. 79-109, jul./set. 2005.
FIORE, Matheus. Com pandemia, Instagram vê uso de lives crescer 70% durante mês de
março. B9, [S. l.], abr./2020. Disponível em: https://www.b9.com.br/124805/com-pandemia-
instagram-ve-uso-de-lives-crescer-70-durante-mes-de-marco/. Acesso em: 1° set. 2020.
G1. Brasil tem mais de 124 mil mortes por COVID-19, segundo consórcio de veículos de
imprensa. G1, 3 set. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/

63
noticia/2020/09/03/casos-e-mortes-por-coronavirus-no-brasil-em-3-de-setembro-
segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml. Acesso em: 3 set. 2020.
GOMES, Christianne Luce; MELO, Victor Andrade. Lazer no Brasil: trajetória de estudos,
possibilidades de pesquisa. Movimento, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 23-44, jan./abr. 2003.
LAZER. In: MICHAELIS, Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 2020. Disponível
em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/lazer.
Acesso em: 1° set. 2020.
LAZER. In: PRIBERAM, Dicionário. 2020. Disponível em: https://dicionario.priberam.
org/lazer. Acesso em: 1° set. 2020.
MARCELLINO, Nelson Carvalho. Algumas aproximações entre lazer e sociedade.
Animador Sociocultural: Revista Iberoamericana, [S. l.], v. 1, n. 2, p. 1-20, maio/set. 2007.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional.
13. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Pandemia e direitos
humanos nas Américas. Resolução 1/2020. 10 abr. 2020. Disponível em: https://www.
oas.org/pt/cidh/decisiones/pdf/Resolucao-1-20-pt.pdf. Acesso em: 1º set. 2020.
OLIVEIRA, Marina. Ministério da Saúde corrige data da primeira morte por covid-19
no Brasil. Congresso em Foco, 27 jun. 2020. Disponível em: https://congressoemfoco.
uol.com.br/saude/ministerio-da-saude-corrige-data-da-primeira-morte-por-covid-no-
brasil/. Acesso em: 1º set. 2020.
OPAS - Organização Pan-Americana de Saúde. OMS afirma que COVID-19 é agora
caracterizada como pandemia. Brasília, 11 mar. 2020. Disponível em: https://www.paho.
org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma-que-
covid-19-e-agora-caracterizada-como-pandemia&Itemid=812. Acesso em: 1º set. 2020.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 37. ed. São Paulo:
Malheiros editores, 2014.

64
ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
E A JUSTIÇA RESTAURATIVA
Mais um passo no caminho da transformação social

Andrey Borges de Mendonça1


Fernão Pompêo de Camargo2
Katia Herminia Martins Lazarano Roncada3

Sumário: 1 Introdução. 2 O ANPP e seu delineamento básico. 3 Justiça Restaurativa. 3.1


O que propõe a Justiça Restaurativa. 3.2 Princípios da Justiça Restaurativa. 3.3 Vantagens
da derivação para a Justiça Restaurativa. 3.4 Garantias de um procedimento justo. 3.5
Procedimento restaurativo. 4 O ANPP como oportunidade de derivação para a Justiça
Restaurativa. 5 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O objeto deste artigo é analisar se o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP),
particularmente à luz da sua regulamentação prevista na Lei n. 13.694/2019, pode
se relacionar com a Justiça Restaurativa (JR) e, em caso positivo, de que forma.
Em especial, buscar-se-á apurar se é possível que o ANPP possa representar uma
“porta de entrada” para a aplicação da JR e de que forma isso pode ocorrer. A grande
preocupação é não desfigurar nem descaracterizar a principiologia aplicável aos
dois institutos, sobretudo em relação à JR, evitando que sua essência seja desvir-
tuada, transformando-a em uma modalidade de “tribunal” restaurativo, com lógica
assemelhada ao sistema punitivo tradicional. Para tanto, o estudo será dividido
nas seguintes partes: (I) o ANPP e o seu delineamento básico; (II) a análise do que
propõe a JR, seus princípios básicos, valores e dimensões estruturais; (III) como
operacionalizar o ANPP como caminho para a JR.

2 ∙ O ANPP E SEU DELINEAMENTO BÁSICO


O ANPP, originalmente previsto no art. 18 da Resolução n. 181, de 7 de agosto de
2017, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e agora disciplinado no
art. 28-A do Código de Processo Penal (CPP), inegavelmente é instituto que reforça o
consenso no processo penal. Por muito tempo avesso a qualquer solução negocial, o

1 Procurador da República. Doutor e Mestre em Processo Penal pela Universidade de São Paulo.
Mestre em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de
Olavide, na Espanha.
2 Juiz Federal. Membro do Centro de Justiça Restaurativa da Seção Judiciária de São Paulo (Cejure).
3 Juíza Federal. Coordenadora do Centro de Justiça Restaurativa da Seção Judiciária de São Paulo (Cejure).

65
Brasil, nos últimos 25 anos, vem ampliando gradativamente os espaços de consenso
no processo penal, alinhando-se à maioria dos países do mundo, em que o devido
processo consensual já é uma realidade, com tendência expansiva evidente. É certo
que o ANPP irá revolucionar a persecução penal nacional, ao permitir a filtragem de
uma ampla gama de persecuções, de baixa e média gravidade, considerando que é
cabível, entre outros requisitos, para crimes com pena mínima inferior a quatro anos.
Para os fins do presente artigo, vejamos os elementos básicos do ANPP.4 Trata-se
de um negócio jurídico processual formulado entre o Ministério Público e a pessoa
do investigado, acompanhado de seu defensor, por meio do qual, com o objetivo
de evitar o início do processo penal, o investigado se compromete a cumprir, de
imediato, determinadas condições cujo eventual cumprimento levará à extinção da
punibilidade, sem que haja o reconhecimento de culpa. Trata-se de situação em que
a defesa deixa de apresentar resistência à imputação, tampouco admite sua culpa
ou assevera sua inocência (GRINOVER et al., 1996), embora tenha que confessar
a prática do ato e preencher outros requisitos. Trata-se de um nítido filtro para
persecuções penais de pequena e média gravidade. O fato de se tratar de negócio
jurídico traz diversas consequências. Dentre elas, é relevante destacar que não pode
ser imposto por uma parte à outra nem pode ser infligido pelo Poder Judiciário a
uma das partes. É dizer, a falta de assentimento de uma das partes não pode ser
suprida por decisão judicial. Por sua vez, seu conteúdo deve ser estabelecido no caso
concreto e não pode ser padronizado, mas sim deve ser objeto de cessões recíprocas.
Não deve ser tratado como um contrato de adesão, mas deve ser fixado a partir de
cedências recíprocas, adaptando-se ao caso concreto. Em outras palavras, deve ser
uma construção própria para as circunstâncias de cada caso concreto.
O art. 28-A do CPP prevê diversos requisitos para que seja possível o acordo,
alguns positivos – que devem estar presentes – e outros negativos – que devem estar
ausentes. Vejamos primeiro os requisitos positivos. Deve haver justa causa – ou seja,
que não se trate de hipótese de arquivamento do feito, conforme se extrai da frase
inicial do art. 28-A: “Não sendo o caso de arquivamento”. Isso significa que se deve
obter um lastro probatório mínimo previamente ao ANPP. Ademais, o crime deve
ser cometido sem violência ou grave ameaça contra a pessoa. Há também um requi-
sito objetivo, que impõe que a pena mínima seja inferior a quatro anos (devendo-se,
para tanto, considerar as causas de aumento e diminuição). Exige a lei, ainda, que
o investigado confesse, formal e circunstancialmente, a prática do delito, ou seja,
para fazer jus ao acordo, a pessoa investigada deve reconhecer que praticou a con-
duta delitiva. Segundo nos parece, embora não de forma exclusiva, a inovação legal
busca evitar a realização de acordos com pessoas inocentes. Dito de outra forma, a
confissão representa uma garantia mínima de que não se está a fazer acordo com
um inocente. Embora haja controvérsia sobre outros temas envolvendo a confissão
no ANPP, é de relevo destacar que para a aplicação da JR também se faz necessário
o reconhecimento da prática da conduta ilícita pelo autor do fato. Isso porque uma
das premissas da JR é que o agente reconheça como verdadeiros os fatos essenciais.
Outro requisito para o ANPP é que o acordo seja necessário e suficiente para repro-
vação e prevenção do crime, permitindo que o membro do MP faça uma análise
clínica do cabimento do ANPP, à luz de todas as circunstâncias do caso concreto.

4 Para aprofundamento em relação ao ANPP, cf. Mendonça (2020).

66
Trata-se de cláusula de controle. Deve-se analisar se o ANPP servirá para retribuir
a conduta delitiva e, ainda, impedir que o agente volte a realizá-la no futuro. Enfim,
que o acordo não seja instrumento de fomento da impunidade. O ANPP não se
aplica, em tese, para delitos em que as circunstâncias do caso concreto demonstrem
especial gravidade, periculosidade do agente ou outras circunstâncias especiais,
que desviem o caso do padrão. A Orientação Conjunta n. 3/20185 das 2ª, 4ª e 5ª
Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), revisada
e ampliada a partir da edição da Lei n. 13.964/2019, assevera que o presente requi-
sito deve ser analisado “tendo em vista a culpabilidade, os antecedentes, a conduta
social e a personalidade do autor do fato, bem como os motivos e as circunstâncias
do crime (artigo 44, inciso III, do Código Penal)” (item 2, h).
Além dos requisitos positivos, previstos no caput do art. 28-A do CPP, há requisi-
tos negativos – que devem estar ausentes para que seja possível o acordo. O primeiro
é não ser cabível transação penal. Aqui o legislador estabeleceu, em verdade, uma
ordem de prioridade entre os institutos. A transação penal certamente é menos gra-
vosa que o ANPP, pois aquela não exige confissão, e as condições são menos rigorosas.
Assim, cabível a transação penal, deve-se dar prioridade para tal instituto. Outro
requisito negativo é que não será aplicável o benefício para agentes reincidentes ou se
houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou
profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas, nos termos do art.
28-A, § 2º, II, do CPP. Assim, essencial que as circunstâncias pessoais do agente sejam
favoráveis, a indicar que o ANPP se mostre adequado à pessoa do investigado. É dizer,
além da adequação objetiva, exige-se adequação subjetiva. Outro requisito negativo
é que o agente não pode ter se beneficiado nos últimos cinco anos anteriores à prá-
tica da infração com institutos de consenso (transação penal, suspensão condicional
do processo e ANPP), evitando o risco de fomento à impunidade se fosse permitido
ao agente se valer dos instrumentos consensuais em sequência, em curto espaço de
tempo. Outro requisito é que não se trate de crime de violência doméstica ou em razão
da condição feminina. Em virtude do grave problema e dos altos índices de violência
doméstica na realidade brasileira, especialmente contra a mulher, o legislador excluiu
da esfera de cabimento do ANPP, prévia e abstratamente, os delitos praticados no
âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões
da condição de sexo feminino, nos termos do art. 28-A, § 2º, IV, do CPP.
Uma vez preenchidos os requisitos legais, é atribuição do Ministério Público
a proposta das condições a serem cumpridas, que podem ser aplicadas isolada ou
cumulativamente. A escolha das condições e a necessidade ou não de cumulação
deverão estar adequadas à pessoa do investigado (adequação subjetiva) e ao caso
concreto (adequação objetiva), sempre à luz da necessidade de prevenir e reprimir a
infração. Ademais, a proposta deve estar orientada pelo princípio da proporciona-
lidade, seja em sua extensão ou gravidade, evitando a padronização ou formato de
adesão. A primeira condição que a lei previu foi a reparação do dano, salvo a impos-
sibilidade de fazê-lo. Aqui já se demonstra a intenção de prestigiar a vítima – tam-
bém uma das prioridades da JR. Outra condição é renunciar voluntariamente a bens
e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito

5 Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/orientacoes/documentos/orientacao-


conjunta-no-3-2018-assinada-pgr-006676712018.pdf.

67
do crime. Previu-se, ainda, a prestação de serviço à comunidade ou a entidades públi-
cas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de
um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução. Essa prestação de
serviços à comunidade ou a entidades públicas consiste na atribuição de tarefas gra-
tuitas ao condenado, segundo o art. 46, § 1º, do CP. Também se previu a condição da
prestação pecuniária, que é o pagamento de valor a entidade pública ou de interesse
social, a ser indicada pelo juízo da execução. Por fim, há uma cláusula aberta con-
ferida pelo legislador, que permite às partes acordarem outras condições, desde que
proporcional e compatível com a infração penal imputada. O objetivo dessa cláusula
é possibilitar que as partes construam o acordo mais adequado ao caso concreto e à
pessoa do investigado. Essa previsão é essencial ao escopo do presente estudo, pois
é a porta de entrada para a JR, prevista pela Resolução CNJ n. 225/2016. À frente
trataremos de como pode ser estipulada essa cláusula, em especial para atender a
voluntariedade, que é um dos princípios basilares da JR.
Por fim, para delinear, ainda que brevemente, o ANPP, é muito importante
analisar o seu procedimento, que pode ser desmembrado, para fins didáticos, nas
seguintes etapas ou fases: (I) tratativas e negociação do acordo; (II) assinatura; (III)
controle judicial do acordo; (IV) fiscalização e decisão final sobre o ANPP.
É possível, nesse trajeto, que surjam incidentes que desviem o procedimento de seu
curso normal. Para os fins deste artigo, será analisado apenas o procedimento normal.
Na fase de tratativas, em caso de ação penal pública, as negociações são feitas
pelo MP com o investigado, devidamente acompanhado por defensor (público,
dativo ou constituído). O magistrado, além de não participar do ANPP, em hipótese
alguma pode propor o acordo de ofício ou sem concordância do MP ou, ainda, alte-
rar o conteúdo do acordo estipulado. O ANPP, como negócio processual, “demanda
acordo de vontades que não pode ser suprido pelo juiz” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2020).
Sobre a participação da vítima nas tratativas, o art. 28-A do CPP previu a sua
intimação em caso de homologação do acordo e em seu descumprimento (§ 9º).
Contudo, à luz de todo o contexto de redescoberta da vítima no processo penal, esti-
mulada de maneira uníssona pela normativa internacional e pela jurisprudência das
Cortes internacionais (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,
2010; CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, 1996), deve haver preocu-
pação efetiva, global e permanente com a vítima desde o início das tratativas até o
final do procedimento. A Recomendação n. 11, de 28 de junho de 1985, do Comitê
de Ministros da Europa, inclusive, já recomendava que os interesses da vítima deve-
riam ser levados em consideração em todas as fases do processo de justiça criminal,
devendo “ser questionada de maneira que se dê devida consideração à sua situa-
ção pessoal, seus direitos e sua dignidade”. Por isso a vítima deve ser cientificada e
convidada a participar das tratativas do ANPP, assegurando-se direito de ciência,
em tempo útil, a respeito das tratativas, direito de fornecimento de informações às
autoridades para auxiliar na tomada de decisão e direito de manifestação sobre o
cabimento do benefício, sobre as propostas e contrapropostas, e de ter seus inte-
resses globalmente considerados – não apenas patrimoniais – nas tratativas e no
próprio conteúdo do acordo. Tanto assim que o art. 28-A do CPP apontou a repara-
ção do dano como condição do ANPP. Na mesma linha, a Resolução n. 181/2017 do

68
CNMP prevê, no art. 17, que o membro do Ministério Público deve tomar todas as
medidas necessárias para a preservação dos direitos das vítimas, bem como para a
reparação dos eventuais danos por ela sofridos. Portanto, deve o MP zelar para que
os direitos da vítima, inclusive informacionais, sejam respeitados, trazendo-a para
a mesa de negociações sempre que possível. Em conclusão, quanto antes e quanto
mais ampla for a participação da vítima no ANPP, melhor.
Outro ponto sensível é a definição do local onde devem ocorrer as tratativas do
ANPP. Deve-se evitar, salvo quando absolutamente imprescindível, que a negocia-
ção ocorra em ambiência do Poder Judiciário. Como se trata de instituto anterior à
persecução penal em juízo e, primordialmente, por se basear no consenso, a exigir
negociação em nível horizontal entre as partes, deve-se afastar o ambiente judicial,
que, além da carga estigmatizante inerente ao processo, traz uma verticalidade pouco
compatível com o consenso e com o instituto. Por isso a negociação do acordo deve
ocorrer preferencialmente na sede do MP (item 1.4 da Orientação Conjunta n. 3/2018).
Entendendo ser cabível, em tese, o ANPP, o membro do MP deve intimar o inves-
tigado, por qualquer meio de comunicação admissível, para que compareça em dia e
hora designados, acompanhado de advogado ou defensor público, na sede do MP, caso
tenha interesse no acordo de não persecução penal. Veremos, adiante, que no âmbito
da JR é vedada a intimação das partes, devendo-se valer de formas não coercitivas de
comunicação, tal como o convite. Na data agendada, a reunião somente deve iniciar se
presentes o investigado e o defensor, sendo inviável a realização de qualquer tratativa
sem a presença deste. Por sua vez, o membro do MP deve ter especial preocupação em
informar o interessado: (I) de seus direitos; (II) da voluntariedade do ANPP; (III) de
que a não celebração do acordo não significará tratamento mais gravoso ao investi-
gado; (IV) da base fática que indica a justa causa para o oferecimento da ação penal;
(V) do funcionamento do instituto, dos requisitos necessários, dentre eles a confissão
formal e circunstanciada, das condições em geral cabíveis, da necessidade de homo-
logação judicial, das hipóteses de rescisão e da possibilidade de extinção da punibi-
lidade em caso de cumprimento de eventual acordo; (VI) das cláusulas do acordo,
verificando se a defesa e especialmente o investigado compreenderam seus termos e
implicações; (VII) além de esclarecer dúvidas do investigado e de seu defensor.
O membro do MP tem, assim, um nítido dever de informar (item 11 da
Orientação Conjunta n. 3/2018), visando permitir que haja uma decisão consciente
e informada por parte do investigado e de seu advogado.
Chegado ao acordo, as partes devem formalizá-lo por escrito. Referido acordo
deve conter: (I) a qualificação completa do investigado e do defensor e o nome do
membro do MP; (II) a tipificação da conduta; (III) as condições que o investigado se
comprometeu a cumprir; (IV) a forma e o prazo de cumprimento; (V) outras obriga-
ções acessórias do investigado, consensualmente estabelecidas (por exemplo, a neces-
sidade de comunicar eventual mudança de endereço, número de telefone ou e-mail, e
a necessidade de comprovar o cumprimento das obrigações, independentemente de
notificação ou aviso prévio); (VI) as hipóteses de rescisão do acordo e as suas conse-
quências; (VII) o reconhecimento da prática da conduta ilícita (confissão), em termo
próprio e anexo ao acordo; (VIII) além de ser firmado pelo membro do Ministério
Público, pelo investigado e por seu defensor. Assinado o acordo, o membro do MP
deve submetê-lo à homologação do Poder Judiciário, por meio de petição.

69
Ao analisar se é o caso ou não de homologação, o Judiciário deve exercer nítida
atividade fiscalizatória, no tocante: (a) à base fática, para analisar se há justa causa
para a denúncia (função cognitiva do Judiciário) (HOPPE, 2018); (b) à voluntariedade,
isto é, verificar se o acordo foi feito livre de coações e com consentimento informado
pelo investigado; ou seja, é atribuição do juiz aferir se o investigado está devidamente
ciente dos termos do acordo, das condições que assumiu e, ainda, das consequências
em caso de descumprimento do acordo; inclusive, para tanto, designa-se uma audiên-
cia em que o juiz irá ouvir pessoalmente o investigado, na presença de seu defensor;
(c) à legalidade do acordo, o que inclui a análise sobre o cabimento (se preenche os
requisitos positivos e negativos) e sobre as condições acordadas.
A homologação judicial é verdadeira condição de eficácia do acordo. A decisão
de homologação leva à suspensão da prescrição durante o tempo de cumprimento
do acordo, nos termos do art. 116, IV, do CP.
Homologado o acordo, o juiz responsável pela fiscalização será o da vara de exe-
cuções penais (art. 28-A, § 6º, do CPP). Há, assim, uma cisão funcional da compe-
tência entre os juízes responsáveis pela homologação e pela fiscalização. Cumprido
devidamente o acordo, conforme estipulado, será o caso de extinção da punibili-
dade. Se houver descumprimento doloso do acordado, será possível a rescisão do
acordo, com o posterior oferecimento de denúncia.

3 ∙ JUSTIÇA RESTAURATIVA
A JR apresenta uma nova abordagem para examinar e tratar o fenômeno da
violência e os desvios de conduta social, possibilitando olhar com novas lentes para
o alcance do valor Justiça, que vai muito além do sistema de justiça penal cons-
tituído. Passa-se do paradigma retributivo-punitivo para o modelo restaurativo,
com foco central nos “danos e consequentes necessidades, tanto da vítima como
também do ofensor e da comunidade” (SALMASO, 2016). É uma nova leitura da
aplicação da Justiça, com a adoção de uma nova linguagem no tocante à noção de
crime (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020).

3.1 ∙ O QUE PROPÕE A JUSTIÇA RESTAURATIVA


A concepção tradicional de Justiça punitiva-retributiva visualiza o crime como a
violação a uma norma estatal por um agente culpável, razão pela qual o Estado se uti-
liza da imposição de sanções penais como forma de retribuir a conduta delitiva e pre-
veni-la. Há centralidade no Estado, na atribuição de culpa e na aplicação de uma pena,
relegando a vítima para papel secundário, assim como as necessidades dos envolvidos.
Por outro lado, para a JR a concepção de crime não se baseia na ofensa de uma norma
legal, mas sim na violação dos valores sociais e das relações interpessoais envolvidas no
conflito. Muda-se o enfoque. O relevante não é a subsunção do fato típico, mas a iden-
tificação do autor da conduta e dos motivos que o levaram a assim agir, a identificação
das pessoas atingidas pela conduta lesiva (vítimas diretas e indiretas), quais valores
foram violados, quais necessidades foram geradas, e como se pode desenhar um novo
contorno de convivência para todos os envolvidos, incluindo aqueles que compõem as
redes de relacionamentos, tratando do trauma social com um olhar para o futuro das
relações, como uma oportunidade de conscientização e crescimento para todos, tra-
balhando por uma pacificação social efetiva e substancial, prevenindo novos conflitos.
70
Em outras palavras, o objetivo da JR é contribuir com a harmonização social
por meio de uma nova abordagem dos conflitos, possibilitando a transformação
anímica das relações por meio da construção de ambientes seguros nos quais as
pessoas afetadas, direta ou indiretamente (vítimas, ofensores, comunidade), pos-
sam compartilhar seus sentimentos e suas histórias de maneira sincera e destemida,
apontando para as necessidades que tenham surgido em razão da conduta danosa.
Buscam-se, no enfoque restaurativo,
novas abordagens, compreensão e resposta às infrações, conflitos e situações-
-problema, bem como ao redesenho de abordagens pedagógicas, psicossociais,
socioeducativas e penais, baseadas em elementos restaurativos, tais como: (a)
a participação dos envolvidos, (b) a participação das comunidades, (c) o foco
na reparação dos danos e (d) o foco na (co)responsabilização. (TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2015).
Por isso,
as práticas restaurativas terão como foco a satisfação das necessidades de todos
os envolvidos, a responsabilização ativa daqueles que contribuíram direta ou
indiretamente para a ocorrência do fato danoso e o empoderamento da comu-
nidade, destacando a necessidade da reparação do dano e da recomposição do
tecido social rompido pelo conflito e as suas implicações para o futuro (art. 1º,
III, da Resolução n. 225 do CNJ).
Necessário, ainda, reforçar outros pontos de diferença entre a Justiça Punitiva
e a JR. Ao contrário do tradicional sistema punitivo (retributivo), ao qual estamos
acostumados e que aprendemos a aplicar, a JR não se baseia na lógica de respon-
sabilidade individual passiva, em que o indivíduo se limita a cumprir a pena que
lhe foi aplicada ao final do processo e se considera quite com a sociedade. Na JR há
uma participação ativa do autor do fato, que passa a se responsabilizar e, assim, se
engajar, por meio de um processo dialógico e estruturado, na construção da melhor
solução para a harmonização do caso, conjuntamente com a vítima e com a comu-
nidade, visando restaurar os laços rompidos com a prática do crime.
Ademais, diferentemente do sistema penal tradicional, que foca no crime come-
tido e na violação da norma (portanto, com enfoque no passado), a JR tem seus
olhos voltados para o futuro, visando transformar a sociedade por meio da recons-
trução dos laços rompidos com a conduta, edificando caminhos de convivência que
sejam bons para os envolvidos e para a comunidade. Outro ponto é que a vítima e
suas necessidades possuem papel central na JR, enquanto no sistema tradicional
é colocada à margem dos debates processuais e não participa da solução dada ao
conflito, ficando relegada, na imensa maioria das vezes, a mero meio de prova.
Para a aplicação da JR, impõe-se que o autor do fato danoso assuma a responsa-
bilidade pela sua conduta, com uma postura ativa no sentido de olhar para os male-
fícios causados com o seu agir, tanto com relação à vítima como para a comunidade.
Da mesma forma, é necessário que seja apontada a corresponsabilidade social da
conduta. Por isso, a Resolução CNJ n. 225/2016 assevera que as práticas restaura-
tivas devem focar “a responsabilização ativa daqueles que contribuíram direta ou
indiretamente para a ocorrência do fato danoso” (art. 1º, III). A JR tem um viés que
preza por “envolvimento ativo, a participação e a responsabilidade (individual e
coletiva), por meio de dinâmicas dialógicas, e não punitivas, não calcadas no poder
sobre o outro, mas sim com o outro” (PENIDO; MUMME, 2014). Por isso, a JR

71
não é uma forma de aplicação de justiça baseada no modelo processual tradicional,
com enfoque punitivo. Trata-se de “outra forma paradigmática e fundante de se
fazer justiça”, insatisfeita com o modelo punitivo tradicional, “que não lida de modo
efetivo com as causas e com as consequências da ação que ocasiona dano a outrem,
e dessa forma não tem se mostrado uma estratégia eficaz para lidar com a violên-
cia” (PENIDO; MUMME, 2014). Assim, a JR busca se afastar da vetusta fórmula,
seguida há séculos, de “responder à violência do delito com uma violência estatal,
aquela da pena prevista na lei” (SALMASO, 2016).
Com essa abordagem, conforme consta na introdução da Resolução n. 2002/12
da ONU, que trata dos Princípios básicos para utilização de programas de Justiça
Restaurativa em matéria criminal, propicia-se uma oportunidade para que as víti-
mas obtenham reparação, sintam-se empoderadas e possam superar o problema, ao
mesmo tempo que permite aos ofensores compreenderem as causas e consequências de
seu comportamento, com assunção de responsabilidade de forma efetiva, bem assim
possibilitando à comunidade a compreensão das causas subjacentes do crime, promo-
vendo o bem-estar comunitário e, por consequência, a prevenção da criminalidade.
Com base na lição de Howard Zehr (2012), os quadros a seguir apontam algu-
mas das diferenças entre a Justiça Criminal tradicional e a JR:

Quadro 1 ∙ Algumas diferenças entre Justiça Criminal tradicional e JR


Duas visões diferentes

Justiça Criminal Justiça Restaurativa


O crime é uma violação de pessoas
O crime é uma violação da lei e do Estado
e de relacionamentos
As violações geram culpa As violações geram obrigações
A Justiça exige que o Estado A Justiça envolve vítimas, ofensores e
determine a culpa e imponha uma membros da comunidade num esforço
punição (sofrimento) comum para corrigir a situação
Foco central: as necessidades da vítima e a
Foco central: os ofensores devem receber
responsabilidade do ofensor de reparar o
o que merecem
dano cometido
Fonte: Conselho Nacional de Justiça (2020, p. 96).

Quadro 2 ∙ Três perguntas diferentes


Justiça Criminal Justiça Restaurativa
Quem sofreu danos e quais valores
Que leis foram infringidas?
foram violados?
Quem fez isso? Quais são suas necessidades?
De quem é a obrigação de suprir
O que o ofensor merece?
essas necessidades?
Fonte: Conselho Nacional de Justiça (2020, p. 97).

72
Embora seja inviável neste estudo uma análise de todas as dimensões, eixos,
valores e principiologia da JR, é necessário estabelecer, em rápida síntese, algumas
balizas iniciais, para que a essência dessa política pública não seja desvirtuada. Em
especial, importante delimitar o que não é a JR, afastando alguns preconceitos que
decorrem do desconhecimento do tema. Conforme exposto acima, a JR não sig-
nifica, em hipótese alguma, impunidade ou “passar a mão na cabeça” do autor do
fato. Embora não signifique “bater na cabeça do autor do fato”, a JR se fundamenta
sobre a lógica mais ampla de responsabilidade individual-ativa e corresponsabili-
dade da família, da comunidade e das instituições. Outro ponto importante é que
a JR não se confunde com uma técnica de solução de conflitos ou se limita a ser
apenas isso. Vê-la assim seria reduzir e limitar demasiadamente seu escopo e con-
teúdo, além de esvaziar sua potência transformadora, ensejando um grande risco
de desvirtuamento (PENIDO; MUMME, 2014). A JR deve ser vista como um ver-
dadeiro e legítimo instrumento de transformação social, que “busca lançar luz nas
estruturas e dinâmicas sociais e institucionais violentas e desumanas” (SALMASO,
2016). As medidas despenalizadoras em si, como as penas restritivas de direito,
também não são JR, pois não são voluntárias nem representam formas genuínas de
autorresponsabilização na busca de reparação do dano. A JR tem sido considerada
uma alternativa ao processo penal – pois fora do sistema punitivo e de sua lógica –,
e não uma alternativa penal, sem perder de vista “que as suas práticas qualifi-
cam, de forma mais humana, o penal e as alternativas penais” (SALMASO, 2016).
Observa-se que a JR não tem como objetivo principal o perdão ou a reconciliação,
uma vez que, embora tais resultados sejam possíveis, não é imprescindível que ocor-
ram (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020). A Justiça Restaurativa busca
“a reparação do dano e a recomposição do tecido social rompido pelo conflito” (art.
1º, III, da Resolução CNJ n. 225/2016), de modo que não é imprescindível a exis-
tência de vítima determinada. Assim, a JR, embora se preocupe ativamente com a
vítima concreta, pode se aplicar para qualquer conduta em que o tecido social foi
rompido, ainda que não haja uma vítima individualizável, como, por exemplo, nos
casos de tráfico ilícito de entorpecentes, de lesão ao meio ambiente e de dano ao
patrimônio público. Nesse caso, emerge a necessidade de reflexão, pelo ofensor e
pela comunidade, de suas responsabilidades (SALMASO, 2016).
Feitos esses esclarecimentos iniciais, a JR pode ser definida, nos termos do art.
1º da Resolução n. 225 do CNJ, como
um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades
próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e
sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que
geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado.6
Essa definição mais ampla e de força expansiva visa afastar o engessamento da
JR e permitir que toda sua potência transformadora se desenvolva como política
pública. A definição sugere de forma clara que a implementação deve abranger ações

6 O Conselho Econômico e Social da ONU, por meio da Resolução n. 2002/12, define o processo
restaurativo como “qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer
outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na
resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador”.

73
que abarquem as três dimensões do conflito e da violência, que são interligadas: (I)
relacional, que considera a forma como o conflito atinge o relacionamento entre as
pessoas afetadas direta ou indiretamente, abrangendo um conjunto de técnicas de
solução de conflitos;7 (II) institucional, com foco nas instituições e suas ambiências,
para que suas estruturas e culturas reinantes – hierárquicas, punitivas e excludentes –
não retroalimentem a situação de violência; (III) social, ao analisar a responsabilidade
individual e coletiva pela violência e buscando transformar a comunidade a partir de
suas necessidades (PENIDO; MUMME, 2014).8 Essa dimensão social aponta para a
corresponsabilidade da sociedade e dos poderes públicos para resolução do problema
da violência, sendo, portanto, uma construção coletiva, apta a espraiar os valores da
JR por toda a sociedade. Deve haver, assim, a participação de toda a comunidade,
incluindo as instituições públicas e privadas, bem como a sociedade civil, para disse-
minação das práticas restaurativas, criando uma nova lógica de diálogo social e comu-
nitário. A JR traz todos os envolvidos para o diálogo, estimulando a interdisciplinari-
dade, com a participação ativa de todas as instituições afetadas ou com algum poder
de ação no caso concreto, razão pela qual todos participam da própria elaboração do
plano de ação. A JR, portanto, vai além da lógica vítima-ofensor, devendo estar aberta
à participação social e trazendo a comunidade para o debate. Se a JR não tiver a sua
base fundada na comunidade e para a comunidade, ela perderá sua essência. Em razão
da importância dessa dimensão, são fundamentais a constituição e o fortalecimento
de uma rede de contatos dentro da estrutura social, que serão parceiros do projeto de
Justiça Restaurativa (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020). É o que Penido
e Mumme chamam de “Rede de Apoio”, ou seja, a articulação entre as entidades de
atendimento, com o estabelecimento de fluxos e procedimentos, que sejam efetivos
em dar conta das necessidades desveladas nos referidos procedimentos (PENIDO;
MUMME, 2014). Assim, essa Rede de Apoio ou de Garantia de Direitos visa “dar
suporte às necessidades das mais variadas ordens, que aparecem nos procedimentos
restaurativos”, seja de ofensores, de vítimas, das famílias ou da própria comunidade
(SALMASO, 2016). Enfim, essas três dimensões – relacional, institucional e social –
devem ser pensadas e trabalhadas conjuntamente e de maneira integrada, para não se
perder a própria condição de efetividade da JR.

3.2 ∙ PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA


Sobre os princípios que orientam a Justiça Restaurativa, o art. 2º da Resolução
n. 225 do CNJ dispõe que são os seguintes: os princípios da corresponsabilidade,
da reparação dos danos, do atendimento às necessidades de todos os envolvidos, da

7 Segundo a Resolução n. 2002/12 da ONU, que trata dos Princípios básicos para utilização de
programas de Justiça Restaurativa em matéria criminal, os processos restaurativos podem incluir
a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios
(sentencing circles) (item I.2). Segundo o CNJ, no Brasil algumas metodologias desenvolvidas por
instituições são os Círculos, as Conferências de grupos familiares e a Mediação Vítima Ofensor
Comunidade (MVO), sendo possível a sua mescla em um mesmo caso, à luz das necessidades deste
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020). Destaque-se que “o processo circular tem sido
aquele mais utilizado no Brasil” (SALMASO, 2016).
8 Por comunidade entende-se: “i) a rede de afeto (familiares, pessoas de confiança) das pessoas
envolvidas em cada caso; ii) pessoas representantes de instituições públicas e/ou privada”
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020).

74
informalidade, da voluntariedade, da imparcialidade, da participação, do empode-
ramento, da consensualidade, da confidencialidade, da celeridade e da urbanidade.
Segundo o CNJ (2020), a corresponsabilidade pressupõe “a assunção da res-
ponsabilidade por todas as pessoas que integram uma prática restaurativa”. A
reparação dos danos significa a “busca por restaurar os danos afetados no con-
flito e pode ser de ordem material (como indenização, conserto, devolução, etc.)
ou emocional (como escuta ativa sobre os danos causados e pedido de desculpas)”
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020). O atendimento à necessidade dos
envolvidos “requer a atenção para que todos os sujeitos envolvidos sejam igualmente
considerados em suas individualidades, autonomia e necessidades frente ao caso
trazido à esfera restaurativa” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020). A
informalidade “se contrapõe ao extremo rigor dos processos judiciais, atendo-se à
liberdade de ação e palavra dos seus protagonistas e por um estilo consensuado
com o qual as pessoas buscam se relacionar em prol de uma solução para os seus
dilemas” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020). A voluntariedade pres-
supõe “participação espontânea de todas as pessoas, bem como a possibilidade de
que interrompam o procedimento a qualquer tempo, cientes da responsabilidade
dos seus atos” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020). A imparcialidade
se refere à “atitude que deve ter o facilitador quanto a não favorecer nenhuma das
pessoas. O facilitador deve se eximir de dar respostas ou sugerir soluções, que possa
ser interpretado como a beneficiar uma das partes” (CONSELHO NACIONAL DE
JUSTIÇA, 2020). Para tanto, devem ser adequadamente capacitados. O princípio
da participação ressalta a “importância de que todas as pessoas que integram uma
prática restaurativa tenham igual condição de participar do procedimento, respei-
tados em suas manifestações” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020). O
empoderamento indica que todas as pessoas envolvidas devem se sentir igualmente
importantes, tendo autonomia para expressar livremente seus sentimentos e a sua
visão da história, “da sua maneira e com os sentidos que considere necessários,
além de que pressupõe também o direito de aceitar ou não participar de uma prática
restaurativa, aceitar ou não o pedido de desculpas ou acordo proposto pela outra
parte” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020). A consensualidade significa
que se deve buscar “por uma negociação pacífica e abertura dos envolvidos para se
chegar a uma solução justa e harmônica” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA,
2020). A confidencialidade pressupõe que os assuntos tratados no procedimento
restaurativo sejam considerados privados e sigilosos, não podendo ser utilizados
em processos posteriores. A celeridade busca a solução do conflito dentro de um
prazo razoável, evitando que a demora impeça a resolução do conflito ou mesmo o
potencialize. Por fim, o princípio da urbanidade impõe o respeito ao outro no curso
do procedimento restaurativo, com a promoção da escuta ativa, da cordialidade e da
dignidade de todos os envolvidos (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020).
Segundo os Princípios básicos para utilização de programas de Justiça
Restaurativa em matéria penal da ONU, os “processos restaurativos devem ser
utilizados somente quando houver prova suficiente de autoria para denunciar
o ofensor e com o consentimento livre e voluntário da vítima e do ofensor”.9

9 Item 7 da Resolução n. 2002/12 da ONU, que trata dos Princípios básicos para utilização de
programas de Justiça Restaurativa em matéria penal.

75
Portanto, somente se houver justa causa e consentimento da vítima e do ofensor
é que é admissível derivar o caso ao processo restaurativo. Inclusive, a qualquer
momento a vítima e o ofensor podem revogar o consentimento dado para parti-
cipar do processo restaurativo (voluntariedade).10 Ademais, para que o conflito
possa ser trabalhado no âmbito da JR, é necessário que as partes “reconheçam,
ainda que em ambiente confidencial incomunicável com a instrução penal, como
verdadeiros os fatos essenciais, sem que isso implique admissão de culpa em even-
tual retorno do conflito ao processo judicial”, conforme art. 2º, § 1º, da Resolução
n. 225 do CNJ. Esse dispositivo é inspirado no item 8 dos Princípios da ONU, que
afirma que a “vítima e o ofensor devem normalmente concordar sobre os fatos
essenciais do caso sendo isso um dos fundamentos do processo restaurativo”.
Ademais, o § 3º do art. 2º da Resolução n. 225 do CNJ prevê que os participantes
“devem ser informados sobre o procedimento e sobre as possíveis consequências
de sua participação, bem como do seu direito de solicitar orientação jurídica em
qualquer estágio do procedimento”. Ainda, o § 4º do art. 2º da Resolução n. 225
prevê que “todos os participantes deverão ser tratados de forma justa e digna,
sendo assegurado o mútuo respeito entre as partes, as quais serão auxiliadas a
construir, a partir da reflexão e da assunção de responsabilidades, uma solução
cabível e eficaz visando sempre o futuro”. Por fim, o “acordo decorrente do proce-
dimento restaurativo deve ser formulado a partir da livre atuação e expressão da
vontade de todos os participantes, e os seus termos, aceitos voluntariamente, con-
terão obrigações razoáveis e proporcionais, que respeitem a dignidade de todos os
envolvidos” (art. 2º, § 5º, da Resolução n. 225 do CNJ).

3.3 ∙ VANTAGENS DA DERIVAÇÃO PARA A JUSTIÇA RESTAURATIVA


Há diversas vantagens na utilização da Justiça Restaurativa. Há aquelas que
são inerentes aos métodos consensuais de solução de conflitos, tais como a flexi-
bilidade sobre o procedimento, a maior privacidade, o cumprimento espontâneo
das combinações ajustadas e a maior satisfação (CONSELHO NACIONAL DE
JUSTIÇA, 2017). Ademais, há aquelas próprias da JR, que são: (I) olhar para as
necessidades dos envolvidos; (II) centralidade do papel da vítima, evitando a sua
revitimização; (III) atenção aos interesses da coletividade, que se reapropria do
conflito e da resolução do conflito; (IV) solução do caso a partir do diálogo; (V)
reconstrução dos laços sociais rompidos; (VI) responsabilidade ativa do autor
da ofensa; (VII) compreensão estrutural e análise da violência a partir de suas
raízes, permitindo modificações nas dimensões relacional, institucional e social;
(VIII) olhar para o futuro, permitindo melhor relação entre os envolvidos; (IX)
formação de sujeitos de direitos, como uma forma de favorecer a educação para a
cidadania (BOONEN, 2011); (X) diminuição da probabilidade de ofensas futuras.
Estudos mostram que círculos restaurativos no Canadá reduziram em mais de
70% a reincidência (WILSON; CORTONI; MCWHINNIE, 2009); (XI) alto índice
de satisfação dos envolvidos (tanto ofensores quanto vítima), chegando a mais de
90% em Porto Alegre (BOONEN, 2011).

10 Art. 2º, § 2º, da Resolução n. 225 do CNJ e item 7 da Resolução n. 2002/12 da ONU, que trata dos
Princípios básicos para utilização de programas de Justiça Restaurativa em matéria penal.

76
3.4 ∙ GARANTIAS DE UM PROCEDIMENTO JUSTO
A aplicação da JR também deve observar as garantias processuais fundamentais
que assegurem um tratamento justo – fair trial – ao ofensor e à vítima, nos termos
do art. 13 da Resolução n. 2002/12 da ONU e da Resolução n. 225 do CNJ. Essas
garantias, embora possam ser inspiradas na tradição do devido processo legal,
certamente precisam ser moldadas e adaptadas para a JR. Podem ser apontadas as
seguintes garantias básicas desse modelo, aplicáveis às partes do processo restau-
rativo, em especial ao autor da conduta e à vítima: (I) a voluntariedade e o prévio
consentimento, livre e espontâneo, na participação, sendo assegurada a retratação a
qualquer tempo, até a homologação do procedimento restaurativo, e sendo vedado
qualquer meio de coação ou indução por meios desleais a sua participação e acei-
tação dos resultados do processo (item 7 da Resolução n. 2002/12 da ONU e art.
2º, § 1º, da Resolução n. 225 do CNJ); (II) antes de concordarem em participar de
um processo restaurativo, o direito de serem integralmente informadas sobre seus
direitos, a natureza do processo e as possíveis consequências de sua decisão (item
13, b, e item 7 da Resolução n. 2002/12 da ONU); (III) direito de receberem aconse-
lhamento jurídico a qualquer momento durante qualquer estágio do processo res-
taurativo (item 13, a, da Resolução n. 2002/12 da ONU e art. 2º, § 3º, da Resolução
n. 225 do CNJ); (IV) quando necessário, as partes devem ter direito à tradução ou ao
uso de intérpretes (item 13, a, e item 7 da Resolução n. 2002/12 da ONU); (V) que o
resultado do processo restaurativo seja pactuado de maneira voluntária e contenha
somente obrigações razoáveis e proporcionais, que respeitem a dignidade de todos
os envolvidos (item 7 da Resolução n. 2002/12 da ONU, item 31 da Recomendação
n. 19, de 1999, do Comitê de Ministros do Conselho da Europa e art. 2º, § 5º, da
Resolução n. 225 do CNJ); (VI) direito de serem acompanhados por pessoas de sua
confiança e, em caso de menores, ter assistência de seus pais ou responsáveis legais
(item 13, a, da Resolução n. 2002/12 da ONU); (VII) que os resultados dos proces-
sos restaurativos sejam supervisionados judicialmente, quando apropriado, e que
o resultado tenha o mesmo valor de uma decisão ou julgamento, extinguindo o
processo em relação aos mesmos fatos (item 15 da Resolução n. 2002/12 da ONU);
(VIII) que as questões tratadas no bojo do processo restaurativo, não conduzidas
publicamente, sejam confidenciais e não sejam divulgadas, exceto se consentirem
as partes (item 14 da Resolução n. 2002/12 da ONU); (IX) em qualquer caso, as
manifestações das partes e as questões tratadas no bojo do processo restaurativo
estão garantidas pela confidencialidade e não poderão ser usadas no processo penal,
seja para majoração da pena ou como elemento de prova (art. 8º, § 5º, da Resolução
n. 225 do CNJ e item 14 da Recomendação n. 19, de 1999, do Comitê de Ministros
do Conselho da Europa); assim, o que for tratado nos procedimentos restaurativos
não se comunica com o feito criminal, a não ser a solução do caso dado pelas partes,
de maneira consensual, por meio de um acordo; (X) a participação do infrator não
pode ser usada como prova de admissão da culpa em processos legais subsequentes
(item 8 da Resolução n. 2002/12 da ONU e art. 2º, § 1º, da Resolução n. 225 do CNJ);
(XI) o insucesso do processo restaurativo não poderá ser usado, por si, no processo
penal subsequente, inclusive sendo vedada a sua utilização como justificativa para
uma pena mais severa (itens 16 e 17 da Resolução n. 2002/12 da ONU e art. 8º,
§ 5º, da Resolução n. 225 do CNJ); (XII) os facilitadores devem ser qualificados e

77
capacitados e possuir um bom entendimento das culturas e comunidades locais
(item 19 da Resolução n. 2002/12 da ONU); (XIII) os facilitadores devem atuar de
forma imparcial, respeitando a dignidade das partes e criando um ambiente seguro
e confortável para todos; nessa função, os facilitadores devem garantir que as par-
tes atuem com respeito mútuo e que possam chegar a uma solução relevante ao
caso (item 18 da Resolução n. 2002/12 da ONU e itens 26 e 27 da Recomendação n.
19, de 1999, do Comitê de Ministros do Conselho da Europa); as partes devem ser
“auxiliadas a construir, a partir da reflexão e da assunção de responsabilidades, uma
solução cabível e eficaz visando sempre o futuro” (art. 2º, § 4º, da Resolução n. 225
do CNJ); o mais importante, entretanto, não é o acordo, mas sim toda a dinâmica
construída no encontro e nos diálogos vivenciados, as experiências trocadas, com o
que o acordo pode ser uma decorrência de todo esse processo; (XIV) as partes têm
o direito à segurança, seja na decisão de derivar o caso ao processo restaurativo, seja
durante sua condução (item 10 da Resolução n. 2002/12 da ONU), bem como de
serem tratadas de forma justa e digna, com mútuo respeito.
É importante destacar que os responsáveis pela observância de todas essas
garantias e de um procedimento justo são os facilitadores e a equipe de apoio, assim
como o magistrado, ao fiscalizar eventual acordo restaurativo.

3.5 ∙ PROCEDIMENTO RESTAURATIVO


Lancemos, nesse passo, um olhar sobre como o procedimento restaurativo
foi disciplinado pela Resolução n. 225 do CNJ, à luz dos princípios, dos métodos,
das técnicas e das atividades próprias da JR. Buscaremos responder às perguntas
básicas: o que é um procedimento restaurativo? Quem deve participar? Onde deve
ocorrer? Quem deve conduzi-lo? Como deve ser conduzido? Qual o seu resultado?
O que é um procedimento restaurativo? Não há um único procedimento restau-
rativo possível, havendo grande flexibilidade no tema. O art. 8º da Resolução n. 225
do CNJ esclarece:
Os procedimentos restaurativos consistem em sessões coordenadas, realizadas
com a participação dos envolvidos de forma voluntária, das famílias, juntamente
com a Rede de Garantia de Direitos local e com a participação da comunidade para
que, a partir da solução obtida, possa ser evitada a recidiva do fato danoso, vedada
qualquer forma de coação ou a emissão de intimação judicial para as sessões.
No Brasil, em geral, é bastante utilizada a metodologia do Processo Circular.
Quem deve participar do procedimento restaurativo? Podem fazer parte o ofen-
sor, a vítima, seus familiares e apoiadores (ou seja, aqueles que podem apoiar os
envolvidos e contribuir para que não haja recidiva), além de representantes da
comunidade atingidos direta ou indiretamente pelo fato, e um ou mais facilitadores
restaurativos (art. 1º, I, da Resolução n. 225 do CNJ). Não se mostra aconselhável a
participação de agentes estatais encarregados da persecução penal nem de qualquer
autoridade do sistema de justiça, a não ser se atingidos pela conduta delitiva e nessa
qualidade (vítima), ou como membro da comunidade.
A participação da vítima é de grande centralidade, porém tem natureza facul-
tativa, em razão da voluntariedade e, também, da preocupação em preservá-la, o
que não obsta que ocorra o procedimento restaurativo. A vítima pode, inclusive,

78
participar de maneira indireta, fazendo-se representar por um familiar ou amigo
próximo, bem como através de outras formas de comunicação, tais como uma carta
ou um vídeo gravado. Também é possível a presença de uma vítima emprestada, ou
seja, alguém que tenha sido vítima em hipótese semelhante ou que ocupe um lugar
de fala na estrutura de um ente jurídico lesado pela conduta. Ademais, conforme
dito, o fato de não haver uma vítima determinada, como ocorre em alguns crimes
(contra o meio ambiente, envolvendo drogas, etc.), tampouco é fator impeditivo
para as práticas restaurativas.
Sobre o local onde deve ocorrer, a JR não deve, na medida do possível, ser
conduzida em ambiências hierárquicas e verticais. Ao contrário, deve ocorrer em
locais próprios, em espaços “adequados e seguros” (arts. 6º e 11 da Resolução n.
225 do CNJ), ou seja, em verdadeiros “polos irradiadores” que possam efetivar
“uma mudança de paradigma que sustente as ações em curso e dê condições para
a sua expansão”. Tais polos irradiadores – com participação direta ou indireta do
Judiciário – são locais “que recebem a proposta, inovando a prática de resolução
de conflito, que visa, em última instância, à harmonização justa dos conflitos nas
três dimensões – relacional, institucional e social –, por meio da implementação da
Justiça Restaurativa” (PENIDO; MUMME, 2014). Esses polos irradiadores são as
unidades de JR, que visam dar segurança física e jurídica aos envolvidos. Inclusive,
a Resolução n. 225 do CNJ determina que os tribunais devam destinar “espaço
físico adequado para o atendimento restaurativo, diretamente ou por meio de par-
cerias, que deve ser estruturado de forma adequada e segura para receber a vítima,
o ofensor e as suas comunidades de referência, além de representantes da sociedade”
(art. 6º da Resolução n. 225 do CNJ). Nesses espaços deve haver um magistrado
responsável pela coordenação dos serviços e da estrutura, que deve contar, ainda,
com pessoal de apoio administrativo.
Quem deverá conduzir o procedimento restaurativo é o facilitador restaurativo,
que é uma “pessoa cujo papel é facilitar, de maneira justa e imparcial, a participação
das pessoas afetadas e envolvidas num processo restaurativo” (ORGANIZAÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS, 2002). Esse facilitador deve ser devidamente qualificado e
capacitado em cursos de formação teórica e prática em JR (nos termos dos arts. 13,
16 e 17 da Resolução n. 225 do CNJ), e atuar de maneira imparcial. Suas relevantes
atribuições na condução do procedimento estão indicadas no art. 14 da Resolução
n. 225 do CNJ – dentre elas, criar um ambiente seguro para o diálogo e para a
compreensão do conflito em toda sua dimensão, redigir o termo de acordo, quando
obtido, ou atestar o insucesso, entre outras. As vedações impostas ao facilitador
estão indicadas no art. 15 – dentre elas, prestar depoimento em juízo sobre as
informações obtidas no procedimento restaurativo bem como relatar ao juiz, ao
promotor de justiça, aos advogados ou a qualquer autoridade do sistema de justiça,
sem motivação legal, o conteúdo das declarações prestadas por qualquer dos envol-
vidos nos trabalhos restaurativos, sob pena de praticar o delito previsto no art. 154
do Código Penal. Sempre que possível, o facilitador deve ser auxiliado por equipes
técnicas de apoio interdisciplinar. Não pode o membro do Ministério Público ou o
juiz, enquanto agentes estatais envolvidos na persecução, conduzir as práticas res-
taurativas ou delas participar. Os facilitadores e a sua equipe de apoio devem pos-
suir suficiente autonomia para conduzir as práticas restaurativas, embora devam

79
ser monitorados pelos órgãos competentes (itens 20 e 21 da Recomendação n. 19, de
1999, do Comitê de Ministros do Conselho da Europa).
Como deve ser esse procedimento restaurativo? O ponto comum em todos os
procedimentos é “o encontro ordenado e espontâneo entre a vítima e o ofen-
sor e pessoas direta e indiretamente afetadas (da família e da comunidade) que
podem apoiá-los e se corresponsabilizarem pela não recidiva na situação con-
flitiva” (PENIDO; MUMME, 2014), sempre sob a coordenação de um ou mais
facilitadores. Nesse encontro, os envolvidos poderão contar suas histórias de
vida e também com relação ao fato ocorrido, revelar sentimentos e necessidades,
conectando-se em suas humanidades dentro de uma dinâmica de construção
coletiva de um ambiente seguro e propício para o reconhecimento de ânimos e
intenções. É um espaço em que as pessoas, em comunidade, narram e contam sua
experiência e depois começam a pensar no impacto daquele fato em suas vidas. A
função desse procedimento não é julgar ou “apontar o dedo” – transformando-se
em um “tribunal circular” (SALMASO, 2016) –, mas sim permitir que os envolvi-
dos dialoguem a partir de seus sentimentos e indiquem as suas necessidades, sem
prejulgamentos, construindo coletivamente a solução do caso. Permite-se que o
agente possa ter contato com o mal (físico e/ou anímico) que causou à(s) vítima(s),
e esta(s) possa(m) compreender o contexto com que aquele se deparava quando
praticou o ato danoso. A ideia é ajudar a pessoa que cometeu o ato a entender o
mal que causou a outras pessoas, para que, a partir de então, de um movimento
interno e voluntário, possa escolher ser protagonista da reconstrução de sua his-
tória. Nesse sentido, o art. 8º, §§ 1º e 2º, da Resolução n. 225 do CNJ afirma que
o “facilitador restaurativo coordenará os trabalhos de escuta e diálogo entre os
envolvidos, por meio da utilização de métodos consensuais na forma autocom-
positiva de resolução de conflitos, próprias da Justiça Restaurativa”. O facilitador
deve ressaltar durante os procedimentos restaurativos, nos termos do art. 8º, § 1º,
da Resolução n. 225 do CNJ: (I) o sigilo, a confidencialidade e a voluntariedade
da sessão; (II) o entendimento das causas que contribuíram para o conflito; (III)
as consequências que o conflito gerou e ainda poderá gerar; (IV) o valor social da
norma violada pelo conflito.
Ademais, o facilitador restaurativo atua buscando criar “ambiente propício
para que os envolvidos promovam a pactuação da reparação do dano e das medi-
das necessárias para que não haja recidiva do conflito, mediante atendimento
das necessidades dos participantes das sessões restaurativas” (art. 8º, § 2º, da
Resolução n. 225 do CNJ).
Sobre o resultado do procedimento restaurativo, é possível que as partes firmem
um acordo em que todos, voluntariamente, pactuem a reparação do dano e as medi-
das necessárias para a transformação das relações sociais rompidas. Esse acordo,
conforme visto, deve prever obrigações razoáveis e proporcionais e, ainda, observar
a dignidade de todos os envolvidos. Uma vez assinado o acordo, será colhido o pare-
cer do Ministério Público, e o procedimento será encaminhado para homologação
pelo magistrado responsável, desde que preenchidos os requisitos legais (art. 8º,
§ 3º, da Resolução n. 225 do CNJ). Ademais, o art. 8º, § 4º, da Resolução n. 225
prevê que se junte aos autos do processo uma breve memória da sessão, que consiste
na anotação dos nomes das pessoas que estiveram presentes e do plano de ação

80
com os acordos estabelecidos. Devem ser preservados os princípios do sigilo e da
confidencialidade, com exceção feita a alguma ressalva expressamente acordada
entre as partes, exigida por lei, ou a situações que possam colocar em risco a segu-
rança dos participantes. Em caso de insucesso, veda-se a utilização do conteúdo do
procedimento restaurativo como causa de majoração de eventual pena ou, ainda, a
utilização das informações como meio de prova.
Destaque-se, por oportuno, que a Resolução CNJ n. 300, de 29 de novembro de
2019, além de criar o Fórum Nacional de Justiça Restaurativa, alterou a Resolução
n. 225 para impor a todos os tribunais do País (Justiça Estadual e Justiça Federal) a
apresentação ao CNJ, no prazo de 180 dias, de um plano de implantação, difusão e
expansão da JR, contendo, entre outros pontos, a implementação e/ou estruturação
de um Órgão Central de Macrogestão e Coordenação, com estrutura e pessoal para
a adequada consecução dos trabalhos de fomento da política pública.

4 ∙ O ANPP COMO OPORTUNIDADE DE DERIVAÇÃO PARA A


JUSTIÇA RESTAURATIVA
Relevante ressaltar, mais uma vez, que há mais diferenças do que semelhan-
ças entre os institutos. A primordial diferença é de essência: o ANPP se insere de
maneira mais próxima na lógica tradicional do paradigma punitivo, em que se
impõe a punição como forma de resposta a um comportamento indesejado, de res-
ponsabilização individual passiva (SALMASO, 2016) e atribuição de culpa, a partir
da ideia de que o crime é uma lesão às normas estatais, sendo a função da pena
retributiva e preventiva. Por sua vez, a JR se baseia na premissa de responsabilização
individual ativa e corresponsabilidade coletiva, centrada na ideia de que o crime,
ou ato danoso, viola os valores e cinde os laços sociais, de sorte que é necessária a
reconstrução desse tecido, visando lidar com os vários fatores da violência. A gené-
tica de ambos é distinta, portanto. No âmbito da JR, aquele fato e todas as pessoas
envolvidas naquela teia de relações são vistos com um olhar diferenciado. Não se
trata de mais um processo a ser resolvido, mas sim de relações que merecem uma
atenção própria, atenta e cuidadosa, o processo a ser resolvido.
Feito o delineamento básico do ANPP e da JR, é o momento de se verificar
se é possível ao ANPP ser uma “porta de entrada” para a JR e, em caso positivo,
como isso pode ocorrer.
A primeira resposta é positiva. O ANPP é uma mitigação ao princípio da
obrigatoriedade da ação penal, que abre uma grande janela de oportunidade para
aplicação da JR,11 em especial pela enorme gama de infrações penais que podem
ser objeto do acordo. Isso não significa que essa seja a “única porta de entrada”
para a utilização da JR no âmbito penal, mas representa uma alvissareira hipótese
de autorização do ordenamento jurídico para a derivação de casos para esse novo

11 A princípio, a obrigatoriedade e a indisponibilidade da ação penal não se mostram impeditivos


da derivação em qualquer hipótese, podendo a Justiça Restaurativa ter lugar para qualquer
crime, uma vez que a experiência revela que quanto maior o dano, maior é o potencial da
transformação. Sabe-se, entretanto, que essa visão não é unânime, e para fins do alcance
prática e efetivo ora pretendido, o ANPP revela uma grande janela de oportunidade para a
aplicação da Justiça Restaurativa.

81
modelo de aplicação de Justiça.12 Isso foi reconhecido, inclusive, recentemente,
na I Jornada de Direito e Processo Penal, organizada pelo Conselho da Justiça
Federal (CJF) entre 10 e 14 de agosto de 2020, oportunidade em que foi aprovado
o Enunciado n. 28, com o seguinte teor: “Recomenda-se a realização de práticas
restaurativas nos acordos de não persecução penal, observada a principiologia das
Resoluções n. 225 do CNJ e 118/2014 do CNMP”.13
Também se deve estar sempre atento ao “canto da sereia”, representado pela
ameaça de que a JR seja cooptada pelo modelo tradicional de persecução, refor-
çando padrões de violência e suas causas. Deve-se, assim, evitar caminhos que
possibilitem riscos de desvirtuamento, engessamento, personificação e monopólio
que podem incidir sobre a prática (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019).
Por isso, nesse ponto, quatro advertências são necessárias. Primeira, que, em tema
de JR, deve-se sempre manter o compromisso com essa potência transformadora “e
não fazer concessões para a busca de resultados fáceis”. Com isso se evita que ocorra
o desvirtuamento da essência da JR (PENIDO; MUMME, 2014). Segunda, que no
campo da violência não há soluções baseadas em fast food ou analgésicas, mas sim
por meio da implementação de uma cultura de paz consubstanciada nas dimensões
relacionais, institucionais e sociais (PENIDO; MUMME, 2014). Terceira, os ope-
radores devem evitar se transformar em “rábulas da JR”, aplicando-a apenas como
mero procedimento de resolução de conflitos, sem consideração de sua principio-
logia, seus valores e suas dimensões. A JR é uma política pública transformadora,
com princípios, valores e metodologia próprios, indo muito além da finalidade de
solucionar um conflito. E a quarta advertência, para que não se percam as caracte-
rísticas essenciais da JR, deve haver um “exercício contínuo e sistemático de refle-
xão e ação” (PENIDO; MUMME, 2014). Portanto, as propostas que serão feitas, no
tocante à aplicação da JR, não significam um caminho fechado e terminado, mas,
ao contrário, algo aberto e em construção, que merece sempre reflexão contínua,
visando a seu aperfeiçoamento (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2002).
Como, então, fazer essa adaptação e essa operacionalização? Aqui estamos
diante de um dos pontos mais sensíveis, que se consubstancia em como fazer a deri-
vação do caso concreto para a JR. Toda atenção é necessária sobre tais etapas e sobre
o fluxo a ser desenvolvido.
Tendo em vista que o ANPP é negociado pelo Ministério Público, o primeiro
ponto é o promotor ou o procurador da República verificar, durante as tratativas,

12 Os considerandos da Resolução n. 225 do CNJ permitem outras “portas de entrada”, como a Lei
n. 9.099/1995 e a Lei n. 12.594/2013. Veja: “CONSIDERANDO que os arts. 72, 77 e 89 da Lei
9.099/1995 permitem a homologação dos acordos celebrados nos procedimentos próprios quando
regidos sob os fundamentos da Justiça Restaurativa, como a composição civil, a transação penal
ou a condição da suspensão condicional do processo de natureza criminal que tramitam perante
os Juizados Especiais Criminais ou nos Juízos Criminais; CONSIDERANDO que o art. 35, II e III,
da Lei 12.594/2012 estabelece, para o atendimento aos adolescentes em conflito com a lei, que os
princípios da excepcionalidade, da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo
meios de autocomposição de conflitos, devem ser usados dando prioridade a práticas ou medidas
que sejam restaurativas e que, sempre que possível, atendam às vítimas; [...]”.
13 Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judici
arios-1/publicacoes-1/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publica
coes-1/copy_of_Jornada%20de%20Direito%20Administrativo%20-%20Enunciados%20aprova
dos/?_authenticator=f147b8888b42ee73c25f9f3ea6258093fadd0b5a.

82
três pontos preliminares: (I) preenchidos os requisitos legais do ANPP, se o caso se
mostra adequado a ser derivado para a JR; (II) se já existem projetos de JR implan-
tados na comarca ou subseção judiciária; (III) se o autor do fato e a vítima têm
interesse em participar do procedimento restaurativo.
Vejamos separadamente.
Sobre a adequação do caso à JR, é importante destacar que a questão diz
menos respeito à natureza do crime e mais às questões pertinentes aos envolvidos
no conflito. Em tese, praticamente todos os crimes passíveis de ANPP autorizam
a derivação para a JR, não existindo uma seleção apriorística das condutas que
podem ser trabalhadas. Há, no entanto, alguns tipos de crimes em que a JR poderá
ter um potencial transformador mais efetivo do que em outros. Na análise da
adequação da derivação do caso à JR podem ser apontados alguns parâmetros.
O sucesso da derivação depende mais de considerações pessoais, como atitudes
das partes, sentimentos, motivações e situações sociais, do que propriamente as
características formais do tipo de crime (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA,
2020). Respeitados os requisitos legais para o ANPP, é possível a aplicação da JR
para os mais variados casos. Conforme já foi dito, mesmo nas hipóteses em que
não há vítima determinada, como nos crimes praticados contra o meio ambiente,
o caso pode ser derivado para a JR. Alguns critérios podem auxiliar o membro do
MP a fazer o juízo de adequação da derivação. Boonen afirma que, em geral, os
autores que estudam o tema entendem quatro condições necessárias para que o
ofensor possa acessar o procedimento restaurativo (BOONEN, 2011): (I) confron-
tar-se com o ato e com suas consequências, a partir de sua perspectiva e do outro;
(II) assumir a responsabilidade pelo fato; (III) assumir as consequências do dano
causado; (IV) adotar mecanismos de restauração.
Interessante que nada impede que o magistrado provoque o MP sobre a adequa-
ção da JR ao caso concreto. O magistrado, embora não possa interferir no mérito do
ANPP, exerce o poder de fiscalização do acordo e – relevante para o presente caso
– o de estímulo à atividade das partes em firmar acordos. Como lembra Antonio
do Passo Cabral, a partir dessa atividade de incentivo e de sua função de fomento
aos acordos, incidem também os deveres de diálogo (ou engajamento no debate),
esclarecimento e consulta (CABRAL, 2018). Justamente com base nesse poder de
estímulo é que o magistrado pode intimar o MP para que se manifeste sobre a pos-
sibilidade de se valer da JR no âmbito do ANPP. Da mesma forma, a vítima e o autor
do fato também podem solicitar ao MP que derive o caso à JR. Portanto, embora a
decisão final de derivação para a JR no âmbito do ANPP seja do membro do MP,
nada impede que seja estimulado a tanto pelo juiz ou pelos interessados.
Respondida positivamente a primeira indagação – sobre a adequação da JR –,
urge, então, verificar se há núcleos de JR na localidade. Esses núcleos funcionam
como os “polos irradiadores”, ou seja, espaços que implementam os programas
de JR à luz das três dimensões já mencionadas (relacional, institucional e social)
(PENIDO; MUMME, 2014). Em geral, são vinculados, direta ou indiretamente,
ao Poder Judiciário e à equipe técnico-científica e coordenados por magistrados,
nos termos do art. 5º da Resolução n. 225 do CNJ. Nesse sentido, no âmbito da
Justiça Federal foi criado, em dezembro de 2019, o Centro de Justiça Restaurativa
(Cejure), órgão vinculado à Diretoria do Foro com atuação em primeiro grau em
toda a Seção Judiciária de São Paulo.
83
Em seguida, deve-se indagar se o autor do fato, voluntária e conscientemente,
quer participar do procedimento restaurativo.14 Essa decisão, conforme repisado em
várias oportunidades, deve ser voluntária e plenamente informada. Isso significa
que as partes e seus advogados devem ser informados adequadamente sobre seus
direitos, a natureza do procedimento e as possíveis consequências das decisões e dos
acordos ali firmados (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020). Por isso, se
uma das partes envolvidas não for capaz de compreender o significado do processo
restaurativo, não se deve derivar o caso à JR, conforme o item 13 da Recomendação
n. 19, de 1999, do Comitê de Ministros do Conselho da Europa. Não se pode impor,
direta ou indiretamente, ao autor do fato que se submeta ao procedimento restaura-
tivo, sob pena de haver um vício de origem e o desvirtuamento da JR. A presença da
vítima, como já mencionado, é opcional, porém com papel central.
Aqui é importante refletir sobre a melhor forma de derivação e o momento mais
indicado para contatar o autor do fato e seu defensor. Identificamos duas opções
possíveis: a derivação sem contato e a derivação com contato.
Na primeira – derivação sem contato –, o membro do MP, ao analisar que o
caso é adequado à JR, faz a derivação sem qualquer contato prévio com a vítima,
com o autor do fato e seu defensor, ficando a cargo dos núcleos de JR a atribuição
do contato inicial. Nesse caso, a derivação permitirá a confecção do convite oficial,
a partir do próprio núcleo de JR, com o intuito de sensibilizar as partes envolvidas.
Em tais núcleos há profissionais capacitados e bem treinados para iniciar o processo
de apresentação da proposta restaurativa. Essa opção tem uma clara vantagem, pois
evita que nessa primeira conversa o membro do Ministério Público, por falta de
capacitação adequada, possa “queimar uma etapa decisiva”, desestimulando a con-
tinuidade. Mesmo com excelente capacidade técnica e com toda a boa vontade, o
membro do Ministério Público, geralmente, ainda não é capacitado e treinado para
as práticas restaurativas, e sua fala pode incutir uma resistência inicial à aceitação
do procedimento proposto, trazendo prejuízo, muitas vezes incontornável, para
o desfecho do trabalho. No entanto, a derivação “sem contato” traz um potencial
risco: há a probabilidade de o autor do fato, ao receber o convite para a JR, consultar
seu advogado e este desestimular a participação, caso não esteja esclarecido acerca
do procedimento, ainda mais se formulado no bojo de uma negociação de ANPP.
Dito de outra forma, a ausência de consulta prévia ao advogado pode amplificar a
resistência à adoção da JR, em especial por desconhecimento do que representa a
referida e inovadora política pública, e, ainda, por não ter o advogado participado
do encaminhamento da construção da solução.
Uma segunda opção é a derivação “com contato”. Nessa, o membro do Ministério
Público, entendendo que o caso é adequado à JR, faz um contato preliminar com
o advogado, esclarecendo que irá encaminhar o caso para a via restaurativa. Esse
contato preliminar pode ser por telefone, por e-mail ou por qualquer meio de
comunicação legítimo, certificando-se nos autos. Caso o membro do MP entenda

14 Boonen, citando pesquisa feita na Justiça Restaurativa no contexto alemão, assevera que 84% dos
ofensores aceitou ou desejou buscar a Justiça Restaurativa pelos seguintes motivos: (I) alcançar
posição mais confortável dentro dos procedimentos processuais, (II) encerrar o processo mais
rapidamente, (III) pedir desculpas para a vítima e (IV) restaurar as consequências de seus atos
(BOONEN, 2011).

84
necessário, pode fazer uma reunião prévia, convidando o defensor e/ou o autor do
fato. Nesse caso não deve ser feita intimação formal.15 Basta um convite, que será
suficiente para atingir a formalidade mínima necessária para registro do ato. Nesse
contato, o objetivo deve ser duplo. Primeiro, que o membro do MP esclareça sobre
o ANPP e se desincumba de seus deveres informacionais nesse tema, conforme vis-
to.16 O segundo – e o mais relevante para o presente estudo – é uma apresentação
superficial do que é a JR, esclarecendo que será encaminhado o convite pelo Centro
de Justiça Restaurativa e que, caso aceitem participar do procedimento restaura-
tivo, o plano de ação firmado em tal procedimento será colocado como a única
condição do ANPP. Não é o momento para questionar se o autor do fato possui ou
não interesse em participar do procedimento de Justiça Restaurativa, pois isso será
tratado pelos profissionais do Centro de Justiça Restaurativa, devidamente capa-
citados para oferecer a melhor abordagem possível. O objetivo do ato é informar a
intenção ministerial de proceder à derivação do caso e esclarecer eventuais dúvidas.
A derivação “com contato” pode se mostrar mais adequada se o autor do fato já
tiver advogado durante a investigação, seja para sensibilização quanto às vantagens
do procedimento, evitando uma resistência fruto do desconhecimento, seja porque,
nesse caso, não haverá as dificuldades naturais de nomear um advogado para o
investigado. Segundo nos parece, sempre que possível é melhor o caminho da deri-
vação sem contato, pois potencializa a eficiência da JR. De qualquer sorte, o membro
do MP é que deve optar pela derivação, com ou sem contato, à luz do caso concreto.
A vítima, ao nosso ver, pode ser contatada diretamente pelo Centro de Justiça
Restaurativa, sendo desnecessário prévio contato pelo MP. Com isso não se quer
menosprezar o papel da vítima no ANPP, mas sim permitir que ela tenha um aco-
lhimento ainda mais adequado do que seria feito pelo membro do MP.
Em prosseguimento, o membro do MP formaliza a derivação do caso à JR, de
onde sairão os convites iniciais ao autor do fato e à vítima. Nesse ponto, deve-se ter
cuidado com a linguagem utilizada no envio do caso, evitando prejulgamentos ou
expressões que indiquem culpabilidade. A melhor expressão para se fazer referência
ao autor da conduta é “autor do fato”, nos mesmos moldes da Lei n. 9.099/1995.
Ainda sobre o encaminhamento, a solicitação deve estar instruída com as princi-
pais peças procedimentais ou de cópia integral da investigação, de modo a permitir
que o facilitador e a equipe técnica possam tomar contato com as peculiaridades
do caso e decidir o melhor procedimento a ser tomado. Por fim, importante que a
decisão de derivar o caso para a JR seja acompanhada de um razoável tempo limite
dentro do qual as autoridades de justiça devem ser informadas sobre o estado do
procedimento, nos termos do item 16 da Recomendação n. 19, de 1999, do Comitê
de Ministros do Conselho da Europa.
Feita a derivação, nos núcleos ou centros de JR é possível que ocorram, inclusive,
os chamados “pré-círculos”, na hipótese do processo circular (que, conforme visto,
tem maior incidência em âmbito nacional). Trata-se de sessões prévias, em que os

15 Diante do caráter voluntário, nem a vítima nem o autor do fato devem ser intimados para participar
da Justiça Restaurativa. Nesse sentido, é expressa a vedação prevista na parte final do caput do art.
8º da Resolução n. 225 do CNJ: “[...] vedada qualquer forma de coação ou a emissão de intimação
judicial para as sessões”. Devem, portanto, ser convidadas.
16 Sobre o tema, cf. Item 2.

85
profissionais especializados e capacitados poderão esclarecer previamente as dúvi-
das dos envolvidos para que possam tomar uma decisão plenamente informada.
Esses encontros são realizados de maneira separada com as pessoas diretamente
envolvidas em cada caso (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020). Segundo
Boonen, os pré-círculos “permitem aos facilitadores criar um quadro de condições
para a vítima e o agressor participarem voluntariamente do círculo” (BOONEN,
2011). E apenas se chegará à realização do círculo quando se perceber que todos que
o integrarão já estão prontos para o encontro.
Sendo positivo o resultado dos pré-círculos e havendo possibilidade de continui-
dade, segue-se o procedimento restaurativo rumo à realização do círculo.
Importante salientar, uma vez mais, que no decorrer da prática restaurativa não
há participação ou interferência do órgão ministerial ou do juiz natural da causa na
condução do procedimento restaurativo ou nos encontros circulares. Isso se deve ao
fato de que a participação de tais autoridades tem alto potencial de inibir a construção
do ambiente seguro para que as pessoas partilhem suas histórias e seus sentimentos
mais profundos, diante de um justificado receio de utilização posterior das informa-
ções externamente, inclusive no âmbito do processo penal (SALMASO, 2016). Sobre
a participação de advogados no círculo, é importante reforçar que o autor do fato
tem o direito de solicitar orientação jurídica em qualquer estágio do procedimento
(art. 2º, § 3º, da Resolução n. 225 do CNJ). Assim, o autor do fato pode consultar
seu advogado a qualquer momento, inclusive antes de assinar o plano de ação, cons-
truído em consenso pelas partes, bem como pode se retratar a qualquer momento, até
a homologação do acordo restaurativo. No entanto, o diferencial da JR é que esta se
baseia em lógica diversa da do sistema tradicional de justiça, empoderando as partes
para que participem diretamente da solução do conflito e sejam os verdadeiros pro-
tagonistas, com escuta e voz ativas, e não por meio de representantes. Por essa razão,
a condução é feita pelo facilitador, imparcial e qualificado para tal fim. Nas práticas
restaurativas não há acusação, instrução, julgamento e muito menos aplicação de
qualquer forma de sanção. Ao contrário, a solução é construída voluntária e coleti-
vamente, de maneira dialógica e horizontal, com a participação ativa do autor do fato
na construção do consenso, com suas necessidades consideradas. Em conclusão, por
estarem resguardadas as prerrogativas da defesa técnica no decorrer de toda a prática
restaurativa, inexistindo prejuízos aos interesses do autor do fato, a participação do
advogado no pré-círculo, e no círculo em si, não é recomendável, mas, caso se mostre
inevitável, deve ocorrer na condição de membro da comunidade (SALMASO, 2016).
Por sua vez, é a equipe técnica quem verificará o procedimento restaurativo
mais adequado para o caso concreto (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA,
2020). Serão realizadas sessões restaurativas e, ao final, poderá ser obtido ou não
um acordo. Segundo a Resolução n. 2002/12 da ONU,
resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo
que inclui respostas e programas, tais como reparação, restituição e serviço comu-
nitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e responsabili-
dades das partes, bem como promover a reintegração da vítima e do ofensor.
O acordo estabelecido pelos participantes da prática restaurativa conterá um
plano de ação com os pactos estabelecidos, nos termos do art. 8º, § 4º, da Resolução
n. 225 do CNJ. As obrigações estabelecidas não estão limitadas às penas previstas no

86
Código Penal ou no modelo tradicional. Pode-se, por exemplo, prever que o autor do
fato reconstrua o muro que derrubou. Nesse âmbito, deve-se respeitar a autonomia
das partes e a centralidade das decisões pactuadas no procedimento restaurativo,
sob pena de se descaracterizar a JR. O acordo pode incluir pedidos de desculpas,
plano de acompanhamento da conduta do ofensor, prestação de serviço em bene-
fício da vítima e/ou da comunidade, reparação financeira ou qualquer outra provi-
dência acordada durante o encontro restaurativo que possa reparar o dano causado
pelo autor do fato (SICA, 2007). É importante que o ofensor, de maneira ativa e
consensual, responsabilize-se por reparar os danos causados à vítima e à coleti-
vidade, bem como assuma novos comportamentos e atitudes. Também a vítima
pode assumir obrigações, caso ostente responsabilidade pelo ocorrido. Por vezes,
a comunidade pode se comprometer a sanar falhas e omissões e também a garantir
apoio ao ofensor e à vítima, por meio da Rede de Garantia de Direitos, presente no
procedimento restaurativo (SALMASO, 2016).
No entanto, há alguns limites a tais acordos. Pelo que se depreende da norma-
tiva internacional e da Resolução n. 225 do CNJ, o primeiro limite é que as obri-
gações devam ser razoáveis e proporcionais. Não podem ter, portanto, duração
excessiva. O segundo é que respeitem a dignidade de todos os envolvidos – vedan-
do-se, assim, medidas degradantes ou humilhantes. Esses dois limites decorrem
do art. 2º, § 5º, da Resolução n. 225 do CNJ. Por fim, um terceiro limite é que os
acordos não podem afrontar a lei.
Quem redige o acordo final, com suas condições e prazos, é o facilitador.
Nesse documento devem constar os pontos acordados, de maneira clara e precisa,
com as condutas restaurativas a serem praticadas por cada um dos participantes,
garantias e consequências ante o descumprimento, a forma de acompanhamento
do cumprimento, inclusive com marcação de encontros e/ou contatos telefônicos
entre os envolvidos. Caso não haja acordo, o documento deverá conter apenas os
dados dos participantes e a informação de que o procedimento não chegou a um
acordo (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020). Em razão do princípio da
confidencialidade, não deve constar do documento o que se discutiu nas sessões, os
motivos pelos quais não se chegou a um acordo, nem se expressar qualquer julga-
mento sobre o comportamento das partes durante o procedimento (CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020).
O documento com o resultado do procedimento deve ser encaminhado ao
Ministério Público. Não havendo acordo, o caso é devolvido para o MP, para nego-
ciação tradicional. Na hipótese de acordo restaurativo, o MP assinará o ANPP com
o autor do fato e seu defensor e, eventualmente, a vítima, tendo como condição, nos
termos do art. 28-A, V, do CPP, o cumprimento do plano de ação firmado. Alguns
pontos se colocam nessa etapa.
Primeiro, a necessidade de o membro do Ministério Público observar estrita-
mente o princípio da confidencialidade. Não deve se imiscuir em temas discutidos
no procedimento restaurativo ou questionar acerca destes. Deve se basear no plano
de ação e em eventual documentação enviada pela equipe técnica.
Segundo ponto é que o plano de ação pode envolver a corresponsabilidade de
várias pessoas diversas do autor do fato. Nesse caso, somente serão objeto do ANPP as
obrigações assumidas pelo autor do fato, embora isso não afaste a possibilidade de que

87
os corresponsáveis cumpram, no procedimento restaurativo, as condições assumidas
e que o plano de ação global seja encaminhado ao juízo, juntamente com o ANPP.
Terceiro ponto é que não é possível cumular o cumprimento do plano de ação
com outras condições não provenientes do procedimento restaurativo, por mais que
isso se mostre tentador para o Ministério Público. A premissa da JR é que haja uma
construção da solução pelos próprios envolvidos, não se podendo admitir a impo-
sição de condições por terceiros que não participaram do procedimento, sob pena
de cooptação e desvirtuamento dos princípios da JR. Ao se admitir a imposição
de outras condições, diversas das pactuadas no procedimento restaurativo, estaria
havendo uma mescla indevida da principiologia do sistema punitivo tradicional
com a da JR, criando um tertium genus indevido. Ademais, haveria possível viola-
ção ao princípio do ne bis in idem, pela imposição de medidas de JR com medidas do
sistema tradicional. Assim, somente condições acessórias e que não digam respeito
ao mérito devem ser previstas, como eventual comunicação da alteração de ende-
reço, por exemplo. É interessante e recomendável que, dentre as cláusulas do ANPP
envolvendo JR, seja prevista a possibilidade de que, em caso de eventual descum-
primento, as partes sejam reencaminhadas para a JR, com o intuito de buscar uma
nova solução para o caso, a partir do diálogo entre os próprios interessados.
Quarto ponto é que o art. 28-A do CPP exige, como requisito legal do ANPP, que
haja confissão da infração penal, em que o autor do fato reconheça a prática delitiva.
É importante verificar como compatibilizar esse ponto com a JR, em especial para
que a principiologia desta não seja prejudicada. Conforme dito, embora haja contro-
vérsia no tema, a doutrina vem apontando que a finalidade maior e mais importante
da confissão no ANPP é evitar que acordos sejam firmados com pessoas inocentes.
Por sua vez, já foi visto que uma das premissas da JR é que o agente reconheça
como verdadeiros os fatos essenciais, ainda que em ambiente confidencial incomu-
nicável com a instrução penal, conforme se extrai do art. 2º, § 1º, da Resolução n.
225 do CNJ. Pode-se afirmar que, em princípio, o reconhecimento dos fatos como
verdadeiros e a participação no procedimento restaurativo, inclusive com a assi-
natura do plano de ação, são garantias mais consistentes no sentido de que não se
está fazendo um acordo com um inocente do que a mera confissão. Esta, inclusive,
pode ser mendaz e elaborada, em uma análise de riscos, com o único propósito de
firmar o ANPP. À luz dessa interpretação teleológica, o reconhecimento dos fatos e
a participação no procedimento restaurativo são, por si sós, suficientes para atingir
o objetivo da confissão, tornando esse requisito preenchido. Ademais, a participa-
ção voluntária do autor do fato na construção da solução do caso, que atenda as
suas necessidades e os seus interesses, assim como os de todos os envolvidos, indica
que a chance de rescisão do plano de ação é bem menor do que a rescisão de um
acordo entabulado de maneira negocial e com uma autoridade pública. Por isso, a
controvérsia doutrinária sobre eventual utilização ou não da confissão em juízo,
em caso de rescisão do acordo, tem menor relevância no campo da JR. De qualquer
sorte, caso o membro do MP entenda que a confissão, detalhada e circunstanciada,
seja relevante e imprescindível por algum motivo (por exemplo, para utilização em
eventual ação penal futura ou em outra esfera, como na seara da improbidade),
talvez a JR não seja o caminho mais adequado para o caso. Isso porque tal confis-
são, formal e circunstanciada, compromete a principiologia essencial da JR, já que a
Resolução n. 225/2016 do CNJ, em seu art. 2º, § 1º, dispõe que o reconhecimento dos

88
fatos como verdadeiros, no âmbito da JR, deve ocorrer em ambiente confidencial
incomunicável com a instrução penal e não pode implicar admissão de culpa em
eventual retorno do conflito ao processo judicial.
Assinado o ANPP, deve ser submetido à homologação judicial, para permitir que
haja controle sobre seu conteúdo, nos termos do art. 28-A do CPP e à luz do disposto
no art. 8º, § 3º, da Resolução n. 225 do CNJ. Nesse momento, é relevante que o membro
ministerial, na petição de submissão do caso à homologação ou mesmo pessoalmente,
esclareça, ainda que brevemente, em que consiste a JR, visando afastar preconceitos e,
especialmente, sensibilizar os magistrados sobre os potenciais de sua aplicação.
Para a homologação, a lei prevê a designação da audiência na qual o juiz deverá
verificar a voluntariedade, por meio da oitiva do autor do fato, na presença do seu
defensor, nos termos do art. 28-A, § 4º, do CPP. No entanto, no caso de prévio pro-
cedimento restaurativo, em que os pré-círculos e círculos tenham sido realizados
dentro do próprio Poder Judiciário, no Centro ou Núcleo de Justiça Restaurativa,
coordenado por um juiz, por exigência da própria Resolução n. 225/2016 do CNJ, a
finalidade da audiência de homologação pode se mostrar desnecessária, visto que
a condução do acordo restaurativo perante o próprio Poder Judiciário assegura a
voluntariedade. De qualquer forma, caso ocorra a audiência, o magistrado deve
resguardar o princípio da confidencialidade do procedimento restaurativo, focando
sua atenção no plano de ação.
É relevante destacar que a atividade do Judiciário é fiscalizatória. O magistrado
não pode alterar o conteúdo do acordo, seja para impor outras condições ou alterar
as condições impostas (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020). Repita-se:
o juiz tem duas opções: recusar a homologação do acordo ou devolver para reade-
quações pelas partes. A Corte Europeia de Direitos Humanos já asseverou que, em
princípio, em casos envolvendo o consenso, o Judiciário tem o poder de aprovar ou
rejeitar, mas não de modificar seus termos (CORTE EUROPEIA DE DIREITOS
HUMANOS, 2014). Isso é reforçado pelo teor do art. 28-A do CPP, em especial pelo
seu § 7º,17 e pelo item 18.1 da Orientação Conjunta n. 3/2018 das Câmaras do MPF. O
magistrado tem poder para determinar que as partes possam realizar adequações ao
acordo, caso considere inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispos-
tas no ANPP, nos termos do art. 28-A, § 5º, do CPP. No entanto – e isso é crucial –,
o magistrado somente deve determinar adequações em situações absolutamente

17 Inclusive, essa impossibilidade de o juiz alterar as condições do acordo é reforçada pelas alterações
incluídas pelo Pacote Anticrime (Lei n. 13.964/2019). O art. 28-A, § 7º, do CPP assevera que o
“juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando
não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo”. Por sua vez, o art. 28-A, § 5º, do
CPP dispõe: “Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no
acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada
a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor”. Assim, há ao juiz duas
alternativas: recusar homologação ou determinar que o MP faça a adequação. Não pode ele mesmo
alterar o acordo. Inclusive, é interessante que o Pacote Anticrime também vedou essa possibilidade
ao juiz na colaboração premiada. A antiga redação do art. 4º, § 8º, da Lei n. 12.850/2013 previa que
o juiz poderia recusar homologação à proposta de acordo que não atender aos requisitos legais,
“ou adequá-la ao caso concreto”. No entanto, a nova redação dada a esse dispositivo pelo Pacote
Anticrime excluiu a possibilidade de o juiz fazer a adequação. Passou a prever o seguinte: “O juiz
poderá recusar a homologação da proposta que não atender aos requisitos legais, devolvendo-a às
partes para as adequações necessárias”.

89
excepcionais, respeitando a centralidade dos envolvidos, a voluntariedade do pro-
cedimento restaurativo e a sua condução por um facilitador restaurativo capacitado
e imparcial. Desde que as obrigações sejam razoáveis e proporcionais, respeitem
a dignidade de todos os envolvidos, conforme deflui do art. 2º, § 5º, da Resolução
n. 225 do CNJ, e não afrontem a lei, o acordo deve ser homologado. De qualquer
forma, em situações excepcionais, caso entenda que devam ocorrer adequações,
deve apenas devolver o acordo para que essas sejam feitas pelos próprios envolvi-
dos, de maneira dialógica, assegurando-se, assim, a própria centralidade das partes
na resolução do conflito. Tais adequações, inclusive, devem ocorrer no bojo de um
procedimento restaurativo. Por isso, em caso de necessidade de adequações, o ideal
é que o MP encaminhe o procedimento para o Centro de Justiça Restaurativa, para
que haja eventual reformulação do acordo.
Uma vez homologado o acordo, a fiscalização pode se dar de duas formas, a
depender do quanto acordado no plano de ação. Se o cumprimento for imediato, o
acompanhamento das condições poderá ser feito pelo Centro de Justiça Restaurativa,
por meio, entre outros, do pós-círculo, que tem “como função observar e zelar pela
realização do acordo estabelecido durante o círculo restaurativo” (BOONEN, 2011).
É possível que a rede de apoio auxilie no acompanhamento das condições. Por sua
vez, se o cumprimento previsto no plano de ação for postergado no tempo (como
prestação de serviços por determinado período), a fiscalização pode se dar pelas
Varas de Execuções Penais ou pelas Centrais de Penas Alternativas (Cepema).
Havendo descumprimento do acordo, o ideal é que as partes sejam reencaminha-
das para a JR, com o intuito de que sejam realizados novos encontros entre as pes-
soas, separada ou conjuntamente, visando reafirmar o acordo e restabelecer o prazo,
caso haja interesse dos envolvidos (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020).
Sempre que possível, isso deve ocorrer dentro da esfera e das ambiências da JR, sendo
recomendável, conforme dito, que conste no ANPP cláusula nesse sentido (realiza-
ção de pós-círculo para acompanhamento). No entanto, caso haja descumprimento
definitivo do acordo, a informação deve ser remetida para o MP ou para o Judiciário,
para as providências cabíveis. Segundo nos parece, nesse caso, como já houve acordo
homologado, o descumprimento das condições acordadas permite que o MP ofereça
denúncia, não sendo o caso de reabrir negociações para novo ANPP.
Em síntese, portanto, o fluxo pode ser representado pelas seguintes etapas: (I) o
membro do MP entende que já há justa causa (em geral, com o inquérito relatado);
(II) avalia se é cabível o ANPP e, ainda, se a JR é adequada para o caso; (III) em caso
positivo, avalia se é o caso de derivar com ou sem contato – ou seja, se contata previa-
mente ou não o advogado e/ou o autor do fato; (IV) em seguida, formaliza a derivação
do procedimento para a JR; (V) o Centro de Justiça Restaurativa providenciará os
convites para os pré-círculos, direcionados para a vítima e para o autor do fato, para
informação e esclarecimentos, com a possibilidade de continuidade do procedimento
restaurativo de maneira voluntária; (VI) caso não haja acordo no procedimento res-
taurativo, o caso é devolvido para o MP, para negociação tradicional; (VII) se hou-
ver um acordo e for firmado o plano de ação, este é encaminhado ao MP; (VIII) o
membro do MP assinará o ANPP, juntamente com o autor do fato, seu advogado e,
eventualmente, a vítima, tendo como única condição principal o cumprimento do
estabelecido no procedimento restaurativo; (IX) assinado o acordo, este é submetido

90
à homologação judicial, mediante petição fundamentada; (X) o magistrado poderá
designar audiência para ouvir o autor do fato e seu defensor, especialmente para aferir
a voluntariedade; no entanto, caso o acordo restaurativo tenha sido realizado dentro
da estrutura do próprio Poder Judiciário (Centro de Justiça Restaurativa), referida
audiência pode se mostrar desnecessária, uma vez que garantida a sua voluntarie-
dade; (XI) caso o magistrado identifique algum óbice legal à homologação, pode
excepcionalmente devolver os autos para que as partes realizem adequações, o que
deve ser feito no bojo do procedimento restaurativo; (XII) homologado o acordo, o
cumprimento do plano de ação poderá ser feito no Centro de Justiça Restaurativa, se
for passível de cumprimento imediato (em geral no pós-círculo), ou perante a Vara
de Execuções Penais, se as condições forem postergadas no tempo; (XIII) cumprido
o plano de ação e, assim, por via de consequência, o ANPP, será declarada extinta a
punibilidade; (XIV) em caso de descumprimento do plano de ação, o ideal é que as
partes sejam reencaminhadas para a JR, visando reafirmar o acordo e restabelecer o
prazo, caso haja interesse dos envolvidos; se não houver possibilidade, o caso retorna
ao MP para oferecimento de denúncia.

5 ∙ CONCLUSÃO
Tanto o ANPP como a JR são temas novos no contexto jurídico e social do País.
A introdução de cada um no cenário nacional merece profundo zelo e reflexão. A
questão se torna ainda mais relevante quando se busca verificar a confluência de
ambos, especialmente porque pautados em premissas bastante diversas.
O ANPP representa um grande avanço para revolucionar a persecução penal
no Brasil, diante de suas características e amplitude. Poderá permitir que o sis-
tema punitivo seja reservado para situações de maior gravidade, assegurando,
também, uma prestação jurisdicional mais célere e a diminuição da estigmatiza-
ção do investigado pelo processo.
Por sua vez, a JR, muito além de apenas um método de resolução de conflitos,
traz uma verdadeira transformação social, intencionando a construção efetiva da
cultura de paz, buscando uma mudança de paradigmas em todas as dimensões da
convivência e do conflito – relacional, institucional e social (SALMASO, 2016).
Por isso, buscou-se demonstrar as potencialidades desse novo olhar e a razão pela
qual se deve, sempre que possível, estimular o uso da JR, com a observância dos
seus princípios e valores.
Quando se instruem processos no sistema tradicional de justiça penal (retributivo-
-punitivo), os atores da relação processual atuam olhando pelo “buraco da fechadura”
(em um limitadíssimo recorte da realidade). Por sua vez, a JR tem a “chave que abre a
porta”, acessando o conflito em suas múltiplas dimensões, identificando suas raízes e
gatilhos, e adentrando nas águas profundas da assunção coletiva de responsabilidades
pelo fenômeno da violência. Esse despertar de saberes e olhares trazido pela JR viabi-
liza a construção consciente de solução adequada e duradoura para o dano causado
ao corpo social, nascendo um espaço para a transformação de todos os participantes
do processo restaurativo, plantando-se em terreno fértil a semente da paz, do respeito
e da união (fraternidade). E o plantio dessa semente no âmago de cada indivíduo que
compõe o corpo social previne novos danos (a reiteração da conduta).

91
Verificou-se que a JR pode fazer parte da revolução trazida pelo ANPP, permi-
tindo, assim, que uma “dupla revolução” ocorra: uma revolução jurídica e uma revo-
lução social. Para tanto, o presente artigo buscou visibilizar a JR e sensibilizar os ope-
radores do sistema de justiça para a utilização do ANPP como “porta de entrada” para
a aplicação da JR na seara penal. O ANPP pode configurar, portanto, um importante
instrumento de transição do paradigma punitivo para o paradigma restaurativo, res-
peitando-se os princípios e valores estruturais de cada um dos institutos.
O que se acredita é que aquele que tiver a oportunidade da derivação do seu con-
flito para a JR estará tendo uma nova oportunidade de vida – não apenas a chance de
evitar o processo criminal – pela possibilidade de mudar a condução da sua própria
existência, conhecendo a si mesmo e ao outro, entendendo as razões de seus atos e a
possibilidade concreta de mudança de comportamentos, em um caminho de transfor-
mação individual e coletiva, um verdadeiro convite para o bem e para o valor Justiça!

REFERÊNCIAS
BOONEN, Petronella Maria. A justiça restaurativa, um desafio para a educação. 2011.
Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2011.
CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Conciliação e mediação: perguntas e respostas.
Brasília: CNJ, 2017.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Manual de gestão para as alternativas penais.
Brasília: CNJ, 2020.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório analítico propositivo mediação e
conciliação avaliadas empiricamente: jurimetria para proposição de ações eficientes.
Brasília: CNJ, 2019.
CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of Aksoy v. Turkey. Application
n. 21987/93. Julgamento em 18.12.1996. Disponível em: https://hudoc.echr.coe.int/fre#{
%22itemid%22:[%22001-58003%22]}.
CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case Natsvlishvili and Togonidze v.
Georgia. Application n. 9043/05. Julgamento em 8.9.2014. Disponível em: https://hudoc.
echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-122692%22]}.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). Caso Gomes Lund e
outros v. Brasil. Sentença de 24.11.2010. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_219_por.pdf.
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES,
Antônio Scarance; GOMES, Luiz Flávio. Juizados especiais criminais. São Paulo: RT, 1996.
HOPPE, Harold. O consenso como meio de simplificação do procedimento criminal:
perspectivas e possibilidades no processo penal. 2018. Dissertação (Mestrado em
Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.
MENDONÇA, Andrey Borges de. Acordo de não persecução penal e o pacote anticrime
(Lei n. 13.694/2019). In: GONÇALVES, Antonio Baptista. Lei Anticrime: um olhar
criminológico, político-criminal, penitenciário e judicial. São Paulo: RT, 2020. No prelo.

92
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 2002/12, de 24 de julho de 2002.
Regulamenta os princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa
em matéria penal. Disponível em: http://www.unhcr.org/refworld/docid/46c455820.html.
PENIDO, Egberto de Almeida; MUMME, Monica. Justiça restaurativa e suas dimensões
empoderadoras. Como São Paulo vem respondendo o desafio de sua implementação.
Revista do Advogado, São Paulo, ano XXXIV, n. 123, p. 75-82, ago. 2014.
SALMASO, Marcelo Nalesso. Uma mudança de paradigma e o ideal voltado à construção
de uma cultura de paz. In: CRUZ, Fabrício Bittencourt da (coord.). Justiça restaurativa:
horizontes a partir da Resolução CNJ 225. Brasília: CNJ, 2016. p. 15-64.
SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal
e de gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Habeas Corpus Criminal
2070494-55.2020.8.26.0000. Relator: Xisto Albarelli Rangel Neto. Órgão Julgador: 3ª Câmara
de Direito Criminal. Data do Julgamento: 6 de maio de 2020. Disponível em: https://tj
-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/890689261/habeas-corpus-criminal-hc-207049455
20208260000-sp-2070494-5520208260000/inteiro-teor-890689375?ref=juris-tabs.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Programa Justiça
Restaurativa para o Século 21. Porto Alegre: TJRS, 2015.
WILSON, Robin J.; CORTONI, Franca; MCWHINNIE Andrew J. Circles of support &
accountability: a canadian national replication of outcome findings. Sexual Abuse, New
York, v. 21, n. 4, p. 412-430, 2009.
ZEHR, Howard. Justiça restaurativa. São Paulo: Palas Athena, 2012.

93
GESTÃO DE PESSOAS E A GARANTIA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Construindo organizações saudáveis em tempos de pandemia

Cléria Nunes1
Cynthia de Moura Orengo2

Sumário: 1 Introdução. 1.1 Programa Bem Viver. 1.2 Pandemia do novo coronavírus e as
ações do bem viver. 2 Direitos fundamentais. 2.1 As dimensões dos direitos fundamentais.
2.2 Direitos fundamentais e ações do programa Bem Viver. 3 Psicologia Positiva na
construção de organizações saudáveis. 3.1 Psicologia Positiva, uma ferramenta de
trabalho. 3.2 Organizações saudáveis, objetivo a se alcançar. 4 Metodologia. 4.1 Práticas de
apoio organizacional e gestão relacional como métodos de intervenção. 4.2 Programa Bem
Viver – Investindo nos comportamentos e emoções positivas. 5 Discussão. 5.1 Criação
de canais de comunicação. 5.2 Elaboração de materiais audiovisuais. 5.3 Voluntariado e
responsabilidade social. 5.4 Primeiros atendimentos psicológicos. 5.5 Atividades físicas e
práticas de meditação. 5.6 Atividades culturais. 5.7 Outras ações. 6 Considerações finais.

1 ∙ INTRODUÇÃO
1.1 ∙ PROGRAMA BEM VIVER
O programa Bem Viver, de qualidade de vida e bem-estar no trabalho do
Ministério Público Federal (MPF) em Santa Catarina, iniciou as atividades em
agosto de 2014 e foi regulamentado pela Portaria PR/SC n. 557, de 30 de setembro
de 2015. Baseado em cinco pilares – bem-estar e saúde, atividade física, responsa-
bilidade social, voluntariado e sustentabilidade –, tem como escopo a saúde dos
membros, servidores, estagiários e colaboradores terceirizados – tanto física (por
meio do incentivo à prática de atividades físicas) quanto mental e emocional (com
ações de bem-estar e saúde), bem como desenvolver princípios de cidadania.
Os pilares de responsabilidade social, voluntariado e sustentabilidade ancoram
suas ações nos direitos fundamentais: tanto os de primeira, como os de segunda e
terceira gerações. De acordo com o ministro do STF Celso de Mello:
Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que com-
preendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da

1 Atua na Gestão de Pessoas do MPF – Santa Catarina. Mestranda em Psicologia Positiva nas
Organizações e no Trabalho pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Especialista em Estudos da Comunicação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Especialista em Gestão de Pessoas pela Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU).
2 Coordena a Gestão de Pessoas do MPF – Santa Catarina. Especialista em Gestão de Pessoas pela
Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU).

95
liberdade, e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e cultu-
rais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acen-
tuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam
poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações
sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento
importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos
direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponí-
veis, pela nota de uma essencial inexauribilidade. (BRASIL, 1995, p. 39206).
Ao abordar como qualidade de vida no trabalho (QVT) a realização de ações
nas áreas de responsabilidade social, voluntariado e sustentabilidade, trabalha com
a proteção dos direitos humanos consagrados na Constituição Federal e em con-
sequência com o princípio da dignidade da pessoa humana e, partindo do pressu-
posto que a realização dessas ações produzem felicidade e significado no trabalho,
tornando-se pioneira ao trazer estes conceitos para a Gestão de Pessoas.
Sarlet (2010) diz que, quando a Constituição Federal consagrou expressamente o
princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático
de Direito, objetivou fundamentar o sentido, a finalidade e a justificação do exercício
do poder estatal e do próprio Estado em si. Reconhece, também, que o Estado existe
em virtude da pessoa, e não o contrário, tendo em vista que o ser humano constitui
a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal. O autor enfatiza, ainda, que o
art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 (CF/88) não contém apenas uma
declaração de conteúdo ético e moral, mas demonstra também que o princípio da
dignidade da pessoa humana é uma norma jurídico-positiva de status constitucional
e, como tal, dotada de eficácia capaz de garantir os direitos fundamentais do cidadão.
Ao longo de cinco anos, o programa propôs ações de responsabilidade social,
voluntariado e sustentabilidade que visam a integração, acolhimento e inclusão de
populações vulneráveis da grande Florianópolis e de alguns municípios de Santa
Catarina, objetivando transpor a invisibilidade que atinge essa camada da população.
As ações do programa incluem os colaboradores terceirizados do Ministério
Público Federal. A inclusão no ambiente de trabalho é feita por meio de ações, tanto
de educação e crescimento como de sustentabilidade ambiental. Foi construída
uma horta comunitária no condomínio do MPF – Santa Catarina. Todos plantam,
colhem e compartilham conhecimentos, sem barreiras de cargos e funções, com
colheita direcionada para os colaboradores. Oficina de ecoartesanato, visitas a par-
ques ambientais e museus, realização de rodas de conversa foram propostas com
objetivo de fornecer suporte psicológico e o resgate da dignidade, fazendo com que
os participantes se sintam parte integrante da instituição.
Ações de cidadania foram realizadas em parceria com o projeto Cidades
Invisíveis, organização da sociedade civil que atua na comunidade Frei Damião,
a maior favela do Estado. Lá 12.000 habitantes vivem em condições subumanas,
muitos sem acesso a saneamento básico e a luz elétrica. De acordo com Yunus,
“a pessoa pobre é como um bonsai. Podemos plantar a semente da árvore mais alta,
mas se for colocada num pequeno vaso, ela nunca conseguirá crescer. Não há nada
de errado com a semente, e sim como está sendo cultivada” (BONSAI, 2011, n. p.).
Em Frei Damião, entre as ações desenvolvidas pelos voluntários, destacam-se a
realização de um curso de geração de empregos e oportunidades para mulheres, a cons-
trução da primeira área pública de lazer da comunidade e a instalação de uma horta

96
comunitária. Também houve a participação na construção de uma casa popular e em
ações de saúde e aquelas voltadas para a insegurança alimentar e fornecimento de mate-
rial escolar. Como a comunidade não possui saneamento básico, a incidência de doenças
de pele nas crianças é muito grande em razão da sujeira. Em 2019, por meio de convênio
com o curso de Geografia da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) foi
realizado um trabalho de educação ambiental com os alunos da escola municipal dessa
comunidade, visando a preservação ambiental e a prevenção de doenças.
Nesse sentido, Castilho (2019, p. 262) comenta com muita propriedade que
o natural sentimento de solidariedade e fraternidade que surgiu como reação
aos abusos cometidos durante o período de guerra serviu para que fosse forjada,
na consciência humana, toda uma nova ordem de direitos humanos voltada à
proteção da humanidade como um todo.
O autor cita ainda que integram essa terceira geração de direitos o direito à
paz, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, à comunicação, ao meio
ambiente, ao patrimônio comum da humanidade, entre outros.
Em 2017, o Ministério Público Federal em Santa Catarina recebeu refugiados do
Haiti em seu quadro de colaboradores terceirizados. As dificuldades enfrentadas
por essa população são inúmeras, como a barreira linguística, a questão da vali-
dação dos documentos para obtenção da naturalização, revalidação de diploma, a
ausência de políticas públicas e ainda o enfrentamento do racismo e da xenofobia.
Foram desenvolvidas uma série de ações em prol da visibilidade e acolhimento da
comunidade de refugiados e imigrantes que estão em Santa Catarina, visando, tam-
bém, o combate ao racismo e à xenofobia. “Acolher os refugiados não é apenas um
ato de solidariedade, mas tem a transcendência de um conceito humanitário que
vem sendo construído há décadas” (JUBILUT, 2007, p. 17).
Em parceria com a organização Círculos de Hospitalidade, foi idealizado o
evento “Pedal Humanitário”, que já teve duas edições – 2018 e 2019. Trata-se de
evento inédito que objetivou a visibilidade dos refugiados e imigrantes, acolhimento
e inclusão pela comunidade hospedeira, por meio do combate à crescente xenofobia
que atinge as populações que buscam o refúgio no País. Ao longo dos últimos dois
anos, foram realizados diversos eventos relativos à temática do refúgio e imigração,
enfocando diferentes aspectos. Feiras multiétnicas culturais, com a participação de
imigrantes de diversas nacionalidades e exposição de artes com artistas haitianos,
foram realizadas no Ministério Público Federal. Todos esses eventos tiveram foco
no acolhimento, que é um princípio básico da solidariedade humana. Em razão
da visibilidade das ações realizadas, o programa tornou-se referência nessa área.
“No futuro a paz e a prosperidade de muitos países dependerão de como lidaremos
com as crianças afetadas pelos conflitos de hoje e sua reabilitação e desenvolvimento
posteriores” (CHALENGER; FILIPOVIC, 2008, p. 8).

1.2 ∙ PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS E AS AÇÕES DO BEM VIVER


Dentro do histórico de ações calcadas nos direitos fundamentais, passa-se a
tratar de algumas das que foram implementadas pelo programa de qualidade de
vida e bem-estar no trabalho do MPF em Santa Catarina adotadas para dirimir os
efeitos negativos provocados pelo distanciamento social; antecede breve relato do
contexto da pandemia da Covid-19.

97
No início de dezembro de 2019, em Wuhan, na China, foi reportado o primeiro
caso de infecção causado pelo novo coronavírus, o Sars-Cov-2, uma síndrome
respiratória aguda e severa. Rapidamente, a doença (Coronavirus disease 2019 –
Covid-19) se espalhou em nível global, fazendo com que, no dia 11 de março de
2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) confirmasse a existência da pande-
mia (MOREIRA; PINHEIRO, 2020).
Apesar de ser uma doença ainda em estudo e cercada de dúvidas, entre as cer-
tezas sabe-se que o vírus é de fácil transmissão. Por isso, uma vez que já esteja esta-
belecido, o primeiro objetivo deve ser reduzir os picos epidêmicos, a fim de evitar a
sobrecarga dos sistemas de saúde, o que permite o tratamento e cuidados adequados
à população afetada (VILLELA, 2020).
Na ausência de vacina, para reduzir os impactos da pandemia, a maioria dos
países atingidos têm adotado medidas de isolamento e distanciamento social, entre
elas o fechamento de escolas, comércios, empresas, bem como a autorização do tele-
trabalho na maioria dos casos possíveis. Obviamente, o cuidado com a saúde física
dos infectados e dos profissionais que estão na linha de frente no enfrentamento
da pandemia, bem como o combate ao agente patogênico, tem demandado grande
atenção e esforços em escala global. Contudo, medidas adotadas para reduzir as
implicações psicológicas da pandemia não podem ser desprezadas neste momento
(BROOKS et al., 2020).
Dessa forma, no dia 14 de maio de 2020, a OMS fez nova declaração, agora
referente ao impacto da pandemia na saúde mental das pessoas. Na oportunidade,
ressaltou que a atenção e o apoio à saúde mental devem ser componentes integrados
das nações como respostas necessárias à pandemia da Covid-19 (Reuters, 2020).
Evidências reforçam a necessidade de medidas concretas para dirimir os impactos
psicológicos, como sintomas de trauma decorrente do medo e da percepção de risco,
que podem ser amplificados por informações pouco claras – comuns nos períodos
iniciais de surtos (ZANON et al., 2020).
Estudo recente publicado na revista científica Lancet (BROOKS et al., 2020)
realizou revisão de artigos publicados em dez países sobre diversas doenças (ebola,
influenza H1N1, síndrome respiratória do Oriente Médio, influenza equina e Sars)
que exigiram quarentena de grupos sociais. Os resultados apresentaram que os bene-
fícios potenciais da quarentena obrigatória precisam levar em conta os efeitos negati-
vos associados a ela, principalmente no que se refere aos impactos psicológicos (efeitos
negativos sobre a saúde mental e o bem-estar psicológico das pessoas envolvidas).
Considerando o largo histórico de ações do programa de qualidade de vida e
bem-estar no trabalho do MPF em Santa Catarina calcadas nos direitos funda-
mentais, este artigo vincula a esses direitos fundamentais algumas ações que foram
implementadas pelo referido programa ao longo de cinco anos e, também, aquelas
adotadas para dirimir os efeitos negativos provocados pelo distanciamento social,
tanto no público interno quanto nos grupos mais vulneráveis, foco de atuação do
programa desde sua criação.
Com o distanciamento social, de imediato, foi oferecido apoio organizacional a
todo o público interno da instituição, formado por membros, servidores, estagiários
e terceirizados. A ideia foi, por meio de intervenções da área de Gestão de Pessoas,

98
promover a percepção de que, mesmo afastados fisicamente, a organização estava
próxima e preocupada com a saúde e o bem-estar de todos.
Para tanto, foi elaborado o projeto “Bem Viver na Pandemia”, com diversas ações
de enfrentamento aos efeitos provocados pelo distanciamento social. Baseadas em
construtos da Psicologia Positiva, tais como autocompaixão, resiliência, criati-
vidade, altruísmo, acolhimento, gratidão, entre outros, as ações oferecem acolhi-
mento e estimulam a presença de estados positivos e saudáveis das pessoas.
Para além das ações propostas pela área de Gestão de Pessoas, este artigo busca
demonstrar que a temática administrativa não é incompatível com a jurídica, área-
-fim da instituição. Muito pelo contrário, relaciona-se com a garantia dos direitos
fundamentais do ser humano. Conforme defende Zavaschi, “sentimento e direito
devem andar juntos, de mãos dadas, já que o verdadeiro Estado de Direito [...]
não se alcançará sem que se promova uma profunda renovação dos espíritos”
(ZAVASCKI, 1998, p. 228).

2 ∙ DIREITOS FUNDAMENTAIS
Desde a origem desse programa de qualidade de vida e bem-estar no trabalho,
ações de voluntariado institucional, de responsabilidade social e de sustentabilidade
são realizadas como forma de exercitar a cidadania e motivar os servidores em seu
crescimento e realização pessoal. Estas possuem inter-relação com o princípio da
dignidade da pessoa humana e com os direitos fundamentais, tendo em vista que se
baseiam no princípio da solidariedade.
A dignidade humana é um valor fundamental. No programa há práticas de ações
sociais tendo este princípio como bússola. Barroso (2019) diz que valores, sejam polí-
ticos, sejam morais, ingressam no mundo do Direito e que a dignidade é um princípio
jurídico de status constitucional e constitui parte dos direitos fundamentais.
Silva (2004) conceitua os direitos fundamentais como aquelas prerrogativas e
instituições consagradas pelo direito positivo para a garantia de uma convivência
digna, livre e igual de todas as pessoas, tratando-se de situações jurídicas sem as
quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobre-
vive, direitos que podem ser reconhecidos e efetivados em relação a todos.

2.1 ∙ AS DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


Araújo e Nunes Júnior (2005, p. 109-110) afirmam:
Os direitos fundamentais podem ser conceituados como a categoria jurídica ins-
tituída com a finalidade de proteger a dignidade humana em todas as dimensões.
Por isso, tal qual o ser humano, têm natureza polifacética, buscando resguardar
o homem na sua liberdade (direitos individuais), nas suas necessidades (direitos
sociais, econômicos e culturais) e na sua preservação (direitos relacionados à
fraternidade e à solidariedade).
Os direitos fundamentais de primeira dimensão estão presentes em todas as
Constituições das sociedades democráticas e são integrados pelos direitos civis e
políticos, direito à vida, à intimidade, à inviolabilidade de domicílio, à propriedade,
à igualdade perante a lei, entre outros.

99
A segunda dimensão dos direitos fundamentais está relacionada aos direitos
sociais, econômicos e culturais, sempre buscando diminuir as desigualdades
sociais, notadamente proporcionando proteção aos que estão em situação de
vulnerabilidade social. Estão ligados intimamente a direitos prestacionais sociais
do Estado perante o indivíduo, como assistência social, educação, saúde, cultura,
trabalho, lazer, entre outros.
Na terceira dimensão estão os direitos coletivos em sentido amplo, também
conhecidos como interesses transindividuais, onde estão incluídos os direitos difu-
sos, coletivos em sentido estrito e os direitos individuais homogêneos, direitos de
toda humanidade. Segundo Moraes (2006, p. 60),
Por fim, modernamente, protegem-se, constitucionalmente, como direitos
de terceira geração os chamados direitos de solidariedade e fraternidade, que
englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade
de vida, ao progresso, a paz, a autodeterminação dos povos e a outros direitos
[…]. (Grifos nossos).

2.2 ∙ DIREITOS FUNDAMENTAIS E AÇÕES DO PROGRAMA BEM VIVER


Algumas ações propostas pelo programa foram de grande impacto social e por
consequência tiveram divulgação na mídia local e nacional, vinculando-as aos
direitos sociais e fundamentais, tornando-as referência nessas áreas.

2.2.2 ∙ DIREITO AO REFÚGIO E O PEDAL HUMANITÁRIO


Bobbio (1992) conceitua que direitos humanos fundamentais são direitos his-
tóricos, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de
novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de
uma vez e nem de uma vez por todas.
O status de refugiado é estabelecido pela Convenção de 1951, que o define como
qualquer pessoa que
temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo
social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e
que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse
país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha
sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou,
devido ao referido temor, não quer voltar a ele. (NAÇÕES UNIDAS, 1951, p. 2).
Ao redor do mundo, milhões de pessoas têm suas vidas destroçadas por
guerras, violência e catástrofes naturais. Suas histórias são marcadas pelo des-
locamento forçado e pela vida em exílio. Ao buscarem novos recomeços, muitas
comunidades refugiadas e imigrantes enfrentam hostilidade, em vez de hospita-
lidade. Assim, para contrapor esse sentimento xenofóbico, aliado ao fato de que
se vivencia a pior crise humanitária desde a II Guerra Mundial e da necessidade
de políticas públicas humanizadas e da construção de espaços de conexão e
integração, aproximando a sociedade de acolhida das comunidades refugiadas e
imigrantes, surgiu a ideia do Pedal Humanitário, em 2018. Foram realizadas duas
edições, uma em junho de 2018 e a segunda em junho de 2019, no mês em que se
comemora o Dia Mundial do Refugiado.

100
O relatório anual do Acnur “Tendências Globais”, lançado em junho de
2020, informou que 79,5 milhões de pessoas estavam deslocadas até o final de
2019 por guerras, conflitos e perseguições – um número sem precedentes, a
cada dois segundos uma pessoa é forçada a deixar para trás sua casa, emprego e
entes queridos (ACNUR, 2020).

2.2.3 ∙ DIREITO AO MEIO AMBIENTE E HORTAS COMUNITÁRIAS


A Constituição Federal, em seu art. 225, caput, apresenta o meio ambiente como
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. O objeto da
tutela jurídica não é tanto o meio ambiente considerado nos seus elementos
constitutivos. O que o Direito visa a proteger é a qualidade do meio ambiente em
função da qualidade de vida. (SILVA, 2004, p. 81).
Entre os encaminhamentos relativos às práticas de respeito ao meio ambiente
e cidadania, desde 2016 um grupo de voluntários mantém uma horta urbana
no condomínio onde está localizado o Ministério Público Federal em Santa
Catarina. Além de fomentar os benefícios (ambientais, físicos e sociais) de uma
horta urbana, o projeto busca incentivar uma participação mais ativa de todos os
envolvidos. Contribui como segunda fonte de alimentação para os colaborado-
res terceirizados e no local foram cultivadas ervas para chás medicinais, que são
oferecidos tanto aos colaboradores terceirizados como para todos integrantes da
Procuradoria da República em Santa Catarina. A horta recebe todo o pó de café
consumido na Procuradoria que seria descartado como resíduo comum. É nesse
espaço que é realizada outra ação de preservação ambiental, a compostagem de
orgânicos, tornando-o um espaço de educação ambiental.
A horta comunitária da Procuradoria serviu de laboratório para a que foi desen-
volvida na comunidade Frei Damião, em Palhoça, município da região da Grande
Florianópolis. Com escopo de edificar e empoderar a comunidade, a horta pro-
porciona aos moradores que se encontram em situação de vulnerabilidade social
a complementação nas condições de alimentação, bem como uma possível futura
fonte de renda por meio da venda de produtos orgânicos.

2.2.4 ∙ DIREITO AO LAZER – PRAÇA EM FREI DAMIÃO


Trata-se de uma comunidade que se desenvolveu à margem do poder público e
sem dignidade, onde vivem em torno de 12.000 pessoas e que, até dezembro de 2016,
não tinha nenhuma área pública de lazer. A ideia de construir uma praça surgiu da
vontade de fazer o bem, de praticar ações que contribuam para uma sociedade mais
solidária, justa, feliz e igualitária. Os voluntários do programa somaram esforços
com o projeto Cidades Invisíveis e algumas organizações da sociedade civil para a
construção da praça, que foi entregue à comunidade em 23 de dezembro de 2016,
como forma de garantia aos direitos fundamentais.
A Constituição brasileira, como se sabe, assegura expressamente no art. 6º os
direitos sociais à moradia e à assistência aos desamparados. No art. 227, a Lei
Maior determina que é “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar
à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à

101
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além
de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão”. (HACHEM, 2016, p. 323).

3 ∙ PSICOLOGIA POSITIVA NA CONSTRUÇÃO


DE ORGANIZAÇÕES SAUDÁVEIS
3.1 ∙ PSICOLOGIA POSITIVA, UMA FERRAMENTA DE TRABALHO
Considerada um subgrupo da Psicologia – ciência que tem por objeto de estudo
a doença mental, o dano emocional, a desordem e a incapacidade –, a Psicologia
Positiva (PP) complementa o foco tradicional para se debruçar no estado ótimo de
funcionamento do ser humano e não tão só em seus aspectos negativos e patológicos.
Os seres humanos, indiscutivelmente, querem ter sentido e propósito na vida.
A vida com sentido consiste em pertencer e servir a algo que você acredite ser
maior do que si, e a humanidade cria todas as instituições positivas que permi-
tem isso: a religião, o partido político, a família, fazer parte de um movimento
ecológico ou de um grupo de escoteiros. (SELIGMAN, 2011, p. 22).
A PP está, desta forma, profundamente ligada ao desenvolvimento humano, na
construção de conhecimentos teóricos e empíricos enfocados nas virtudes e for-
talezas humanas, a fim de propiciar qualidade de vida, bem-estar e felicidade às
pessoas, nos níveis individual, grupal e organizacional (SILVA; FARSEN, 2018).
Para fins históricos, ressalta-se que os psicólogos humanistas já enfatizavam
aspectos positivos do indivíduo na clínica (ZANON et al., 2020). Carl Rogers, na
obra Tornar-se Pessoa, ao comentar uma lição apreendida em seus anos de profissão
centrada na pessoa, escreve que “as pessoas têm fundamentalmente uma orientação
positiva” (ROGERS, 1978, p. 38).
Em seu célebre discurso como presidente da Associação Americana de Psicologia
(APA), Martin Seligman instigou o grupo de psicólogos presentes a “explorar aquilo
que faz a vida valer a pena e produzir as condições para isto” (SELIGMAN, 2011, p.
12). Era o marco inicial do estudo da psicologia que deixa de analisar somente os
déficits de desenvolvimento, os distúrbios, as psicopatologias e as doenças mentais
catalogadas no DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). O
enfoque passa a ser a perspectiva profilática da psicologia, que destaca a saúde em
vez da doença; que fortalece competências, em vez de de corrigir deficiências.
Três temas estão no centro da Psicologia Positiva: 1) experiências subjetivas positi-
vas (por exemplo, felicidade ou satisfação), 2) características individuais positivas (por
exemplo, potencialidades e talentos), e 3) instituições positivas (por exemplo, famílias,
escolas e locais de trabalho). No que se refere a este o último item, instituições devem
permitir o florescimento de traços positivos, como as virtudes e os pontos fortes de
caráter (HARZE; RUCH, 2012), a fim de prevenir uma vida sem sentido.
Tradicionalmente, a Psicologia do Trabalho se ateve às questões relacionadas
ao adoecimento, absenteísmo, estresse, burnout, gaps de aprendizado, entre outros
temas. O campo da Psicologia Positiva Organizacional (PPO) altera o enfoque do
estudo para o engajamento, autoeficácia, bem-estar, resiliência, otimismo, apoio
organizacional, suporte relacional, liderança autêntica, entre tantos outros temas de

102
estudo da PPO. Dentro desta perspectiva, a busca pelo sentido, significado e propó-
sito do trabalho apresenta-se como relevante objeto de estudo.
A literatura destaca a PPO como uma abordagem da PP voltada para o traba-
lho e contextos organizacionais no intuito de desenvolver organizações saudáveis.
Desta forma, foca as características situacionais que podem ser melhoradas de
forma positiva por meio de intervenções e práticas de gestão de pessoas. Neste
cenário, estas áreas administrativas têm papel fundamental de investir em capa-
citação e desenvolvimento, além de gerenciar não “recursos humanos”, mas sim
“seres humanos”. O objetivo final é contribuir com uma maior satisfação e flo-
rescimento “no” e “por” meio do trabalho, respeitando e garantindo os direitos
fundamentais de todos os envolvidos.

3.2 ∙ ORGANIZAÇÕES SAUDÁVEIS, OBJETIVO A SE ALCANÇAR


O conceito de organizações saudáveis está alinhado com a definição de saúde
feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS – 1998), segundo a qual saúde
não é meramente a ausência de doenças ou enfermidades (perspectiva biomé-
dica), mas “um estado de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social”
(DI FABIO, 2016, n. p.).
Em 2007, a OMS definiu os ambientes de trabalho saudáveis como aqueles
em que os trabalhadores e gestores conduzem ações conjuntas para melhorar os
processos que levam à proteção e à promoção da saúde e bem-estar de todos os
parceiros da instituição, internos e externos. A partir desta concepção, destaca-se
a importância para o desenvolvimento de uma cultura de saúde no mundo do
trabalho, tanto para o bem-estar dos trabalhadores quanto para a saúde da orga-
nização (DI FABIO, 2016).
Promover qualidade de vida e bem-estar no trabalho é bom tanto para as organi-
zações quanto para os trabalhadores. Além de favorecer a motivação, o compro-
metimento e o engajamento dos trabalhadores, atua diretamente no desempenho,
no sucesso e na rentabilidade organizacional. (NUNES; BOEHS, 2020, p. 116).
Conforme a Associação Americana de Psicologia (2012), uma organização pode
ser considerada saudável ao desenvolver atividades de promoção da saúde, ao for-
necer assistência e apoio aos seus empregados e ao se preocupar com a segurança
dos seus membros. Assim, organizações que implementam práticas saudáveis con-
tribuem com maior engajamento dos trabalhadores e maior equilíbrio na balança
entre trabalho e família. Esse tipo de instituição promove, ainda, ações de desen-
volvimento pessoal e profissional, traz melhorias na saúde e segurança e busca um
maior reconhecimento dos empregados (NADER et al., 2014).
As primeiras pesquisas sobre Saúde Organizacional começaram no século
passado, nas décadas de 1950 e 1960, com o conceito de que organização sau-
dável é aquela que permite o funcionamento humano ideal. Conforme Acosta
(2015), as organizações são fonte de saúde e doença e são avaliadas em como elas
podem influenciar positivamente ou negativamente a saúde de seus funcionários.
Por isso, é necessário se criar um ambiente de trabalho seguro e saudável, o que
implica uma equipe de gestão de pessoas comprometida com o desenvolvimento
da promoção da saúde no trabalho.

103
4 ∙ METODOLOGIA
4.1 ∙ PRÁTICAS DE APOIO ORGANIZACIONAL E GESTÃO RELACIONAL
COMO MÉTODOS DE INTERVENÇÃO
Um dos objetos de estudo da PP no que se refere à promoção de Organizações
Saudáveis é avaliar e fomentar um ambiente de trabalho saudável, onde as relações
interpessoais e a percepção dos funcionários em relação à organização sejam positivas.
Para garantir o bem-estar afetivo, é preciso que o trabalhador perceba que a
organização não coloca restrições à sua individualidade, reconhece seu papel e
valoriza seu trabalho. Assim, a qualidade de vida no trabalho está associada com a
qualidade das relações, reforçando-se a necessidade de desenvolver relações positi-
vas e de apoio no local de trabalho.
Di Fabio et al. estabelecem o conceito de Civilidade Relacional no Trabalho, que
é caracterizada pelo respeito e preocupação consigo e com os outros, marcada pela
sensibilidade interpessoal e bondade. Inclui ainda comportamentos civis, como
relacionamentos baseados na dignidade e respeito às normas sociais para facilitar a
convivência pacífica e produtiva (DI FABIO et al., 2019).
Estudos comprovam que, para se garantirem organizações saudáveis, alicerça-
das no bem-estar daqueles que a compõem, faz-se necessário aprimorar a cultura
relacional. Entende-se Cultura Relacional no Trabalho a delicadeza, bondade, boa
educação, cortesia, prontidão. Por Prontidão Relacional, entende-se a sensibilidade
para com os outros (velocidade em compreender os sentimentos dos outros e mos-
trar sensibilidade pró-ativa) e a capacidade de ler as emoções dos outros. O conceito
abarca também a preocupação com os outros, atenção às reações destes, bem como
empatia e compaixão, comportamentos e cuidados.
Outro objeto de estudo da PPO é a necessidade de parentesco, que é quando os
funcionários percebem que a administração quer manter um relacionamento a longo
prazo com eles; quando existem processos que possibilitem a interação entre superio-
res e colegas, enfim, ações que contribuam para a satisfação no trabalho. Os funcioná-
rios, ao perceberem diferentes formas de apoio de seus superiores, reagem de maneira
positiva no local de trabalho, percebendo a organização como sua própria casa.
Segundo Blustein (2006 apud DI FABIO, 2016), no campo do trabalho e da psi-
cologia organizacional, os relacionamentos são uma necessidade importante das
pessoas. Nesta perspectiva, o trabalho, que é um ato inerentemente relacional, pode
ser conjugado com três necessidades básicas: necessidade de sobrevivência e poder,
necessidade de relações sociais e necessidade de autodeterminação.
A partir deste contexto apresentado, o grande dilema posto às áreas de Gestão de
Pessoas é: quais formatos de ações e intervenções devem ser propostos no ambiente
de trabalho? Quais ações são realmente efetivas, principalmente no contexto com-
pletamente atípico causado pela pandemia, num cenário onde todos os servidores
estão atuando de dentro de suas próprias residências e que a linha entre a vida pro-
fissional e a pessoal se apresenta de forma tão tênue?
O presente relato de experiência visa demonstrar a efetividade das ações
propostas pelo programa de qualidade de vida e bem-estar no trabalho do MPF
catarinense. Para tanto, apresenta a evolução do programa, por meio da relação

104
entre as ações de impacto social e os direitos fundamentais que foram realizadas
anteriormente e que levaram à consolidação do Projeto Bem Viver na pandemia.
Desde o início do distanciamento social, esse programa buscou estratégias de
fomento da percepção positiva de apoio organizacional, como ambiente que pro-
move o bem-estar e a saúde de seus funcionários, além de atuar na garantia dos
direitos fundamentais de seus colaboradores.

4.2 ∙ PROGRAMA BEM VIVER – INVESTINDO NOS COMPORTAMENTOS E


EMOÇÕES POSITIVAS
Até pouco tempo, a maioria dos artigos relativos ao mundo do trabalho e aos
desafios das áreas de gestão de pessoas se relacionavam com as mudanças vividas
pelas organizações no final do Século XX e início Século XXI, em especial ao pro-
cesso de Globalização e à chegada da Era da Informação.
A complexidade vivida no ambiente laboral buscava responder como as empre-
sas podiam desenvolver a capacidade de atrair, motivar e reter os talentos, a fim de
garantir vantagem competitiva em face das concorrentes no mercado de trabalho,
bem como a sobrevivência das organizações num mundo tão volátil.
Em menos de seis meses, um vírus que teve origem na China se espalhou
pelo planeta trazendo uma nova forma de vida, tanto no trabalho quanto nos
processos inter-relacionais. Trouxe, ainda, novos desafios desconhecidos aos
trabalhadores e às organizações.
Vivemos um momento singular, em que as pessoas estão mais vulneráveis ao
mau funcionamento, inclusive com o desenvolvimento de patologias psicológicas,
como ansiedade, depressão e estresse. A partir desta constatação, o primeiro o ques-
tionamento da área de Gestão de Pessoas, assim que foi implantado o teletrabalho
obrigatório, foi: o que fazer para mitigar o sofrimento e a incerteza?
Como contribuir para redução de sintomas psicopatológicos e aumentar o bem-
-estar entre os servidores e terceirizados durante o período de distanciamento social?
Como ajudar as pessoas a repensar suas vidas através do trabalho e dos relaciona-
mentos? Como sublinhar a importância do desenvolvimento de relações positivas e
de apoio no teletrabalho num momento em que o distanciamento social se tornou
obrigatório, e o convívio interpessoal migrou para o formato virtual? De que maneira
garantir os direitos fundamentais de todos os envolvidos, como saúde, comunicação,
lazer, cultura, fraternidade e solidariedade, direitos tão ameaçados neste momento?
Para delinear suas ações, o programa partiu de dois pressupostos: o primeiro é de
que um ambiente de trabalho relacional positivo permite que os trabalhadores aumen-
tem seus recursos pessoais para enfrentar as constantes mudanças e aceitem a inevita-
bilidade dessa mudança (DI FABIO, 2016); o segundo pressuposto é a consciência de
que as relações interpessoais e experiências relacionais são de primordial importância
para o sucesso do trabalho (BLUSTEIN; PREZIOSO; SCHULTHEISS, 1995 apud DI
FABIO, 2016). A partir daí, o programa Bem Viver desde o início tentou atuar para
encurtar distâncias e se fazer presente na vida de todos os seus colaboradores.
A seguir serão detalhadas algumas estratégias de ações propostas pelo pro-
grama Bem Viver, listadas, não em grau de importância, mas em ordem de pro-
positura (Tabela 1).

105
Tabela 1 ∙ Ações propostas; elementos psicológicos; objetivos e resultados;
direitos fundamentais contemplados.

Ação Elementos Objetivos e resultados Direitos


psicológicos fundamentais

Criação de canais Engajamento Garantir os Comunicação


de comunicação Criatividade relacionamentos (3ª Geração)
(Instagram e Pró-atividade interpessoais dos
YouTube) Amor ao colaboradores; buscar
aprendizado o engajamento de todos
os envolvidos; dominar
novas habilidades; atuar
de forma proativa

Elaboração Resiliência Aprender a lidar Saúde


de materiais Engajamento positivamente com as (2ª Geração)
audiovisuais – Pertencimento adversidades e mostrar Comunicação
Vídeos: Felicidade que, mesmo distante, a (3ª Geração)
/ Sextou / Páscoa/ Instituição está unida
Vai ser tão bom

Elaboração Autocuidado Propiciar integração por Saúde


de materiais Engajamento meio de dicas alimentares (2ª Geração)
audiovisuais – Pertencimento e troca de saberes Comunicação
dicas culinárias (3ª Geração)

Início das Altruísmo Amenizar as Amparo social


campanhas: Cidadania desigualdades sociais (2ª Geração)
Cestas Básicas Compaixão por meio de ações que Solidariedade
/ Terceirizados Empatia visam a distribuição Fraternidade
& Migrantes/ de cestas básicas com (3ª Geração)
Refugiados objetivo de colaborar
com medidas para
reduzir a insegurança
alimentar das populações
vulneráveis

Primeiros Apoio Mostrar que a instituição Saúde


atendimentos Organizacional está preocupada com a (2ª Geração)
psicológicos Acolhimento saúde mental e o bem-
estar psicológico

Atividades físicas Autocuidado Manter o corpo e a Atividade física


(alongamento, Autocompaixão mente ativos; fortalecer (2ª Geração)
funcional e Solidariedade a autocompaixão e Saúde
ginástica laboral) Voluntariado autocuidado (2ª Geração)
/ práticas de
meditação

106
Ação Elementos Objetivos e resultados Direitos
psicológicos fundamentais

Atividades Criatividade Abordar a vida com Cultura


culturais Engajamento animação e energia; (2ª Geração)
(saraus virtuais / Emoções positivas integrar família/trabalho
movimento “Vai Pertencimento
ficar Tudo Bem”)

Integração Autocuidado Criar estratégias para Saúde


Região Sul (roda Compaixão garantir a saúde mental (2ª Geração)
Paternidades / Live Felicidade
de Cuidado Mental
no Trabalho)

5 ∙ DISCUSSÃO
Conforme apresentado na Tabela 1, as ações propostas objetivam fomentar a
percepção de apoio organizacional e emoções positivas nos colaboradores da orga-
nização, bem como resguardar o cumprimento dos direitos fundamentais de todos
envolvidos, principalmente os de segunda e terceira dimensão.
A seguir serão detalhados as ações e os objetivos de cada intervenção proposta
pelo programa Bem Viver.

5.1 ∙ CRIAÇÃO DE CANAIS DE COMUNICAÇÃO


No momento em que o contato relacional foi impedido de forma presencial,
uma das maiores preocupações da Gestão de Pessoas foi a comunicação, em como
e de que forma ela se processaria. Assim, com o objetivo de estreitar e garantir as
relações, foi criada a página do Bem Viver na plataforma do Instagram e o Canal do
Bem Viver, no YouTube.
Ressalta-se que a discussão do direito à comunicação virtual como instrumento
da democracia e o entendimento de que se configura como direito fundamental não
é recente. Com a pandemia o programa Bem Viver entendeu a necessidade urgente
de se criarem mecanismos de comunicação para garantir a saúde dos relacionamen-
tos interpessoais, postos em cheque com o distanciamento social obrigatório.
Para Lima (2012), os direitos à comunicação, à informação e à realidade virtual,
que se encontram respectivamente nas dimensões terceira, quarta e quinta dos
direitos fundamentais, servem para garantir a dignidade da pessoa humana.

5.2 ∙ ELABORAÇÃO DE MATERIAIS AUDIOVISUAIS


5.2.1 ∙ VÍDEOS “FELICIDADE”, “SEXTOU”, “PÁSCOA” E “VAI SER TÃO BOM”
Logo após o distanciamento obrigatório, o Programa Bem Viver solicitou que
os colaboradores enviassem registros fotográficos de seus postos de trabalho em
suas residências. O objetivo do vídeo foi mostrar que, apesar do distanciamento

107
social, a organização continuava unida, fomentando o espírito de pertencimento.
As imagens foram intercaladas com diversas frases de incentivo na construção
de estratégias de enfrentamento aos desafios impostos. Segundo Frankl (1987),
se a situação for boa, desfrute-a, se for ruim, transforme-a, e, se não for possível
transformá-la, transforme-se.
Rapidamente a ideia obteve amplitude nacional, sendo replicada em diversos
Estados da federação. A partir daí, novos vídeos foram elaborados com o mesmo
intuito, de fortalecer a comunicação inter-relacional, o apoio organizacional e as
estratégias de autocuidado.
Outra ação buscou unir as 14 unidades do MPF distribuídas em municípios
catarinenses. Para tanto, foi produzido um vídeo inspirado na música “Vai ser tão
bom”, composta por membro da instituição durante a pandemia e que fala de sau-
dades de uma forma positiva. Participaram dezenas de procuradores, servidores,
ativos e aposentados, estagiários e terceirizados de todo o Estado, trazendo palavras
e sentimentos de acolhimento. O vídeo foi divulgado em âmbito nacional e numa
rede de TV local, como forma de demonstração de solidariedade do MPF.
Entre os objetivos dessas ações, além de propiciar o sentimento de união, bus-
cou-se fomentar a resiliência, constructo da PP que estuda como os indivíduos
podem enfrentar de forma positiva situações adversas da vida. Afinal, a pandemia
causada pela Covid-19 apresenta um momento singular para a humanidade no qual
a resiliência constitui processo essencial para o enfrentamento das adversidades
dela decorrentes (ZANON et al., 2020).

5.2.2 ∙ VÍDEOS DE DESAFIOS CULINÁRIOS


Outros materiais elaborados que foram divulgados nos canais do Bem Viver
(Instagram e YouTube), bem como pela rede de WhatsApp, foram os vídeos com
dicas culinárias. Até o momento foram produzidas quatro peças; as duas primeiras
tiveram o intuito de trabalhar também a questão da integração e da visibilidade
entre os diversos públicos internos da instituição, sendo protagonizadas por fun-
cionárias terceirizadas contratadas pelo MPF.
Em comum, os materiais audiovisuais buscaram, além de fomentar o autocui-
dado e o sentimento de pertencimento, incentivar emoções como a fraternidade –
identificada aqui além da categoria jurídica, como princípio e diretriz que reaviva o
sentido de “compartilhar, de mediar, de encontrar sentimentos e desafios comuns”
(TELLES, 2019, n. p.).

5.3 ∙ VOLUNTARIADO E RESPONSABILIDADE SOCIAL


Desde a sua origem em 2014, o programa Bem Viver promove ações tanto para
os quadros efetivos quanto para o público interno mais vulnerável do MPF catari-
nense, qual seja os terceirizados – responsáveis pelo serviço de copeiragem, limpeza
e segurança –, bem como para alguns setores “invisíveis” da comunidade externa.
Para tanto, o Bem Viver, pautado na Constituição Cidadã de 1988 – que
eleva a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental –, desde o iní-
cio do distanciamento social, busca garantir o Direito Humano à Alimentação

108
Adequada (DHAA), com a doação de cestas básicas mensais. Como muitos desses
profissionais terceirizados são oriundos de outros estados, com condições socioe-
conômicas mais precárias, o impacto da pandemia agravou a situação. Apesar
da preservação dos empregos de toda a equipe de trabalho, muitos familiares
perderam os empregos ou ficaram impedidos de exercer atividades informais por
conta do fechamento do comércio e da crise econômica gerada, o que alterou os
orçamentos domésticos de muitos deles.
Em relação aos refugiados e migrantes, o fato é que as condições de vida dessas
pessoas são muito frágeis. Além disso, assim como para a população brasileira mais
pobre, o grau de vulnerabilidade social desse grupo em meio à pandemia do novo
coronavírus se acentuou. O comprometimento da já precária fonte de renda faz com
que os refugiados não consigam arcar com custos para sobrevivência, principalmente
com o aluguel e a alimentação. Em Florianópolis, há dezenas de famílias de refugia-
dos em situação de rua. Nesse sentido, o Programa Bem Viver tem auxiliado por meio
da doação mensal de cestas básicas à organização Círculos de Hospitalidade, que faz a
distribuição entre as famílias de refugiados mapeadas como vulneráveis.
Além da questão alimentar, quando as organizações de saúde indicavam, logo
no início da pandemia, o uso de máscaras como medida de proteção, o Bem Viver
lançou campanha de patrocínio para a aquisição de máscaras, álcool em gel e mate-
riais de limpeza destinados a cada colaborador terceirizado.
Por meio do voluntariado, as ações buscam fomentar o bem-estar subjetivo
(BES) dos servidores. Pesquisas no campo da PP indicam que as pessoas aumentam
os níveis de felicidade através de comportamentos intencionais que envolvam a gra-
tidão, empatia e altruísmo. E mais: altos índices de BES estão associados com maior
longevidade, melhores condições de saúde e menores índices de psicopatologias
(ZANON et al., 2020).

5.4 ∙ PRIMEIROS ATENDIMENTOS PSICOLÓGICOS


A saúde é direito social, conforme previsão do art. 6º, caput, da Constituição
Federal, sendo de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios o respectivo cuidado e assistência pública da proteção e garantia das
pessoas portadoras de deficiência (art. 23, inciso II, da Lei Fundamental).
Partindo do conceito da OMS de que saúde é um estado de completo bem-estar
físico, psicológico e social, depreende-se que saúde psicológica também é um direito
fundamental do ser humano. Desta feita, em consonância com o manual Orientações
Técnicas para as(os) Psicólogas(os) que Atuam na Área da Psicologia Organizacional e
do Trabalho (POT) em Tempo de Pandemia (2020), o Bem Viver ofereceu Primeiros
Atendimentos Psicológicos (PAP). O objetivo foi aumentar a percepção de apoio orga-
nizacional por parte dos colaboradores, bem como de que a instituição está preocu-
pada com a qualidade da saúde mental e do bem-estar psicológico de todos os envol-
vidos. O serviço foi oferecido por meio de profissional qualificada lotada na Gestão
de Pessoas, que, mesmo não tendo atribuição para tal, solidarizou-se com a situação e
ofereceu seus conhecimentos de forma voluntária. A ação oferece acolhimento, iden-
tifica casos de adoecimento e sofrimento mental, bem como dá encaminhamento a
serviço especializado nas situações de maior gravidade.

109
5.5 ∙ ATIVIDADES FÍSICAS E PRÁTICAS DE MEDITAÇÃO
A Constituição Federal de 1988 trouxe como dever do Estado fomentar práticas
desportivas formais e não formais, e define como direito do cidadão o acesso ao
esporte e ao lazer. Considerado um direito social, integra os direitos de segunda
geração e está intimamente relacionado à saúde, física e psíquica.
Entre as medidas de autocuidado amplamente divulgadas estão os benefícios da
atividade física e da prática de meditação, como forma de manter mentes e corpos
ativos e saudáveis. Assim, o Bem Viver passou a oferecer aulas de alongamento e de
ginástica funcional, duas vezes por semana. A atividade é desenvolvida por servi-
dor com formação em Educação Física que, mesmo não tendo atribuição para tal,
solidarizou-se com a situação e ofereceu seus conhecimentos de forma voluntária.
Na mesma esteira de voluntariado, outro serviço disponibilizado pelo Bem
Viver foi a prática de Meditação – Atenção Plena, ministrada duas vezes por
semana por uma servidora com formação na área. A atenção plena é conside-
rada um dos três elementos que compõem o constructo da autocompaixão, ao
lado bondade e humanidade e pode ser relacionada com a capacidade de manter
pensamentos e sentimentos dolorosos em consciência equilibrada, em vez de se
identificar demais com eles. “Com autocompaixão, por meio do exercício da bon-
dade consigo, do senso de humanidade e da atenção plena, é possível assumir uma
posição de cuidado em relação a nós mesmos, essencial para enfrentar períodos de
crise” (ZANON et al., 2020).

5.6 ∙ ATIVIDADES CULTURAIS


Conforme a Secretaria Especial da Cultura, os direitos culturais fazem parte
dos direitos fundamentais, pois permitem o respeito à dignidade, a partir do reco-
nhecimento da identidade do indivíduo e o aproveitamento de suas qualidades.
Além disso, são considerados essenciais para preservar alguns pilares da dignidade
humana, como igualdade, integridade física, moral e social, liberdade e solidarie-
dade (BRASIL, 2016).

5.6.1 ∙ SARAUS VIRTUAIS


A criatividade é essencial para vencer momentos de crise, tornando-se uma força
de saúde mental na medida que traz consigo uma atitude de otimismo e esperança para
dias melhores. É considerada uma das forças de caráter que permite ao indivíduo um
funcionamento ideal, firmando-se como um fator de proteção (ZANON et al., 2020). 
Apesar de a criatividade não ser um atributo somente da área artística, o pro-
grama Bem Viver buscou instigar colegas com aptidões musicais e literárias para
se apresentarem em saraus virtuais. Com eles, estimulou-se ainda o entusiasmo,
elemento que busca abordar a vida com animação e energia.
Os saraus virtuais se tornaram um grande sucesso e desde a sua segunda edição
passaram a contar com participação de “artistas” de diversas unidades do MPF no
País. Atualmente o Sarau Virtual está na sua quinta edição.
Dessa ação, um vídeo foi produzido com a maioria dos artistas que partici-
pam das edições dos saraus virtuais: o “MPF Cover”. A partir de uma música

110
previamente escolhida, todos cantaram e tocaram separadamente e depois as
imagens foram editadas num produto único. A abertura e fechamento do referido
vídeo contou com a declamação de poesias autorais, feitas por servidores assíduos
a esses eventos culturais.

5.6.2 ∙ ADESÃO AO MOVIMENTO INTERNACIONAL “VAI FICAR TUDO BEM”


O programa Bem Viver aderiu ao movimento mundial “Vai ficar tudo bem”,
em que crianças ao redor do mundo uniram-se por meio de desenhos de arco-íris
com mensagens de esperança. Por meio do programa, filhos, netos e sobrinhos de
membros e servidores, ativos e aposentados, de todo o Estado, foram instados a
produzirem desenhos de arco-íris. A ação resultou num vídeo e numa exposição
virtual dos desenhos.

5.7 ∙ OUTRAS AÇÕES


Além das ações relatadas, que são contínuas e vêm ocorrendo ao longo do dis-
tanciamento social, outras ações pontuais foram implementadas no período de
pandemia, conforme se segue.

5.7.1 ∙ ORIENTAÇÕES PARA AS CHEFIAS DA ORGANIZAÇÃO


O Conselho Brasileiro de Psicologia (CBP) sugeriu como boa prática que os líde-
res conversassem e se reunissem virtualmente com suas equipes. Desse modo, em
reunião com todas as chefias da Organização, a GP orientou que é fundamental a
atenção dos gestores ao comportamento de suas equipes no que se refere a mudan-
ças de comportamento que indiquem que os colaboradores estão com dificuldades
em lidar com este momento de pandemia. Também orientou para que cada chefia
promovesse reuniões com suas equipes com frequência para fortalecer a percepção
de apoio organizacional.

5.7.2 ∙ INTEGRAÇÃO COM AS ÁREAS DE QVT DA REGIÃO SUL DO PAÍS


Um dos resultados que as ações do Bem Viver geraram foi a repercussão positiva
nas áreas de qualidade de vida no trabalho de outras unidades. Assim, durante esse
período, outras unidades entraram em contato com a Gestão de Pessoas do MPF
catarinense para trocar experiências, bem como aliar ações. Nesse sentido, desde
agosto, num movimento sinergético, as áreas de qualidade de vida da Região Sul
(PRRS, PRSC, PRPR e PRR/4ªRegião) vêm propondo ações em conjunto.

6 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em 2014, durante a realização do curso de pós-graduação, na modalidade
Especialização em Gestão de Pessoas, pela Escola Superior do Ministério Público da
União (ESMPU), surgiu a ideia de implantar no MPF em Santa Catarina um programa
de qualidade de vida e bem-estar no trabalho ancorado nos direitos fundamentais.
Nascia, assim, o programa Bem Viver, pioneiro no sentido de propor ações
voltadas para garantir aplicabilidade dos direitos fundamentais pela área meio da

111
instituição em prol dos servidores, membros, estagiários, colaboradores terceiri-
zados e de comunidades que estão em vulnerabilidade social. Ao longo de cinco
anos, centenas de ações foram realizadas, distribuídas pelos cinco pilares – bem-
-estar e saúde, atividade física, responsabilidade social, voluntariado e sustentabi-
lidade. Neste artigo foram destacadas aquelas ações que tiveram grande alcance
social, como a construção da praça na comunidade Frei Damião, o evento Pedal
Humanitário e as Hortas Comunitárias. Abordaram-se, também, aquelas que
tiveram que ser repensadas e propostas com a alteração das relações pessoais e de
trabalho, impostas pela pandemia causada pela Covid-19.
Com o teletrabalho obrigatório, a partir de março deste ano, houve a necessi-
dade de uma transformação das ações em um curto espaço de tempo, que só foi
possível em razão do histórico do programa Bem Viver. Partindo do pressuposto
que organizações devem ser verdadeiros “templos de saúde” de seus funcionários e
familiares, as ações do programa priorizaram o fortalecimento das relações inter-
pessoais positivas, caracterizadas por amizade, espírito de equipe e preocupação
mútua. O intuito foi promover um sentido de pertença, significado e prazer.
Ressalta-se que diversos estudos científicos definem o constructo de saúde orga-
nizacional a partir de inúmeras dimensões, tais como física, espiritual, emocional,
social, ocupacional e intelectual. Essas dimensões foram abarcadas pelo programa
Bem Viver desde sua concepção e, no período de distanciamento social, tiveram seu
enfoque acentuado, a fim de diminuir distâncias e fortalecer laços inter-relacionais.
As ações propostas pelo programa incorporam, ainda, as dimensões “comuni-
tária” e “social”, em que os direitos fundamentais se destacam com maior ênfase.
As referidas dimensões são raramente consideradas na maioria dos programas de
bem-estar no trabalho, e quando o são dificilmente apresentam algum nível de sig-
nificado mais efetivo. Eis, portanto, o ineditismo das ações desse programa.
Ao desenvolver um ambiente relacional positivo que considerou todas as dimen-
sões da saúde, permitiu-se que os colaboradores criassem ferramentas para melho-
rar seus recursos pessoais a fim de lidar com as mudanças drásticas causadas pela
pandemia. As práticas adotadas partiram do pressuposto que o local de trabalho
deve ser fisicamente, socialmente, emocionalmente e psicologicamente seguro.
Cabe destacar que, em virtude de a área de Gestão de Pessoas não ter orçamento
próprio para o desenvolvimento de ações de qualidade de vida e bem-estar no tra-
balho, aquelas que foram detalhadas não tiveram custo para a instituição. “Uma
importante vantagem das práticas propostas pela Psicologia Positiva é o baixo
custo, facilidade de implementação e relativo desconhecimento de efeitos adversos”
(ZANON et al., 2020, n. p.).
Apesar do desafio imposto, as organizações que se adequarem da melhor forma
e o mais rapidamente possível sairão mais fortalecidas dessa crise pela qual passa
a humanidade. Para finalizar, como proferiu Zavaschi, “o bom direito se faz com
juristas de mente esclarecida, coração aberto e alma iluminada” (ZAVASCHI, 1998,
p. 232). E é este o propósito que as ações do Bem Viver têm primado em fomentar
no MPF catarinense, não só neste período de pandemia, mas em todas as ações ao
longo dos cinco anos de sua existência.

112
REFERÊNCIAS
ACOSTA, H.; CRUZ-ORTIZ, V.; SALANOVA, M.; LLORENS, S. Healthy organization:
Analysing its meaning based on the HERO. Model/Organizaciones saludables: Anali­
zando su significado desde el modelo HERO. Revista de Psicología Social, v. 30, n. 2,
2015, p. 323-350.
ACNUR – AGÊNCIA DA ONU PARA REFUGIADOS. ACNUR lança relatório
“Tendências Globais” sobre deslocamento forçado no mundo. Disponível em: https://
www.acnur.org/portugues/2020/06/16/acnur-lanca-relatorio-tendencias-globais-
sobre-deslocamento-forcado-no-mundo/. Acesso em: 10 ago. 2020.
ARAÚJO, L. A. D.; NUNES JÚNIOR, V. S. Curso de direito constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2005.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 8. ed. São
Paulo: Saraiva, 2019.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BONSAI. People: The vision of Muhammad Yunus [Documentário]. USA, IMDb, 2011.
BRASIL. Ministério do Turismo. Secretaria Especial da Cultura. Direito cultural é um
direito fundamental. 7 de abril de 2016. Disponível em: http://cultura.gov.br/direito-
cultural-e-um-direito-fundamental/. Acesso em: 12 ago. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 22.164-SP. Ministro
Celso de Mello. Brasília: Diário de Justiça, 17 nov. 1995.
BROOKS, S. K.; WEBSTER, R. K.; SMITH, L. E.; WOODLAND, L.; WESSELY, S.;
GREENBERG, N.; RUBIN, G. J. (2020). The psychological impact of quarantine and how
to reduce it: Rapid review of the evidence. The Lancet, v. 395, n. 10227, p. 912-920.
CASTILHO, Ricardo. Direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
CHALENGER, Melanie; FILIPOVIC, Zlata. Vozes roubadas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008.
CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA EM SANTA CATARINA. Orientações
técnicas para as (os) psicólogas(os) que atuam na área da psicologia organizacional e
do trabalho (POT) em tempos de pandemia. Florianópolis, 2020.
DI FABIO, A. Positive relational management for healthy organizations: psychometric
properties of a new scale for prevention for workers. Front. Psychol. v. 7, n. 1523, 2016.
Disponível em: https://doi.org/10.3389/fpsyg.2016.01523.
DI FABIO, A. et al. The Challenge of Fostering Healthy Organizations: An Empirical
Study on the Role of Workplace Relational Civility in Acceptance of Change and Well-
Being. Frontiers in Psychology, v. 7. n. 1748, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.3389/
fpsyg.2016.01748. Acesso em: out. 2020.
FRANKL, V. E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. São
Leopoldo: Sinodal, 1987.
HACHEM, Daniel. A discricionaridade administrativa entre as dimensões objetiva e
subjetiva dos direitos fundamentais sociais. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais
e Justiça, v. 10, n. 35, p. 313-343, jul./dez. 2016.

113
HARZER, Claudia; RUCH, Willibald. The Application of Signature Character Strengths
and Positive Experiences at Work. Journal of Happiness Studies in Press, 2012. DOI:
10.1007/s10902-012-9364-0.
JUBILUT, Liliana Lyra. O direito internacional dos refugiados e sua aplicação no orçamento
jurídico brasileiro. São Paulo: Método, 2007.
LEON-PEREZ, Jose M.; ANTINO, Mirko; LEÓN-RUBIO, Jose. (2016). The role of
psychological capital and intragroup conf lict on employees’ burnout and quality of
service: a multilevel approach. Frontiers in Psychology, n. 10339, 2016.
LIMA, Larissa Pinho de Alencar. Sociedade cibernética: acesso à comunicação virtual é
um direito fundamental. Site da Conjur. 2012. Disponível em: https://www.conjur.com.
br/2012-jul-09/larissa-lima-acesso-comunicacao-virtual-direito-fundamental. Acesso
em: 23 ago. 2020.
MASTROIANNI, Karen; STORBERG-WALKER, Julia. (2014). Do work relationships
matter? Characteristics of workplace interactions that enhance or detract from employee
perceptions of well-being and health behaviors. Health Psychology and Behavioral
Medicine, v. 2, n. 1, 2014. p. 798-819.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Controle judicial dos atos administrativos. Revista
de Direito Administrativo, n. 152, Rio de Janeiro, abr./jun. 1983.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
MOREIRA, Ardilhes; PINHEIRO, Lara. OMS declara pandemia de coronavírus. Dispo­-
nível em: G1.https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/11/oms-decla
ra-pandemia-de-coronavirus.ghtml. Acesso em: 12 ago. 2020
NAÇÕES UNIDAS. Convenção de 1951: Estatuto dos Refugiados. Disponível em: https://
www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_
Estatuto_dos_Refugiados.pdf. Acesso em: 12 ago. 2020
NADER, Martín; PEÑA BERNATE; Sandra Patricia; SANTA-BÁRBARA, Emilio Sánchez.
Predicción de la satisfacción y el bienestar en el trabajo: hacia un modelo de organización
saludable en Colombia. Estudios gerenciales, n. 30, ene./mar. 2014.
NUNES, Cléria; BOEHS, Samantha. Qualidade de vida no trabalho: desafios e perspectivas.
In: SILVA, Narbal; DAMO, Lilian Paulo (org.). Vidas que mudaram [recurso eletrônico]:
contribuições da psicologia positiva para situações de isolamento e de distanciamento social.
Florianópolis: Editora da UFSC, 2020. 155 p.: il. p. 110-118.
REUTERS, Agência. OMS alerta para crise global de saúde mental devido à pandemia de
Covid-19. 14 de maio 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/
noticia/2020/05/14/oms-alerta-para-crise-global-de-saude-mental-devido-a-pandemia-
de-covid-19.ghtml. Acesso em: 2 ago. 2020
ROGERS, Carl. Tornar-se pessoa. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
ROSSO, Paulo Sérgio. Solidariedade e direitos fundamentais na constituição brasileira
de 1988. Revista Eletrônica do CEJUR, v. 1, n. 1, ago./dez. 2007. Disponível em: https://
revistas.ufpr.br/cejur/article/viewFile/16752/11139. Acesso em: ago. 2020.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010.

114
SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed. rev. Atual. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2015.
SELIGMAN, M. E. P. Florescer: uma nova compreensão sobre a natureza da felicidade e
do bem-estar. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2011.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. Rev. Atual. São
Paulo: Malheiros, 2004.
SILVA, Narbal; FARSEN, Thaís. Qualidades psicológicas positivas nas organizações:
desenvolvimento, mensuração e gestão. São Paulo: Vetor, 2018.
TELLES, Heloísa Husadel. O direito da fraternidade – breve estudo. Portal Âmbito Jurídico.
6 de novembro de 2019. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-
constitucional/o-direito-da-fraternidade-breve-estudo. Acesso em: 31 jul. 2020.
VILLELA, D. A. M. The value of mitigating epidemic peaks of COVID-19 for more effective
public health responses. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, n. 53, 2020.
ZANON, Cristian et. al. COVID-19: Implicações e aplicações da psicologia positiva em
tempos de pandemia. Estudos da Psicologia, v. .37, jun. 2020.
ZAVASCKI, Teori A. Discurso de paraninfo da Turma 96/1. Revista da Faculdade de
Direito da UFRGS, v. 15, 1998. p. 227-232.

115
NOVAS TECNOLOGIAS E CONTROLE SOCIAL
Desafios jurídicos contemporâneos

Douglas Camarinha Gonzales1


L’Inti Ali Miranda Faiad2

Sumário: 1 Introdução. 2 Direito e controle social: segurança jurídica, limitação da


liberdade e transformação social. 3 Desafios contemporâneos. 3.1 A fluidez peculiar da
tecnologia digital. 3.2 A customização da publicidade nas plataformas digitais. 3.3 A
institucionalização de programas de profiling. 4 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
As duas últimas décadas se apresentam como uma verdadeira disrupção cul-
tural, social e tecnológica sequer imaginada poucos anos atrás, cujo fio condutor é
justamente a inovação tecnológica com repercussão em todos os aspectos da vida
social. Apenas a título exemplificativo, as redes sociais remodelaram desde o poder
dos feudos do Cairo às últimas eleições presidenciais norte-americanas. As inova-
ções tecnológicas não apresentam fronteiras: manifestam-se da agricultura à avia-
ção espacial; das inovadoras formas de comunicação (redes sociais e mecanismos de
comunicação interativas) aos modos de conviver em cidades, com reflexos diretos
sobre a democracia e as tentativas de controle social, político e mercadológico –
comportamentos que não poderiam ser realizados sem as novas tecnologias.
Nesse contexto, o direito como instrumento supremo de regulação do convívio
humano enfrenta novos desafios.
A tecnologia tem proporcionado mudanças radicais no âmbito social e profis-
sional que nos impõem a necessidade de uma nova visão de mundo, especialmente
quando se fala das redes sociais e das novas formas de troca empresarial, que se
utilizam da revolução tecnológica causada pela inteligência artificial e o algoritmo,
como meio de controle comercial, social e político.
O artigo busca, pois, dimensionar os desdobramentos das inovações tecnoló-
gicas trazidas principalmente pelas plataformas digitais, cujas forças tecnológicas
medeiam poder com as próprias instituições democráticas e, consequentemente,
com o Direito – ao mudar o comportamento de agentes econômicos e redesenhar,
por exemplo, a noção de privacidade, em prol do controle dos gigantes da tecnologia
e das forças políticas estatais.

1 Juiz Federal em São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
2 Professor Universitário. Doutor em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (USP). Mestre em Direito Econômico e Financeiro pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP).

117
Objetiva-se examinar a viabilidade jurídica de controle3 digital do comporta-
mento individual e político através de plataforma digital. Seriam lícitos aparatos
com tal finalidade aos olhos da legislação nacional?
Esse será o foco principal do artigo, que abordará diretamente essa questão à luz
de exemplos e demandas atuais no âmbito nacional em cotejo com as experiências e
tensões internacionais similares.
Deveras, o amanhecer do século XXI se iniciou, efetivamente, ainda no século
passado, através dos embriões das tecnologias então nascentes, em especial com
a rede mundial de computadores, e, recentemente, com manifestações em cadeia
regional de impactos globais no continente africano, através das notícias e revi-
ravoltas que ocorreram na chamada Primavera Árabe da Tunísia até a Praça
Tahrir no Egito, onde um movimento revolucionário emergiu, graças à ebulição
das mídias sociais,4 que, sem um aparato centralizador ou de controle, 5 propagou
múltiplas comunicações nas plataformas digitais e comandou milhares nas ruas,
o que resultou na queda de monarcas e déspotas de toda uma região (Gaddafi
e Mubarak) que reinavam há décadas – genuína disrupção política em cadeia
sequer imaginada até mesmo nas artes.
Tamanha revolução social só fora efetivada mediante o uso em cadeia das redes
sociais que despertaram sentimentos convergentes em prol de efetivas mudanças na
política dos países do norte da África e atiraram multidões às ruas, em que pese a
repreensão estatal. A força conjunta do movimento propulsionado pelas tecnologias
de comunicação ocasionou a queda dos regimes ultrapassados.
Desde então muito se tem estudado a respeito da força disruptiva da tecnologia,
com alcance em todos os setores da vida em sociedade, muito além de reivindica-
ções políticas, o que representa um desafio de adaptação ao Direito.

2 ∙ DIREITO E CONTROLE SOCIAL: SEGURANÇA JURÍDICA,


LIMITAÇÃO DA LIBERDADE E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
O direito, na sua concepção liberal, surgiu, também, como instrumento de
implementação primeira da segurança jurídica através de construções racionais

3 Controle aqui compreendido como palavra conteúdo ao sentido weberiano de dominação: “Por
dominação compreenderemos, então, aqui, uma situação de fato, em que uma vontade manifesta
(‘mandado’) do ‘dominador’ ou dos ‘dominadores’ quer influenciar as ações de outras pessoas
(do ‘dominado’ ou dos ‘dominados’), e de fato as influencia de tal modo que estas ações, num
grau socialmente relevante, se realizam como se os dominados tivessem feito do próprio conteúdo
do mandado máxima de suas ações (‘obediência’)” (WEBER, 2009, p. 191). Necessário pontuar,
desde já, o problema de se identificar, nas relações do meio ambiente digital, a existência ou não
de “vontade manifesta” consciente e transparente dos envolvidos. Por tal razão, um dos princípios
fundamentais da novel Lei Geral de Proteção de Dados, a Lei n. 13.709/2018, é o da transparência.
4 Os mencionados movimentos e diversos outros talvez tenham surgido e efetivamente produzido
efeitos apenas em decorrência da possibilidade de formação e operacionalização, por meio da
internet, das denominadas “inteligências coletivas”, compreendidas como “uma inteligência
distribuída por toda parte, constantemente valorizada, coordenada ao vivo, que leva a uma
mobilização efetiva das competências” (LOVELUCK, 2018, p. 98).
5 Para um profundo estudo sobre a centralização ou não da internet, ver Loveluck (2018).

118
atreladas ao individualismo. A história do direito contemporâneo segue a reboque
da história do constitucionalismo no mundo eurocêntrico.6
Não obstante o constitucionalismo liberal ser associado aos denominados direitos
fundamentais de primeira geração (ou dimensão) – os vinculados ao valor liberdade
-, reconhece-se que as liberdades eram restritas a parcela bem delimitada do tecido
social que foi a grande beneficiada pelas revoluções liberais no mundo eurocêntrico.
Não se tratava de alterar as estruturas sociais de forma a assegurar a plena liberdade
em benefício do todo, mas apenas de determinados segmentos, com o intuito, pri-
meiro, de garantir a segurança jurídica, principalmente nas relações econômicas.
Com o recrudescimento dos tensionamentos sociais, em decorrência da insu-
ficiência do direito liberal em face das disputas sociais, surge o denominado cons-
titucionalismo social, que possui como finalidade primeira moldar os sistemas
jurídicos através da criação das denominadas constituições sociais de forma a
promover alterações estruturais nas sociedades no sentido da promoção da redu-
ção das desigualdades sociais.7
Neste esteio, nos países que postulam o constitucionalismo social, a finalidade
do direito não é, apenas, estabelecer as regras do jogo da vida política, social e eco-
nômica; mas é, principalmente, instituir mecanismos, baseados em normas jurídi-
cas, que possuem a finalidade de alterar as estruturas sociais.8
No caso brasileiro, o art. 3° do texto constitucional não deixa dúvidas sobre tal
compreensão do fenômeno atual do constitucionalismo pátrio.

3 ∙ DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
3.1 ∙ A FLUIDEZ PECULIAR DA TECNOLOGIA DIGITAL
A utilização da tecnologia digital tem-se mostrado a mais inovadora e ao mesmo
tempo intrusiva das formas de tecnologia, tendo avançado para dentro de nossos
lares, telefones, relógios, salas de aula, tablets e computadores. Sua maleabilidade é
ampla e difusa para toda a sociedade, atributo que outrora era quase impensado, já
que a maioria das máquinas vinham com denso manual de informações de difícil
compreensão para o cidadão comum.
Tudo mudou com a tecnologia expressa em janelas (Windows) de modo autoex-
plicativo, em que o usuário pode expressar suas opções, através de erros e tentativas
e ter o controle dos comandos operacionais. É essa a tecnologia que predomina na
imensa maioria das plataformas digitais e seus aplicativos.

6 Para uma análise aprofundada sobre estes aspectos, ver Tavares (2018, p. 32-40), Canotilho (1991, p.
259-274) e Haberle (2007, p. 135-154). Para uma análise do constitucionalismo brasileiro “tardio”,
ver Silva Neto (2016).
7 Não se desconhece que os modelos, constitucionalismo liberal e constitucionalismo social, sejam
categorizações dinâmicas, em constante movimento, e que, em diversas experiências, como no caso
da brasileira de 1988, convivem em confronto. Mas se considera que a redução das desigualdades
sociais seja, ao final, a grande meta do constitucionalismo social.
8 Nas palavras de Pablo Lucas Verdu, as normas constitucionais devem conter “eficácia social
organizadora e transformadora” (VERDU, 2004, p. 123).

119
Nesse contexto, a tecnologia reinventou o seu modo de uso, sua simplicidade
operacional ganhou outro patamar e conquistou a imensa parte da população,
com reflexos impactantes.
E, como tem se constatado, a tecnologia geralmente não tem pedido licença para
avançar sobre as diferentes áreas de atuação; quer se trate de crianças ou jovens, boa
parte dos aplicativos simplesmente abrem janela própria e, a partir de um clique,
uma nova forma de interação com o usuário começa.
Essa característica de certo modo invasiva tem se tornado peculiaridade no
mundo digital, e seu caráter segue a mesma retórica perante o Direito, pois muitas
vezes ingressa no mundo já estabelecendo operacionalidade, independente de auto-
rizações ou aquiescência de terceiros.
Essa tecnologia invasiva ganha voga em aplicativos dos mais variados, dos jogos
aos filtros de fotografia digital, e até em campanhas políticas, através de mensagens
subliminares ou do micromarketing.
Nota-se, pois, que as forças tecnológicas medeiam poder com as próprias ins-
tituições democráticas, especialmente o Direito, ao mudar o comportamento de
agentes econômicos e redesenhar a noção de privacidade, publicidade, bem como as
características das reivindicações políticas – além de uma nova abordagem econô-
mica em múltiplos setores do comércio.
A constatação curiosa e desafiadora que se depara é que o modelo tradicional
de negócios está em xeque através da transformação digital operada pelas gran-
des plataformas digitais, cujos desdobramentos atingem diretamente a forma de
publicidade, as relações sociais e a autonomia individual, bem como as forças
políticas de viés eleitoral, já que o cenário da chamada tecnocracia trouxe ingre-
dientes nunca antes vistos.
Deveras, Durkheim notabiliza-se ao registrar para a Sociologia que as verdadei-
ras mudanças só se estabilizam quando o consciente coletivo assimila essas mudan-
ças. E, em paralelo a isso, muitos tecnólogos pregam câmbios efetivos na sociedade,
entre outros a mudança do conceito de rastreamento e a ideia de privacidade, como
explicita o tecnólogo Kevin Kelly (2017, p. 280), ao construir uma nova ideia de
privacidade, baseada na covisão e administração do usuário sobre seus respectivos
conceitos, entre outros abordados como inevitáveis.
Por sua vez, os tecnólogos já incorporaram essa visão ao jogo empresarial e
social, ao passo que boa parte da população se questiona sobre qual a regra preva-
lecente. Da parte dos profissionais da tecnologia, a regra prevalecente é justamente
a que impera no mundo digital, muitas vezes imposta pelas forças do mercado ou
dos usos e costumes digitais. E muitos pensam que o Direito vai se adaptar aos
comandos do mundo digital, e só posteriormente percebem que não raras vezes as
cortes judiciais não compartilham dessa visão.
Entre tais dilemas, um dos de maiores repercussão fora justamente a determi-
nação inicialmente administrativa da Agencia Española de Protección de Dados e
Mario Costeja González contra o Google, sob a imposição (europeia) de que esse
deveria retirar de sua indexação de dados de acesso algumas informações ultrapas-
sadas a respeito de cerca de 60 pessoas que se sentiam profundamente constrangi-
das a respeito de fatos longínquos e que foram superados – o chamado direito ao

120
esquecimento, posteriormente ratificado pelo Tribunal de Justiça Europeu e final-
mente pela Corte Europeia de Direitos Humanos.
Em que pese o inconformismo de profissionais da tecnologia e do Google, todos
os seus recursos foram fracassados, e predominou a tese de que a dignidade da pes-
soa humana e a autodeterminação dos povos devem preponderar sobre o interesse
de sua eterna divulgação. Tal ilação ganhou força normativa, a partir da Diretiva
Europeia n. 95/46 – em que se normatizaram as condições próprias ao direito ao
esquecimento –, posteriormente superada pela Lei Europeia de Proteção de Dados
(RGPD), art. 65 e ss. – cuja aplicação, diversamente da Diretiva, não requer ato
normativo nacional que a complemente (com vigor imediato).
Ao fundamentar o direito de ser esquecido, o Tribunal de Justiça Europeu decla-
rou que a autoridade soberana sobre o futuro digital recai sobre o povo, suas leis e
suas instituições democráticas. Afirmou que indivíduos e sociedades democráticas
devem lutar por seus direitos ao tempo futuro e vencerão, mesmo que a disputa seja
contra um gigante poder privado.
A partir desse julgamento, o Google lançou um formulário online acessível a
todos os interessados em solicitar a remoção de dados. Em julho de 2015, mais de
um ano depois, o Google avaliou mais de 290 mil pedidos e retirou do ar mais de
um milhão de informações (FERRIANI, 2017).
Como se vê, resta um conflito de valores jurídicos em colisão, de forma que
os tribunais europeus, bem como os brasileiros têm acolhido o direito ao esqueci-
mento como expressão do direito à personalidade de cunho constitucional, quando
ausente interesse público na manutenção da reportagem, em face da harmonia
social que deve zelar nossas relações.
Por sua vez, a doutrina nacional abaliza o direito ao esquecimento quando ausente
interesse público como desdobramento do direito fundamental da dignidade da pes-
soa humana, diante do caráter perene da mídia digital em cotejo com a psique social,
que tem como parâmetro o esquecimento diante do decorrer do tempo. Justamente
nesse sentido é o Enunciado n. 531 do Conselho da Justiça Federal.
Contudo, o dilema das forças da tecnologia e do Direito é um tema profundo
que deita raízes nas transformações da sociedade no século XXI, com profundas
consequências no âmbito econômico, como se verá no próximo tópico.

3.2 ∙ A CUSTOMIZAÇÃO DA PUBLICIDADE NAS PLATAFORMAS DIGITAIS


Nesse capítulo, tentaremos expor o percurso traçado pelas plataformas digitais,
em especial as gigantes de tecnologia que remodelaram a forma de publicidade cus-
tomizada, com profundas consequências sobre as escolhas econômicas, os meios de
comunicação e as opções ao consumidor.
Nada melhor que o exemplo trivial de nossa realidade para ilustrar com mais
acerto essa abordagem, que é uma das bases do capitalismo digital, conforme ilus-
tra Relatório da Comissão Federal de Comércio dos EUA (Free Trade Comission
– FTC), para propor políticas mais eficazes de proteção ao consumidor:
- se você pesquisa por produtos ou serviços online, anunciantes podem coletar e
compartilhar informações sobre suas atividades, inclusive sobre as suas pesqui-
sas, os sites que você visitou, e o conteúdo que você viu;

121
- se você participa de um site de relacionamento social (i.e. rede social), os aplica-
tivos da empresa terceira provavelmente terão acesso às informações ou conteú-
dos que você ou seus amigos “postar” (publicar) no referido site;
- se você usa aplicativos de localização no seu smartphone (i.e. telefone móvel
com acesso à internet), diversas companhias podem ter acesso ao seu paradeiro
de forma exata;
- se você utiliza cartões de fidelidade com uma loja de doces ou preenche um
cartão de garantia de produto, seu nome, endereço e informações sobre a sua
compra talvez sejam compartilhados com corretores de dados (“data brokers”) e
combinados com outras informações. (Apud BLUM, 2018, p. 130).
Certamente, muitos já vivenciaram como experiência pessoal a realização de
uma pesquisa de um objeto de compra em um site comercial qualquer e, logo em
seguida, quando se muda de site (para notícias gerais), imediatamente já se aponta
publicidade dirigida para a compra relacionada à pesquisa em que a pessoa segun-
dos atrás estava focada.
Trata-se de uma nova forma de abordagem publicitária, baseada em uma linguagem
computadorizada em algoritmos, cuja leitura advém das reações humanas nas mídias
digitais – majoritariamente por nossos sentimentos mais primários – e com um viés
particularizado em mensagens subliminares, voltadas a persuadir o indivíduo.
Constata-se, assim, uma forma de indução de comportamento do internauta,
baseada em suas prévias manifestações ou leituras digitais, uma autêntica forma de
intervir em suas opiniões sociais, culturais, políticas e até econômicas.
Nota-se, pois, uma revolução a um só tempo da publicidade em geral, do jor-
nalismo e do próprio capitalismo, nominado capitalismo digital, já que todo esse
aparato orbita perante a rede mundial de internet.
Todo esse comportamento das plataformas digitais é objeto de acurado estudo
de amplos estudiosos, cuja visão aponta algumas vicissitudes do sistema e efetivas
luzes nos possíveis anseios capitalistas a respeito do futuro.
A professora de Harvard Shoshana Zuboff, autora do livro Surveillance
Capitalism, aponta que, tal como o mundo social mudou seus anseios e paradig-
mas, de certa forma conforme preconizado por H. Ford, o mundo digital busca o
implemento de suas aspirações (novos anseios).
Zuboff apresenta uma temática disruptiva a esse contexto ao desenhar o capita-
lismo de vigilância e os anseios por detrás da sociedade digital – o controle de nossa
vida, através dos comportamentos preconfigurados de nossa vida pessoal.
Entre os novos anseios digitais, ergue-se a bandeira da chamada “permission-
less innovation” (inovação sem permissão), atributo utilizado por aqueles que pre-
gam uma mutação no capitalismo digital, com a bandeira positiva da inovação,
mas sem alertar para seu intento dominador ou manipulador – seja através da
lógica onipresente de aferição ou busca de sua pesquisa digital e sucessiva publi-
cidade direcionada; seja com a modificação comportamental, através das mídias
digitais (efeito networking).
Johnn Battelle estuda a política e a própria lógica da publicidade das grandes plata-
formas digitais (The Search: How Google and its Rivals Rewrote the Rules Business and
Transformed Our Culture) e aponta que essa dinâmica de rastreamento e vigilância é

122
de certa forma camuflada pelo Google e outros gigantes da tecnologia, através de uma
política de confidencialidade estrita, consoante expressam vários jornalistas.
A metodologia consiste na captação colossal de informações dos consumidores,
através da supervisão de nossos afazeres pessoais, sociais e profissionais para assim
sobrepor-se às nossas decisões. Mas como?
Zuboff arrisca uma explicação, seria através da previsão de nossos comporta-
mentos e na venda dos nossos comportamentos e demandas futuras – o objeto de
nossas necessidades/demandas é a nova commodity.
As previsões sobre nosso comportamento são o produto do Google e são vendidas
para seus clientes reais, e não para os internautas, até em forma de leilão na internet.
A pesquisadora americana flerta, assim, com o termo a nova mão invisível, ao
comentar que essa deixa de ser configurada estritamente pelas forças da economia,
mas agora está transfigurada pela tecnologia digital das plataformas da internet.
Descreve, ainda, a possibilidade de a tecnologia domar os usuários arredios, através
do castigo ou da recompensa – nesse viés através de comportamentos que incenti-
vam o internauta ou facilitem seu crédito.
Justamente por isso, é preocupante a nova forma de publicidade digital e a
consequente erosão do jornalismo profissional, já que os atores protagonistas desse
papel passaram a se confundir com a eclosão do capitalismo digital. Até poucos
anos atrás, o mercado jornalístico operava de modo estruturado e regulado norma-
tivamente para afastar conflitos de interesses. Publicidade, editoração, e distribui-
ção de informações recebiam tratamento legal e regulatório distinto, tanto que, nos
últimos 200 anos, os ocidentais em geral formularam políticas para descentralizar o
poder dos meios de comunicação – justamente para manter neutras politicamente
as redes de comunicação ao narrar os fatos.
Contudo, devido a um acentuado afrouxamento na política de fusão e da ate-
nuação da lei antitruste, os americanos criaram gigantes conglomerados da mídia,
conforme explica o estudioso Richard John, a parêmia da neutralidade fora amea-
çada e a própria tradição americana (apud SCHECHTER, 2016).
Esse afrouxamento normativo e político criou um ambiente propício para o
ataque das grandes empresas de tecnologia; engendrada por um apetite peculiar de
crescimento, a internet passou por sucessivas aquisições.
Observa-se, pois, que os dados agora são a chave essencial para a publicidade,
uma vez que, se o anunciante sabe quem está visualizando o seu anúncio, esse espaço
se torna muito mais valioso. E os gigantes digitais agora sabem quem está vendo
cada um dos anúncios, e seus concorrentes – os jornais – não têm essa informação.
O pesquisador Matt Stoller narra a revolução ocorrida pela displicência nor-
mativa e regulatória, e a força da tecnologia digital que rompeu os padrões da
comunicação e da política, ao ponderar que a reestruturação operacional do meio
jornalístico ocorrera em detrimento da própria lisura da informação e sua ética:
Em outras palavras, não foi apenas a tecnologia, mas também uma filosofia favo-
rável à concentração que moldou a revolução da informação, nos anos 1990 a
2000. Google e Facebook cresceram para controlar utilitários de informação,
como pesquisa geral, redes sociais e mapeamento. Novas formas de publici-
dade – sustentadas pelo uso não regulamentado de dados e vendidas por meio

123
de leilões não transparentes e complexos – minaram a barganha das editoras e
permitiram novas formas de fraude usando bots e conteúdo falso.
Um resultado dessas mudanças é a centralização radical do poder sobre o fluxo
de informações. As plataformas tecnológicas agora controlam a receita da publi-
cidade online, que é a principal fonte de financiamento das notícias. Mas este
não é apenas um problema da monopolização da indústria. Google e Facebook
não estão no ramo do jornalismo. [...] O financiamento da publicidade apresenta
um conflito de interesses, pois a publicidade é uma terceira parte pagando para
manipular alguém. Na mídia tradicional, ela pode influenciar escolhas editoriais.
Há uma série de estruturas éticas projetadas para inibir o controle excessivo de
anunciantes sobre os meios de comunicação, resultados de debates por centenas
de anos entre figuras públicas sobre a natureza da publicidade e editoração. [...]
Mas tais debates éticos ainda precisam ocorrer em torno dos utilitários de
informação. Consequentemente, a deturpação da publicidade – dependência,
manipulação, fraude, ruptura de um tecido social – foi recebida com pouca imu-
nidade cultural, respostas políticas ou defesas institucionais.
Antes de o Google virar uma enorme empresa de publicidade, seus fundadores
– Sergey Brin e Larry Page – notaram esse problema. Eles analisaram o mer-
cado de mecanismos de pesquisa da década de 90 – com empresas oferecendo
aos anunciantes a chance de pagar para serem listados como resultado de uma
pesquisa orgânica – e argumentaram que o financiamento de um mecanismo de
pesquisa por meio da publicidade era fundamentalmente imoral.
Esses utilitários de informações teriam um incentivo de manter os usuários
em suas propriedades para que eles continuassem vendendo mais anúncios.
Eles também teriam um incentivo à autonegociação, colocando um conteúdo
diante dos usuários que beneficia o utilitário – e não o usuário final. E eles teriam
um incentivo de vigiar seus usuários, para que eles pudessem segmentá-los de
maneira mais eficaz. Brin e Page estavam certos quanto à influência corruptora
da publicidade. Esse modelo de negócios de comunicações é de onde vem o vício,
a vigilância, a fraude e a “isca de cliques”. Infelizmente, estamos vivendo no
mundo que eles previram.
A combinação dessas dinâmicas – concentração de poder e novos dilemas éticos
apresentados pelo financiamento das redes de informação pela publicidade –
criou uma crise para a democracia. A monopolização da receita publicitária tira o
financiamento de instituições legítimas. [...] A tarefa dos formuladores de políticas
agora é montar estruturas éticas para mitigar tais conflitos.
O colapso do jornalismo e da democracia não é inevitável. Para salvar a democra-
cia e a imprensa livre, precisamos eliminar o controle do Google e do Facebook
sobre o bem comum. Isso significa descentralizar esses mercados e separar os
utilitários de informação, para que pesquisa, mapeamento, o YouTube e outras
subsidiárias do Google sejam empresas separadas [...] Também significa restrin-
gir ou limitar a publicidade nessas plataformas. A receita publicitária deve voltar
a fluir para o jornalismo e a arte. (STOLLER, 2019, n.p., trad. livre, grifos nossos).
Notável, portanto, a preocupação de diversos pensadores e juristas a respeito
das formas mais agressivas da tecnologia digital, ao expor as vicissitudes de um
sistema big brother que ameaça a autonomia individual de escolhas do indivíduo,
mediante informação destorcida ou até manipulada pelos gigantes da tecnologia,
cuja introdução fundara o big data na imprensa com grande repercussão sobre os
profissionais do jornalismo, situação que deu ensejo à criação das fake news em um
ambiente de compartilhamento virtual.
124
3.3 ∙ A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE PROGRAMAS DE PROFILING
Para além das atribuições engendradas pelos gigantes de tecnologia, outras seve-
ras implicações da tecnologia têm ocorrido por programas ou incentivos estatais ou
paraestatais, com variados exemplos pelo mundo.
Um dos exemplos mais marcantes é o programa chinês de observação dos seus
cidadãos, conhecido como Sistema de Crédito Social – uma espécie de programa de
monitoramento social e político do cidadão, firmado pelo próprio governo chinês
em parceria com empresas de tecnologia, para o fim de conhecer, rastrear e ran-
quear o cidadão através de pontos e implementar políticas públicas de censura e
indução de comportamento (ou quiçá sua manipulação). As medidas vão desde o
monitoramento facial e digital até a averiguação de visitas aos ascendentes e ajuda
às pessoas com dificuldade financeira (pontos positivos), com o consequente crédito
ou descrédito (pontos negativos) para acesso a transporte público, assistência social,
financiamento e vaga estudantil.
O historiador de Harvard Julian Gewirtz descreve a obra do governo chinês de
controle social como digna de um filme de ficção científica, ao descrevê-la:
Quando o governo chinês viu que a tecnologia da informação estava se tornando
uma parte da vida diária, percebeu que teria uma nova ferramenta poderosa
para reunir informação e controlar cultura, para tornar o povo chinês mais
“moderno” e mais “governável”. (Apud MURILLO, 2019).
Por sua vez, Christina Larson, no artigo nominado “Who needs democracy
when you have data?”, discute a substituição da democracia pela tecnocracia, ao
apontar o aparato do Estado chinês e sua busca para uma política eficiente de con-
trole e monitoramento de sua população e respectivas instituições:
A ideia do uso da tecnologia como ferramenta do controle governamental chinês
remonta aos anos 80. [...] há várias iniciativas que compartilham uma estratégia
comum de coleta de dados sobre pessoas e empresas para informar a tomada de
decisões e criar sistemas de incentivos e punições para influenciar o comporta-
mento. Essas iniciativas incluem o “Sistema de Crédito Social” do Conselho de
Estado de 2014, a Lei de Cibersegurança de 2016, vários experimentos em nível
local e iniciativa privada em planos de “crédito social”, “cidade inteligente” e
policiamento orientado por tecnologia na região oeste de Xinjiang. Geralmente
envolvem parcerias entre o governo e as empresas de tecnologia da China. O mais
abrangente é o Sistema de Crédito Social, embora uma tradução melhor em inglês
possa ser o sistema de “confiança” ou “reputação”. [...] Listas negras são as primei-
ras ferramentas do sistema. Nos últimos cinco anos, o sistema de Tribunais da
China publicou os nomes de pessoas que não pagaram multas ou cumpriram os
julgamentos. Sob novas regulamentações de crédito social, essa lista é comparti-
lhada com várias empresas e agências governamentais. As pessoas na lista se viram
impedidas de pedir dinheiro emprestado, reservar voos e ficar em hotéis de luxo.
As empresas nacionais de transporte da China criaram listas negras adicionais
para punir os passageiros por comportamento como: bloquear as portas dos trens
ou se envolver em brigas durante uma viagem; os infratores são impedidos de com-
pras futuras de ingressos por seis ou 12 meses. No início deste ano, Pequim estreou
uma série de listas negras para proibir empresas “desonestas” de serem premiadas
com futuros contratos governamentais ou concessões de terras. [...]
A Prefeitura exibe cartazes de modelos locais, que exibiram “virtude” e obtive-
ram altas pontuações. “A ideia do crédito social é monitorar e administrar como

125
as pessoas e instituições se comportam”, diz Samantha Hoffman, do Instituto
Mercator de Estudos da China, em Berlim. “Quando uma violação é registrada em
uma parte do sistema, ela pode engatilhar respostas em outras partes do sistema.
É um conceito concebido para apoiar tanto o desenvolvimento econômico quanto
a gestão social, e é inerentemente político”. [....] Uma das maiores preocupações
é que, como a China carece de um Judiciário independente, os cidadãos não têm
como contestar alegações falsas ou imprecisas. Alguns encontraram seus nomes
escrutinados em listas negras de viagem, sem notificação após uma decisão judi-
cial. Peticionários e jornalistas investigativos são monitorados de acordo com
outro sistema, e as pessoas que entraram na reabilitação de drogas são vigiadas por
um sistema de monitoramento diferente. “Teoricamente, os bancos de dados de
usuários de drogas deveriam apagar nomes depois de cinco ou sete anos, mas eu vi
muitos casos em que isso não aconteceu”, diz Wang da Human Rights Watch. “É
imensamente difícil se livrar de qualquer uma dessas listas” [...].
A opacidade do sistema torna a evolução dessa sistemática particularmente difí-
cil. (LARSON, 2018, n.p., trad. livre).
Resta a pergunta: tal sistema tecnológico seria viável no Brasil?
De início, há de se frisar que os fundamentos da Constituição de 1988 não com-
partilham de tamanha intervenção estatal na vida do cidadão, através de marcação
de pontos negativos e até o ranqueamento do cidadão e seu perene monitoramento,
pois gera sentimentos de lesão ao próprio princípio da dignidade da pessoa humana
e ao objetivo central da nação, a constituição de uma sociedade livre, justa e solidá-
ria – objetivos da Constituição do Brasil.
A rigor, um programa estatal de permanente monitoramento de todos os cidadãos
repercute sobre a própria peculiaridade do Estado Democrático, trata-se de sistema
que afugenta o princípio republicano da liberdade, como direito fundamental do
cidadão em suas diversas manifestações. Deveras, uma fonte digital de permanente
fiscalização mais parece uma reprimenda do que uma política pública.
Situação diversa seria um programa estatal de benefícios e vantagens para aquele
cidadão ou consumidor que cumprir determinados comportamentos – chamada
lista positiva; o que não chancelaria sua recíproca imposição de lista de penalidades,
pois seria subversiva ao próprio conceito de liberdade e do Estado Democrático de
Direito expresso na Constituição Federal.
Além disso, qualquer forma pública de constrangimento moral poderá ensejar
afronta ao objetivo de se promover o bem de todos, sem preconceito de origem ou
outras formas de discriminação (CF, art. 3º, IV).
Nesse esteio resta propício mencionar interessante notícia a respeito de assunto
que medeia a questão. Segundo informações publicadas na grande mídia, ainda no
mês de fevereiro, encontra-se a seguinte notícia, lançada no sítio do G1, da Globo:
GOVERNO DE SP MUDA EDITAL QUE PREVIA CONTRATAR EMPRESA
PARA MONITORAR APOIADORES E CRÍTICOS NAS REDES SOCIAIS
A polêmica estava no item de monitoramento dos produtos e serviços, que tra-
zia a exigência de que a empresa acompanhasse 24 horas por dia, sete dias por
semana a imagem do governo em veículos online e redes sociais. [...]
O governo de São Paulo desistiu de monitorar quem fala bem ou mal dele na
internet. A Secretaria de Governo publicou nesta quarta-feira (12) um novo

126
edital para contratar uma empresa de inteligência em comunicação digital.
O serviço deve custar R$ 15,8 milhões em contrato de 15 meses. Em nota, o
governo do estado disse que, “em nome do interesse público”, foram retirados do
texto os termos que davam margem a falsas interpretações, trazendo ainda mais
transparência ao processo e que “o edital está de acordo com a Lei de Proteção
de Dados”, com total respeito ao direito de privacidade dos usuários das redes
sociais, que não serão classificados por comportamentos. 
O edital original previa que a empresa contratada divulgasse políticas do
governo, informações de interesse público e oferecesse um atendimento digital
ao cidadão, via rede social. [...]
No dia 3 de fevereiro, o Tribunal de Contas do Estado notificou o governo para se
pronunciar sobre o edital. Nesta quarta-feira, a Secretaria de Governo publicou
o novo documento. O item “monitoramento e análise de dados” passou a ser
“captação e análise de dados”.  (GUEDES, 2020).
Com efeito, a instituição de um programa ou forma de monitoramento polí-
tico ao cidadão aponta para perigoso precedente tecnológico em face do direito
à liberdade de expressão, censura, bem como prejuízos ao conceito de liberdade
política expresso em Tratados Internacionais. Isso porque implica uma tentativa do
governo de monitorar detratores e assim levar a um processo de autocensura nas
redes sociais, além de abrir um precedente perigoso para a perseguição de oposito-
res políticos, devendo-se fidelidade ao princípio da impessoalidade e da privacidade
na vida do cidadão – vide ADPF 722 – (sem prejuízo de atividade de inteligência
produzida pelo órgão adequado para apurar fato determinado).
Vale lembrar que a liberdade de expressão é um direito consagrado como direito
inerente ao ser humano, essencial à realização e proteção de toda forma de mani-
festação social e política. O primeiro documento a garanti-la internacionalmente
é a Declaração Universal dos direitos Humanos de 1948, no âmbito da Assembleia
das Nações Unidas, cujo artigo 19 dispõe:
Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito
inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber
e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente
de fronteiras.
A rigor, o próprio regime democrático que preside todo o arcabouço valorativo-
-normativo das regras jurídicas admite por sua própria natureza o direito a discordar
de um ponto de vista ou de uma forma de política, pois é condizente com a essência da
liberdade de expressão apontada desde os renascentistas, através da frase não concordo
com uma palavra do que você diz, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las.
Deveras, o direito a livre manifestação do pensamento e da expressão tem
como marco moderno a obra de Stuart Mill, que a batizou como o “mercado de
ideias”, justamente por se poder falar o que pensa em grupo. E a censura é preci-
samente uma forma de atentar contra essa liberdade, de forma que o monitora-
mento perene é justamente uma nova forma de censura, pois provoca exatamente
isso, a autocensura, ao constranger o debate democrático ou travá-lo, através da
tecnologia de monitoramento.
Ademais, a lei brasileira de proteção de dados parte da concepção da autode-
terminação informativa, de forma que o titular da informação tem a prerrogativa

127
de acesso e compartilhamento de seus dados (art. 2º, II) – o que implica profundas
modificações na atual gestão empresarial dos dados, então relegados ao alvedrio das
forças capitalistas da auto-organização.
Conjuntura distinta, porém, têm as considerações a respeito de monitoramento
em questões de saúde pública, cuja conditio sine qua non é justamente a anonimi-
zação dos dados particulares – isto é, quando a tecnologia procura saber a quanti-
dade de pessoas que estão frequentando determinados lugares. Essa preocupação
tornou-se relevante em tempos da pandemia da Covid -19, pois há necessidade de
as autoridades de saúde terem noção do índice de deslocamento social para imple-
mentar uma política de saúde pública para o combate da pandemia.
Por essa razão, há vozes que apontam que, nesse caso de análise social, des-
conectada da identidade do portador do celular ou seu chip (anonimizada), não
há ultraje à autonomia individual. Relevante observar que a própria Lei Geral de
Proteção de Dados (Lei n. 13.709/2018) já prevê essa possiblidade em seu art. 13 ao
dispor sobre situações de relevância sanitária, como a presente, bem como exigir
expressamente sua anonimização:
Art. 13. Na realização de estudos em saúde pública, os órgãos de pesquisa pode-
rão ter acesso a bases de dados pessoais, que serão tratados exclusivamente den-
tro do órgão e estritamente para a finalidade de realização de estudos e pesquisas
e mantidos em ambiente controlado e seguro, conforme práticas de segurança
previstas em regulamento específico e que incluam, sempre que possível, a ano-
nimização ou pseudonimização dos dados, bem como considerem os devidos
padrões éticos relacionados a estudos e pesquisas.
§ 1º A divulgação dos resultados ou de qualquer excerto do estudo ou da pesquisa de
que trata o caput deste artigo em nenhuma hipótese poderá revelar dados pessoais.
§ 2º O órgão de pesquisa será o responsável pela segurança da informação pre-
vista no caput deste artigo, não permitida, em circunstância alguma, a transfe-
rência dos dados a terceiro.
§ 3º O acesso aos dados de que trata este artigo será objeto de regulamentação
por parte da autoridade nacional e das autoridades da área de saúde e sanitárias,
no âmbito de suas competências.
§ 4º Para os efeitos deste artigo, a pseudonimização é o tratamento por meio
do qual um dado perde a possibilidade de associação, direta ou indireta, a um
indivíduo, senão pelo uso de informação adicional mantida separadamente pelo
controlador em ambiente controlado e seguro.
Acresça-se, por oportuno, que tal ingerência implica a impossibilidade do processo
de reverter a anonimização geral, sob pena de afronta à garantia legal da autoinforma-
ção e da própria higidez legal da LGPD, que preceitua tal orientação como princípio.
O desafio é justamente aferir o deslocamento de pessoas contaminadas, em
que o regramento legal deverá caminhar para uma espécie de pseudonimização,
cujas relativizações deverão vir expressas na lei, baseadas em motivações de saúde
pública. Por sua vez, a identificação do usuário só poderá ser sustentada com base
em decisão judicial, na chamada cláusula de reserva de jurisdição por se tratar de
relativização de direitos fundamentais, através de decisão que efetivamente pondere
o caso concreto e a política de saúde pública para aferir o caso, em afinada pondera-
ção dos direitos fundamentais em conflito.

128
Essa conclusão advém da hermenêutica que sustenta que qualquer relativização
de direitos fundamentais seja realizada com parcimônia em face de outro direito
fundamental – como a segurança e a saúde – através do próprio Poder Judiciário, o
que é consagrado pela expressão reserva de jurisdição, cuja medida de ponderação
é autorizada na forma do art. 489, 2º, do Código de Processo Civil.

4 ∙ CONCLUSÃO
À guisa de conclusão, convém ressaltar: um programa estatal de permanente
monitoramento de todos os cidadãos repercute sobre a própria peculiaridade do
Estado Democrático, trata-se de sistema que afugenta o princípio republicano da
liberdade, como direito fundamental do cidadão em suas diversas manifestações.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Por uma teoria do poder destituinte. 5dias.net. 11 de fevereiro de
2014. Disponível: https://5dias.wordpress.com/2014/02/11/por-uma-teoria-do-poder-des
tituinte-de-giorgio-agamben/. Acesso em: 2 fev. 2020.
ANDRADE, José Maria Arruda de. Economicização do direito concorrencial. São Paulo:
Quartier Latin, 2016.
BATTELLE, John, The Search: How Google and its Rivals Rewrote the Rules of Business
and Transformed Our Culture. UK: Hachette, 2011.
BLUM, Rita Peixoto Ferreira. O direito à privacidade e à proteção de dados do consumidor.
São Paulo: Almedina, 2018.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1991.
FERRIANI, Luciana de Paula. Direito ao esquecimento. São Paulo: Instituto dos Advogados
de São Paulo, 2017.
FONTES, Paulo G. Neoconstitucionalismo e verdade: limites democráticos da jurisdição
constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
GONZALES, Douglas C. O argumento econômico na análise judicial. Revista Brasileira
de Direito Comercial, 23. ed. jun./jul. 2018, p. 50-75.
GUEDES, Philipe. 12 de fevereiro de 2020. Governo de SP muda edital que previa contratar
empresa para monitorar apoiadores e críticos nas redes sociais. Disponível em https://
g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/02/12/governo-de-sp-muda-edital-que-previa-
contratar-empresa-para-monitorar-apoiadores-e-criticos-nas-redes-sociais.ghtml.
HABERLE, Peter. El estado constitucional. Buenos Aires: Astrea, 2007.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre:
L&PM, 2020.
KELLY, Kevin. Inevitável: as 12 forças tecnológicas que mudarão o nosso mundo.
Tradução de Cristina Yamagami. São Paulo: HSM, 2017.
LARSON, Christina. Who needs democracy when you have data? 20 de agosto de 2018.
Disponível em: https://www.technologyreview.com/s/611815/who-needs-democracy-
when-you-have-data/. Acesso em: 27 fev. 2020.

129
LOVELUCK, Benjamin. Redes, liberdades e controle: uma genealogia política da internet.
Trad. João F. Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2018.
MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor; RAMGE, Thomas. Reinventing capitalism in the age
of big data. New York: Basic Books, 2018.
MURILLO, Javier. La democracia y el ojo de Sauron. 16 de agosto de 2019. Disponível
em: https://www.elfinanciero.com.mx/opinion/javier-murillo/la-democracia-y-el-ojo-de-
sauron. Acesso em: 27 fev.2020.
NUNES, Dierle. A tecnologia no controle das massas em processos decisórios. Disponível
em: https://www.conjur.com.br/2019-fev-12/dierle-nunes-tecnologia-controle-massas-
processos-decisorios. Acesso em: out. 2020.
SCHECHTER, Asher. When Did Americans Stop Being Antimonopoly? 21 de novembro
de 2016. Disponível em: https://promarket.org/americans-stop-antimonopoly-q-richard
-r-john/. Acesso em: out. 2020.
STOLLER, Matt. Tech Companies Are Destroying Democracy and the Free Press. New
York Times. Out. 2019. Disponível em: https://www.nytimes.com/2019/10/17/opinion/
tech-monopoly-democracy-journalism.html. Acesso em: out. 2020.
SILVA NETO, Manoel Jorge. O Constitucionalismo brasileiro tardio. Brasília: ESMPU, 2016.
TAVARES, André Ramos. APP´s e plataformas online na intermediação econômica no
Brasil. Revista de Direito Constitucional & Econômico, Unialfa e USP, vol. 1, jan.-jun., 2019.
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2018.
TEIXEIRA, Tarcísio; ARMELIN, Ruth M. G. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
São Paulo: JusPodivm, 2019.
VERDU, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir
constitucional como modo de integração política. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2009.
ZUBOFF, Shosana. The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the
new frontier of power. London: Profile books, 2019.

130
DIREITO À SAÚDE, PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO
E A PANDEMIA DE COVID-19
Duciran Van Marsen Farena1

Sumário: 1 A emergência sanitária da Covid-19. 2 Direito à saúde. Sistema Único de Saúde


(SUS). Emergências sanitárias. 3 Pandemia de Covid-19 e sociedade global de riscos.
Percepção do risco. 4 Princípios da prevenção e precaução e o dever estatal de proteção.
5 Regulação do risco e precaução. 6 Precaução e proporcionalidade. 7 Princípio da precaução
e riscos de medicamentos e tratamentos. 8 Princípio da precaução e responsabilidade pela
ação (ou inação). 9 Conclusões.

1 ∙ A EMERGÊNCIA SANITÁRIA DA COVID-19


O início do segundo decênio do século XXI ficará marcado na história pelo
maior desafio enfrentado pelos sistemas de saúde mundiais nos últimos 50 anos:
a pandemia causada pelo Coronavírus de Síndrome Respiratória Aguda Grave
(SARS-Cov-2) ou, simplesmente, Covid-19.
Por seu poder de contágio, rápida propagação, altos índices de internação hos-
pitalar e dramático impacto provocado no modo de vida e na economia de quase
todos os países do mundo, a crise sanitária causada pelo novo patógeno se diferencia
de qualquer outra ocorrida nas últimas décadas e põe à dura prova não só a forma
como são estruturados e disponibilizados os serviços de saúde no mundo inteiro,
mas também as formas de regulação da sua prestação ao público.
Um fator importante ficou bem claro para a quase totalidade dos sistemas de saúde
impactados pela pandemia. Nenhum estava realmente preparado para enfrentar as
consequências da doença, tornando imperiosa a necessidade de adoção de medidas
drásticas para a redução do impacto, como quarentenas rigorosas; e onde essas não
foram adotadas, os resultados foram ainda mais devastadores. Ademais, a pandemia
agravou as notórias deficiências dos sistemas de saúde para enfrentar a normalidade
das tarefas de saúde, como ocorre no caso do nosso Sistema Único de Saúde (SUS).
Igualmente escancarou a insuficiência da Organização Mundial da Saúde (OMS),
organização internacional encarregada de prevenir ou responder às múltiplas amea-
ças à saúde que possuem a capacidade de atravessar fronteiras (VENTURA, 2013,
p. 36/37). O sistema internacional de prevenção epidemiológica, baseado na coope-
ração entre seus membros, na detecção precoce, na transparência e no predomínio
das evidências científicas, falhou em mostrar uma resposta coesa à pandemia, em
termos de adoção de medidas preventivas.

1 Procurador Regional da República na 5ª Região. Doutor em Direito Econômico pela Universidade


de São Paulo (USP). Professor Adjunto do Departamento de Direito Público da Universidade
Federal da Paraíba (UFPB).

131
Evidentemente, em um panorama mundial no qual a agência encontra forte
criticismo e ataques por parte de líderes populistas, por razões de anticientificismo
e antiglobalismo retrógrado, pouco espaço haveria para o fortalecimento da coo-
peração e da coordenação, mas em todo caso a pandemia de Covid-19 demonstrou
essa necessidade de modo premente. Tal discussão, contudo, refoge aos limites deste
artigo, exceto no que ela evidencia quanto à necessidade de aplicação e fortaleci-
mento do princípio da precaução em matéria de saúde.
Desde a identificação dos primeiros casos, em Wuhan, China, no começo de
dezembro de 2019, até 30 de janeiro de 2020, quando foi declarada Emergência de
Saúde Pública de Importância Internacional (EESPII) pela Organização Mundial
da Saúde, e 11 de março de 2020, quando a instituição declarou a Covid-19 uma
pandemia global, transcorreu um tempo precioso cujo desperdício foi fundamental
para o alastramento da doença para praticamente o mundo inteiro. A toda evidên-
cia, a OMS, já sob ataque constante, como vimos acima, certamente correria sério
risco de descrédito caso um alerta mais drástico não correspondesse à realidade,
tal como ocorreu com a pandemia de gripe A (H1N1).2 Seja como for, a tônica dos
países integrantes da organização variou entre a incredulidade e a expectativa vã
de que não seriam atingidos, quando muito poderia ter sido feito em termos de
preparação dos sistemas de saúde e da população para o que viria adiante.
Evidentemente, todas essas considerações convergem para demonstrar que, em
matéria de emergências sanitárias globais, não houve espaço para medidas precau-
cionistas; certamente esse cenário precisa mudar se quisermos estar preparados
para o próximo evento pandêmico.
Nossa investigação direciona-se basicamente para a ordem jurídica interna, a
fim de examinar onde e como uma maior consideração pelo princípio da precaução
poderia acarretar ganhos no enfrentamento de emergências sanitárias e na própria
garantia do direito à saúde de modo geral.

2 ∙ DIREITO À SAÚDE. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS).


EMERGÊNCIAS SANITÁRIAS
O direito à saúde está contemplado, entre outros dispositivos, no art. 196 da
Constituição Federal:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agra-
vos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação.
Por sua vez, dispõe o art. 2o da Lei n. 8.080/1990, a Lei do SUS:
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado
prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de
políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros
agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igua-
litário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

2 Cf. VENTURA, 2013, p. 199-247.

132
A saúde afirma-se em nosso ordenamento jurídico como um direito funda-
mental da pessoa humana, relacionado com a vida e a dignidade humana. Trata-se
de um direito de segunda geração, de natureza prestacional, demandando ações
estatais positivas para seu exercício, por meio de políticas públicas que assegurem
o acesso universal, igualitário e incondicionado às ações e aos serviços de saúde.
Incondicionado, porque a titularidade do direito se prende apenas à condição de
pessoa humana, independentemente de exercício da cidadania, nacionalidade,
capacidade civil, contribuição ou qualquer outro requisito que não seja a própria
necessidade do indivíduo. Na característica da universalidade, o sistema deve apre-
sentar versatilidade para atender às diferentes necessidades de saúde dos grupos
populacionais no território nacional, em especial os mais vulneráveis, como indíge-
nas, populações de rua, migrantes, LGBT, etc.
A saúde, enquanto prestação estatal, vincula-se ao próprio direito à vida,
previsto no art. 5o, caput, da Constituição Federal, que assegura “[...] aos brasi-
leiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, bem como ao objetivo
fundamental da nação brasileira, no sentido de “promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação” (art. 3º, IV, CRFB/88). A interpretação e aplicação do direito à
saúde deverá sempre obedecer ao princípio da máxima efetividade dos direitos
fundamentais, sendo pacífico hoje que
a eficácia dos direitos fundamentais requer não apenas uma hermenêutica
judiciária mas também uma interposição legislativa e uma administração que
prezem pela máxima efetividade destes direitos fundamentais e da dignidade da
pessoa humana. (HARTMANN, 2012, p. 167).
Como direito de natureza prestacional, o direito à saúde deve ser concreti-
zado por meio de políticas públicas, de natureza social e econômica. As ações e
os serviços de saúde integram o Sistema Único de Saúde (SUS), definido em lei
como “o conjunto de ações e serviços de saúde, prestado por órgãos e instituições
públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das
fundações mantidas pelo Poder Público” (art. 4º, caput, Lei n. 8.080/1990).
O Sistema Único de Saúde caracteriza-se por sua descentralização em “três
sócios”, União, estados e municípios, incumbidos de diferentes níveis da prestação
do serviço, sendo as ações preventivas e de vigilância sanitária de responsabilidade
de todos. A prestação de serviços definidos como “ações e serviços de saúde” é feita
por meio de uma rede regionalizada e hierarquizada regida conforme as diretrizes
da universalidade, da equidade e da integralidade.
A solidariedade entre os entes de direito público interno foi reafirmada pelo
Supremo Tribunal Federal no RE 855.178-SE,3 firmando a tese de que
os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente
responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 855.178-SE. Relator: Min. Luiz Fux, 23 de maio de 2019.
Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.
asp?incidente=4678356&numeroProcesso=855178&classeProcesso=RE&numeroTema=793.
Acesso em: 3 ago. 2020.

133
constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judi-
cial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências
e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
Paralelamente a isso, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar
em 30.4.2020 medida cautelar na ADI 6343,4 conferiu interpretação conforme a
Constituição ao inciso II do § 7º do art. 3º da Lei n. 13.979/2020, para decidir que,
amparados em evidências científicas e nas recomendações da Organização Mundial
da Saúde, estados, municípios e Distrito Federal, no âmbito de suas competências e
em seu território, podem adotar medidas como isolamento e quarentena durante o
estado de emergência decorrente da pandemia do novo coronavírus, sem a neces-
sidade de autorização do Ministério da Saúde, e sem embargo da competência da
União para decretação das mesmas medidas, quando houver interesse nacional.
De fato, diante de um evento epidemiológico, de gravidade e potencial dissemi-
natório, cabe à Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde a avaliação
do risco e a adoção de resposta nacional imediata. No entanto, a inércia da União
não afasta a competência dos estados para, no âmbito de suas atribuições, adotarem
as respectivas providências, conforme o decidido pelo Supremo Tribunal Federal na
prefalada ADI 6343.
A pandemia causada pela Covid-19, como vimos, foi declarada emergência de
saúde pública de âmbito internacional pela Organização Mundial da Saúde.
Segundo CARMO, PENNA e OLIVEIRA (2008, n. p.):
O termo emergência de saúde pública de importância internacional é definido
no Regulamento Sanitário Internacional (2005), como (WHA, 2005, p. 6):
Evento extraordinário, o qual é determinado, como estabelecido neste regulamento:
por constituir um risco de saúde pública para outro Estado por meio da propa-
gação internacional de doenças;
por potencialmente requerer uma resposta internacional coordenada.
O Regulamento Sanitário Internacional em sua versão atual (2005) produziu,
segundo Deisy Ventura, “um direito de emergência, de natureza transversal, como
intersecção entre o direito internacional e o direito interno” (2013, p. 38). Por sua
vez, pandemia, segundo a definição da OMS no episódio da gripe H1N1, é uma
doença, “no caso, infecção viral aguda – com transmissão inter-humana contínua,
imputável a surtos em nível comunitário em ao menos duas regiões da OMS e ao
menos num país em cada uma dessas regiões” (apud VENTURA, 2013, p. 37).
No plano nacional, a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional
(ESPIN), conforme prevista no Decreto n. 7.616/2011, foi declarada pela Portaria n.
188/2020, tendo o Congresso Nacional reconhecido, para fins de não incidência de
restrições da Lei Complementar n. 101/2000, o estado de calamidade pública, por
meio do Decreto Legislativo n. 6, de 20 de março de 2020.
A Lei n. 13.979/2020 dispõe sobre as medidas para enfrentamento da EESPII
decorrente do coronavírus, prevendo em seu art. 3º medidas como isolamento com-
pulsório, quarentena, determinação de realização compulsória de exames, testes,

4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 6343. Relator: Min. Marco Aurélio, Plenário, 30 de
abril de 2020. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5881008.
Acesso em: 5 ago. 2020.

134
coleta de amostras clínicas, vacinação, etc. A despeito da previsão legal, não houve,
por parte do governo federal, a imposição de uma quarentena nacional; medidas
nesse sentido foram impostas por estados e municípios, de forma descoordenada, a
partir da segunda metade do mês de março de 2020.

3 ∙ PANDEMIA DE COVID-19 E SOCIEDADE GLOBAL DE RISCOS.


PERCEPÇÃO DO RISCO
A pandemia de Covid-19 deve ser entendida como uma catástrofe global, cujas cau-
sas e consequências ultrapassam as fronteiras nacionais, não podendo ser combatida
isoladamente por qualquer país. Alcançando praticamente todo o mundo, evidenciou
a interconexão hoje existente, a qual amplia o risco de rápida disseminação de novas
doenças e consequentemente o impacto econômico do fechamento de fronteiras, da
paralisação de atividades econômicas e do tráfego de pessoas. Outrossim, a pandemia
põe de manifesto as relações entre meio ambiente e epidemiologia, considerando que
as formas de consumo e produção de proteína animal, bem como a devastação dos
habitats, provocam desequilíbrios que levam ao surgimento de novos vírus patogêni-
cos capazes de infectar o ser humano (DESTRUIÇÃO DE HÁBITATS..., 2020). Enfim,
seu advento aponta para a necessidade de uma reconfiguração dos sistemas de saúde
nacionais, orientados pela lógica do mercado, e, por via de consequência, a exclusão de
grande parte da população. De idêntica forma, impõe-se o fortalecimento do sistema
mundial de prevenção a epidemias, centralizado hoje na enfraquecida Organização
Mundial da Saúde, cujo poder normativo, associando normas obrigatórias e soft law,
mostrou-se incapaz de proporcionar ao mundo uma segurança sanitária adequada
diante da crise do coronavírus.
A história da humanidade foi construída enfrentando as vicissitudes de doenças
infecciosas. Contudo, mesmo diante de outros exemplos do século XX, temos aqui
uma situação singular, não só pela rapidez da transmissibilidade, acarretando risco
iminente de colapso de qualquer sistema de saúde existente, mas principalmente
por incidir em uma época marcada pela complexidade e pela ambiguidade das rela-
ções criada pela globalização, ampliando a incerteza das repercussões das decisões
administrativas tomadas ao calor da reação contra a pandemia.
Com efeito, conforme Bolzan de Morais (2004, p. 126), a globalização não é
fenômeno restrito ao capital financeiro, mas representa “um processo radical-
mente incerto e ambivalente que se projeta por sobre os mais variados aspectos
da vida”. Assim,
nesse espectro, a globalização não deve ser equacionada exclusivamente como
um fenômeno econômico ou como um processo único, mas como uma mistura
complexa de processos frequentemente contraditórios, produtores de conflitos
e de novas formas de estratificação e poder […] exigindo maior reflexividade
na ação diante do incremento da complexidade e da incerteza. (BOLZAN DE
MORAIS, 2004, p. 126).
Interessante abordar a pandemia à luz da concepção de sociedade global de ris-
cos, conforme delineada por Ulrich Beck, dentro da ideia da nova modernidade
criada pela globalização, em que a distribuição de riscos passa a ser fator prepon-
derante. A sociedade de risco pode ser conceituada como “[...] uma fase no desen-
volvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos

135
e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e
a proteção da sociedade industrial”. Assim, o risco é consequência do avanço da
modernidade, “a produção da riqueza vai acompanhada sistematicamente da pro-
dução de risco” (BECK, 1997 apud BODNAR, 2009, p. 103).
Conforme Beck (2010, p. 31), “riscos assim como riquezas são objeto de distribui-
ção, constituindo igualmente posições – posições de ameaça ou posições de classe”.
A problemática da distribuição do risco assume relevo no ambiente da globalização,
marcado pela incerteza e pela convergência de múltiplos fatores incontroláveis,
gerando um “universalismo das ameaças” à natureza, à saúde, à alimentação, rela-
tivizando-se as diferenças e as fronteiras sociais (BECK, 2010, p. 43). A pandemia de
Covid-19 pode ser considerada uma “situação social de ameaça” (BECK, 2010, p. 27)
criada pela distribuição e pelo incremento dos riscos. Neste evento epidemiológico de
magnitude global, a dimensão da incerteza é preponderante. Essas incertezas come-
çam com o conhecimento incipiente sobre o agente patológico cuja origem na China
no momento está sendo colocada em questão. Dúvidas pairam sobre a aquisição de
imunidade total e a possibilidade de reinfecção; sobre a existência de resistência natu-
ral da população ou imunidade cruzada com outras variedades de coronavírus; sobre
a eficácia de medicamentos e vacinas que estão em teste a toque de caixa; sobre a pro-
porção da população infectada necessária para que se alcance a imunidade coletiva ou
“de rebanho”, etc. A essa incerteza natural derivada do descompasso entre a evolução
dos efeitos da infecção e a velocidade do conhecimento adquirido soma-se a causada
pela sofisticação da tecnologia e dos protocolos de saúde, focados em tratamentos dis-
pendiosos de doenças crônicas das populações economicamente privilegiadas, muito
mais do que na atenção básica e na prevenção de doenças.
Outro fator a agravar a distribuição desigual do risco e ampliar a insegurança
diz respeito à percepção do risco. Sempre difícil, em sistemas complexos, torna-se
ainda mais acentuada quando se trata da pandemia de Covid-19, em que a desinfor-
mação proposital parece propagar-se em velocidade maior do que o vírus. Um dos
fatores que contribui para a distribuição desigual do risco – ou sua transferência
para terceiros – no ambiente global é a desinformação quanto à realidade do risco.
Um exemplo é o clássico viés para superestimação de riscos em coisas corriqueiras,
conhecidas, e sua minimização quando se trata de novas ameaças. A título de exem-
plo, uma pessoa pode superestimar o risco de viajar de avião, a ponto de evitar esse
tipo de viagem, mas subestimar o risco da automedicação, de possuir uma arma de
fogo ou de contrair o coronavírus. Correção das assimetrias e dos desvios informa-
cionais, especialmente os causados pela propagação de notícias falsas, e disponibi-
lização maciça de informações tecnicamente adequadas e baseadas em evidências
médicas tornam-se fundamentais.
As polêmicas que cercam a pandemia de Covid-19 deixam transparecer, de forma
cristalina, questões de distribuição de risco que permeiam todas as decisões de impacto
quanto ao seu enfrentamento. Cautelas preventivas, adotadas com base em planeja-
mentos e estudos técnicos, que levem em conta a saúde da população e a proteção
das gerações futuras, tornam-se cruciais para as decisões informadas das autoridades.
Com base em estudos técnicos e epidemiológicos, a imensa maioria dos países do
mundo enfrentou dilemas como a adoção de medidas de quarentena, o momento ade-
quado para retomada de atividades, a capacidade dos sistemas de saúde para absorção

136
do número crescente de pacientes, a suspensão do tráfego de passageiros internos e
internacionais, o isolamento e as testagens compulsórias, a obrigatoriedade do uso de
máscaras; e até questões econômicas como a ampliação do intervencionismo econô-
mico, a renegociação de contratos, o controle de práticas abusivas e o apoio financeiro
às populações vulneráveis impactadas pela supressão de suas fontes de renda.
Efetivamente, decisões com base em leis ou atos administrativos, que não sope-
sem esses riscos e interesses na perspectiva do dever fundamental de proteção, ou
que promovam uma proteção deficiente ao prestigiarem interesses setoriais ou
localizados em detrimento da saúde, ou que se baseiem em idiossincrasias, violarão
frontalmente a ordem jurídica tanto interna quanto internacional.

4 ∙ PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E PRECAUÇÃO


E O DEVER ESTATAL DE PROTEÇÃO
Nesse diapasão, assume relevância, como derivativo do dever estatal de prote-
ção, a expansão dos princípios da prevenção e da precaução, em matéria de saúde
pública. Como é curial, esses princípios, desenvolvidos originariamente no Direito
Ambiental, firmaram-se como parâmetro aplicável a todos os casos em que estejam
em causa direitos fundamentais que demandam ações positivas a sua concretização,
seja em matéria de proteção ambiental, defesa do consumidor ou direito à saúde.
No que tange ao princípio da prevenção, aplica-se aos casos em que se formou
certeza, ou pelo menos forte consenso científico, acerca dos danos e da relação de
causalidade com determinada conduta. Assim, impõe-se uma ação para prevenir
esses danos ou impedi-los, nos casos inevitáveis. É o caso de agrotóxicos, de extra-
ção de petróleo convencional ou de consumo de cigarros.
Por sua vez, o princípio da precaução lida com os casos em que a causalidade do
dano apresenta um grau acentuado de incerteza. Nesses casos, a ausência de certeza
científica ou de um consenso científico firme quanto à causalidade ou ao resultado
não deve ser tomada como razão para que não sejam adotadas medidas que visam
a afastar ou mitigar os danos possíveis de empreendimentos ou a comercialização
de produtos potencialmente perigosos, exigindo-se do interessado submissão a aná-
lises de risco, adoção de medidas de precaução ou mesmo, em casos extremos, em
que há riscos intoleráveis, impedimento da ação.
Prevenção e precaução se distinguem pelo grau de compreensão do risco.
Enquanto na prevenção o objetivo é evitar risco cuja relação de causa e efeito é
conhecida, na precaução a ação é disparada pela incerteza. A precaução começa
onde a prevenção termina. No entanto, na sociedade de risco, onde a complexi-
dade das relações e a interdependência tornam o risco difícil de avaliar, sobressai
a importância da precaução sobre a prevenção, que, no entanto, não deixa de ser
ponto de partida essencial, mas não suficiente.
O sentido da precaução em se tratando de vigilância epidemiológica opera para
justificar que, diante de uma doença infecciosa altamente transmissível, e dos ris-
cos acarretados para a saúde e a vida das pessoas, quer pela letalidade da doença,
quer pela sobrecarga dos serviços de saúde, não haja lugar para que seja desprezada
nenhuma medida não farmacêutica que seja eficaz para evitar a propagação da
doença, ainda que não haja total consenso científico quanto a seus resultados.

137
É o caso suscitado pelas restrições de atividades e circulação (lockdown ou
quarentena), em que se defrontam posições a favor e outras contrárias, advogando
a imunidade de rebanho como melhor estratégia, isto é, que a epidemia teria fim
quando parte considerável da população tivesse contato com o vírus. No entanto, a
relevância dos valores em jogo, entre os quais as vidas dos que pereceriam com essa
estratégia, considerada a precaução, não permite alternativa senão a que promove a
segurança e a vida. Hoje, com base em dados estatísticos dos lugares mais afetados,
já se forma consenso no sentido de que não é possível em curto prazo, ou mesmo
quiçá impossível, alcançar a imunidade de rebanho quando se trata de Covid-19
(ESTUDO..., 2020), ou seja, os efeitos dramáticos da não adoção da medida signifi-
cariam apenas um sacrifício inútil de direitos fundamentais.
O princípio da precaução encontra-se estreitamente ligado à ideia de desenvolvi-
mento sustentável, envolvendo também a proteção das gerações futuras. Conforme
afirma Ulrich Beck (2010, p. 40), “a verdadeira força social do argumento do
risco reside nas ameaças projetadas no futuro”. Em 1987, a Comissão Brundtland
divulgou relatório denominado “Nosso Futuro Comum” e conceituou a base do
desenvolvimento sustentável como “[...] a capacidade de satisfazer as necessidades
do presente, sem comprometer os estoques ambientais para as futuras gerações”
(UNITED NATIONS, 1987). O desenvolvimento sustentável não pode ser logrado
sem uma extensiva aplicação do princípio da precaução, impondo uma utilização
racional dos bens comuns de forma a preservá-los de riscos que possam impactar as
gerações futuras, muitas vezes de forma irreversível.
O princípio da precaução afirmou-se como um imperativo na análise prévia
de produtos ou atividades que não demonstrem cabalmente sua segurança na
Conferência sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio-92), que em seu
Princípio n. 15 trouxe uma definição abrangente da precaução:
De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser ampla-
mente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver
ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica
não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economica-
mente viáveis para prevenir a degradação ambiental. (DECLARAÇÃO..., 1992).
Portanto, o princípio da precaução acolhe a máxima in dubio pro ambiente
(MOLINARO, 2015, p. 1002), ou, ainda, in dubio pro securitate, rompendo com o
paradigma dos riscos “como bens de rejeição, cuja inexistência é pressuposta até
prova em contrário, de acordo com o princípio in dubio pro progresso” (BECK, 2010,
p. 40/41). Por via de regra, impõe-se ao interessado na empreitada ou na comerciali-
zação do medicamento ou produto a inversão do ônus da prova quanto aos riscos, os
quais não se legitimam pelo mero fato de que não foram previstos nem desejados.5 A
definição do que é necessário para conciliar a atividade com o desenvolvimento sus-
tentável opera-se através de um procedimento público no qual deve ser assegurada a
ampla participação da sociedade, mormente os potencialmente afetados.
Com efeito,
o princípio da precaução, por sua vez, partindo de uma lógica de verossimilhança
e, portanto, do comensurável, produz argumentos que a esfera política pode
debater no âmbito da sociedade, ou seja, na esfera democrática. O princípio da

5 Cf. BECK, 2010, p. 41.

138
precaução não deve ser utilizado, portanto, como fundamento de decisões auto-
ritárias e desprovidas de argumentos cientificamente consistentes, inadmissíveis
no Estado Democrático de Direito. Neste sentido, a participação nas decisões
relativas ao meio ambiente e à saúde humana tornam-se corolário inafastável da
concepção de democracia, especialmente quando se trata de promover a dialogi-
cidade na relação público-privada. (SILVA; MATA DIZ, 2018, p. 57 e 58).
Conforme Paulo Affonso Leme Machado,
a implementação do princípio da precaução não tem por finalidade imobilizar as
atividades humanas. Não se trata da precaução que tudo impede ou que em tudo
vê catástrofes ou males. O princípio da precaução visa à durabilidade da sadia
qualidade de vida das gerações humanas e à continuidade da natureza existente
no planeta. (MACHADO, 2018, p. 94).
A precaução marca a passagem do ordenamento jurídico do dano (infração,
individualização, nexo causal, compensação pelos danos) para o ordenamento do
risco (indeterminação, prevenção, dispersão dos agentes e afetados, impossibilidade
de precificação do dano ou risco). A prevenção não se contenta em punir, mas tem
o objetivo primordial de evitar o desfecho lesivo ante a irreparabilidade de certos
danos. Com função de prevenção, já não se cuida apenas de obrigar à reparação do
dano, mas de evitar danos irreversíveis.
Portanto, diante de consequências irreversíveis para o meio ambiente e a saúde
humana, ainda que não haja certeza ou consenso científico quanto à sua ocorrên-
cia, somente através do princípio da precaução será possível uma solução de com-
promisso, que concilie o interesse econômico com a saúde, o meio ambiente e a
segurança, evitando que as forças do mercado eliminem o custo dos riscos ou o
transfiram a terceiros.

5 ∙ REGULAÇÃO DO RISCO E PRECAUÇÃO


A palavra regulação
tem sido empregada para designar uma forma de intervenção do Estado no
domínio econômico, geralmente ligada ao propósito de mitigar imperfeições
do mercado para melhorar o funcionamento de determinados setores da vida
econômica e social. (TRINDADE DA SILVA, 2006 p. 216).
Na perspectiva social, “a regulação é utilizada para intervir na provisão de bens
públicos e para a proteção dos interesses públicos, como saúde, segurança e meio
ambiente, assim como dos mecanismos de oferta universal desses bens e de coesão
social” (TRINDADE DA SILVA, 2006, p. 216). A atividade regulatória do Estado deve
levar em conta a redução do risco, bem como evitar os danos irreversíveis, através do
princípio da precaução, que é uma obrigação da atividade administrativa e não apenas
um parâmetro para a decisão judicial. O objetivo deve ser a criação da segurança, e não
ampliar ou permitir a ampliação do risco. A opção administrativa não pode descurar
os deveres fundamentais de proteção da saúde e da segurança, devendo as competên-
cias normativas voltarem-se para o controle de atividades potencialmente perigosas
e, no âmbito da prevenção, a fiscalização dessas atividades e a imposição de sanções.
Efetivamente, como ressalta Zenildo Bodnar (2009, p. 114),
[a] gestão adequada do risco, enquanto um dos principais e mais importantes
desafios da atual sociedade de risco, requer instituições consolidadas e atuantes,

139
legislação eficaz e participação e controle social efetivo. Trata-se, portanto, de
uma missão necessariamente compartilhada.
A ilusória “regulação espontânea” do mercado é incapaz de absorver as externalida-
des causadas pelo risco, cujos custos podem ser transferidos para atingir interesses
de terceiros, ou interesses coletivos e difusos.
Descortina-se, assim, a importância da regulação pela precaução, quando os
impactos são possíveis, prováveis, mas não podem ser determinados com precisão,
ao lado da regulação por prevenção, quando se tratar de riscos conhecidos, que
podem ser determinados, isto é, quando os impactos de certa atividade e a sua cau-
salidade puderem ser determinados previamente com razoável certeza ou consenso
científico. Quanto mais vulnerável o interesse ou o bem potencialmente afetado
pelos impactos, mais se destacará a importância da regulação pela prevenção. A
precaução envolve um juízo de ponderação de valores sobre os valores em jogo, o
qual será determinante para a decisão regulatória.
Em decorrência da internacionalização e da interdependência das economias,
e da ampliação do fosso de oportunidades e informacional, a prevenção torna-se
a forma por excelência de abordar o risco na sociedade de riscos. A complexidade
criada pela globalização fragiliza a autonomia da vontade e diminui sensivelmente
a capacidade de operação das políticas públicas, criando fatores imponderáveis que
vão ampliar a insegurança. A legitimidade da ação estatal será definida pelo seu
empenho em ampliar a proteção social em tempos de incerteza, buscando capturar
os riscos e evitar consequências potencialmente adversas que deles possam resultar
para o meio ambiente, a saúde pública e a segurança das pessoas em geral.
A existência do risco justifica a necessidade de regulação, mas ela em si também
produz novos riscos. O regulador deve aumentar a eficiência das políticas públicas
mediante intervenção controlada nas atividades reguladas, mas a própria regulação
implica a tomada de decisões, que implica a assunção de riscos de que a aquela
intervenção falhe, ou acabe gerando novas e maiores distorções.
A regulação envolve, assim, não só prevenir e evitar a lesão a terceiros ou a
interesses coletivos e difusos causadas por atividades potencialmente perigosas,
mas também a questão da distribuição do risco. Importa incrementar o dever de
informação a fim de capacitar os indivíduos a compreender os riscos envolvidos.
A aptidão para evitar o risco depende do conhecimento e da informação, sendo
elementos essenciais da precaução a escolha consciente das condutas e os níveis de
segurança de cada uma delas.
Evidentemente, a crise sanitária do coronavírus cria uma janela de oportuni-
dade para mudança nesse panorama regulatório que torne os sistemas de saúde
resilientes para contingências infecciosas e menos desiguais, com vistas ao enfren-
tamento de novas pandemias. O que seria mais econômico do que o despreparo;
estima-se que o custo financeiro da pandemia de Covid-19 pode chegar aos 5% do
PIB mundial ou 4 trilhões de dólares (AFP, 2020).
De fato, a pandemia atual, gerando novos conflitos e novas incertezas, apresenta
uma dinâmica que ultrapassa fronteiras, “através da qual a humanidade é forçada a
se congregar na situação unitária das autoameaças civilizacionais” (BECK, 2010, p.
57). É possível que com isso seja criada uma nova solidariedade mundial a repensar
uma série de fatores de risco, como a relação com o meio ambiente (preservação das

140
florestas, padrões de produção de proteína animal), a reforma dos serviços públicos
de saúde e uma regulação em nível mundial que contemple uma resposta coorde-
nada em matéria epidemiológica (prevendo, por exemplo, a futura vacina como bem
público e garantindo sua acessibilidade universal), mas também pode acontecer que
esta crise não se traduza em nenhuma mudança real. Como adverte Beck (2010, p. 58),
“as ameaças intensificam-se, mas elas não se convertem politicamente num conjunto
de medidas preventivas de superação do risco; e mais: não se sabe ao certo qual o tipo
de política ou de instituições políticas que estariam em condições de adotá-las”.

6 ∙ PRECAUÇÃO E PROPORCIONALIDADE
Temperando excessiva densidade do princípio da precaução, cumpre articulá-lo
com o princípio da proporcionalidade, devendo ser aplicados simultaneamente. A
precaução deve convocar a proporcionalidade, isto é, as medidas ditadas pela pre-
caução devem levar em conta a proporcionalidade, baseando-se em uma avaliação
científica do grau de incerteza e do risco, equilibrando tanto os projetados benefí-
cios como a possível irreversibilidade do dano (desaparição de espécie, destruição
de um sítio arqueológico, efeitos colaterais de natureza grave nos pacientes, etc.).
Como é sabido, o princípio da proporcionalidade envolve três subprincípios: ade-
quação, que é a relação entre o meio utilizado e o fim almejado; necessidade, que
envolve a utilização do meio menos gravoso; e proporcionalidade em sentido estrito,
cujo requisito é uma relação de custo-benefício entre o meio empregado e o objetivo
desejado, este conforme a ordem jurídica. Apresenta uma dupla manifestação, a veda-
ção da proibição excessiva e da proteção insuficiente (atuação aquém do adequado).
Em matéria de saúde pública, podemos cogitar de diversas situações em que há
uma violação da proibição de excesso, nos casos em que a autoridade pública toma
decisões drásticas com base em meras suposições, e não em estudos e análises de risco
racionais, ou sem cogitar de alternativas menos gravosas. Exemplo disso é o fecha-
mento total das fronteiras, sem consideração para casos humanitários. Se a maioria
dos países do mundo adotou de fato o fechamento das fronteiras, impedir o retorno de
nacionais em regresso do exterior, pessoas com parentesco ou necessidade compro-
vada no território nacional ou solicitantes de refúgio seria um excesso injustificável,
já que alternativas menos gravosas, como, por exemplo, isolamento compulsório por
um prazo determinado, poderiam ser empregadas sem excessivo risco ou custo.
Essa articulação da proporcionalidade com a precaução encontra ressonância
na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em casos relacionados com a pan-
demia; serve de exemplo a decisão no HC 184828 MC/DF,6 impetrado em favor dos
diplomatas venezuelanos no Brasil, ameaçados de expulsão em plena pandemia:
HABEAS CORPUS CONTRA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA E O MINISTRO
DAS RELAÇÕES EXTERIORES. DECISÃO DE RETIRADA IMEDIATA
DE DIPLOMATAS E FUNCIONÁRIOS VENEZUELANOS. SITUAÇÃO DE
EMERGÊNCIA MUNDIAL DE SAÚDE. FALTA DE URGÊNCIA E RISCO À
VIDA E À SAÚDE DOS PACIENTES. MEDIDA CAUTELAR RATIFICADA.

6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 184828 MC/DF. Relator: Min. Luís Roberto Barroso,
16 de maio de 2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/
HC184828.pdf. Acesso em: 26 jul. 2020.

141
4. Ilegitimidade da retirada compulsória imediata dos pacientes em meio à pan-
demia. A situação de emergência sanitária reconhecida pela Organização Mundial
de Saúde e pelo Congresso Nacional coloca em risco a integridade física e psíquica
dos pacientes, tornando irrazoável a ordem de saída imediata (ou em 48 horas) do
território nacional. Violação a convenções de direitos humanos e de relações diplo-
máticas. Impossibilidade, fática e transitória, de retirada dos agentes diplomáticos
e consulares venezuelanos do território brasileiro enquanto durar o estado de
calamidade pública e emergência sanitária reconhecido pelo Congresso Nacional.
A hipótese aqui se afigura menos dramática, mas a ideia subjacente é a mesma:
onde há risco grave para os direitos fundamentais de quem quer que seja, aplica-se o
princípio da precaução. Não há urgência ou emergência na retirada dos pacientes,
sendo possível e razoável aguardar até o Congresso revogar o estado de calami-
dade pública e emergência sanitária que vivemos. Em suma: a decisão do Estado
brasileiro é válida e produzirá os seus efeitos tão logo cessem as razões de saúde
pública que motivaram a suspensão temporária de sua eficácia. [Grifos nossos].
O entendimento também se exprime na tutela provisória incidental concedida
pela Suprema Corte na ADPF 635-RJ,7 impetrada com o propósito de impedir ope-
rações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia:
A exigência de proporcionalidade decorre da necessidade de proteção ao direito
à vida e à integridade corporal e encontra respaldo nos Princípios Básicos das
Nações Unidas para o Uso da Força [...] Os Estados devem prever uma escala
com diversos protocolos sobre o uso da força, devem rever esses protocolos
constantemente e devem, ainda, treinar os seus agentes de modo a assegurar a
eles pleno conhecimento e condições técnicas para observá-los estritamente. [...]
Não há como evitar os protocolos de conduta para o emprego de armas de fogo.
O direito à vida os reclama. Exigem que o Estado somente empregue a força
quando necessário e exigem a justificativa exaustiva dessas razões. [...] A situa-
ção narrada pelo pedido incidental demonstra especial gravidade da omissão
do Estado brasileiro. O reconhecimento da emergência sanitária internacional
obrigou os entes da federação a adotarem medidas rígidas de controle epide-
miológico como quarentena e isolamento. [...] Operações policiais realizadas em
locais de grande aglomeração ficam ainda mais arriscadas e fragilizam a já baixa
accountability que deveria pautar a atuação de todos os agentes públicos. [...]
defiro a medida cautelar incidental pleiteada, ad referendum do Tribunal, para
determinar: (i) que [...] não se realizem operações policiais em comunidades do
Rio de Janeiro durante a epidemia do COVID-19, salvo em hipóteses absoluta-
mente excepcionais, [...]; e (ii) que, nos casos extraordinários de realização dessas
operações durante a pandemia, sejam adotados cuidados excepcionais, devida-
mente identificados por escrito pela autoridade competente, para não colocar
em risco ainda maior população, a prestação de serviços públicos sanitários e o
desempenho de atividades de ajuda humanitária.
Vale a pena mencionar, nesse passo, o entendimento da Corte Interamericana
de Direitos Humanos veiculado na Declaração n. 1, de 9 de abril de 2020, desti-
nada a orientar contra excessos desproporcionais e lesivos aos direitos humanos
das medidas contra a Covid:

7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal ADPF 635-RJ. Relator: Min. Edson Fachin, 5 de junho de 2020.
Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF635DECISaO5D
EJUNHODE20202.pdf. Acesso em: 27 jul. 2020.

142
Todas as medidas adotadas pelos Estados para enfrentar esta pandemia que pos-
sam afetar ou restringir o gozo e o exercício de direitos humanos devem ser limi-
tadas no tempo, legais, condizentes com os objetivos definidos conforme critérios
científicos, razoáveis, estritamente necessárias e proporcionais e consistentes com
os demais requisitos desenvolvidos na legislação interamericana de direitos huma-
nos. [...] Dada a natureza da pandemia, os direitos econômicos, sociais, culturais
e ambientais devem ser garantidos sem discriminação a todas as pessoas sob a
jurisdição do Estado e, em particular, àqueles grupos que são desproporcional-
mente afetados por estarem em situação de maior vulnerabilidade, como idosos,
crianças, pessoas com deficiência, migrantes, refugiados, apátridas, pessoas pri-
vadas de liberdade [...] Nestes momentos, adquire ênfase especial a garantia, de
forma oportuna e apropriada, dos direitos à vida e à saúde de todas as pessoas
sob a jurisdição do Estado, sem qualquer discriminação, incluindo aos idosos,
migrantes, refugiados e apátridas, e membros de comunidades indígenas. (CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2020).
A proteção insuficiente distingue-se da omissão pura e simples. Enquanto nesta
há a ausência de qualquer ação estatal no sentido da proteção do bem jurídico,
naquela há a ação. Contudo, ela não é suficiente para desestimular a prática da con-
duta, afastar o risco ou reparar a lesão causada.
Acerca da proteção insuficiente, vale transcrever excerto do voto do ministro
Gilmar Mendes no RE 418.376/MS:8
Quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para
uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que
se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo
princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção insuficiente adquire
importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na pers-
pectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado
não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um
direito fundamental. Nesse sentido, ensina o Professor Lênio Streck: “Trata-se
de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção
positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode
ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado,
resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins
e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de
um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de
determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens
jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária
vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem
como consequência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de
conformação) do legislador.” (STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da
proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de pro-
teção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas
penais inconstitucionais. (Revista da Ajuris, Ano XXXII, n. 97, março/2005, p. 180).
Os exemplos em que a política pública se ressente de proteção deficiente são
abundantes em matéria ambiental. No tocante a atividades altamente poluidoras ou

8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Voto do min. Gilmar Mendes no RE 418.376/MS. Relator para
o acórdão: Min. Joaquim Barbosa, 9 de fevereiro de 2006. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=412578. Acesso em: 25 jun. 2020.

143
impactantes ao meio ambiente, por exemplo, dispensar o licenciamento ou exigi-lo
de forma simplificada são casos de proteção insuficiente. Em matéria de segurança e
defesa do consumidor, podemos descer à concretude de exemplos como aplicar mul-
tas insignificantes para condutas de alto risco que trazem ganhos expressivos para
o infrator (como o transporte com excesso de carga) ou a celebração administrativa
de termos de ajustamento de conduta prevendo doação de materiais de expediente
de ínfimo valor a entes públicos para o encerramento de casos de lesões coletivas
que permitiram a empresas se apropriarem de enormes quantias dos consumidores.
Exemplo de proteção insuficiente, na esfera da pandemia de Covid-19, encontra-
-se na não adoção pelo governo federal de uma quarentena coordenada em âmbito
nacional, relegada aos estados-membros, cujas medidas desconexas comprometeram
a eficácia da medida no plano nacional, situação agravada pelas recorrentes mensa-
gens de desincentivo e forte resistência de autoridades federais em seguir recomen-
dações científicas e sanitárias expedidas por organizações nacionais e internacionais,
ampliando a desinformação e a resistência natural da população a medidas restritivas.
Igualmente, nesse sentido, o manejo do auxílio emergencial, que provocou filas
e aglomerações nas sedes da Caixa Econômica Federal (CEF), nos dias mais críticos
da expansão da pandemia, quando estados e municípios já adotavam quarentenas
(MULTIDÃO…, 2020). A demora para a implantação e a disponibilização do auxílio,
alegadamente com base em limites legais já dispensados pelo Congresso Nacional, a
concentração dos pagamentos na CEF e a inexistência de agendamento para resgate
foram vistas como fatores decisivos para a propagação acelerada do vírus entre as
camadas mais pobres da população. À parte esse aspecto, outras ineficiências foram
verificadas, como falhas no aplicativo, recusas injustificadas (objeto de diversas ini-
ciativas judiciais, como a ação civil pública movida pela Defensoria Pública da União,
n. 1017292-61.2020.4.01.3800, 5ª Vara Federal/MG) e falta de assistência aos excluídos
digitais, como populações de rua, indígenas, moradores de áreas isoladas, entre outros.
Ressalte-se ainda como exemplo de proteção insuficiente a inexecução das ver-
bas destinadas a estados e municípios para enfrentamento da Emergência de Saúde
Pública de Interesse Internacional (Ação 21CO), cujo empenho se limitava a 6,8%
dos valores disponibilizados em 2.6.2020 (MPF ABRE…, 2020); bem como o veto
presidencial ao uso de máscaras em indústrias, lojas, templos, escolas e outros locais
fechados, previsto na Lei n. 14.019/2020, felizmente não concretizado por sua derru-
bada pelo Congresso em 19.8.2020 (MACHADO, 2020).
A proteção insuficiente leva à falha visceral da política pública, que, assim, se
torna incapaz de proteger e concretizar o direito fundamental à saúde.

7 ∙ PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO E RISCOS


DE MEDICAMENTOS E TRATAMENTOS
O sentido operativo do princípio da precaução em todos os seus campos de
aplicação (saúde, meio ambiente, consumidor), inspirado pelo dever de proteção,
opõe-se à concepção de que todo dano pode ser internalizado pelo processo pro-
dutivo ou compensado. Representa um aperfeiçoamento do sistema de prevenção, a
fim de evitar riscos cujos danos decorrentes sejam incertos, difíceis de quantificar
ou impossíveis de reparar, mormente os que se projetam para as gerações seguintes.

144
No campo dos riscos de desenvolvimento de medicamentos, temos a aplicação do
princípio da prevenção, aliada a medidas precaucionistas. A prevenção exige que a
segurança do medicamento, para o uso que se pretende, esteja perfeitamente demons-
trada, no sentido de que os riscos que acarreta sejam amplamente informados e com-
pensados pelos benefícios, demonstrados em ensaios clínicos randomizados e com
eficácia constatada em testes com grupos de controle. A precaução opera no sentido de
circunscrever o uso a certas doenças específicas, em cujo tratamento o medicamento
foi testado e seus benefícios foram comprovados, não valendo sua comercialização
como um salvo-conduto para todo e qualquer problema de saúde, ainda que sob os
argumentos da “tentativa e erro” ou “melhor alguma coisa do que nada”.
Assim, o princípio da precaução opera no sentido de que não deve ser autorizado
um uso novo de fármaco ou um medicamento novo não prescrito para aquela pato-
logia (uso off label) até que seja demonstrada de forma segura pelo método científico
a eficácia do medicamento para aquele evento de saúde determinado. Vale dizer,
sem que seja formado um consenso científico substancioso de que o medicamento
tem eficácia, na incerteza, não deve ser autorizado.
É preciso que estejam estremes de dúvidas os efeitos benéficos do medicamento
ou tratamento a fim de que possa ser prescrito para uso geral, e, no caso de uso
experimental, torna indispensável a demonstração da segurança de seu uso aliada a
uma evidência, ainda que incompleta, de eficácia, além, é claro, do consentimento
informado do paciente.
A liberação do medicamento ou seu emprego generalizado em políticas públicas
de saúde exige demonstração cabal de efetividade, eficácia e segurança, os pilares da
medicina baseada em evidências, definida por Regina Paolucci El Dib como
o elo entre a boa pesquisa científica e a prática clínica. Em outras palavras, a
MBE utiliza provas científicas existentes e disponíveis no momento, com boa
validade interna e externa, para a aplicação de seus resultados na prática clínica.
Quando abordamos o tratamento e falamos em evidências, referimo-nos a efeti-
vidade, eficiência, eficácia e segurança. A efetividade diz respeito ao tratamento
que funciona em condições do mundo real. A eficiência diz respeito ao trata-
mento barato e acessível para que os pacientes possam dele usufruir. Referimo-
nos à eficácia quando o tratamento funciona em condições de mundo ideal. E,
por último, a segurança significa que uma intervenção possui características
confiáveis que tornam improvável a ocorrência de algum efeito indesejável para
o paciente. Portanto, um estudo com boa validade interna deverá apresentar os
componentes descritos acima. (EL DIB, 2007).
Em outras palavras, o dever de demonstrar a segurança do medicamento ou tra-
tamento (e, consequentemente, que os benefícios são vantajosos comparativamente
aos riscos) é do fabricante ou distribuidor do medicamento, ou, ainda, daquele que o
insere em uma política pública quando não há prescrição específica para aquele tipo
de uso. Dever de atestar que os riscos são aceitáveis comparativamente aos benefícios
demonstrados, conforme procedimentos preestabelecidos de pesquisa de risco.
Naturalmente, viola o princípio da prevenção/precaução o estímulo governa-
mental – por meio da fabricação/aquisição/distribuição em larga escala – para o
uso de medicamento contra a Covid-19 sem eficácia curativa ou preventiva cienti-
ficamente demonstrada, como é o caso da hidroxicloroquina (CORONAVÍRUS…,
2020). À ausência de prova de eficácia, nenhum argumento pode justificar e afastar

145
a responsabilidade por esse tipo de conduta, considerados os riscos que a medicação
acarreta, dentre os quais, arritmia cardíaca, e aumento da letalidade.
O senso de urgência despertado pela pandemia, tornando a população ávida por
vacinas e curas instantâneas, não deve conduzir ao imediatismo, sob pena de fazer
periclitar a segurança e causar danos ainda maiores no futuro. De idêntica forma,
o negacionismo voluntarista, desprovido de critérios, anticientífico e populista, e o
desprezo pelas evidências científicas e pelos protocolos levarão a riscos agravados e
maiores custos humanos e econômicos ao longo dos anos.

8 ∙ PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO E RESPONSABILIDADE


PELA AÇÃO (OU INAÇÃO)
Seja precautoriamente ou preventivamente, a ausência de certeza científica
quanto a curvas e formas de contágio, índices de cura, imunidade, entre outros,
não deve servir de pretexto para a não adoção de medidas preventivas (isolamento
social, quarentena, uso obrigatório de máscara, etc.).
O dever estatal de proteção ante a relevância do direito à saúde torna falso o
dilema entre economia e saúde, até porque a economia por si só não leva à doença
ou à morte. Cabe ao Poder Público, devidamente autorizado pela declaração do
estado de emergência, aportar recursos financeiros para apoio aos cidadãos afeta-
dos em seus meios de subsistência pela pandemia. A saúde não pode ceder a uma
consideração meramente financeira (níveis de endividamento público, que ocorre
igualmente por uma série de motivos que nem sempre encontram justificativa na
proteção dos mais vulneráveis) e ser colocada em segundo plano, diante do falso
dilema de proteger a saúde ou a economia como se esta fosse um fim em si mesmo,
independentemente do custo humano da omissão de providências precautórias.
Nunca é demais enfatizar que a perda de renda e a redução da atividade econô-
mica são causadas pela pandemia, e ocorreriam independentemente da decretação
ou não de medidas como a quarentena. Impõe-se na adoção de medidas restritivas
a liberdades individuais pela pandemia uma ponderação dos direitos fundamentais
– quanto mais importante o bem e maior a irreversibilidade do dano ou a difícil
reparação, mais prudente deve ser a ação e mais rigorosos os critérios da avaliação
da decisão a ser tomada. O fato é que a quarentena foi amplamente respaldada em
estudos científicos e normas técnicas, sendo adotada até mesmo em países paupér-
rimos, o que vem a demonstrar que a questão é mais de inevitabilidade em face da
gravidade do risco e dos danos irreversíveis do que uma opção meramente política.
Essa obrigação de respeito às normas de critérios técnicos e científicos e tam-
bém aos princípios da prevenção e precaução transparece na decisão do Supremo
Tribunal Federal, ao apreciar a Medida Cautelar nas ADIs 6421, 6422, 6424, 6425,
6427, 6428 e 6431 (rel. min. Luís Roberto Barroso) quanto à caracterização do “erro
grosseiro” da MP 966/2020, a qual dispõe sobre a responsabilização de agentes
públicos por ação e omissão pertinentes a atos relacionados com a pandemia de
Covid-19 (RELATOR..., 2020).
Ementa: DIREITO ADMINISTRATIVO. AÇÕES DIRETAS DE INCONS­
TITU­CIONALIDADE. RESPONSABILIDADE CIVIL E ADMINISTRATIVA
DE AGENTES PÚBLICOS. ATOS RELACIONADOS À PANDEMIA DE

146
COVID-19. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 966/2020. DEFERIMENTO PARCIAL
DA CAUTELAR.
1. Ações diretas de inconstitucionalidade que questionam a limitação da res-
ponsabilidade civil e administrativa dos agentes públicos às hipóteses de “erro
grosseiro” e de “dolo”, com base no art. 28 da Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro e na Medida Provisória nº 966/2020. Alegação de violação aos
arts. 37, §§ 4º, 5º e 6º da Constituição, ao princípio republicano e ao princípio da
probidade e da eficiência administrativa. Exame, em sede cautelar, limitado à
MP 966/2020, em relação à qual, efetivamente, se configura o perigo na demora,
diante do contexto da pandemia. 2. Decisões administrativas relacionadas à
proteção à vida, à saúde e ao meio ambiente devem observar standards, nor-
mas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e
entidades internacional e nacionalmente reconhecidas. Precedentes: ADI 4066,
Rel. Min. Rosa Weber, j. 24.08.2017; e RE 627189, Rel. Min. Dias Toffoli, j.
08.06.2016. No mesmo sentido, a Lei nº 13.979/2020 (art. 3º, § 1º), que dispôs
sobre as medidas para o enfrentamento da pandemia de COVID-19, norma já
aprovada pelo Congresso Nacional, previu que as medidas de combate à pande-
mia devem ser determinadas “com base em evidências científicas e em análises
sobre as informações estratégicas em saúde”. 3. Tais decisões administrativas
sujeitam-se, ainda, aos princípios constitucionais da precaução e da prevenção,
que impõem juízo de proporcionalidade e a não adoção, a priori, de medidas
ou protocolos a respeito dos quais haja dúvida sobre impactos adversos a tais
bens jurídicos. Nesse sentido: ADI 5592, Rel. p/ acórdão Min. Edson Fachin,
j. 11.02.2019; RE 627189, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 08.06.2016. 4. Cautelar par-
cialmente deferida, para conferir interpretação conforme a Constituição ao art.
2º da MP 966/2020, no sentido de estabelecer que, na caracterização de erro
grosseiro, leva-se em consideração a observância, pelas autoridades: (i) de stan-
dards, normas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por orga-
nizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; bem como
(ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 5. Confere-se,
igualmente, interpretação conforme a Constituição ao art. 1º da MP 966/2020,
para explicitar que, para os fins de tal dispositivo, a autoridade a quem compete
decidir deve exigir que a opinião técnica trate expressamente: (i) das normas e
critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por
organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii)
da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 6.
Teses: “1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao
direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à
economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou
(ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a
quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua
decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos
aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades inter-
nacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios
constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corres-
ponsáveis por eventuais violações a direitos”.9

9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Voto do min. Luís Roberto Barroso na Medida Cautelar nas
ADIs 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 e 6431. Relator: Min. Luís Roberto Barroso, 21 de maio
de 2020. Disponível em: https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/05/voto-mlrb-adis-mp-
966-21mai2020.pdf. Acesso em: 25 set. 2020.

147
9 ∙ CONCLUSÕES
Tanto a União quanto os estados, dentro da estratégia tripartite do Sistema
Único de Saúde, no âmbito de suas competências e em seu território, podem adotar
medidas como isolamento e quarentena durante o estado de emergência decorrente
da pandemia do novo coronavírus, sem a necessidade de autorização do Ministério
da Saúde, e sem embargo da competência da União para decretação das mesmas
medidas (ADI 6343, STF).
A pandemia de Covid-19, incidindo em uma época marcada pela complexidade,
pela ambiguidade e pela contraditoriedade das relações (jurídicas, técnicas, entre
outras) criadas pela globalização, resulta em ampliação do risco e incerteza das
repercussões das decisões administrativas adotadas para fazer frente aos efeitos
dramáticos da rápida propagação do novo patógeno. Assim, surge a importância da
sua apreciação no contexto da “sociedade global de riscos”, de Ulrich Beck.
A problemática da distribuição do risco assume relevância no ambiente da
globalização, marcado pela convergência de múltiplos fatores incontroláveis, que
ampliam o risco decisional decorrente das opções do Poder Público no enfrenta-
mento à pandemia. Outro fator a agravar a distribuição desigual do risco e ampliar
a insegurança diz respeito à percepção do risco. A informação adequada no con-
texto da distribuição de riscos se torna fator preponderante na análise das medidas
adotadas diante da pandemia de Covid-19.
O princípio da precaução, oriundo do Direito Ambiental, teve seu campo de
aplicação ampliado para qualquer área onde se configure um dever de proteção do
Estado, em especial a garantia dos direitos fundamentais. Enquanto na prevenção o
objetivo é evitar risco cuja relação de causa e efeito é conhecida, na precaução a ação
é disparada pela incerteza. No entanto, na sociedade de risco, onde a dimensão da
incerteza é preponderante, realça-se a importância da precaução, complementando
as indispensáveis – mas insuficientes isoladamente – medidas de prevenção.
O princípio da precaução deve nortear quaisquer medidas adotadas durante a
pandemia sopesando direitos fundamentais em jogo, conjugando-se com o princí-
pio da proporcionalidade, em sua dupla face de proibição do excesso e da insuficiên-
cia. A não adoção da precaução implica a distribuição de risco segundo a irracio-
nalidade das forças sociais e de mercado, resultando em concentração do risco e do
dano nas camadas mais vulneráveis da população.
Nesse contexto, assume relevo a gestão adequada do risco pela autoridade
pública, com o emprego de medidas fundamentadas em critérios técnicos, dados
epidemiológicos e análises científicas, e respeito pelo quadro institucional existente.
A não adoção de medidas precaucionistas e o antiprecaucionismo inspirado pelo
negacionismo e pelo anticientificismo pode acarretar a responsabilidade dos agen-
tes públicos por dolo ou erro grosseiro.

REFERÊNCIAS
AFP. Custo da pandemia pode exceder os 4 trilhões de dólares. Estado de Minas, Belo
Horizonte, 3 abr. 2020. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacio
nal/2020/04/03/interna_internacional,1135278/custo-da-pandemia-pode-exceder-os-4-
trilhoes-de-dolares.shtml. Acesso em: 10 ago. 2020.

148
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010.
BODNAR, Zenildo. Os novos desafios da jurisdição para a sustentabilidade na atual
sociedade de risco. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 6, n. 12, p. 101-119, jul./dez. 2009.
BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Direitos humanos, Estado e globalização. In: SÁNCHEZ
RÚBIO, David; HERRERA FLORES, Joaquín; CARVALHO, Salo de (org.). Direitos humanos
e globalização: fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2004. p. 117-140.
CARMO, Eduardo Hage; PENNA, Gerson; OLIVEIRA, Wanderson Kleber. Emergências
de saúde pública: conceito, caracterização, preparação e resposta. Estudos Avançados, São
Paulo, v. 22, n. 64, dez. 2008. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-40142008000300003.
Dis­po­nível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142008
000300003&lang=es. Acesso em: 20 jul. 2020.
CORONAVÍRUS: cloroquina não previne Covid-19, aponta estudo. BBC, São Paulo, 30
set. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-54360958. Acesso
em: 8 out. 2020.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Declaração n. 1, de 9 de
abril de 2020. San José: CIDH, 2020. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/
alerta/comunicado/declaracion_1_20_ESP.pdf. Acesso em: 2 ago. 2020.
DECLARAÇÃO do Rio de Janeiro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 6, n. 15, p. 153-159,
ago. 1992. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S01
03-40141992000200013. Acesso em: 27 jul. 2020.
DESTRUIÇÃO DE HÁBITATS cria condições ideais para o surgimento do coronavírus.
Scientific American Brasil, São Paulo, [2020]. Disponível em: https://sciam.com.br/destru
icao-de-habitats-cria-condicoes-ideais-para-o-surgimento-do-coronavirus. Acesso em:
8 out. 2020.
EL DIB, Regina Paolucci. Como praticar a medicina baseada em evidências. Jornal
Vascular Brasileiro, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 1-4, mar. 2007. Disponível em: https://
www.scielo.br/pdf/jvb/v6n1/v6n1a01.pdf. Acesso em: 8 jul. 2020.
ESTUDO aponta que imunidade de rebanho contra Covid-19 é inatingível. Uol,
São Paulo, 6 jul. 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/
redacao/2020/07/06/estudo-aponta-que-imunidade-de-rebanho-contra-covid-19-e-
inatingivel.htm. Acesso em: 10 ago. 2020.
HARTMANN, Ivar Alberto Martins. O princípio da precaução e sua aplicação no direito
do consumidor: dever de informação. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 38, n. 2, p. 156-182,
jul./dez. 2012.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 26. ed. rev. ampl. atual.
São Paulo: Malheiros, 2018.
MACHADO, Ralph. Congresso derruba veto de Bolsonaro ao uso obrigatório de máscaras
em lojas e escolas. Notícias da Câmara dos Deputados, Brasília, 19 ago. 2020. Disponível em:
Camara.leg.br/noticias/685851-congresso-derruba-veto-de-bolsonaro-ao-uso-obrigatorio-
de-mascaras-em-lojas-e-escolas/. Acesso em: 22 ago. 2020.
MOLINARO, Carlos Alberto. Breves reflexões sobre os deveres fundamentais socio­a m­
bientais. Revista Novos Estudos Jurídicos, [s. l.], n. 20-3, p. 989-1025, set. 2015. Dispo­nível
em: https://livros-e-revistas.vlex.com.br/vid/breves-reflexoes-deveres-fundamentais-64
4978641. Acesso em: 23 jul. 2020.

149
MPF ABRE inquérito para investigar execução orçamentária de combate à pandemia. NF
1.16.000.001.338/20, 4o Ofício, PRDF. Notícias da Procuradoria da República no Distrito
Federal, Brasília, 2 jun. 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/
noticias-df/covid-19-mpf-abre-inquerito-para-investigar-execucao-orcamentaria-de-
combate-a-pandemia. Acesso em: 22 jul. 2020.
MULTIDÃO se forma para tentar sacar auxílio emergencial. Tribuna do Norte, Natal,
3 maio 2020. Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/multida-o-se-
forma-para-tentar-sacar-auxa-lio-emergencial/478950. Acesso em: 25 jul. 2020.
RELATOR propõe que atos de agentes públicos durante a pandemia sigam critérios
científicos. Notícias STF, Brasília, 20 maio 2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/
portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443788. Acesso em: 28 ago. 2020.
SILVA, Romeu Faria Thomé da; MATA DIZ, Jamile Bergamaschine. Princípio da
precaução: definição de balizas para a prudente aplicação. Veredas do Direito, Belo
Horizonte, v. 15, n. 32, p. 39-66, maio/ago. 2018.
TRINDADE DA SILVA, Gustavo Henrique. Regulação sanitária no Brasil: singularidades,
avanços e desafios. In: PROENÇA, Jadir Dias; COSTA, Patrícia Vieira da; MONTAGNER,
Paula (org.). Desafios da regulação no Brasil. Brasília, ENAP, 2006. p. 215-262.
UNITED NATIONS. Our common future: report of the World Comission on Environment
and Development. Oslo: UN, 1987.
VENTURA, Deisy. Direito e saúde global – o caso da pandemia gripe A (H1N1). São Paulo:
Outras Expressões; Dobra Editorial, 2013.

150
A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
Ferramenta de eficácia social no fornecimento de medicamentos
não relacionados no SUS aos indivíduos hipervulneráveis

Elton Oliveira Amaral1

Sumário: 1 Introdução. 2 O conceito de hipervulnerabilidade e sua aplicação no


microssistema de processo coletivo brasileiro. 3 Os requisitos jurisprudenciais na
obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não incorporados em
atos normativos do SUS. 4 A inversão do ônus da prova em relação aos indivíduos
hipervulneráveis nos casos urgentes. 5 Aprovação da tese no 23º Congresso Nacional do
Ministério Público. 6 Contextualização da tese no cenário pandêmico.

1 ∙ INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 (CF/1988) é hialina ao normatizar em seu art.
196 que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e
ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação. Adiante, fixa a descentralização, o atendimento integral e a participa-
ção da sociedade como diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS).
Comentando o referido dispositivo, leciona Ingo Wolfgang Sarlet:
A saúde comunga, na nossa ordem jurídico-constitucional, da dupla fun-
damentalidade formal e material da qual se revestem os direitos e garantias
fundamentais em geral, especialmente em virtude de seu regime jurídico pri-
vilegiado. Assume particular relevância, para o adequado manejo do direito
à saúde, que a tutela da saúde, a exemplo de outros direitos fundamentais,
apresenta uma série de interconexões com a proteção de outros bens funda-
mentais, apresentando zonas de convergência e mesmo de superposição em
relação a outros bens (direitos e deveres) que também constituem objeto de
proteção constitucional, tais como a vida, a moradia, o trabalho, a privacidade,
o ambiente, além da proteção do consumidor, da família, das crianças e dos
adolescentes, e dos idosos, o que apenas reforça a tese da interdependência
entre todos os direitos fundamentais.
[…]
Na verdade, parece elementar que uma ordem constitucional que protege os
direitos à vida e à integridade física e corporal evidentemente deva salvaguar-
dar a saúde, sob pena de esvaziamento daqueles direitos. (SARLET, 2013, p.
1931, grifo nosso).

1 Promotor de Justiça (MPMT).

151
Umbilicalmente vinculada ao direito à vida, a tutela da saúde, como destacado
pelo autor, traduz a opção do poder constituinte originário por difundir no ordena-
mento jurídico pátrio normas que garantam o desenvolvimento digno dos cidadãos.
A Lei n. 8.080/1990 é uma dessas normas e dispõe sobre as condições para a
promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos
serviços correspondentes e dá outras providências. Dali, despontam as seguintes
regras, de especial atenção ao debate em foco:
Art. 19-M. A assistência terapêutica integral a que se refere a alínea d do inciso
I do art. 6º consiste em:
I - dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja
prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em
protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na falta do
protocolo, em conformidade com o disposto no art. 19-P;
[…]
Art. 19-P. Na falta de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, a dispensa-
ção será realizada:
I - com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal do SUS,
observadas as competências estabelecidas nesta Lei, e a responsabilidade pelo
fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite;
II - no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, de forma suplementar,
com base nas relações de medicamentos instituídas pelos gestores estaduais
do SUS, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão
Intergestores Bipartite;
III - no âmbito de cada Município, de forma suplementar, com base nas rela-
ções de medicamentos instituídas pelos gestores municipais do SUS, e a respon-
sabilidade pelo fornecimento será pactuada no Conselho Municipal de Saúde.
(Grifos nossos).
A despeito da eficácia plena e da aplicabilidade imediata do art. 196 da
CF/1988, vê-se que o legislador infraconstitucional atrelou a dispensação de
medicamentos por meio do SUS à existência de previsão nas relações cunhadas
pela União, estados e municípios.
Sublinha-se que, no ano de 2018, foram gerados 123.448 novos casos proces-
suais no Poder Judiciário vinculados a matéria de Direito Administrativo e a outras
matérias de Direito Público com o assunto fornecimento de medicamentos.2 Nesse
contexto, a discussão sobre a obrigatoriedade do poder público de fornecer medica-
mentos não incorporados em atos normativos do SUS tomou fôlego.
Esse é o quadro que emoldura o presente artigo, que almeja contribuir para a atuação
ministerial na temática, valendo-se da análise do conceito de pessoas hipervulneráveis,
dos critérios jurisprudenciais fixados pelo Tribunal da Cidadania em recente e paradig-
mático julgamento e do instrumento da inversão do ônus da prova como mecanismo
processual para a eficácia social do direito à saúde dos indivíduos hipervulneráveis.

2 Disponível em: https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%2FPai


nelCNJ.qv w&host= QVS%40neodimio03&anony mous=true&sheet=shResumoDespFT.
Acesso em: 19 jul. 2019.

152
2 ∙ O CONCEITO DE HIPERVULNERABILIDADE E SUA APLICAÇÃO
NO MICROSSISTEMA DE PROCESSO COLETIVO BRASILEIRO
A missão constitucional do Ministério Público de defesa da ordem jurídica, do
regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, felizmente,
encontra amplo respaldo na legislação infraconstitucional.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 201) e o Estatuto do Idoso (art.
74), por exemplo, são harmônicos ao conferir atuação ministerial para a garantia
dos direitos individuais indisponíveis desses grupos de pessoas. Não se desconhece,
lado outro, que as crianças, os adolescentes, os idosos e as pessoas com deficiência
física são indivíduos que recebem o princípio da prioridade na tutela desses direitos.
Aqui, não há como se desvencilhar da conclusão de que o especial tratamento nor-
mativo está intimamente vinculado à hipervulnerabilidade.
No ordenamento jurídico pátrio, ao ventilar o instituto das práticas abusivas, o
Código de Defesa do Consumidor estampou em seu art. 39, inciso IV, a vedação ao
fornecedor de produtos ou serviços de prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do
consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para
impingir-lhe seus produtos ou serviços. Está-se, pois, diante da edificação legal da
condição de pessoa hipervulnerável.
O Tribunal da Cidadania, por sua vez, não desafina ao utilizar de tal conceito
para a proteção social desses grupos nas mais diversas searas. É o que se percebe dos
seguintes arestos:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRO­
TEÇÃO DOS ÍNDIOS. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. MINISTÉRIO PÚBLICO.
LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. INTERPRETAÇÃO DE NORMAS
DE PROTEÇÃO DE SUJEITOS HIPERVULNERÁVEIS E DE BENS INDISPO­
NÍVEIS. LEI 8.080/90 E DECRETO FEDERAL 3.156/99. SÚMULA 126/STJ. ART.
461 DO CPC. MULTA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDADE.
[...]
7. O status de índio não depende do local em que se vive, já que, a ser diferente,
estariam os indígenas ao desamparo, tão logo pusessem os pés fora de sua aldeia
ou Reserva. Mostra-se ilegal e ilegítimo, pois, o discrímen utilizado pelos entes
públicos na operacionalização do serviço de saúde, ou seja, a distinção entre
índios aldeados e outros que vivam foram da Reserva. Na proteção dos vulne-
ráveis e, com maior ênfase, dos hipervulneráveis, na qual o legislador não os dis-
tingue, descabe ao juiz fazê-lo, exceto se for para ampliar a extensão, o grau e os
remédios em favor dos sujeitos especialmente amparados.
8. O atendimento de saúde - integral, gratuito, incondicional, oportuno e de qua-
lidade - aos índios caracteriza-se como dever de Estado da mais alta prioridade,
seja porque imposto, de forma expressa e inequívoca, pela lei (dever legal), seja
porque procura impedir a repetição de trágico e esquecido capítulo da nossa
história (dever moral), em que as doenças (ao lado da escravidão e do extermínio
físico, em luta de conquista por território) contribuíram decisivamente para o
quase extermínio da população indígena brasileira.
9. É cabível a cominação da multa prevista no art. 461 do CPC contra a Fazenda
Pública. Precedentes do STJ.

153
10. Recursos Especiais parcialmente conhecidos e não providos. (REsp 1064009/SC,
rel. ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 4/8/2009,
DJe 27 abr. 2011, grifos nossos);
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO INDENI­ZA­TÓRIA.
PROPAGANDA ENGANOSA. COGUMELO DO SOL. CURA DO CÂNCER.
ABUSO DE DIREITO. ART. 39, INCISO IV, DO CDC. HIPERVUL­NERA­BILIDADE.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DANOS MORAIS. INDE­NIZAÇÃO DEVIDA.
DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL COMPROVADO.
[...]
4. A vulnerabilidade informacional agravada ou potencializada, denominada
hipervulnerabilidade do consumidor, prevista no art. 39, IV, do CDC, deriva do
manifesto desequilíbrio entre as partes.
5. O dano moral prescinde de prova e a responsabilidade de seu causador
opera-se in re ipsa em virtude do desconforto, da aflição e dos transtornos
suportados pelo consumidor.
6. Em virtude das especificidades fáticas da demanda, afigura-se razoável a
fixação da verba indenizatória por danos morais no valor de R$ 30.000,00
(trinta mil reais).
7. Recurso especial provido.
(REsp 1329556/SP, rel. ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA
TURMA, julgado em 25.11.2014, DJe 9 dez. 2014, grifos nossos).
Trocando em miúdos, as crianças, os adolescentes, os idosos, os indígenas e as
pessoas com deficiências estão inseridos no grupo de hipervulneráveis. Nessa toada,
seja pela aplicação do microssistema de processo coletivo, seja pela concretização da
teoria do diálogo sistemático das fontes, mister que recebam especial tratamento
na tutela do direito individual indisponível à saúde, obviamente, de acordo com as
nuances do caso concreto.

3 ∙ OS REQUISITOS JURISPRUDENCIAIS NA OBRIGATORIEDADE


DO PODER PÚBLICO DE FORNECER MEDICAMENTOS NÃO
INCORPORADOS EM ATOS NORMATIVOS DO SUS
Esclarecido o conceito de hipervulnerabilidade, os olhos deverão ser volvidos
aos paradigmas do Recurso Especial n. 1.657.156, afetado pelo rito dos julgamentos
dos recursos repetitivos no Superior Tribunal de Justiça.
Ali, discutiu-se exatamente a obrigação do Estado em fornecer medicamentos
não previstos nas listas do SUS. De um lado, argumentou-se a extensão da aplica-
bilidade do art. 196 da CF/1988 ante as restrições estampadas na Lei n. 8.080/1990.
Noutra senda, o princípio constitucional da separação foi pontuado como tese prin-
cipal para negar-se tal direito subjetivo.
Da pena do ministro relator Benedito Gonçalves advieram os fundamentos que
cominaram na seguinte tese:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTRO­
VÉRSIA. TEMA 106. JULGAMENTO SOB O RITO DO ART. 1.036 DO CPC/2015.
FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS NÃO CONSTANTES DOS ATOS
NORMATIVOS DO SUS. POSSIBILIDADE. CARÁTER EXCEPCIONAL.
RE­QUISITOS CUMULATIVOS PARA O FORNECIMENTO.

154
1. Caso dos autos: A ora recorrida, conforme consta do receituário e do laudo
médico (fls. 14-15, e-STJ), é portadora de glaucoma crônico bilateral (CID
440.1), necessitando fazer uso contínuo de medicamentos (colírios: azorga 5 ml,
glaub 5 ml e optive 15 ml), na forma prescrita por médico em atendimento pelo
Sistema Único de Saúde - SUS. A Corte de origem entendeu que foi devidamente
demonstrada a necessidade da ora recorrida em receber a medicação pleiteada,
bem como a ausência de condições financeiras para aquisição dos medicamentos.
2. Alegações da recorrente: Destacou-se que a assistência farmacêutica estatal
apenas pode ser prestada por intermédio da entrega de medicamentos prescri-
tos em conformidade com os Protocolos Clínicos incorporados ao SUS ou, na
hipótese de inexistência de protocolo, com o fornecimento de medicamentos
constantes em listas editadas pelos entes públicos. Subsidiariamente, pede que
seja reconhecida a possibilidade de substituição do medicamento pleiteado por
outros já padronizados e disponibilizados.
3. Tese afetada: Obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não
incorporados em atos normativos do SUS (Tema 106). Trata-se, portanto, exclusi-
vamente do fornecimento de medicamento, previsto no inciso I do art. 19-M da
Lei n. 8.080/1990, não se analisando os casos de outras alternativas terapêuticas.
4. TESE PARA FINS DO ART. 1.036 DO CPC/2015. A concessão dos medicamentos
não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguin-
tes requisitos: (i) comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstan-
ciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessi-
dade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos
fármacos fornecidos pelo SUS; (ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do
medicamento prescrito; (iii) existência de registro na ANVISA do medicamento.
5. Recurso especial do Estado do Rio de Janeiro não provido. Acórdão subme-
tido à sistemática do art. 1.036 do CPC/2015. (REsp 1657156/RJ, rel. ministro
BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25.4.2018, DJe 4
maio 2018, grifo nosso).
Pelo rito do art. 1.036 do Código de Processo Civil, o Superior Tribunal de
Justiça decidiu pela possibilidade de fornecimento de medicamentos não previstos
em atos normativos do SUS, desde que estejam cumpridos os requisitos grifados.
Na atuação ministerial cotidiana, a comprovação da incapacidade financeira
e do registro de medicamentos na ANVISA não revelam maiores dificuldades.
Contudo, a comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstan-
ciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou neces-
sidade do medicamento assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia,
dos fármacos fornecidos pelo SUS pode se tornar um hercúleo obstáculo para a
eficácia social do direito à saúde do substituído processual extraordinário. Sendo
assim, não pode ele, o hipervulnerável, ficar à mercê da inércia estatal para a obten-
ção de tal laudo médico. Clara como a luz solar, surge a inversão do ônus da prova
como instrumento processual adequado para a solução do imbróglio.

4 ∙ A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA EM RELAÇÃO AOS


INDIVÍDUOS HIPERVULNERÁVEIS NOS CASOS URGENTES
A ampla gama de atribuição ministerial não pode encontrar limite em obstá-
culos geográficos. O Ministério Público brasileiro está presente em toda a extensão
territorial. Ocorre que, infelizmente, os aspectos estruturais da Administração
155
Pública nem sempre são condizentes com o necessário para a garantia do direito
constitucional à saúde.
Cita-se, exemplificadamente, o caso do Município de Alto Garças-MT. A uni-
dade de saúde (Hospital Regional) sob responsabilidade do Estado de Mato Grosso
que guarnece os cidadãos altogarcenses dista, aproximadamente, 150 km, localizan-
do-se no Município de Rondonópolis-MT. Naquele nosocômio laboram os médicos
especialistas vinculados ao SUS no âmbito estadual responsáveis pelo atendimento
da demanda municipal de Alto Garças, encarregados do acompanhamento e da
prescrição das terapias medicamentosas. Tal quadro revela que o cidadão hipervul-
nerável não possui acesso imediato, sequer célere, à comprovação por meio de laudo
médico nos moldes ilustrados no recurso repetitivo debatido. Não se desconhece
que essa situação caótica permeia os mais diversos rincões do Brasil.
Com essas particularidades, indaga-se: é proporcional vincular o fornecimento
do medicamento ao lapso temporal necessário para a obtenção do laudo? Qual a
forma processual de conferir celeridade ao quadro?
A resposta encontra chancela no art. 373 do Código de Processo Civil:
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do
direito do autor.
§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas
à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos
do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá
o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão
fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir
do ônus que lhe foi atribuído. (Grifo nosso).
Analisando os requisitos legais para a aplicação do instituto, ecoa a doutrina:
3.4. Requisitos materiais. De acordo com o § 1º, a possibilidade de dinamização
ocorre quando uma das partes, acentuadamente em relação à outra, detenha: (a)
conhecimento técnicos ou; (b) informações específicas sobre os fatos ou; (c) maior
facilidade em sua demonstração. Trata-se de dados textuais dotados de grande
vagueza, que dependem da atuação doutrinária e jurisprudencial. O § 2º, por sua
vez, impõe que a dinamização não gere, em detrimento de nenhuma das partes, um
encargo impossível ou excessivamente difícil. Em outras palavras, a dinamização
não deve ser utilizada quando haja prova diabólica para ambos os litigantes. Em
tais situações, deve ser utilizada a regra de inesclarecibilidade, de modo a analisar
qual das partes assumiu o risco da situação de dúvida insolúvel, sendo esta que
deverá se submeter à decisão desfavorável. (PEIXOTO, 2016, p. 559, grifo nosso).
A inversão do ônus da prova não foi novidade implantada pelo Código de Processo
Civil. Já se encontrava expressamente prevista no Código de Defesa do Consumidor
e amplamente utilizada na tutela do Direito Coletivo lato sensu, com aplicação, por
exemplo, nas demandas envolvendo Direito Ambiental. Assim, no caso em apreço,
em estrita homenagem ao diálogo sistemático das fontes, também deverá ser invocada
na tutela ao direito individual indisponível de acesso à saúde pelos hipervulneráveis.
Com isso, não se está a fazer tábula rasa das listas elaboradas no âmbito do
SUS, muito menos a questionar a eficácia das medicamentações ali previstas. Em
verdade, como aplicação do princípio da proporcionalidade, apenas não deverá ser

156
ônus probatório do substituído processual extraordinário a apresentação do laudo
médico nos termos do decidido no Recurso Especial n. 1.657.156/RJ. Concluir de
maneira diversa é justamente impossibilitar ou criar excessiva dificuldade de cum-
prir o encargo pelo cidadão hipervulnerável.
E aqui calha ressaltar que os eventuais integrantes do polo passivo da ação comi-
natória (União, estados ou municípios) possuem toda a estrutura adequada para
cumprir com ônus probatório invertido. Isso porque são os verdadeiros adminis-
tradores do SUS, detentores do poder de agenda para a realização de consultas com
os médicos especialistas. Relembrando a doutrina transcrita, quanto à eficácia do
medicamento congênere previsto na lista do SUS, tais pessoas jurídicas de direito
público interno possuem (a) maiores conhecimentos técnicos; (b) informações
específicas sobre os fatos; e (c) maior facilidade em sua demonstração. Obviamente,
comprovada a eficácia de medicamento previsto nas relações do SUS para o caso,
este deverá ser fornecido ao paciente.
O subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito deve ser aplicado no
afã de afastar a supressão do adequado direito à saúde pela aplicação irrestrita do
requisito jurisprudencial aqui focado. No ponto, emana da literatura jurídica:
O subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito demanda que a restrição
ao direito ou ao bem jurídico imposta pela medida estatal seja compensada pela
promoção do interesse contraposto. Ele determina que se verifique se o grau de
afetação a um direito ou interesse, decorrente da medida questionada, pode ou
não ser justificado pelo nível de realização do bem jurídico cuja tutela é perse-
guida. Trata-se, em suma, de uma análise comparativa entre os custos e benefí-
cios da medida examinada – seus efeitos negativos e positivos –, realizada não
sob uma perspectiva estritamente econômica, mas tendo como pauta o sistema
constitucional de valores. (SOUZA NETO; SARMENTO, 2014, p. 478).
O que se revela desproporcional sob o ponto de vista deste subprincípio e
verdadeiro ferimento de morte ao princípio da prioridade é fazer com que um
cidadão hipervulnerável (v.g., criança, adolescente ou idoso) tenha seu tratamento
medicamentoso urgente postergado a evento futuro e incerto (obtenção do laudo
médico pela impossibilidade de substituição do fármaco), com explícita afronta
ao art. 196 da CF/1988.

5 ∙ APROVAÇÃO DA TESE NO 23º CONGRESSO NACIONAL


DO MINISTÉRIO PÚBLICO
À pessoa hipervulnerável, que dependa do Sistema Único de Saúde para casos
de urgência na obtenção de terapia medicamentosa, deve ser mitigada a aplicação
da comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expe-
dido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do
medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fárma-
cos fornecidos pelo SUS.
Para tanto, sem que se rompa irrestritamente o equilíbrio e a equidade no sis-
tema, haverá de ser utilizado o instituto da inversão do ônus da prova, garantindo
a idoneidade do direito face à eventual mora processual e de agendamento de nova
consulta pelo médico da rede e permitindo ao poder público a comprovação da
eficácia do tratamento previsto nas relações do SUS durante a marcha processual.

157
Com as considerações até aqui talhadas, houve o êxito na provação da seguinte
tese no 23º Congresso Nacional do Ministério Público, realizado na cidade de
Goiânia-GO em 2019:
Nas demandas envolvendo direito individual indisponível à saúde de indivíduo
hipervulnerável, constatada a urgência do caso, deverá ser utilizada a inversão do
ônus da prova (art. 373, § 1º, do Código de Processo Civil) como medida de eficácia
social para a comprovação dos requisitos estampados no julgamento do REsp n.º
1.657.156/RJ (Tema 106 do Superior Tribunal de Justiça – obrigatoriedade do poder
público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS).

6 ∙ CONTEXTUALIZAÇÃO DA TESE NO CENÁRIO PANDÊMICO


Desde a aprovação da indigitada tese até os tempos hodiernos, sobreveio fato
imprevisível e que, diretamente, reforça ainda mais a necessidade de sua aplica-
ção na tutela do direito indisponível à saúde. Isso porque em março de 2020 a
Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia mundial do novo
coronavírus (Sars-Cov-2).
No âmbito federal, houve a gênese da Lei n. 13.979/2020, que dispõe sobre as
medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância inter-
nacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Dali, vê-se uma
gama de restrições à liberdade individual em prol do interesse público primário,
com o escopo de evitar o aumento do contágio da população brasileira.
Não bastasse, o próprio Conselho Federal de Medicina teceu orientação aos
profissionais vinculados sobre a restrição de utilização do atendimento eletivo no
âmbito do SUS. Nesse contexto, advertiu a autarquia:
1) Cabe a cada Conselho Regional de Medicina (CRM), no âmbito de sua juris-
dição, autorizar ou não, procedimentos eletivos (consultas e cirurgias) nas redes
pública e privada, comunicando sua decisão às autoridades competentes, aos
médicos e à população;
2) A indicação ou contraindicação cirúrgica é do cirurgião assistente, devendo-
-se considerar o perfil epidemiológico de seu estado e/ou município; as recomen-
dações técnicas das autoridades sanitárias e do executivo local; e as atualizações
propostas pelas respectivas sociedades de especialidades filiadas à Associação
Médica Brasileira (AMB);
3) Pacientes sintomáticos, suspeitos ou portadores de COVID-19, devem ter o
ato cirúrgico postergado, salvo situações de urgência ou emergência, quando
deverão ser respeitados os prazos máximos de atendimento estabelecidos na
Resolução CFM n° 2.077/2014;
4) É de responsabilidade do médico assistente a obtenção prévia do termo de
consentimento livre e esclarecido, devendo o diretor técnico da instituição onde
será realizado o procedimento garantir condições adequadas para a realização
do mesmo, assim como o uso de equipamentos de proteção individual (EPI)
durante o ato cirúrgico.3 (Grifo nosso).
Naturalmente, alguns entes da federação adotaram a postura de limitar e até
mesmo cessar os atendimentos eletivos. Os indivíduos hipervulneráveis que já

3 Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/stories/pdf/nota%20cfm%20cirurgias%20eletivas.


pdf. Acesso em: 23 jul. 2020.

158
enfrentavam dificuldades de acesso geográficas e advindas das filas de espera viram
o direito adequado ao fornecimento de terapias medicamentosas ainda mais distante.
O instituto processual defendido pela tese em comento, pois, tomou ainda mais
fôlego como mecanismo para coibição da demora da tutela processual efetiva.
Enfim, ante a solidariedade no dever de garantia de acesso ao Sistema Universal
de Saúde entre a União, os estados e os municípios, o Ministério Público nacional,
com ênfase na atuação do Ministério Público dos Estados, do Distrito Federal e
Territórios e o Federal, tem na inversão do ônus da prova importante instrumento
para cumprimento de sua missão constitucional.

REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo – Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição federal anotada. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio
L. (Coord.). Comentários à constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.
GARCIA, Emerson. Ministério Público – Organização, atribuições e regime jurídico. 6.
ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 28. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015.
PEIXOTO, Ravi. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (org.).
Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016.
SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao art. 196. In: CANOTILHO, J. J. Gomes;
MENDES, Gilmar F.; STRECK, Lenio L.; SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Comen­
tários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 1931.
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de
direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional – Teoria,
história e métodos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo
Ferres da Silva; MELLO, Rogerio Licastro Torres de. Primeiros comentários ao novo Código
de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

159
DIREITO À CIDADE E MOBILIDADE URBANA
Reinventando o modal bicicleta

Fabiana de Alcantara Pacheco Coelho1

Sumário: 1 Introdução. 2 A mobilidade urbana eficiente como espécie do direito à


cidade. 3 O arcabouço jurídico-normativo do direito à mobilidade urbana no Brasil.
4 Movimentos civis e luta por uma mobilidade urbana eficiente nas últimas décadas. 5
Contextualização histórica da bicicleta e seu progressivo reconhecimento como modal
de transporte. 6 A bicicleta e sua importância para a qualidade de vida e para a economia
em geral no Brasil. 7 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
Neste artigo teremos a mobilidade urbana eficiente como tema, enfocando o
uso do modal bicicleta. A mobilidade urbana é uma subespécie do direito à cidade
e, para sua melhor compreensão, devemos primeiro, então, abordar então o que é
este último direito.
Na Carta Mundial pelo Direito à Cidade, de 2006, 2 documento produzido a
partir do Fórum Social Mundial Policêntrico, sediado em Quito, este direito é
definido como o “usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de susten-
tabilidade, democracia, equidade e justiça social” e como
um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulne-
ráveis e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização,
baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício
do direito à livre autodeterminação e a um padrão de vida adequado.
A expressão “direito à cidade”, com a configuração próxima a que temos hoje,
foi inicialmente apresentada na obra Le Droit a la Ville (1968), em que o filósofo
e sociólogo francês Henri Lefebvre contesta a visão determinista e metafísica do
urbanismo modernista, recusando-se a aceitar a visão de que os problemas da socie-
dade estariam adstritos a questões espaciais e ou meramente arquitetônicas.
Para Lefebvre e Harvey, o espaço urbano é produzido pelo social, assim como
o indivíduo é reformulado subjetivamente por esse mesmo espaço num constante
processo de trocas. Na perspectiva desse direito, o ser humano, reificado pelas forças
econômicas sob o comando do aparato estatal, deve reassumir seu papel de sujeito e
retomar os espaços e funcionalidade urbanos que lhe pertencem, atingindo, assim,
na verdade, o resgate de sua própria natureza humana, relacional por essência.

1 Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá. Pós-Graduada pela Escola
da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Analista do Ministério Público do Rio de Janeiro.
2 Disponível em: http://www.polis.org.br/uploads/709/709.pdf. Acesso em: 8 nov. 2019.

161
A cidade existe por causa do homem e para o homem e não este para servir
como vassalo à estruturação cruel e fria tal como se tem apresentado em geral por
todo o mundo.
Contrariamente a este desiderato, a configuração da maioria das cidades, espe-
cialmente as de países periféricos latino-americanos como o Brasil, está estabelecida
sobre um aparato socioeconômico de profunda concentração de renda e exclusão
social, em que o espaço urbano e seus atributos são apenas usufruídos por parcela
muito pequena da sociedade, enquanto milhares de pessoas sofrem as consequên-
cias da depredação do meio ambiente, segregação socioespacial e ausência de acesso
aos equipamentos públicos.
A progressiva financeirização da moradia contribui em muito para essa configu-
ração excludente da cidade e pode ser definida como o fenômeno em que a escassez
de recursos para as melhorias em infraestrutura urbana e a ânsia por lucro do setor
financeiro acabam por se sobreporem aos interesses sociais no que diz respeito ao
acesso a bens públicos e alcance de direitos sociais fundamentais.
Num cenário deste tipo, a cidade nem de longe é equitativa, pois a terra, prin-
cipalmente a que está atendida por equipamentos públicos, é cara e inacessível à
maior parte da população. Nessa dinâmica, a cidade não é mais um direito e sim
mais uma mercadoria.
A luta por revisão desses padrões segregacionistas tem sido uma constante,3
pois, numa cidade equitativa e justa, as pessoas e seus pertences locomovem-se e são
transportadas com fluidez, sem maiores embaraços de quaisquer origens para que
se reconheçam como usufruidores das benesses geradas pela construção citadina,
sejam elas materiais e imateriais.
Com uma altíssima taxa de urbanização que alcança o patamar de 84,36%
atualmente, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
o Brasil apresenta grandes problemas de mobilidade urbana, que pode ser definida
como a condição em que se realizam os deslocamentos das pessoas e cargas no
espaço urbano, de acordo com o art. 4º, inciso II, da Lei n. 12.587/2012.
Vários outros fatores levam a essa mobilidade urbana ineficiente. Podemos
citar a má qualidade do transporte público no Brasil, um estímulo desde a década
de 1950 a uma cultura eminentemente rodoviarista, inclusive com redução de
impostos do Governo Federal para incentivar a compra de automóveis, a conces-
são exacerbada de crédito ao consumidor para compra de automóveis e a falta de
planejamento urbano e arquitetônico.
Neste panorama, um modal bastante já utilizado cidades com menos de 60.000
habitantes, em que a prestação de serviço público de transporte coletivo é geral-
mente mais crítica, vem progressivamente sendo reconhecido nas políticas públicas
de mobilidade urbana por todo o país: a bicicleta.
Diante da ideia de que os meios de transportes mais modernos como auto-
móveis, caminhões e metrôs, altamente poluentes, resolveriam os problemas de
mobilidade urbana, por um longo período acreditou-se, conforme consignado pela

3 Protesto no Brasil em 2013, denominado por Manifestações dos 20 centavos ou Jornada de junho
de 2013.

162
Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes (GEIPOT), em seu Manual de
Planejamento Cicloviário (2001, p. 3), que a bicicleta era uma “tecnologia ultrapas-
sada e fadada ao completo desaparecimento”, o que, na verdade, revelou-se uma
afirmação falaciosa diante das crises energéticas, da revisão de parâmetros de pro-
teção ao meio ambiente e de paradigmas sociais.
De fato, movimentos de luta pela inclusão da bicicleta no cotidiano e seu reco-
nhecimento como modal de transporte, crises energéticas que buscaram modais
menos poluentes como o Primeiro Choque do Petróleo, ocorrido em 1973, e o
acolhimento de uma visão multidisciplinar sobre a mobilidade urbana acabaram
refletindo nas políticas públicas, que passaram a incluir o modal na política urbana
de planejamento de municípios, estados e União.
Apesar de o quadro de uso da bicicleta nas cidades brasileiras estar aumentando
progressivamente, diversos empecilhos ainda se apresentam, tais como a falta de
reconhecimento e respeito ao modal por parte de grande parcela de habitantes,
ausência de infraestrutura satisfatória para o uso do veículo com diminuição de
riscos aos ciclistas e demais munícipes, ausência de integração entre modais e o res-
quício de uma estigmatização da bicicleta como transporte de usuários “excluídos
sociais” e, portanto, desmerecedores de respeito e atenção.

2 ∙ A MOBILIDADE URBANA EFICIENTE


COMO ESPÉCIE DO DIREITO À CIDADE
Para tratarmos de mobilidade urbana, devemos inicialmente tratar do direito à
cidade, que não nasceu como direito, mas como movimento de luta da sociedade civil
por melhores condições de vida no espaço urbano, espaço de concretização de emba-
tes sociais e de exercício de cidadania, ou seja, nasceu como fenômeno sociológico.
As pautas desses movimentos sociais incluem o repúdio à depredação ambiental,
à aceitação de que pessoas não tivessem acesso à moradia (os sem-teto), à exclusão
de indivíduos de suas localidades por implementação de processos de gentrificação,
ao desalojamento indevido de moradores por causa da financeirização da moradia
sob o comando do Estado, à exclusão social dos menos favorecidos socialmente
como pessoas de diferentes etnias, mulheres, crianças, idosos, por exemplo.
Bello e Ribeiro (2018) sustentam que, muito antes de a Constituição da República
Federativa de 1988 dispor sobre as cidades, em breve capítulo sobre a Política Urbana
(arts. 182 e 183) e ainda de forma esparsa pelo texto constitucional,4 já havia muitas
lutas civis pelo reconhecimento de uma vida digna na cidade por todo o mundo.
Para exemplificar estes movimentos sociais, podemos citar os Écologistes,
movimento de ação radical francês que se dedicava aos embates por modo de
vida urbano ecologicamente mais aceitável na década de 1970; os movimentos
revolucionários em Oaxaca, no México; em Cochabamba (2000 e 2007) e em El
Alto (2003 e 2005) na Bolívia; a mobilização popular corporificada no Fórum
Nacional pela Reforma Urbana (FNRU), nas décadas de 1980 e 1990, no Brasil,
que culminou com a promulgação do Estatuto da Cidade em 2001; e o Fórum
Social dos Estados Unidos, em junho de 2007, em Atlanta, movimento social que

4 Conforme o art. 6º, caput; art. 25, § 3º; art. 144, §10, I; e art.156, I.

163
criou uma Aliança pelo Direito à Cidade com atuação em cidades como Nova
Iorque e Los Angeles.
De movimento de trabalhadores fabris revolucionários desejosos de mudança, o
processo de crescente urbanização mundial muda paulatinamente o locus de onde
provêm os embates e anseios: a cidade e seus excluídos sociais, os trabalhadores
urbanos, aqueles que não querem se adequar às condições de vida degradantes que
os processos econômicos hegemônicos lhes tentam impor.
A expressão “direito à cidade”, com a configuração próxima a que temos hoje, foi
inicialmente apresentada na obra Le Droit a la Ville (O Direito à Cidade, 1968), em que
o filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre contesta a visão determinista e metafí-
sica do urbanismo modernista, recusando-se a aceitar a visão de que os problemas
da sociedade estariam adstritos a questões espaciais e/ou meramente arquitetônicas.
A progressiva financeirização da moradia contribui em muito para essa configu-
ração excludente da cidade e pode ser definida como o fenômeno em que a escassez
de recursos para as melhorias em infraestrutura urbana e a ânsia por lucro do setor
financeiro acaba por se sobrepor aos interesses sociais no que diz respeito ao acesso
a bens públicos e alcance de direitos sociais fundamentais.
Num cenário deste tipo, a cidade nem de longe é equitativa, pois a terra, princi-
palmente a que está atendida por equipamentos públicos, é cara e inacessível à maior
parte da população. A cidade, então, não é mais um direito e, sim, mais uma mercado-
ria. O cidadão passa a ser consumidor e, como sabemos, nem todos os consumidores
têm acesso a todos direitos sociais, também transformados em commodities: saúde,
educação, educação, mobilidade urbana, lazer, acesso a equipamentos públicos.
De acordo com Harvey (2014), o direito à cidade, de onde deflui o direito à mobi-
lidade urbana, é um direito humano, subjugado por uma lógica de mercado liberal,
em que o direito à propriedade privada e taxas de lucro estratosféricas suplantam o
real acesso àquele direito, relegando a cidade e o bem-estar que ela possa oferecer a
somente uns pouquíssimos detentores de capital.
Nas palavras do precitado geógrafo e antropólogo (2014, p. 81):
[...] A qualidade de vida urbana tornou-se uma mercadoria, assim como a própria
cidade, num mundo em que o consumismo, o turismo e a indústria da cultura e
do conhecimento se tornaram os principais aspectos da economia política urbana.
A tendência pós-moderna de encorajar a formação de nichos de mercado – tanto
hábitos de consumo quanto formas culturais – envolve a experiência urbana con-
temporânea com uma aura de liberdade de escolha, desde que se tenha dinheiro.
A própria configuração tomada pela cidade advém da utilização do produto exce-
dente, o que a torna um locus ontologicamente de luta de classes, criando um laço inegá-
vel entre o desenvolvimento do sistema capitalista e o próprio processo de urbanização.
Neste cenário, surgem processos de gentrificação, financeirização da moradia e
grande especulação imobiliária, em que os economicamente excluídos são obriga-
dos a cada vez mais viver em bairros periféricos e não nas centralidades, o que acaba
por impactar enormemente na mobilidade urbana, que também se elitiza e oprime
os desprovidos de posses.
Sob a perspectiva do direito à cidade, desejamos exercer um poder coletivo
sobre o processo de urbanização, inicialmente calcado na noção individualista da

164
propriedade. A revisão da construção e do desfrute da cidade como um fenômeno
exclusivo acessado por uma minoria que possui o excedente de capital é o mote de
tessitura desse direito, que impõe a revisão da cidade do capital para a progressiva
construção da cidade das pessoas.
Uma nova pauta de reivindicação surge nesta luta pela cidade equitativa: a mobi-
lidade urbana. À necessidade de circulação frenética para escoamento de fatores
de produção, o trabalho, produtos, mercadorias e capital contrapõe-se a dificultosa
mobilidade de grande parte das pessoas que vivem na cidade, pois a mobilidade
eficiente também se torna uma mercadoria, acessível a poucos.
Com uma crescente urbanização, a luta por revisão desses padrões segregacio-
nistas, por todo o mundo tem sido uma constante,5 pois, numa cidade equitativa
e justa, as pessoas locomovem-se e são transportadas com fluidez, sem maiores
embaraços de quaisquer origens para que se reconheçam como usufruidores das
benesses geradas pela construção citadina, sejam elas materiais e imateriais.
Por se tratar de um direito relativamente novo, de natureza coletiva, muitos
estudiosos têm dificuldade em visualizar a mobilidade urbana como um tema
também adstrito ao campo dos estudos do Direito, geralmente o analisando sob o
prisma único da arquitetura e urbanismo, engenharia ou até mesmo da geografia.
A multidisciplinaridade e os múltiplos enfoques que se podem aplicar à temá-
tica, no entanto, são incontestes. Na seara jurídica, com o crescente e expressivo
processo de urbanização mundial, que se estima atingir o patamar mundial de
até 65% das pessoas vivendo em cidades até o ano de 2050, a mobilidade urbana
é objeto de estudos, discussões em fóruns mundiais e elaborações normativas que
influenciam nosso ordenamento jurídico, como alguns citados a seguir.
Na Carta da Organização dos Estados Americanos, tratado multilateral datado
de 30 de abril de 1948 e ratificado pelo Brasil em fevereiro de 1950, a modernização
da vida rural, o estímulo a um crescente processo de industrialização com acesso
ao direito de bem-estar material, o fornecimento da habitação adequada e condi-
ções urbanas que proporcionassem oportunidades de vida sadia, produtiva e digna
foram consideradas metas básicas a serem seguidas pelos Estados signatários, com
base no art. 34, alíneas d, e, k, e l.
Na Carta Europeia de Garantia dos Direitos Humanos na Cidade, aprovada
em Saint-Denis, França, em 2000, a preocupação com o deslocamento na cidade
é expressa em seu preâmbulo. No art. 22, itens 1, 2 e 3, a Carta confere tratamento
específico ao direito de circulação e à tranquilidade na urbe, atribuindo às autori-
dades locais o reconhecimento de que os cidadãos devem dispor de meios de trans-
porte públicos acessíveis, fomentando-se ainda o uso de veículos não poluentes.
Pedestres, segundo o texto em comento, devem ter áreas de circulação reservadas
de maneira permanente ou em certos momentos do dia.
O Comitê das Nações Unidas, constituído por 18 especialistas em matéria de
direitos humanos e criado em 1985 com a finalidade de avaliar o cumprimento do
Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) de
1966 e ratificado pelo Brasil em 1992, emitiu, em 2004, as observações gerais sobre

5 Protesto no Brasil em 2013, denominado Manifestação dos 20 centavos ou Jornada de junho de 2013.

165
o direito à moradia ao analisar relatórios emitidos pelos Estados signatários, consig-
nando que a moradia adequada é aquela que permita acesso a opções de emprego,
levando em consideração que os custos de tempo e financeiros para chegar aos pos-
tos de trabalho e retorno à residência podem impor exigências excessivas às famílias
mais pobres (item 8, f, das observações gerais).
Na mesma linha principiológica até aqui desenvolvida, em 2005, foi aprovada
a Carta Montrealense de Direitos e Responsabilidades, que entrou em vigor em 1°
de janeiro de 2006, elaborada por um grupo de trabalho composto por cidadãos
denominado Laboratório da Democracia, sob a alçada do Presidente da Câmara
Municipal e do Chefe do executivo municipal de Montreal, visando ao favoreci-
mento de acesso às atividades e aos equipamentos coletivos de lazer, atividades
físicas e desportos (art. 22, c) e favorecer os meios de transporte coletivo e outros
transportes, limitando a circulação de carro no ambiente citadino (art. 24, d).
A Carta Mundial pelo Direito à Cidade, publicada em 2006, documento pro-
duzido a partir do Fórum Social Mundial Policêntrico de mesma data, após dis-
cussões em fóruns sociais nas cidades de Quito (2004), Barcelona (2004) e Porto
Alegre (2005), em seu artigo XIII, dispõe sobre o direito ao transporte público e à
mobilidade urbana com ênfase ao transporte público acessível, a preços razoáveis,
demonstrando ainda preocupação com as diferentes necessidades ambientais e
sociais envolvidas na operacionalização desse direito.
Em 2009, o Comitê de Mobilidade Urbana da organização Cidades e Governos
Locais Unidos (CGLU), na cidade de Stuttgart, Alemanha, e a organização civil
Cities for Mobility (Cidades para Mobilidade) editaram o documento Agenda 21
para a mobilidade,6 em que as tônicas para trato do tema foram a inclusão social, o
desenvolvimento da economia, ao mesmo tempo em que se visa à proteção do meio
ambiente contra agressões desnecessárias.
Na América Latina, tem-se a Carta da Cidade do México pelo Direito à Cidade,7
datada de julho de 2010, surgida a partir de debates entre diversas organizações
sociais, civis, entidades governamentais e cidadãos. A iniciativa foi bem recebida
também pelo Governo do Distrito Federal mexicano desde princípios de 2007,
tendo sido realizado vários eventos públicos de discussão sobre o direito à cidade.
Importante consignar que só a Zona Metropolitana do Vale do México tem mais de
20 milhões de habitantes, sendo umas das regiões mais povoadas do planeta.
Nesta iniciativa advinda de debates múltiplos populares, em clara demonstração
do exercício pleno da cidadania, considera-se que uma cidade inclusiva preserva o
direito à liberdade de circulação, resguardando, ainda, total acesso ao transporte
público e mobilidade urbana (item 3.2.1). A criação de novas centralidades de ati-
vidades econômicas, políticas e de educação na malha urbana é levada em conside-
ração para melhoria da mobilidade (item 3.3.5), bem como o fomento a modais de
transportes não poluentes (item 3.3.5).
No Brasil, a Organização das Nações Unidas, através do Programa das Nações
Unidas para Assentamentos Humanos (UN-Habitat), realizou em 2010 o Fórum

6 Disponível em: http://i-nse.org/wp-content/uploads/Cities-For-Mobilitiy_Agenda21.pdf. Acesso


em: 7 maio 2019.
7 Disponível em: < http://base.d-p-h.info/pt/fiches/dph/fiche-dph-8584.html>. Acesso em: 12 out. 2019.

166
Urbano Mundial (FUM), sobre o tema “Direito à Cidade: Unindo o Urbano
Dividido”, com mais de 18 mil participantes, na Zona Portuária da cidade do Rio
de Janeiro. Tal fórum ocorreu de dois em dois anos desde 2002, e a primeira edição,
realizada em Nairóbi, Quênia, teve como tema a urbanização sustentável.
O direito à cidade é o eixo para discussão e aperfeiçoamento de ações de políti-
cas públicas neste fórum da ONU, divulgando-se ainda um relatório denominado
“O Estado das Cidades no Mundo 2010/2011: Unindo o Urbano Dividido”.8 Dados,
artigos e informações escritos por acadêmicos, gestores e especialistas sobre o pro-
blema da rápida urbanização no planeta e modos de superá-los são compilados.
O Município do Rio de Janeiro apresentou no Fórum a “Carta do Rio de Janeiro
sobre o Direito à Cidade”,9 em que reafirmou o reconhecimento do direito à cidade
inclusiva, como um novo paradigma socioambiental em que a equivalência de
oportunidades aos bens materiais e imateriais oferecidos seja ofertada a todos os
habitantes temporários ou permanentes da cidade. Para este mister, de acordo com
o relatório do Fórum (2010, p. 106), reafirmou-se a necessidade de políticas públicas
articuladas por toda a sociedade civil e instituições governamentais.
No FUM, ainda se demonstrou franca preocupação com o tema mobilidade
urbana em toda a América latina, tratando-o como um dos maiores problemas
nevrálgicos atuais. Enfatizou-se no relatório (2010, p. 20), no item 26, que a popula-
ção mais pobre é a que mais sofre com a carência de mobilidade urbana eficiente por
geralmente residir em áreas desprovidas de centralidades e equipamentos públicos.
Outro ponto do documento (UN-HABITAT, 2010, p. 50), tratado no item 11,
foi a inacessibilidade das favelas no Brasil no que tange à mobilidade, reforçando-
-se que estradas de acesso deveriam ser construídas até mesmo para que houvesse
acesso de veículos de socorro e outros serviços.
Todos os documentos até aqui citados demonstram que a temática da mobi-
lidade urbana eficiente tem sido alvo de intensos debates mundiais, sobre o qual
especialistas das mais diversas áreas de conhecimento, inclusive os da área jurídica,
juntamente com governantes locais, organizações civis e cidadãos, estão mantendo
intenso intercâmbio de informações, estudos e pesquisas, considerada a relevância
do tema para o bem-estar do ser humano.
O processo interessante é que muitos dos documentos sobre os quais discorre-
mos não advêm de iniciativas meramente legislativas, ou seja, como fruto da demo-
cracia indireta (sistema representativo). Muito pelo contrário, advém de intensos
debates entres cidadãos, especialistas e protagonistas públicos principalmente dos
Poderes Executivo e Legislativo. O paradigma participativo-direto de democracia
tem sido amplamente utilizado no tema direito à cidade e à mobilidade urbana,
dado o impacto direto das discussões na vida do cidadão em geral e a multiplicidade
de enfoques sociais e técnicos que pode ser aplicada ao assunto.

8 Cf. Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-HABITAT). Estado das
Cidades do Mundo 2010/2011 - Unindo o Urbano Dividido. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/
portal/images/stories/PDFs/100408_cidadesdomundo_portugues.pdf. Acesso em: 14 out. 2020.
9 Cf. Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-HABITAT). Report of the
Fifth Session of the Word Urban Forum. Fonte: https://unhabitat.org/wp-content/uploads/2016/07/
wuf-5.pdf. Acesso em: 17 abr. 2018.

167
3 ∙ O ARCABOUÇO JURÍDICO-NORMATIVO DO DIREITO
À MOBILIDADE URBANA NO BRASIL
Muitos indivíduos são privados do acesso à mobilidade urbana por causa do
elevado custo dos transportes públicos, o que acaba por impactar em sua educação,
acesso a trabalho, saúde e, até mesmo na manutenção de laços familiares quando são
impossibilitados de visitar parentes por ausência de modicidade de tarifas. Além
disso, quando têm acesso ao transporte, padecem longas horas de viagem em razão
de uma cultura eminentemente rodoviarista e individualista de mobilidade, ainda
encontrada em muitas cidades brasileiras no arranjo do planejamento urbano.
Partindo desse cenário socioeconômico, estima-se que a população brasileira atual-
mente encontra-se precipuamente nas cidades, alcançando um índice de 84,36% de
taxa de urbanização no ano de 2010, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE).10 O IBGE identificou 63 concentrações urbanas brasileiras com
mais de 300 mil habitantes em projeto do ano de 201511 que tem como intento, além do
estudo socioespacial de nosso território, ajudar nas escolhas das políticas públicas que
serão implantadas, em alinhamento às necessidades dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) e da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.12
Esta altíssima taxa de urbanização traz à baila a ideia de cidade como um imã de
pessoas, “um campo magnético que atrai, reúne e concentra os homens”, que nos é
apresentada por Rolnik (1995, p. 13), configurando a formação sociopolítica da cidade.
Se por um lado a cidade atua como um imã, revela por outro uma característica para-
doxal, que é a complexa segregação, reunião de medos e anomias deste território.
Este processo de crescimento das cidades brasileiras desenvolvido precipua-
mente no século XX, no entanto, foi implementado com muitos resquícios de
características do período colonial e imperial, tais como concentrações de riquezas,
poder e terra em nome de poucos favorecidos, bem como pelo coronelismo e pelo
uso do direito como instrumento de reforço dessas idiossincrasias.
Nosso processo de urbanização corporativa gerou cidades com problemáticas
bastante similares, como déficit crônico de moradia em condições de habitabi-
lidade mínima, como saneamento básico, déficit de acesso à mobilidade urbana
eficiente, à saúde e ao lazer.
É a cidade do capital e não das pessoas que foi forjada segundo o aparato técnico
e científico voltado para o escoamento do excedente do capital, voltada para o inte-
resse das grandes corporações e que ainda se vale do aparato estatal para a conse-
cução de seus fins. Nessa perspectiva urbanizadora, afirma Santos (2009, p. 10) que:
A cidade em si, como relação social e como materialidade, torna-se criadora
de pobreza, tanto pelo modelo socioeconômico de que é suporte como por sua
estrutura física, que faz dos habitantes das periferias (e dos cortiços) pessoas

10 Cf. IBGE. Censo demográfico 1940-2010. Até 1970 dados extraídos de: Estatísticas do século XX. Rio
de Janeiro: IBGE, 2007, no Anuário Estatístico do Brasil, 1981, vol. 42, 1979. Acesso em: 17 abr. 2019.
11 Cf. IBGE. Áreas urbanizadas do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2017. Disponível em: https://
biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv100639.pdf. Acesso em: 17 de abr. 2019.
12 Documentos estabelecidos pela Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável,
realizada em 2015, assim como da Nova Agenda Urbana, pactuada na III Conferência das Nações
Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável. Habitat III, realizada em 2016.

168
ainda mais pobres. A pobreza não é apenas o fato do modelo socioeconômico
vigente, mas, também do modelo espacial.
No campo normativo, desde a promulgação da Constituição da República
Federativa de 1988, a preocupação do constituinte já era a garantia do bem-estar
dos habitantes e a utilização do solo urbano em atendimento às funções sociais
da cidade, em nítida oposição ao conceito de cidades segregadoras e disfuncionais,
em que o perfil mercadológico capitalista, voltado para a acumulação de riquezas e
especulação imobiliária altamente predatória, prepondera.
Inicialmente, conforme dispõem o art., 21, inciso XX e o art. 30, caput, nosso legis-
lador constituinte originário referia-se ao acesso a transportes urbanos e coletivos, isto
é, ao deslocamento de pessoas. Os transportes coletivos, no entanto, constituem-se
apenas em uma das facetas de um conceito mais amplo que é o de mobilidade urbana,
este que é definido pelo art. 4º, inciso II, da Lei n. 12.587/2012 como “a condição em
que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano”.
A definição de mobilidade urbana confere um caráter sistemático e dinâmico
ao trânsito, transporte coletivo, à logística de distribuição das mercadorias, a cons-
trução da infraestrutura viária, a gestão de calçadas e outros temas correlatos aos
deslocamentos que ocorrem no espaço urbano.
Nessa formulação conceitual adotada, a funcionalidade das políticas formula-
das é permeada por questões socioeconômicas, sustentabilidade ambiental, uso do
solo e suas implicações e de gestão pública.
Na esteira da preocupação mundial com o direito à cidade sustentável e ade-
quada aos interesses das populações locais, entrou em vigor em 2001 o Estatuto da
Cidade,13 regulamentando os arts.182 e 183 da Constituição de 1988, expressamente
referindo-se, em seu art. 2º, inciso I, à garantia ao transporte como diretriz para o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.
Apesar de o Estatuto da Cidade ter sido um grande avanço social à época, não
contemplou especificamente a temática mobilidade urbana nestes exatos termos,
limitando-se a consignar que as cidades com mais de 500 mil habitantes deveriam
elaborar um plano de transporte urbano integrado, em consonância com o Plano
Diretor ou nele inserido, como prevê o art. 41, § 2º, da Lei n. 10.257/2001.
Para tanto, enfatizou, através do art. 2º, inciso II c/c art. 3º, IV, a necessidade de
uma gestão democrática e participação da população e associações representativas
para a formulação, execução e planejamento de planos, projetos e programas que
envolvam a mobilidade urbana.
Em 1º de janeiro de 2003, criou-se o Ministério das Cidades,14 fato inovador nas polí-
ticas urbanas, sendo de atribuição desta pasta a elaboração das políticas de desenvolvi-
mento, de habitação popular, saneamento ambiental e transporte urbano e participação
na formulação das diretrizes gerais para a conservação dos sistemas urbanos de água.15

13 Cf. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/


LEIS_2001/L10257.htm. Acesso: 14 out. 2020.
14 Cf. Lei n. 10.683, de 28 de maio de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
Ato2015-2018/2016/Lei/L13341.htm#art12. Acesso: 14 out. 2020.
15 Essas atribuições estão previstas no art. 27, inciso III, alíneas a, b, c, d, e, f, da Lei n. 10.683, de 28
de maio de 2003.

169
Maricato (2007) sustentou que a criação deste ministério supria um vazio ins-
titucional governamental da União, no que tange ao trato integrado da política
urbana e o destino das cidades. Para a autora, a visão atomista dos setores de
moradia, habitação e mobilidade dificultava as análises e implementação desses
direitos, especialmente por se considerar que mais de 84% da população brasileira
vivem em cidades atualmente.
Até a criação do referido ministério, a última política proposta de política
urbana de implementada pelo governo federal deu-se entre os anos de 1964 e 1985
durante o regime militar. Com a crise fiscal dos anos 1980 e a derrocada do Sistema
Financeiro de Habitação e do Sistema Financeiro do Saneamento, as políticas urba-
nas com esse viés foram relegadas a segundo plano, em normas dispersas e sem
conexão aplicadas unicamente pela União, de acordo com Rolnik (2015).
No Ministério das Cidades, encontrava-se a Secretaria Nacional de Mobilidade
Urbana (SeMob), cuja missão era “fomentar a implantação da política de mobili-
dade urbana com a finalidade de proporcionar o acesso universal à cidade, de forma
segura, socialmente inclusiva e sustentável” (SEMOB, 2003).16
Em 2012, após 17 anos de tramitação no Congresso Nacional, promulgou-se
a Lei n. 12.587, de 3 de janeiro,17 que institui as diretrizes a serem adotadas nas
políticas públicas de desenvolvimento que envolvem a mobilidade urbana. Foi um
marco na gestão de políticas públicas, especialmente por ter-se permitido a prio-
rização do transporte coletivo e do transporte não motorizado sobre o transporte
motorizado individual.
Em tal diploma legal, a mobilidade é expressa no art. 4º, II, como “condição em
que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano”, tendo
como uma das diretrizes, conforme dispõe o artigo 6º, II, “prioridade dos modos
de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte
público coletivo sobre o transporte individual motorizado”.
O Plano de Mobilidade Urbana (PMU) é o instrumento previsto no art. 24,
caput, da Lei 12.587/2012, para a efetivação da política nacional nela prevista, con-
ferindo-se grande ênfase aos modos de transporte não motorizados para os deslo-
camentos, como dispõe os arts 23, IV, e 24, V, bem como o foco no planejamento
do deslocamento a pé ou por bicicleta nos municípios sem sistema de transporte
público coletivo ou individual.
Na Lei n. 12.587/2012, a obrigatoriedade de elaboração do PMU é imposta às
municipalidades com mais de 20.000 habitantes,18 contrariamente ao que dispunha
o Estatuto da Cidade, que previa este tipo de plano apenas para cidades com mais
500.000 habitantes, e, naquela lei, o plano é muito mais abrangente em seu conteúdo,
contemplando, além da própria infraestrutura viária e serviços, assuntos como os
mecanismos e instrumentos de financiamento do transporte público coletivo.19

16 Disponível em: https://www.cidades.gov.br/mobilidade-urbana. Acesso em: 7 maio 2018.


17 Lei n. 12.587, de 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/
l12587.htm. Acesso em: 14 out. 2020.
18 Art. 24, §1º.
19 Art. 24 e incisos.

170
Na mesma linha de crescente conscientização, o legislador pátrio editou a
Emenda Constitucional de n. 82, em 2014, incluindo o direito fundamental à mobi-
lidade urbana eficiente no § 10, inciso I, do art. 144 da Carta Política de 1988, que
trata da segurança pública.
A necessidade de que as políticas públicas de moradia, mobilidade, saneamento
e meio ambiente sejam feitas de modo articulado e integrado na federação entre
União, Estados e Municípios, o que se intitulou de “governança interfederativa”,
levou à promulgação em janeiro de 2015, do Estatuto da Metrópole,20 com o intuito
de trazer visão holística à gestão pública brasileira de origem essencialmente ato-
mística, conferindo continuidade e funcionalidade às práticas de gestão adotadas
entre os diversos entes federativos.
Nessa mesma toada, em setembro de 2015, o constituinte derivado alçou o trans-
porte à categoria de direito social, com a edição da Emenda Constitucional n. 90, que
alterou o art. 6º da Lex Mater. O transporte, neste contexto, refere-se tanto à mobili-
dade de pessoas como o de cargas, na esteira do que dispõe o art. 1º da Lei 12.587/2012.
Em 2015, o Ministério das Cidades, através da Secretaria com devida atribui-
ção, editou o PlanMob, que se intitula um caderno de referência para elaboração de
plano de mobilidade urbana nos municípios e cidades. Neste caderno, preconiza-se
que a mobilidade deve ser analisada conjuntamente com o uso e a ocupação do solo,
saúde e qualidade de vida das pessoas, isto é, o prisma que é conferido ao assunto é
um prisma humanitário, e não o enfoque do capital.
Cita-se, inclusive, a Manifestação de junho de 2013, conhecida como
Manifestação dos 20 centavos, em que a população se reuniu para reivindicar pro-
vidências de serviços públicos coletivos de qualidade com tarifas módicas como um
dos motes para criação do Plano de Mobilidade Urbana.
As várias mortes causadas no País em acidentes de trânsito (cerca de 43 mil óbi-
tos por ano), bem como o excessivo tempo gasto com deslocamento médio em gran-
des capitais, prejudicando as condições de vida dos usuários de transporte públicos,
assim como um crescente índice de poluição atmosférica e sonora também foram
motivadores para a publicação do PlanMob.
Até mesmo a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), associação
civil sem fins lucrativos, que exerce função delegada estatal por intermédio do
Conmetro/Sinmetro, publicou a norma ABNT NBR ISO 37120:2017 para análise
do Desenvolvimento Sustentável de comunidades, em que criou indicadores para
orientar e medir serviços urbanos e qualidade de vida.
Na NBR ISO 37120/17, como indicadores que compõem o desenvolvimento sus-
tentável da comunidade, estão os de governança, transporte e planejamento urbano,
a reforçar a importância dos tópicos para a classificação de uma cidade como sus-
tentável, na esteira do que, inclusive, preconiza-se no Objetivo de n. 11 da Agenda
2030 da Organização das Nações Unidas.21

20 Cf. Lei n. 12.587, de 2015. Institui o Estatuto da Metrópole, altera a Lei nº 10.257, de 10 de julho de
2001, e dá outras providências.
21 Cf. Organização das Naçoes Unidas. Transformando nosso mundo: a agenda 2030 para o Desen­
volvimento Sustentável, 2015. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/
10/agenda2030-pt-br. Acesso em: 2 de ago. de 2019.

171
4 ∙ MOVIMENTOS CIVIS E LUTA POR UMA MOBILIDADE URBANA
EFICIENTE NAS ÚLTIMAS DÉCADAS
A lógica mercantilista sobre a mobilidade urbana tolhendo o direito de ir e
vir da população acabou por deflagrar movimentos civis nos últimos anos com
essa temática.
A Revolta do Buzu,22 protagonizada pelos estudantes do ensino médio principal-
mente, jovens universitários e jovens do ensino fundamental, ocorrida em Salvador
entre agosto e setembro de 2003, foi uma série de manifestações em resistência às
condições indignas do transporte público na capital soteropolitana.
As principais reivindicações dos jovens na rua eram: a manutenção do preço da
tarifa do ônibus em R$ 1,30, pois havia subido para R$ 1,50 (a principal reivindi-
cação); meia passagem nos finais de semana, feriados e férias; a gratuidade na pri-
meira via do cartão utilizado pelos jovens; a revitalização do Conselho Municipal
de Transporte; e, por fim, a melhoria das condições dos transportes.
Calcula-se que a série de movimentos reuniu 20 mil estudantes de colégios de
diversas regiões da capital e da cidade vizinha, paralisando a circulação de carros
e ônibus por quase 20 dias,23 causando impacto nas atividades econômicas locais
e na arrecadação das sociedades empresárias do ramo de prestação de serviço de
transporte público rodoviário.
No movimento restou bem consignada a importância extrema do acesso à mobi-
lidade urbana eficiente para que os jovens pudessem ter acesso ao direito à educa-
ção, sendo a gratuidade de oferta de transporte público para estudantes de escolas
públicas uma reivindicação tradicional dos movimentos estudantis no Brasil.
Salvador é tida como a capital do desemprego, segundo estudos do Dieese,24 com
inúmeras pessoas vivendo em processo de informalidade e em condições precárias
de trabalho. Em 2016, o salário médio mensal dos trabalhadores formais é de apenas
3,4 salários mínimos e somente 28,7% da população tem ocupação, ou seja, 841.999
pessoas.25 O terceiro maior gasto para uma família de baixa renda é com a mobili-
dade urbana, constituindo-se em 8,15% da despesa, valor este bastante impactante
no orçamento mensal familiar.26

22 Cf. Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e Instituto Pólis. 2007. Disponível
em: http://bibjuventude.ibict.br/jspui/bitstream/192/164/1/IBASE_IPOLIS_revoltadobuzu_2007.pdf.
Acesso em: 26 out. 2019.
23 Idem, p. 7.
24 A taxa de desemprego total da Região Metropolitana de Salvador aumentou de 25% para 25,5% da
População Economicamente Ativa (PEA) em fevereiro de 2018. Estima-se hoje que sejam 510 mil
pessoas desempregadas. Fonte: Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socieconômicos.
Pesquisa de Emprego e Desemprego. Mercado de Trabalho na Região Metropolitana de Salvador.
Disponível em: www.dieese.org.br/analiseped/2018/201802pedssa.html. Acesso em: 30 out. 2019.
25 Cf. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Panorama da Cidade de Salvador. Disponível em:
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/salvador/panorama. Acesso em: 30 out. 2019.
26 Cf. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamento Familiares (POF) de 2004.
Disponível em: ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/19052004pof2002html.shtm. Acesso
em: 2 out. 2019.

172
Um ponto digno de nota na Revolta do Buzu foi a resistência dos estudantes
envolvidos a se associarem, no evento, a qualquer tipo de entidade formalmente
organizada, mesmo que estudantil, pois, segundo, Oliveira e Carvalho (2007, p. 8):
como pode ser observado em documentários e reportagens da época, a maio-
ria dos estudantes associou a presença delas a partidos políticos, mecanis-
mos de manipulação da opinião pública, disputa pelo poder e pela iniciativa
das manifestações.
Nesta manifestação observa-se claramente a crise da democracia representa-
tiva que está acontecendo em todo o mundo, mas que é um processo com maior
visibilidade principalmente na América Latina, em que investigações como as
operadas na Lava-Jato expõem as vicissitudes da corrupção severa que abundam
aqui, assim como acusações de golpes de Estado na Venezuela e violentos protes-
tos ocorridos no Paraguai.27
O cidadão-consumidor deseja respostas rápidas e satisfatórias em termos de
políticas públicas, o que encontra óbices na própria ideia da representatividade,
sujeita a procedimentos mais morosos de legitimação de seus ideais de governança.
Essa visão mercadológica da cidadania esteia-se no fato de que reclamações e
sugestões de clientes são prontamente atendidas, em regra, pelas sociedades empre-
sárias, o que difere bastante das respostas aos reclamos obtidas no setor público, seja
na celeridade, seja na eficácia e presteza.
Partidos políticos são vistos – e muitos assim se colocam – como instituições
voltadas ao lucro, buscando riqueza e glória na sociedade, ao invés de atenderem ao
seu intuito originário de instrumento de operacionalização do direito de cidadania
junto aos Poderes Públicos.
A compreensão da gênese desse processo de progressivo desgaste da democracia
representativa na América Latina é assim descrita por Riffo (2017), cientista política
chilena, em entrevista a João Paulo Charleaux:28
É preciso lembrar que democracia e representação compõem uma aliança incô-
moda. Desde suas origens, a democracia era exercida de maneira direta, sem cor-
pos políticos intermediários – ainda que fosse restrita aos homens livres, o que
excluía escravos e mulheres. Já a representação, era exercida pelos monarcas, que
enviavam seus representantes para distintos pontos do reino, para dar solução

27 Protestos no Paraguai em 2017 foram uma série de manifestações ocorridas no país que teve
início em 31 de março. Durante os protestos, o Congresso foi incendiado por manifestantes. As
manifestações ocorreram após 25 senadores aprovarem uma emenda constitucional que permitiria
ao atual presidente do país, Horacio Goems, concorrer à reeleição em 2018, possibilidade vedada
atualmente pela Constituição paraguaia. A emenda foi descrita pela oposição como “um golpe”.
Vários Políticos e jornalistas, bem como a polícia e manifestantes foram feridos, incluindo um
deputado de oposição. Um líder da Juventude Liberal, Rodrigo Quintana, foi morto após ser
baleado em uma invasão à sede do Partido Liberal Radical Autêntico, em Assunção. Cf. BBC News
Brasil. Entenda a crise que culminou com invasão e incêndio do Congresso do Paraguai. Disponível
em: www.bbc.com/portuguese/internacional-39466675. Acesso em: 30 out. 2019.
28 Cf. Nexo Jornal. “De onde vem a crise de representatividade dos partidos”, pesquisadora chilena,
Javiera Arce Riffo, discute em São Paulo os entraves da democracia na América Latina e os meios
de driblar a crise política, que não está restrita ao Brasil. Disponível em: www.nexojornal.com.br/
entrevista/2017/04/03/De-onde-vem-a-crise-de-representatividade-dos-partidos-segundo-esta-
pesquisadora-chilena. Acesso em: 30 de out. de 2019.

173
aos problemas do governo e para cobrar impostos. Foi a Revolução Francesa que
uniu os conceitos de democracia e representação. Por isso, em alguns momentos
da história moderna, há essa tensão entre democracia e representação.
A República representativa, modelo forjado ao fim do século XVIII, dá claros
sinais de esgotamento, tendo em vista a dissociação progressivamente gerada pela
vontade popular real e o instituto da representação, baseada precipuamente em
estruturas de poder verticalizadas.
A Revolta do Buzu acabou por receber grande apoio da população que encam-
pou o movimento capitaneado pelos jovens estudantes soteropolitanos. De acordo
com Oliveira e Carvalho (2007, p. 5), “os trabalhadores de maneira geral, professo-
res, até mesmo alguns policiais e motoristas de ônibus reconheciam a importância
do ato, mesmo diante do imenso transtorno causado na cidade”.
Não houve após a série de manifestações na capital baiana, entretanto, atendi-
mento do pleito principal de diminuição do valor tarifário, mas o movimento foi
muito belo e expressivo socialmente, pois teve impacto na construção identitária
dos jovens participantes, o que faz parte da construção da noção de cidadania.
Além disso, trouxe à baila a discussão sobre a necessidade de redução de tributos
sobre valores das passagens (ISS, ICMS, CIDE, COFINS e PIS), bem como a grande
influência para que houvesse manifestações em outros lugares do país, como a
Revolta da Catraca, em Florianópolis em 2004, e a própria criação do Movimento
Passe Livre, em 2005, durante o Fórum Social Mundial em Porto Alegre.
A Revolta da Catraca ou Guerra da Tarifa foi um movimento popular ocorrido
na cidade de Florianópolis, em 2004, com 17 dias protesto. Houve protestos de estu-
dantes e população contra o reajuste das passagens de ônibus na capital de Santa
Catarina, bem como o aumento de salário e vereador em 150% e da Prefeita em
275%. O movimento foi considerado também, como a Revolta do Buzu, um movi-
mento horizontal, sem líderes, que envolveu associações comunitárias e estudantes,
não tendo sido arregimentado através da Internet. O movimento iniciou-se com
alunos do Colégio de Aplicação pulando grades e cercas do instituto, seguindo em
marcha para o centro e fechando o terminal da Trindade.
De acordo com Vinicius (2005, p. 14), estudantes e policiais militares reuniram-se
no primeiro dia, com apoios recíprocos em diversos e importantes momentos. Ao
longo do movimento o palco de embate foram as ruas e a estratégia era a ocupação,
como a Avenida Paulo Fontes, com a rodovia SC-401, que é a principal ligação entre o
centro da cidade e o norte da ilha de Florianópolis, bem como bloqueio de terminais
e a estratégia catraca-livre, que consistia em deixar a porta de trás dos ônibus abertas.
O movimento teve certo nível de organização e preparação e encontrou forte
represália por parte do Poder Executivo, que determinou a repressão violenta com
policiais com bombas de gás, chutes nos rostos dos estudantes, spray de pimenta e
balas de borrachas. Ocorreram também várias detenções e indiciamentos.
Ao fim, os manifestantes, principalmente os jovens, atingiram seu objetivo prin-
cipal que era a revogação do aumento das tarifas, bem como conseguiram com que os
vereadores fizessem um abaixo-assinado pedindo que a Chefe do Executivo municipal
não sancionasse o projeto de aumento de salário que eles mesmos haviam aprovado.
Fizeram renascer no povo catarinense a noção do poder da população unida para
atingimento de conquistas sociais, o que foi confirmado por Vinicius (2005, p. 60):

174
O movimento já foi uma vitória em si mesmo. E ainda conquistou a sua rei-
vindicação central. Modificou o imaginário popular. Enfrentou as forças mais
conservadoras da sociedade catarinense e lhe impingiu uma derrota. O povo
daqui agora sabe que é possível conquistar o que se deseja através da mobilização
e da ação direta. Isso se vê nas ruas.
Na esteira das Revoltas do Buzu e da Catraca, o Movimento Passe Livre
(MPL) autodefine-se como “um movimento social autônomo, apartidário, hori-
zontal e independente, que luta por um transporte público de verdade e gratuito
(MOVIMENTO PASSE LIVRE, 2005)”29 para toda a população. Foi batizado na
Plenária Nacional pelo Passe Livre, em janeiro de 2005, em Porto Alegre.
Apesar de apartidário, o MPL não refuta a participação de partidos no movi-
mento, mas defende que a política deve transcender o simples ato de votar, abarcando
a prática cotidiana do exercício da cidadania. Defende ainda a horizontalidade na
participação, conclamando todos indistintamente a participarem do movimento.
O MPL dispõe que a gratuidade do transporte público deve ser entendida como
o pagamento do transporte através dos impostos progressivos, analisando a capa-
cidade contributiva de cada contribuinte, de forma que os mais pobres teriam as
passagens custeadas pelos mais abastados.
A Internet, no caso do MPL, é utilizada por grupos de trabalho que executam
as deliberações plenárias tomadas em consenso, e, em último caso, por votação.
Almeja-se a inclusão do elemento participação popular de forma intensa na gestão
dos transportes coletivos.
O direito à mobilidade urbana, para o MPL, é tido como um dos corolários do
direito à cidade, pois, de acordo com o manifesto do movimento, a “circulação livre e
irrestrita é um componente essencial deste direito que as catracas-expressão da lógica
do transporte como circulação de valor bloqueiam” (MARICATO, 2013, p. 7).
O movimento ganhou destaque na imprensa e a discussão sobre a tarifa zero
veio ainda mais à tona em 2013, após as grandes manifestações ocorridas em junho
no país, as Jornadas de Junho, com grande mobilização do MPL de São Paulo, bus-
cando-se impedir o aumento das passagens de transporte coletivo na cidade. No
fim deste mesmo ano, mais de 100 cidades brasileiras haviam reduzido a tarifa do
transporte, em consequência das manifestações.
Sobre a magnitude das manifestações, Maricato (2013, p. 19) assim se consignou:
Tomando as ruas, as Jornadas de Junho de 2013 rasgaram toda e qualquer pers-
pectiva técnica acerca das tarifas e da gestão dos transportes que procurasse
restringir seu entendimento aos especialistas e sua “racionalidade”, a serviço de
cima. Ao reverter o aumento das passagens em mais de cem cidades do país, as
pessoas deslocaram momentaneamente – e com impactos duradouros – o das
barricadas, uma experiência de apoderamento que não se resume à ocupação
física das cidades, mas estende-se à maneiro como se organizam os transportes
no país. É essa tomada de poder que assusta os gestores estatais e privados, que
tentam agora reocupar o espaço que perderam para os trabalhadores urbanos.
Na cidade de São Paulo especificamente, o MPL exerceu pressão vitoriosa de
duas semanas sobre a revogação do decreto municipal que aumentou em R$ 0,20 a
tarifa, que só viria a acentuar a exclusão social já existente na mobilidade urbana.

29 Movimento Passe Livre. Disponível em: www.tarifazero.org/mpl/. Acesso em: 5 de nov. de 2019.

175
Em todos os movimentos sociais de que se trata até agora, as tentativas de “ocupa-
ção da cidade” pelos cidadãos dela excluídos levou a respostas de violência, pois esta
forma de linguagem ainda é bastante utilizada como forma de controle pelos políticos
locais. Vocábulos como “baderna, quadrilha, arruaceiros, criminosos e vagabundos”
legitimam o discurso estatal e midiático para tentar interromper a rebeldia dos excluí-
dos sociais contra o processo alijador que vivenciam diariamente: sem mobilidade
urbana, sem educação, sem saúde, sem moradia, sem lazer.
A gestão dos fluxos e dos espaços citadinos pelos participantes dos movimentos
é tônica comum. Devolve-se à cidade o seu próprio veneno diário: bloqueia-se uma
avenida principal, e como nossa mobilidade urbana é essencialmente rodoviarista e
individualista, com péssimo transporte coletivo, o caos está formado.
O Estado do Rio Grande do Norte, em 2013, também foi palco do movimento
Pau de Arara que ocupou as ruas de Mossoró, dirigindo-se à Câmara Municipal e à
sede da chefia do Executivo local, o Palácio da Resistência.
Os protestantes, principalmente jovens estudantes, insurgiam-se contra um
precaríssimo serviço de transporte público, ônibus sucateados, aumentos de tarifas
abusivos, apesar de a União ter aberto mão de cobrança dos tributos PIS e COFINS
para evitar aumento das tarifas, e lutavam pela efetiva aplicação do Plano de
Mobilidade Urbana (já aprovado há dois anos) e integração das linhas.
A Internet foi utilizada como principal veículo de comunicação e o movimento
acabou por obter conquistas como passe para estudantes e projeto de lei voltado à
adaptação para mobilidade nos ônibus, que foi arquivado infelizmente.

5 ∙ CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA BICICLETA E SEU


PROGRESSIVO RECONHECIMENTO COMO MODAL DE TRANSPORTE
Diante da necessidade de revisão de uma política essencialmente rodoviarista
em termos de mobilidade urbana, a bicicleta está paulatinamente sendo objeto de
novos olhares nos planejamentos das cidades no que concerne ao deslocamento de
até oito quilômetros, ou seja, em curtas e médias distâncias.30
No que tange à educação do ciclista para uso do veículo e da população no
respeito aos ciclistas, é válido ressaltar que o Código de Trânsito Brasileiro31
(CTB) regula a circulação por meio de bicicletas, que pode ser feita nos bordos
da pista de rolamento, quando não houver ciclovia ou ciclofaixa, 32 com preferên-
cia sobre os veículos motorizados. O ciclista que está desmontado empurrando a

30 Revista Bicicleta. “A eficiência dos 8 km”, de André Geraldo Soares. Nesta mesma reportagem, o
autor afirma que “95% dos municípios brasileiros têm população de até 100.000 habitantes, cujos
perímetros urbanos não ultrapassam 8km de diâmetro. Desta forma, ressalvadas as condições
topográficas e atmosféricas, qualquer ciclista, em condições físicas medianas, pode atravessar essas
cidades em não mais do que 40 minutos. E estamos autorizados a conceber que apenas uma parcela
diminuta da população necessita cruzar diariamente uma cidade de ponta a ponta. Disponível em:
http://revistabicicleta.com.br/bicicleta.php?a_eficiencia_dos_8_km&id=2781. Acesso em: 11 jan. 2019.
31 Cf. Lei n. 9.503, de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503.htm. Acesso em: 26 abr. 2019.
32 Art. 58, caput.

176
bicicleta, por sua vez, é equiparado ao pedestre em direitos e deveres, 33 conforme
disposto na referida lei.
Por ser tratado como veículo no CTB, 34 potencialmente causador de acidentes
graves, há equipamentos obrigatórios que a bicicleta deve possuir, como cam-
painha, sinalização noturna dianteira, traseira, lateral e nos pedais, bem como
retrovisor do lado esquerdo.35
Existe ainda no CTB previsão de punição para com atitudes agressivas com
o ciclista, tal como ultrapassagens por veículos motorizados que, nas expressões
populares, denomina-se “tirar fino”, ou seja, deixar de guardar a distância lateral de
um metro e meio ao passar ou ultrapassar a bicicleta,36 sendo esta considerada uma
infração média sujeita a multa. Da mesma forma, o ciclista não pode conduzir a
bicicleta onde não seja permitido ou conduzi-la de forma agressiva, sendo esta uma
infração média, sujeita a multa e a remoção do veículo.37
Considerado o primeiro veículo mecânico para transporte individual, a ori-
gem da bicicleta é um tanto controvertida, alguns estudiosos atribuem o primeiro
desenho deste modal, além de estudos sobre a transmissão por corrente, ao artista
renascentista italiano Leonardo da Vinci (1452-1519). Tal desenho consta do Codex
Atlanticus, uma coleção de documentos do polímata, constituído por doze volumes.
Como se sabe, da Vinci era apaixonado por mecânica e anatomia, tendo produzido
obras nas mais diversas áreas do conhecimento.
Alguns estudiosos, por sua vez, contestam essa origem38 e consideram o dese-
nho incluído na compilação Codex Atlanticus uma fraude, atribuível a um monge
italiano que teria incluído um trabalho seu na coleção de documentos do reno-
mado artista italiano.
O historiador chinês Xu Quan Long alega que o primeiro invento que se asse-
melha à atual ideia de bicicleta teria sido uma engenhoca de rodas construída pelo
inventor compatriota Lu Ban, que nasceu há 2.500 anos39 e era especialista em cons-
trução de artefatos de guerra.
Historicamente, a origem com mais substrato documental é a de que, em 1790,
o conde francês Mede de Sivrac inventou o celerífero, um cavalo de madeira de
duas rodas, que se empurrava com um ou dois pés. Muitos consideram, no entanto,
que o real inventor do veículo foi o barão alemão Karl Friedrich Von Drais que
construiu a draisiana em 1817, espécie também de celerífero, com a roda dianteira
servindo de diretriz e gerando mobilidade através de um comando com as mãos, o

33 Art. 68, § 1º.


34 Art. 96, inciso II, alínea a, item 1.
35 Art. 105, VI.
36 Art. 201.
37 Art. 255.
38 Cf. The Leonardo da Vinci Bicycle Hoax. Disponível em: http://www.cyclepublishing.com/history/
leonardo%20da%20vinci%20bicycle.html#. Acesso em: 21 maio de 2018.
39 Cf. Was this the word’s First-ever Cycle? Disponível em: https://metro.co.uk/2010/03/24/was-this-
the-worlds-first-ever-cycle-189288/. Acesso em: 21 maio 2019.

177
que atualmente chamaríamos de guidão, o que lhe conferia equilíbrio e possibili-
dade de realização de curvas ao invento.
Não havia pedais no projeto da draisiana, o que levava os usuários a empur-
rarem a si mesmos com os pés. Tal objeto foi patenteado em 1818, em Baden e em
outras cidades europeias, incluindo Paris, mas houve baixíssimo interesse pela
industrialização do invento na Alemanha inicialmente.
Mais de setenta anos depois, passando-se neste ínterim pela invenção do velocí-
pede pelo francês Pierre Michaux, com diversos melhoramentos técnicos tais como
a inclusão de pedais sobre disco e repasse da tração para a roda traseira e o câmbio
de marchas, criado por Johann Walch, da Alemanha, o quadro trapezoidal, por
Huber, na Inglaterra, e, em 1891 e os pneus tubulares desmontáveis, por Michelin,
na França, tem-se a bicicleta da forma aproximada com que a temos hoje.
Com a revolução industrial, que se iniciou no século XVIII e atingiu seu ápice
no século XIX, nasceu a primeira indústria de bicicletas denominada Michaul and
Company em 1875, e o veículo tornou-se uma constante na paisagem em Paris e em
outras cidades europeias.
No Brasil, de acordo com o Programa Brasileiro de Mobilidade por Bicicleta, em
seu caderno de referência para elaboração do Plano de Mobilidade por Bicicleta nas
Cidades (2007, p. 24-25), não se pode precisar data exata de chegada do veículo ao
nosso território nem a localidade. Estima-se que a Capital do Império, entre os anos
de 1859 e 1870, tenha recebido os primeiros exemplares, pois nela estariam con-
centradas as pessoas com maior poder aquisitivo e que mantinham relações com
a Europa, em que haviam surgido várias indústrias que produziriam as bicicletas.
Alguns estudiosos sustentam, no entanto, que a bicicleta teria chegado ao Brasil
no século XIX através de imigrantes europeus que vieram trabalhar na região sul do
País. Em 1895, há registros fotográficos de clube de ciclistas em Curitiba,40 fundado
por um grupo de alemães imigrantes.
SILVA (2014, p. 45-46) afirma que, quando da chegada do invento ao Brasil,
símbolo de modernidade, no fim do século XIX e início do século XX, a bicicleta
era usada por pessoas das mais diferentes classes sociais e tinha um certo status
social. Com a chegada do bonde, calhambeque e, posteriormente, do carro, depois
da Segunda Guerra Mundial, o modal, especialmente nas grandes capitais, foi alvo
de estigmatização social e alijamento no que se refere aos planejamentos urbanos de
transporte, essencialmente rodoviaristas.
De fato, estudos recentes conduzidos por Coelho Filho e Saccaro Júnior (2017,
p. 7), afirmam que “o ciclista brasileiro é de baixa renda, jovem e residente na zona
rural” majoritariamente, “considerando-se zona rural a periferia de pequenas cida-
des ou uma região periurbana de transição nas grandes cidades”.
Em cidades pequenas e de médio porte a bicicleta foi muito utilizada para des-
locamento por trabalhadores de indústrias e de pequenos estabelecimentos empre-
sariais. Este fator deve ter contribuído também para o veículo ser visto como modo
de locomoção de somenos por longo período nas políticas públicas brasileiras de

40 Disponível em: www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/colunistas/nostalgia/vida-equilibra


da-96xh0wkunsgfmyun0z. Acesso em: 22 maio 2019.

178
mobilidade urbana, visto que um veículo utilizado por trabalhadores, especial-
mente com a chegada do automóvel no Brasil ao fim do século XIX e posterior pro-
cesso de industrialização realizado aqui na década de 1950, sequer era considerado
como modal de transporte efetivamente.
Segundo Coelho Filho e Saccaro Júnior (2017, p. 5), curiosamente, estima-se que
hoje, no Brasil, ainda há mais bicicletas (50 milhões de unidades) que carros (41
milhões de unidades), mas somente 7% do total de viagens é feito por bicicletas ,
quando, na verdade, poderíamos atingir um patamar de 40% de viagens percorridas
através deste modal.
De acordo com o Manual de Planejamento Cicloviário (2001), diante da ideia de
que os modais mais modernos como automóveis, caminhões e metrôs, altamente
poluentes, resolveriam os problemas de transporte urbano, por longo período
acreditou-se que a bicicleta, por ser um veículo simples era uma tecnologia ultra-
passada e fadada ao completo desaparecimento, o que, na verdade, mostrou-se ser
uma afirmação falaciosa diante das crises energéticas e progressivas mudanças de
paradigmas socioambientais.
De fato, esta estigmatização da bicicleta como veículo voltado unicamente
para o uso das classes sociais menos favorecidas está progressivamente sendo
vencida através de movimentos sociais de diversos usuários que acabam por tam-
bém impactar a formulação de políticas públicas especialmente formuladas para
fomentar o uso do modal.
Coelho Filho e Saccaro Júnior (2017, p. 7) indicam que, por um “semianalfabetismo
sobre mobilidade urbana eficiente” ainda há, é claro, resistência a este movimento, e,
paradoxalmente, mesmo os usuários de baixa renda do modal, quando aumentam a
sua renda familiar, tendem a aumentar a taxa de motorização, especialmente com a
compra de motocicletas (processo denominado de shifting). Este fator indica que não
necessariamente o uso da bicicleta está ligado atualmente à conscientização ambiental
e de saúde, mas sim à deficiência de transporte público e segregação social.
Um dos fatores já experienciado na Europa que reverte esta tendência à moto-
rização já é o oferecimento de redes cicloviárias integradas a outros modais, como
trens e ônibus, por exemplo, o que também foi objeto de constatação na cidade
colombiana de Bogotá, e em Niterói, no Rio de Janeiro, com a integração entre o
modal e o transporte aquaviário oferecido nesta última cidade através da constru-
ção do bicicletário Arariboia, ao lado da estação central das barcas.41
No que se refere à economia e conscientização socioambiental, o evento histó-
rico conhecido como o Primeiro Choque do Petróleo, ocorrido em 1973, em que os
países do Oriente Médio diminuíram a produção de barris diante da conscientiza-
ção da finitude do recurso não renovável, elevando o valor de cada barril de US$
2,90 para US$ 11,65 dólares em apenas três meses, ocasionou uma necessidade de

41 Quem usa diariamente as barcas na travessia para o Rio percebe o aumento de passageiros
com bicicletas a bordo. E os números comprovam: levantamento da CCR Barcas mostra que o
crescimento do trânsito de ciclistas e suas magrelas no trajeto Araribóia-Praça Quinze chegou a
125% nos últimos dois anos. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/bairros/em-dois-anos-
numero-de-ciclistas-na-travessia-de-barcas-entre-niteroi-praca-quinze-cresceu-125-16501882.
Acesso em: 15 set. 2019.

179
revisão das políticas de mobilidade urbana, estimulando-se o uso de novos modais
que causassem impacto menor no meio ambiente.
Em 1976, a primeira política urbana consolidada da União sobre planejamento
cicloviário é editada através do Manual de Planejamento Cicloviário da Empresa
Brasileira de Planejamento de Transportes (GEIPOT), baseada em análise de téc-
nicos sobre a experiência de cidades sulistas que estimulavam o uso do modal. Tal
manual foi reeditado em 1980 e também em 2001.
Curitiba foi umas das cidades analisadas no Caderno, pois, já em 1976, implan-
tava uma embrionária rede cicloviária no interior de parques e em conexões entre
alguns deles. Mesmo que não tenha ocorrido um planejamento técnico mais apu-
rado, pois o projeto baseou-se apenas na elaboração de um anteprojeto geométrico
unicamente, demonstrou-se que a cidade já fomentava a mobilidade urbana que não
fosse somente a rodoviarista, regra no País à época.
Atualmente Curitiba é a cidade brasileira que tem o maior número de ciclistas
no país, o que pode ser atribuído a diversos fatores como o desenvolvimento con-
tínuo de políticas públicas para o desenvolvimento da estrutura cicloviária, clima,
e por também ainda apresentar, como a maioria das cidades brasileiras, problemas
relacionados ao transporte público.42 O principal motivo listado para utilização do
modal na cidade foi o fato de ser considerado mais rápido e prático, segundo cerca
de 36% de entrevistados na cidade no ano de 2018.43
Curitiba apresenta atualmente 207 km de vias cicláveis, utilizadas precipuamente
para o deslocamento até o trabalho (60% das viagens). Cerca de 55% dos ciclistas con-
templados na pesquisa supracitada consignaram que, se houvessem mais e melhores
infraestruturas adequadas certamente usariam o modal de forma mais intensa.44
Joinville, nos idos da década de 1970, também recebeu visita técnica por parte
da GEIPOT, visto que, na época, possuía a fama de cidade com o maior uso de
bicicleta do País, especialmente pela existência da Fundação Tupy, maior socie-
dade empresária da cidade. Esta indústria construiu um estacionamento coberto
com 2.400 vagas, com utensílios para uso dos mais de 5000 mil funcionários
ciclistas, o que já demonstrava o pioneirismo sulista na acolhida da bicicleta e a
necessária infraestrutura.
Nos termos do Manual de Planejamento Cicloviário (2001, p. 1), assim era a
situação do o uso do modal naquele momento:
[...] A política de transportes urbanos, em particular a cicloviária, é essencial
para estruturar soluções autossustentáveis para as áreas urbanas. Esse veículo,
até o presente momento, não recebeu, em nosso país, o tratamento adequado

42 Cf. Pesquisa Nacional sobre o Perfil do Ciclista Brasileiro, elaborado pela Associação Transporte
Ativo em parceria com o Laboratório de Mobilidade Sustentável da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Disponível em: www.ta.org.br/perfil/ciclista18.pdf. Acesso em: 4 jan. 2019.
43 Cf. Pesquisa Nacional sobre o Perfil do Ciclista Brasileiro, elaborado pela Associação Transporte
Ativo em parceria com o Laboratório de Mobilidade Sustentável da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Disponível em: www.ta.org.br/perfil/ciclista18.pdf. Acesso em: 4 jan. 2019.
44 Cf. Pesquisa Nacional sobre o Perfil do Ciclista Brasileiro, elaborado pela Associação Transporte
Ativo em parceria com o Laboratório de Mobilidade Sustentável da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Disponível em: www.ta.org.br/perfil/ciclista18.pdf. Acesso em: 4 jan. 2019.

180
ao papel que desempenha como meio de transportes, nas áreas urbanas. No
Brasil, poucos são os profissionais que se interessam em conhecer ou estudar o
fenômeno do uso da bicicleta, mesmo sendo ela o único veículo cuja aquisição
é acessível a todas as classes sociais. A falta de prestígio desse meio de trans-
porte junto a autoridades e planejadores tem acarretado aos seus usuários um
a situação de semimarginalidade.
Em 2001, a GEIPOT publicou um Diagnóstico Nacional do Planejamento
Cicloviário45 com dados coletados desde o ano de 1999, o estudo mais completo
da União à época sobre o uso da bicicleta, depois de várias pesquisas realizadas em
quase 60 cidades do País. Inicialmente, os pesquisadores contemplaram visitas a 25
cidades e, considerando que várias outras demonstraram interesse na participação
sobre o diagnóstico, mais municípios foram englobados para a análise.
Considerando a importância da bicicleta para a realização de milhares de deslo-
camentos para lazer, estudo e trabalho, a SeMob implementou, em 2004, um fórum
para discussão do Programa Brasileiro de Mobilidade por Bicicleta, visando à edifi-
cação de uma política sólida de expansão do transporte cicloviário no Brasil.
A transformação do espaço urbano e redução das desigualdades sociais pelo uso
desigual e injusto do solo, bem como a reformulação da ênfase dada ao transporte
individual motorizado foram motes para a constituição do Caderno de Referência
para elaboração de Plano de Mobilidade por Bicicleta nas Cidades, publicado em
2007 pelo Ministério das Cidades, pretendendo fomentar uma política de mobi-
lidade urbana baseada em princípios como a inclusão social, sustentabilidade
ambiental, gestão participativa e equidade no uso do espaço público.
Neste Caderno delineia-se um quadro da política de mobilidade urbana no
Brasil à época, um panorama sobre o uso da bicicleta, bem como um roteiro para
elaboração de projetos cicloviários nas cidades, inclusive com a integração do modal
com os outros meios de transporte, o que aumenta o raio de abrangência de uso do
veículo a médias e longas distâncias, assim como reduz custo dos deslocamentos,
acabando por beneficiar a grande parcela da população de menor renda.
O Caderno ainda informa que a bicicleta é vista como o veículo dos “excluí-
dos sociais”, nem sequer lhe sendo reconhecido o status de modo de transporte
pela população à época em que editado o documento. Considerada invisível, por
quase não ser poluente e por ocasionar quase nenhuma poluição sonora, teve sua
importância nos deslocamentos diários da população desconsiderada e ofuscada
pelo massivo uso do automóvel, tornado símbolo de status social por intensas pro-
pagandas e apoio governamental.
A pressão socioeconômica, no entanto, pela revisão do excesso de viagens moto-
rizadas, por questões ambientais, financeiras ou sociopolíticas, relançou um novo
olhar sobre o uso do modal, com a consequente revisão do desenho urbano para seu
integral acolhimento. Segundo o caderno de referência para elaboração do Plano de
Mobilidade por Bicicleta nas Cidades (2007, p. 16), “a cidade não pode ser pensada
como, se um dia, todas as pessoas fossem ter um automóvel”, o que levou, inclusive,

45 Cf. Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes. Planejamento Cicloviário: Diagnóstico


Nacional. Disponível em: www.ciclocidade.org.br/biblioteca/file/47-planejamento-cicloviario-
diagnostico-nacional-geipot. Acesso em: 22 maio 2019.

181
a União a criar programas para fomento a projetos de sistema de deslocamento não
motorizados (a pé ou por bicicleta).46
Coelho Filho e Saccaro Júnior (2017, p. 10) afirmam que, a partir de 2004,
houve um grande avanço em políticas públicas cicloviárias, especialmente com o
fortalecimento de associações cicloativistas, como a União de Ciclistas do Brasil,
fundada em 2007, mas, em 2009, o governo federal recuou ao novamente retomar
o estímulo a políticas públicas rodoviaristas, com políticas fiscais diferenciadas
para compra de automóveis:
Há uma incompatibilidade de discursos de mobilidade entre o rodoviarismo e
o cicloativismo. Esta disputa de discursos fica evidenciada no governo federal,
com avanços para visão cicloativista a partir de 2004, com o Programa Bicicleta
Brasil, e retrocessos a partir do ano de 2009 com fortalecimento da visão rodo-
viarista e estímulo econômico e fiscal para compra de automóveis pelo governo
federal, com destaque para a diminuição do imposto sobre produtos industriali-
zados (IPI). A concentração de esforços governamentais na promoção do rodo-
viarismo, do ponto de vista das políticas públicas, não pode ser justificada, uma
vez que os modos ativos e coletivo de transporte motorizado compõem a maioria
das viagens, como mostrado anteriormente. (NOBRE, 2010, p. 15).
Com o “Programa de Aceleração de Crescimento 2” voltado para as médias
cidades, em 2012, Belloto et al. (2014) sustentam que houve a formulação de 24 pro-
postas, entre 63 apresentadas, relativas à criação de ciclovias e/ou ciclofaixas como
itens de investimento.
Apesar de haver investimentos financeiros dos diversos entes federativos em
infraestrutura cicloviária, também sob a pressão da sociedade civil, a denominada
“onda bike” também recebeu estímulo ao desenvolvimento por parte de entidades
financeiras, disseminando estratégias de marketing ecológico, como símbolo de
sustentabilidade. Duas instituições financeiras foram pioneiras nestes projetos no
Brasil: o Banco Itaú com o compartilhamento das “laranjinhas” e o Banco Bradesco
também com as bicicletas do sistema denominado “ciclo sampa” e o estímulo ao
cicloturismo local, através da separação de faixas cicláveis, nos fins de semana, em
avenidas e parques municipais.
Tais projetos favoreceram maior visibilidade à bicicultura, havendo, no
entanto, sérios questionamentos sobre ferimentos às regras gerais de licitação e
de malversação do espaço na cidade que seria conferido a um oligopólio formado
pelas instituições financeiras, em mais um processo de “financeirização” do solo
e a mercadoria espaço urbano.47

46 “1- Programa de Mobilidade Urbana, através da ação Apoio a Projetos de Sistemas de Circulação Não
Motorizados, com recursos do Orçamento Geral da União – OGU; 2- Programa de Infraestrutura
para Mobilidade Urbana- Pró-Mob, através de modalidades que apoiam a circulação não motorizada
(bicicleta e pedestre), para financiamento com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT)”.
In: PROGRAMA BRASILEIRO DE MOBILIDADE POR BICICLETA – BICICLETA BRASIL.
Caderno de referência para elaboração de Plano de Mobilidade por Bicicleta nas Cidades. Brasília:
Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana, 2007. Disponível em: www.intt.gob.ve/
repositorio/biblioteca/texto_relacionados/Livro_20Bicicleta_20Brasil.pdf. Acesso em: 21 maio 2019.
47 Cf. Compartilhamento de bicicletas: prefeitura à mercê do setor privado?. Disponível em: http://
ag.jor.br/blog/2016/02/02/contrato-bikesharing-itau-bradesco/. Acesso em: 15 set. 2019.

182
O fato de haver exploração da cidade, pertencente à coletividade, como a publi-
cidade feita por meio de placas com o nome da sociedade empresária parceira, em
troca de conservação de praças, canteiros e outros espaços públicos, quando se
estão em jogo contraprestações muito mais lucrativas como o aluguel cobrado pelo
sistema de bike sharing, demonstra que há malversação do espaço público através de
instrumentos normativos firmados pelo Poder Público.
Também é alvo de críticas a edição de decretos municipais casuísticos e genéri-
cos para lidar com a exploração de publicidade em espaços públicos por partes des-
tas instituições financeiras sob o fundamento de que pressões político-partidárias
poderiam influir sobre a continuidade dos serviços, caso algum candidato eleito
não fosse estimulador do sistema de compartilhamento de bicicletas.
A este fenômeno, Rolnik (2015, p. 225) chama de “novas formas de financia-
mento municipal”:
A literatura sobre o impacto do neoliberalismo nas políticas urbanas identificou
a emergência do chamado “empreendedorismo municipal” como resposta local
à erosão da base econômica e fiscal das localidades em função dos processos
de reestruturação produtiva e ajuste fiscal. Os governos das cidades abando-
naram a visão administrativa predominante nos anos 1960 em direção a uma
ação “empreendedora” nos anos 1970 e 1980. De um lado, as cidades foram
envolvidas por um ambiente geoeconômico marcado por caos monetário, movi-
mentos especulativos do capital financeiro, estratégias globais de localização de
corporações multinacionais e intensificação da competição entre localidades.
Ao mesmo tempo, o retraimento de regimes de bem-estar e de transferências
intergovernamentais impôs limites ao financiamento das políticas urbanas. Por
outro lado, os programas neoliberais de desregulação, privatização do gasto
público também penetraram na agenda dos governos locais, o que transformou
suas políticas urbanas em verdadeiros laboratórios, com experimentos que vão
do marketing de cidades a zonas especiais de promoção econômica, megaproje-
tos globais e organizações locais de desenvolvimento urbano.
Ações integradas da sociedade civil cicloativista, juntamente com as demais
pautas de luta urbana como moradia, saúde e defesa do meio ambiente também são
importantes catalisadoras de avanços na institucionalização das políticas cicloviárias.
Especialmente em relação à proteção do meio ambiente (art. 225, caput, da
CF), as bicicletas são consideradas veículos de baixo impacto ambiental e, de
acordo com Coelho Filho e Saccaro Júnior (2017, p. 13), emitem apenas “21kg de
CO2 por passageiro por quilômetro transportado”, enquanto um “carro sedan”,
acrescido da infraestrutura rodoviária para sua locomoção, “emite 239Kg de CO2
por passageiro por quilômetro”.
Neste tocante, é um modal de transporte que se coaduna com as metas da Política
Nacional de Mudança Climática, que visa à compatibilização do desenvolvimento
econômico-social com a proteção do sistema climático e à redução das emissões
antrópicas de gases de efeito estufa em relação às suas diferentes fontes, conforme
expressa a Lei n. 12.187/2009, em seu artigo 4º, incisos I e II.
Já em 2008, o Plano Nacional de Mudança de Clima, elaborado pelo Governo
Federal (2008, p. 83), consignava que o estímulo ao uso do modal bicicleta, através
do projeto do Ministério das Cidades denominado de “Bicicleta Brasil”, reduziria

183
impactos ambientais no setor de transportes, devendo ser revertida a predominân-
cia rodoviarista de mobilidade, de viagens motorizadas.
No final de 2018, a Lei n. 13.724 institui o Programa Bicicleta Brasil, sob coor-
denação do denominado Ministério das Cidades, para incentivar a inserção da
bicicleta como modal de transporte nas cidades com mais de 20 mil habitantes, o
que também representa um avanço no intuito de fomento da bicicultura.48 A bici-
cleta foi legalmente reconhecida como “meio de transporte econômico, saudável e
ambientalmente adequado”.49
Gize-se que o apoio previsto para inserção das bicicletas nas cidades com mais de
20 mil habitantes, torna-se uma obrigação no que tange às cidades com mais de 500
mil habitantes, em que deve haver obrigatoriamente a previsão da implantação de
ciclovias e promoção do transporte cicloviário em atendimento ao que é exigido pelo
art. 41 da Lei n. 10.257/2001, no que tange ao plano de transporte urbano integrado.50
O referido diploma legal, na verdade, reafirmou o fato de que, em cidades
pequenas e médias, em geral, já há intensa utilização do modal em apreço, espe-
cialmente se consideramos a quase inexistência de transporte coletivo urbano em
várias cidades brasileiras.
De acordo com a Lei n. 13.724/2018, a União deverá apoiar os estados e muni-
cípios na construção de toda a infraestrutura cicloviária, bem como na instalação
de bicicletários públicos e equipamentos de apoio ao usuário, promovendo ainda a
integração do modal aos modais de transporte público coletivo.51
Os atores envolvidos neste processo de estímulo à implantação de infraestrutura
cicloviária foram órgãos governamentais e organizações não governamentais com
atuação relacionada ao uso da bicicleta como meio de transporte e lazer e por socie-
dades empresárias que atuem no setor produtivo ligado ao modal,52 sendo que os
dois últimos atuarão em regime de contratação ou parceria público-privada.
O dever de estímulo ao desenvolvimento de uma educação e conscientização sobre
a mobilidade urbana também foi trazida a comento na lei em apreço, especialmente
quando se instaura como uma das diretrizes a necessidade de “conscientização da
sociedade quantos aos efeitos indesejáveis da utilização do automóvel nas locomoções
urbanas” e o objetivo de “implantar políticas de educação para o trânsito que promo-
vam o uso da bicicleta e a sua boa convivência com os demais modais”.53
Como nenhum programa pode ser criado sem o devido substrato operacional
econômico e financeiro, os recursos contemplados no caso foram parcelas dos
recursos da CIDE-combustíveis, a ser ainda regulamentada, dotações específicas
dos orçamentos de União, estados e municípios e Distrito Federal, bem como

48 Lei n. 13.724/2018. Institui o Programa Bicicleta Brasil (PBB) para incentivar o uso da bicicleta visando
à melhoria das condições de mobilidade urbana. Arts. 2º e parágrafo único, inciso I, em especial.
49 Art. 3º, inciso III.
50 Art. 5º, parágrafo único, da Lei n. 13.724/2018.
51 Art. 3º, inciso I e II.
52 Art. 4º, § 1º, incisos I, II e III.
53 Art. 2º, parágrafo único, inciso VI e art. 3º, IV.

184
contribuições e doações de pessoas físicas ou jurídicas, entidades e organismos de
cooperação nacionais ou internacionais.54
Infelizmente houve veto ao artigo da lei que reservava 15% dos recursos arrecadados
com multas de trânsito, o que disponibilizaria cerca de 1 bilhão por ano ao programa.55
O veto baseou-se em argumentos eivados de retrocesso social, inicialmente
consignando que não haveria relação de causas e efeitos entre o programa e a
aplicação de multas. Exclusivamente atribui-se às verbas arrecadadas à sinaliza-
ção, engenharia de tráfego e de campo, policiamento, fiscalização e educação de
trânsito (art. 320 da Lei n. 9.503/1997).
Ora, se o trânsito contempla a utilização de bicicletas,56 considerada veículo
de passageiros, ela também está regida pelas disposições do Código de Trânsito
Brasileiro e, consequentemente, as verbas arrecadadas deveriam ser utilizadas para
os diversos aspectos de utilização do modal. No mínimo, o veto peca por desconhe-
cer a noção de tráfego ou fingir que desconhece.
Além disso, como razão de veto, o Chefe do Executivo federal consignou que
poderia haver um possível
enfraquecimento dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de
Trânsito, com o comprometimento de valores destinados a cobrir os custos e
despesas com rotinas e procedimentos relativos à atuação das infrações, podendo
se acarretar insuficiência e consequente sensação de impunidade.
Ocorre que, se não houver regulamentação no que concerne a parcelas dos
recursos da CIDE-combustíveis, conforme previsto no Programa, uma das fontes
de financiamentos já restará bastante prejudicada o que, em se tratando de Brasil,
não é difícil, pois várias leis remanescem sem aplicação por falta de atuação regula-
mentadora do Poder Executivo.

6 ∙ A BICICLETA E SUA IMPORTÂNCIA PARA A QUALIDADE DE VIDA


E PARA A ECONOMIA EM GERAL NO BRASIL
Ao contrário do que inicialmente possamos pensar, a simplicidade e praticidade
do modal bicicleta está cada vez mais sendo estudada no que tange à sua inserção na
economia brasileira, em consonância com o que dispõe o art. 170 da Constituição
de 1988, em especial no que concerne à valorização do trabalho humano, melhoras
na condição de dignidade da nossa existência, defesa do meio ambiente, redução
das desigualdades regionais e sociais e ajuda na busca do pleno emprego.57

54 Art. 6º, incisos I, II e III.


55 Observemos que o artigo do Projeto de Lei n. 83/2007, que mudava o código de trânsito justamente
para prever essa destinação ao programa em questão, também foi vetado.
56 Art. 1º, § 1º, da Lei n. 9.503/1997: “Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e
animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento
e operação de carga ou descarga”.
57 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 170, caput e incisos, in verbis:
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados
os seguintes princípios:

185
Em recente estudo de julho de 2018, o Laboratório de Mobilidade Sustentável da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (LABMOB/UFRJ) e a Associação Brasileira
do Setor de Bicicletas (Aliança Bike) desenvolveram pesquisas acerca do mapea-
mento e monetização do complexo econômico representado pela bicicleta.58
Em relação aos gastos com mobilidade urbana, que, no Brasil, representam
em média quase 20% dos gastos da renda média mensal de uma família que vive
na área urbana, 59 o estudo supracitado demonstrou que há grande economia
pelo uso da bicicleta em análise de hábitos de deslocamento em cinco grupos
familiares, que variam de rendas superiores a 20 salários-mínimos entre rendas
de 1 a 2 salários-mínimos:
A realização de estudo de caso com cinco famílias na região metropolitana do
Rio de Janeiro estimou que a economia no orçamento de uma família de classe
A que usa a bicicleta como meio de transporte no lugar do Uber, por exemplo,
pode chegar a R$ 10.032 ao ano. Também se verificou que R$ 12.831,68 é a eco-
nomia média no orçamento de uma família em que ao menos um dos membros
trocou o carro pela bicicleta.
Ora, uma economia média anual de cerca de R$ 12 mil em uma renda mensal
familiar em lares mais abastados já é bastante significativa, mas num núcleo
familiar de renda mensal de 1 a 2 salários-mínimos mensais tal média anual é
extremamente representativa da importância da utilização da bicicleta para a
mobilidade urbana.
Conforme havíamos inicialmente previsto, a bicicleta é mais utilizada por
famílias de renda salarial mais baixas, pela falta de acesso financeiro e material
efetivos à mobilidade urbana por outros modais, o que, no nosso entender, é
uma situação extremamente vexatória em nosso País, corroborando a intensa
exclusão social aqui presente.
Nestes domicílios, a bicicleta é a única opção existente para se locomover
pelo território da cidade, juntamente com o deslocamento peatonal, o que está
totalmente em dissonância com o que é preconizado com a Lei n. 12.587/2012,
no que tange à acessibilidade universal e à equidade no acesso dos cidadãos ao
transporte público coletivo.60
A bicicleta não deve ser vista como uma imposição, mas como uma opção sau-
dável e menos poluente para deslocamentos de média e curta distância em condi-
ções climáticas favoráveis no dia a dia. Um ser humano jamais deveria ser obrigado
a utilizar qualquer modal de transporte por falta absoluta de condições materiais

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto


ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego”.
58 Estudo Economia da Bicicleta no Brasil. Disponível em: www.aliancabike.org.br/assets/_docs/26
_10_2018_19_14_economia_da_bicicleta_(3).pdf. Acesso em: 12 jan. 2019.
59 IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa de Orçamentos
Familiares 2008-2009. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv45130.
pdf. Acesso em: 12 jan. 2019.
60 Lei n. 12.587/2012. Art. 5º, inciso I e III.

186
para se valer de um modal mais eficiente ao contexto do deslocamento que pretende
alcançar, pois isto fere inegavelmente a dignidade ínsita a sua condição.61
Em domicílios em que há mais condições financeiras, a bicicleta é utilizada
como “opção de modal”, muitas vezes por desenvolvimento de uma conscientização
ambiental e social sobre seu uso e pelos integrantes desta casa estarem mais perto
das centralidades, em perímetros cicláveis de até 8 quilômetros, o que se coaduna,
inicialmente, com a previsão de uso do modal nos estudos de mobilidade.
Como inicialmente inferíamos de nossa observação da realidade, estas foram
também as conclusões alcançadas no estudo em comento:
Dentre os casos estudados, cabe observar que a participação semanal do uso da
bicicleta tende a ser maior nas famílias de mais baixa renda do que nos estratos
mais altos. Essa constatação está em consonância com outros estudos realizados
sobre o uso da bicicleta como meio de transporte no Brasil, como é o caso da
Pesquisa Perfil do Ciclista Brasileiro, realizada em 2015.
Os casos das famílias D e E, que apontaram não dispor de outro meio de locomo-
ção senão a bicicleta, diferem dos demais casos na medida em que a utilização de
modais alternativos é mais presente nos estratos mais altos.
A explicação mais plausível é o fato de que as três faixas de renda mais elevadas,
tendo em vista também seus locais de moradia, situados em áreas mais centrais,
dispõem de maiores recursos financeiros e alternativas de transporte do que os
dois domicílios menos favorecidos.
Além disso, é importante destacar que a bicicleta, para as famílias de mais alta
renda, tende a simbolizar a opção por um estilo de vida determinado, enquanto
para os estratos mais baixos ela pode tratar-se de uma solução para os desloca-
mentos diários dadas as restrições orçamentárias e/ou de infraestrutura de trans-
porte público dos locais em que residem. (Grifo nosso).
De fato, no Brasil, calcula-se haja cerca de oito milhões e trezentos mil ciclistas
(4% da população)62 e o perfil apurado deste público no ano de 201863 é de geral-
mente homens que têm entre 25 e 34 anos, que concluíram o ensino médio e rece-
bem até dois salários-mínimos, pedalam até 30 minutos até seu destino principal,
que, na maior parte das vezes, é o trabalho (75.8% dos deslocamentos). Quase 83%
dos entrevistados pedalam 5 dias ou mais por semana.
A motivação para começar a utilizar a bicicleta como modal de transporte foi
preponderantemente a rapidez e praticidade (38,4% dos entrevistados), seguido de
custo do transporte público (22,1%) e a preocupação com a saúde (25,8%).
A consciência ambiental ainda é relativamente baixa (3.5%) como motivação,
dado que pode ser atribuível ao baixo nível de escolaridade apresentado pela

61 Ver notícia do Jornal O Globo de 3/7/2017, “Para economizar, professor da FAETEC percorre 70km
de bicicleta para ir ao trabalho”, em que um professor, por falta de pagamento de seus vencimentos
pelo Estado do Rio de Janeiro, pedala do município de Seropédica até a Escola Técnica em Nova
Iguaçu. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/emprego/para-economizar-professor-
da-faetec-percorre-70km-de-bicicleta-para-ir-ao-trabalho-21547962. Acesso em: 13 jan. de 2019.
62 Cf. Economia da Bicicleta no Brasil. Disponível em: www.aliancabike.org.br/assets/_docs/26_10
_2018_19_14_economia_da_bicicleta_(3).pdf. Acesso em: 12 jan. 2019. p. 143.
63 Cf. Pesquisa Perfil do Ciclista 2018. Disponível em: www.ta.org.br/perfil/perfil18.pdf. Acesso em:
13 jan. 2019.

187
média dos ciclistas. Além disso, a noção de solidariedade como limitadora da
atuação de gerações atuais em relação ao meio ambiente e preocupação com as
gerações futuras ainda é uma muito afastada de nossa realidade social, extrema-
mente calcada no referencial individualista para o qual falta ainda falta o básico
necessário à vivência minimamente aceitável.
Marques (2012, p. 3-8) assim dispõe sobre a temática da solidariedade em ter-
mos da proteção ao meio ambiente:
Além da preocupação em garantir as escolhas futuras, parece necessário superar
o paradigma moderno sujeito-objeto, introduzindo uma concepção dialética
homem-natureza de modo que o domínio e a exploração de um sobre o outro
seja substituído por uma lógica sustentável, e, assim, o acesso equitativo aos
recursos seja garantido para o futuro.
[...]
Numa perspectiva mais pragmática, o dever de ser solidário para com os outros
em razão de sermos humanos, reflete a tentativa de alargar o que se entende
por nós. Entretanto, é provável que a humanidade ainda não tenha reconhecido/
aceitado a necessidade, ou até mesmo o dever moral, de ser solidária para com
aqueles que não promovem benefícios diretos, sejam eles sujeitos existentes ou
ainda não existentes. Torna-se, assim, necessária uma transição paradigmática.
Os dois maiores problemas apontados pelo ciclista brasileiro são a ausência
de infraestrutura cicloviária (37,9% dos entrevistados) e a segurança no trânsito
(40,8%). A motivação para pedalar seria maior com o aumento desta infraestrutura
(47,6% dos entrevistados) e da segurança (30,3% dos entrevistados), ou seja, fatores
como políticas públicas cicloviárias e educação sobre mobilidade urbana seguidas
de penalidades civis mais severas e penais realmente aplicadas poderiam aumentar
ainda mais o número de deslocamentos feitos por bicicletas.
A necessidade de interligação entre os modais também restou clara nas pesqui-
sas, bem como a criação da necessária infraestrutura cicloviária, como estaciona-
mento para a bicicleta, facilitando os deslocamentos dos ciclistas que integram os
núcleos familiares analisados.
Em termos de benefícios, ou seja, dos impactos diretos e indiretos da econo-
mia da bicicleta, a utilização atual do modal evitou a emissão de 1925 milhões de
toneladas por ano de emissão de gases poluentes para a atmosfera,64 o que se alinha
ao compromisso assumido pelo Brasil de maior proteção ao meio ambiente e da
diminuição de emissão de gases causadores de efeito estufa.65
No que concerne ao direito à saúde,66 diversos estudos comprovam que o ciclista
geralmente tem melhor capacidade cardiorrespiratória, menor risco de doenças

64 Ver tabela 4 na p. 144 do estudo Economia da Bicicleta no Brasil. Disponível em: www.aliancabike.
org.br/assets/_docs/26_10_2018_19_14_economia_da_bicicleta_(3).pdf. Acesso em: 12 jan. 2019.
65 Conferência de Estocolmo, em 1972, Primeira Conferência Mundial do Clima, em 1979, a Eco-92 ou
Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, em 1992, a Rio+10 ou Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento
Sustentável, em Johanesburgo, em 2002, a Rio+20 ou Conferência da ONU sobre o Desenvolvimento
Sustentável, em 2012, Acordo de Paris, de 2015, ratificada pelo Brasil em 2016.
66 CF/88, art. 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais
e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

188
crônicas como o diabetes, infarto, derrame e alguns tipos de câncer, assim como
evita quadros de obesidade e melhora casos de distúrbio do sono.
Em termos de saúde psíquica, ao ciclista ocorre aumento de autoestima, humor,
percepção de vigor e qualidade do sono, diminuição do nível de ansiedade, além da
diminuição da possibilidade de demência e doença de Alzheimer67 e diminuição de
episódios de depressão e até a cura.68
Teixeira (2013, p. 30) demonstrou que exercícios aeróbicos regulares, em que
se inclui o ciclismo, estão diretamente associados à melhora cognitiva, como fator
de indução de neurogênese, “melhorando o desempenho em tarefas que requerem
funções executivas, memória operacional e memória espacial”.
A bicicleta também cria diversos postos de trabalho no Brasil, participando de uma
rede de atividades econômicas, seja na fabricação de bicicletas e de peças para importa-
ção e exportação, seja na comercialização, reparos e aluguel. Estima-se hoje que o Brasil
tenha 13.783 pessoas empregadas no varejo e que haja cerca de 99 estabelecimentos que
prestam o serviço de aluguel de bicicletas, distribuídos em 24 capitais brasileiras.69
Como bem ressaltado no estudo da COPPE/UFRJ (2018, p. 9), uma correta
análise da modal bicicleta deve ser multifacetária, sob pena de não o analisarmos
da maneira merecida:
A concepção de economia da Bicicleta é vasta e envolve uma rede emaranhada de
atividades econômicas. Trabalhar com a ideia de Economia de bicicleta vai além
das simples considerações sobre as vantagens econômicas que sua utilização
pode trazer ao orçamento doméstico de uma família, ao desenvolvimento local
ou, ainda, ao bem-estar individual.
Considerando-se que somente se realizame 7% de deslocamentos pelo modal,
quando poderíamos realizar 40%, caso alcançássemos o patamar ideal, pode-
ríamos ter um aumento considerável de postos de trabalho na dimensão cadeia
produtiva referente ao modal.
Outra faceta abordada em termos econômicos é a dimensão políticas públicas, seja
na provisão de infraestrutura cicloviária para implantação vias cicláveis, bicicletários
e paraciclos, seja no compartilhamento de bicicletas públicas. As cidades com mais
investimento em infraestrutura cicloviária por habitante são Rio Branco, Vitória,
Brasília e Rio de Janeiro, sendo que São Paulo, curiosamente, alcança o 11º lugar no
ranking. O percentual dos investimentos na malha cicloviária é disparadamente maior
na região Sudeste (51%), seguido pelo Nordeste e Centro-Oeste com 17%, ambos.70

67 Cf. Economia da Bicicleta no Brasil. Disponível em: www.aliancabike.org.br/assets/_docs/26_10


_2018_19_14_economia_da_bicicleta_(3).pdf. Acesso em: 12 jan. 2019. p. 147.
68 Ver reportagem do jornal Globoesporte de 3 de nov. de 2013 denominada de “Estudante deixa
remédios de lado e cura depressão com pedaladas, em que a estudante Larissa Paiva afirma ter sido
curada da depressão pela prática de ciclismo”. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/mg/
triangulo-mineiro/noticia/2013/11/estudante-deixa-remedios-de-lado-e-cura-depressao-com-
pedaladas.html. Acesso em: 13 jan. 2019.
69 Cf. Economia da Bicicleta no Brasil. Disponível em: www.aliancabike.org.br/assets/_docs/26_10
_2018_19_14_economia_da_bicicleta_(3).pdf. Acesso em: 12 jan. 2019. p. 3.
70 Cf. Economia da Bicicleta no Brasil. Disponível em: www.aliancabike.org.br/assets/_docs/26_10
_2018_19_14_economia_da_bicicleta_(3).pdf. Acesso em: 12 de jan. 2019. p. 55 e 57.

189
Com o estímulo do recém-aprovado Programa Bicicleta Brasil (Lei n.
13.724/2018), de que já tratamos no tópico anterior, sob coordenação do então
denominado Ministério das Cidades, para incentivar a inserção da bicicleta
como modal de transporte nas cidades com mais de 20 mil habitantes, haverá
um incremento de políticas públicas e consequente investimento de milhares
de reais, que geram empregos para a mão de obra empregada na construção de
infraestrutura cicloviária.
No que tange a estacionamento para as bicicletas, este se revela um ponto
altamente nevrálgico, pois, na maioria das cidades, ainda se observa que não
foi reservado espaço para o modal, sendo acorrentado a postes e grades, per-
turbando a ordem urbanística e ainda podendo ser objeto de furtos. Este é, sem
dúvida, um desafio a ser vencido pelas municipalidades, juntamente com os
setores civis envolvidos neste processo de reconhecimento do respeito e espaço
do modal em comento na sociedade.
Neste processo de instalação dos estacionamentos também, há de se preservar
o respeito ao deslocamento peatonal, bem como aos demais modais. Os modais de
transporte não competem entre si, muito mais se completam e devem ser analisados
em conjunto, para que haja integração entre eles. Além disso, há de se observar o
espaço de deslocamento das pessoas com mobilidade reduzida, algumas dependen-
tes de cadeiras de rodas, pois a cidade também lhes pertence.
Nesta mesma linha de raciocínio ora trazida à baila, também foi a conclusão do
estudo da COPPE/UFRJ:
Da mesma maneira, embora a metodologia empregada não indique um pano-
rama preciso e de escala nacional, é possível perceber que a Infraestrutura de
Estacionamento ainda se mostra pouco incorporada às políticas públicas na
maioria das cidades. Em muitas delas, a implantação de paraciclos e bicicletá-
rios ocorre pela via da iniciativa privada, sendo também utilizada como estra-
tégia de marketing pelo argumento da imagem de sustentabilidade como fator
que agregaria valor à marca de algumas empresas. Por outro lado, o estacio-
namento de bicicletas é realizado, muitas vezes, em locais inadequados, como
postes e grades, onde a guarda da bicicleta é feita de forma improvisada. Com
isso, apesar da demanda por paraciclos e bicicletários – garantindo segurança
e incentivo ao uso da bicicleta –, o poder público investe pouco nesta infraes-
trutura em grande parte das cidades brasileiras, refletindo a falta de dados
mais elucidativos sobre a temática.
Outro ponto interessante, tratado como serviço público de transporte, foi o
sistema público de bicicletas compartilhadas operada por sociedades empresárias
do setor privado assim considerados para o estudo, que hoje estão presentes em
13 capitais do País, com 951 estações e quase 10 mil bicicletas, no Nordeste, e
sobretudo, na região Sudeste.71
Com a maior criação de infraestrutura cicloviária e maior fomento da bicicul-
tura na sociedade, este sistema pode ganhar ainda maior expressividade, gerando
empregos e favorecendo os cidadãos em seus deslocamentos diários.

71 Vide Economia da Bicicleta no Brasil. Disponível em: www.aliancabike.org.br/assets/_docs/26_10


_2018_19_14_economia_da_bicicleta_(3).pdf. Acesso em: 12 jan. 2019. p. 65.

190
Ainda no que se refere ao transporte urbano, também relativa ao desloca-
mento de cargas72 no País, para a prestação de serviços, entrega de mercado-
rias e desenvolvimento de atividades profissionais, demonstrou-se no estudo
a importância da participação da bicicleta para fins econômicos em áreas de
concentração residenciais e de sociedades empresárias, ou seja, nas centralida-
des e subcentralidades.
Neste tipo de localidade, tal como o bairro de Copacabana no Rio de Janeiro
ou o bairro de Bom Retiro em São Paulo, o deslocamento motorizado por automó-
vel, motocicleta e caminhão só serve para congestionar mais as ruas, degradando
a qualidade da vida urbana.
Para exemplificar, uma sociedade empresária do Bom Retiro (SP) foi analisada,
afirmando empregar 220 funcionários, ter 202 bicicletas e triciclos e ter 2.349 entre-
gas. Uma outra sociedade de São Paulo afirmou ter obtido um faturamento de R$ 3
milhões em 2017, gerando 124 empregos diretamente ligados à bicicleta73. A rapidez
e praticidade do modal associada aos baixos custos de manutenção foi, sem dúvida,
o maior motivo para escolha na consecução das atividades operacionais (87,7% das
pessoas jurídicas entrevistadas no bairro in casu).
Sendo o Brasil um país extremamente farto de belezas naturais, não se pode
desconsiderar ainda seu potencial para o cicloturismo e a realização de eventos
esportivos com a bicicleta.
Ainda que de forma incipiente, o estudo da Coppe/UFRJ aponta que o
“segundo o Ministério do Turismo (2012) o cicloturismo foi incentivado em 53
municípios brasileiros, os quais receberam R$ 20,2 milhões para a construção de
ciclovias entre 2001 e 2011. O faturamento das empresas brasileiras só cresce e há
potencial para muito mais”.
Já mapeadas, há atualmente 24 rotas74 de cicloturismo no País, sendo uma das
mais expressivas o Circuito de Cicloturismo do Vale Europeu, em Santa Catarina,
englobando 9 municípios, numa rota percorrível em média, em 7 dias, com exten-
são de 287,1 km com uma média de 2.000 visitantes credenciados (estima-se um
número maior de visitantes não credenciados).

72 Art. 4º, I e II, da Lei n. 12.587, de 2012, “Para os fins desta Lei, considera-se:
I - Transporte urbano: conjunto dos modos e serviços de transporte público e privado utiliza-
dos para o deslocamento de pessoas e cargas nas cidades integrantes da Política Nacional de
Mobilidade Urbana; 
II - Mobilidade urbana: condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no
espaço urbano”.
73 Vide Economia da Bicicleta no Brasil. Disponível em: www.aliancabike.org.br/assets/_docs/26_10
_2018_19_14_economia_da_bicicleta_(3).pdf. Acesso em: 12 jan. 2019.p. 97 e 99.
74 A saber: Ilha de Marajó (Pará), Jalapão (Tocantins), Sertão Nordestino (Piauí), Chapado do Araripe
(Ceará) , Rota do Descobrimento (Bahia), Chapada dos Veadeiros (Goiás), Serra da Canastra (MG),
Estrada Real (MG), Caminho da Luz (MG), Serra da Mantiqueira (MG), Trilha Verde da Maria
Fumaça (MG), Estrada Real (RJ), Volta do Desengano (RJ), Estrada Real (SP), Caminho do Sal
(SP), Caminho do Sol (SP), Caminho da Fé (SP), Estrada Petrobrás (SP), Lagamar (Paraná), Estrada
da Graciosa (Paraná(, Vale Europeu (SC), Costa Verde e Mar (SC), Circuito das Araucárias (SC),
Cascatas e Montanhas (RS), Vale dos Vinhedos (RS), Gramado -Canela (RS).

191
A estrutura para o cicloturismo ainda é um pouco precária, mas em lugares em
que esta estrutura já está mais consolidada, como a Europa, o segmento movimen-
tou 44 bilhões de euros em 2012 e gerou empregos para 524 mil pessoas.75 O Brasil
deve, então, fomentar a bicicultura, criar infraestrutura cicloviária e aparelhar os
envolvidos no turismo para lidar com o público cicloturista, de forma mais sistema-
tizada, com informações compiladas pelo Ministério do Turismo.
A realização de eventos esportivos no país que envolvem a bicicleta também
fomenta a criação de empregos, acesso a lazer e cultura e movimenta a economia em
diversos locais, impactando sobretudo a rede hoteleira. No ano de 2016, por exem-
plo, segundo a Confederação Brasileira de Ciclismo, foram 203 eventos desportivos,
com 37.555 participantes, 17 milhões de custos de eventos, cerca de 11 milhões de
gastos de hospedagem e pensão e 28 milhões de reais movimentados.76
Este estudo da COPPE/UFRJ, sobre o qual ora nos debruçamos, tem, sem
dúvida, valor inestimável para o desenvolvimento da bicicleta no Brasil, ajudando
a angariar o devido respeito e também a desestigmatizar o modal, considerado
por muitos indivíduos, de somenos importância. Na verdade, na sua simplicidade
ecologicamente e economicamente elegante, a bicicleta é um modal de alta aplicabi-
lidade aos deslocamentos no país, de que dependem muitas pessoas pobres para se
locomover, como observamos, e que diminui consideravelmente a poluição no País,
além de criar diversos postos de trabalho.
Por ser muito mais barata e acessível, é claro, não interessa a muitos do setor
econômico que seja fomentada, pois o automóvel rende muito mais lucros para o
capitalismo e para o Estado, na sua ganância tributária. Como vimos, no entanto,
paulatinamente esta mentalidade vem sendo superada, porque a cidade deve ser
espaço das pessoas e não do capital. Assim, no que concerne à sua aplicabilidade
em termos de deslocamento, a bicicleta deve ser estimulada, evitando deslocamento
motorizados excessivos e poluentes.

7 ∙ CONCLUSÃO
Neste artigo, visou-se desvelar a pecha que pende sobre a mobilidade urbana
de não ser tratada como um direito, apesar de já estar inserida na Constituição
da República Federativa do Brasil e em outros diplomas legais há um considerável
tempo, além de demonstrar que, atualmente, em vários documentos internacionais,
normativos ou não, tal tema constitui-se em objeto de debate e preocupação intensa,
considerando a alta taxa de urbanização já alcançada em todo o mundo e a mobili-
dade decadente na maioria das cidades.
O tema foi abordado de forma multidisciplinar, pois o enfoque, sob o prisma
único do Direito, dissociado de outras ciências e abordagens, empobrece a
visão do estudioso, o que pode ser consequência de se conferir uma suposta

75 Vide Mesmo com pouca estrutura, cicloturismo cresce no Brasil e no mundo. Disponível em: https://
ciclovivo.com.br/arq-urb/mobilidade/mesmo-com-pouca-estrutura-cicloturismo-cresce-no-
brasil-e-no-mundo/. Acesso em: 14 jan. 2019.
76 Cf. Economia da Bicicleta no Brasil. Disponível em: www.aliancabike.org.br/assets/_docs/26_10
_2018_19_14_economia_da_bicicleta_(3).pdf. Acesso em: 12 jan. 2019. p. 136.

192
cientificidade ao Direito, tornando-o, entretanto, asséptico e afastado da reali-
dade social, múltipla por essência.
Sob o enfoque da Teoria Crítica, observou-se que a cidade, especialmente loca-
lizada em países semiperiféricos como o Brasil, é espaço de lutas, de segregação
social, em que as benesses materiais e imateriais oferecidas pertencem somente a
poucos indivíduos, em detrimento de uma grande parcela de pessoas totalmente
alijadas de qualquer processo de inclusão urbana.
Nesta senda, os novos atores de luta não são mais os trabalhadores das fábricas.
A intensa urbanização e a intensa concentração de riqueza na mão de poucos aca-
bam por criar as cidades e seus novos oprimidos: aqueles que vivem neste espaço
atrativo e ao mesmo tempo excludente chamado cidade.
A mobilidade urbana brasileira é calcada nas cidades espraiadas, em que a
financeirização da moradia, ou seja, a transformação deste último direito em uma
mercadoria altamente valiosa expulsa as pessoas mais pobres para as áreas mais
desprovidas de qualquer equipamento urbano. A cada nova valorização, a cada
novo processo de gentrificação, mais são os desprovidos de capacidade econômica
expulsos para os confins do espaço urbano, tornando a qualidade de vida mais
decadente e indigna.
E um grande ciclo vicioso, então, é formado: sem condição de subsistência para
morar em áreas mais centrais, providas da infraestrutura básica, mais o brasileiro
se afasta da educação, da saúde, do acesso à educação, do acesso à família, do posto
de trabalho, do acesso ao lazer na cidade, à cultura, à vida que não seja aquela des-
crita em Morte e Vida Severina.
Não se forma uma noção de cidadania, não há sentimento de pertencimento
ao espaço, uma noção real de solidariedade, uma visão política como espaço de
busca por conquistas sociais e avanços. Como se sentem excluídom, em geral, do
seu direito básico de ir e vir, além de muitos outros, as pessoas contendem entre si,
seja no trânsito, seja na arena do exercício dos destinos políticos, seja na vida. Se
o espaço urbano é caro, o meu quinhão virá primeiro, meu automóvel vai passar
primeiro, nem que, com isso, eu desrespeite pedestres e ciclistas, pois a terra, o solo
urbano, não lhes pertence.
O impacto de busca por novos territórios lucrativos no pós-guerra para o capital,
através da indústria automobilística, acabou por fomentar uma mobilidade urbana
intensamente rodoviarista em nosso País, que é gerada também pelo espraiamento
das cidades e que recria mais difusão da mancha urbana, um processo indesejado
no planejamento urbano.
Num país de intensa exclusão social, como demonstrado neste artigo, muitos
trabalhadores nem sequer recebem salários que cubram os gastos com transporte
(hoje calculado em 20% dos rendimentos das famílias), sendo alijados do transporte
coletivo, de tarifas caras e de condições precárias.
Várias questões influenciam para este transporte coletivo caro e ineficiente: o
Poder Público se queda inerte e, não raro, através de administradores corruptos,
se mancomuna, muitas vezes, com os grandes empresários do ramo para manter
indevidos ajustes que impactam os valores das tarifas, o que pode ser exemplifi-
cado com a fraude na gestão pública, no setor de transportes, com severas perdas

193
socioeconômicas no Estado do Rio de Janeiro, apurada pela Assembleia legislativa
local em caso recente, resultando na prisão do então Chefe do Executivo.
Outro problema apontado é a inexistência de previsão de um programa como
fonte de recurso para o setor de transportes, que existe em muitos países que têm
uma boa mobilidade urbana, o que faz com que a população arque com os custos
finais totais das tarifas e também das gratuidades em flagrante oneração excessiva.
Uma tributação draconiana de um serviço público essencial pela União e Estados
também impacta sobremaneira na tarifa, o que já vem sendo muito questionado por
movimentos civis ocorridos no Brasil.
O custo social dessa falta de mobilidade, é claro, grassa no território urbano:
nos centros urbanos, não raro, conforme reportagens adunadas a este trabalho,
trabalhadores informais dormem pelos chãos das ruas, porque não podem econo-
micamente retornar aos seus lares diariamente, acabando por ter sua convivência
familiar destruída com o tempo, numa visão de Dante Alighieri sobre a desumani-
dade no trato do ser humano.
Diversos movimentos civis como a Revolta do Buzu, movimento Passe Livre,
Revolta da Catraca insurgiram-se contra a lógica mercantilista conferida à mobi-
lidade urbana brasileira nestas últimas duas décadas, trazendo à tona o quadro de
infinita precariedade de acesso a este direito em todo o país. Apesar de os movi-
mentos não terem atingido todas as reivindicações, alcançaram grande êxito, no
entanto, em demonstrar que não estávamos inertes diante das barbáries assoladas
contra os estudantes, trabalhadores e demais brasileiros em relação a nosso direito
de ir e vir, ao nosso acesso ao espaço urbano.
Não se pode olvidar os impactos de uma mobilidade urbana precária na saúde
emocional e física dos indivíduos, pois vários estudos demonstram que um desloca-
mento de mais de uma hora, em média, acaba por gerar estresse e outros problemas
físicos, sobrecarregando o sistema previdenciário e de saúde do País.
O número de mortos em acidentes atribuídos à mobilidade essencialmente
rodoviarista também é gritante, especialmente em relação aos motociclistas, modal
extremamente estimulado com estímulos fiscais nas últimas décadas.
Diante de todo este quadro ora descrito, sendo observadores das cercanias em
nossos deslocamentos diários, percebemos que a bicicleta vinha progressivamente
ganhando novos usuários na cidade em que resido.
Assim, os estudos aqui demonstraram que, na grande maioria de cidades peque-
nas e médias no País, este modal de transporte já era bastante utilizado; mais uma
vez, gize-se pela precariedade do transporte coletivo e pela quase ausência de con-
dições econômicas para pagamento do custo do transporte existente.
Revisões de paradigmas energéticos com as crises mundiais do petróleo, de
paradigmas de proteção ao meio ambiente, de padrões urbanísticos, de retomada
do espaço urbano para o ser humano e não para o capital, bem como também
alterações de paradigmas referentes à mobilidade urbana em si, fizeram com que a
bicicleta voltasse ao cenário de inclusão de planejamento urbano.
O modal, que alguns especialistas acreditaram estar fadado ao desaparecimento
pelas novas tecnologias, é incluído em políticas públicas de mobilidade urbana por
ser pouco poluente, econômico e acessível a maior parte das pessoas.

194
Para muitos brasileiros, este é o único modal de transporte com que podem con-
tar para deslocamentos na cidade, como vimos no estudo de hábitos de família do
Rio de Janeiro. Se não fosse a bicicleta, ficariam os componentes do núcleo familiar
completamente tolhidos em termos de mobilidade.
Atualmente, movimentos civis cicloativistas impulsionam a edição de leis,
que, para sua execução, sua aplicação no mundo fático, dependem de políticas
públicas, ou seja, políticas sociais com metas organizadas, que devem ser reava-
liadas e continuamente fiscalizadas.
Estas políticas inicialmente vinham precipuamente da União, detentora de
maior capacidade informacional e até mesmo econômica. A União atua como
fomentadora do desenvolvimento da estrutura cicloviária em Estados e, prin-
cipalmente, nas municipalidades, que detém menor capacidade econômica e
informacional em regra.
No Brasil, conforme demonstrado, há intermitência no estímulo à aquisição de
veículos automotores, em detrimento do transporte coletivo urbano e do fomento
do deslocamento pelas bicicletas e pelo deslocamento peatonal.
Apesar desta intermitência, o número de políticas públicas para criação de
infraestrutura cicloviária progressivamente aumenta, especialmente forçada por
movimentos civis cicloativistas, altamente engajados em obter respeito a um modal
tão útil em nossa sociedade.
Consideramos que estamos no meio desse processo, avançando. Além da luta
dos que pedalam diariamente em condições ainda inóspitas, seja por prazer, seja
por falta de dinheiro para pagar a passagem ou ainda pela preservação da saúde, já
temos diversos administradores públicos e estudiosos que apoiam a revisão deste
rodoviarismo inerte e asfixiante brasileiro.
Estamos, decerto, num “pedalar” sem volta rumo à ciclomobilidade.

REFERÊNCIAS
AIETA, Vânia Siciliano. (org.). Direito da cidade: Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015.
Tomo I e Tomo II.
AG JORNALISMO CIDADE E DIREITOS HUMANOS. Compartilhamento de bicicletas:
prefeitura à mercê do setor privado? Disponível em: http://ag.jor.br/blog/2016/02/02/
contrato-bikesharing-itau-bradesco/. Acesso em: 15 set. 2019.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS EMPRESAS DE TRANSPORTES URBANOS. Por
Jaime Lerner e Arquitetos Associados. Avaliação comparativa das modalidades de
transporte público urbano. Curitiba, 2009. Disponível em: www.ntu.org.br/novo/uplo
ad/Publicacao/Pub635109537433018893.pdf. Acesso em: 4 jan. 2019.
BALBIM, Renato; KRAUSE, Cleandro; LINKE, Clarisse (Orgs.). Cidade e movimento:
mobilidades e interações no desenvolvimento urbano. Brasília: Ipea; ITDP, 2016.
Disponível em: www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article
&id=28489&Itemid=406. Acesso em: 14 maio 2018.
BECK, Ulrich. A sociedade de risco: rumo a uma modernidade. São Paulo: 34, 2010.
BELLO, Enzo. A cidadania na luta política dos movimentos sociais urbanos. Caxias do
Sul, RS: EDUCS, 2013.

195
BELLO, Enzo; KELLER, René José. Curso de direito à cidade: Teoria e Prática. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2019.
BELLO, Enzo; PAROLA, Giulia; TOLEDO, Bianca Rodrigues (orgs.). Direito à Cidade:
regularização fundiária. Rio de Janeiro: Multifoco, 2017. Disponível em: www.academia.
edu/34937158/Direito_à_Cidade_regularização_fundiária. Acesso em: 12 de out. 2019.
BELLO, Enzo. O pensamento descolonial e o modelo de cidadania do novo constitucio­
nalismo latino-americano. Revista de Estudos Constitucionais. Hermenêutica e Teoria
do Direito. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2015. p. 49-61. Disponível em: http://revistas.
unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/rechtd.2015.71.05. Acesso em: 7 jan. 2019.
BELLO, Enzo; GODOY, Arion Escorsin de. Cidadania e acesso à justiça no espaço
urbano: um estudo empírico da atuação da Defensoria Pública na luta pela moradia
na cidade do Rio de Janeiro. Revista dos Tribunais Rio de Janeiro, v. 3, p. 1-17, 2014.
Disponível em: https://cidadaniacrítica.files.wordpress.com/2015/09/artigo-enzo-arion-
rtrj-2014.pdf. Acesso em: 12 de out. 2019.
BELLO, Enzo. A cidadania no constitucionalismo latino-americano. Caxias do Sul,
RS: EDUCS, 2012.
BELLOTO, José et al. A cidade em equilíbrio: contribuições teóricas ao 3º Fórum Mundial
da Bicicleta. Curitiba: UFPR, 2014. Disponível em: www.ciclovida.ufpr.br/wp-content/
uploads/2015/10/Cidade-em-Equil%C3%ADbrio.pdf. Acesso em: 15 set. 2019.
BIANCO, Sérgio Luiz. O papel da bicicleta para a mobilidade urbana e a inclusão social.
Revista dos Transportes Públicos, v. 25, n. 100, p. 167-176, jul./set. 2003.
BOARETO, Renato (Org). A bicicleta e as cidades: Como inserir a bicicleta na política de
mobilidade urbana. 2. ed. São Paulo: Instituto de Energia e Meio ambiente, 2010.
BORJA, Jordi; MUXÍ, Zaida. El espacio público: ciudad y ciudadanía. Barcelona: Electa, 2003.
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas.
São Paulo: Saraiva, 2013.
BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo:
Saraiva, 2006.
BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria
Laura Dallari et al. (org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo:
Saraiva, 2006.
BUCCI, Maria Paula Dallari. Buscando um conceito de políticas públicas para a concre­
tização dos direitos humanos. In: BUCCI, Maria Paula Dallari et al. (org.). Direitos
humanos e políticas públicas. São Paulo: Pólis, 2001.
COELHO FILHO, Osmar; SACCARO JUNIOR, Nilo Luiz. Cidades cicláveis: avanços
e desafios das políticas cicloviárias no Brasil. Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2017.
Disponível em: www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/170307_td_2276.pdf.
Acesso em: 13 out. 2019.
COELHO JUNIOR, Euelinton.; VILAS, Genivaldo Teixeira; PEREIRA DA SILVA, Karem
Khetllen et al. Impactos positivos das implementações de ciclovias, ciclofaixas e faixas
compartilhadas no município de São Paulo. Anais... In: Encontro Internacional sobre
Gestão Empresarial e Meio Ambiente, XVII, 2015. Disponível em: http://engemausp.
submissao.com.br/17/anais/arquivos/220.pdf. Acesso em: 13 jan. 2019.
CORREA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Ática. 1989.

196
DE SÁ, Thiago Hérick et al. Diferenças socioeconômicas e regionais na prática do
deslocamento ativo no Brasil. Revista de Saúde Pública, v. 50, n. 37, 2016. Disponível
em: www.scielo.br/pdf/rsp/v50/pt_0034-8910-rsp-S1518-87872016050006126.pdf. Acesso
em: 17 set. 2019.
DUARTE, Fábio; LIBARDI, Rafaela; SÁNCHEZ, Karina. Introdução à mobilidade urbana.
Curitiba: Juruá, 2008.
EMPRESA BRASILEIRA DE PLANEJAMENTO DE TRANSPORTES. Manual de pla­
ne­jamento cicloviário. 3. ed. rev. e ampl. Brasília: GEIPOT, 2001. Disponível em: http://
projects.mcrit.com/tiete/attachments/article/291/Manual%20de%20planejamento%20
ciclovi%C3%A1rio%20-%20GEIPOT%20-%202001.pdf . Acesso em: 22 maio 2019.
EMPRESA BRASILEIRA DE PLANEJAMENTO DE TRANSPORTES. Planejamento
cicloviário: Diagnóstico Nacional. Disponível em: www.ciclocidade.org.br/biblioteca/
file/47-planejamento-cicloviario-diagnostico-nacional-geipot. Acesso em: 22 maio 2019.
FAGNANI, Eduardo. Mobilidade urbana e subdesenvolvimento: soluções paliativas
para problemas estruturais. Unicamp: Instituto de Economia, Campinas, n. 302, 2017.
Dispo­n ível em: www.eco.unicamp.br/docprod/downarq.php?id=3531&tp=a. Acesso
em: 16 set. 2019.
FARRET, Ricardo. O espaço da cidade. São Paulo: Projeto Editores Associados. 1985.
FLORES, Ramiro et al. Ciclo-inclusión en América Latina y el Caribe: guía para impulsar
el uso de la bicicleta. Disponível em: https://publications.iadb.org/handle/11319/6808?sc
ope=123456789/1&thumbnail=true&rpp=5&page=1&group_by=none&etal=0#sthash.
j7gAt6yv.dpuf. Acesso em: 17 set. 2019.
GOMIDE, Alexandre de Ávila. Transporte urbano e inclusão social: elementos para polí­
ticas públicas. Texto para discussão n. 960. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=ar
ticle&id=4191. Acesso em: 30 out. 2019.
HANSEN, Weobtaina Hansen. How accessibility shapes land use. Journal of American
Institute of Planners, v. 25, n. 2, 1959.
HARDING, Alan; BLOKLAND, Talja. What is Urban Theory? In: HARDING, Alan;
BLOKLAND, Talja. Urban theory: a critical introduction to power, cities and urbanism
in the 21st century. London: Sage, 2014.
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo:
Martins Fontes, 2014.
HIERNAUX, Daniel. Proyectos que dividen, ciudades que segregan. In: HIERNAUX,
Daniel. Ciuda­des latinoamericanas: desigualdad, segregación y tolerância. Buenos Aires:
CLACSO, 2014. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140505032950/
CiudadesLatinoamericanas.pdf. Acesso em: 20 maio 2019.
HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor Wiesengrund. Dialética do esclarecimento:
fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
JENNINGS, Andrew et al. Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas. São
Paulo: Boitempo, 2014.
KELLER, Rene José. Direitos emergentes e cidadania: as lutas sociais urbanas por
emancipações no cotidiano do capital. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
MARICATO, Ermínia. Para entender a crise urbana. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

197
MARICATO. Erminia. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as
ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, Carta Maior. 2013.
MARICATO, Ermínia. O Ministério das Cidades e a política urbana no Brasil: quais as
ações do Ministério desde sua criação, os problemas e desafios enfrentados. Revista AU
- Arquitetura e Urbanismo, n. 156. São Paulo: PINI, 2007. p. 64-65. Disponível em: www.
revistaau.com.br/arquitetura-urbanismo/156/artigo44395-1.asp. Acesso em: 27 abr. 19.
MARQUES, Clarissa. Meio ambiente, solidariedade e futuras gerações. Revista do Progra­ma
de Pós-graduação em Direito-UFC, Fortaleza: 2012. p. 37-56. v. 32, n. 2, 2012. Disponível em:
www.periodicos.ufc.br/nomos/article/view/350/332. Acesso em: 13 jan. 2019.
MOTA, Mauricio; MOURA, Emerson Affonso da Costa. O direito fundamental de
propriedade e a função socioambiental nas cidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
NIGRIELLO, Andreina. O valor do solo e sua relação com a acessibilidade. Dissertação.
COPPE/UFRJ, RIO DE JANEIRO, 1977.
NIGRIELLO, Andreina. O impacto do sistema de transporte sobre o espaço urbano.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU/USP, São
Paulo, v. 1, n. 2, p. 47-54, 1992.
OLIVEIRA, Júlia Ribeiro de; CARVALHO, Ana Paula (orgs.). A Revolta do Buzu –
Salvador (BA): Manifestações dos estudantes secundaristas contra o aumento da Tarifa
de Ônibus. Relatório das Situações-Tipo Brasil. Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas (Ibase) e Instituto Pólis. 2007. Disponível em: http://bibjuventude.ibict.br/jspui/
bitstream/192/164/1/IBASE_IPOLIS_revoltadobuzu_2007.pdf. Acesso em: 26 out. 2019.
PADDINSON, Ronan; McCANN, Eugene. Encountering the city - multiple perspectives on
Urban Social Change. Cities & Social Change: encounters with contemporary urbanism.
London: Sage, 2014.
PLATAFORMA DHESCA BRASIL. Direito humano à cidade. Coleção cartilhas de direitos
humanos. 2. ed. Curitiba: 2010. v. 2. Disponível em: http://www.mobilizacuritiba.org.br/
files/2014/01/Cartilha-Direito-à-Cidade-Plataforma-Dhesca.pdf. Acesso em: 12 out. 2019.
QUIJANO, Aníbal. Dependencia, cambio social y urbanización en Latinoamérica.
In: QUIJANO, Aníbal. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural
a la colonialidad/ descolonialidad del poder. Buenos Aires: CLACSO, 2014. p. 75-124.
Disponível em: www.google.com/url?. Acesso em: 12 de out. 2019.
ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das
finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995.
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: EDUSP, 2009.
SILVA, Ricardo Corrêa da. A bicicleta no planejamento urbano: situação e perspectivas da
inserção da bicicleta no planejamento de mobilidade (no Brasil e em São Paulo). Programa
de Pós-Graduação de Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, 2014. Dissertação de Mestrado
(Área de Concentração: Planejamento Urbano e Regional). São Paulo: FAUUSP, 2014.
SMITH, Neil. Gentrificação, a fronteira e a reestruturação do espaço urbano. GEOUSP
- Espaço e Tempo, São Paulo, n. 21, 2007. Disponível em: www.revistas.usp.br/geousp/
article/view/74046/77688. Acesso em: 12 out. 2019.
SOLDANO, Daniela. La desigualdad social en contextos de relegación urbana. Un análisis
de las experiencias y los significados del espacio (Gran Buenos Aires, 2003-2010). In:

198
SOLDANO, Daniela. Ciudades latinoamericanas: desigualdad, segregación y tolerância.
Buenos Aires, CLACSO, 2014. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/
20140505032950/ciudadeslatinoamericanas.pdf. Acesso em: 12 de out. 2019.
TEDESCHI, Sebastian. Los conflictos urbanos en el territorio y el derecho en America
Latina. In: ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (orgs.). A construção do direito
urbanístico na América Latina. Belo Horizonte: Gaia Cultural, 2016. Disponível em:
https://issuu.com/edesiofernandes/docs/construçao-direito-urb-americalatin. Acesso em:
12 out. 2019.
TEIXEIRA, Livia Clemente Motta. Exercício físico, neurogênese e memória. 2013. 107
f. Tese (doutorado em fisiologia geral). Instituto de Biociências da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2013.
TERÁN, José Ángel. Mobilidade urbana sustentável. São Paulo: Scortecci, 2013.
VASCONCELLOS, Eduardo Alcântara de. Mobilidade urbana e cidadania. São Paulo:
Senac, 2012.
VASCONCELLOS, Eduardo Alcântara. Transporte urbano nos países em desenvolvi­
mento: reflexões e propostas. São Paulo: Annablume, 2002.
VAINER, Carlos. Megaeventos, cidade de exceção e democracia direta do capital: reflexões
a partir do Rio de Janeiro. In: VAINER, Carlos; BROUDEHOUX, Anne Marie; OLIVEIRA,
Fabricio Leal de. (orgs.). Os megaeventos e a cidade: perspectivas críticas. Rio de Janeiro:
Letra Capital, 2016. p. 19-46.
VILLAÇA, Flávio. Estatuto da cidade: para que serve? Carta Maior. Disponível em:
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Política/Estatuto-da-cidade-para-que-serve
-%250D%250A/4/26206. Acesso em: 12 out. 2019.
VINICIUS, Leo. A guerra da tarifa. São Paulo: Faísca, 2005.
WRI BRASIL. Benefícios da bicicleta para a saúde. Disponível em http://wricidades.org/
conteudo/benef%C3%ADcios-da-bicicleta-para-sa%C3%BAde. Acesso em: 9 maio 2019.
XAVIER, José Carlos. A nova política de mobilidade urbana no Brasil: uma mudança de
paradigma. Revista dos Transportes Públicos, v. 28, n. 111, p. 59-68, 2006.

199
O DEVIDO PROCESSO LEGAL E O PROCESSO
ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO
Felipe Alexandre Abrantes Souza1

Sumário: 1 Introdução. 2 Processualidade administrativa como instrumento mitigador de


frustrações e legitimador da atuação estatal. 3 O conceito de processo administrativo. 3.1
Exercício da função judicante pelo Poder Executivo. 4 Imparcialidade do julgador como
direito fundamental do cidadão. 4.1 O CARF e a Operação Zelotes. 5 Considerações finais.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O Estado moderno possui diversas obrigações a cumprir para os cidadãos que
nele habitam. Sob o prisma brasileiro, tais obrigações assumem relevância, tendo
em vista a escolha constitucional pela perseguição do Estado do bem-estar social
ou Welfare State.
Desse modo, para que possa cumprir as obrigações constitucionais, dentre as
quais a prestação de serviços de saúde e educação, o Estado necessita de recursos,
também denominados receita pública, que, na visão de Aliomar Baleeiro, citado
por Sabbag (2013, p. 43), pode ser conceituada como “a entrada, que, integrando-se
no patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no
passivo, vem acrescer o seu vulto, como elemento novo e positivo”.
Além disso, as receitas públicas podem ser subdivididas em extraordinárias,
quando ocorridas em hipótese de anormalidade ou excepcionalidade, e em ordi-
nárias, quando a entrada ocorre com regularidade e periodicidade. As receitas
ordinárias ainda comportam dois grupos: receitas derivadas e receitas originárias.
Nas palavras de Sabbag (2013, p. 45), receita originária “é, em regra, proveniente
da exploração estatal de seus bens e empresas comerciais ou indústrias, à seme-
lhança de particulares, nas atividades de locação, administração ou alienação”, ou
seja, são as receitas obtidas pelo Estado quando este pratica atividades no mercado
econômico sem utilizar sua soberania estatal.
Ainda segundo Sabbag (2013, p. 44), as receitas derivadas “agrupam, pois, os
rendimentos do setor público que procedem do setor privado da economia, por
meio de prestações pecuniárias compulsórias”. Nessa linha, a receita derivada é,
entre outras formas, obtida por meio da atuação do Fisco em sua competência fun-
damental de recolher tributos.
No exercício da atividade de cobrança de tributos, ocorrem diversas situações de
conflito em relação ao direito aplicável ao fato concreto. Dessa forma, os contribuintes

1 Assessor da 3ª Promotoria de Justiça Regional de Defesa dos Direitos Difusos do MPDFT. Especialista
em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

201
que se sentirem prejudicados pela má aplicação da norma poderão pleitear seus direi-
tos diretamente no Fisco, resguardado o princípio de índole constitucional de inafas-
tabilidade da jurisdição insculpido no art. 5o, XXXV, da Constituição Federal.
Ao buscar a solução da lide, no âmbito administrativo, o cidadão depara com o
problema da imparcialidade do julgador em relação à causa, porque o competente
para decidir é um agente do próprio Fisco.
Portanto, o objeto de análise do presente artigo será justamente constatar se há
imparcialidade do julgador nos processos administrativos fiscais e, mais, se há a apli-
cação do devido processo legal em seu âmbito. Informa-se que a abordagem será reali-
zada tomando por referência o processo administrativo fiscal federal como parâmetro.

2 ∙ PROCESSUALIDADE ADMINISTRATIVA COMO


INSTRUMENTO MITIGADOR DE FRUSTRAÇÕES E
LEGITIMADOR DA ATUAÇÃO ESTATAL
O Estado, em busca de atingir seus objetivos constitucionalmente estabeleci-
dos, age por meio de agentes públicos, imbuídos de determinada gama de deveres
e prerrogativas ou, conforme leciona o professor Carvalho Filho (2012, p. 13),
“por inspiração do jurista alemão Otto Gierke, foi instituída a teoria do órgão,
e segundo ela a vontade da pessoa jurídica deve ser atribuída aos órgãos que a
compõem, sendo eles mesmos, os órgãos, compostos de agentes”.
Em não raros casos, a atuação dos agentes públicos ocorre por meio de processos
administrativos. Contudo, nem sempre a ideia de processualidade no âmbito admi-
nistrativo foi aceita de forma majoritária, tendo em vista que muitos entendiam que o
processo se restringia ao ramo judicial. Tal entendimento, porém, foi superado e hoje
se consagra o processo administrativo como instrumento garantidor da cidadania.
Nesse sentido, justamente pelo fato de a atuação do Estado ser realizada por
meio de seres humanos e por estes serem falíveis, tendo em vista sua própria con-
dição humana, faz-se necessária a existência de mecanismos para que a própria
Administração reveja seus atos, no uso do seu poder de autotutela, através de inicia-
tiva própria ou pela provocação de terceiros interessados.
Quando há a provocação para que se discuta a respeito da legitimidade ou legali-
dade de determinado ato, tal discussão se realiza por meio de um processo que, por
ocorrer no âmbito da Administração Pública, recebe a qualificação de administra-
tivo. Nessa linha, o processo administrativo, como ferramenta para corrigir falhas
na execução de atos administrativos, torna-se importante instrumento mitigador
de frustrações e legitimação da atuação estatal; à medida que permite a revisão dos
referidos atos, confere-lhes segurança jurídica.
Portanto, o processo administrativo fiscal presta-se a resolver conflitos por-
ventura existentes entre a Administração e o administrado sem a necessidade de
utilização do Poder Judiciário, sendo, assim, muito mais afeto ao Direito Processual
do que propriamente ao Direito Administrativo. Nessa esteira, são os brilhantes
ensinamentos de James Marins, citado pelo professor Dias do Amaral (2011, p. 53):
a “processualidade” enquanto voltada para a solução de conflitos entre particula-
res deduzidos perante a Administração (como ocorre com frequência no bojo de
certames licitatórios) ou conflitos entre o particular e a própria Administração

202
(como sucede no bojo dos processos administrativos tributários) é matéria que
está muito mais próxima da disciplina processual que da administrativa e,
dessarte, muito mais afeta a um “Direito Processual Administrativo” que a um
“Direito Administrativo Processual”.
Percebe-se, desse modo, a atuação da processualidade administrativa como
meio para dirimir conflitos, no bojo da Administração Pública, promovendo a
pacificação social, sendo identificada como ramo da ciência jurídica mais ligado
ao Direito Processual do que ao Direito Administrativo, apesar de ter estreita
vinculação com ambos.

3 ∙ O CONCEITO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO


O processo, em sua acepção genérica, é o conjunto de procedimentos realizados
com o intuito de alcançar determinado fim. Dessa forma, apresenta-se como instru-
mento para realização de objetivos.
Nas palavras do professor José dos Santos Carvalho Filho (2012, p. 958), “pode
definir-se o processo como a relação jurídica integrada por algumas pessoas, que
nela exercem várias atividades direcionadas para determinado fim”.
Nessa linha, pode-se tentar conceituar especificamente o processo administra-
tivo, contudo, conforme ensina José Cretella Jr. (2010, p. 27), conceituar o processo
administrativo é missão das mais difíceis, uma vez que, “na realidade, cada apare-
lhamento administrativo imprime características específicas, típicas, inconfundí-
veis ao instituto, condicionando-o ao direito positivo vigente local”.
Entretanto, apesar de árdua, não se pode fugir da tarefa de realizar tal con-
ceituação. Desse modo, pode-se definir processo administrativo como a relação
jurídica integrada pela Administração e pelo administrado, que tem por intuito
solucionar a lide existente entre eles ou, nas melhores palavras da professora Maria
Sylvia Zanella Di Pietro:
Assim, pode-se falar em processo num sentido muito amplo, de modo a abran-
ger os instrumentos de que se utilizam os três Poderes do Estado – Judiciário,
Legislativo e Executivo, para a consecução de seus fins. Cada qual, desempe-
nhando funções diversas, se utiliza de processo próprio, cuja fonte criadora é a
própria Constituição; ela estabelece regras fundamentais de competência e de
forma, institui os órgãos, define suas atribuições, tudo com o objetivo de asse-
gurar a independência e o equilíbrio no exercício de suas funções institucionais
e, ao mesmo tempo, garantir que esse exercício se faça com respeito aos direitos
individuais, também assegurados pela Constituição. (DI PIETRO, 2009, p. 573).
Ou, conforme lição de Diogenes Gasparini:
Processo administrativo, em sentido prático, amplo, é o conjunto de medidas
jurídicas e materiais praticadas com certa ordem cronológica, necessárias ao
registro dos atos da Administração Pública, ao controle do comportamento
dos administrados e de seus servidores, a compatibilizar, no exercício do poder
de polícia, os interesses público e privado, a punir seus servidores e tercei-
ros, a resolver controvérsias administrativas e a outorgar direitos a terceiros.
(GASPARINI, 2012, p. 857).
Dessa forma, obtém-se uma noção do conceito de processo administrativo e per-
cebe-se o seu amplo espectro de aplicação, sendo utilizado para resolver conflitos nos

203
mais variados ramos do direito material e nas áreas da Administração Pública. A
respeito das citadas espécies de processos administrativos, importante consignar a
advertência realizada pelo professor Helly Lopes Meirelles, citado por Dias do Amaral:
[…] vem-se escrevendo e legislando sobre essas espécies como se elas constituís-
sem categorias autônomas, desvinculadas dos princípios gerais que regem todo
o gênero administrativo. Essa visão isolada do processo disciplinar e do processo
tributário responde em boa parte pelas distorções de seus procedimentos, que
ficam assim indevidamente afastados das regras superiores que devem nortear
toda e qualquer conduta jurisdicional da Administração para segurança de seus
julgamentos e garantias dos direitos dos administrados. Já é tempo de inserirmos
o processo disciplinar e o tributário no quadro geral dos processos administrati-
vos, sujeitando-os aos seus princípios e ao tratamento doutrinário conveniente à
correta sistematização dos respectivos procedimentos. (AMARAL, 2011, p. 56).
Na citada lição, o professor Helly Lopes pugna pela regular aplicação dos
princípios que regem os processos administrativos a todas as espécies existentes,
incluindo o processo administrativo tributário.
Vislumbra-se, dessa forma, que o conceito de processo administrativo ainda
está em construção e que se faz necessário como medida relevante à aplicação regu-
lar dos princípios constitucionais e legais na tramitação dos referidos processos.

3.1 ∙ EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JUDICANTE PELO PODER EXECUTIVO


Após a conceituação do processo administrativo, é importante analisar a
função por este exercida. No caso, questiona-se se estaria presente a função
administrativa ou judicante.
Conforme já exposto, o processo administrativo se presta a uma infinidade de
aplicações, portanto existem processos administrativos de licitação, de sindicância
administrativa, disciplinares, tributários, entre outros.
Na melhor lição do professor Carvalho Filho (2012), uma importante classifi-
cação a ser aplicada aos processos administrativos é a sua divisão em dois grandes
grupos, quais sejam, os processos litigiosos e os não litigiosos.
Nas palavras do ilustre professor, “processos não litigiosos, como o próprio nome
indica, são aqueles em que não se apresenta conflito de interesses entre o Estado e
um particular” (CARVALHO FILHO, 2012, p. 961). Dessa maneira, os processos não
litigiosos são aqueles que se prestam a formalizar as atividades da Administração em
nome do princípio do formalismo, sendo um exemplo a sindicância administrativa.
Por sua vez, os processos litigiosos, de acordo com Carvalho Filho (2012, p. 962),
são aqueles que, “ao contrário do que ocorre com a categoria anterior, […] contêm
realmente um conflito de interesses entre o Estado e o administrado”. Nesse ponto,
percebe-se que essa segunda classificação de processos administrativos se asseme-
lha muito com os processos judiciais, que também têm em seu bojo um conflito de
interesses e se destinam a resolvê-lo.
Nesse ínterim, alguns doutrinadores entendem que existe o exercício da função
judicante ou da jurisdição administrativa pelo Poder Executivo quando este conduz
os processos litigiosos, sempre lembrando a inafastabilidade da jurisdição plasmada
no art. 5o, XXXV, da Carta Magna.

204
Cabe aqui consignar o entendimento de Marcelo Caetano, citado por Dias do
Amaral (2011, p. 57):
Segundo a doutrina tradicional, todo aquele que define, com força executó-
ria, o Direito aplicável a casos concretos, exerce jurisdição: há uma jurisdição
judicial e uma jurisdição administrativa, como existe jurisdição eclesiástica,
militar etc.
Contudo, Dias do Amaral conclui da seguinte forma:
Embora esta linguagem já esteja corriqueira, o certo é que, tecnicamente, não
se pode falar de verdadeira jurisdição administrativo no Brasil. A existência de
duas espécies de processo (administrativo e judicial) não implica, por corolário,
dualidade de jurisdição – como ocorre em outros países.
Processo é meio, caminho ou instrumento para a solução de controvérsias, ao
passo que jurisdição traz em si a ideia de definitividade da solução. Dessa forma,
não haveria, no Brasil, dualidade de jurisdição, mas jurisdição una, na medida
em que, via de regra, a revisibilidade das decisões administrativas pelo Poder
Judiciário faz com que somente este detenha a prerrogativa de julgar definitiva-
mente. (AMARAL, 2011, p. 58).
Portanto, o processo administrativo tributário, enquanto exemplo de processo
litigioso, no qual há a possibilidade de imposição de obrigações ao administrado,
mesmo que não se aceite a ideia de jurisdição administrativa, deve ter pleno respeito
aos princípios constitucionais processuais do contraditório, da ampla defesa e da
celeridade, enfim, deve respeito pleno ao princípio do devido processo legal.

4 ∙ IMPARCIALIDADE DO JULGADOR COMO


DIREITO FUNDAMENTAL DO CIDADÃO
Dentre tantos princípios que informam o processo administrativo fiscal, não
se pode deixar de citar o princípio do juiz natural ou julgador natural, termo mais
adequado na hipótese, que se apresenta sobre dois enfoques, o objetivo e o subjetivo.
No tocante ao objetivo, refere-se à proibição de tribunal de exceção, de acordo
com o art. 5o, XXXVII, da Constituição Federal, e ao respeito às regras objetivas
de determinação de competência, insculpido no art. 5o, LIII, da Carta Magna.
Quanto ao aspecto subjetivo, que será o foco da presente análise, relaciona-se com
a imparcialidade do julgador.
A respeito do princípio do juiz natural dispõe o nobre jurista e processualista
Nelson Nery Jr.:
O princípio do juiz natural, enquanto postulado constitucional adotado pela
maioria dos países cultos, tem grande importância na garantia do Estado
de Direito, bem como na manutenção dos preceitos básicos de imparciali-
dade do juiz na aplicação da atividade jurisdicional, atributo esse que presta
à defesa e proteção do interesse social e do interesse público geral. (NERY
JUNIOR, 2000, p. 65).
Dessa forma, impõe-se que a Administração, na condução dos processos admi-
nistrativos tributários, garanta aos contribuintes, em geral, que o julgador responsá-
vel por decidir a lide agirá de maneira imparcial, atuando de forma isenta, e deverá
proporcionar a todos um devido processo legal, com o pleno respeito aos princípios
constitucionais processuais, em especial os da ampla defesa e do contraditório.

205
Sob esse prisma, não é aceitável que um agente dotado de poder decisório seja
tendencioso e restrinja a participação do cidadão na formação do seu convenci-
mento. É imperioso, portanto, que o princípio do contraditório seja respeitado ao
longo de todo o processo, conforme leciona Amaral:
A ideia de justiça fiscal é comumente apresentada em estudos de direito mate-
rial. É necessário, no entanto, inseri-la também no campo processual. Aliás, não
há, no Direito, recanto onde a presença da justiça não seja impositiva. E uma
das formas de sua efetivação, indubitavelmente, é a garantia do contraditório.
(AMARAL, 2011, p. 219).
Contudo, é difícil imaginar que exista realmente essa isenção ideal, tendo em
vista que o agente julgador compõe os quadros do Fisco e é membro de uma car-
reira que tem por intuito principal justamente realizar os lançamentos tributários
e fiscalizar o pagamento de tais obrigações; ou seja, é um agente que está de certa
forma condicionado a atuar em favor do Estado e que tem a tendência de atuar para
maximizar o recolhimento de tributos aos cofres públicos (ABREU, 2020).
Nesse ínterim, analisando o proceder subjetivo por meio do qual se forma a
decisão, percebe-se que, não raras vezes, ela se forma inicialmente do convenci-
mento puro do julgador que depois de decidir busca os elementos para embasar sua
posição. Dessa forma, antes mesmo do início concreto da instrução processual com
vistas a reunir elementos de convencimento do agente responsável por decidir, este
já escolheu a sua posição e irá tão somente reunir os fundamentos para isso.
Constata-se que ocorre um caminho de formação de convencimento inverso,
em que primeiro o julgador decide para depois olhar os fatos e colher as justificati-
vas de tal decisão. Essa maneira de proceder causa enorme prejuízo para a solução
eficaz da lide, pois esta ficará viciada pela ação tendenciosa do decisor.
Em uma situação como essa, sendo o julgador um agente do Fisco, suas ideias
pré-formadas estarão a favor de um julgamento em prol do Estado tributador e
não do contribuinte (ABREU, 2020), e o processo administrativo tributário ser-
virá apenas para que se possam pinçar as justificativas do decisum. Verdade que,
em determinadas situações-limite, será mais difícil isso ocorrer, porém a reali-
dade é que a maioria dos casos concretos que se apresentam não proporcionam
essa identificação tão facilmente.
Uma forma de resolver o problema narrado acima seria a criação de um órgão
julgador que fosse composto também por representantes dos contribuintes. Tal
estrutura existe, em relação à jurisdição da Secretaria da Receita Federal do Brasil,
instituída inicialmente com o nome de Câmara Superior de Recursos Fiscais, pelo
Decreto n. 83.304, de 28 de março de 1979, tendo sua estrutura ampliada para, além
da Câmara Superior, abranger também seções especializadas por matéria e consti-
tuídas por câmaras, passando a se chamar Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais (CARF), por força da Medida Provisória n. 449, de 3 de dezembro de 2008
(convertida na Lei n. 11.941, de 27 de maio de 2009). Todavia, já existiam institui-
ções que realizavam atividades semelhantes ao CARF desde 1924, com a instituição
dos Conselhos de Contribuintes do Imposto de Renda.
O CARF tem sua estrutura formada por representantes da Fazenda Nacional e
dos contribuintes com proporções igualitárias, sendo órgão de apelação no âmbito

206
do processo administrativo fiscal, tendo por finalidade, nos próprios termos defini-
dos em seu Regimento Interno, o que segue:
Art. 1° O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), órgão cole-
giado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, tem por fina-
lidade julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de primeira instância,
bem como os recursos de natureza especial, que versem sobre a aplicação da
legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal
do Brasil. (BRASIL, 2009).
Pelo exposto, percebe-se que esse órgão foi idealizado para ser uma garantia
ao cidadão de que as decisões no âmbito do processo administrativo tributário se
dariam com imparcialidade. Com tal objetivo foi concebido o CARF como órgão
de apelação com composição paritária para reexaminar, em sede de recurso,
matérias de ordem tributária.
Se, por um lado, a existência de órgão superior, formado por agentes do Estado
e representantes dos contribuintes para o reexame de matérias tributárias no
âmbito administrativo, foi uma resposta para garantir a isenção sob o prisma da
relação julgador e Fisco, por outro lado, essa estrutura concentradora de poder
decisório fez surgir um problema em relação às isenções dos julgados, a possibili-
dade de captura dos julgadores.
Além disso, recentemente, houve alteração no procedimento de votação do
CARF, com a retirada do voto de qualidade pelo art. 28 da Lei n. 13.988/2020, o
que causa preocupação com o possível desequilíbrio do sistema paritário cons-
truído no referido órgão.2

4.1 ∙ O CARF E A OPERAÇÃO ZELOTES


A possibilidade de revisão das decisões administrativas em matéria tributária, por
um órgão superior e central, ocasionou, em certa medida, uma relevante concentra-
ção de poder. Assim, as decisões de primeira instância já não teriam mais tanto peso,
pois poderiam ser revistas pelo CARF, enquanto órgão isento e de formação paritária.
Essa concentração de poder fez com que os conselheiros do referido órgão
começassem a ser alvo de lobistas de grandes empresas interessados em propor
acordos escusos que culminassem na procedência dos recursos das empresas que
estes representavam. Essas espécies de acordos ilegais foram descobertas no bojo
da Operação Zelotes, que apurou o recebimento de vantagens por conselheiros do
CARF para direcionamento de votos (ENTENDA..., 2015).

2 O procurador-geral da República, Augusto Aras, apresentou, em abril de 2020, a ADI n. 6.399


contra o art. 28 da Lei n. 13.988/2020, que prevê a extinção do voto de qualidade no âmbito do
CARF. Em seu pedido, o procurador-geral solicitou, cautelarmente, a suspensão do referido artigo,
o que não foi apreciado, tendo em vista o acionamento do art. 12 da Lei n. 9.868/1999 pelo ministro
relator Marco Aurélio, que encaminhou o processo ao pleno para julgar definitivamente a ação.
Até outubro de 2020, ainda não havia sido decidido o mérito do processo. A tese central da ADI,
conforme exposto na inicial, é “a de inconstitucionalidade formal, por vício no processo legislativo,
em decorrência da inserção, em lei de conversão de medida provisória, de matéria de iniciativa
reservada e sem pertinência temática com o texto originário, por meio de emenda parlamentar”.
Registre-se que o Partido Socialista Brasileiro (PSB) também questionou a constitucionalidade do
fim do voto de qualidade no CARF, por meio da ADI n. 6.403.

207
Tal situação põe mais uma vez em xeque a imparcialidade dos julgadores, no
âmbito do processo administrativo fiscal, pois, dessa forma, percebe-se que aqueles
que possuem meios para realizar negociações ilícitas têm seus recursos providos, o
que leva à interpretação de que aqueles que não possuem essa condição não terão
sucesso em seus pleitos.
É preciso repensar o modelo a fim de que se possa garantir ao cidadão a isenção
dos responsáveis por julgar seus processos; não há como permanecer essa situação de
insegurança jurídica. O economista Marcos Lisboa, especialista em microeconomia,
tem defendido a transformação do CARF em uma autarquia autônoma, nos moldes
do CADE, sem relação hierárquica com o Ministério da Economia (SAFATLE, 2016).
Outra ideia seria a seleção desses conselheiros por meio de concurso público, de
tal forma que não existiriam conselheiros representantes do Estado ou dos contri-
buintes, mas sim conselheiros com conhecimento técnico e reputação ilibada para
julgar com isenção os recursos a eles apresentados.
Tendo em vista a importância e o vulto das matérias analisadas, as exigências do
concurso poderiam ser semelhantes ao que se solicita para os conselheiros substi-
tutos dos Tribunais de Contas Estaduais, quais sejam, a experiência comprovada de
dez anos na matéria pertinente, no caso o Direito Tributário, e a reputação ilibada.
De tal forma, o concurso seria uma alternativa para pôr fim ao poder do lobby
no âmbito do CARF, uma vez que acabaria com as indicações políticas para a
sua composição.

5 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo administrativo tributário é importante instrumento disponível ao cida-
dão para que este possa arguir diretamente a Administração tributante a respeito de
alguma inconsistência porventura ocorrida no procedimento de lançamento do tributo.
Entretanto, percebe-se que o aparelho estatal que conduz referido processo enfrenta
algumas falhas que afetam principalmente a isenção das decisões em seu âmbito.
Nesse diapasão, o CARF é um órgão com uma excelente proposta, visando pro-
porcionar a participação paritária de representantes dos contribuintes no sistema
de julgamento dos processos administrativos fiscais. Contudo, sua diagramação
necessita ser revista para que possa efetivamente realizar seu intento.
Portanto, fica clara a intenção da Administração em respeitar os direitos fun-
damentais dos contribuintes por meio de um regular processo administrativo tri-
butário que lhes garanta todas as prerrogativas insculpidas na Constituição e em
normativos próprios; porém, para que esse objetivo seja alcançado, faz-se necessária
a reestruturação dos órgãos atualmente existentes.

REFERÊNCIAS
ABREU, Anselmo Zilet. O voto de qualidade nos tribunais e conselhos administrativos
de julgamento tributário e questões correlatas. Âmbito Jurídico, São Paulo, 1º jul. 2020.
Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-tributario/o-voto-de-
qualidade-nos-tribunais-e-conselhos-administrativos-de-julgamento-tributario-e-
questoes-correlatas. Acesso em: 2 ago. 2020.

208
AMARAL, Paulo Adyr Dias do. Processo administrativo tributário – e o problema da
supressão do contraditório. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
BRASIL. Ministério da Fazenda. Portaria n. 256, de 22 de junho de 2009. Diário Oficial
da União, Brasília, 23 jun. 2009.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo:
Atlas, 2012.
CRETELLA JÚNIOR, José. Prática do processo administrativo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2009.
ENTENDA a Operação Zelotes da Polícia Federal. Folha de S.Paulo, São Paulo, 1º
abr. 2015. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/04/1611246-
entenda-a-operacao-zelotes-da-policia-federal.shtml. Acesso em: 2 ago. 2020.
GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2012.
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000.
SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2013.
SAFATLE, Claudia. Lisboa propõe reformulação do CARF e redução da insegurança
jurídica. Valor Econômico, Brasília, 14 dez. 2016. Disponível em: https://valor.globo.
com/brasil/coluna/lisboa-propoe-reformulacao-do-carf-e-reducao-da-inseguranca-
juridica.ghtml. Acesso em: 2 ago. 2020.

209
O TRABALHO PRECOCE E A AFRONTA À DIGNIDADE DE
CRIANÇAS E ADOLESCENTES QUE TRABALHAM
Fernanda Brito Pereira1
Martha Diverio Kruse2

Sumário: 1 Introdução. 2 Breve contextualização sobre o trabalho precoce. 3 Aspectos


do enfrentamento do trabalho precoce. 4 Dos diversos direitos fundamentais violados. 5
O trabalho precoce como afronta à dignidade. 6 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O trabalho precoce3 é um fenômeno multifacetário, que, por vezes, entrelaça con-
textos econômicos, sociais, culturais e históricos desfavoráveis, entre outros. Ele viola
o direito fundamental de crianças e adolescentes ao não trabalho,4 bem como impede
a concretização de vários outros direitos fundamentais,5 tanto em decorrência lógica
da ocupação do tempo advinda com o trabalho como pelo cansaço ou exaurimento
que ele provoca. E tudo com a conivência do Estado, da sociedade e da família, que
ainda hodiernamente não confrontam efetivamente essa forma de trabalho não digno.
A dignidade é fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro e está
prevista em diversas normas internacionais das Nações Unidas de proteção da

1 Procuradora do Ministério Público do Trabalho (MG). Mestre em Educação pela Universidade


Federal de Minas Gerais. Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Especialista
em Inteligência de Estado e de Segurança Pública pela Fundação Escola Superior do Ministério
Público de Minas Gerais.
2 Procuradora do Ministério Público do Trabalho (RS). Mestranda em Direito pela Universidade
Católica de Brasília. Especialista em Direito do Trabalho e Direito do Estado pela Universidade
Anhanguera (UNIDERP).
3 Consistente: (a) na realização de qualquer trabalho antes dos dezesseis anos, salvo na condição de
aprendiz, a partir dos quatorze anos; (b) no trabalho realizado por qualquer pessoa com menos de
dezoito anos em período noturno, em locais e (ou) atividades perigosos, insalubres ou penosos,
prejudiciais ou atentatórios à saúde, à segurança, à moral, à formação e ao desenvolvimento; ou
(c) nas piores formas de trabalho infantil, tal como previsto na CR/1988, art. 7º, inciso XXXIII, e
art. 227, § 3º, III, c/c arts. 403, 404 e 405 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT); no art. 67 do
ECA; e no Decreto n. 6.481, de 12 de junho de 2008.
4 Decorrente das disposições contidas na Constituição da República de 1988, art. 7º, inciso XXXIII
(CR/1988); no Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, que “aprova a Consolidação das Leis do
Trabalho” (CLT); na Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, que “dispõe sobre o Estatuto da Criança
e do Adolescente” (ECA); no Decreto n. 6.481, de 12 de junho de 2008, que trata das piores formas
de trabalho infantil, entre outros.
5 Tais como vida, saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, cultura, dignidade, respeito, liber-
dade e convivência familiar e comunitária, profissionalização – direitos arrolados nos arts. 227 da
CR/1988, e 4º do ECA.

211
pessoa humana, bem como da infância e da adolescência. Dela decorre a incor-
poração no ordenamento jurídico pátrio da doutrina da proteção integral da
comunidade infantoadolescente – no art. 227 da Constituição da República de 1988
(CR/1988) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Contudo, a existência
de 2,4 milhões de pessoas com faixa etária entre cinco e dezessete anos em situação
de trabalho6 nega os elementos caracterizadores dessa proteção.
De fato, a submissão de crianças e adolescentes ao trabalho ignora que eles
sejam sujeitos de direitos e pessoas em fase especial de desenvolvimento. Somado
a isso, o trabalho precoce viola a dignidade das crianças e dos adolescentes que são
diuturnamente submetidos a esse tipo de violência. Daí a relevância de analisar a
questão sob o prisma da dignidade.

2 ∙ BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO SOBRE O TRABALHO PRECOCE


O trabalho precoce decorre, normalmente, das desproteções sociais de que
são vítimas as crianças e os adolescentes pobres e extremamente pobres. Esses
sujeitos, quando de família com melhor renda, são incentivados ao estudo
(inclusive de línguas estrangeiras, música etc.), ao lazer, à prática de espor-
tes, entre outros direitos relativos à idade. Àqueles oriundos de classes menos
favorecidas se dirige a visão deturpada de que trabalho é o único meio de lhes
garantir a sobrevivência e de os livrar da marginalidade. Trata-se de uma forma
escancarada de discriminação e de responsabilizar a criança e o adolescente por
sua própria condição de pobreza.
Também está entre as causas do fenômeno em foco a conivência da famí-
lia, da sociedade e do Estado, que, por suas omissões, favorecem ou, ao menos,
aceitam o trabalho precoce. Contraditoriamente, são essas três instituições que
possuem o dever solidário de concretizar a proteção integral, priorizando, de
forma absoluta, o atendimento das necessidades das crianças e dos adolescentes
e dando materialidade aos seus direitos.
Culturalmente, há uma consciência espraiada no imaginário popular que natu-
raliza e torna invisível essa prática no mundo capitalista e consumista, sobretudo
pela propagação de mitos. Os mitos do trabalho precoce consistem em afirmações
falsas, que visam a justificar ou a valorizar o trabalho infantoadolescente, e têm
larga aceitação social. Há, também, alegações no sentido de ser o trabalho infantil
uma forma de expressão cultural. Isso ocorre, por exemplo, no Rio Grande do Sul,
sob o argumento de se tratar de herança da cultura ítalo-germânica. Contudo, a
imigração de italianos e alemães para o referido estado ocorreu no início do século
XX, cronologicamente antes da evolução dos direitos humanos e das discussões
sobre a proteção da criança e do adolescente.7

6 Segundo resultado da pesquisa nacional por amostra de domicílios (PNAD) de 2016, realizada
pelo IBGE.
7 Atualmente, a própria União Europeia, integrada, entre outros países, pela Itália e a Alemanha,
conta com instrumentos normativos que vedam a exploração da mão de obra de crianças e
adolescentes. Nesse sentido, citam-se: (a) a Diretiva 94/33/CE do Conselho, de 22 de junho de
1994, relativa à proteção dos jovens no trabalho; e (b) a Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia, que concede às crianças o direito ao não trabalho, especificamente em seu artigo 32.

212
Destarte, não há que se falar em “brasileirismos” ou se atribuir à proteção da
criança e do adolescente e à defesa do direito ao não trabalho questões políticas e
culturais. Para além da legislação pátria que veda o trabalho antes dos dezesseis
anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos quatorze anos, e veda o trabalho
do menor de dezoito anos sob determinadas condições, o Brasil é signatário de
instrumentos internacionais que lhe impõem a obrigação de promover ações con-
cretas para acabar com o trabalho precoce. Citam-se, por oportuno, a Convenção
n. 138, da Organização Internacional do Trabalho (OIT),8 “sobre a idade mínima
de admissão ao emprego”, e a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, da
Organização das Nações Unidas (ONU).9

3 ∙ ASPECTOS DO ENFRENTAMENTO DO TRABALHO PRECOCE


Para promover o enfrentamento efetivo do trabalho precoce, a fim de erradi-
cá-lo – o que está pactuado internacionalmente para ocorrer até 2025, conforme
objetivo número 8 da Agenda 2030 já referida –, é imperativa a adoção de medidas
de diversas ordens. Podem-se enumerar, exemplificativamente: a conscientização e
sensibilização social acerca das consequências desse tipo de trabalho, com o intuito
de romper a conivência social, familiar e do poder público com a situação; a des-
construção dos valores e mitos que permeiam o imaginário de uma certa parcela
da população e caracterizam o trabalho precoce como um fenômeno positivo; o
resgate da criança e (ou) do adolescente em situação de exploração e a reparação
do ocorrido; o impedimento da reincidência da situação, tanto na perspectiva da
vítima (com a eliminação das causas que a levaram ao trabalho precoce) quanto
do explorador; o atendimento às famílias; a oferta de trabalho protegido para o
adolescente a partir dos quatorze anos completos, por meio da aprendizagem.
A implementação das medidas acima pontuadas é atribuída, em regra, por lei, a
diversos atores e políticas que integram o Sistema de Garantia de Direitos da Criança
e do Adolescente (SGDCA),10 que, por sua vez, ganha vida na “rede de proteção” (ou
de atendimento). O Ministério Público do Trabalho (MPT) é um dos integrantes da
rede e sustenta a condição de articulador político e agente de transformação social,
capaz de propor – inclusive aos outros atores – a adoção de medidas visando ao
resgate das crianças e dos adolescentes que precisam se valer dos serviços da rede de
proteção para sair da condição de explorados.

8 Adotada em Genebra, em 26 de junho de 1973, promulgada no Brasil em 15 de fevereiro de 2002 e


em vigor desde 28 de junho de 2002, conforme consolidado no art. 2º, LXX, do Decreto n. 10.088,
de 5 de novembro de 2019. “Artigo 1. Todo Membro, para o qual vigore a presente Convenção,
compromete-se a seguir uma política nacional que assegure a abolição efetiva do trabalho de
crianças e eleve, progressivamente, a idade mínima de admissão ao emprego ou ao trabalho a um
nível que torne possível aos menores o seu desenvolvimento físico e mental mais completo”.
9 “Objetivo 8. Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno
e produtivo e trabalho decente para todos. [...] Meta 8.7 Tomar medidas imediatas e eficazes para
erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a
proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização
de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas”.
10 Previsto no ECA e minuciado na Resolução n. 113, de 19 de abril de 2006, do Conselho Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA).

213
A conscientização e a sensibilização social acerca das consequências do traba-
lho precoce são relevantes para legitimar a atuação dos órgãos de proteção perante
a sociedade, não sendo incomuns represálias decorrentes da devida atuação.
Discursos de ódio em redes sociais, por exemplo, são justificados sob a alegação,
por exemplo, de que se deveria deixar a criança trabalhar, já que ela não estaria
fazendo nada de errado. Assim, é importante que um número cada vez maior de
pessoas veja a criança ou o adolescente que está trabalhando; nesse último caso, sem
observância das permissões legais, como vítima de violação de direito. É imperativo
cessar a violação e conceder à criança ou ao adolescente a devida proteção social.
Especificamente quanto aos mitos, o caderno de orientações pedagógi-
cas de combate ao trabalho infantil, elaborado e utilizado pelo Ministério
Público do Trabalho (MPT) no âmbito do projeto nacional da Coordenadoria
Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente
(COORDINFÂNCIA), intitulado Resgate a Infância,11 traz orientações técnicas
para instrumentalizar ações para o seu enfrentamento. No documento mencio-
nado, estão registrados os seguintes mitos (p. 6 a 9):12
É melhor que a criança e o adolescente trabalhem do que roubem ou usem drogas.
O trabalho é um bom substituto para a educação.
O trabalho forma o caráter e desenvolve um valor ético e moral.
Criança trabalhadora é disciplinada, séria e corajosa. A que vive “sem fazer
nada” se torna preguiçosa, desonesta e desordeira.
É necessário que a criança contribua com o orçamento doméstico, ajudando a
família a sobreviver. Caso contrário, passará fome.
Criança que trabalha fica mais esperta, aprende a lutar pela vida e tem condição
de vencer profissionalmente quando adulta.
Trabalho doméstico não prejudica a criança.
Trabalhar é melhor que ficar na rua sem ter o que fazer.
Nas sensibilizações e capacitações promovidas pelo MPT, para fins de imple-
mentação do projeto acima citado, em especial do eixo educação, cada um desses
mitos é encarado e indica-se a forma de abordá-los, notadamente em espaços sociais
institucionalizados, como as escolas.13
Da simples leitura dos mitos, num contexto de evidente desigualdade social e de
milhões de adultos desempregados, como o brasileiro, depreende-se que eles têm
destinatários certos: crianças e adolescentes pobres ou miseráveis. A disparidade
desse tratamento, direcionado a determinadas classes sociais, no sentido de que as
crianças delas oriundas devem começar a trabalhar de forma precoce, perpetua,

11 Projeto instituído pela Portaria PGT n. 659, de 25 de outubro de 2016.


12 Material disponível ao público no seguinte endereço eletrônico: http://www.prt3.mpt.mp.br/
images/Ascom/2018/Junho/01_ORIENTA%C3%87%C3%95ES_PEDAG%C3%93GICAS_
COMBATE_AO_TRABALHO_INFANTIL.pdf. Acesso em: 24 ago. 2020.
13 O eixo educação, do projeto resgate à infância, tem como público-alvo professores e outros agentes
escolares (como pedagogos, diretores, coordenadores de ensino, por exemplo) das redes públicas
municipais de ensino. Almeja-se que, após a capacitação, os representantes dos Municípios que
dela participaram voltem para o seu território sensibilizados e ajam como multiplicadores do
conhecimento apreendido para os demais professores e integrantes da comunidade escolar.

214
a médio e longo prazos, o distanciamento social e impossibilita a escalada social,
importando na manutenção de um ciclo vicioso de falta de educação formal e ade-
quada, bem como na perpetuação do ciclo de pobreza.
Ao se propagarem os supostos (e não comprovados) benefícios do trabalho
infantil, no que tange à disciplina, ao eventual senso de responsabilidade, ou à ilu-
são de um futuro melhor, a situação das vítimas não é levada em consideração, pela
condição de invisibilidade. Não há, na construção da opinião pública supostamente
comum sobre o trabalho infantil, escuta ativa do público afetado.
Diante da constatação individual do trabalho da criança ou do adolescente,
alguns integrantes da rede, entre eles a Inspeção do Trabalho, atualmente vincu-
lada ao Ministério da Economia, e o Ministério Público do Trabalho, promovem
o resgate do trabalhador, com o rompimento do vínculo de trabalho, de modo a
impedir a manutenção da conduta danosa em relação ao empregado identificado
bem como a assegurar o recebimento de todos os direitos trabalhistas decorrentes
da relação de emprego.
Importa destacar que, sob a perspectiva da vítima, tanto a vedação total como as
restrições para o trabalho têm por escopo a proteção da infância e da adolescência. Os
sujeitos que se encontram na faixa etária de até quatorze anos incompletos não podem
trabalhar; por sua vez, aqueles entre quatorze e dezoito anos somente podem fazê-lo
sob determinadas condições. Mas se o trabalho foi, de fato, prestado por eles, sem
observância da proibição ou das restrições impostas, a relação estabelecida gera todas
as consequências jurídicas trabalhistas. Somado a isso, os atores da rede acima men-
cionados atuam para impedir que o empregador ou a cadeia produtiva reincida na
exploração do trabalho precoce, seja por meio da aplicação de multas administrativas
(pelos auditores fiscais do Trabalho), seja por meio da celebração de termo de ajuste
de conduta ou da propositura da ação civil pública pertinente (pelo Parquet laboral).
Por seu turno, o impedimento da reincidência da situação sob a perspectiva da
vítima impõe a adoção de medidas diversas, a depender do motivo específico que
levou a criança ou adolescente ao trabalho, em regra a situação econômica. Isso
obriga, notadamente o ente federado municipal,14 à adoção de políticas públicas
eficazes, eficientes e efetivas de enfrentamento ao trabalho precoce.

4 ∙ DOS DIVERSOS DIREITOS FUNDAMENTAIS VIOLADOS


Para além da violação do direito fundamental ao não trabalho, o estar ocu-
pado com o labor, independentemente de qualquer outra circunstância, obsta ou,
no mínimo, põe em risco a concretude de outros direitos fundamentais próprios
da infância e da adolescência, quais sejam, a vida, a saúde, a alimentação, a edu-
cação, o esporte, o lazer, a profissionalização, a cultura, a dignidade, o respeito, a
liberdade e a convivência familiar e comunitária.15 Ilustra-se: (a) entre 2007 e 2018,
aproximadamente duzentas crianças e adolescentes morreram, e 300.469 sofreram
acidente de trabalho grave enquanto trabalhavam; (b) de 2003 a 2018, foram resga-
tados 959 adolescentes em condições análogas às de escravo, por estarem privados

14 Em decorrência do disposto nos arts. 203, 204, I, e 227, §7º, da CR/1988, bem como no art. 88, I, do ECA.
15 Direitos garantidos nos arts. 227 da CR/1988, e 4º do ECA.

215
de sua liberdade em razão do trabalho;16 (c) crianças tornam-se infrequentes ou se
evadem da escola pelo cansaço ou pelo exaurimento decorrente do trabalho; mas,
antes disso, mesmo no período em que elas comparecem à escola, é notório que o
labor compromete a sua disposição e capacidade de aprender. O trabalho precoce
viola, pois, outros direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
Os dados dos observatórios digitais do MPT e da OIT17 indicam que a maioria
dos acidentes (21%) ocorreu em atividades econômicas em que o trabalho infantil é
mais aceito socialmente, as quais, perante um olhar acrítico ou apático, não revelam
seus perigos, a exemplo do comércio varejista de mercadorias em geral, com predo-
minância de produtos alimentícios – hipermercados e supermercados. Entretanto,
os números demonstram que, nesse ambiente, acidentes ocorrem, principalmente
quando são inseridos nele sujeitos que não deveriam estar lá trabalhando, como as
crianças e os adolescentes.
Importa referir, ainda, que todo ambiente de trabalho apresenta riscos para a
saúde, a segurança e a integridade dos trabalhadores.18 Por essa razão, as normas
regulamentadoras (NRs) do extinto Ministério do Trabalho e Emprego (cujas funções
prioritárias estão atualmente vinculadas ao Ministério da Economia), em conjunto
com o texto da CLT, estabelecem a obrigatoriedade de elaboração de programas
que reconheçam, avaliem, antecipem e previnam os riscos ocupacionais, tais como
o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), o Programa de
Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA) e a Análise Ergonômica do Trabalho.19
Justamente por se tratar de pessoas em fase especial de desenvolvimento e que, por
sua inocência, desconhecem os riscos a que estão sujeitos, os agravos ordinariamente
decorrentes do meio ambiente de trabalho são potencialmente mais gravosos à comu-
nidade infantoadolescente do que aos adultos trabalhadores. Reforça-se, assim, uma
tragédia social já em curso, com múltiplas violações de direitos.

5 ∙ O TRABALHO PRECOCE COMO AFRONTA À DIGNIDADE


A Constituição da República Federativa do Brasil, conhecida como Carta
Cidadã, garantista de direitos fundamentais sociais, entre outros, estabeleceu em
seu art. 7º, inciso XXXIII, a proibição normativa segundo a qual as crianças e os
adolescentes não podem trabalhar, salvo a partir dos quatorze anos, na condi-
ção de aprendiz, e desde que observadas determinadas condições. Essa proibição
decorreu da evolução da discussão acerca dos direitos fundamentais sociais, do
reconhecimento da necessidade de se proverem condições materiais de exercício

16 Ambos os exemplos (a e b) se baseiam em dados estatísticos extraídos dos observatórios digitais


de saúde e segurança do trabalho e de trabalho escravo, respectivamente, desenvolvidos pelo MPT
em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Trata-se da “Iniciativa SmartLab
Promoção do Trabalho Decente Guiada por Dados”, acessível ao público pela plataforma https://
smartlabbr.org/. Acesso em: 16 set. 2019.
17 Ver nota de rodapé anterior.
18 Os riscos são classificados em cinco grupos e consistem em: (1) físicos, (2) químicos, (3) biológicos,
(4) ergonômicos e (5) de acidentes. Tudo de acordo com a tabela constante no anexo IV da Portaria
n. 25, de 29 de dezembro de 1994, do Secretário de Segurança e Saúde no Trabalho, publicada no
Diário Oficial da União (DOU) de 30.12.94, e republicada em 15.2.95.
19 Previstos, respectivamente, nas NRs n. 7, 9 e 17 do MTE.

216
da cidadania, o que começa na infância, por meio da proteção e da garantia de
saúde e educação adequadas.
Há que se interpretar o inciso XXXIII do art. 7º da Constituição da República
de forma sistemática e integrativa com outros dispositivos e princípios insertos na
Carta Magna, como, por exemplo, o princípio da igualdade, refletido, inter alia, no
caput do art. 5º e no inciso III do art. 3º, que caracteriza como objetivo fundamental
da República “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais”. Esse objetivo não se coaduna com um estado de coisas que
conceda a determinadas pessoas de classes mais favorecidas o direito a permanecer
estudantes até a idade adulta, e a outras o dever de trabalhar de forma precoce.
Outros dispositivos constitucionais também regulamentam e protegem todas
as crianças, em especial aquelas a quem falta o básico, a exemplo dos arts. 203,
II; 208, IV; e o 227. As creches e a educação infantil, preconizadas pelo art. 208,
são importantes para se suplantar a alegação de que as crianças ficarão sozinhas e
desamparadas se não acompanharem os pais no trabalho.
Contudo, a incorporação da doutrina da proteção integral no ordenamento jurí-
dico brasileiro, prevista no art. 227 da CR/1988, e a existência de normas garantistas
não são suficientes para concretizar o direito fundamental da comunidade infan-
toadolescente ao não trabalho. A proibição não é suficiente para se concretizar que,
no cotidiano de suas vidas, crianças e adolescentes não trabalhem. Eros Roberto
Grau (2018, p. 318) destaca que,
paulatinamente, vai se desnudando a evidência de que ela [a Constituição
formal] não basta para superar as distorções sociais da nossa realidade – a
Constituição, isoladamente considerada, não desencadeia nenhum processo de
mudança social.
Grau reforça, ainda, que a ausência de políticas públicas pode aniquilar a força da
Constituição dirigente, esvaziando-a e tornando-a incompatível com a realidade.
Ademais, essas normas decorrem do reconhecimento da dignidade da pessoa
humana, inclusive de crianças e adolescentes, que é fundamento da República
Federativa do Brasil. Esse reconhecimento é, também, alicerce da Declaração
Universal dos Direitos Humanos – proclamada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas em Paris, aos 10 de dezembro de 1948 –, declarado em seu preâmbulo.
Neomi Rao (2011) explica que nem mesmo os elaboradores da referida Declaração
concordaram com a semântica do vocábulo dignidade. Contudo, a abertura do con-
ceito utilizado foi importante para que se pudessem fundamentar os demais direitos
humanos em um valor universal. Rao classifica três concepções de dignidade: digni-
dade inerente, dignidade na concepção substantiva (ligada ao bem-estar social) e digni-
dade como reconhecimento. E destaca que há conflitos entre as três abordagens, sendo
necessária a opção por uma delas. Contudo, apesar das divergências entre as três con-
cepções, o trabalho precoce e o tratamento desigual dado às crianças e aos adolescentes
de determinadas classes sociais parecem afrontar a dignidade em todas as suas formas.
Para os que adotam a noção de dignidade inerente, a ideia básica é que a dignidade
da pessoa é mais bem respeitada ou fomentada quando o sujeito pode perseguir seus
fins pessoais de seu próprio modo. Na concepção substantiva, alcançar dignidade
pode também corresponder a uma forma de autorrealização, se a dignidade adota
a forma de um padrão social que os indivíduos e a comunidade devem seguir. Por

217
outro lado, aqueles que reivindicam a dignidade como reconhecimento argumentam
que se pode buscar proteção legal contra insultos ou danos simbólicos, visando a
evitar os sentimentos de ser estigmatizado e marginalizado.
Ao evidenciar os três conceitos de dignidade, Neomi Rao lança duras críticas
à abordagem da dignidade como reconhecimento, indicando a sua incompatibili-
dade com a Constituição norte-americana, inspirada em princípios nitidamente
liberais. Contudo, a própria autora admite que esse conceito se vincula aos direitos
de terceira geração, ou seja, aos direitos de solidariedade, e que os Estados Unidos
da América são uma exceção na manutenção da visão mais liberal, enquanto a
Europa e outras democracias modernas caminham na direção de uma visão mais
comunitária da dignidade.
O art. 3º da Constituição da República de 1988 deixa claro que o Brasil adota o
conceito mais comunitário de dignidade, uma vez figuram entre os objetivos fun-
damentais da república
construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a mar-
ginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
A Carta Magna demonstra, pois, explicitamente a opção pela abordagem da dig-
nidade como reconhecimento. A menção à solidariedade e a vedação de qualquer
forma de discriminação evidencia ainda a incompatibilidade da ordem constitucio-
nal com os mitos do trabalho precoce, uma vez que eles estigmatizam e marginali-
zam crianças e adolescentes de determinadas condições sociais, além de perpetuar
o ciclo vicioso de dificuldades econômicas e educacionais.

6 ∙ CONCLUSÃO
Conquanto se tente afastar a observância do direito fundamental ao não traba-
lho em idade precoce com recursos ao relativismo cultural e à falsas polarizações
entre violações diversas, importa reconhecer que submeter a criança e o adolescente
ao trabalho em tenra idade é violar a sua dignidade, afrontando um dos princípios
basilares dos direitos humanos.
Há também um viés extremamente discriminatório nas colocações que defen-
dem o trabalho precoce, pois os pretensos dogmas que o apresentam como uma
alternativa positiva são direcionados apenas às crianças e aos adolescentes inseridos
em um contexto econômico e social desfavorável, preservando-se o direito à educa-
ção, à saúde, ao lazer, ao bem-estar social, entre outros, das crianças e adolescentes
integrantes das classes mais favorecidas social e economicamente.
Muito embora o conceito de dignidade seja amplo, por qualquer perspectiva
que se analise, é nítida a afronta à dignidade decorrente do trabalho em tenra
idade, seja porque a criança ou o adolescente estão sendo usados como meios e
não como fim em si mesmo (concepção kantiana e inerente), seja porque acabam
sendo privados dos meios mínimos para o gozo de uma vida saudável e do direito
à educação e à saúde (concepção substantiva), seja pela desconsideração da sua
condição de pessoa em desenvolvimento e de suas potencialidades (concepção de
dignidade como reconhecimento).

218
Destarte, não se pode tolerar a ocorrência do trabalho precoce, sendo necessá-
rio, também, sensibilizar a sociedade para esse tipo de violação de direitos, para que
não seja ofuscada por todas as demais violações a que estão sujeitas a comunidade
infantoadolescente, e para que não se coadune com o tratamento diferenciado de
determinadas crianças e adolescentes, pois o tratamento discriminatório afronta
cabalmente a Constituição da República.

REFERÊNCIAS
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 19. ed. São Paulo:
Malheiros, 2018.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA. Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua: Trabalho Infantil: 2016. PNAD contínua: trabalho
infantil: 2016 Rio de Janeiro: IBGE, 2017. ISBN: 9788524044359. Disponível em: https://
biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101389.
Acesso em: 26 ago. de 2020.
RAO, Neomi. Three concepts of dignity in constitutional. Notre Dame Law Review, v. 86,
Issue 1, p. 183-272, February 2011. Disponível em: https://scholarship.law.nd.edu/ndlr/
vol86/iss1/4/. Acesso em: 15 jun. 2020.

219
DISPENSA COLETIVA
O trabalho como valor jurídico, social e econômico

Fernanda Daher Caram Farah1

Sumário: 1 Introdução. 2 Requisitos da dispensa coletiva. 2.1 Aspecto causal. Motivo.


2.2 Natureza objetiva. 2.3 Quantidade numérica. Percentual. 2.4 Lapso temporal.
2.5 Redimensionamento da empresa. Manutenção da atividade econômica. 3 Do
despedimento coletivo e a representação de classe. 4 Direito comparado. 4.1 A solução
no Brasil. 4.2 A solução na Europa. 4.3 A solução de Portugal. 4.4 A solução da Itália. 4.5
A solução da França. 5 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
Abordar o tema “dispensa coletiva” constitui um dos maiores desafios para o
estudioso do Direito do Trabalho, uma vez que a exposição da questão desnuda as
contradições mais profundas do capitalismo: a geração de riqueza, o desenvolvi-
mento social e tecnológico, as crises econômicas e o desemprego.
Marco, decerto, dos mais importantes, foi a Primeira Revolução Industrial, que sig-
nificou muito mais do que uma nova concepção na relação entre o capital e o trabalho.
A revolução industrial inaugurou uma forma de produção, com o legítimo sur-
gimento de uma classe proletária, na demonstração mais clara de que os direitos de
primeira dimensão não bastariam. As forças aderiram o ritmo das máquinas. As
cidades se tornaram palco de fome, de desnutrição, de amontoados de casebres, de
desrespeito aos direitos fundamentais do ser humano.
Após as máquinas a vapor da Primeira Revolução Industrial (séc. XVIII), a
energia elétrica e as grandes fábricas da Segunda Revolução Industrial (sécs. XIX e
XX), e a eletrônica, a computadorização e a telecomunicação da Terceira Revolução
Industrial (meados do séc. XX), hoje se vivenciam a digitalização e integração dos
processos, a “internet” das coisas e a computação em nuvem.
As tecnologias disruptivas, assim conhecidas aquelas que vêm inovar e rom-
per com as até então conhecidas, marcam a Quarta Revolução Industrial ou a
Indústria 4.0. É nesse inédito contexto que máquinas inteligentes tendem a assu-
mir postos de trabalho de imensa parte da população ativa. Com a utilização de
inteligência artificial de autoaprendizagem, serão possíveis mudanças e atualiza-
ções automáticas durante uma operação.

1 Analista do MPU e Assessora Jurídica da Procuradoria Regional do Trabalho da 3ª Região.


Mestranda na Universidade de Coimbra, Portugal. Pós-graduada em Direito do Trabalho pela
Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro. Graduada em Direito pela Universidade
Católica de Minas Gerais.

221
Desde o último semestre do ano de 2008, principalmente após a quebra
da instituição financeira Lehman Brothers nos Estados Unidos da América, a
grave crise econômica mundial também demonstrou que o direito coletivo é,
mais do que nunca, essencial para tentar salvaguardar os efeitos deletérios das
dispensas coletivas.
Para se alcançarem as pretendidas ilações quanto ao tema ora proposto, este
estudo foi dividido em partes principais, nas quais se busca abordar o significado
da dispensa coletiva, o papel dos representantes das categorias profissionais neste
contexto e, finalmente, o direito comparado, com enfoque no direito português.

2 ∙ REQUISITOS DA DISPENSA COLETIVA


Inicialmente, faz-se necessária a distinção de dispensa plúrima da dispensa
coletiva. Enquanto aquela se vincula ao direito individual, esta se constitui sob as
asas do direito coletivo. Em ambos os casos ocorre o desligamento de um conjunto
de trabalhadores, todavia a modalidade plúrima se refere a um número disperso de
dispensas individuais; já na coletiva o que ocorre é a rescisão simultânea de plurali-
dade de contratos de trabalho por motivo único em uma empresa, sem substituição
dos empregados dispensados. Sucintamente, na coletiva existem uma peculiaridade
da causa e a redução definitiva do quadro de pessoal.
Orlando Gomes dos Santos (1974) há longa data já fazia a distinção. Segundo
ele, na dispensa coletiva o empregador, compelido a dispensar uma pluralidade de
empregados, não seleciona traços pessoais, mas um grupo não identificável, uma
lotação, uma seção ou um departamento da empresa. Nesse caso a causa que prin-
cipia a dispensa é comum a todos, não se prendendo ao comportamento de nenhum
deles, mas a uma necessidade da empresa:2
Dispensa coletiva é a rescisão simultânea, por motivo único, de uma pluralidade
de contratos de trabalho numa empresa, sem substituição dos empregados dis-
pensados. [...] O empregador, compelido a dispensar certo número de emprega-
dos, não se propõe a despedir determinados trabalhadores, senão aqueles que não
podem continuar no emprego. Tomando a medida de dispensar uma pluralidade
de empregados não visa o empregador a pessoas concretas, mas a um grupo de
trabalhadores identificáveis apenas por traços não-pessoais, como a lotação em
certa seção ou departamento, a qualificação profissional, ou o tempo de serviço.
A causa da dispensa é comum a todos, não se prendendo ao comportamento de
nenhum deles, mas a uma necessidade da empresa. (SANTOS, 1974, p. 575).
A Comunidade Europeia regulamenta a despedida coletiva a partir de cri-
térios, quais sejam: causal (quando caracterizados motivos ensejadores da des-
pedida), numérico (quando determinado número ou percentual de empregados

2 De acordo com a autora Marcele Carine dos Praseres Soares (2014, p. 10-11), conforme Boletim
Estatístico de maio de 2011, produzido pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério
do Trabalho e da Solidariedade Social de Portugal, que fraciona os processos de despedimentos
coletivos nas regiões Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve, houve, no ano de
2009, em sua globalidade, 379 processos judiciais concluídos e 5.522 empregados despedidos, dos
quais foram revogados, por meio de acordo, 208 despedimentos e, “por outras medidas”, outros 49.
Embora não haja esclarecimentos quanto ao significado de “outras medidas”, quer-se crer que as
revogações dos despedimentos foram promovidas por via judicial.

222
despedidos for alcançado) e temporal (quando as despedidas ocorrerem dentro
de determinado período).

2.1 ∙ ASPECTO CAUSAL. MOTIVO


O motivo é um elemento basilar que diferencia as despedidas coletivas das des-
pedidas individuais plúrimas, porque naquelas “a causa é única e o propósito é a
redução do quadro de pessoal da empresa [...] sem substituição dos empregados
despedidos”, ao passo que nesta “para cada demitido pode haver causa diferente e
normalmente tem o propósito de substituição do demitido por outro empregado”
(PANCOTTI, 2010, p. 534).
Em outras palavras, as razões das despedidas plúrimas se relacionam à pessoa
ou à conduta do empregado, significando que, para cada um deles, o motivo para
rescisão contratual pode ser único e particular; ao passo que nas despedidas cole-
tivas o motivo é comum e relacionado à circunstância econômica, financeira ou
organizacional da empresa.
O aspecto causal varia de país para país. Na França, a despedida coletiva é
caracterizada pela concepção de motivo econômico (art. L. 321-1 do CT). Na
Espanha, por motivos econômicos, técnicos, organizativos ou de produção (art.
51 do Estatuto do Trabalhador). 3 Em Portugal, por motivos de mercado, estrutu-
rais ou tecnológicos (art. 359, CP).

2.2 ∙ NATUREZA OBJETIVA


Outro elemento sucedâneo do anterior é a natureza objetiva dos fatos enseja-
dores da despedida, que no caso da coletiva suplantam o relacionamento interpes-
soal das partes para questões de ordem econômica, tecnológica ou estrutural. A
plúrima, por sua vez, pode advir de comportamento do empregado ou de dificul-
dades financeiras da empresa.
Esse é o ponto trazido pela Convenção n. 158 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), que, a despeito de não conceituar despedida coletiva, a relaciona
objetivamente a motivos econômicos, tecnológicos, estruturais e análogos (Parte
III), fazendo aí distinção da dispensa individual por motivo subjetivo, de cunho
disciplinar, que deve ser fundamentada pelo empregador (Parte II).
Por sua vez, a Diretiva n. 75/129/CEE da Comunidade Europeia conceitua a des-
pedida coletiva como aquela ocasionada por um ou vários motivos não inerentes à
pessoa do trabalhador (art. 1.1).

3 Já ensinado por Eduardo Soto Pires (2012), é importante notar que a lei exige a apresentação da
documentação econômica dos últimos três anos. Isso reforça a ideia de que a situação econômica
negativa não pode ser conjuntural, mas deve ser grave e de difícil transposição, para que possa ser
autorizadora da dispensa coletiva. Deve haver uma situação em que a dispensa coletiva sirva para
estancar as perdas. No entanto, de acordo com a nova redação do art. 51 do ET, o empregador não
precisa justificar como as dispensas deverão contribuir para a superação da situação negativa, basta
que exista uma relação razoável entre a má situação econômica alegada e as dispensas coletivas
propostas. Já não recai sobre a empresa o ônus de provar que a medida seja suficiente para eliminar
a crise, nem que sejam adotadas outras medidas que garantam a superação da situação econômica
negativa (PIRES, 2012, p. 54, 62, 56).

223
2.3 ∙ QUANTIDADE NUMÉRICA. PERCENTUAL
A Diretiva n. 75/129/CEE também indica números e percentuais de redução do
quadro de empregados para que seja configurada a despedida coletiva (art. 1.1):
[...] efetuada por um empresário, por um ou vários motivos não inerentes à pessoa
do trabalhador, quando o número de dispensas no período de trinta dias corres-
ponda a: a) Dez empregados, cujo centro de trabalho empregue habitualmente
entre vinte e cem trabalhadores; b) Dez por cento do número de empregados, nos
centros de trabalho que empreguem habitualmente entre cem e trezentos traba-
lhadores; c) Trinta empregados nos centros de trabalho que empreguem habitual-
mente o mínimo de trezentos trabalhadores; d) Ou vinte empregados, seja qual for
o número de trabalhadores habitualmente empregados nos centros de trabalho
afetados, desde que a dispensa se verifique dentro de um período de noventa dias.
A base de cálculo utilizada para a consideração do número de despedimentos
ou incidência do percentual deve levar em conta a quantidade de empregados na
totalidade de filiais, seções ou unidades; excluídos os trabalhadores eventuais, tem-
porários e terceirizados.
No art. 51 do Estatuto Espanhol do Trabalhador:
[...] entender-se-á por dispensa coletiva a extinção de contratos de trabalho fun-
dada em causas econômicas, técnicas, organizativas ou de produção quando, em
um período de noventa dias, a extinção afete pelo menos: – dez trabalhadores,
empresas que ocupem menos de cem trabalhadores; – 10% dos trabalhadores
naquelas empresas que ocupem entre cem e trezentos trabalhadores: – trinta
trabalhadores nas empresas que ocupem trezentos ou mais trabalhadores.
Dentre os sistemas jurídicos, aquele que se apresenta mais restrito é o ordena-
mento português, que tem como coletiva a despedida que abranja, pelo menos, dois
ou cinco trabalhadores, conforme se trate, respectivamente, de empresas de dois a
cinquenta ou mais de cinquenta trabalhadores (art. 359 do Código Português):
[...] a cessação de contratos de trabalho promovida pelo empregador e operada
simultânea ou sucessivamente no período de três meses, abrangendo, pelo menos,
dois ou cinco trabalhadores, conforme se trate, respetivamente, de microem-
presa ou de pequena empresa, por um lado, ou de média ou grande empresa, por
outro, sempre que aquela ocorrência se fundamente em encerramento de uma ou
várias secções ou estrutura equivalente ou redução do número de trabalhadores
determinada por motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos.

2.4 ∙ LAPSO TEMPORAL


Consoante a Diretiva n. 75/129/CEE e a Diretiva n. 98/59/CE, os despedimentos
devem ocorrer num determinado lapso temporal a fim de que a despedida possa ser
qualificada como coletiva. O prazo trazido como referência é de trinta ou noventa dias.4

4 A Diretiva n. 98/59/CE do Conselho da União Europeia, de 20 de julho de 1998, assim dispõe:


“Artigo 1º, 1. Para efeitos da aplicação da presente diretiva: [...] i) ou, num período de 30 dias: – no
mínimo 10 trabalhadores, nos estabelecimentos que empreguem habitualmente mais de 20 e menos
de 100, – no mínimo 10% do número dos trabalhadores, nos estabelecimentos que empreguem
habitualmente no mínimo 100 e menos de 300 trabalhadores, – no mínimo 30 trabalhadores,
nos estabelecimentos que empreguem habitualmente no mínimo 300; ii) ou, num período de 90
dias, no mínimo 20 trabalhadores, qualquer que seja o número de trabalhadores habitualmente
empregados nos estabelecimentos em questão”.

224
Na França, esse prazo de rescisões contratuais para configuração de despe-
dimento coletivo é de trinta dias; na Espanha, em até noventa dias; em Portugal,
simultânea ou sucessivamente em três meses.

2.5 ∙ REDIMENSIONAMENTO DA EMPRESA.


MANUTENÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA
Por fim, o elemento de redimensionamento da empresa. A despedida coletiva no
sentido jurídico é um instituto que visa à viabilidade e à manutenção da atividade
econômica mediante uma organização mais adequada dos recursos.
Assim, há de haver vinculação entre a eliminação dos postos de trabalho e o
resultado da operação almejado que, ao menos em tese, seja favorável à continui-
dade da empresa e dos demais postos de trabalho, e não como mecanismo mera-
mente de maximização de lucros.5

3 ∙ DO DESPEDIMENTO COLETIVO E A REPRESENTAÇÃO DE CLASSE


Comumente, existem dois tipos de representantes diretos dos interesses dos
empregados perante o empregador: as comissões representativas dentro das empre-
sas e os sindicatos da categoria.
As comissões representativas representam todos os empregados perante a admi-
nistração da empresa, promovendo o diálogo e o entendimento no ambiente de tra-
balho, com o fim de prevenir ou solucionar conflitos; assegurando tratamento justo
e imparcial aos empregados, sem qualquer forma de discriminação por motivo de
sexo, idade, religião, opinião política ou atuação sindical; exercendo o controle da
gestão da empresa; obtendo informações ao exercício da atividade; participando em
processo de reestruturação e alteração das condições de trabalho; participando das
obras sociais e da elaboração da legislação do trabalho.
A Comissão possui caráter de direito fundamental, a ponto de ser prevista nas
próprias constituições dos países. A título de exemplo, citam-se as constituições
portuguesa e brasileira.
A Constituição portuguesa, no art. 54, dispõe que: “É direito dos trabalhadores
criarem comissões de trabalhadores para defesa dos seus interesses e intervenção
democrática na vida da empresa”. E, dentre outros, constituem direitos das comis-
sões de trabalhadores (item 5):
a) Receber todas as informações necessárias ao exercício da sua atividade; b)
Exercer o controlo de gestão nas empresas; c) Participar nos processos de rees-
truturação da empresa, especialmente no tocante a ações de formação ou quando
ocorra alteração das condições de trabalho.

5 “Nos casos analisados pelos tribunais (espanhóis), foram declaradas improcedentes as extinções
nos casos em que a redução de postos de trabalho se embasava simplesmente em um projeto
empresarial e estava absolutamente desconectada da existência real de dificuldades que impedissem
o bom funcionamento da empresa, seja por exigência da demanda ou pela posição competitiva da
referida empresa no mercado. Entendendo definitivamente que, de fato, pode existir, como muito,
uma conveniência para que a empresa adote a medida, mas não uma necessidade verdadeira e
isso não é causa suficiente para justificar uma extinção contratual (STS 23 de janeiro de 2008, QS
2008/88270).” (PRIETO, 2010, p. 22 apud PIRES, 2012, p. 103).

225
Por sua vez, a brasileira assegura o mesmo direito em seu art. 11: “Nas empresas de
mais de duzentos empregados, é assegurada a eleição de um representante destes com
a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores”.
Outro órgão representativo dos interesses coletivos dos trabalhadores são os
sindicatos. Além do dever de fiscalizar, possuem condições de se opor ao exercício
arbitrário do poder diretivo do empregador, equiparando-lhe as forças. O intuito é
resguardar os interesses econômicos e laborais dos filiados, bem como a representa-
tividade e a defesa da categoria de trabalhadores.
A Organização Internacional do Trabalho preconiza a importância do direito à
representação pelo sindicato, em discussões sobre direitos coletivos dos trabalhadores.
Também a título exemplificativo, citam-se as constituições portuguesa e brasileira.
O art. 56 da Constituição portuguesa atribui às associações sindicais defender
e promover a defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores que representem.
E constitui como direito: a) participar na elaboração da legislação do trabalho; b)
participar na gestão das instituições de segurança social e outras organizações que
visem satisfazer os interesses dos trabalhadores; c) pronunciar-se sobre os planos
econômico-sociais e acompanhar a sua execução; d) fazer-se representar nos orga-
nismos de concertação social, nos termos da lei; e) participar nos processos de rees-
truturação da empresa, especialmente no tocante a ações de formação ou quando
ocorra alteração das condições de trabalho.
Ao passo que a brasileira em seu art. 8º estipula que é livre a organização pro-
fissional ou sindical, observando que “ao sindicato cabe a defesa dos direitos e
interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou
administrativas” e que “é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações
coletivas de trabalho” (incisos III e VI).
Pois bem. É na dispensa coletiva que os órgãos representativos se revelam essenciais.
No Direito do Trabalho, até mesmo pela condição notadamente desigual de
forças entre empregado e empregador, tem-se a adoção frequente de uma postura
mais protetiva. Não se deve imaginar, entretanto, que se apresente como empecilho
à correta discussão acerca das relações trabalhistas. Pelo contrário, beneficia empre-
sas que atuam corretamente, sanciona às que agem em desrespeito à legislação e
equilibra o cenário empresarial.
Os despedimentos coletivos são objeto de regulamentação internacional, regio-
nal e nacional. Geralmente, determina-se que as empresas informem e consultem
os órgãos representativos de classe, como os sindicatos e os representantes dos tra-
balhadores, antes de promoverem dispensas em massa.
Preconiza a Convenção n. 158 da OIT, de 1982, que trata da cessação da relação de
trabalho, que os procedimentos de informação e consulta devem ser seguidos quando
presentes despedimentos por razões “econômicas, estruturais, tecnológicas e análo­
gas”, com o objetivo de encontrar medidas “para evitar ou minimizar os despedimen­
tos” e “atenuar os efeitos negativos de quaisquer despedimentos para os trabalhadores
em causa, tais como encontrar um emprego alternativo”. Assim dispõe seu art. 13:
Art. 13 – 1. Quando o empregador prever términos da relação de trabalho por
motivos econômicos, tecnológicos, estruturais ou análogos; a) Proporcionará
aos representantes dos trabalhadores interessados, em tempo oportuno,

226
a informação pertinente, incluindo os motivos dos términos previstos, o
número e categorias dos trabalhadores que poderiam ser afetados e o período
durante o qual seriam efetuados esses términos: b) em conformidade com a
legislação e a prática nacionais, oferecerá aos representantes dos trabalha-
dores interessados, o mais breve que for possível, uma oportunidade para
realizarem consultas sobre as medidas que deverão ser adotadas para evitar
ou limitar os términos e as medidas para atenuar as consequências adversas
de todos os términos para os trabalhadores afetados, por exemplo, achando
novos empregos para os mesmos.
A Recomendação n. 166 da OIT sobre a cessação do contrato de trabalho, com
vigência a partir de 23 de novembro de 1985, complementa orientações nesse sentido.
Informação e consulta entre as partes também se encontram previstas em fontes
regionais de regulamentação, como a Lei Modelo de Harmonização da Cessação de
Emprego da Comunidade do Caribe (Caricom) e a Diretiva da União Europeia (UE)
relativa aos despedimentos coletivos.
Os instrumentos regionais, como a Diretiva n. 2002/14 da UE, preveem o dever
de diálogo social, ou seja, de informações e consultas sobre a situação, a estrutura
e o provável desenvolvimento do emprego dentro da empresa ou estabelecimento
e sobre quaisquer medidas antecipatórias previstas, em particular quando houver
uma ameaça ao emprego; inclusive suscetíveis de levar a mudanças substanciais na
organização do trabalho ou nas relações contratuais.6
Regulamentações nacionais estatuem deveres semelhantes.7-8
Isso significa que as normatizações que asseguram o funcionamento dos sis-
temas de relação laboral claramente sustentam o papel ativo dos representantes
dos trabalhadores nos despedimentos coletivos, levando a resultados econômicos
positivos (ADAMS et al., 2019), o que se verifica, principalmente, quando presentes
instituições coletivas fortes (DEAKIN; MALMBERG; SARKAR, 2014).

4 ∙ DIREITO COMPARADO
4.1 ∙ A SOLUÇÃO NO BRASIL
No Brasil, com o intuito de assegurar o adimplemento das obrigações traba-
lhistas, a própria Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 8º,
incisos III e VI, previu:

6 Diretiva n. 2002/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2002, que estabelece


um quadro geral relativo à informação e à consulta dos trabalhadores na Comunidade Europeia.
7 A lei sueca sobre o emprego (codeterminação no local de trabalho) (1976:580), seção 19, por
exemplo, obriga os empregadores a “informar regularmente uma organização de trabalhadores
em relação à qual [estão] vinculados por acordos de negociação coletiva sobre a forma como a
empresa está a evoluir no que respeita à produção e às finanças e sobre as orientações em matéria
de política de pessoal”. São igualmente previstas obrigações análogas quando o empregador não
está vinculado por uma convenção coletiva.
8 A base de dados da legislação à proteção do emprego da OIT indica que mais de sessenta países,
pertencentes a todos os continentes do mundo, preveem deveres processuais de informação e
consulta em caso de despedimentos coletivos. Disponível em: https://eplex.ilo.org/. Acesso em:
20 mar. 2020.

227
Art. 8º [...]:
III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais
da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas; [...]
VI - é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de
trabalho; [...]
Assim, seria inconstitucional discussão sobre direitos coletivos dos trabalhado-
res sem a participação de entidade sindical; salvo, naturalmente, situações excep-
cionais, como no caso de ausência de sindicato de uma categoria na região na qual
se discute determinado assunto.
A presença do sindicato como porta-voz de seus representados é tão importante
que sua ausência já se mostrou danosa em mais de uma ocasião. Pela proximidade
temporal, vale a citação do caso “Greve dos Caminhoneiros” como exemplo das con-
sequências desastrosas de não se ter um representante definido para uma negociação,
que muitas vezes ocorre sem grande intervalo de tempo para a preparação das partes.
Em relação à dispensa coletiva brasileira, a precursora foi a doutrina, que há
três décadas já reconhecia a existência dessa forma de extinção contratual e já deli-
mitava o seu alcance, mostrando-se a legislação ordinária e constitucional ainda
muito insuficiente e escassa. A jurisprudência predominante até 2009 nos tribunais
trabalhistas aplicava à dispensa coletiva o mesmo tratamento da dispensa indivi-
dual, cuja legislação trabalhista faculta ao empregador a decisão de dispensar o
empregado sem justa causa.
Só com o impacto socioeconômico das dispensas coletivas ocorridas em 2009
e após, especificamente a promovida pela Embraer, sem qualquer aviso ou nego-
ciação, que atingiu mais de 4.200 empregados diretos, com repercussões em toda
a cadeia produtiva e no comércio e serviços das regiões atingidas, que foi trazida à
tona a discussão sobre a arbitrariedade da dispensa coletiva principalmente frente
aos princípios e direitos estabelecidos na Constituição Federal.
Segue ementa do TST, que condenou a empresa Embraer a pagar indenização
financeira a todos os empregados demitidos e deu o caso como marco inicial para a
obrigatoriedade de negociação coletiva prévia com entidade sindical para validade
de demissões coletivas:
RECURSO ORDINÁRIO EM DISSÍDIO COLETIVO. DISPENSAS TRABA­
LHISTAS COLETIVAS. MATÉRIA DE DIREITO COLETIVO. IMPERATIVA
INTERVENIÊNCIA SINDICAL. RESTRIÇÕES JURÍDICAS ÀS DISPENSAS
COLETIVAS. ORDEM CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL
DE­MOCRÁTICA EXISTENTE DESDE 1988. A sociedade produzida pelo sis-
tema capitalista é, essencialmente, uma sociedade de massas. A lógica de funcio-
namento do sistema econômico-social induz a concentração e centralização não
apenas de riquezas, mas também de comunidades, dinâmicas socioeconômicas
e de problemas destas resultantes. A massificação das dinâmicas e dos problemas
das pessoas e grupos sociais nas comunidades humanas, hoje, impacta de modo
frontal a estrutura e o funcionamento operacional do próprio Direito. Parte sig-
nificativa dos danos mais relevantes na presente sociedade e das correspondentes
pretensões jurídicas têm natureza massiva. O caráter massivo de tais danos e
pretensões obriga o Direito a se adequar, deslocando-se da matriz individualista
de enfoque, compreensão e enfrentamento dos problemas a que tradicional-
mente perfilou-se. A construção de uma matriz jurídica adequada à massividade
dos danos e pretensões característicos de uma sociedade contemporânea – sem
228
prejuízo da preservação da matriz individualista, apta a tratar os danos e pre-
tensões de natureza estritamente atomizada – é, talvez, o desafio mais moderno
proposto ao universo jurídico, e é sob esse aspecto que a questão aqui proposta
será analisada. As dispensas coletivas realizadas de maneira maciça e avassala-
dora somente seriam juridicamente possíveis em um campo normativo hiperin-
dividualista, sem qualquer regulamentação social, instigador da existência de
mercado hobbesiano na vida econômica, inclusive entre empresas e trabalha-
dores, tal como, por exemplo, respaldado por Carta Constitucional como a de
1891, já há mais um século superada no país. Na vigência da Constituição de
1988, das convenções internacionais da OIT ratificadas pelo Brasil relativas a
direitos humanos e, por consequência, direitos trabalhistas, e em face da leitura
atualizada da legislação infraconstitucional do país, é inevitável concluir-se pela
presença de um Estado Democrático de Direito no Brasil, de um regime de impé-
rio da norma jurídica (e não do poder incontrastável privado), de uma sociedade
civilizada, de uma cultura de bem-estar social e respeito à dignidade dos seres
humanos, tudo repelindo, imperativamente, dispensas massivas de pessoas,
abalando empresa, cidade e toda uma importante região. Em consequência, fica
fixada, por interpretação da ordem jurídica, a premissa de que “a negociação cole-
tiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores”. DISPENSAS
COLETIVAS TRABALHISTAS. EFEITOS JURÍDICOS. A ordem constitucional
e infraconstitucional democrática brasileira, desde a Constituição de 1988 e
diplomas internacionais ratificados (Convenções OIT n. 11, 87, 98, 135, 141 e 151,
ilustrativamente), não permite o manejo meramente unilateral e potestativista
das dispensas trabalhistas coletivas, por se tratar de ato/fato coletivo, inerente
ao Direito Coletivo do Trabalho, e não Direito Individual, exigindo, por conse-
quência, a participação do(s) respectivo(s) sindicato(s) profissional(is) obreiro(s).
Regras e princípios constitucionais que determinam o respeito à dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III, CF), a valorização do trabalho e especialmente do
emprego (arts. 1º, IV, 6º e 170, VIII, CF), a subordinação da propriedade à sua
função socioambiental (arts. 5º, XXIII e 170, III, CF) e a intervenção sindical
nas questões coletivas trabalhistas (art. 8º, III e VI, CF), tudo impõe que se reco-
nheça distinção normativa entre as dispensas meramente tópicas e individuais
e as dispensas massivas, coletivas, as quais são social, econômica, familiar e
comunitariamente impactantes. Nesta linha, seria inválida a dispensa coletiva
enquanto não negociada com o sindicato de trabalhadores, espontaneamente ou
no plano do processo judicial coletivo. A d. Maioria, contudo, decidiu apenas
fixar a premissa, para casos futuros, de que “a negociação coletiva é imprescin-
dível para a dispensa em massa de trabalhadores”, observados os fundamentos
supra. Recurso ordinário a que se dá provimento parcial. (Processo: ED-RODC
– 30900-12.2009.5.15.0000. Data de Julgamento: 10.8.2009. Relator Ministro:
Mauricio Godinho Delgado, Seção Especializada em Dissídios Coletivos. Data
de Publicação: DEJT 4 set. 2009).
Com a Reforma Trabalhista n. 13.467/2017,9 o art. 477-A da nova CLT passou a
apresentar a seguinte redação:
Art. 477-A. As dispensas imotivadas individuais, plúrimas ou coletivas equipa-
ram-se para todos os fins, não havendo necessidade de autorização prévia de
entidade sindical ou de celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de
trabalho para sua efetivação.

9 Não há como negar que a partir da vigência da Lei n. 13.467/2017 várias normas constitucionais
foram desrespeitadas pelo afastamento do ser coletivo obreiro da dinâmica das dispensas massivas
deflagradas pelo empregador em sua empresa ou em estabelecimentos dela componentes.
229
A redação do novo artigo equipara, para todos os fins, as dispensas individuais,
plúrimas e coletivas, ignorando a diferente natureza jurídica desses institutos, como
já mencionado. Além de eximir a necessidade de prévia negociação coletiva ou par-
ticipação sindical do evento de qualquer tipo de dispensas, não apenas precariza e
fragiliza as relações de emprego, mas também não veda expressamente eventuais
arbitrariedades do patronado.
As normas constitucionais, internacionais e legais adotadas pelo Brasil afastam
o caráter unilateral e potestativo das dispensas coletivas. Pela própria natureza de
constituir um fato coletivo já se pressuporia a necessária participação de um órgão
representativo (arts. 8º, VI e VIII, e 11 da CF). Até de modo a assegurar mais eficaz-
mente a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), a valorização do trabalho
e emprego (arts. 1º, IV, 6º, 170, VIII, e 193 da CF), a função social da propriedade
(arts. 5º, XXXII, e 170, III, da CF), a proteção e promoção do emprego (Convenções
da OIT n. 11, 87, 98, 135, 141, 151, 158 e 168).
Em especial, quanto à Convenção n. 158 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) – que proíbe a dispensa sem justo motivo e arbitrária –, em que pese
sua curta duração no Brasil, teve sua força programática reconhecida pelo Supremo
Tribunal Federal (STF). A Convenção foi ratificada pelo Decreto Legislativo n. 68, de
17 de setembro de 1992, publicada no Diário Oficial em 11 de abril de 1996, denun-
ciada em 20 de novembro de 1996, e pende de Ação Direta de Inconstitucionalidade
tramitando no STF sob n. 1.480-3.
Vista disso, o art. 477-A da CLT precisa ser interpretado e aplicado tanto res-
peitando a Constituição da República (controle de constitucionalidade), quanto
às convenções internacionais (controle de convencionalidade) e às leis infracons-
titucionais (controle de legalidade); por conseguinte, assegurando o direito à
informação das entidades representativas, bem como a negociação coletiva dos
impactos da demissão em massa.
Acrescenta-se que o propósito maior da Reforma Trabalhista, insistentemente
mencionado pelos seus defensores, foi o de valorizar e fortalecer o papel das nego-
ciações coletivas, o que coincide, à perfeição, com os fundamentos da jurisprudên-
cia produzida pelos tribunais trabalhistas com relação ao tema dispensas em massa.
Afinal, se o negociado “prevalece sobre o legislado”, não é concebível que nos
momentos mais relevantes da relação de emprego – ou seja, no seu nascimento,
com a contratação ou admissão do empregado, quanto no seu fenecimento, com
o distrato imotivado, tudo em termos coletivos e não meramente individuais – a
negociação não seja elemento-chave, imprescindível e necessário.
Noutro giro, vale dizer, se a redação do dispositivo legal fosse outra, e ele de fato
afastasse a necessidade de prévia negociação coletiva, isso apenas conduziria, forço-
samente, ao reconhecimento de sua incompatibilidade com a Constituição Federal
e com os tratados internacionais firmados pelo Brasil .10

10 A essa conclusão se chegou na recente 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho,


realizada em Brasília pela Anamatra, na qual foi aprovado o seguinte enunciado: “57. Dispensa
coletiva: inconstitucionalidade. O artigo 477-A da CLT padece de inconstitucionalidade, além de
inconvencionalidade, pois viola os artigos 1º, III, IV, 6º, 7º, I, XXVI, 8º, III, VI, 170, CAPUT, III
e VIII, 193, da Constituição Federal, como também o artigo 4º da Convenção Nº 98, o artigo 5º

230
Esclareça-se que essa matéria, mais recentemente, foi afetada ao Tribunal Pleno
do TST, com os demais processos suspensos a seu respeito no âmbito trabalhista.11
De igual modo, sobre o mesmo assunto, já existe repercussão geral reconhecida pelo
Supremo Tribunal Federal, declarada antes da vigência da Lei n. 13.467/2017.
Assim, o novel art. 477-A da nova CLT colide frontalmente com a legislação correlata
mais moderna dos países-membros da União Europeia, como pode-se inferir a seguir.
Apenas importa ressaltar que foi editada no Brasil a Medida Provisória n. 936,
de 2020 (convertida na Lei n. 14.020/2020), que passou a autorizar a redução da jor-
nada de trabalho e do salário, ou a suspensão temporária do contrato de trabalho,
por meio de acordos individuais, em razão da pandemia de Covid-19, independente-
mente da anuência dos sindicatos da categoria. A questão foi submetida ao Supremo
Tribunal Federal, por meio da ADI n. 6.363, que em plenário manteve a eficácia da
medida provisória, revogando uma medida liminar outrora concedida pelo minis-
tro relator Ricardo Lewandowski, que entendia por sua inconstitucionalidade.

4.2 ∙ A SOLUÇÃO NA EUROPA


A Europa segue diretriz comum fixada para todos os países-membros da
União Europeia, de observância obrigatória, independentemente do seu direito
interno, de normas comunitárias. As dispensas coletivas no ordenamento jurí-
dico da União Europeia seguem diretrizes uniformes em todos os Estados que a
integram, de acordo com as Diretivas n. 75/129/CEE, de 17 de fevereiro de 1975,
n. 92/56/CEE, de 24 de junho de 1992, n. 98/59/CE, de 20 de julho de 1998, e n.
2002/14/CE, de março de 2002 – que se harmonizam com as regras da Convenção
n. 158 da OIT.12 Em geral, há fases de comunicação da dispensa coletiva aos repre-

da Convenção Nº 154 e o artigo 13 da Convenção Nº 158, todas da OIT. Viola, ainda, a vedação
de proteção insuficiente e de retrocesso social. As questões relativas à dispensa coletiva deverão
observar: A) O direito de informação, transparência e participação da entidade sindical; B) O dever
geral de boa-fé objetiva; E C) O dever de busca de meios alternativos às demissões em massa”.
11 Como a nova Lei n. 13.467/2017 passou a afastar a exigência de negociação coletiva em caso de
dispensa em massa no Brasil, tramita no Supremo Tribunal Federal o RE 999435, com repercussão
geral reconhecida (Tema 638). Foi proferida decisão liminar monocrática prolatada em sede de
correição parcial, garantindo a validade da norma (n. 1000393-87.2017.5.00.0000).
12 A Diretiva n. 98/59/CE do Conselho da União Europeia, de 20 de julho de 1998, assim dispõe:
“Artigo 2º 1. Sempre que tenciona efetuar despedimentos coletivos, a entidade patronal é
obrigada a consultar em tempo útil os representantes dos trabalhadores, com o objetivo de
chegar a um acordo. 2. As consultas incidirão, pelo menos, sobre as possibilidades de evitar ou de
reduzir os despedimentos coletivos, bem como sobre os meios de atenuar as suas consequências
recorrendo a medidas sociais de acompanhamento destinadas, nomeadamente, a auxiliar a
reintegração ou reconversão dos trabalhadores despedidos. Os Estados-membros podem prever
que os representantes dos trabalhadores possam recorrer a peritos, nos termos das legislações e/
ou práticas nacionais. Para que os representantes dos trabalhadores possam formular propostas
construtivas, o empregador deve, em tempo útil, no decurso das consultas: a) Facultar-lhes
todas as informações necessárias; e b) Comunicar-lhes, sempre por escrito: i) os motivos do
despedimento previsto, ii) o número e as categorias dos trabalhadores a despedir, iii) o número
e as categorias dos trabalhadores habitualmente empregados, iv) o período durante o qual se
pretende efetuar os despedimentos, v) os critérios a utilizar na seleção dos trabalhadores a
despedir, na medida em que as leis e/ou práticas nacionais deem essa competência ao empregador,

231
sentantes dos empregados (fundamento, número de trabalhadores atingido, prazo
para dispensa, cálculo de compensação), seguida de negociação (com fiscalização
pela Administração do Trabalho e possível presença de peritos) e posterior comu-
nicação de dispensa aos empregados.
A política trabalhista da União Europeia possui como objetivo reforçar a prote-
ção dos trabalhadores nos casos de dispensas coletivas, tendo em vista a necessidade
de um desenvolvimento equilibrado na Comunidade.
Tais diretivas, em resumo, estabelecem um procedimento prévio de consulta
às representações de trabalhadores, com a finalidade de chegar a um acordo para
evitar ou atenuar as consequências da dispensa e prever medidas sociais de acom-
panhamento, especialmente a ajuda para reciclagem dos trabalhadores atingidos.
Prescrevem, ainda, um procedimento de dispensa coletiva, a ser implementado
no prazo de trinta dias, a contar da notificação à autoridade pública, podendo, no
entanto, ser dispensada essa notificação segundo o direito interno de cada país ou
nas hipóteses em que a referida autoridade solicitar expressamente as informações
da empresa, assegurada “a faculdade dos Estados-membros de aplicar ou introduzir
disposições legais, regulamentares ou administrativas ou de permitir e incentivar a
aplicação de disposições convencionais mais favoráveis, para os trabalhadores” (art.
5º da Diretiva) (NASCIMENTO, 2009, p. 9).

4.3 ∙ A SOLUÇÃO DE PORTUGAL


Em Portugal, nos termos do art. 359, n. 1, do Código do Trabalho:
Considera-se despedimento coletivo a cessação de contratos de trabalho promo-
vida pelo empregador e operada simultânea ou sucessivamente no período de
três meses, abrangendo, pelo menos, dois ou cinco trabalhadores, conforme se
trate, respectivamente de microempresa ou de pequena empresa, por um lado,
ou de média ou grande empresa, por outro, sempre que aquela ocorrência dê
lugar a encerramento de uma ou várias secções ou estrutura equivalente ou a
redução do número de trabalhadores e seja determinada por motivos de mer-
cado, estruturais ou tecnológicos.
Importante destacar que Portugal, após constatar por meio dos dados esta-
tísticos disponíveis que as microempresas representavam mais de 80% de seu
tecido empresarial, nelas laborando quase 30% da mão de obra assalariada
naquele país, desenvolveu uma classificação tipológica das empresas laborais,
promovendo uma espécie de dimensionamento do Direito do Trabalho, de
forma a construir regimes laborais diversificados e adaptados à dimensão da
empresa na qual o trabalho é prestado.
O próprio Código do Trabalho português, no art. 91, distingue vários tipos de
empresas laborais tendo em vista seu critério ocupacional, ou seja, o número de tra-
balhadores empregados. Assim, o Código do Trabalho português procede à seguinte
classificação tipológica: microempresa (a que emprega menos de dez trabalhado-
res); pequena empresa (a que emprega de dez a menos de cinquenta trabalhadores);

vi) o método previsto para o cálculo de qualquer eventual indenização de despedimento que não
a que decorre das leis e/ou práticas nacionais”.

232
média empresa (a que emprega de cinquenta a menos de 250 trabalhadores); e
grande empresa (a que emprega 250 ou mais trabalhadores). Procurando minorar
as previsíveis dificuldades práticas suscitadas pela aplicação dessa classificação, o n.
2 do art. 100º esclarece que o número de trabalhadores será calculado com recurso
à média do ano civil antecedente, salvo no ano de início da atividade, caso em que
a determinação do número de trabalhadores se reporta ao dia da ocorrência do fato
que determina o respectivo regime (n. 3 do mesmo artigo).
O mecanismo da dispensa coletiva surge como um mecanismo de resposta a
situações de crise empresarial. Assim, o empregador que pretende promover a dis-
pensa coletiva precisa comunicar sua intenção à estrutura representativa dos traba-
lhadores, nos termos do art. 360, seguida de uma fase de negociação com objetivo
de buscar um acordo entre as partes (AMADO, 2019, p. 377).13
Importa ressaltar a ordem trazida pela legislação portuguesa. O item 1 do refe-
rido artigo expressa que a comunicação do despedimento deve ser direcionada à
comissão de trabalhadores ou, na sua falta, à comissão intersindical ou às comissões
sindicais da empresa representativas dos trabalhadores a abranger. E, inexistindo
tais representatividades, que se deve comunicar individualmente, por escrito, a
cada um dos trabalhadores a intenção de dispensa, os quais podem designar, de
entre eles, no prazo de cinco dias úteis a contar do recebimento da comunicação,
uma comissão representativa com o máximo de três ou cinco membros consoante o
despedimento abranja até cinco ou mais trabalhadores (item 2).
Ressalte-se, aqui, que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) já apreciou casos
em que, a despeito de não haver estruturas representativas, os empregados
também não promoveram a nomeação de uma comissão representativa. Em
tais circunstâncias, entendeu que as empresas não possuíam o dever de efe-
tuar a fase negocial diretamente com os trabalhadores que seriam despedidos.
Outrossim, considerou que apenas estruturas representativas estariam aptas a

13 “Artigo 360.º Comunicações em caso de despedimento coletivo. 1 - O empregador que pretenda


proceder a um despedimento coletivo comunica essa intenção, por escrito, à comissão de
trabalhadores ou, na sua falta, à comissão intersindical ou às comissões sindicais da empresa
representativas dos trabalhadores a abranger. 2 - Da comunicação a que se refere o número anterior
devem constar: a) Os motivos invocados para o despedimento coletivo; b) O quadro de pessoal,
discriminado por setores organizacionais da empresa; c) Os critérios para seleção dos trabalhadores
a despedir; d) O número de trabalhadores a despedir e as categorias profissionais abrangidas; e)
O período de tempo no decurso do qual se pretende efetuar o despedimento; f) O método de
cálculo de compensação a conceder genericamente aos trabalhadores a despedir, se for caso disso,
sem prejuízo da compensação estabelecida no artigo 366.º ou em instrumento de regulamentação
coletiva de trabalho. 3 - Na falta das entidades referidas no n.º 1, o empregador comunica a
intenção de proceder ao despedimento, por escrito, a cada um dos trabalhadores que possam ser
abrangidos, os quais podem designar, de entre eles, no prazo de cinco dias úteis a contar da receção
da comunicação, uma comissão representativa com o máximo de três ou cinco membros consoante
o despedimento abranja até cinco ou mais trabalhadores. 4 - No caso previsto no número anterior,
o empregador envia à comissão neste referida os elementos de informação discriminados no n.º 2.
5 - O empregador, na data em que procede à comunicação prevista no n.º 1 ou no número anterior,
envia cópia da mesma ao serviço do ministério responsável pela área laboral com competência
para o acompanhamento e fomento da contratação coletiva. 6 - Constitui contraordenação grave
o despedimento efetuado com violação do disposto nos nº 1 a 4 e constitui contraordenação leve o
efetuado com violação do disposto no n.º 5.”

233
uma discussão paritária na busca de um acordo sobre dimensão e sopesamento
de alternativas possível à dispensa.14-15-16
Pois bem. O processo principia com a comunicação inicial da intenção de despedir
e dos seus fundamentos endereçada à estrutura representativa dos trabalhadores. O
conteúdo obedece a um padrão fixado em lei (art. 360), em que deverá constar, dentre
outras informações, os fundamentos econômicos, financeiros e técnicos da intenção
de despedir e o número de trabalhadores visados, por categorias profissionais.
Durante um período de dez dias, que segue à informação, deve-se desenvolver
uma fase de negociação, nos termos do art. 361. Essa fase será assistida pelos servi-
ços da Administração do Trabalho, para efeito de controle preventivo de legalidade,
com poderes de conciliação (art. 362) (FERNANDES, 2019, p. 774/775).17

14 Ac. n. 381/12.3TTLSB.L1.S1 (Pinto Hespanhol): “Na ausência das estruturas representativas dos
trabalhadores a que se refere o n.º 1 do artigo 360.º do Código do Trabalho de 2009 e não sendo
designada a comissão ad hoc representativa dos trabalhadores abrangidos pelo despedimento
colectivo, aludida no n.º 3 do mesmo artigo, o empregador não é obrigado a promover a fase de
informações e negociação tal como se acha desenhada no artigo 361.º seguinte”.
Ac. n. 1222/10.1TTVNG-A.P1.S1 (Pinto Hespanhol): “Ora, o envio das informações complementares
justificativas da intenção de proceder ao despedimento colectivo, indicadas no n.º 2 do artigo 360.º,
às estruturas representativas dos trabalhadores previstas no n.º 1 do artigo 360.º e à comissão ad
hoc representativa dos trabalhadores abrangidos pelo despedimento a que alude o n.º 3 do artigo
360.º visa facilitar a obtenção de informações úteis sobre a projectada medida de despedimento
colectivo e a subsequente negociação com o empregador.
Na falta das ditas estruturas representativas dos trabalhadores, e posto que a constituição da comissão
ad hoc representativa dos trabalhadores a abranger pelo despedimento consubstancia um ónus, cujo
não exercício determina o afastamento do carácter obrigatório da fase de negociações, fica destituído
de sentido útil o envio da documentação indicada no n.º 2 do artigo 360.º aos trabalhadores abrangidos,
sendo que, então, a explicitação dos motivos justificativos do despedimento fica reservada para a
decisão final do despedimento a comunicar a cada um dos trabalhadores e ao ministério responsável
pela área laboral [artigo 363.º, n.os 1 e 3, alínea a], pelo que, neste contexto, o não envio, a cada um
dos trabalhadores a despedir, das informações complementares mencionadas no n.º 2 do artigo 360.º,
bem como a não promoção da fase de informações e negociação tal como se encontra desenhada
no artigo 361.º, não ofende os princípios constitucionais da segurança no emprego e da proibição
dos despedimentos sem justa causa, consagrados no artigo 53.º da Constituição, visto que ainda
são compatíveis com as mencionadas garantias constitucionais, havendo, além disso, fundamento
material para a adopção de um tal regime jurídico”.
15 Ainda de acordo com o STJ, como os trabalhadores seriam informados dos motivos do
despedimento não haveria violação dos princípios constitucionais de isonomia, segurança no
emprego e proibição dos despedimentos sem justa causa.
16 Nos dizeres de Pedro Furtado Martins, “nada impede o empregador de promover uma negociação
direta com os trabalhadores abrangidos pelo despedimento, convocando-os para uma reunião.
Nesta eventualidade, desenvolver-se-á uma negociação facultativa, na qual o Ministério do
Trabalho não participará, uma vez que entende não dever fazê-lo quando não exista uma das
estruturas de representação previstas na lei” (MARTINS, 2012, p. 320).
17 “Art. 361.º Informações e negociação em caso de despedimento coletivo. 1 - Nos cinco dias
posteriores à data do ato previsto nos n.º 1 ou 4 do artigo anterior, o empregador promove uma
fase de informações e negociação com a estrutura representativa dos trabalhadores, com vista
a um acordo sobre a dimensão e efeitos das medidas a aplicar e, bem assim, de outras medidas
que reduzam o número de trabalhadores a despedir, designadamente: a) Suspensão de contratos
de trabalho; b) Redução de períodos normais de trabalho; c) Reconversão ou reclassificação
profissional; d) Reforma antecipada ou pré-reforma.

234
No que se refere aos motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos, o item 2 do
mesmo artigo informa que se trata de motivos definidos em moldes bastante amplos e
indeterminados, que revelam a especial vocação do despedimento coletivo para fazer
face a situações de crise da empresa que impliquem a reestruturação ou o redimensio-
namento desta, bem como a respectiva orientação estratégica no mercado.
Observa-se, destarte, que o despedimento coletivo é visto aos olhos dos países-
-membros da União Europeia como um mecanismo de resposta a situações de crise
empresarial, de forma a garantir a viabilidade econômica e financeira da empresa,
ou ainda como um instrumento utilizado para prevenir a crise empresarial de sorte
a assegurar que a empresa permaneça saudável e viva.
De acordo com João Leal Amado (2016, p. 326-327), em Portugal, para promo-
ver o despedimento coletivo as empresas devem observar um procedimento dis-
tinto das dispensas individuais. Assegura o autor que “o empregador que pretenda
promover um despedimento coletivo deve comunicar esta intenção à estrutura
representativa dos trabalhadores, nos termos do art. 360 do Código de Trabalho”,
seguindo-se uma fase de informações e negociação “com vista a um acordo sobre
a dimensão e efeitos das medidas a aplicar e, bem assim, de outras medidas que
reduzam o número de trabalhadores a despedir” (art. 361 do mesmo Código de
Trabalho), negociação esta “em que participará o serviço competente do ministério
responsável pela área laboral (art. 362)”.
Em ocorrendo o despedimento coletivo, o trabalhador fará jus a uma compen-
sação financeira, na forma disposta no art. 366. Chama-se a atenção à presunção de
aceitação do despedimento coletivo quando o trabalhador aceita a referida compen-
sação; a qual somente seria ilidida caso este, simultaneamente, entregue ou coloque
à disposição do empregador o referido montante (itens 4, 5).
Eventual ilegalidade será discutida apenas posterior e judicialmente; sendo
certo que predomina a análise de aspectos formais, processuais, diante do legal-
mente previsto (FERNANDES, 2019, p. 772).18 Todavia, é certo que a dispensa pode
ser entendida como ilícita se não houver sequer nexo entre o motivo/fundamento
invocado e a relação com as funções exercidas pelos que tiveram seus contratos
cessados. Nesse sentido, o STJ já entendeu que
o controlo judicial da validade do despedimento coletivo implica, por parte do
Tribunal, não só a verificação objetiva da motivação invocada para justificar a

Art. 362.º Intervenção do ministério responsável pela área laboral. 1 - O serviço competente do
ministério responsável pela área laboral participa na negociação prevista no artigo anterior, com
vista a promover a regularidade da sua instrução substantiva e procedimental e a conciliação dos
interesses das partes. 2 - O serviço referido no número anterior, caso exista irregularidade da
instrução substantiva e procedimental, deve advertir o empregador e, se a mesma persistir, deve
fazer constar essa menção da ata das reuniões de negociação.”
18 Entrementes, conquanto pouco frequentes, existem decisões de inutilizações de despedimentos
coletivos. Cita-se o Ac. STJ 19/11/2008-P. 08S1873 (Sousa Peixoto): “O encerramento temporário
de um hotel para obras não constitui fundamento de despedimento colectivo”. E o Ac. STJ
13/01/2010-P 15275/09.1T2SNT.SI (Vasques Dinis), no mesmo sentido: “Apurando-se que a
actividade desenvolvida pela Autora continuou a existir, mesmo após o encerramento das
mencionadas instalações, é de reputar de lícito o despedimento de que esta veio a ser alvo, com
fundamento na incongruência entre a motivação comum invocada para justificar o despedimento
colectivo e a individualização do concreto despedimento da Autora”.

235
redução global dos postos de trabalho, mas também a verificação da idoneidade
de tal motivação para, em termos de razoabilidade, determinar a extinção dos
concretos postos de trabalho.19

4.4 ∙ A SOLUÇÃO DA ITÁLIA


As normas da União Europeia refletiram-se sobre o Direito na Itália, com a Lei n.
223, de 23 de julho de 1991, no dizer de Luisa Galantino, em sua obra Diritto del lavoro
(1994), “substancialmente atuativa da diretoria comunitária 75/129, de 17 de fevereiro
de 1975, sucessivamente modificada pela diretiva 92/56, de 24 de junho de 1992”.
Mostra, a citada juslaborista, que as dispensas coletivas, no direito do seu país,
submetem-se a um procedimento sindical, judicial e público.
A fase sindical tem por finalidade a consecução de um acordo coletivo com base no
qual a questão será resolvida. Não ocorrendo o entendimento, o empregador dará o aviso
prévio aos trabalhadores, levando em conta, para efeito de organização da dispensa,
certos fatores pessoais do trabalhador, como os encargos familiares e a antiguidade.
O controle judicial tem por finalidade julgar eventual impugnação sobre regulari-
dade do processo, e, em caso de concluir-se que não estão presentes as exigências para
redução do pessoal, a consequência pode consistir na anulabilidade de cada dispensa.
A intervenção pública resulta da atuação preventiva do Estado quanto à redução
do pessoal e à promoção de medidas de natureza previdenciária, de desocupação
dos trabalhadores, inclusive a promoção de cooperativas de produção.

4.5 ∙ A SOLUÇÃO DA FRANÇA


Na França, também é lícita a dispensa coletiva por motivos econômicos. A lei de
1975 já autorizava a referida dispensa “por motivo econômico de ordem conjuntural
ou estrutural”; e a lei de 1989 definia dispensa econômica como a
efetuada por um empregador por um ou muitos motivos não inerentes à pes-
soa do empregado, resultante de uma supressão ou transformação do emprego
ou de uma modificação substancial do contrato de trabalho, consequente

19 Ac. STJ 13/01/2010 - P. 15275/09.1T2SNT – (Vasques Dinis). A mesma linha de sindicância pode ser
vista em outros acórdãos, como no Ac. STJ 27/06/2007-P.07S1147: “Na apreciação da procedência dos
fundamentos invocados para o despedimento colectivo, o tribunal deve proceder, à luz dos factos
provados e com os invocados, mas também a verificação da existência de um nexo entre aqueles
fundamentos e o despedimento, por forma a que, segundo juízos de razoabilidade, tais fundamentos
sejam aptos a justificar a decisão de redução de pessoal através do despedimento colectivo”. Também
no Ac.1222/10.1TTVNG-A.P1.S1: “Na apreciação da procedência dos fundamentos invocados para
o despedimento coletivo, o tribunal deve proceder, à luz dos factos provados e com respeito pelos
critérios de gestão da empresa, não só ao controlo da veracidade dos fundamentos invocados, mas
também à verificação da existência de um nexo entre aqueles fundamentos e o despedimento, por
forma a que, segundo juízos de razoabilidade, tais fundamentos sejam aptos a justificar a decisão
de redução de pessoal através do despedimento coletivo. 3. Tendo-se apurado que não existe nexo
de causalidade (relação causa-efeito) entre a poupança de custos derivados do despedimento e as
alegadas necessidades de saneamento económico e financeiro do empregador, e que este, apesar de
invocar como fundamento do despedimento o «desequilíbrio económico-financeiro» e a «redução
de pessoal por motivos estruturais», procedeu, em simultâneo, à contratação de novos trabalhadores,
cujos encargos superam os dos primeiros, mostram-se improcedentes os fundamentos invocados
para o despedimento coletivo, que é de considerar ilícito”. Além de outros, como Ac. 7031/16.7TFNC.
L1.S1; Ac. 3020/09.6TTLSB-A.L1S1, que podem ser acessados nas bases de dados jurídicas da DGSI.
236
notadamente das dificuldades econômicas ou de transformações tecnológicas.
(Código do Trabalho, art. 1.321-1).
Assim, a Diretiva da União Europeia de fevereiro de 1975 não trouxe modificações.
O sistema francês, desde a década de 70 do séc. XX, resumia as dispensas em três
categorias: as dispensas individuais (lei de 1973), as grandes dispensas coletivas, que
pressupõem um procedimento de entendimentos (lei de 1975), e as pequenas dispensas
coletivas, assim consideradas aquelas que afetam de dois a nove empregados, acrescen-
tando que a reforma legislativa de 1986 e 1989 deu uma certa unidade ao sistema.
Para dispensas decorrentes de motivos econômicos, tecnológicos ou de reorgani-
zação da empresa, é obrigatório um procedimento, que tem início com a elaboração,
pela empresa, de um plano de dispensa, a reunião com os representantes do pessoal,
a participação de um perito contábil remunerado pela empresa para esclarecer ques-
tões técnicas sobre a situação econômica da empresa, um período de reflexão previsto
no acordo nacional interprofissional de segurança do emprego, o envio de cartas de
dispensa após o decurso do período, medidas sociais de acompanhamento aos traba-
lhadores envolvidos (que podem prever diversas alternativas e providências paralelas,
como redução de jornada, trabalho em tempo parcial, conversão por acordo da dis-
pensa em suspensão do contrato de trabalho e por um período que pode ir de quatro
a dez meses e com pagamento de 65% dos salários pelo Fundo Nacional de Emprego,
reciclagem profissional, ajuda para a procura de novo emprego, preservação dos mais
idosos, aviso-prévio mais prolongado, que pode chegar a dois meses) e a participação
do Estado por meio da autoridade administrativa.
Atualmente, a participação administrativa se restringe a apontar irregularida-
des no processo. A necessidade dessa autorização foi suprimida em 1986, de modo
que o sentido que na atual legislação está presente é o de mero acompanhamento
do processo, sendo, fundamentalmente, uma negociação. Por sua vez, o controle
judicial do Conseil de prud’hommes se refere mais à regularidade do processo e à
garantia de indenizações do que à falta de causa real e séria para a dispensa ou de
ausência dos motivos econômicos ou estruturais da empresa.

5 ∙ CONCLUSÃO
O cenário fático da Quarta Revolução Industrial com a presença disruptiva de
tecnologias inovadoras também revela possível substituição de postos de trabalho
de imensa parte da população ativa por máquinas inteligentes.
Somada a isso, em tempos de crises econômicas em um contexto globalizado, uma
das primeiras consequências constatadas é a despedida maciça de trabalhadores.
Juridicamente, o despedimento coletivo se configura quando determinado
número ou percentual de empregados é dispensado, num lapso temporal específico,
por motivo de caráter objetivo comum, sem previsão de substituição ou recontrata-
ção de pessoal, de forma a pressupor a manutenção do empreendimento econômico.
Em geral, ocorrem as seguintes fases antes da dispensa coletiva: a comunica-
ção pela empresa da dispensa massiva aos representantes dos empregados (com
os fundamentos objetivos, o número de trabalhadores atingido, o prazo para dis-
pensa, o cálculo de compensação), seguida de negociação (com fiscalização pela
Administração do Trabalho e possível presença de peritos) e posterior comunicação
de dispensa aos empregados.
237
A normativa internacional da OIT, as diretivas da União Europeia e várias das
legislações nacionais dos países falam da necessidade de comprovação de reais e
relevantes motivos econômicos, tecnológicos, estruturais ou análogos para ocorrer a
dispensa coletiva, não justificando a mera maximização de lucros. Para tanto, devem
ser previamente comunicadas as associações autônomas coletivas dos trabalhado-
res, verdadeiros porta-vozes dos representados, que buscarão meios de conciliar os
interesses da classe, minimizando os prejuízos sociais gerados, e, até mesmo, formas
alternativas à dispensa, como suspensão de contratos de trabalho; redução de jornada;
reconversão; reclassificação profissional; reforma antecipada; e reciclagem.
A autoridade administrativa do Estado participa apenas para aferir a validade
do procedimento adotado. Também é possível impugnação pela via judicial, que,
como regra geral, verificará a legalidade da dispensa coletiva.
Nesse sentido, o presente artigo não pretende estabelecer conclusões definitivas
ou expor uma fórmula mágica apta a superar as vicissitudes que emanam da situa-
ção internacional, mas, tão somente, demonstrar a necessidade inarredável de que
sejam resguardados os direitos coletivos de participação do duplo canal de repre-
sentação dos empregados nas dispensas coletivas, tendo em vista o trabalho como
valor social, jurídico e econômico.

REFERÊNCIAS
ADAMS, Zoe; BISHOP, Louise; DEAKIN, Simon; FENWICK, Colin; GARZELLI, Sara
Martinsson; RUSCONI, Giudy. The economic significance of laws relating to employment
protection and different forms of employment: analysis of a panel of 117 countries, 1990-
2013. International Labour Review, Geneva, v. 158, issue 1, p. 1-35, March 2019. Disponível
em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/ilr.12128. Acesso em: 20 mar. 2020.
ALMEIDA, Renato Rua de. Subsiste no Brasil o direito potestativo do empregador nas
despedidas em massa? Revista LTr: legislação do trabalho, São Paulo, v. 73, n. 4, p. 391-
393, abr. 2009.
AMADO, João Leal. Contrato de trabalho. Noções básicas. Coimbra: Almedina, 2016.
AMADO, João Leal. Contrato de trabalho. Noções básicas. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2019.
CANOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada.
Artigos 1.º a 107.º. 4. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2007. v. I.
DEAKIN, Simon; MALMBERG, Jonas; SARKAR, Prabirjit P. How do labour laws affect
unemployment and the labour share of national income? The experience of six OECD
countries, 1970-2010. International Labour Review, Geneva, v. 153, issue 1, p. 1-27,
March 2014.
FERNANDES, António Monteiro. Direito do trabalho. 19. ed. Coimbra: Almedina, 2019.
GALANTINO, Luisa. Diritto del lavoro. Torino: G. Giappichelli, 1994.
GAMBOGI, Luís Carlos Balbino. Direito: razão e sensibilidade. As instituições na herme-
nêutica jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
GOMES, Júlio Manuel Vieira. Direito do trabalho. Coimbra: Almedina, 2011.
MARTINS, Pedro Furtado. Cessação do contrato de trabalho. 3. ed., revista e actualizada.
Cascais: Princípia, 2012.

238
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Crise econômica, despedimentos e alternativas
para manutenção dos empregos. Revista LTr: legislação do trabalho, São Paulo, v. 73,
n. 1, p. 7-16, jan. 2009.
PAGANI, Marcella. Sistema recursal das ações coletivas. In: PIMENTA, José Roberto
Freire; BARROS, Juliana Augusta Medeiros; FERNANDES, Nadia Soraggi (org.). Tutela
metaindividual trabalhista: a defesa coletiva dos direitos dos trabalhadores em juízo. São
Paulo: LTr, 2009. p. 222-236.
PANCOTTI, José Antonio. Aspectos jurídicos das dispensas coletivas no brasil. Revista
LTr: legislação do trabalho, São Paulo, v. 74, n. 5, p. 529-541, maio 2010.
PIRES, Eduardo Soto. Demissões coletivas: lições para a sua regulamentação futura pelo
sistema jurídico brasileiro. Estudo do modelo regulatório espanhol. São Paulo: LTr, 2012.
SANTOS, Orlando Gomes dos. Dispensa coletiva na reestruturação da empresa. Aspectos
jurídicos do desemprego tecnológico. São Paulo: LTr, 1974.
SILVA, Antônio Álvares da. Dispensa coletiva e seu controle pelo Judiciário. Revista LTr:
legislação do trabalho, São Paulo, v. 73, n. 6, p. 650-670, jun. 2009.
SOARES, Marcele Carine dos Praseres. O dever de motivação na despedida coletiva. 2014.
Dissertação (Mestrado em Direito do Trabalho e da Seguridade Social) – Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível em: https://teses.usp.
br/teses/disponiveis/2/2138/tde-30082017-144038/publico/Dissertacao_MarceleSoares_
Final.pdf. Acesso em: 20 mar. 2020.
SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Proteção contra a dispensa arbitrária e aplicação da Con­
venção 158 da OIT. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, v. 30, n. 116, p. 110-125,
out./dez. 2004.
VIANA, Márcio Túlio. Trabalhando sem medo: alguns argumentos em defesa da Con­
ven­ç ão n. 158 da OIT. Revista Trabalhista Direito e Processo, São Paulo, ano 7, n. 25,
p. 39-48, 2008.

239
NOVOS CONTORNOS DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA
JURÍDICA APLICADO AO DIREITO ADMINISTRATIVO
Fernanda Marinela1

Sumário: 1 Introdução. 2 A segurança jurídica como direito fundamental. 3 O


valor jurídico no ordenamento pátrio e os contornos clássicos aplicados ao direito
administrativo. 4 Novos contornos do princípio da segurança jurídica aplicado ao
direito administrativo. 5 Considerações finais.

1 ∙ INTRODUÇÃO
A problemática da segurança nas relações jurídicas é percebida em diver-
sos momentos da história da vida em sociedade, seja entre indivíduos, seja em
face da Administração Pública, com maior ou menor intensidade. Não à toa,
Canotilho (1991, p. 384) aponta que este princípio constituiria uma das vigas
mestras da ordem jurídica.
Os valores inerentes ao princípio da segurança jurídica foram manifestos
inicialmente no âmbito privado e, construindo um panorama histórico, pode-se
encontrá-lo desde o Estado Absolutista, perpassando os regimes autoritários, per-
petuando-se até os tempos hodiernos, tudo em razão das raízes do direito romano
e seu legado civilista. Dos frutos desse império, destaque para a noção de fides e as
actiones bonae fidei que inspiraram a regra da boa-fé objetiva.
No que tange ao direito europeu, frisa-se, em relação à segurança jurídica, a
construção doutrinária e jurisprudencial referente à possibilidade de manutenção no
mundo jurídico de atos administrativos inválidos ou ilegais e a proteção da confiança.
Nesse contexto europeu, merece destaque a Alemanha, primeira a dar assento
constitucional ao princípio da segurança jurídica por intermédio de interpretação
do Tribunal Federal Constitucional em 1976 (CALMES, 2001, p. 11, 14-16), mesmo
ano em que integrou a Lei alemã de Processo Administrativo que o deu intenso
tratamento, notadamente quanto à anulação e a revogação dos atos administra-
tivos. Imperioso acentuar que o leading case que deu início a chamada “marcha
triunfal” (Siegeszug) da valorização deste princípio discutia a anulação de pensão
concedida à viúva de servidor público – matéria administrativista. Além disso, a
tese de julgamento apontava a íntima relação entre o conceito de segurança jurí-
dica e a proteção da confiança.
No final do século XX, com fortes influências da constituição de Weimar e
do direito alemão, a Constituição Cidadã de 1988 trouxe, em seu bojo, norma

1 Pós-graduada em Direito das Obrigações pela USP. Conselheira no CNMP. Conselheira Federal da
OAB Nacional. Professora de Direito Administrativo.

241
que protege o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito contra
alterações legislativas (art. 5º, XXXVI), 2 atendendo ao comando do princípio da
segurança jurídica, apesar de não expresso. Outrossim, elencando os princípios
que norteiam a Administração Pública, a Lei n. 9.784/1990, em seu artigo 2º, 3
alistou o princípio da segurança jurídica.
Não obstante isto, diversas foram as evoluções deste princípio no direito bra-
sileiro, haja vista sua natureza de norma com tessitura aberta, cujo valor jurídico
está em constante desenvolvimento e construção. Assim, o presente artigo tem
por objetivo apresentar os novos contornos do princípio da segurança jurídica
aplicado ao Direito Administrativo.

2 ∙ A SEGURANÇA JURÍDICA COMO DIREITO FUNDAMENTAL


Inexiste discussão quanto à importância do princípio da segurança jurídica na
construção e manutenção da democracia, posto que através dele vislumbramos ele-
mento de edificação da justiça, da preservação e estabilidade das relações jurídicas,
proteção à confiança, enfim, pedra basilar na estruturação de um direito ao pro-
cesso legítimo. Nesse sentindo, Sarlet e Marinoni (2017, p. 916) afirmam que
o direito à segurança jurídica no processo constitui direito à certeza, à estabili-
dade, à confiabilidade e à efetividade das situações jurídicas processuais. Ainda,
a segurança jurídica determina não só segurança no processo, mas também
segurança pelo processo.
Fala-se, portanto, sobre conceito intrínseco a própria concepção de justiça material.4
Destarte, pela análise em sentido mais estrito, compreende-se a segurança jurí-
dica como um direito fundamental em razão da positivação de seus componentes
no inciso XXXVI, do art. 5º da Constituição de 1988 – direito adquirido, coisa jul-
gada e ato jurídico perfeito –, entretanto, mediante estudo da coesão das normas
constitucionais como um todo, nota-se que este princípio se constitui um direito
à segurança, ainda que de uma perspectiva unicamente jurídica. Nesse sentido,
este estudo defende a existência de ligação direta com o princípio mestre da nossa
Carta Magna, o princípio da dignidade humana, posto que se relaciona diretamente
com a autonomia de cada indivíduo,5 na medida em que “significa o poder de fazer
valorações morais e escolhas existenciais sem imposições externas indevidas”
(BARROSO, 2017, p. 290), obviamente conduzido pelo direito à certeza das regras
impostas, tal como as sanções previstas em razão do valor comunitário.

2 “Art. 5º [...] XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”
3 “Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança
jurídica, interesse público e eficiência.”
4 “Em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no
sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria ideia de justiça material”
(MENDES et al., 2016, p. 395).
5 “Em uma concepção minimalista, dignidade humana identifica (1) o valor intrínseco de todos os
seres humanos, assim como (2) a autonomia de cada indivíduo, (3) limitada por algumas restrições
legítimas impostas a ela em nome de valores sociais ou interesses estatais (valor comunitário). [...]”
(BARROSO, 2017, p. 288).

242
Assim, podemos entender a segurança jurídica como um direito de defesa no
processo e pelo processo, mas também como um direito fundamental que visa res-
guardar aspectos do princípio da dignidade da pessoa humana.

3 ∙ O VALOR JURÍDICO NO ORDENAMENTO PÁTRIO E OS CONTORNOS


CLÁSSICOS APLICADOS AO DIREITO ADMINISTRATIVO
Como dito, o princípio da segurança jurídica é norma fundamental no ordena-
mento pátrio, considerada pedra basilar do Estado de Direito ao lado do princípio
da legalidade, conforme doutrina de Almiro do Couto e Silva (2004, p. 271-316), em
estudo que aponta a progressão da importância deste princípio e das questões que
abarca em relação ao Direito Administrativo.
Outrossim, os princípios são normas genéricas, de tessitura aberta, cujos valor
e dimensão de peso são fixados pelo intérprete em face das questões que orientam.6
Portanto, desdobram-se em diversos mandamentos de otimização e inspiram nor-
mas. Neste sentido, Luís Roberto Barroso (2002, p. 49), ministro do STF, afirma que
o princípio da segurança jurídica
encerra valores e bens jurídicos diversos [...] açambarca em seu conteúdo concei-
tos fundamentais para a vida civilizada, como a continuidade das normas jurídi-
cas, a estabilidade das situações constituídas e a certeza jurídica que se estabelece
sobre situações anteriormente controvertidas.
Consoante o exposto, a doutrina decompõe o princípio da segurança jurídica
em dois aspectos: aspecto objetivo, da estabilidade das relações jurídicas, e aspecto
subjetivo, da boa-fé e proteção à confiança, o que explica a relação esposada origina-
riamente no direito alemão.
Essas ilações doutrinárias nortearam as clássicas conotações práticas do prin-
cípio da segurança jurídica presentes no direito brasileiro, quais sejam: a) regra
do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, já citada; b) regras sobre pres-
crição, decadência e preclusão; c) regras que fixam prazo para a propositura de
recursos nas esferas administrativa e judicial, bem como para que sejam tomada
as devidas providências; d) regras que fixam prazo para que sejam revistos os atos
administrativos; e) instituição da súmula vinculante, cujo objetivo, expresso no
§ 1º do art. 103-A7 da Constituição, é o de afastar controvérsias que gerem “grave
insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”;

6 “Ensina Dworkin que os princípios, de seu lado, não desencadeiam automaticamente as conse­
quências jurídicas previstas no texto normativo pela só ocorrência da situação de fato que o texto
descreve. Os princípios têm uma dimensão que as regras não possuem: a dimensão do peso [...]”
(MENDES et al., 2016, p. 73).
7 “Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão
de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar
súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação
aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas
federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma
estabelecida em lei. § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de
normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre
esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação
de processos sobre questão idêntica. [...].”

243
f) previsão da sistemática de resolução de demandas repetitivas, que também tem
o objetivo expresso no art. 976, inciso II,8 do Código de Processo Civil de proteger
a isonomia e a segurança jurídica; g) regra insculpida no art. 927, especialmente
§§ 3º e 4º,9 que tratam da modulação de efeitos e observância da segurança jurídica
em casos de alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em
julgamento de casos repetitivos, jurisprudência dominante do STF e dos tribunais
superiores; h) a Lei n. 9.868/1999, art. 27,10 que estabeleceu normas sobre a ação
declaratória de constitucionalidade e a ação direta de inconstitucionalidade e a Lei
n. 9.882/1999, art. 11,11 que instituiu a arguição de descumprimento de preceito
fundamental, ambas possibilitam a modulação de efeitos das respectivas decisões
em atendimento a segurança jurídica.
Volvendo o foco para o Direito Administrativo, os comandos normativos
gerais citados, inspirados pelo princípio da segurança da jurídica, referem-se
às principais fontes jurídicas deste ramo do Direito, que são, em suma, legais
– abarcando toda espécie de instrumento normativo – e jurisprudenciais – con-
substanciadas pelos entendimentos cristalizados em súmulas, súmulas vincu-
lantes, repercussões gerais, repetitivos e afins. Nisto cingem-se a relevância
deste princípio e a relação direta com o princípio da legalidade estrita do regime
jurídico administrativo.
Entre as fontes legais, a expressão normativa clássica do princípio da segu-
rança jurídica encontra-se na Lei n. 9.874/1999, diploma legal que trata do
Processo Administrativo no âmbito federal. Tal diploma insere no rol de prin-
cípios presente em seu art. 2º, aos quais a Administração Pública se submete, a
segurança jurídica.

8 “Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver,
simultaneamente: I – efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma
questão unicamente de direito; II – risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.”
9 “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em
controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os
acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas
e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das
súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de
Justiça em matéria infraconstitucional; [...] § 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência
dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de
julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse
social e no da segurança jurídica. § 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência
pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de
fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da
proteção da confiança e da isonomia. [...].”
10 “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de
segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por
maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela
só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”
11 “Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de
descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de
excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus
membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de
seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

244
Outros desdobramentos também foram previsto neste diploma legal. No inciso
XIII12 do parágrafo único do art. 2º, veda-se a aplicação a fatos pretéritos de nova
interpretação da norma jurídica.
Adiante, no art. 54,13 criou-se o prazo preclusivo ou decadencial do direito
de a Administração Pública invalidar seus atos administrativos de que decorram
efeitos favoráveis para os destinatários, fixado em cinco anos, contados da data
em que foram praticados, salvo comprovada má-fé, e, em se tratando de efeitos
patrimoniais contínuos, esclarece o § 1º que o “prazo de decadência contar-se-á da
percepção do primeiro pagamento”.
Em que pesem tais previsões normativas expressas, que reforçam a obediência
ao princípio da segurança jurídica, não se pode olvidar que a práxis jurídica brasi-
leira não corresponde aos mandamentos meramente principiológicos. Tal dificul-
dade é presente, mormente, no âmbito do Direito Administrativo, principalmente
em razão da discricionariedade administrativa do agente público.
Constatam-se então na atualidade novas normas que exigem do agente público
a observância da segurança jurídica no exercício do seu múnus público, realce para
a Lei n. 13.65/2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro
(Decreto-Lei n. 4.657/1942), e o Decreto n. 9.830/2019, que a regulamenta.

4 ∙ NOVOS CONTORNOS DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA


APLICADO AO DIREITO ADMINISTRATIVO
A Lei n. 13.655 é datada de 25 de abril de 2018 e foi chamada pelos juristas de
“lei da segurança jurídica” devido às alterações que realizou na Lei de Introdução
às Normas do Direito brasileiro (Decreto-Lei n. 4.657/1942), incluindo onze novos
artigos, que apontam a observância da segurança jurídica, mas ressaltam-se os artigos
21, 23, 24 e 30. Ênfase para a previsão expressa da aplicação destas orientações aos
órgãos de controle como Tribunal de Contas, Ministério Público e Poder Judiciário.
Com o intuito de facilitar a aplicação destes artigos, a Presidência da República, no
dia 10 de junho de 2019, editou o Decreto n. 9.830 e, principalmente no seu Capítulo
V - Da Segurança Jurídica na Aplicação das Normas, apontou comandos essenciais.
O art. 30 da nova Lei é taxativo ao estabelecer às autoridades públicas o dever
de aplicar as normas com maior atendimento possível aos comandos do prin-
cípio da segurança jurídica, neste caso mormente em seu aspecto objetivo. Os
meios indicados para atingir a finalidade da nova norma orientam para a maior
padronização possível das manifestações da administração pública, conferindo-
-as inclusive com caráter vinculante:
Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurí-
dica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas

12 “Art. 2º [...] XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o
atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.”
13 “Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos
favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados,
salvo comprovada má-fé. § 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência
contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.”

245
administrativas e respostas a consultas. Parágrafo único. Os instrumentos pre-
vistos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou
entidade a que se destinam, até ulterior revisão.
Esse dever é reiterado no art. 1914 do Decreto regulamentar, mas há orientações
que merecem ressalva. Entre as espécies normativas que podem ser criadas pelas
autoridades públicas com efeito vinculante aos seus órgãos, o Decreto especifica
particularmente Enunciados (art. 23) e Orientações Normativas (art. 22).
A resolução das controvérsias jurídicas oriundas da interpretação destas normas
administrativas vinculantes compete a Advocacia Geral da União (art. 22, § 1º),
cujos Pareceres, Súmulas, Consultas e Enunciados prevalecem sobres os demais
semelhantes (art. 20, § 2º), sejam ou não elaborados nos moldes dos arts. 40 e 4115 da
Lei Complementar n. 73/1993.
No que se refere à revisão de ato na esfera administrativa, expressando princi-
palmente o aspecto objetivo da segurança jurídica, o art. 24 encerra a proibição da
retroatividade de orientação nova no exercício da autotutela:
Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto
à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja pro-
dução já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época,
sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se decla-
rem inválidas situações plenamente constituídas.
Prima-se pela observância das orientações gerais da época da edição do ato revi-
sado, as quais, segundo o parágrafo único do citado artigo, são as interpretações
e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência
judicial ou administrativa majoritária, bem como o costume administrativo.
Coaduna-se com esta norma o dever de transparência insculpido no art. 24 do
decreto em debate, que prevê o dever dos órgãos públicos de manterem atualiza-
dos em seus sítios eletrônicos as normas complementares, orientações normativas,
súmulas e enunciados a que se referem os novos artigos da LINDB.
Os arts. 21 e 23 também tratam de revisão do ato na seara administrativa e, acom-
panhando especialmente os comandos subjetivos do princípio da segurança jurídica,
exigem uma avaliação das consequências por parte do agente público, inclusive a indi-
cação de condições e regime de transição para regularização, tal qual certa modulação
dos efeitos, expressão normativa clássica da segurança jurídica, observe-os:
Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decre-
tar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá

14 “Art. 19. As autoridades públicas atuarão com vistas a aumentar a segurança jurídica na aplicação
das normas, inclusive por meio de normas complementares, orientações normativas, súmulas,
enunciados e respostas a consultas. Parágrafo único. Os instrumentos previstos no caput
terão caráter vinculante em relação ao órgão ou à entidade da administração pública a que se
destinarem, até ulterior revisão.”
15 “Art. 40. Os pareceres do Advogado-Geral da União são por este submetidos à aprovação do Presidente
da República. § 1º O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula
a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento. § 2º O
parecer aprovado, mas não publicado, obriga apenas as repartições interessadas, a partir do momento
em que dele tenham ciência. Art. 41. Consideram-se, igualmente, pareceres do Advogado-Geral da
União, para os efeitos do artigo anterior, aqueles que, emitidos pela Consultoria-Geral da União,
sejam por ele aprovados e submetidos ao Presidente da República.”

246
indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. Parágrafo
único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar
as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e
sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus
ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.
Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer
interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado,
impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever
regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicio-
namento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente
e sem prejuízo aos interesses gerais.

5 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo exposto, nota-se que a segurança jurídica concentra em seu conceito e des-
dobramentos fundamento irrenunciável ao Estado Democrático de Direito, caso
não divergente do ordenamento pátrio, pois
o direito brasileiro propõe-se a ensejar certa estabilidade, um mínimo de cer-
teza na regência da vida social e a segurança jurídica coincide com uma das
mais profundas aspirações do homem: a da segurança em si mesma. (MELLO,
2008, p. 124-125).
O desenvolvimento do valor jurídico do princípio da segurança jurídica apli-
cado ao Direito Administrativo é notório e, como observado na Lei n. 13.655/2018,
persegue a busca do legislador de conformar a atuação do agente público ao res-
peito a estabilidade das relações jurídicas e a proteção da confiança. Apesar de
também reafirmar normas clássicas, as novas balizas a segurança jurídica corres-
pondem a um progresso a seara administrativista, tornando-a um objetivo taxa-
tivamente confessor, essencial ao cumprimento efetivo do múnus público. Balizas
estas que, apesar de expressamente positivadas, também possuem caráter princi-
piológico com tessitura relativamente aberta, apontando para novas valorizações
interpretativas que deverão sopesar a eficiência da pragmática e o atendimento da
legalidade estrita administrativa.

REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
funda­mentais e a construção do novo modelo. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito consti­tu­
cional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
CALMES, Sylvia. Du principe de la protection de la confiance légitime em droit allemand,
communautaire et français. Paris: Dalloz, 2001.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1991.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O STJ e o princípio da segurança jurídica. Revista do
Advogado, São Paulo, ano XXXIX, n. 141, p. 160-166, maio 2019. Disponível em: https://
www.migalhas.com.br/depeso/302189/o-stj-e-o-principio-da-seguranca-juridica.
Acesso em: 25 mar. 2020.

247
MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de
direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 18. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
MENDES et al. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
SILVA, Almiro do Couto e. Princípio da segurança jurídica no direito administrativo
brasileiro. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Campilongo Celso Fernandes, Alvaro
de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e
Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun,
André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/17/
edicao-1/principio-da-seguranca-juridica-no-direito-administrativo-brasileiro. Acesso
em: 24 mar. 2020.
SILVA, Almiro do Couto e. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança)
no direito público brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 237,
p. 271-316, jul. 2004. ISSN 2238-5177. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/
index.php/rda/article/view/44376. Acesso em: 24 mar. 2020.

248
A RETOMADA DAS RÉDEAS DA CIDADANIA
O direito humano fundamental à participação popular

Fernanda Pereira Amaro1

Sumário: 1 Introito. 2 Reflexões sobre a cidadania: proposta para uma visão evolutiva. 3
Renovando o caminho democrático: a democracia participativa. 4 Considerações finais.

1 ∙ INTROITO
A reflexão à qual nos lançaremos pretende enfatizar a importância da cidada-
nia para a afirmação do direito humano fundamental à participação popular, bem
como para a promoção de outros direitos humanos.
Na atualidade brasileira, a cidadania se apresenta sob a concepção liberal-demo-
crática/moderna, fruto das circunstâncias políticas, históricas, econômicas e jurídi-
cas que resultaram no e do Texto Constitucional de 1988. Frise-se que se sustenta,
por conseguinte, um conceito evolutivo de cidadania, fruto de conquistas sociais.
Nesse passo, é necessário ter presente que a cidadania pressupõe a aceitação da
democracia. Esta é elemento importante para a consolidação da dignidade da pessoa
humana, sendo esta fator de limitação e, ao mesmo tempo, objetivo do Estado brasileiro.
No Brasil, vivemos uma fase democrática instaurada a partir da Constituição
Federal de 1988. O presente documento constitucional consagra princípios e valores
comprometidos com a promoção de direitos humanos fundamentais de diferentes
categorias que objetivam a realização do bem comum.
A verificação de que o voto é insuficiente nesta quadra da história internacional
e nacional como forma de exercício de poder político é outro elemento ímpar neste
debate. Neste cenário, consta que a atual Constituição brasileira prevê outras formas
de participação popular, num esforço do constituinte para ajudar na consolidação
da democracia participativa.
A “repolitização da legitimidade” é uma percepção que oferece nova dimensão
a esse conceito. O direito humano fundamental à participação política, que trans-
cenda o voto para atribuir ao cidadão sua presença em outros organismos sociais na
discussão dos interesses da coletividade, se afirma, como se destacará.
O Estado Democrático de Direito exige que a efetivação do interesse público e
dos direitos humanos supere a visão liberal e agregue uma pluralidade de instru-
mentos participativos e de controle, inclusive, em sua modalidade social para ser,
concretamente, adequada ao mundo globalizado, com atores sociais múltiplos cuja
cidadania possa ser exercitada.

1 Analista Processual do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Mestra em Direito Admi­
nistrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

249
Na exposição que desenvolvemos, mencionamos que, no cotidiano do exer-
cício de poder no Brasil, verificam-se inúmeros desafios à consolidação do
regime democrático. Nesse passo, examinar alguns desdobramentos desse tema
é tarefa imprescindível.

2 ∙ REFLEXÕES SOBRE A CIDADANIA:


PROPOSTA PARA UMA VISÃO EVOLUTIVA
A abordagem do tema da participação popular deve necessariamente iniciar
por uma análise da cidadania. Presente desde o mundo antigo, desde a realidade
greco-romana onde surgiu, certamente seu conteúdo não permaneceu o mesmo até
os tempos atuais. Tampouco sua extensão se manteve irredutível.
Naquela realidade, ser cidadão era ser livre para participar das assembleias do
povo, era intervir de modo ativo no funcionamento das cidades, seja pelo exercício
do voto, seja pelo desempenho de funções públicas. Tal exercício, contudo, não era
estendido a todos quantos nascessem naquele território; havia os empecilhos de
ordem social, cultural e econômica, além de haver uma visão de liberdade diferen-
ciada e uma sobreposição da cidade sobre o indivíduo.
No dizer de Célia Galvão Quirino e Maria Lúcia Montes:
[...] o cidadão da polis é aquele que já atingiu a maturidade e a quem os deuses
beneficiaram, fazendo-o nascer homem e não mulher, grego e não bárbaro, per-
mitindo-lhe participar dos valores e crenças da civilização helênica, conhecer
sua cultura, seus deuses e suas leis e, finalmente, a quem os deuses concederam
ter nascido livre e não escravo, podendo assim gozar de uma vida de ócio, capaz
de permitir-lhe desenvolver as próprias faculdades intelectuais para, através
de sua participação na vida pública, realizar sua verdadeira natureza enquanto
homem. (QUIRINO; MONTES, 1987 apud MOÁS, 1999, p. 9).
Mentalidade semelhante se transportou para a Idade Média, em que a divisão da
sociedade em classes e o fator religioso reservavam o status de cidadão à nobreza e ao
clero. Percebe-se aí uma “cidadania patrimonial”, de modo que a plebe não era cidadã.
A dignidade da pessoa humana tem papel fundamental nessa passagem de sub-
missão do corpo social aos burgos para uma cidadania que se buscava perante a lei.
No evoluir dessas ideias, a Revolução Francesa é singular como marco do alcance
de um Estado Moderno, no qual o indivíduo e seus direitos obtiveram prevalência
em nome da cidadania. A sociedade civil se institucionaliza como um espaço legí-
timo para manifestação fora do Estado. Nesse passo, o Estado não dividia seu poder
com a Igreja e devia obediência ao Direito. Na atenta observação de Moás (1999,
p. 16), no modelo contratualista eram os indivíduos os criadores do Estado, já no
Estado Moderno é a ordem jurídica que confere aos indivíduos o status de cidadão.
Em um primeiro momento no Estado Moderno, a cidadania foi concebida
sob o enfoque liberal, das liberdades, das abstinências estatais e da igualdade.
Posteriormente, as necessidades sociais, políticas e econômicas demonstraram a
insuficiência daquela concepção. Pode-se dizer que a cidadania é noção para a qual
converge a relação que os indivíduos têm com o Estado tanto em obrigações quanto
em direitos, os quais mudam de feição conforme aspectos temporais e espaciais,
normalmente para se ampliarem e aprofundarem.

250
Note-se que, ao conceituar cidadania como “forma institucionalmente con-
sagrada de participação à gestão da vida pública, em que indivíduos ou grupos
são titulares de direitos oponíveis ao Poder e que implica um exercício precário e
sempre renovável das funções públicas segundo regras consensuais”, Luciane Moás
(1999, p. 21) tratou da cidadania hoje exatamente como instituição normatizada
com poder de participar do exercício da coisa pública, ou seja, como instituição,
que não é algo fugidio, mas concreto e estável e com uma função ativa de influir no
rumo da organização política estatal.
Sempre citado no tratamento do tema da cidadania, T.H. Marshall (apud
CARVALHO, 2001, p. 219-220) descreveu uma vivência de cidadania anglo-saxã,
cuja cronologia e lógica da sequência, conforme bem alertado por José Murilo de
Carvalho (2001, p. 219-220), foram invertidas no Brasil. Ao passo que lá as liberda-
des civis foram as primeiras a aflorar, seguidas pelos direitos políticos e, enfim, pelos
direitos sociais, no Brasil, uma conjugação de autoritarismo com paternalismo fez
primeiro despontarem os direitos sociais, que funcionaram como substitutivos aos
direitos políticos e aos civis.
A inversão da pirâmide de direitos destaca nossa experiência subdesenvolvida
de cidadania e a intensa e necessária relação entre cidadania e democracia. De regi-
mes autoritários não se pode originar uma cidadania real, porque esta não surge de
uma aceitação passiva da atribuição de direitos ao povo por Poderes Constituídos
que não aceitam ser contestados. A cidadania pressupõe debate, conflito, resistência
vencida. Claude Lefort (1991 apud RAMOS, 2016) relaciona a democracia represen-
tativa a espaço de reivindicação, no qual são instituídos novos direitos.
A cidadania se opõe à “estadania”, na expressão de Carvalho (2001, p. 221). Esta
se prende a uma opção pelo Poder Executivo, mais do que para os outros Poderes,
e uma indiferença pela representação. Mais do que um fenômeno, trata-se de uma
cultura no Brasil, nutrida pela desinformação e pela carência. Tem-se pressa de
solucionar os problemas por intermédio do Poder Executivo, que seria o detentor
da renda do Estado e do poder de mudança, o benfeitor.
A carência do povo, presente no período ditatorial, ainda hoje produz o efeito de
se duvidar do conteúdo e da importância do ser cidadão. Que status é esse que não
muda radicalmente a realidade de fome, educação precária, desemprego e poucas
perspectivas para o futuro?
É penoso e lento o processo de se desligar do paternalismo e de assumir os encargos
advindos do “ser cidadão”. Rogério Gesta Leal e Matheus Felipe de Castro alertam que:
Onde se fizer ausente a capacidade de manifestação da vontade do cidadão como
artífice de sua própria história, em face de sua incipiência política e administra-
tiva material e subjetiva, falecendo-lhe forças e perspectivas sobre os termos e
possibilidades de gestão que circunvizinha seu cotidiano, só se reforçará a situa-
ção de anomia societal no âmbito do poder institucionalizado e de seu exercício,
em todas as suas dimensões (legislativa, executiva e jurisdicional), fortificando,
por ato reflexo ou convexo, a situação confortante dos encastelados nas hordas
do Estado Soberano. (LEAL; CASTRO, 2011, p. 319).
Não obstante o Estado Democrático de Direito seja um passo a mais no desen-
volvimento do Estado Moderno, constata-se que, em especial, os juristas brasileiros
não têm nutrido grande interesse pela abordagem da cidadania, talvez por não

251
crerem na possibilidade de consolidação da cidadania em nosso Brasil historica-
mente tão carente de resultados reais de vivência democrática, talvez por atribuírem
somente aos Poderes Constituídos responsabilidade pela criação do Direito e pela
organização da sociedade.
Os juristas, os sociólogos, os cientistas políticos, os filósofos, os educadores, os
jornalistas e todos os indivíduos e grupos esclarecidos têm a responsabilidade de
contribuir para o resgate da cidadania e por sua inserção no centro dos debates.
É necessário que a cidadania seja tão divulgada quanto todas as imperfeições de
nosso regime e os atentados aos direitos humanos para que seja desejada e objeto de
conquista. Não deve ser termo meramente técnico e esvaziado, mas realidade viva e
dinâmica também no Brasil.
Mudam-se povo, circunstâncias histórica, política, social, econômica, ideológica
majoritária e minoritárias, o Direito vigente, muda-se a concepção de cidadania.
Vicente Barreto (1993, p. 33), consciente da necessidade de se avançar em uma elabo-
ração conceitual da cidadania no Brasil, em vista do advento da Carta Magna de 1988,
afirmou que há duas cidadanias: a liberal (das Constituições até 1988, salvo as de 1937
e 1969) e a liberal-democrática, a moderna, a qual foi consagrada no texto atual.
Essa chamada “cidadania moderna” diferenciar-se-ia da puramente liberal por
exigir a participação dos segmentos sociais na sua definição e implementação. Os
mecanismos constitucionais, que definem a cidadania no Estado Democrático de
Direito, têm implícita a participação como condição política para sua implementação.
No esforço de nutrir o tema, Ricardo Lobo Torres (2001, p. 256), em interessante
estudo intitulado a “Cidadania Multidimensional na era dos Direitos”, sinalizou
para as várias dimensões apresentadas pela cidadania. Seriam elas: a temporal, rela-
cionada à sequência da manifestação dos direitos fundamentais, políticos, sociais e
difusos; a espacial, ou seja, considerando os planos local, nacional, internacional,
supranacional e virtual (cibernético); a bilateral, levando em conta os direitos e
deveres na cidadania pública/privada e na ativa/participativa; e, por fim, a proces-
sual, enfatizando os processos jurídicos para atualização dos direitos e deveres.
Durante a construção dessa visão multidimensional da cidadania, Torres (2001, p.
250-251) teceu comentários e críticas sobre produções sociológicas acerca do tema. A
primeira crítica foi feita ao evolucionismo dos direitos registrado na obra de Marshall
(1969 apud TORRES, 2001, p. 250-251), que o reputou como ingênuo – “um evolucio-
nismo ingênuo que permitiria a completa fruição dos direitos sociais e que culmina-
ria com a vitória do Estado de Bem-Estar Social como forma superior de organização
política” –; uma segunda disse respeito a um tratamento da cidadania exclusivamente
voltado aos problemas do capitalismo e das classes sociais, desprezando a questão da
dinâmica dos direitos; por fim, uma terceira consistiu no enfraquecimento da política
da cidadania no plano normativo, que ele denominou de “paternalismo de sociólo-
gos”, expressão aplicada especialmente à realidade brasileira.
Em sua proposta, Torres (2001) busca superar uma cidadania vista simplesmente
como relação do homem com a cidade, para conferir mais vigor à questão ética e
jurídica, à justiça e aos direitos humanos, que comporiam seu cerne.
Tendo exposto o conteúdo da cidadania em Torres (2001), é mister que se aluda
também às discussões que circundam seu fundamento. A cidadania encontra

252
suporte na figura do contrato ou na do status? Jellinek (1970 apud TORRES, 2001, p.
255-256), no esforço de sistematização dos direitos públicos subjetivos, identificou
quatro status, ou seja, “condições nas quais pode se encontrar o indivíduo como
membro do Estado”, que teriam ou o aspecto passivo (status subjectionis), no qual a
autodeterminação do sujeito é limitada, ou o negativo (status libertatis), no qual o
imperium se afasta, ou o positivo (status civitatis), em que os sujeitos têm direito a
prestações estatais, ou, por fim, o ativo (status activae civitatis), em que se reconhe-
cem direitos políticos aos sujeitos.
Nota-se que essas, digamos, categorias “puras” de estados do indivíduo perante
o Estado são extremos a que a doutrina, com o passar do tempo, foi acrescentando
variações para se adequar aos preceitos do Estado Social. Citem-se o status negati-
vus, o status positivus libertatis, o status positivus socialis, e, em especial, recorde-se
o status ativus processualis de Häberle, relacionado ao processo de concretização
dos direitos fundamentais.
A cidadania importa em reunir esses status, os quais conduzem às várias catego-
rias de direitos, com que cada uma delas se relaciona mais intimamente. A correspon-
dência entre status negativus e direitos humanos fundamentais é imediata, mas den-
tro de um Estado Social e Democrático de Direito também deve sê-lo entre direitos
humanos fundamentais e status positivus, pois este significa as prestações estatais, em
grande parte, na forma de serviços públicos que o Estado tem a obrigação de ofertar.
É lapidar para este estudo a seguinte frase de Torres (2001, p. 265-266): “Os direitos
fundamentais, em suma, são garantidos pelos serviços públicos e por isso mesmo lhes
constituem o fundamento”.
Indo além dos direitos individuais fundamentais, alcançam-se os direitos sociais
e econômicos, os quais, no século passado, fizeram a dinâmica da cidadania ganhar
o caráter social e econômico.
“A cidadania existe in processu” (TORRES, 2001, p. 322-323). Não é um instituto
imutável, como nenhum outro em Direito, mas é sensível às forças sociais. A neces-
sidade de se sobrepor, na atualidade, o aspecto jurídico do processo da cidadania
sobre outros se deve ao fato de representar um “momento de afirmação, perante o
Estado, dos direitos dos que a ele pertencem” (TORRES, 2001, p. 322-323). Para essa
afirmação de direitos se exige uma cidadania ativa/participativa, o que remete ao já
exposto sobre o pensamento de Vicente Barreto.
Torres (2001, p. 327-329) recorre aos processos legislativo e administrativo
como meios de obtenção de uma cidadania ativa. Todavia, parece que, no raciocí-
nio que construiu sobre esses processos e o cidadão, este não teria propriamente
uma posição ativa no sentido de atuar de forma conjugada com as engrenagens
legislativa ou administrativa.
O autor trata da importância desses processos para a realização concreta dos
direitos fundamentais, em especial dos sociais e dos econômicos. No que tange ao
processo legislativo, Torres (2001) traz a lume o pensamento de Robert Alexy ao
afirmar que os princípios com exigências normativas se transmudam em direitos
definitivos pelo trabalho do legislador infraconstitucional.
Quanto ao processo administrativo, recorda-se Habermas (1988 apud AMARO,
2001) para tratar da mudança de foco da Administração na atualidade, cuja função de

253
atendimento das reivindicações dos cidadãos é priorizada, como, v.g., a situação dos
serviços públicos, cujas preservação e eficiência são premissas para os direitos funda-
mentais. Além disso, esse autor lembra a importância de uma Administração compro-
missada com as postulações da cidadania no que atina aos direitos sociais e econômi-
cos, pois estes muito dependem das medidas tomadas com base na discricionariedade.
Ao abordar a amplitude de significado atribuído à cidadania nos últimos tem-
pos em certos ordenamentos jurídicos, Baracho (1997, p. 42, 45) menciona que os
temas capacidade, status e poder ganharam destaque e que, nesse contexto, a teoria
do interesse legítimo adveio para esclarecer que, no confronto entre o cidadão e a
Administração Pública, não só o direito subjetivo tem espaço, mas também o inte-
resse legítimo. Além disso, ele afirma que os conceitos de subjetividade, cidadania,
emancipação, pessoa e personalidade dentro da teoria geral da cidadania ganham
novos conteúdos e paradigmas.
Será que o Brasil absorveu alguma das ideias atinentes à proposta de cidadania?
Pode-se dizer que sim, pois em seu Preâmbulo a Constituição de 1988 prevê a forma
democrática de governo, o compromisso de assegurar o exercício de uma série de
direitos ao povo brasileiro, além de elencar valores para a construção de uma socie-
dade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e compro-
metida com a solução pacífica de controvérsias nos âmbitos interno e internacional.
Todavia, é no art. 1º que a Constituição explicita a cidadania como um dos fun-
damentos do Estado Democrático brasileiro.2
Já tecemos comentários acerca da riqueza evolutiva da cidadania, mas não se pode
deixar de aludir à concepção de Leal (2001), para quem o cidadão é um ser de cultura e
conhecimento, sujeito em construção, com poder para emancipar-se de uma natureza
imposta por contingências política e jurídica, e assim concretizar direitos assegurados
e reclamar a realização de novos direitos. Para além de um entendimento meramente
formal dos cidadãos, como sujeitos ordenados pelas regras jurídicas, a proposta é com-
preendê-los como elementos orgânicos de formação social, política, social e econômica.
Foi sobre essa visão integral de cidadania, na qual o cidadão é pleno em seus aspec-
tos formal e material, que a Constituição de 1988 fincou suas raízes. Foi generosa a
Carta Magna ao tratar não só da organização estatal, mas também do espaço público.
Não resta dúvida de que a teoria da cidadania adotada pela Constituição bra-
sileira vigente está alinhada com as constituições mais democráticas do mundo
moderno. Onde, então, estariam empecilhos para que a dignidade do cidadão
brasileiro, prevista no Texto Constitucional, ultrapassasse o nível da norma para
produzir efeitos no meio social? Situar-se-iam nas ações/omissões legislativas e

2 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
[...]
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição.”

254
administrativas. Ademais, o espaço público, a sociedade, precisa se inserir no
Estado, participando de suas ações, controlando-as, a fim de que a beleza teórica da
cidadania encontre correspondência em sua prática.
Passadas mais de três décadas de promulgação da atual Constituição, estará o
Brasil buscando caminhos para conseguir dar à cidadania o espaço necessário para
que se alcancem os objetivos fundamentais impressos em seu art. 2º, quais sejam, os
de construir uma sociedade livre, justa e solidária; de garantir o desenvolvimento
nacional; de erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais; de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação?
O saudoso professor J. J. Calmon de Passos (2001) publicou interessante estudo
sobre a “cidadania tutelada”, mostrando a distância que há entre essa espécie e a
cidadania plena. A cidadania não pode ser plasmada por um discurso, pois como
expressão de poder político reclama institucionalização, vivência efetiva e substan-
cial pelos atores sociais.
Para o aclamado autor, a cidadania plena se manifesta somente ao se garantir,
eficazmente, a toda pessoa, direitos políticos, sociais e civis. Se tal estado de coisas
não se faz presente (ethos), pode haver algum dos graus de cidadania tutelada, a qual
seria aquela outorgada formalmente, mas não assegurada substancialmente, em razão
da existência de todo um aparato (formal ou indireto) para incapacitar a vontade do
sujeito. Como a cidadania tutelada seria fruto de uma cultura paternalista, o aludido
autor enfatiza que a construção de uma cidadania plena se obtém pela mobilização dos
próprios sujeitos e que a democracia real se alcança através desse esforço dos cidadãos.
Após essas constatações e sem negar a valorização da cidadania no Brasil pela
Constituição de 1988, cabe a adição de outro aspecto à indagação anterior: em que
grau da escala de cidadania tutelada o Brasil hoje se encontra?
É imperioso o reconhecimento da existência de uma rede relacionando Estado,
poder, legitimidade, democracia, cidadania, participação popular, controle social,
direitos humanos, dignidade da pessoa humana e serviço público.
Quando há crise em algum desses elementos, necessariamente os outros serão afe-
tados, forçando, inexoravelmente, discussões sobre todos os demais. Da mesma forma
que não se pode prescindir de sua análise conjunta, tampouco se podem abandonar
suas interfaces, sob pena de aquela ser completamente falha. Não se podem admitir
abordagens estritamente jurídicas, ou sociológicas, ou políticas, ou filosóficas, pois as
respostas não satisfarão os problemas da realidade, especialmente em se tratando da
complexidade das sociedades atuais. E aí a ciência não estará cumprindo seu papel.
A cidadania em um Estado Democrático de Direito necessariamente passa pela
participação popular, que é forma de cooperação no exercício do poder, admitida
pela nossa e por outras constituições do mundo moderno. Essa “cidadania demo-
crática”, que é uma cidadania revitalizada, tem como farol a dignidade da pessoa
humana e como um dos instrumentos para alcance desta, que é pressuposto de
todos os direitos fundamentais, exemplificativamente, o serviço público.
O direito político à participação popular se identifica com a cidadania democrá-
tica, a cidadania que pode fazer a diferença na luta pela efetivação dos demais direi-
tos humanos, controlando, mesmo, o exercício abusivo dos Poderes Constituídos.

255
3 ∙ RENOVANDO O CAMINHO DEMOCRÁTICO:
A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Norberto Bobbio (BOBBIO et al., 1991, p. 319-320) diz que o problema da impor-
tância ou não da democracia é antigo, que tem sido objeto de reformulações em todas
as épocas. Já se construiu uma teoria clássica (aristotélica) de democracia, conceben-
do-a como governo do povo, de todos os cidadãos, todavia estes eram apenas os que
gozavam dos direitos de cidadania. Em Roma surgiu uma teoria medieval da demo-
cracia, na qual sobressaía a discussão sobre se a soberania popular era ascendente
(advinha do povo, e o príncipe era apenas seu representante) ou descendente (advinha
do príncipe, que delegava poderes ao povo), e também se destaca a teoria moderna de
Maquiavel, na qual democracia não é mais que uma forma de república.
Na atualidade, que democracia o mundo pretende e de qual ele necessita? Para
qual ele caminha? O que seria um governo do povo, para o povo e pelo povo? Seria
admissível e adequada uma variedade de democracias?
A complexidade das sociedades se aprofunda, fazendo com que questões não
respondidas e novas questões sejam postas diariamente aos Estados, nos campos
político, econômico, social, em níveis nacional e internacional.
Considerando a democracia como eixo do debate, é possível perceber a recorrência
de questões sobre o nível de real satisfação da população com o poder instituído, sobre
o sentimento de real representação dos cidadãos pelas autoridades governantes e de
vinculação das instituições existentes às finalidades públicas, enfim, sobre a razão de
ser, o fundamento do Estado e, especialmente, sobre o eixo de um regime democrático.
Nota-se no Brasil um desinteresse da sociedade pela política porque ela não se
sente realmente representada por seus governantes. O voto se revela insuficiente,
e chegou-se à conclusão de que a democracia clássica não serviria para as nações
modernas. Pela própria complexidade social, pode-se afirmar que o voto não é ins-
trumento bastante para que se realize no Brasil uma democracia real conducente à
concretização de uma série de direitos que resgate a cidadania de seu povo.
A constatação da necessidade do estudo e da implantação efetiva de meios para
realização da cidadania é demonstração clara da crise da legitimidade do poder esta-
tal, que se manifesta, com maior ou menor atraso, nos países desenvolvidos e nos de
periferia. Voltando o olhar para a história brasileira, vê-se que, antes do advento do
Texto Constitucional de 1988, era comum ridicularizar-se o povo no sentido de não
lhe reconhecer capacidade de compreender a relevância das opções a serem feitas, das
medidas a serem adotadas no plano legislativo ou administrativo. A ambição pelo
poder reduzia o povo a uma reles legião de desamparados excluídos da civilização.
Nesse cenário, oportuna a menção a Rodrigo Portella (2006, p. 52), assinalando que:
A tarefa da cidadania emancipada é a supressão da pobreza política e material.
Ora, uma só acontece com a outra, isto é, para se eliminar a pobreza material é
preciso superação da ignorância e passividade política. A eliminação da pobreza
política (e material) leva, em seu bojo, a construção de identidade cultural (o
sujeito sem tal identidade não percebe seu lugar no mundo) e a possibilidade
de acesso à informação e comunicação. A emancipação cidadã deve passar,
também, pelas relações de mercado. Ou seja, oferecer alternativas à lógica de
mercado vigente, no intuito de civilizá-lo ou humanizá-lo. Enfim, fazê-lo, de

256
alguma forma, aliado para a promoção da efetivação do bem-estar comum. Isto
implica, também, pensar o papel do Estado, isto é, repensar a questão do Estado
como mínimo (em sua atuação social) ou máximo. Haveria uma terceira via para
esses dois modelos capitalistas de Estado?
O que se tem notado no decorrer da história republicana do Brasil é uma dis-
torção na finalidade do poder gerando um problema na legitimidade da represen-
tação. Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1992) identificou com maestria que essa
discussão sobre a legitimidade surgiu quando nas sociedades o poder deixou de
ser atribuído a determinada pessoa por razões sobrenaturais ou por desempenhar
outro papel social não político e passou a ser institucionalizado. Assim, deixou de
ser inconteste o poder do governante.
Com o desenvolvimento das sociedades democráticas e o agigantamento dos
Estados, que assumiram diversas funções, aprofundando suas relações nacionais e
internacionais, agrava-se a discussão sobre a legitimidade. Um Estado que assume
maior número de funções reúne mais recursos humanos, materiais, financeiros e
maior poder em nome de causas que devem, em regra, favorecer seus nacionais e
contar com sua aprovação.
Afinal, se decisões e medidas são adotadas pelo e em nome do povo, no clássico
entendimento da democracia, devem sê-lo visando à real satisfação pública; ou seja,
para os tempos atuais, não basta a chamada “legitimação quanto à origem”, com a
aprovação pública de seus agentes políticos através dos processos eleitorais, que, no
decorrer do exercício do mandato não teriam nenhum outro compromisso senão
não agir em contrariedade às proibições legais. Superou-se essa visão formal e mini-
malista de legitimidade para se acalorarem, também no meio público, as discussões
sobre a legitimidade no exercício e na destinação do poder.
São óbvias as graves repercussões que o tema da legitimidade enseja. Mas o que
exatamente seria a legitimidade? Colhendo as preciosas observações de Diogo de
Figueiredo (1992, p. 24), “a legitimidade é o referencial ético do poder [...]; que [...] para
caracterizar a legitimidade, devemos partir dos interesses dominantes num grupo
social. Na base da legitimidade estão os desejos – o que a sociedade almeja do poder”.
Podem-se traçar diversos perfis da legitimidade sob o ângulo histórico, filosó-
fico ou ideológico. O consenso mínimo que há, sob qualquer desses ângulos, é que a
maioria dos indivíduos conscientes, livres e iguais aceite o Estado.
Em seu sentido etimológico, legitimidade deriva de legitimus, significando:
Um mandato ou legislatura adequada a uma ordem estabelecida e o núcleo jus-
tificador deste sentido originário descansa no pressuposto de que os valores e
normas de tal ordem se encontram fundamentados num princípio de justiça que
transcende a arbitrariedade e as vontades particulares, o que equivale susten-
tar que esta justificativa se relaciona com um interesse ou bem comum público.
(LEAL, 2001, p. 122).
Foi em nome desse “bem comum público”, forte marca da legitimidade, que se
buscaram forças e fundamento para o combate ao poder estatal ilimitado e contrá-
rio às aspirações populares característico da Idade Média.
Com o positivismo, a legitimidade migrou do campo ético e moral conquistado
no século XVIII para o campo legalista, e a legitimidade passou a confundir-se com

257
a legalidade, de modo que bastava ser legal. Percebe-se que aí a legitimidade perdeu
muito de seu conteúdo, de suas influências naturalistas e contratualistas e também
perdeu a vontade popular, uma vez que aquela não necessariamente estava contem-
plada nos textos legislativos. Na legalidade, não há crítica e não há compromisso
explícito com a justiça social.
Aproximem-se essas ideias da realidade de país de periferia e latino-americano
que somos. A atuação política brasileira, muitas vezes desvinculada ou contrária
à opinião popular, gerou os resultados sociais e econômicos que, por mais melho-
rias nos índices de queda de mortalidade, de analfabetismo ou qualquer outro, não
atendem às demandas de um Estado que, ao se denominar Democrático de Direito,
estampou o desejo de escrever uma história diferenciada.
Um diferencial que se pode vislumbrar é a necessidade de “repolitização da legi-
timidade”, colhida nos ensinamentos de Paulo Bonavides (2001, p. 55), pela qual
se apregoa a superação da ideologia liberal e da sua variante neoliberal, a fim de
que o poder instituído não represente a suficiência da autoridade em menosprezo à
legitimação pela sociedade.
A legitimidade não pode ter mera existência racional-legal para justificar a auto-
ridade instituída e perder todo o seu conteúdo axiológico. Ao cidadão não cabe
apenas a obediência, nem concentra a autoridade em si a soberania, pois soberano é
o Estado, e este é integrado por cidadãos e para estes existe.
Se Paulo Bonavides afirma não haver soberania dos postulados constitucionais
nem lealdade política sem a repolitização da legitimidade, Diogo de Figueiredo
(1992, p. 65) não diverge, pois sustenta a necessidade de um aperfeiçoamento de
outro parâmetro do Estado Democrático de Direito que não a organização do poder
pela lei: a legitimidade, a qual descreveu como “a submissão do poder estatal à per-
cepção das necessidades e dos interesses do grupo nacional que lhe dá existência”.
Desse raciocínio de Diogo decorreria um dos aspectos do Estado Democrático de
Direito a que ele mais confere destaque: a consensualidade.
Nessa linha, mencione-se Paulo Bonavides (2001, p. 65), defensor de uma cida-
dania revigorada, revolucionária e de uma “neocidadania governante”.
José Joaquim G. Canotilho (1991 apud LEAL, 2001, p. 137-138), tendo presentes
essas duas óticas de legitimidade, quais sejam, uma puramente legalista e a outra
axiológica, afirmou que uma primeira concepção de legitimidade seria de sua cons-
trução com base em critérios de competência e procedimentos e não em critérios de
verdade e de justiça; e uma segunda associaria as ideias de consenso e autonomia
de democracia (tendo esta o contrato social por pressuposto) para verificar a (in)
coerência entre as normas jurídicas e os princípios e valores que deveriam integrar
determinado ordenamento jurídico.
Rogério Leal (2001, p. 129-130), por seu turno, afirma o caráter “relacional” da
legitimidade, estando em um dos lados o poder instituído e de outro as demandas
sociais, não havendo, necessariamente, adversidade entre esses lados.
Por todo o exposto, não resta dúvida de que a legitimidade está diretamente
ligada à democracia. E, modernamente, tem sido essa forma de governo percebida
como a única capaz de realizar o bem a todos, individual e socialmente.
Por que a opção pela democracia? Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1978, p. 1),
no final da década de 1970, fez um elogio à democracia, que reproduzimos:
258
O apego à democracia, porém, não é uma superstição, uma quimera a que os
homens se voltam, fugindo à visão da realidade. Não é ele um simples mito, que
fascina o homem, seduzindo-lhe a imaginação. Esse apego resulta de uma intui-
ção profunda, a intuição de que a Democracia corresponde à força insopitável
que move a evolução.
O insigne autor citado defendeu o sistema de valores, os arranjos institucionais e a
forma de governo democráticos como meios para assegurar a liberdade e a igualdade.
Para assegurar a própria democracia como regime político e seu aprendizado
como estilo de vida, Diogo de Figueiredo (1992, p. XVII) entende que é necessário
o exercício permanente do diálogo, da conciliação e do consenso. Valoriza o autor
uma dimensão pedagógica da democracia e daí se pode entender que a evolução da
sociedade estaria ligada a um aprendizado da democracia.
A democracia é algo tão importante na história da humanidade que qualquer
discussão sobre política induz a seu tratamento, seja para nela buscar fundamentos
para acerto ou desacerto de regras, medidas e procedimentos, seja para combatê-la
ou travar discussões acerca de suas nuances.
Hoje, na configuração moderna de Estado, tem-se reconhecido à democracia
a categoria de princípio. O princípio democrático foi objeto de estudo de José
Joaquim G. Canotilho (CANOTILHO; MOREIRA, 1991, p. 77-78), que se esmerou
em identificar várias de suas nuances.
Ao tratar o princípio democrático como um princípio jurídico normativo, ele
quis distanciar a ideia democrática de uma simples teoria abstrata, concebendo
a democracia, na verdade, como forma de vida, como forma de racionalização do
processo político e como forma de legitimação do poder, além de considerar o prin-
cípio democrático como princípio complexo, polivalente, seja por acolher aspectos
essenciais da democracia representativa, como órgãos representativos, eleições
periódicas, pluralismo partidário, separação de poderes, seja por apontar para o
aprofundamento da democracia participativa, oportunizando efetiva participação
nos processos decisórios e no controle democrático do poder.
Canotilho detalha o caráter principiológico da democracia em outras linhas:
como princípio e norma de organização e como princípio informador do Estado e da
sociedade. Naquela acepção significa que se aplica também às organizações sociais,
além de obviamente se aplicar ao Estado e às coletividades políticas públicas; ao passo
que, enquanto informador do Estado e da sociedade, transcende sua natureza de prin-
cípio político para abranger diferentes aspectos da vida econômica, social e cultural.
Não poderia Canotilho deixar de abordar o princípio democrático enquanto
processo, e ele o fez caracterizando a democracia como processo de democratização,
no sentido de que a democracia não é estática; e para que ela possa seguir sendo
realizada, são previstos constitucionalmente objetivos a serem atingidos.
Regina Ferrari (1997, p. 223) comunga da mesma opinião ao sustentar que o
princípio democrático supera a técnica para escolha de representantes e se torna
uma direção a seguir, um objetivo a realizar. Destaca ainda que a democracia-par-
ticipação é meio para a consolidação da democracia.
O polivalente princípio democrático, na concepção de Canotilho (CANOTILHO;
MOREIRA, 1991), constitui-se de alguns subprincípios, quais sejam, o da sobera-
nia popular, o da representação, o da separação dos poderes, o do sufrágio, o da

259
representação proporcional, o da democracia semidireta e o do pluralismo político
e direito de oposição.
Por sua vez, Maria Garcia (1997, p. 43) eleva à categoria de princípios essenciais
da democracia a garantia de certos direitos fundamentais do homem e a valorização
do indivíduo e da personalidade humana, bem como o compromisso entre ideias
opostas, para uma solução pacífica.
Ao traçar a trama de princípios e subprincípios da democracia, Canotilho
(CANOTILHO; MOREIRA, 1991) tomou por base a Constituição de Portugal,
mas as observações do mestre se aplicam também ao ordenamento pátrio. Tendo
por base a Constituição de 1988, Ruy Espíndola (2003) afirmou que a democracia
é princípio normativo heterodeterminante da ordem jurídica globalmente conside-
rada, estando previsto no art. 1º, caput, espraiando-se pelo texto constitucional seus
subprincípios e normas densificadoras, a partir do Preâmbulo.
Até este ponto se conclui que a democracia é processo e princípio. É processo
porque, no dizer de Claude Lefort (1983 apud GARCIA, 1997, p. 42), é algo em
contínua invenção e reinvenção. Se é princípio acolhido em nível constitucional,
sua força normativa torna-se incombatível, por ser sustentáculo da organização do
Estado e da sociedade e por ser tão abrangente sua repercussão. Dir-se-ia, mesmo,
que a democracia possui tentáculos longos, numerosos e surpreendentes.
Ruy Espíndola (2003) alerta para o fato de não bastar a regra da maioria para
a configuração do regime como democrático. Isso porque há o risco de revogação
da mencionada regra por maiorias circunstanciais. Todavia, como sustentado por
Norberto Bobbio (1989 apud ESPÍNDOLA, 2003), é necessário para a democracia
que haja um mínimo de regras do jogo político institucionalizadas, estabelecendo
os agentes e os procedimentos para o exercício do poder.
Se tal regra compõe o mínimo da democracia, o que a completaria? Já foi exposta
a dimensão principiológica da democracia, mas Espíndola aproxima ainda mais os
valores éticos, políticos e jurídicos da discussão para uma melhor compreensão.
Visualiza a democracia “orientada segundo diretivas axiológicas e normati-
vas. A democracia como um conjunto de ideias, de ideais, de princípios (éticos,
políticos e jurídicos), ordena a vida do povo e os fins da ação pública do Estado”
(ESPÍNDOLA, 2003, p. 7). Não apenas percebe esses valores que advêm e atuam
sobre a sociedade e sobre o Poder Público para dirigir sua ação, como também traça
uma correspondência direta e necessária entre democracia e direitos humanos.
É através do consenso em torno do razoável, ou seja, do racionalmente aceito como
bem de todos, que o bem pode ser proporcionado a um maior número de pessoas. E
esse bem comum conduziria aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana.
Enfim, compreende democracia como “uma convivência comunitária fundada
à luz dos direitos humanos, na perspectiva de assegurá-los, com real eficácia a todos
os homens em suas dignidades de pessoas humanas” (ESPÍNDOLA, 2003, p. 8). E
mais, essa eficácia do asseguramento dos direitos humanos está condicionada a que
a democracia concebida seja uma democracia constitucional, que possa atingir seus
fins através dos princípios constitucionais.
Fez-se, em regra, no mundo a opção pela democracia representativa, porém não
se pode fugir ao fato de que se a democracia enquanto conjunto de ideias e valores

260
evolui, enquanto forma de governo também deve evoluir, e isso pressupõe que a
representação mereça alguma crítica.
Hodiernamente há uma convicção sobre o representante político não ser o titu-
lar dos poderes que reúne, mas apenas instrumento do povo, e estando fixada tal
premissa, tem-se maior liberdade para dizer que se deve buscar aperfeiçoamento
contínuo dos instrumentos de representação e se ter a coragem de trilhar caminhos
rumo a uma participação direta da sociedade quando dificuldades demonstradas pela
representação se mostrarem insuperáveis. Afinal, a democracia é um processo, que
merece ser continuamente observado e revisto para que se possa melhor vivenciá-lo.
As críticas normalmente feitas à representação concernem a uma desvincula-
ção entre os representados (o povo) e os representantes, no sentido de faltar muitas
vezes àqueles a consciência de que têm o poder de escolha, de reivindicação e de
controle; aos representantes, o interesse em atender às necessidades sociais.
Jamais se pode fugir à recordação de Rousseau (2002, p. 92) ao se produzir
alguma crítica à representação. Feroz em seu discurso, ele já dizia:
Não se pode representar a soberania pela mesma razão que se não pode alienar;
consiste ela essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa; ou ela é
a mesma, ou outra, e nisso não há meio-termo; logo os deputados do povo não são,
nem podem ser, representantes seus; são comissários dele, e nada podem concluir
definitivamente. É nula, nem é lei, aquela que o povo em peso não ratifica.
Urge que se transponha uma experiência de representação forjada conforme o
ideário do Estado liberal que não reunia, obviamente, todos os elementos da con-
formação dos Estados hoje e se alcance uma ideia de democracia representativa que
cada vez mais abrigue formas de democracia direta.
Como forma intermediária de modelo democrático, encerrada entre as demo-
cracias direta e indireta, tem lugar a democracia semidireta, um misto de represen-
tação e participação popular.
Para além do voto, clássico instrumento demonstrativo da soberania popular nas
democracias representativas, encontramos como símbolos da democracia semidireta
o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular, o direito de revogação e a ação popular.
A atual Constituição brasileira prevê quatro desses mecanismos, não acolhendo
o direito de revogação. Além disso, ela contempla em seu texto outras formas de
participação popular, num esforço do constituinte para ajudar na consolidação da
democracia participativa.
Isso seria suficiente para demonstrar que o Brasil alcançou um nível de demo-
cracia participativa impressionante? Não obstante se reconheçam todas as virtudes
de a Constituição ter feito uma opção pela cidadania, há uma série de críticas ao
modelo de democracia reinante no Brasil.
Destaquem-se as críticas de Rogério Leal (2001, p. 199-202), contundente em suas
afirmativas sobre o apego no Brasil a uma democracia afeita ao modelo liberal, em
que há apenas uma associação de mecanismos de políticas públicas para garantir uma
igualdade e uma liberdade meramente formais, reduzindo “a ideia da democracia a
uma mera técnica de posturas e comportamentos juridicamente regulados”.
Esse tratamento da participação popular não condiz com sua relevância dentro
de Estados que, como o Brasil, pretendem-se Democráticos de Direito. É, em última

261
análise, uma forma dissimulada de negar a força normativa da Constituição e de
dar concretude ao que o constituinte optou por modificar e excluir do ordenamento
jurídico. Sem respeito à Constituição não há democracia possível, ainda mais uma
democracia inclusiva, e se põem em risco os direitos humanos.
Sempre dentro de uma proposta relacional, traz-se à baila a democracia consti-
tucional, referida por Ruy Espíndola (2003). A reclamada força normativa dos prin-
cípios constitucionais se alinha ao pensamento de Paulo Bonavides (2001, p. 55),
que elaborou interessante monografia sobre o papel da democracia participativa. O
festejado mestre construiu uma teoria constitucional da democracia participativa,
que reputa verdadeira democracia de emancipação dos povos subdesenvolvidos,
integrada por quatro princípios: o da dignidade da pessoa humana, o da soberania
popular, o da soberania nacional e o da unidade da Constituição.
Ao examinar o painel da democracia representativa no Brasil, Bonavides (2001,
p. 55) identificou várias falhas que são tão graves a ponto de corromper os enten-
dimentos mais simples acerca de democracia e de representação. Isso porque o
interesse nacional, o interesse público, constituinte do fim do Estado, é traído pelos
vícios eleitorais, pela propaganda dirigida, pela manipulação da consciência polí-
tica e opinativa do cidadão pelos poderes e veículos de informação, de modo que o
povo na clássica democracia representativa não conhece a soberania, mas apenas a
adjetiva. É o povo como estampa e bandeira política e mesmo jurídica, legitimando
interesses diversos. A confiança democrática, então, é traída.
Após a apresentação de vários aspectos da democracia representativa passíveis
de crítica nas esferas política e ética, cabe uma menção aos desafios econômicos.
Estes aceleram o processo de desigualdade entre as pessoas e os povos, dividindo-os
em classes casa vez mais díspares e impondo várias barreiras ao gozo de direitos,
muitos deles que, embora positivados, não encontram realização concreta.
A tendência neoliberal do mundo autoriza, cada vez mais, a afirmativa de que
o capital é o fim último de cada ação dos Poderes Constituídos, apesar de o inte-
resse público estar explícita ou implicitamente previsto nas Cartas Constitucionais.
Em nome e através do capital é que ações são realizadas, omitidas e justificadas.
Tornou-se, de instrumento, fim. Por trás de muitas dificuldades políticas da demo-
cracia representativa estão razões econômicas.
Outro desafio a ser considerado é, em se admitindo que a representação política
esteja imune a vícios, como admitir que suas decisões são vinculantes e legítimas
em meio a contextos sociais tão complexos (LEAL, 2001, p. 150).
Todos esses desafios se fazem presentes dentro de Estados que, como o brasi-
leiro, optaram juridicamente por sua configuração democrática. Contudo, frise-se,
o rótulo Estado Democrático de Direito se desfaz caso o ente não se esforce por
evoluir para preservar aquele núcleo comum e fundamental de ideias que garantam
a caracterização final do produto como democrático.
Uma ideia de democracia esvaziada deixa de ser democracia. Democracia é
realidade e concretude. A complexidade das relações sociais, econômicas, polí-
ticas e as dificuldades de várias ordens, sem dúvida, tornam maior o esforço
necessário para o alcance da democracia. Mas se a falta de vontade política e a
manipulação ideológica das massas têm espaço, o que pode haver é qualquer nova
roupagem para a velha ditadura.

262
Assinalar que um núcleo mínimo de ideias e valores deve existir em um Estado
Democrático leva à sua concepção como aquele que assegura a oportunidade de
novos direitos serem incessantemente criados e autocriados na sociedade.
Paulo Bonavides (2001, p. 20), ao relacionar os tipos de Estado, somente usou
a terminologia Estado Democrático para o Estado Democrático Participativo, que
seria a quinta classe na classificação por ele proposta, um sucedâneo do Estado neo-
liberal nos países subdesenvolvidos, “o Estado neo-social da periferia”, ainda [...] em
gestação nas reflexões dos cientistas políticos e constitucionais”.
Estar frente a frente com as dificuldades da democracia contemporânea conduz
ao desafio de superação do sentimento de que esta seja um engodo e de construir
na prática social e política as soluções. A crença de que a experiência democrática
fracassou pode conduzir às tragédias dos regimes ditatoriais.
A experiência de democracia participativa dos países desenvolvidos é paradigma
para os de periferia. Discute-se no Brasil se o povo está devidamente preparado e cons-
ciente para influenciar nas decisões políticas através dos mecanismos participativos.
Também é recorrente a dúvida sobre ter o povo brasileiro disposição/vontade para
assumir as responsabilidades decorrentes de sua participação e ir além do sufrágio.
Há quem apregoe que uma singular cultura cívica nacional afaste os brasileiros
da participação e, desse modo, ao se conformar em ser este um problema crônico do
Brasil, não se busca aprofundar o exame da questão. Ao se anunciar que a culpa pela
não participação reside no desinteresse do povo/Macunaíma, encerra-se o enfrenta-
mento das dificuldades da democracia no Brasil.
Decerto que neste estudo se advoga a tese da retomada aprofundada dos estudos
sobre a participação popular que aos poucos tem se insinuado, e aí têm destaque os
mecanismos participativos implementados a partir da década de 1990 na área dos
serviços públicos. Uma melhoria em termos de diversificação de formas de partici-
pação sempre visando à sua proliferação e à sua eficácia necessariamente decorre de
sua implantação, de seu estudo e acompanhamento pelos cidadãos, pelos organis-
mos da sociedade civil e pelos Poderes Públicos.
É indiscutível que a consciência dos cidadãos sobre seu papel político e social é
elemento de importância ímpar no processo de participação, embora muitas vezes
o exercício do direito de sufrágio ocorra sem aquela.
Surge outra questão: quem é responsável por estimular a consciência cívica? O
Estado ou a sociedade civil? A sociedade não estará pronta até que o germe se desen-
volva espontaneamente, ou o Estado teria o dever de motivar o povo, que é o titular
da soberania? É o Estado que deve garantir espaços institucionais de participação
ou a sociedade civil, ou estamos diante de obrigações recíprocas ou isonômicas?
(LEAL, 2001, p. 202).
Na atual conjuntura do Brasil ainda se exige que os Poderes Constituídos tenham
a iniciativa da instituição de fóruns públicos, de escolas de cidadania para formar
e desenvolver no cidadão o hábito da participação. Talvez se possa mencionar que
sejam coadjuvantes nesse processo as diversas associações e organizações, as quais
reúnem reivindicações de todo tipo para apresentar aos Poderes Públicos.
Robert Dahl (2001, p. 204-205), discorrendo sobre os métodos adotados nos países
democráticos mais antigos para a educação cidadã, relacionou a educação formal em

263
nível suficiente para garantir a alfabetização, a ampla disponibilização de informações
pela mídia, a integração em partidos políticos e exposição de sua história e propostas,
a integração em associações e em grupos de interesses específicos e, finalmente, a
adoção pelo governo de medidas que acarretem mudanças incrementais, com avanços
graduais, para possibilitar que os cidadãos as percebam e compreendam, alterem sua
política de ação e deem (se for o caso) grande apoio às referidas medidas.
Certamente há de haver um mínimo de educação dos cidadãos a fim de que
não haja sua cooptação. Oportuna é a citação das seguintes palavras do insigne
professor J. J. Calmon de Passos (2001), para quem
[...] os dois grandes instrumentos de dominação se configuram no conservar o não
saber do dominado e o seu depender. Quando ambos os instrumentos se conjugam
e o não saber se associa ao depender, há, em verdade, servidão ou quase servidão.
Quem, no campo social ou econômico, é um dominado, não pode deixar de ser um
dominado no campo político, por mais enfáticas que sejam as proclamações de sua
autonomia: assim, quem dominado social ou economicamente está inabilitado, de
modo radical, para desempenhar o papel de cidadão.
O eminente professor, além de atacar o total absurdo da institucionalização do não
saber, que conduz à dominação e à exclusão da cidadania, denuncia a gravidade da edu-
cação inadequada, que seria forma indireta e perversa de dominar. Já se aludiu à cida-
dania como emancipação, mas quando a dependência grassa, não há cidadania possível.
O autor alude a um poder ideológico no Brasil que atua subliminar ou explicita-
mente, levando seu discurso através do ensino dogmático e não crítico e dos meios
de comunicação para inviabilizar a cidadania ou instituir uma cidadania tutelada.
Sobre a Constituição de 1988, ele afirma que ela foi abundante ao enunciar direitos,
mas que ao organizar o poder político não deu primazia ao controle social efetivo,
criando uma forma acentuada de cidadania tutelada.
As assertivas do ilustre professor são um exemplo de indignação necessária diante
da história do Brasil. Como admitir que o Poder Instituído despreze quem lhe con-
feriu essa autoridade? E como reverter essa história e instaurar uma cidadania plena?
O fato de no Brasil não haver um número significativo de cidadãos com caracterís-
ticas ideais, nas diversas classes sociais, comparativamente aos países desenvolvidos,
não deve hoje ser obstáculo para uma paulatina introdução de mecanismos participa-
tivos acompanhada de incentivos a um despertar público a essa participação.
O mestre Diogo de Figueiredo (1992, p. 191) já destacava, em importante mono-
grafia sobre o direito da participação política, a dimensão pedagógica da democra-
cia, de modo que a participação institucionalizada da sociedade prevista na CR/88,
como processo cultural, exige tempo e perseverança.
Para que a ainda tímida experiência brasileira de participação dê sinais de vita-
lidade, faz-se necessário um processo, cujas fases não são tão bem definidas, sobre-
tudo nos países subdesenvolvidos, nos quais às vezes é importante a lei ou a ação do
governo se antecipar aos fatos sociais. Uma sequência natural para esse processo seria:
1. instruir-se o cidadão, estimulando sua consciência cívica, através de palestras,
de ações comunitárias, de escolas de cidadania, de publicidade sobre atos e o
funcionamento dos Poderes Públicos;
2. cidadãos, associações, organizações e entes públicos pressionarem os Poderes
Instituídos para criar ou aperfeiçoar mecanismos participativos;

264
3. elaborarem-se leis;
4. atuarem conjugadamente os Poderes Instituídos e os cidadãos;
5. investir-se na constante instrução dos cidadãos e na realização de fóruns para
debate sobre os resultados da participação dos cidadãos em termos de ampliação
do espaço público, de conscientização política, de controle social e de melhorias
sociais e econômicas;
6. insistir na correção das falhas identificadas e no constante aperfeiçoamento dos
mecanismos participativos.
Além dessa questão de conscientização cívica, destaque-se o papel que a nova
hermenêutica constitucional tem a desempenhar para o desenvolvimento da demo-
cracia participativa. Os arts. 1º e 14 da Constituição de 1988 podem ser o ponto de
partida para uma nova história democrática brasileira se houver uma valorização
do princípio da constitucionalidade, através do qual se pode alcançar a realização
de uma série de direitos e princípios decorrentes do regime democrático.
Neste estudo se comunga dessa visão que atribui muitas das dificuldades da
democracia brasileira ao fato de ela ser uma experiência ainda recente. A comple-
xidade do mundo moderno, ao mesmo tempo que exige velocidade na informação,
em produtividade, na tomada de decisões e em várias esferas, atua no sentido de
dificultar diversas questões, como éticas, jurídicas, culturais e políticas.
Realmente, não se pode cobrar maturidade de uma democracia com problemas
porque o mundo exige velocidade; ou se solucionam os problemas ou se substitui
o regime. Não é a democracia um produto descartável, tampouco tem a automa-
tização poder para solucionar os problemas de um regime político e romper um
processo de “cidadania tutelada”.
A democracia brasileira precisa sobreviver para que se possa pensar nas refor-
mas necessárias. Integrar o cidadão no Estado, moralizar os Poderes Instituídos,
corrigir distorções econômicas entre as classes sociais, solidificar as instituições
políticas que o Brasil tem e criar as de que não dispõe, investir em uma nova
hermenêutica constitucional.
Volte-se, neste momento, a uma das indagações já formuladas no início deste
tópico: por que a opção pela democracia? E mais: por que a insistência em instaurá-
-la, especialmente em países de periferia, onde tudo e a todo tempo parece conspirar
contra? Seria mero hábito de cópia dos modelos estrangeiros? Reservaria algum dos
outros modelos políticos conhecidos futuro melhor para a sociedade?
Robert Dahl (2001, p. 73-74) elencou vários benefícios da democracia que supe-
ram as falhas e dificuldades que marcam sua história.
A democracia ajuda a impedir o governo de autocratas cruéis e perversos, [...]
garante aos cidadãos uma série de direitos fundamentais que os sistemas não
democráticos não proporcionam (nem podem proporcionar), [...] assegura aos
cidadãos uma liberdade individual mais ampla que qualquer alternativa viável,
[...] ajuda a proteger os interesses fundamentais das pessoas; apenas um governo
democrático pode proporcionar uma oportunidade máxima para os indivíduos
exercitarem a liberdade de autodeterminação – ou seja, viverem sob leis de sua
própria escolha; somente um governo democrático pode proporcionar uma
oportunidade máxima do exercício da responsabilidade moral; a democracia
promove o desenvolvimento humano mais plenamente que qualquer alternativa

265
viável; apenas um governo democrático pode promover um grau relativamente
alto de igualdade política; as modernas democracias representativas não lutam
umas contra as outras; os países com governos democráticos tendem a ser mais
prósperos que os países com governos não democráticos.
Em obra voltada à reflexão sobre a democracia participativa, organizada pelo
sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2002), foram tecidas importantes consi-
derações acerca da relação entre alguns países de periferia, como Brasil, Índia,
Colômbia e África do Sul, e a democracia, e, mesmo, expostas projeções e propos-
tas para um futuro democrático.
Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer (2002), em estudo desenvolvido
em coautoria, além de terem procedido à preciosa exposição dos fatos colhidos nas
realidades dos países analisados e à identificação dos fenômenos sociais e políticos,
se não cunharam, ao menos resgataram expressões ainda novas no cenário político
contemporâneo, como arranjos participativos, redes transnacionais de democracia
participativa, gramática social, procedimentalismo participativo, demodiversidade,
sobrecarga democrática, etc.
Verificou-se que o maior defeito da democracia representativa/liberal reside no
que ela procura acobertar e sustentar: o processo de acumulação de capital e exclu-
são da distribuição dos benefícios à sociedade, bem como exclusão da participação
cidadã nas formas individual e coletiva para que não houvesse uma “sobrecarga
democrática ao sistema”. Esta derivaria das demandas “excessivas” de cidadãos
anteriormente excluídos do processo democrático e desequilibraria o caráter eli-
tista da democracia liberal. Por isso os autores aludem às constantes tentativas de
descaracterização e cooptação dos mecanismos participativos pelas elites.
Apesar de todos os riscos e dificuldades para implantação de democracias par-
ticipativas, o combate à hegemonia da democracia representativa é real, e os autores
citados identificaram formas alternativas que vêm sendo adotadas para conciliar
novas formas democráticas com a técnica da representação.
Um dos países mais merecedores de destaque no referido estudo foi o Brasil,
por terem os aludidos autores concluído apresentar este País potencialidades demo-
cráticas e experiências bem-sucedidas na aludida “combinação” de elementos da
democracia representativa e da participativa.
A experiência dos “orçamentos participativos” no Brasil, em nível local, é o
exemplo por eles adotado para justificar esse sucesso. Decompondo o processo do
orçamento participativo, destacam que nele se nota uma nova “gramática social”, na
qual cidadãos participam das deliberações sobre prioridades na distribuição justa
dos recursos públicos e, além disso, evidencia-se um “procedimentalismo partici-
pativo”, pelas associações regionais, pelas listas de acesso prévio a bens públicos e
pelo Conselho de Orçamento Participativo (SANTOS; AVRITZER, 2002, p. 76-79).
A adoção do orçamento participativo em Porto Alegre e em Belo Horizonte
foi ressaltada pela crescente participação popular, mostrando o interesse que tem
despertado nos cidadãos. Ademais, acentuou-se a ampliação de experiências de
orçamento participativo no Brasil, alcançando um total de 140 gestões municipais
no período de 1997 a 2000, sendo 127 em municípios com até 500 mil habitantes.
Os diferentes caminhos para aprofundá-la conduzem à afirmativa de que as
democracias recentes devem se transformar “em movimentos sociais no sentido

266
que o Estado deve se transformar em um local de experimentação distributiva e
cultural” (SANTOS; AVRITZER, 2002, p. 76-79).
Os autores confiam com tanto vigor na forma participativa da democracia que
formularam três propostas, sob a forma de teses, para seu fortalecimento. A pri-
meira delas é pelo fortalecimento da demodiversidade, ou seja, devem ser valoriza-
das as diversificadas experiências de democracia obtidas a partir de uma delibera-
ção pública ampliada e do adensamento da participação, pois não há motivo para a
democracia assumir uma só forma.
A segunda é pelo fortalecimento da articulação contra-hegêmonica entre o local
e a global, ou seja, as experiências locais alternativas bem-sucedidas devem ser
disseminadas, ao mesmo tempo que os atores democráticos transnacionais devem
auxiliar os países em que a democracia está enfraquecida.
A terceira tese, bem na linha de “democracia se aprende fazendo”, é pela amplia-
ção do experimentalismo democrático, pois, através de novas gramáticas sociais,
isto é, de novos e múltiplos experimentos participativos, é possível acompanhar a
pluralidade das sociedades e distribuir a democracia.
Enfim, nosso estudo é nutrido pela crença nos benefícios que se podem aufe-
rir pela implantação e busca do aperfeiçoamento do regime democrático. Há a
confiança na democracia participativa como o último estágio da democracia e
sua forma mais veraz, e, quando necessariamente adaptada a cada contexto social
e cultural, crê-se que seja a forma mais hábil a gerar soluções para as crises do
regime político e das sociedades. Do mesmo modo, crê-se que não há um único
modelo ideal de democracia participativa, mas que seu exercício mostra o cami-
nho certo para cada sociedade.
Recorde-se, uma vez mais, Robert Dahl (2001, p. 99-100), que reuniu, como
instituições políticas básicas para qualquer democracia, funcionários eleitos,
eleições livres, justas e frequentes, liberdade de expressão, fontes de informação
diversificadas, autonomia para as associações e, finalmente, a cidadania inclu-
siva. Trata-se de “democratizar a democracia”, na feliz e insuperável expressão de
Boaventura de Sousa Santos (2002).

4 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realidade brasileira e a insuficiência de políticas públicas confirmam que
o caminho a percorrer para alcançar a efetivação de direitos fundamentais e a
preservação da dignidade da pessoa humana é longo. Deve-se, sempre, respeito
à Constituição e à sociedade.
Neste estudo, buscou-se resgatar o papel do Texto Constitucional na atribuição
e na preservação dos princípios e fundamentos do Estado democrático brasileiro,
bem como resgatar a sociedade, que de vitimizada passou a sujeito, enquanto se des-
tacou o caráter funcional e instrumental do poder detido pelos organismos estatais.
Que em nome de falsas modernidades não se vilipendiem os direitos humanos
e a democracia. A respeito desta, Fábio Konder Comparato (1997) já advertiu que
“nunca é o fruto de uma evolução natural e inelutável da sociedade política. Ela se
institucionaliza, muito ao contrário, ao longo de um incessante e penoso trabalho
de defesa da dignidade humana”.

267
Indaga-se: o que, afinal, constitui a democracia? Ou melhor, talvez seja mais
adequado questionar “o que permite identificar” hoje um modelo democrático, ou
seja, haveria uma noção residual de democracia após sucessivas ofensas? A demo-
cracia aceita retrocesso? A democracia pode conviver com realidades cada vez mais
comuns de certa incapacidade política de o Estado traduzir em práticas adminis-
trativas concretas para a população o que os textos normativos contemplam? Seria
admissível ao discurso democrático um Estado mínimo sob o ponto de vista de
proteção de direitos tão fundamentais como a vida, a integridade física e a liberdade
em todas as suas formas?
A plenitude democrática seria utopia no mundo moderno. Em nossa concep-
ção, a legitimação na origem e no exercício dos Poderes Políticos, a igualdade e a
dignidade da pessoa humana são pedras basilares da democracia. Onde os Poderes
Públicos buscam promovê-las, aí há democracia. Decerto que a medida da partici-
pação desses elementos é o princípio da razoabilidade. Caso o discurso consagre a
democracia e a prática a rejeite acintosamente, ela inexiste.
Assim como hoje se sustenta uma “personificação do direito administrativo”,
tomando a pessoa como seu cerne, destaque-se a pessoa como centro do direito
constitucional, do poder político e da democracia. Desponta, aí, o cidadão, agente e
promotor de sua estória.
A inserção da pessoa no processo político implica dever dos Poderes Públicos
de favorecer essa integração. Manipulação ideológica, castração do pensamento e
ausência de meios de acesso à educação devem ser superados de modo incansável
para que se construa alguma experiência democrática.
Ser sujeito da democracia e não, simplesmente, estar sujeito à democracia, no
sentido de submissão popular às decisões tomadas pelos governantes, é um dos ele-
mentos fundamentais do regime democrático. Poder-se-ia afirmar que se constitui
no fator de sua realização plena, do ponto de vista de formação da vontade política.
Todavia, as dificuldades de sua implementação, seja pela imaturidade política dos
cidadãos, seja pela falta de vontade, de iniciativa ou de viabilização de mecanismos
adequados por parte dos Poderes Públicos, originam uma “democracia parcial”.
Entendemos que, conforme o contexto histórico e político, nem toda “democra-
cia parcial” significa uma democracia totalmente esfacelada, nula.
A democracia não é um conceito maniqueísta, mas um “sistema em progres-
são”: uma situação de parcialidade pode evoluir para um grau mais alto de vivência
democrática ou o oposto.
A democracia é necessária em nosso Brasil para que floresça uma realidade de
inclusão e desenvolvimento pessoal, econômico, social, cultural e político ainda não
alcançada. É necessário avançarmos nosso Estado Democrático de Direito para um
grau mais elevado. A luta para que isso ocorra é árdua e premente. Uma realidade
social e política fragmentada, vítima do capital internacional e de interesses patri-
monialistas tupiniquins, somente pode produzir novas experiências colonialistas
travestidas de falsas “democracias em desenvolvimento” ou redutos de ditadores.
A cobrança, pela sociedade, da instituição de mecanismos sólidos e permanen-
tes de inclusão popular que transcendam o voto, a criatividade na ampliação de
instrumentos participativos para além dos tradicionais, a atuação de ONGs e de

268
movimentos sociais diversificados, o crescente uso de redes sociais e de plataformas
digitais também com vistas a dar visibilidade, organizar e pressionar os poderes
instituídos em busca de promover o bem comum é o que se espera para superar a
“cidadania tutelada”. Que o direito fundamental à participação popular seja norte
e motor permanente.

REFERÊNCIAS
AMARO, Fernanda Pereira. O direito administrativo no século XII: uma remodelação.
In: TUBENCHLAK, James (coord.). Doutrina. Rio de Janeiro: ID – Instituto de Direito,
2001. v. 11. p. 133-151.
BARACHO, José Alfredo de O. Teoria geral dos procedimentos de exercício da cidadania
perante a administração pública. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte,
n. 85, p. 7-70, jul. 1997.
BARRETO, Vicente. O conceito moderno de cidadania. Revista de Direito Administrativo,
Rio de Janeiro, v. 192, p. 29-37, abr./jun. 1993.
BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Coord. da tradução: José Ferreira e Luis
G. P. Cascais. 3. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília; Linha Gráfica Ed., 1991. v. 1.
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo:
Malheiros, 2001.
CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra:
Coimbra Ed., 1991.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil – o longo caminho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas
públicas. Revista dos Tribunais/Fascículo Cível, São Paulo, ano 86, v. 737, p. 11-22, mar. 1997.
DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Ed. Universidade
de Brasília, 2001.
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Democracia, constituição e princípios constitucionais: notas
de ref lexão no âmbito do direito constitucional brasileiro. Revista da Faculdade de
Direito UFPR, Curitiba, p. 5-17, jun. 2003. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/direito/
article/view/1757. Acesso em: 15 out. 2020.
FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. O desenvolvimento da democracia como resultado
da efetiva participação do cidadão. In: GARCIA, Maria (coord.). Democracia, hoje. Um
modelo político para o Brasil. São Paulo: Celso Bastos Editor; Instituto Brasileiro de Direito
Constitucional, 1997. p. 209-254.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia possível. 4. ed. rev. São Paulo:
Saraiva, 1978.
GARCIA, Maria. A democracia e o modelo representativo. In: GARCIA, Maria (coord.).
Democracia, hoje. Um modelo político para o Brasil. São Paulo: Celso Bastos Editor;
Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1997. p. 42-43.
LAMOUNIER, Bolívar. Representação política: a importância de certos formalismos. In:
LAMOUNIER, Bolívar et al. (org.). Direito, cidadania e participação. São Paulo: TAQ,
1981. p. 233-260.

269
LEAL, Rogério Gesta. Teoria do estado: cidadania e poder político na modernidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
LEAL, Rogério Gesta, CASTRO, Matheus Felipe de. Fundamentos redefinitórios do
direito fundamental de participação social na política brasileira. Revista Opinião Jurídica,
Fortaleza, v. 11, n. 15, p. 311-338, jan./dez. 2011. Disponível em: https://periodicos.
unichristus.edu.br/opiniaojuridica/article/view/307/0. Acesso em: 19 out. 2020.
MOÁS, Luciane da Costa. Cidadania e poder local. Dissertação não publicada, apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ, em março de 1999.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participação política: legislativa –
administrativa – judicial (fundamentos e técnicas constitucionais da democracia). Rio
de Janeiro: Renovar, 1992.
PASSOS, J.J. Calmon de. Cidadania tutelada. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, v. 1, n. 7,
out. 2001. Disponível em: http://direitopublico.com.br. Acesso em: abr. 2002.
PORTELLA, R. Dependência e cidadania no Brasil: uma relação a ser discutida a partir das
matrizes culturais religiosas brasileiras. HORIZONTE – Revista de Estudos de Teologia e
Ciências da Religião, Belo Horizonte, v. 5, n. 9, p. 43-53, 3 dez. 2006. Disponível em: http://
periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/478. Acesso em: 19 out. 2020.
RAMOS, Silvana de Souza. Claude Lefort: democracia e luta por direitos. Trans/Form/
Ação [on-line], v. 39, n. 2, p. 217-234, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/
trans/v39n2/0101-3173-trans-39-02-0217.pdf. Acesso em: 19 out. 2020.
ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin
Claret, 2002.
SALDANHA, Nelson. Ethos político, direito e cidadania. In: TORRES, Ricardo Lobo
(org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 389-395.
SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Introdução: para ampliar o cânone
democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Democratizar a democracia: os
caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 39-82.
TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. In: TORRES,
Ricardo Lobo (org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004. p. 243-342.

270
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E OS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Método reconstrutivo e as possibilidades e limites
à interpretação constitucional1

Gabriela Costa e Silva2

Sumário: 1 Introdução. 2 Dos nortes interpretativos constitucionais em relação aos


direitos fundamentais. 3 Características e atributos potencializadores dos direitos
fundamentais. 4 A dimensão objetiva dos direitos fundamentais e a consolidação da
ideia de deveres institucionais. 5 Método reconstrutivo: entre a tópica e a interpretação
concretista. 5.1 Das possibilidades. 5.2 Dos limites. 6 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
A evolução do neoconstitucionalismo teve como um dos seus efeitos mais marcan-
tes o reconhecimento da jurisdição constitucional como palco de proteção dos direitos
fundamentais da pessoa humana. Essa perspectiva também é uma das responsáveis
por reforçar a tese da força normativa da Constituição, considerando-a como “[...] um
conjunto de normas jurídicas fundamentais, condicionadas pela cultura total, e, ao
mesmo tempo, condicionantes dela” (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 35).
O referido conceito pressupõe que, para além da sua acabada conformação, a
Constituição também seria fator de impulsionamento à modificação da realidade
vigente, possuindo seus dispositivos diversas classes e graus de aplicabilidade para
o desempenho desse mister. Estejam eles expressos por meio de regras ou de princí-
pios, o que se deve ter em mente é que gozam do atributo da “pretensão de eficácia”,
de acordo com as lições cunhadas por Konrad Hesse (1991, p. 15).
Sendo assim, o Supremo Tribunal Federal, como órgão último de interpretação
constitucional no Brasil, teria diante de si o desafio de superar certos argumentos
que limitariam tal atributo, reconhecendo, em definitivo, o seu papel como insti-
tuição impulsionadora da sociedade às finalidades determinadas pela Constituição.

1 O presente artigo foi elaborado como adaptação do capítulo cinco da dissertação de mestrado da
autora, de título “Substancialismo aplicado à jurisdição constitucional: possibilidades e limites de
concretização dos direitos fundamentais pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro”, apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia, em 18.8.2020, sob a
orientação do Prof. Pós-Doutor Dirley da Cunha Júnior, como parte dos requisitos para a obtenção
do título de mestre naquela Universidade. Íntegra disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/
bitstream/ri/24252/1/GABRIELA%20COSTA%20E%20SILVA.pdf.
2 Analista Processual do Ministério Público da União (PRT – 15ª Região). Mestre em Direito Público
pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de
Santa Cruz (UESC).

271
Para isso, se deverá considerar, em primeiro plano, que a atribuição de sentidos
jurídicos às prescrições normativo-constitucionais não é uma tarefa meramente
descritiva, mas sim de reconstrução de significados, tendo por intuito o ato de
“potencializar a realização da justiça” (SOARES, 2010a, p. 136). E apesar de parte
da doutrina reputar que a atividade de reconstrução se identificaria com a atividade
“criadora” do Direito, equiparando-a à função legislativa, há que se ter em mente
que ela não deixará de ser de natureza judicial, uma vez que a interpretação e a
aplicação do Direito pelos tribunais não se confundem com a atividade de edição
de diplomas normativos atribuída aos agentes do poder político, de acordo com o
sistema de divisão funcional vigente.
Essa ideia importará, principalmente, para a reafirmação de que aplicar os dispo-
sitivos constitucionais em caso de omissões ou violações perceptíveis a direitos funda-
mentais não é um ato de interferência institucional indevida, mas representa, em ver-
dade, tarefa materialmente designada ao órgão exercente da jurisdição constitucional.
Por esse motivo, no bojo deste artigo, serão delimitadas formas interpretativas
tendentes a garantir a aplicação mais abrangente possível dos direitos fundamentais
no âmbito das questões levadas ao Supremo Tribunal Federal, na condição de exer-
cente da jurisdição constitucional brasileira, levando-se em consideração a natureza
de mandados de otimização (ALEXY, 2008, p. 90) dos princípios de direito funda-
mental, conforme amplamente elucidado pela doutrina consolidada sobre o assunto.

2 ∙ DOS NORTES INTERPRETATIVOS CONSTITUCIONAIS


EM RELAÇÃO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Inicialmente, é preciso salientar que a referência e o parâmetro para as ativi-
dades de interpretação e aplicação das normas constitucionais são encontrados no
próprio ordenamento jurídico pátrio. Nesses termos:
[...] a substantividade da Teoria da Constituição se apresenta como uma inovação
em face das posturas positivistas passadas e presentes, pois toda Constituição
funda-se em valores que se exprimem em princípios constitucionais, como
a liberdade, a igualdade, a fraternidade e, sobretudo, a dignidade da pessoa
humana, conferindo uma dimensão axiológica e teleológica ao constituciona-
lismo moderno. (SOARES, 2010b, p. 123).
Para o cumprimento dessas funções, deve-se ter em mente que, apesar de a
interpretação e a aplicação das normas constitucionais estarem guiadas pelo princí-
pio da unidade e de se argumentar, em decorrência disso, que não haveria, a priori,
hierarquia entre os dispositivos constitucionais, é possível perceber que seu texto
apresenta determinados valores materiais que poderiam gozar de posição de predo-
minância ou pelo menos de status diferenciado na aplicação normativa em virtude
de servirem de guia para toda a atuação estatal.
Enquanto as normas de organização e procedimento, por exemplo, são meios para
atingir determinados resultados, os valores fundamentais positivados na Constituição
são os fins para os quais essas funções apontam. Por isso, não se pode negar a força
vinculante das normas que os expressam, sob pena de se retirar desse documento os
atributos de impulsionamento para os fins sociais do Estado, senão vejamos:
Em suma, como podemos observar das Declarações sumariamente examinadas,
é nítida a opção pelo Estado como instrumento, e pelo homem como o fim. Não

272
foi sem propósito que a Constituição Brasileira de 1998 dispôs, primeiramente,
dos direitos fundamentais (Título II) e, somente após, da organização do Estado
(Título III) e do Poder (Título IV), dando claras amostras de que o Estado é o
instrumento por meio do qual o homem – o fim – satisfaz seus direitos. O Estado
só existe e só se justifica se respeitar, promover e garantir os direitos fundamen-
tais do homem. (CUNHA JÚNIOR, 2015, p. 483, grifos do original).
Tendo em vista esse atributo de instrumentalidade do Estado e dos meios dos
quais este dispõe para a salvaguarda dos direitos mais basilares da pessoa humana, é
possível vislumbrar que os dispositivos constitucionais responsáveis por direcionar
a atividade pública não apenas organizam o poder, mas, em verdade, colocam-no
em função de determinados objetivos e finalidades.
Sobre isso, Otto Bachof (2009) teria criado, na Alemanha, proposta teórica que
previa até mesmo a existência de graus hierárquicos distintos entre as normas cons-
titucionais, concluindo que seria possível a declaração de inconstitucionalidade
de normas também constitucionais por violações ao direito chamado por ele de
“supralegal”. Com isso, o autor pretendia defender a existência de preceitos mate-
riais fundamentais da Constituição em detrimento de “[...] normas constitucionais
de significado secundário” (BACHOF, 2009, p. 54).
Nesse caso, apesar de muitos o acusarem de jusnaturalista pela referência que
faz a postulados de justiça como “[...] respeito e a proteção da vida humana e da dig-
nidade do homem, proibição da degradação do homem num objeto, direito ao livre
desenvolvimento da personalidade, exigência da igualdade de tratamento e proibi-
ção do arbítrio” (BACHOF, 2009, p. 2), é de se ponderar que esta não poderia ser
uma crítica absorvida para o caso brasileiro, já que todas essas expressões, apesar
de seu evidente vértice axiológico, estão devidamente positivadas pela Constituição
Federal pátria, gozando de natureza deontológica e, por isso, de força normativa.
Seguindo essa linha, o art. 60 da CRFB determina, em seu § 4º, a existência de
determinados imperativos, os quais, devido ao seu grau de importância no papel
de contenção das forças estatais, não poderiam ser colocados à discricionariedade
do poder constituinte derivado, atribuindo-se a estes o caráter de super rigidez que
impede a sua total abolição do ordenamento jurídico por meio das chamadas emen-
das constitucionais. São, portanto, os mandamentos de rigidez: I – a forma federa-
tiva de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos
poderes; e, por fim, IV – os direitos e garantias individuais.
Sobre esse último inciso, ressaltamos que, apesar de o termo “individuais” adje-
tivar “direitos e garantias”, entendemos que o dispositivo não pode sofrer inter-
pretação limitativa, abarcando apenas os direitos fundamentais de natureza indi-
vidual.3 Em verdade, a proteção da super rigidez constitucional “[...] alcança todos

3 Exemplo de defesa dessa percepção limitativa encontra-se no texto de Gilmar Mendes, o


qual entende que a proteção dada pelo art. 60, § 4º, inciso IV da Constituição se limitaria aos
direitos elencados no art. 5º. Para ele, “[...] enquanto os direitos individuais propriamente ditos
– especialmente os chamados direitos de liberdade e de igualdade – guardam, na sua essência,
certa uniformidade e coerência ao longo da história constitucional dos diversos países e são,
por isso, considerados núcleo essencial e indispensável do Estado de Direito, os direitos sociais
são dotados de conformação variada ou diversa, de acordo com o estágio de desenvolvimento
de uma dada sociedade, e podem (devem) sofrer adaptação ou atualização no decorrer do
tempo”. (MENDES, 2009, p. 452).

273
os direitos e garantias fundamentais, incluindo os de natureza coletiva e difusa e os
direitos sociais” (CUNHA JÚNIOR, 2015, p. 207).
Ademais, é preciso destacar que, para além da super rigidez de todo o rol de
direitos fundamentais inscritos no texto constitucional, é preciso alertar para o
fato de a Constituição apresentar em posição propedêutica uma gama de valores,
objetivos e fundamentos que condicionam as atividades, não apenas do legislador
e constituinte derivado, mas também de todo e qualquer órgão do poder estatal.
Sendo assim, os exercentes do poder, eleitos ou não, deverão observar as seguin-
tes disposições no desempenho de suas funções:
a. O preâmbulo, que, apesar de considerado por muitos como desprovido de força
normativa, revela que a Constituição por ele inaugurada está inserida no con-
texto de um “Estado Democrático”, com claro objetivo de “assegurar o exercí-
cio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça” como valores supremos da sociedade;
b. O Título I, no qual se determinam:
b.1. Como fundamentos do Estado, os valores da cidadania, da dignidade da pessoa
humana, os valores sociais do trabalho, da livre-iniciativa e do pluralismo polí-
tico (art. 1º). Através dessas ideias, reconheceu-se que “[...] é o Estado que existe
em função da pessoa humana e não o contrário, já que o ser humano constitui
a finalidade precípua, e não o meio da atividade estatal” (SARLET, 2012, p. 80);
b.2. Como objetivos, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garan-
tia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e redução das desi-
gualdades (art. 3º);
b.3. Como princípios para suas relações com outros Estados, a prevalência dos direi-
tos humanos e a cooperação para o progresso da humanidade (art. 4º);
c. O Título II, no qual se dispõem em posição de destaque os direitos e garantias
fundamentais, individuais e coletivas, que salvaguardam aos indivíduos não só
direitos à liberdade, igualdade (art. 5º), mas também direitos sociais (art. 6º) e
políticos (art. 14);
d. E o encerrativo Título VIII, que elenca diversas disposições genéricas (direitos
de todos) e vinculativas (deveres do Estado), como os direitos à saúde (art. 196),
à educação (art. 205) e ao meio ambiente sadio e equilibrado (art. 225).
Verificada, portanto, a riqueza de detalhes com a qual a Constituição Federal
brasileira aborda a questão dos direitos fundamentais e de sua aplicabilidade, é de
se ponderar que, pelo atual estado de coisas, o maior desafio não seria mais o de se
reconhecer positivamente esses direitos, mas sim o de garantir seu pleno exercício
e gozo por parte dos jurisdicionados (BOBBIO, 2004, p. 23). Por isso é que se diz
que, nessa etapa, ultrapassadas as ingenuidades do direito natural clássico, a maior
preocupação seria a da efetivação desses direitos.
Nesse esteio, será feito a um escorço acerca das características e potencialidades
das normas definidoras de direitos fundamentais, determinando-se as possibilidades
diante das quais o Supremo se encontra para o desempenho do encargo de efetivação
destas, ainda que no âmbito das demandas de questionamento das leis e atos norma-
tivos em abstrato ou no exercício de uniformização da jurisprudência nacional.

274
3 ∙ CARACTERÍSTICAS E ATRIBUTOS POTENCIALIZADORES
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A busca do pleno potencial das normas de direito fundamental envolve, em
primeiro lugar, superar o discurso isolacionista que coloca em risco a eficácia inte-
gradora da Constituição. Nessa hipótese, se a previsão normativa de valores fun-
damentais existe e se ela é invocada por aquele que, de maneira legítima e regular,
provoca a jurisdição constitucional, não deveria haver razões para a recusa da sua
aplicação. Nesse caso, caberia ao operador apenas ajustar-se, em maior ou menor
grau, às finalidades impostas pela Constituição, não deixando de se esquivar delas
por invocar não estar juridicamente respaldado para tal.
Sendo assim, a primeira característica potencializadora de relevo dos direitos fun-
damentais seria o fundamento primordial que os direciona, direta ou indiretamente: a
dignidade da pessoa humana, também designada de “fundamento dos fundamentos”.
Este seria o critério unificador dos direitos fundamentais, vetor de interpretação para
toda modalidade de lei ou ato normativo, incluindo os de natureza constitucional.
Apesar das discordâncias teóricas sobre a natureza jurídica dessa construção, é
de se destacar que ela não poderá ser considerada uma mera abstração ou termo de
natureza puramente axiológica, uma vez que a Constituição consagra a dignidade da
pessoa humana como um dos fundamentos da República brasileira (art. 1º, inciso III).
Dito isso, é necessário apontar que, embora seja um termo de difícil conceituação,
existe na doutrina determinado consenso em se fazer referência à concepção kan-
tiana do termo, representada pela máxima: “[...] a pessoa é um fim em si mesmo, não
podendo converter-se em instrumento para a realização de um eventual interesse”
(SOARES, 2010b, p. 128). Por meio dessa visão, a pessoa humana não poderia se com-
parar com as “coisas”, que são valoradas pelo qualitativo do “preço”, em virtude do
seu atributo de instrumentalidade. Desse modo, assevera-se como repudiável toda e
qualquer espécie de conduta que venha a reificar ou instrumentalizar o ser humano.
A consolidação dos direitos fundamentais representa o fortalecimento dessa
ideia nas diversas modalidades de interação entre o Estado e a pessoa humana e
entre as próprias pessoas humanas em suas relações privadas. Por isso é que se diz
que todos os direitos e garantias fundamentais, ainda que em diferentes intensida-
des, desaguam na noção da dignidade da pessoa humana.
Sendo assim, o “fundamento dos fundamentos”, apesar de ser um termo de
cunho filosófico e tessitura aberta, não perderá seu caráter de núcleo essencial e
parâmetro de justificação dos direitos fundamentais em todas as suas dimensões,
considerando-se que todos eles deverão objetivar não outra coisa a não ser a visão
do homem como fim em si mesmo, e não como objeto à disposição do poder estatal
ou do poder privado. Por essa razão, afirma-se que seu conteúdo “[...] reclama uma
constante concretização e delimitação pela práxis constitucional, tarefa cometida a
todos os órgãos estatais” (SARLET, 2012, p. 52), e, nesse caso, de maneira especial,
ao Supremo Tribunal Federal.
Dito isso, é preciso reconhecer que, embora as prescrições de direito fundamen-
tal também se inscrevam na Constituição através de conceitos mais abertos, e, por
isso, majoritariamente sob a forma de princípios constitucionais, deve-se reafirmar
que, ainda assim, não deixarão de também possuir o atributo da força normativa.

275
Nesse sentido, e com suporte nas ideias de Humberto Ávila (2014), compreen-
de-se que quando um dispositivo normativo se configura na forma de princípio, as
finalidades por ele impostas deixam de ser meros valores axiológicos ou conselhos
dados aos destinatários, para se investir dos atributos da generalidade e imperativi-
dade atribuídos às normas jurídicas.
Partindo do problema da “forma” de apresentação dos direitos fundamentais para
a sua “abrangência”, é preciso apontar para o fato de o art. 5º, § 2º, da Constituição
Federal consagrar a abertura material dos direitos fundamentais, atribuindo a eles,
então, a característica da inesgotabilidade, aqui apontada como segundo fator de
potencialização dos referidos direitos. Em reprodução ao teor do mencionado artigo,
é de se definir, por meio deste conceito, que os direitos fundamentais já existentes e
elencados em todo corpo da Constituição “[...] não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte” (art. 5º, § 2º, CRFB).
Isso demonstra que as atuações em torno dos direitos fundamentais devem ten-
der a ser sempre expansivas, e não restritivas, ainda que regidas pelo princípio da
unidade e pelo caráter da relatividade que significa a possibilidade de “cedência
recíproca” entre direitos fundamentais em eventual conflito.4
A ideia de relatividade dos direitos fundamentais, de sua vez, deve vir acom-
panhada do intuito do menor comprometimento possível do direito fundamental
que demonstre ter menor relevância para preponderar no caso sub judice. Isso
derivaria do também atributo da indivisibilidade dos direitos fundamentais que
os coloca dentro de um mesmo regime jurídico, o que garante a base de funda-
mentação para o postulado da coerência.
Para reforço do argumento, destaca-se que existe o imperativo de “não aboli-
ção” dos direitos fundamentais devidamente registrado no texto constitucional,
quando se consagra, no art. 60, § 4º, IV, que os direitos e garantias fundamentais
são cláusulas pétreas indisponíveis à discricionariedade dos órgãos estatais. Nesse
sentido, veda-se qualquer proposta “[...] tendente a abolir, mitigar, atenuar ou redu-
zir” (MENDES, 2009, p. 447) o sentido e as finalidades destes direitos. Em outras
palavras, isso quer dizer que, se alguma operação houver que ser feita em torno dos
direitos fundamentais, esta deverá ser a fim de garanti-los da maneira mais abran-
gente possível, e não para reduzi-los em sua eficácia, buscando-se nos dispositivos
que impõem objetivos e finalidades ao Estado o fundamento racional para isso.
Dessa maneira, tais atributos aplicam-se aos direitos fundamentais em todas
as suas modalidades, ainda que a sua origem não seja diretamente constitucio-
nal, ou, melhor dito, ainda que se trate de direito fundamental por inferência ou
decorrente, 5 conforme se expõe:

4 A “cedência recíproca” deriva da aplicação do postulado da concordância prática de aplicação


normativa, e tem por objetivo fazer com que “valores que apontam total ou parcialmente para
sentidos contrários” (ÁVILA, 2014, p. 187) se harmonizem ao máximo, devendo-se buscar através
de concessões recíprocas a harmonização entre os princípios eventualmente conflitantes, servindo
a aplicação do postulado também ao atributo da unidade constitucional.
5 Nesse particular, acredita-se que a utilização do termo “implícito” poderia gerar enfraquecimento
do argumento da força normativa do direito fundamental que é sobreinterpretado da Constituição.

276
[...] os direitos fundamentais implícitos (aqueles subentendidos das normas defi-
nidoras de direitos e garantias fundamentais expressas) e decorrentes (aqueles
decorrentes do regime e dos princípios que a Constituição adota) e os direitos
fundamentais previstos na Constituição, mas fora do catálogo e em tratados
internacionais (ou seja, aqueles decorrentes dos tratados internacionais em que
a República Federativa do Brasil seja parte) são direitos constitucionais funda-
mentais, com todas as consequências jurídicas daí decorrentes: são protegidos
pela Constituição; não podem ser abolidos, nem mesmo por emenda constitu-
cional e vinculam imediatamente os poderes públicos, além de desfrutarem de
aplicabilidade imediata e servirem de parâmetro obrigatório à atuação estatal.
(CUNHA JÚNIOR, 2015, p. 535, grifos da autora).
Considerando, então, as razões do neoconstitucionalismo, do fenômeno da cons-
titucionalização do Direito e as perspectivas diante da força normativa dos direitos
fundamentais, e entre eles também os de origem decorrente, pondera-se que incumbe
ao Estado, por meio de suas instituições e procedimentos organizacionais: (a) protegê-
-los; (b) organizar-se em torno dos objetivos por eles descritos; (c) garantir processos
seguros e efetivos para sua reivindicação; (d) promovê-los por meio de decisões admi-
nistrativas; e, por fim, (e) satisfazê-los por meio de decisões judiciais.
Tal constatação se coaduna com a ideia da chamada por Cappelletti (1999,
p. 62) de “justiça constitucional das liberdades” ou Grundrechtsgerichtsbarkeit,
reafirmando o fenômeno da expansão da justiça constitucional em diversos países
de fundo democrático.
Sendo assim, a “criação judicial do Direito”, como denominado pelo autor ita-
liano, significaria um dos desdobramentos do neoconstitucionalismo, responsável
por instalar a chamada “revolta contra o formalismo” desenvolvida nos países que
se encontraram em situações estatais abusivas potencializadas pela crença de que o
juiz seria “mera e inanimada boca da lei”. Nesse sentido, leciona:
Desnecessário acentuar que todas essas revoltas conduziram à descoberta de
que, efetivamente, o papel do juiz é muito mais difícil e complexo, e de que o juiz,
moral e politicamente, é bem mais responsável por suas decisões do que have-
riam sugerido as doutrinas tradicionais. Escolha significa discricionariedade,
embora não necessariamente arbitrariedade; significa valoração e “balancea-
mento”; significa que devem ser empregados não apenas os argumentos da lógica
abstrata, ou talvez os decorrentes da análise linguística puramente formal, mas
também e, sobretudo aqueles da história e da economia, da política e da ética, da
sociologia e da psicologia. (CAPPELLETTI, 1999, p. 33).
A partir desse paradigma, Cappelletti destaca que não só os ministros do
Supremo mas também todo e qualquer magistrado terão para si atribuída a tarefa
de “criar o Direito”, ou, no termo aqui escolhido como mais apropriado para esta
função, deverão reconstruí-lo a toda e qualquer demanda que lhes for colocada a
crivo, seja ela concreta ou abstrata.
Esta atividade não pode ser confundida com a atividade legislativa, de natu-
reza política; por esse motivo, esta autora se filia ao termo reconstrução para

Assim, como tentativa de evitar o esvaziamento do argumento da força normativa dessa


modalidade indireta de direito fundamental, optou-se por utilizar o termo “direito fundamental
por inferência” ou “direito fundamental decorrente” de maneira genérica, reforçando, assim, o
atributo da pretensão de eficácia destes em quaisquer das modalidades descritas.

277
definir a tarefa da Corte em interpretar e aplicar o Direito, mormente em relação
aos direitos fundamentais.
Em relação a isso, veja-se:
O papel do intérprete e aplicador do direito seria, portanto, o de reconstruir
racionalmente a ordem jurídica vigente, identificando os princípios funda-
mentais que lhe dão sentido. Rompe-se, assim, com a dicotomia hermenêutica
clássica que contrapõe a descoberta (cognição passiva) e a invenção (vontade
ativa) na busca dos significados jurídicos [...] O de que se trata é de buscar
identificar os princípios que podem dar coerência e justificar a ordem jurídica,
bem como as instituições políticas vigentes. Cabe ao intérprete orientar-se
pelo substrato ético-social, promovendo, historicamente, a reconstrução do
direito, com base nos referenciais axiológicos indicados pelos princípios jurí-
dicos. (SOARES, 2010a, p. 117, grifos da autora).
Dessa forma, apesar da crítica feita, coaduna-se, neste ponto, com outra ideia
exposta por Cappelletti (1999) quando este diz que o principal problema científico
do observador do fenômeno constitucional não deveria ser o de se indagar acerca
da função “criativa” ou não dos tribunais, mas sim o de compreender quais seriam
os modos e limites para essa atuação.
Por isso, importante se faz vislumbrar nos seguintes passos a forma como tais
direitos se revelam aos poderes públicos, de maneira a considerar os direitos fun-
damentais não apenas como direitos subjetivos dos jurisdicionados, mas também
como deveres institucionais do Estado, demonstrando, de maneira exponencial,
como sua aplicação deve ser feita para que haja sua desejada promoção por meio das
atividades de jurisdição constitucional.

4 ∙ A DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


E A CONSOLIDAÇÃO DA IDEIA DE DEVERES INSTITUCIONAIS
Ainda sobre os atributos de direitos fundamentais e sua forma de aplicação
nas atividades do Poder Judiciário, é preciso destacar que, ao contrário do legis-
lador, os membros do Judiciário não estão autorizados a se esquivar de decidir
ou a delongar-se em demasia na conferência de solução definitiva para os casos
que lhes são postos, em virtude da máxima da vedação ao non liquet, que lhes
determina a obrigação de decidir.
Esse imperativo, de sua vez, deve ser visto com ainda mais cautela quando se
trata da tutela abstrata e coletiva dos direitos da pessoa humana, uma vez que o
potencial transformador dessas decisões é de amplo alcance, repercutindo sobre
toda a jurisdição do território nacional.
A diferença, em termos de dilação temporal, entre as atuações política e jurídica
em torno dos direitos fundamentais pode ser bem explicada quando se refere ao § 1º
do art. 5º da Constituição Federal, que determina terem as normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais aplicabilidade imediata (Aktualität), demons-
trando, com isso, a importância e a urgência de se fazerem efetivamente operantes
suas determinações na realidade prática.
Levando isso em conta e avançando no estudo dos atributos potencializado-
res dos direitos fundamentais, é de se destacar que sua eficácia e aplicabilidade
estão direcionadas aos Poderes Públicos da seguinte maneira: enquanto a eficácia

278
vinculante obriga os Poderes Públicos a proceder a sua integral observância, a eficá-
cia dirigente impõe ao Estado o dever permanente de concretização e realização dos
direitos fundamentais. Já a eficácia irradiante (Ausstrahlungswirkung) impõe que os
sobreditos direitos sirvam de diretrizes ou vetores para a interpretação e aplicação
de todas as normas constitucionais no ordenamento jurídico.
Sob essa perspectiva, e de acordo com a teoria de Robert Alexy (2008, p. 180),
extrai-se a concepção clássica de os direitos fundamentais serem concebidos, origi-
nariamente, como direitos públicos subjetivos, isto é, como direitos do cidadão em
face do Estado, e que, para além dessa esfera subjetiva, eles também representam
valores da comunidade que não somente o Estado mas também toda a sociedade
devem respeitar, proteger e promover. Em outras palavras:
Os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos
fundamentais da ordem constitucional objetiva. Enquanto direitos subjetivos,
os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os
seus interesses em face dos órgãos obrigados. Na sua dimensão como elemento
fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais – tanto
aqueles que não asseguram, primariamente, um direito subjetivo quanto aque-
loutros, concebidos como garantias individuais – formam a base do ordena-
mento jurídico de um Estado de Direito democrático. (MENDES, 2009, p. 2).
Nessa linha de raciocínio, Alexy (2008, p. 524) descreve a chamada “tese
irradiante”, prelecionando que o Tribunal Constitucional deve levar os direi-
tos fundamentais para além da sua esfera subjetiva, entendendo-os como uma
ordem objetiva de valores que impulsiona tanto a produção legislativa como a
administração pública e a construção jurisprudencial, para além das relações
estabelecidas entre os particulares.
Essa perspectiva, de sua vez, deriva do dúplice caráter do princípio da dignidade
da pessoa humana, representando, não apenas direitos subjetivos à sua proteção e
promoção pelo Estado e particulares, mas também possuindo dimensão intersub-
jetiva que determina a existência de um dever geral de respeito por parte de todos,
e principalmente por parte do Estado (SARLET, 2012, p. 133). Sendo assim, suas
ações, planejamentos e decisões devem observância a esse princípio e aos direitos
fundamentais que nele buscam seu núcleo essencial de justificação:
Uma vez situado no ápice do sistema jurídico, o princípio da dignidade da pessoa
humana exprime as estimativas e finalidades a serem alcançadas pelo Estado e pelo
conjunto da sociedade civil, irradiando-se na totalidade do direito positivo pátrio,
não podendo ser pensada apenas do ponto de vista individual, enquanto posições
subjetivas dos cidadãos a ser preservadas diante dos agentes públicos ou particula-
res, mas também vislumbrada numa perspectiva objetiva, como norma que encerra
valores e fins superiores da ordem jurídica, impondo a ingerência ou a abstenção
dos órgãos estatais e mesmo de agentes privados. (SOARES, 2010b, p. 149).
Assim, os direitos fundamentais serão considerados junto aos poderes públicos
como verdadeiros deveres fundamentais, demandando não somente sua abstenção em
sede de liberdades individuais, mas também sua efetiva implementação através da
conferência de prestações positivas constitucionalmente garantidas aos indivíduos.
Embora seja esta uma perspectiva salutar, ela é, ainda hoje, adotada de maneira
tímida, não só pelo Tribunal, mas também por boa parte da doutrina constituciona-
lista pátria. Sobre isso, explicita de maneira crítica a lição de Ingo Sarlet:

279
No âmbito da doutrina constitucional brasileira, os deveres fundamentais não
tiveram destino diferente, sendo praticamente inexistente o seu desenvolvi-
mento doutrinário e jurisprudencial. Em boa parte, tal evolução encontra razão
de ser na configuração do próprio Estado de Direito e do que se poderia designar
de uma ‘herança liberal’, no sentido de compreender a posição do indivíduo
em face do Estado como a de titular de prerrogativas de não intervenção na sua
esfera pessoal, conduzindo à primazia quase absoluta dos ‘direitos subjetivos’
em detrimento dos ‘deveres’. Tal hipertrofia dos direitos, por outro lado, guarda
conexão com a noção de um cidadão pouco (ou quase nada) comprometido com
a sua comunidade e seus semelhantes, o que, na perspectiva do Estado Social,
acabou desafiando uma mudança. Em virtude da necessidade de moderação
do excessivo individualismo, bem como o caráter demasiado liberal atribuído à
ideia de Estado de Direito, contemplando, dessa maneira, os elementos sociais e
os deveres econômicos, sociais e culturais. (SARLET, 2009, p. 226-227).
A visão exposta denota que, ainda hoje, a dimensão subjetiva é vista em posição
de predominância. Para as particularidades do objeto desse estudo, no entanto, é de
se ponderar que não existem direitos subjetivos diretamente tuteláveis na discussão
das ações de controle abstrato, mas tão somente “interesses genéricos” dirimidos no
palco da jurisdição constitucional.
É preciso perceber, portanto, que, nessa esfera de discussão, o ordenamento jurí-
dico se coloca em função do ser humano, não sob a forma do indivíduo concreto, mas
sim em sua figura abstrata e interligada a tantos outros homens, o que garante a ideia
de coletividade e da prevalência do interesse público sobre o privado. Sendo assim, o
Direito em abstrato, revelado por meio dos deveres objetivos expressos pelos direitos
fundamentais, terá por finalidade criar impositivos que tenham por objetivo atingir
os valores determinados na Constituição Federal de maneira coletiva e genérica.
No caso brasileiro, repita-se, o problema não está na falta de embasamento jurí-
dico ou de instrumentos processuais adequados à concretização dos direitos fun-
damentais. Está, em verdade, na priorização dos valores escolhidos pelo Supremo
Tribunal Federal quando no julgamento das ações da jurisdição constitucional e
pelos órgãos legislativos e executivos no âmbito de suas atuações institucionais. É
de se ressaltar que, nesses âmbitos, embora utilizados os meios pertinentes, a norma
constitucional discutida, por vezes, deixa de atender ao imperativo de conforma-
ção, fazendo com que esses valores fundamentais percam sua força argumentativa
diante das possibilidades procedimentais.
A partir dessas ideias, pode-se delinear entendimento acerca da necessidade de
efetividade dos direitos fundamentais, conceito este que está intrinsecamente ligado às
ideias de faticidade na norma e de sua operatividade na realidade posta. Dessa forma,
o atributo da efetividade implica obediência dos destinatários e do Poder Público à
norma constitucionalmente imposta, havendo uma forte relação entre esta e o atri-
buto da coercibilidade. Quando uma norma é efetiva, isso quer dizer que ela é posta
em prática no cotidiano, aproximando o dever-ser normativo da realidade social.
Para auxiliar nessa tarefa de efetivação, o Tribunal está munido de conceitos-chave
que conferem sentido aos termos abertos da Constituição, auxiliando no estabeleci-
mento de possibilidades e limites a essa operação interpretativa. Como exemplo de tais
conceitos-chave, podemos destacar os princípios da proporcionalidade e da razoabi-
lidade, a garantia do mínimo existencial, a interpretação conforme a Constituição,
entre tantos outros que servem aos direitos fundamentais em sua potência.
280
E, para que isso aconteça, o ordenamento jurídico dispõe de diversos instru-
mentos, visando imprimir a obrigatoriedade e a adesão a suas normas. A partir
desse conceito é que se pode construir a vertente da “justiciabilidade” dos direitos
fundamentais, quer na forma de tutela da sua defesa, quer na forma de concessão
das prestações estatais requeridas pelos grupos de interesse social.
Admitir essa vinculação significa que, para além de se tutelar o amplo acesso à jus-
tiça, a resolução da demanda deve ser satisfatória, sendo obtida por meio da utilização
ótima dos instrumentos jurídicos disponíveis, de maneira a não deixar que o texto
interpretado da Constituição seja meramente simbólico ou de natureza nominal.
E nisso residirá uma das principais teses substancialistas, a nosso ver acer-
tada: a da vinculação dos poderes públicos “aos ditames da materialidade da
Constituição”. Se se quiser evitar as dificuldades em se justificar porque apenas
algumas normas constitucionais devem ser levadas a sério, correndo-se o risco
de tornar o diploma constitucional uma “constituição normativa na parte que
toca os interesses das classes hegemônicas e uma Constituição nominal na parte
que toca os interesses das classes que buscam emancipação”, há de se admitir, ao
menos a priori, a plena vinculabilidade dos poderes públicos a todos os preceitos
constitucionais. (ECHAIZ-ESPINOZA, 2009, p. 158).
A perspectiva objetiva dos direitos fundamentais lhes retira o caráter de instru-
mentos voltados tão somente para a manutenção da abertura do sistema jurídico
aos trâmites democráticos. Mais que isso, a tese substancialista vê os direitos fun-
damentais como verdadeiros valores substantivos, cuja proteção, garantia, fomento
e satisfação devem ser finalidades precípuas da atividade pública.
Sua positivação sob a forma de princípios constitucionais fará com que sejam
entendidos não de outra forma, a não ser como elementos finalísticos que funda-
mentam “[...] uma avaliação de correlação entre os efeitos da conduta a ser adotada
e a realização gradual do estado de coisas exigido” (ÁVILA, 2014, p. 98).
Assim, as exigências da justiça e da concretização dos demais valores que cons-
tituem o ordenamento jurídico são impositivas e devem ser atendidas pela atividade
de reconstrução, que não se limita às soluções “petrificadas ou esgotadas” da forma
como se daria na atividade meramente subsuntiva de aplicação das regras. Para isso
é que se procede ao delineamento do método reconstrutivo de aplicação das normas
constitucionais, tomando-o como sugestão adequada em prol das atividades de
interpretação e aplicação jurisdicional constitucional, de maneira a torná-las não
redutoras, mas potencializadoras da Constituição e dos direitos fundamentais.

5 ∙ MÉTODO RECONSTRUTIVO:
ENTRE A TÓPICA E A INTERPRETAÇÃO CONCRETISTA
5.1 ∙ DAS POSSIBILIDADES
A Constituição está repleta de dispositivos com grande potencial de concreti-
zação. Além disso, fornece os meios adequados para legitimar a operacionalização
dessa atividade. Isso quer dizer que o problema da inefetividade de seus disposi-
tivos reside mais nos caminhos de formulação decisória e na eleição de valores
prioritários durante o julgamento do que nos instrumentos procedimentais exis-
tentes propriamente ditos. Por conseguinte, uma das preocupações basilares seria
a de se encontrarem modalidades metodológicas de aplicação dos dispositivos
281
constitucionais que importassem em menor sacrifício e maior potencialidade
possível dos direitos fundamentais.
Proposto para isso, o método interpretativo, aqui denominado “reconstrutivo”,
utiliza-se de elementos dos métodos tópico e concretista de interpretação constitu-
cional, bem como das ideias de interpretação construtiva (DWORKIN, 1999), e de
hermenêutica heterorreflexiva, (CARNEIRO, 2011), correlacionando-os e adaptando-
-os à atividade do Supremo Tribunal Federal no julgamento das demandas abstratas.
Em relação às atividades institucionais do Supremo, consideram-se, então, três
modalidades de competências atribuídas pelo art. 102 da CRFB, no âmbito abstrato,
a esse órgão de cúpula: a) as ações de controle de constitucionalidade por ação (ADI
e ADPF); b) as ações de controle de inconstitucionalidade por omissão (ADO); e c)
os recursos extraordinários movidos como demanda para a uniformização inter-
pretativa dos dispositivos constitucionais.
No que tange às etapas do método reconstrutivo, constroem-se quatro fases
distintas, quais sejam: 1) identificação do problema; 2) pré-compreensão; 3) hete-
rorreflexão; e, por fim, 4) prospecção.
A primeira fase consiste em identificar o problema constitucional e estabelecer
seus reais contornos. É a atividade de definição do objeto de julgamento, que com-
preende duas subfases iniciais: a primeira se refere à averiguação do atendimento
aos pressupostos formais para o manejo do instrumento processual utilizado pela
parte legitimada; e a segunda está relacionada à compreensão do problema em si.
Esta atividade é feita com a ajuda da formulação de topoi relacionados aos casos
constitucionais analisados pelo Supremo.
Nas ações do controle de constitucionalidade em abstrato, a primeira sub-
fase compreende a verificação de termos como a legitimidade ativa do ente pos-
tulante e a forma de revestimento formal do ato impugnado. A segunda subfase,
de sua vez, circunscreve-se à análise material que visa a delimitar o conteúdo da
impugnação propriamente dita.
De maneira ilustrativa, no caso do controle das omissões, a segunda subfase
envolverá a ponderação de aspectos como a “suficiência” do ato, nos casos de omissão
parcial, e a “razoabilidade” do tempo entre a vigência do mandamento constitucional
de regulamentação e a ausência do ato normativo apontado, em todos os casos.
Necessário destacar que, embora não aparente ser assim, essa atividade de aná-
lise material também se aplica às impugnações sobre o vício de inconstitucionali-
dade por ação formal, pois, ainda que não haja mácula à significância do texto em
si, circunstâncias fáticas como a insuficiência de quorum de aprovação ou falhas no
procedimento legislativo serão responsáveis por identificar os contornos do pro-
blema constitucional trazido a julgamento.
É por via desse argumento que se pode impugnar, por exemplo, a existência
da figura da “ação declaratória de constitucionalidade” no ordenamento jurídico
pátrio. Isso porque, as discussões comportadas nessa modalidade processual não
se inserem na definição de “problema constitucional” propriamente dito, uma vez
que as normas jurídicas já gozam per se do atributo da presunção de constituciona-
lidade, e qualquer dúvida acerca de sua constitucionalidade ou não pode ser eviden-
temente questionada por meio das ações de controle negativo.

282
A par disso, devemos destacar que, para o caso das demandas interpretativas
manejadas nos recursos constitucionais extraordinários, a primeira subfase da deli-
mitação do problema se insere na análise dos pressupostos extrínsecos e intrínsecos
de tal recurso. Já a segunda subfase compreende a análise específica de um destes
pressupostos intrínsecos: a averiguação da denominada repercussão geral.6
Nesse sentido, o instituto da repercussão geral representa a preocupação da con-
formação do processo com os caracteres da realidade, para além da sua natureza de
condição de procedimentalidade. Por isso é que, para o processamento desse tipo
de demanda, é necessário analisar se existem “[...] questões relevantes do ponto de
vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjeti-
vos do processo” (art. 102, § 3º, da CRFB).
Sendo assim, a fase tópica de delineação do problema estará relacionada à aná-
lise tanto das condições de procedimentalidade do instrumento processual utilizado
como das circunstâncias fáticas do objeto questionado, quer em sede de controle abs-
trato de constitucionalidade, quer em sede de recurso extraordinário. Dessa forma:
“Pensar o problema” constitui o âmago da tópica em suas considerações acerca
do método. Novo estilo de argumentação e acesso à coisa, a tópica não é uma
revolta contra a lógica, conforme de entendeu equivocadamente inculcar.
Busca, em primeiro lugar, conforme ressaltou Esser, demonstrar que o argu-
mento dedutivo não constitui o único veículo de controle da certeza racional.
(BONAVIDES, 2015, p. 501).
A segunda fase do método reconstrutivo, de sua vez, demonstra a conciliação desta
primeira pontuação da tópica aos elementos positivo-formais da discussão jurídica.
Nesse momento, o foco passa a ser a norma constitucional parâmetro de controle de
constitucionalidade ou o(s) dispositivo(s) constitucional(is) sobre o(s) qual(is) se exija
a tarefa de uniformização interpretativa no caso do recurso extraordinário.
A fase da pré-compreensão, portanto, já despontada no momento de identifica-
ção circunstancial do problema, se completa definitivamente quando se vislumbra
a referência jurídica de atuação do intérprete/aplicador: o dispositivo constitucional
incisivamente invocado por quem ajuíza a ação ou interpõe o recurso constitucional.
Nesse caso, “[...] a argumentação persuasiva terá por ponto de apoio essen-
cial o consenso, e por ponto de partida uma espécie de ‘compreensão prévia’
(Vorverständnis), tanto do problema como da Constituição” (BONAVIDES, 2015, p.
507). Com isso, a tarefa de interpretação e aplicação das normas constitucionais não

6 O instituto da repercussão geral é definido em dois momentos pelo ordenamento jurídico


brasileiro: no art. 102, § 3º, da Constituição Federal (“§ 3º No recurso extraordinário o recorrente
deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos
da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela
manifestação de dois terços de seus membros”) e no art. 1.035 do Código de Processo Civil de 2015
(“O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário
quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo.
§ 1o Para efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do
ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do
processo”). Sua definição ressalta o grau de abstração desta tarefa relegada ao Supremo Tribunal
Federal, que, no julgamento dos recursos extraordinários, não dará enfoque às circunstâncias
dos casos concretos que os originaram, mas realizará tarefa de uniformização da interpretação
constitucional para fins de manutenção da segurança jurídica do ordenamento.

283
se excederá na missão de compreensão axiológica (dos valores) e teleológica (dos
fins) dos dispositivos jurídicos invocados, não havendo que se falar, portanto, nem
em “criação judicial de Direitos”, nem em “politização” da decisão jurídica, como
vem também destacando parte da doutrina publicista pátria.
A tarefa de “compreensão” dos termos constitucionais, de outra ponta, também
não se deve confundir com a mera subsunção do problema ao texto escrito, mas
deve sim buscar na redação do dispositivo o seu juízo de finalidade e valor emba-
sante. Fazer isso implica trazer o atributo da relatividade dos direitos fundamentais
a patamares mínimos, com o propósito de evitar o comprometimento da realizabi-
lidade prática do texto jurídico-constitucional.
A fase da pré-compreensão, portanto, pode ser relacionada a aspectos da inter-
pretação “construtiva” de Dworkin (1999, p. 119) e de sua concepção do Direito
como integridade. A delimitação jurídico-constitucional do problema é o que
garantirá a segurança jurídica da decisão proferida, fazendo referência tanto ao
elemento histórico quanto ao elemento institucional do Direito invocado em juízo.
É nessa fase que se ensejará a observância às condições de “[...] certeza, estabilidade
e predizibilidade” (SOARES, 2010a, p. 101) da decisão judicial.
É necessário ressaltar que a fase de cognição prévia não se encerra apenas
na análise do dispositivo invocado ou das reflexões jurídico-doutrinárias que se
tenham dele, mas faz referência também à interpretação sistêmica, que, embora seja
classicamente criticada pela tópica, faz-se de suma importância para a manutenção
da unidade constitucional e da coerência do sistema jurídico. Como dito por Ávila,
[n]o âmbito do Direito, há postulados hermenêuticos, cuja utilização é necessária
à compreensão interna e abstrata do ordenamento jurídico, podendo funcionar,
é claro, para suportar essa ou aquela alternativa de aplicação normativa. Dentre
os mais importantes está o postulado da unidade do ordenamento jurídico, a exi-
gir do intérprete o relacionamento entre a parte e o todo mediante o emprego das
categorias de ordem e de unidade. Subelemento desse postulado é o postulado da
coerência, ao impor ao intérprete, entre outros deveres, a obrigação de relacio-
nar as normas com as normas que lhes são formal ou materialmente superiores.
(ÁVILA, 2014, p. 165-166).
Há que se ponderar, portanto, que a visão do Direito como integridade não se
completa apenas com a referência à tradição e à história por detrás da norma jurí-
dica, mas necessita também da investigação dos efeitos que se pretendem imprimir
no futuro por meio da decisão judicial. Com isso se autoriza o prosseguimento às
demais fases do método reconstrutivo que têm por intuito específico a função de
descortinar as possibilidades jurídicas decorrentes da decisão e os eventuais efeitos
práticos que poderão ser sentidos por meio dela.
Seguindo o raciocínio, a etapa da heterorreflexão, com permissão da utilização do
termo originalmente cunhado por Wálber Carneiro (2011), é o que dará o caráter da
“abertura pluralista” ao processo constitucional. Essa ideia se coaduna com a concep-
ção de Peter Häberle (1997), segundo o qual a Constituição é aberta à sociedade plural
de intérpretes. A expressão do “atravessamento heterorreflexivo” do processo consti-
tucional se dá em vários momentos processuais que permitem a inserção de opiniões,
especializadas ou de interesse, auxiliando o julgador em sua atividade decisória.
Para o caso das ações de controle de constitucionalidade, por exemplo, tanto
nas modalidades por ação ou por omissão, percebe-se a existência deste momento
284
processual quando se requer parecer qualificado e opinativo dos órgãos públicos
que defendem o interesse público primário (Procuradoria Geral da República) e
secundário (Advocacia-Geral da União), além de se ouvir o próprio órgão editor
do ato impugnado ou negligenciado a fim de se aferir as razões que possam vir a
derrubar a inconstitucionalidade eventualmente invocada.
Para além desses pareceres opinativos, a ordem jurídica também ampliou a par-
ticipação do cidadão na formulação decisória das ações de inconstitucionalidade ao
inserir no art. 7º, § 2º, da Lei n. 9.868/1999 a previsão da figura do amicus curiae.
De acordo com a recente definição estendida pelo Código de Processo Civil
de 2015 (art. 482), esse instituto seria aplicável aos casos de relevância material,
utilizando-se da interferência opinativa de interessados e experts para iluminar o
problema constitucional já “pré-compreendido” por meio de distintas perspectivas
que não se inserem apenas no campo jurídico, mas também vão buscar nas áreas
sociológicas, econômicas e até mesmo religiosas e morais as respostas que preten-
dam solucionar a contento o problema exposto:
Os intérpretes em sentido amplo entram assim a constituir parte ou elemento
dessa realidade pluralista, enquanto se reconhece não ser a norma tampouco
um dado simples, perfeito ou acabado, senão algo que faz suscitar o problema
de quem participa funcional e pessoalmente no seu “desenvolvimento”, a saber,
as forças ativas do Direito “em ação pública”. (BONAVIDES, 2015, p. 524-525).
Essa ambivalência demonstra que a tarefa de interpretação e aplicação normativa
é um processo dialético que busca ponto de referência no passado, sem deixar de vis-
lumbrar as necessidades do futuro. Por isso é que a chamada “hermenêutica concreti-
zadora” analisa as possibilidades socialmente mais adequadas para os casos analisados.
Essa interseção se completa na quarta e derradeira fase do método reconstrutivo,
na qual se faz necessário que o Tribunal se invista de atividade exploratória seme-
lhante, mas não idêntica àquela feita pela atividade política de criação normativa:
a atividade de análise de prognósticos, que para fins desse método interpretativo é
chamada de fase de prospecção.
O exercício da prospecção terá o condão de finalizar a análise do Direito
Constitucional em integridade, terminando a investigação de suas relações com
elementos afetos às ciências adjuntas e à realidade posta. Isso faz com que o intér-
prete-aplicador não se limite à averiguação meramente retrospectiva dos sentidos
da norma, mas também atue de maneira orientada para o futuro, avaliando as
condições de implementação e as possíveis repercussões da defesa ou rechaço de
determinado valor abstratamente invocado em juízo.
No caso da resolução das demandas abstratas, Gilmar Mendes pontua que as
decisões judiciais, assim como as decisões políticas, devem tomar como base os
chamados “fatos e prognoses”. Essa máxima, de sua vez, significa “[...] a indispensa-
bilidade de uma revisão dos dados empíricos e dos prognósticos” (MENDES, 2009,
p. 478) adotados ou estabelecidos pelo órgão responsável pelo ato eventualmente
impugnado em sede de jurisdição constitucional. Em outras palavras,
[...] a aferição dos fatos e prognoses legislativos pela Corte Constitucional é
um controle de resultado (Ergebniskontrolle) e não um controle do processo
(Verfahrenskontrolle), até porque para isso faltaria qualquer parâmetro de con-
trole ou uma específica autorização constitucional. Em outros termos, não se
cuida, no juízo de constitucionalidade, de verificar como o legislativo examinou
285
os fatos legislativos, mas o que, efetivamente, ele constatou. (MENDES, 2009,
p. 478-479, grifos do original).
A prospecção, como fase ligada ao desenvolvimento da tópica constitucional
“[...] reconciliou, mediante fundamentação dialética mais persuasiva, o direito
legislado com a realidade positiva e circundante” (BONAVIDES, 2015, p. 509). Ela é
uma das justificativas dogmáticas para o acoplamento entre as teses procedimenta-
lista e substancialista, permitindo a criação de vias argumentativas que se liguem à
realidade sem se afastar do paradigma jurídico.
Nesse esteio, torna-se possível buscar um método interpretativo que supere
tanto o sociologismo jurídico tradicional quanto o formalismo normativista, de
maneira a melhor se adequar à concepção culturalista total da Constituição. Assim,
acredita-se que o método reconstrutivo tem o condão de abrir “[...] tantas janelas
para a realidade circunjacente que o aspecto material da Constituição, tornando-se
quer se queira quer não, o elemento predominante, absorve por inteiro o aspecto
formal” (BONAVIDES, 2015, p. 507).
Apesar disso, é necessário ponderar que o método reconstrutivo não poderá
ser livremente aplicado, pois deverá observar limites, sob pena de ser malversado,
causando o efeito contrário ao que se dispõe. Dessa forma, há que se observar deter-
minados limites teóricos e práticos à atuação “reconstrutiva” do Supremo Tribunal
Federal, conforme se argumenta no subtópico seguinte.

5.2 ∙ DOS LIMITES


No âmbito da atividade de jurisdição constitucional, o Tribunal Constitucional
atrai para si a responsabilidade pelo efetivo implemento de seus mandamentos,
sendo que “[...] qualquer deficiência em seu funcionamento, vem a pôr virtualmente
em crise todo o sistema” (ENTERRÍA, 2001, p. 157-158, tradução da autora),7 seja
em virtude de disfunções reveladas por um paternalismo exacerbado da Corte, seja
em razão de negligência institucionalizada em sua estrutura de atuação.
Nesse sentido, quanto maior for a responsabilidade do Tribunal Constitucional
diante da concretização de direitos fundamentais, maiores também serão os limites
impostos para sua atuação, uma vez que a discricionariedade deve ser equilibrada-
mente contida, sob pena de transmutar-se em arbitrariedade. Sobre isso, destaca
Mauro Cappelletti que
[...] o reconhecimento de que é intrínseco em todo ato de interpretação certo grau de
criatividade – ou, o que vem a dar no mesmo, de um elemento de discricionariedade
e assim de escolha –, não deve ser confundido com a afirmação de total liberdade
do intérprete. Discricionariedade não quer dizer necessariamente arbitrariedade, e
o juiz, embora inevitavelmente criador do direito, não é necessariamente um cria-
dor completamente livre de vínculos. Na verdade, todo sistema jurídico civilizado
procurou estabelecer e aplicar certos limites à liberdade judicial, tanto processuais
quanto substanciais. (CAPPELLETTI, 1999, p. 23-24, grifos do original).
Em termos materiais, é evidente que as características da realidade fática e as
conclusões sobre os contornos sociológicos da comunidade devem ser levadas em

7 “La responsabilidad de éstos en el sistema jurídico y político es tan excepcional que cualquier
deficiencia en su funcionamiento viene a poner virtualmente en crisis el sistema entero.”

286
conta quando do estudo das formas ideais e dos limites de atuação do Tribunal
Constitucional. Dessa maneira, os elementos da realidade fática e as repercussões
em outras áreas científicas serão irremediavelmente analisados pelo Tribunal.
As teses construídas, apesar de estarem ligadas à tentativa de desconstrução de
fatores culturais que ainda se inserem de maneira muito forte na sociedade brasileira
como o patrimonialismo, o clientelismo, a impunidade, a corrupção, a burocracia
de entrave, o formalismo positivista e o casuísmo (ECHAIZ-ESPINOZA, 2009, p.
173), não perdem de vista a necessidade de se justificar e analisar as questões pon-
tuadas sob o ponto de vista jurídico. Sobre isso, destaca Enterría:
Em definitivo, o Tribunal Constitucional não pode ser cego às consequências
políticas de suas decisões. “Mas essas consequências só podem ser tomadas em
conta no marco das possibilidades abertas do ordenamento, podendo contri-
buir a consideração de potenciais consequências de sua sentença ao descobrir o
direito ‘justo’ e a construir interpretações jurídicas com uma ou outra correção
às quais não se chegaria se não tivesse em vista este resultado.” (ENTERRÍA,
2001, p. 183-184, tradução da autora).8
Os limites substanciais, então, iluminam não apenas a atuação do julgador, mas
também as do legislador e do administrador, todos eles sujeitos aos termos dos reco-
nhecidos princípios de proporcionalidade e razoabilidade das decisões estatais. Por
isso é que se considera que as ideias de proibição de excesso e de vedação ao retrocesso
devem vincular não apenas os representantes eleitos da população, mas também o
órgão exercente da jurisdição constitucional devido à legitimidade democrática de
sua atividade (MENDES, 2009, p. 47).
Como lecionado por Gilmar Mendes (2009, p. 400), a existência de órgão
judicial incumbido de exercer o controle constitucional “[...] impõe aos órgãos
submetidos a esse sistema de controle um dever de racionalidade (Zwang der
Rationalität) na concretização da Constituição”. Essa imposição, então, não
estará limitada à instância de poder fiscalizado, mas também vinculará a decisão
daquele que fiscaliza.
A proibição das restrições excessivas intenciona não outra coisa, a não ser a
incorporação da “justiça no debate jurídico, sem comprometimento da racionali-
dade argumentativa” (ÁVILA, 2014, p. 47). Esta aplicação racional de justificação
por meio de finalidades normativas da Constituição terá o condão de diluir even-
tuais influências partidárias que possam vir a despontar em virtude da natureza
política da indicação dos ministros do Supremo, fazendo com que seu “notável
saber jurídico” se sobreponha a eventuais sentimentos de clientelismo que ensejem
favoritismos políticos em suas decisões.
Vale referir, por exemplo, que o Supremo Tribunal Federal, na condição de ins-
tância judiciária de poder, não poderá agir, a não ser mediante a devida provocação
(princípio da inércia) e que, diante do grande impacto das questões que se veiculam
nas atividades da Corte, essa regra sofre maior restrição ainda, sendo capazes de

8 “En definitiva, el Tribunal Constitucional no puede ser ciego a las consecuencias políticas de sus
decisiones. Pero “esas consecuencias sólo puede tomarlas en cuenta en el marco de las posibilidades
abiertas por el ordenamiento, pudiendo contribuir la consideración de las potenciales consecuencias
de su sentencia a descubrir el Derecho ‘ justo’ y a construir interpretaciones jurídicas con una u otra
corrección a las que no hubiese llegado si no hubiese tenido a la vista ese resultado.”

287
provocar o controle de constitucionalidade, por exemplo, apenas os legitimados que
estão elencados no limitado rol do art. 103 da CRFB.
Trata-se da regra segundo a qual “ubi non est actio, ibi non est jurisdictio”, vale
dizer, com palavras diversas, mas com igual significado “nemo judex sine actore”.
Significa ela que o judicial process, diversamente do que ocorre nos procedimen-
tos legislativo e administrativo, impõe atitude passiva, no sentido de que não
pode ser iniciado ex officio pelo tribunal, necessitando de um autor, cuja actio
constitui, exatamente, a condição sem a qual não pode o juiz exercer em concreto
o poder jurisdicional. (CAPPELLETTI, 1999, p. 76).
A par disso, há que se dizer que a própria forma de organização colegiada do
Tribunal é uma das garantias que tem por intuito evitar a atuação parcial dos mem-
bros da Suprema Corte, como bem destaca Virgílio Afonso da Silva (2013, p. 562),
ao conceituar o chamado princípio da colegialidade:9
A colegialidade implica, entre outras coisas, (i) a disposição de trabalhar em
equipe; (ii) a ausência de hierarquia entre os juízes (pelo menos no sentido de
que os argumentos de todo e qualquer juiz têm o mesmo valor); (iii) a vontade
de ouvir argumentos apresentados por outros juízes (ou seja, estar aberto a ser
convencido por bons argumentos de outros juízes); (iv) uma ação cooperativa no
processo de tomada de decisão; (v) respeito mútuo entre juízes; (vi) a disposição
de falar, sempre que possível, não como uma soma de indivíduos, mas como uma
instituição (consenso buscando deliberação). (Tradução da autora).
Apesar disso, ainda é possível ver que decisões liminares, unilateralmente emiti-
das pelos relatores das ações, vigem por tempo suficiente para impactar de maneira
unívoca as questões trazidas à discussão nas ações da jurisdição constitucional.
Sendo assim, não se pode descartar que, para qualquer momento processual em que
se insiram, as decisões no âmbito da jurisdição constitucional, sejam unilaterais ou
colegiadas, sejam precárias ou definitivas, repercutem inevitavelmente no âmbito
coletivo, demonstrando que essa nova visão processual “[...] torna superada a visão
que distinguia a decisão judicial como circunscrita aos litigantes e a decisão política
como universal e aplicável a todos os casos” (CAMPILONGO, 2011).
A possibilidade do cometimento de arbitrariedades deverá ser refreada pela pró-
pria ideia de legitimidade da justiça constitucional, que deverá estar embasada tanto
no atendimento às exigências da segurança jurídica quanto da aceitabilidade racional
da decisão jurídica (HABERMAS, 1997b, p. 246). Essa técnica, originariamente usada
por Habermas (1997a) para a obtenção de juízos ideais em casos concretos, também
será aplicável às demandas abstratas, apontando-se para o pensamento sintetizado por
Farber e Sherry, segundo os quais “[...] as decisões judiciais devem estar embasadas em
fatores jurídicos relevantes, explicitar os fundamentos da Corte e demonstrar discer-
nimento na aplicação desses fatores” (FARBER; SHERRY, 2008, p. 42, tradução livre).10

9 “Collegiality implies, among other things, (i) the disposition to work as a team; (ii) the absence of
hierarchy among the judges (at least in the sense that the arguments of any and alljudges have the
same value); (iii) the willingness to listen to arguments advanced by other judges (i.e. being open to
be convinced by good arguments from other judges); (iv) a cooperativeness in the decision-making
process; (v) mutual respect among judges; (vi) the disposition to speak, whenever possible, not as a
sum of individuals but as an institution (consensus seeking deliberation).”
10 “[...] judicial decisions should rely on legally relevant factors, explain the court’s reasoning, and exhibit
good judgement in applying those factors”.

288
Com base nessa assertiva, conclui-se que essas duas bases de sustentação das
decisões judiciais serão reveladas pelo que consideramos como sendo o maior e
mais importante de todos os limites da atuação, não só da Suprema Corte mas tam-
bém de todo o Poder Judiciário: o dever de fundamentação.
Esse dever institucional, hoje expresso no art. 93, IX, da Constituição Federal,
determina que “[...] a legitimidade da justiça constitucional também encontra justifi-
cativa na aceitação de suas decisões pela opinião pública, razão porque todas as suas
manifestações devem ser públicas e fundamentadas” (CUNHA JÚNIOR, 2008, p.
400). Dessa forma, infere-se que quanto mais inovadora for uma sentença, maior será
o esforço de fundamentação para se demonstrar sua legitimidade e racionalidade.
Isso quer dizer que “[...] o dever de motivação guarda correspondência com o sis-
tema da livre convicção, visto que, quanto maior for o poder discricionário do magis-
trado, mais importante será a necessidade de fundamentar sua decisão” (SOARES,
2010a, p. 169). Tanto é assim que a redação do novo Código de Processo Civil vinculou
casos de nulidade de sentença à falta ou insuficiência de fundamentação satisfatória.11
Em verdade, o dever de fundamentação pode ser considerado como a dimen-
são objetiva fundamental do direito à publicidade, e sua finalidade como princí-
pio jurídico basilar será não outra que a de “[...] assegurar à sociedade que essas
decisões não resultam de caprichos ou idiossincrasias dos juízes, mas sim de seus
esforços em se manterem fiéis ao sentimento de equidade e justiça da comuni-
dade” (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 359).
Assim, o dever de fundamentação, quando devida e satisfatoriamente cumprido
pelo Tribunal, terá o condão de fazer com que a decisão jurídica ganhe força junto à rea-
lidade social, transmutando as intenções prescritas pelo texto constitucional à realidade
prática do contexto em que se insere, sem se desviar do seu caráter jurídico de origem.
Dessa forma, também será mantido o canal comunicativo entre o Judiciário e o
cidadão na qualidade de jurisdicionado, não havendo que se falar em “risco demo-
crático” pela atuação substancial do Tribunal. Nesses termos:
A matéria bruta utilizada pelo intérprete – o texto normativo ou dispositivo –
constitui mera possibilidade de Direito. A transformação dos textos normativos
em normas jurídicas depende da construção de conteúdos de sentido pelo pró-
prio intérprete. Esses conteúdos de sentido, em razão do dever de fundamen-
tação, precisam ser compreendidos por aqueles que os manipulam, até mesmo
como condição para que possam ser compreendidos pelos seus destinatários.
(ÁVILA, 2014, p. 44, grifo da autora).
Expressão salutar disso e iniciativa pátria de aplicação exemplar para os demais
países de regime democrático é o televisionamento das sessões do Supremo.12 Esta

11 O art. 489 do CPC/2015 elencou como elemento essencial da sentença o capítulo dos fundamentos,
no qual o juiz irá analisar as questões de fato e de direito aduzidas pelas partes. Seu § 1º leciona
sobre as hipóteses de não fundamentação que ensejam a aplicação da pena de nulidade de sentença,
figurando entre elas os casos de “limitação à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo,
sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida” (inciso I), bem como de “limitação à
invocação de precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes
nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos” (inciso V).
12 Sobre esse ato de ampliação da publicidade em torno das atividades do Supremo, dispõe a seguinte
reportagem vinculada pelo sítio eletrônico da instituição: “[...] em 14 de agosto de 2002, a TV

289
iniciativa demonstra o quão importante se faz também a operação de fiscalização
ou accountability popular do acerto decisório do Tribunal, revelando ao público os
fundamentos racionais utilizados pelos ministros e as razões expostas pelos parti-
cipantes do processo, e entre eles também os amici curiae. Essa observação já teria
sido feita por Cappelletti, no seguinte sentido:
[...] os tribunais superiores sujeitam-se a um grau de “exposição” ao público e
de controle por parte da coletividade, que também os pode tornar, de forma
indireta, bem mais “responsáveis” perante a comunidade do que muitos entes e
organismos administrativos (provavelmente a maioria desses), não expostos a tal
fiscalização contínua do público. (CAPPELLETTI, 1999, p. 98-99).
Não é sem razão que atualmente vemos os ministros do Supremo figurarem
em capas de revista de grande circulação, elaborando-se grandes reportagens para
discutir na imprensa de massa sobre os impactos das decisões do STF, principal-
mente em questões de natureza sensível, como são os casos do aborto, da legalização
da maconha, do reconhecimento da união homoafetiva, entre outros que merecem
atenção especial do público.
Essa exposição, diga-se de passagem, comporta o risco apontado por Ingeborg
Maus (2000, p. 185), de que os ministros da Suprema Corte cheguem a ser consi-
derados como “profetas” ou “deuses do Olimpo do direito” pela população, che-
gando-se a se produzir intensas biografias sobre suas vidas pessoais, a despeito da
importância social objetiva das questões que são por eles tratadas. Embora a inten-
ção de Maus com essa pontuação seja a de criticar as posturas paternalistas frente
ao Tribunal como forma de “dilapidação democrática”, há que se ponderar que esse
é um problema ao qual está exposto todo e qualquer país em que seja salvaguardada
a liberdade de impressa, já que também este é um direito de cunho fundamental.
Apesar disso, a influência midiática, não deverá ser determinante para o julga-
mento dessas demandas, invocando-se que os princípios de direito fundamental
sejam analisados de maneira coerente pela Suprema Corte, sob pena de cometi-
mento de arbitrariedades em prol de clamores sociais cambiantes, não relacionados
aos objetivos fundamentais da República.
Essa constatação, de sua vez, só vem a reforçar a ideia da importância das funções
do Tribunal Constitucional na conformação da realidade prática, apesar de não ser
sua atuação o caso de exercício da política. Esse posicionamento não poderia buscar
melhor arrimo que na transcrição da seguinte ideia desenvolvida por Enterría:
É precisamente essa qualificação estritamente judicial, aplicada a uma matéria
tão transcendental e tão sensível para o corpo político e social, a qual exige de
maneira particular às sentenças constitucionais que intensifiquem a exigência

Justiça iniciou as transmissões ao vivo das sessões plenárias do STF. A aproximação do STF com
os cidadãos, através dos meios tradicionais de comunicação e também das novas mídias, como
YouTube e Twitter, coloca a Corte na vanguarda da comunicação social/institucional no cenário
mundial. O STF foi o primeiro tribunal do mundo a transmitir seus julgamentos ao vivo por meio
de canais próprios: a TV Justiça e a Rádio Justiça. Além de transmitirem as sessões plenárias na
íntegra, as emissoras divulgam as ações, explicam as questões tratadas nos principais processos e
promovem aulas e debates em linguagem acessível, com o objetivo de aproximar o Judiciário do
cidadão. O exemplo brasileiro já está sendo seguido pelo México e Reino Unido.” (Disponível em:
http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfSobreCorte_
pt_br&idConteudo=196222&modo=cms. Acesso em: 1º ago. 2020.

290
comum da motivação de todo ato judicial, a de apresentar-se como “principia-
lizada” (princípled), justificada de uma maneira detalhada e explícita em prin-
cípios que transcendam a apresentação singular do caso, princípios que aqui
precisamente hão de ser os princípios expressos na Constituição ou dedutíveis
dos mesmos com claridade. (ENTERRÍA, 2001, p. 235, tradução da autora).13
Seguindo o raciocínio estabelecido, então, todos esses limites às potencialidades
decisórias possuem como finalidade a necessidade de manutenção da coerência
do sistema jurídico-constitucional. De se ressaltar, nesse sentido, que o Código de
Processo Civil de 2015 reforçou a importância e a vinculatividade da observância
do princípio da coerência pelos tribunais ao dispor, no seu art. 926, que “[o]s tribu-
nais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
Para descortinar o balizamento doutrinário que é dado pelo postulado da coe-
rência, é preciso ter em mente que ele comporta duas faces: uma formal e outra
substancial. Enquanto a face formal compreende a coerência como “consistência”
e “completude”, a coerência substancial existe
quando a relação entre as proposições satisfaz requisitos de implicação lógica
(a verdade da premissa permite concluir pela verdade da conclusão) e de equiva-
lência lógica (o conteúdo de verdade de uma proposição atua sobre o conteúdo
de verdade da outra e vice-versa). (ÁVILA, 2014, p. 170).
É esse sobreprincípio de coerência substancial que permite, por exemplo, a for-
mulação de construções como a declaração de inconstitucionalidade sem pronún-
cia de nulidade para fins de segurança jurídica, ou a possibilidade de determinada
regra abstrata ser derrogada por violação a princípios materiais como a dignidade
da pessoa humana, a liberdade e o mínimo existencial.
Para a concretização desses valores, no entanto, é necessário o aperfeiçoamento
das técnicas judiciais de decisão, de maneira a torná-las mais apropriadas à reali-
dade do cotidiano brasileiro. Essas técnicas devem, portanto, manter-se condizen-
tes com os ditames constitucionais sem perder o atributo da efetividade no âmbito
das relações sociais por eles regidas.

6 ∙ CONCLUSÃO
No bojo do presente artigo, objetivou-se a construção de parâmetros teóricos
que autorizassem a operacionalização de direitos fundamentais da forma mais
abrangente possível pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do julgamento
das demandas abstratas apresentadas em sede de jurisdição constitucional. Sem
se descuidar dos perigos e riscos que envolvem a atividade de impulsionamento
institucional aos valores primordiais do Estado, o intuito foi o de justificar a ati-
vidade de efetivação dos direitos fundamentais pelo prisma da juridicidade, em
detrimento da crítica sobre possíveis ingerências políticas do órgão jurisdicional
no exercício da referida atuação.

13 “Es precisamente esa calificación estrictamente judicial, aplicada a una material tan transcendental
y tan sensible, para el cuerpo político y social, la que exige de manera particular a las sentencias
constitucionales intensificar la exigencia común de la motivación de todo fallo judicial, la de
presentarse como principled, justificada de una manera detallada y explícita en principios que
trasciendan la apreciación singular del caso, principios que aquí han de ser precisamente los
expresados en la Constitución o deducibles de los mismos con claridad.”

291
Assim, justifica-se neste estudo que o regular exercício da jurisdição constitu-
cional em torno dos direitos fundamentais não significa, por si, o extrapolar de
suas atribuições ou ainda o enfraquecimento da democracia. Em outras palavras,
não significa confiar ao juiz constitucional todo o sucesso ou insucesso do regime
democrático, depositando nele uma “competência ilimitada” ou responsabilizan-
do-o por aplicar a chamada “justiça total” (GARAPON, 2001, p. 25).
Sua missão seria, em verdade, a de corresponder (no sentido de responder soli-
dariamente) às expectativas sociais existentes, não havendo que se falar em atuação
arbitrária quando o que se estiver a fazer seja a correção das disfunções sistêmicas
ou o impulsionamento dos valores expressos no texto constitucional para dentro da
realidade na qual se queira aplicá-los.
Posturas em contrário reforçariam as figuras do “Estado Legal” ou “Estado
Providência” em suas formas puras, em detrimento das pretensões do “Estado
Democrático Constitucional de Direito”, que pretende garantir os direitos funda-
mentais em todas as suas frentes, elevando o seu potencial de também conformar
a realidade e cumprir com sua força normativa. Nesse sentido, a adoção de uma
concepção cultural total da Constituição é o primeiro passo para o fomento da
jurisdição constitucional efetiva em torno dos direitos fundamentais.
Cabe, sob essa égide, analisar os problemas constitucionais trazidos sob a con-
jectura social vigente, havendo que se estabelecer constante raciocínio de sope-
samento circunstancial, sob pena de a jurisdição constitucional funcionar mera-
mente como instituto de preservação do status quo vigente, preservando situações
jurídicas que são lesivas aos direitos fundamentais de determinadas categorias
de pessoas humanas, especialmente aquelas mais vulneráveis e historicamente
excluídas do processo decisório.
Tal fato indica que a atuação da Corte Constitucional não deve estar restrita
à atribuição procedimental de subsunção às regras do processo democrático, mas
também deve estar atenta à realidade vigente para conduzir a sociedade à concreti-
zação ampla dos valores mais comezinhos que por ela mesma foram consagrados no
âmbito da sua Carta Constitucional.
Em outras palavras, aos grandes poderes concedidos àqueles que estão na ponta
da cadeia jurisdicional brasileira deve corresponder a responsabilidade não apenas
de preservar a ordem constitucional vigente, mas também de adequar a realidade
ao ideário expresso, sob pena de esvaziamento da força normativa do documento
fundamental democraticamente formulado.

REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva.
São Paulo: Malheiros, 2008.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
15. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Tradução e nota prévia de José
Manuel M. Cardoso da Costa. São Paulo: Almedina, 2009.

292
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2011. E-book: ISBN: 9788502129795. Acesso em: 23 mar. 2017.
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.
CARNEIRO, Wálber Araujo. Hermenêutica jurídica heterorreflexiva: uma teoria dialógica
do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle judicial das omissões do poder público: em busca de
uma dogmática constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação
da constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2015.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
ECHAIZ-ESPINOZA, Danielle Sales. Entre substancialismo e procedimentalismo: elemen­
tos para uma teoria constitucional brasileira adequada. Maceió: EDUFAL, 2009.
ENTERRÍA, Eduardo García de. La Constitución como norma y el Tribunal Constitu­
cional. 3. ed. reimp. Madrid: Civitas, 2001.
FARBER, Daniel; SHERRY, Suzanna. Judgement calls: principle and politics in constitu­
tional law. Oxford: Oxford University Press, 2008.
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução de Maria
Luiza de Carvalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes
da Constituição – contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da
Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 1997.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997a. v. I.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997b. v. II.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 1991.
MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade juris­pru­
dencial na “sociedade órfã”. Trad. Martonio Lima e Paulo Albuquerque. Novos Estudos
Cebrap, São Paulo, n. 58, p. 183-202, nov. 2000.
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade:
estudos de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

293
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na
Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
SILVA, Virgílio Afonso da. Deciding without deliberating. International Journal of
Constitutional Law, Oxford, v. 11, n. 3, p. 557-584, 2013.
SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e interpretação jurídica. São Paulo:
Saraiva, 2010a.
SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana: em busca do direito justo. São Paulo: Saraiva, 2010b.

294
OS DIREITOS DAS VÍTIMAS E DA SOCIEDADE
E OS FINS DA PENA
Galtiênio da Cruz Paulino1

Sumário: 1 Introdução. 2 Os fins da pena e o princípio da proporcionalidade. 3 A aplicação


do direto penal e os direitos da vítima. 4 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
A convivência pacífica entre os integrantes de uma sociedade pressupõe a limi-
tação das liberdades individuais em face do interesse maior da coletividade, bus-
cando proteger os valores sociais mais importantes. Essa ideia serve de fundamento
para o poder punitivo estatal, que, por outro lado, deverá atuar de uma forma que
restrinja minimamente os direitos individuais das pessoas.
Essa atuação minimamente restritiva pressupõe a observância dos direitos
e garantias fundamentais dos indivíduos, que os assegura um processo justo,
baseado na dignidade da pessoa humana e no princípio da presunção de inocên-
cia. O Estado pressupõe um atuar negativo na defesa dos direitos fundamentais
do acusado, que é enquadrado como um sujeito de direitos, não como um objeto
processual (PAULINO, 2019).
Ocorre que, em um Estado Democrático de Direito, como é o caso do Brasil, a
proteção dos direitos fundamentais deve ocorrer de maneira integral, não apenas
sob a perspectiva do acusado, mas também da vítima e da sociedade, surgindo o
dever de proteção estatal, que se obriga a agir em defesa de todos os direitos fun-
damentais envolvidos (BARATTA, 1999). Atualmente, “as liberdades individuais
não podem mais ser vistas com tom absoluto ou contraditório para com os demais
direitos fundamentais” (MAGALHÃES, 2010, p. 186).
Nesse cenário, a análise mais acertada a se fazer dos direitos fundamentais é
com base na concepção que melhor adeque os conflitos intradireitos fundamentais
e interdireitos fundamentais e entre os direitos fundamentais e os demais direitos
protegidos no ordenamento jurídico (MORESO, 2005).
Sob essa perspectiva, em um regime democrático não são admissíveis decisões
que possam macular direitos fundamentais, devendo ser escolhida a interpretação

1 Procurador da República. Ex-membro auxiliar do Procurador-Geral da República na Secretaria


da Função Penal Originária no Supremo Tribunal Federal (2018/2019). Membro Auxiliar
do Procurador-Geral da República na Assessoria Criminal no Superior Tribunal de Justiça.
Doutorando em Direito pela Universidade do Porto – Portugal. Mestre em Direito pela
Universidade Católica de Brasília. Pós-Graduado em Direito Público pela Escola Superior do
Ministério Público da União. Pós-Graduado em Ciências Criminais pela UNIDERP. Bacharel em
Direito pela Universidade Federal da Paraíba.

295
que dê a melhor solução para os casos de conflito de direitos, não se adotando a
falsa ideia de que as relações jurídicas decorrem, apenas, da contraposição entre os
direitos e os deveres (HOHFELD, 2004).
É sob essa concepção holística de direitos fundamentais, englobando os direitos
do acusado, da vítima e da sociedade, que se demonstrará ao longo desse artigo a
necessidade de as penas impostas nas condenações penais atingirem seus fins, neces-
sários para efetivação do direito da coletividade e da vítima a uma sociedade justa.
Para tanto, será realizada uma análise inicial sobre os fins almejados por meio
da imposição de uma pena, que só serão atingidos por meio de uma sanção que se
funda no princípio da proporcionalidade, necessário para que ocorra a proteção
penal das vítimas de um delito.

2 ∙ OS FINS DA PENA E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE


A natureza social do ser humano necessita da fixação de regras voltadas à regu-
lação das condutas socialmente relevantes, as quais irão constituir a denominada
ordem social. Essa é incorporada pelas pessoas ao longo da vida por meio de um
processo educativo, e sua violação “acarreta sanções, tais como o castigo familiar, a
reprovação escolar, a proibição de frequentar uma missa ou de praticar um esporte
coletivo” (JAPIASSU; SOUZA, 2016, p. 208).
Essas sanções, de natureza não penal, porém, representam uma forma de con-
trole insuficiente para assegurar uma convivência harmônica em sociedade, neces-
sitando-se da atuação do Estado para se restabelecer a harmonia. Essa restauração
da ordem será realizada pelo Estado por meio das sanções penais. Nessa esfera, a
ordem jurídica é composta, entre outros, pelo Direito Penal, que atua controlando
comportamentos por meio das penas ou sanções penais.
É a natureza da sanção jurídica que distingue o Direito Penal das demais esfe-
ras jurídicas. Diferentemente das sanções cíveis, as sanções de natureza penal são
voltadas para a reparação do dano e possuem caráter retributivo. Essas sanções são
conceituadas por Japiassu e Souza como “a perda de um direito imposta pelo Estado
em razão do cometimento de uma infração penal” (2016, p. 209).
A pena, porém, incidirá de diversas formas, a depender da configuração de
Estado adotada. Em um Estado Liberal, o poder punitivo do Estado é limitado sob
a perspectiva da retribuição. Nos Estados Sociais, a pena possui o fim de prevenção
especial. Estados Sociais e Democráticos de Direito assumem uma perspectiva san-
cionatória de prevenção limitada. Esse jus puniendi se centraria em limites susten-
tados nas pilastras do Estado de Direito, do Estado Social e do Estado Democrático.
A primeira barreira, inerente ao Estado de Direito, é o princípio da legalidade. A
segunda, atinente ao Estado Social, está relacionada com a função de prevenção da
pena, enquanto o Estado Democrático “obriga no possível a pôr o Direito penal a
serviço do cidadão, o que se pode ver como fonte de certos limites que se associam
ao respeito de princípios como os da dignidade humana, igualdade e participação
do cidadão (PUIG, 2006, p. 94).
O princípio da legalidade impõe um contexto de segurança jurídica (todos
conhecem previamente as condutas consideradas criminosas e as respectivas

296
penas) e de garantia política (crimes e penas devem ser admitidos pela sociedade)
(PUIG, 2006, p. 106).
Por sua vez, os limites à pena impostos em um Estado Social resultam, inicial-
mente, do princípio da utilidade da intervenção penal, por meio do qual o Direito
Penal é legítimo quando sua intervenção gerar utilidade para a sociedade. Isso sob
o enfoque do princípio da necessidade, do princípio da subsidiariedade e do cará-
ter fragmentário do direito penal. Além disso, a pena é limitada pelo princípio da
exclusiva proteção de bens jurídicos. O Direito Penal nos Estados Sociais volta-se
para a proteção da sociedade por meio dos bens jurídicos tutelados e da cominação,
aplicação e execução da pena (BATISTA, 2011, p. 113). Nos Estados Democráticos,
os limites resultam dos princípios da humanidade, da culpabilidade, da proporcio-
nalidade e da ressocialização (PUIG, 2006, p. 122).
Em razão dos diversos limites impostos pelas diversas formas de Estado, a
pena assume inúmeras funções, que irão variar de acordo com a teoria adotada.
Um primeiro grupo teórico a tratar dos fins das penas é formado pelas teorias
absolutas, centradas na ideia de justiça. A pena assume um caráter eminentemente
retributivo, com necessidade de punição de todos os responsáveis pelo cometi-
mento de um delito. As teorias absolutas ou retributivas sustentam-se na ideia
de que a culpabilidade do agente é compensada pela incidência de uma sanção
penal. A pena é um pressuposto de justiça, bem como o meio capaz de restabelecer
o direito violado (ROXIN, 1986, p. 16). Não há efeitos secundários da pena, que
estaria voltada apenas para o presente, sem reflexos futuros. A pena é direcionada,
especificamente, para o delito praticado.
Essas teorias advêm de uma concepção absolutista de Estado, identificado
como soberano e cujo poder tem origem divina. Com a adoção do modelo libe-
ral de Estado, a pena passou a ser adotada como retribuição à violação da ordem
posta e, além disso, essencial para a restauração da ordem jurídica maculada. A
pena assume exclusivamente a função de “fazer justiça”. Com a simples aplicação da
pena, a justiça estaria feita (BITENCOURT, 2011, p. 119).
Em termos retributivos, a pena representa um mecanismo consequencial justo
e equilibrado para a punição da conduta reprovável. Sempre deve haver uma rela-
ção de proporcionalidade entre o fato enquadrado como crime e a respectiva pena,
tanto no momento da elaboração normativa como no da respectiva aplicação. Não é
cabível, portanto, intervenções excessivas, nem por demais insuficientes.
Por outro lado, existem as teorias relativas, sustentadas em uma perspectiva
utilitarista. Por meio dessas teorias, defende-se que a principal função da pena
é prevenir que outros delitos venham a ocorrer, não a punição em si. A pena é
voltada para efeitos futuros.
Essa perspectiva preventiva da pena se divide em duas espécies, a prevenção
geral e a prevenção especial. Por meio da primeira, a sanção penal é direcionada
à sociedade, em especial aos potenciais delinquentes, visando intimidá-los a não
cometerem crimes. Por sua vez, a prevenção especial se volta para o autor do crime,
para que não volte a praticar novos delitos.
A função preventiva da punição penal encontra-se, inclusive, consagrada
no preâmbulo do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, na parte

297
“Decididos a pôr fim à impunidade dos autores desses crimes e a contribuir assim
para a prevenção de tais crimes [...]” (BRASIL, 2002).
A prevenção geral leva em consideração os efeitos intimidativos da pena de
maneira geral. Uma das principais críticas que essa teoria recebe é o fato de, em tese,
não admitir a punição individual como forma de produzir efeitos sobre a sociedade.
Tal noção atenta contra a dignidade do ser humano, que estaria sendo utilizado
como mecanismo para um fim coletivo. A teoria da prevenção especial, por seu
turno, não tem como escopo, a princípio, a punição do fato passado, mas a preven-
ção da prática de novos delitos por meio da ressocialização, a intimidação do agente
responsável pelo delito e, em último caso, a privação da liberdade dos que não pude-
rem ser corrigidos nem intimidados. Essa teoria é falha em razão de impossibilitar
a delimitação do conteúdo do poder punitivo estatal, impossibilitando também a
delimitação temporal da punição (ROXIN, 1986, p. 20).
A sistemática da prevenção também é dividida em positiva e negativa. A pre-
venção positiva é voltada para o restabelecimento da confiança no ordenamento
jurídico, violada pela ocorrência do crime. A perspectiva negativa sustenta-se na
ideia de que as penas têm a função de prevenir a prática de delitos (JAPIASSU;
SOUZA, 2016, p. 211). É sob o viés positivo que se sustenta a defesa dos direitos da
vítima, no que diz respeito à incidência das penas.
Por fim, surgem as teorias mistas ou unificadoras, que combinam as funções da
sanção penal defendidas pelas teorias absolutas (retributividade) e pelas relativas
(prevenção geral e especial). Trata-se da atuação da pena voltada para o passado
(retribuição) e para o futuro (prevenção).
As teorias unificadoras centram-se nos pontos positivos das demais teorias, em
decorrência das três formas pelas quais o Direito Penal se relaciona atualmente com o
indivíduo: ameaça, imposição de pena e execução de pena. Cada uma dessas relações
está associada à perspectiva de uma das teorias sobre a função da pena, o que justifica
a unificação de todas. A ameaça, vinculada à cominação legal, tem relação com a
prevenção geral. Por sua vez, a imposição de pena, atinente à sentença, diz respeito
à teoria retributiva. Por fim, a execução da pena, referente à prevenção especial, deve
ocorrer da maneira que melhor iniba o autor de um crime de voltar a delinquir.
A retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial apresentam-se como fins
da pena que devem ser perseguidos de maneira simultânea. Nenhum dos referidos
fins, de maneira isolada, é capaz de determinar o conteúdo e os objetivos da pena.
É por meio da observância dos três fins da pena que será respeitado o direito
fundamental da vítima à justiça. É, inclusive, sob a perspectiva de proteção dos
direitos humanos, que a obrigação dos Estados de criminalizar e punir determina-
das condutas se apresenta como uma forma de implementar uma efetiva proteção
desses direitos, abarcando também os direitos das vítimas que foram violados.
A sanção penal se apresenta, desse modo, com uma finalidade específica, resul-
tante dos fins gerais da pena, de justiça às vítimas. Essa função foi devidamente
explicitada no Tribunal Internacional para a antiga Iugoslávia, no caso Prosecutor v.
Nikolic, no qual restou consignado que as punições aos crimes cometidos também
devem atender aos anseios das vítimas por justiça (2003).
Em termos internacionais, a proteção das vítimas, por meio da prevenção da
violação de direitos humanos sob a perspectiva penal, está presente, de maneira
298
expressa, em alguns tratados internacionais de direitos humanos, como: Convenção
contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis (artigo 4º), Convenção
Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial
(artigo 4º, a), Convenção Interamericana para Prevenir e punir a Tortura de 1985
(artigo 1º), Convenção Interamericana para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência
contra a Mulher (artigo 7º, d e e), Convenção para a Prevenção e a Repressão do
Crime de Genocídio (artigo 5º), Estatuto de Roma (artigo 6º – enquadra o crime de
genocídio como delito internacional) e as quatro Convenções de Genebra de 1949
(consagram os crimes de guerra).
No Brasil, os seguintes diplomas normativos são apresentados como de efetiva
proteção das vítimas: Lei n. 9.455/1997 (tortura), Lei n. 7.716/1989, Código Penal
(art. 140, § 3º – preconceito), Leis n. 10.886/2004 e n. 11.340/2006 (violência contra
a mulher), e Lei n. 2.889/1956 (genocídio).
A pena, ao ser imposta e executada, deve ser capaz de, ao mesmo tempo, atin-
gir os fins expostos e de demonstrar a efetividade do Direito Penal e do Direito
Processual Penal, consistentes na capacidade de restabelecer a ordem violada, de
punir os infratores, de realizar a justiça em favor da vítima, bem como de prevenir
que o infrator ou mesmo outros membros da sociedade venham a cometer novos
delitos. Isso, ante a força persuasiva da pena e das referidas esferas jurídicas, em
consonância com os anseios da sociedade.
A proteção internacional aos direitos humanos estabelece uma série de direitos
e de obrigações para o acusado, ao tempo que impõe que as violações de direitos
humanos sejam efetivamente punidas.
Nesse cenário, há, em nível internacional, uma estrutura normativa voltada
à proteção aos direitos humanos que tem como foco a vítima. Nesse sentido, a
Resolução n. 60/147 da Assembleia Geral das Nações Unidas de 2005 (ONU,
2005), que consagra princípios voltados à reparação das vítimas de graves vio-
lações de direitos humanos.
Não se pode olvidar que os direitos fundamentais têm duas dimensões. Os
direitos fundamentais (ou direitos humanos) possuem uma dimensão subjetiva (os
beneficiários da proteção são dotados de direitos subjetivos) e outra objetiva (deve-
res de proteção por parte do Estado). A primeira dimensão diz respeito aos direitos
de proteção dos indivíduos e de exigência de respeito frente ao Estado. Por sua vez, a
dimensão objetiva apresenta-se como um conjunto de regras que se impõe, normal-
mente ao Estado, com o fim de que os direitos dos indivíduos sejam implementados
e se desenvolvam (RAMOS, 2016, p. 267).
Desse modo, os direitos fundamentais das vítimas, sob o viés da dimensão sub-
jetiva, devem ser respeitados pelo Estado, assim como incumbe ao Estado a pro-
moção dos direitos fundamentais destas, a qual, no caso de violação, ocorrerá por
meio de uma punição que seja capaz de florescer os objetivos almejados pelas penas,
prevenção geral, especial e punição.
Nesse diapasão, em um Estado Social e Democrático de Direito, deve-se sem-
pre objetivar a proteção de todos os integrantes da sociedade (FISCHER, 2006). O
direito penal e o direito processual penal devem se voltar, com a aplicação da pena,
para prevenir a ocorrência de novos crimes, o que implica um contexto de garan-
tia e de restrição de direitos fundamentais de todos os integrantes da sociedade,

299
inclusive dos indivíduos que violam as normas postas, protegendo-se, por conse-
guinte, os direitos fundamentais das vítimas.
Desse modo, para que ocorra justiça à vítima, possível por meio de uma sanção
jurídica que atinja os fins a que se propõe, mostra-se necessário aferir a capacidade
da sanção imposta de atingir seus objetivos por meio do princípio da proporciona-
lidade. Este princípio poderá melhor adequar os direitos fundamentais em conflito
em um contexto de análise de uma prática delitiva.
O princípio da proporcionalidade engloba um aspecto positivo e outro negativo.
Por meio do primeiro aspecto, proíbe-se a proteção deficiente de qualquer direito
fundamental, comumente presente em decisões criminais desprovidas de efetivi-
dade; pelo segundo, há proibição de excessos, consistente no respeito do núcleo
essencial dos direitos fundamentais. Por conseguinte, não se pode interpretar um
direito fundamental como absoluto, principalmente quando há aparente conflito
entre direitos fundamentais. Não se admite que os direitos fundamentais de um
acusado se sobreponham aos direitos fundamentais da sociedade e da vítima.
O núcleo essencial dos direitos fundamentais do acusado, da sociedade e da
vítima, em um contexto delitivo, deve sempre ser respeitado, sob pena de se incidir
em uma grave violação de direitos fundamentais. Ao acusado, deve-se ao máximo
buscar garantir seu direito à presunção de inocência, a um processo justo etc., ao
mesmo tempo que deve efetivamente ser punido, no intuito de resguardar o direito
à segurança da sociedade e à justiça da vítima.
Deve-se ter em mente que os próprios fins da pena – retributivo e preventivo (geral
e especial) – só serão atingidos por meio de um processo eficiente que resguarde os
direitos, deveres e garantias fundamentais dos envolvidos (acusado, sociedade e vítima).

3 ∙ A APLICAÇÃO DO DIRETO PENAL E OS DIREITOS DA VÍTIMA


A violação da ordem jurídica, em razão da prática de um crime, deve ense-
jar, em regra, a punição do autor, por meio de uma sanção célere, equivalente
à gravidade da conduta e que produza na sociedade a sensação de respeito à
segurança pública e de justiça.
A aplicação dessa sanção deve passar por um procedimento persecutório penal
que assegure ao acusado, em todas as fases, o respeito aos direitos e garantias funda-
mentais. Essa sanção deve ser justa para o acusado, para a vítima e para a sociedade.
Para o acusado, a justiça da sanção decorrerá da observância do devido pro-
cesso legal, por meio do qual lhe serão assegurados, entre outros direitos e garantias
fundamentais, o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência. Essa pre-
sunção será respeitada por meio da não diferenciação por tratamento restritivo da
liberdade antes de uma decisão condenatória, bem como da necessidade de ocorrer
uma solução processual célere que ponha fim aos questionamentos à inocência do
acusado presentes no curso de uma persecução penal.
Para a sociedade e para a vítima, ocorrerá justiça se, após o devido processo legal,
o acusado for celeremente punido em condições equivalentes à violação à ordem jurí-
dica que ocasionou. Essa punição deve ser aferida com base nos fins da pena que, caso
atingidos, ensejarão a consagração da justiça em favor da sociedade e da vítima.

300
Essa justiça ainda só será possível, sem se olvidar dos direitos fundamentais do
acusado, caso a pena seja capaz de retribuir a violação praticada pelo acusado, de
retirar do acusado o anseio de praticar novo delito e de fomentar na sociedade a
ideia de que a ordem jurídica não deve ser violada.
Para efetivamente atingir esses fins, a pena deve ser aplicada em consonância
com o princípio da proporcionalidade, respeitando o núcleo essencial de todos os
direitos fundamentais envolvidos, não apenas os do acusado, proporcionando uma
proteção efetiva e evitando excessos de restrições desses direitos.
Essa perspectiva centra-se na sistemática da pena de prevenção positiva e nega-
tiva. Por meio da prevenção positiva, objetiva-se o restabelecimento da confiança da
vítima e da sociedade na ordem jurídica, ao mesmo tempo que, sob o viés negativo,
a pena deve prevenir a prática de novos delitos.
Portanto, os direitos fundamentais sempre devem ser analisados de maneira
holística, inclusive em um contexto de violação da ordem sob a perspectiva crimi-
nal. Por conseguinte, deve-se restabelecer a ordem jurídica observando não apenas
os direitos fundamentais do acusado, que deverão ser restringidos em proporção
ao grau de violação ocasionado pela infração penal praticada. Além disso, a sanção
penal a ser imposta deverá ser suficiente para fazer valer os fins da pena, necessários
para que ocorra uma efetiva proteção dos direitos fundamentais da sociedade e do
acusado. O direito de todos à justiça sempre deverá ser respeitado.

4 ∙ CONCLUSÃO
Em um contexto de prática delitiva, deve-se levar em consideração o respeito
aos direitos fundamentais de todos os envolvidos: acusado, vítima e sociedade. Uma
visão monocular sobre os fatos, ou seja, de observância dos direitos fundamentais
exclusivamente do acusado, ocasiona um contexto de grave violação dos direitos
fundamentais dos demais personagens envolvidos, no caso a vítima e a sociedade.
A punição efetiva e eficiente de uma infração penal é uma forma de se fazer
valer o direito fundamental da sociedade à segurança e o direito fundamental
da vítima à justiça.
Par tanto, a sanção penal deve atingir seus fins – retributivo, de prevenção espe-
cial e de prevenção geral –, devendo ser fixada em consonância com o princípio
da proporcionalidade, incidindo para evitar punição excessiva bem como proteção
deficiente dos direitos envolvidos.

REFERÊNCIAS
BARATTA, Alessandro. La política criminal y el derecho de la constitución: nuevas
reflexiones sobre el modelo integrado de las ciencias penales. Revista de la Facultad de
Derecho de la Universidad de Granada, p. 89-114, n. 2, 1999.
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2011.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão – causas e alternativas. 4.ed.
São Paulo: Saraiva, 2011.

301
BRASIL. Decreto n. 4.388, de 25 de setembro de 2002. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br. Acesso em: 6 ago. 2020.
FISCHER, Douglas. Delinquência econômica e estado social e democrático de direito.
Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006.
HOHFELD, Wesley Newcomb. Conceptos jurídicos fundamentales. Trad. Genaro R.
Carrió. 2. ed. México: Fontamara, 2004.
JAPIASSU, Carlos Eduardo Adriano; SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Justiça de transição
e os fins da pena. Revista Brasileira de Direito, v. 12, n. 2, p. 207-222, 2016.
MAGALHÃES, Vlamir Costa. O garantismo penal integral: enfim, uma proposta de
revisão do fetiche individualista. Revista SJRJ, v. 17, n. 29, p. 185-197, 2010.
MORESO, José Juan. Sobre los conf lictos entre derechos. In: CARBONELL, Miguel;
SALAZAR, Pedro (Org.). Garantismo: estudios sobre el pensamiento jurídico de Luigi
Ferrajoli. Madrid: Trotta, 2005.
ONU. Organização das Nações Unidas. Resolução 60/147, de 16 de dezembro de 2005.
Disponível em: http://direitoshumanos.gddc.pt. Acesso em: 14 ago. 2020.
PAULINO, Galtiênio da Cruz. A execução provisória da pena e o princípio da presunção
de inocência. Uma análise à luz da efetividade dos direitos penal e processual penal. 2.
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
PUIG, Santiago Mir. Derecho Penal. Parte general. 8. ed. Barcelona: Reppertor, 2006.
RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional.
6. ed. Saraiva: São Paulo, 2016.
ROXIN, Claus. Sentido e limites da pena estatal. In: Problemas fundamentais de Direito
Penal. Lisboa: Vega, 1986. p. 15-17.
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A ANTIGA IUGOSLÁVIA. Prosecutor v.
Nikolic. Julgamento de 2 de dezembro de 2003, parág. 89-90. Disponível em: http://www.
icty.org/. Acesso em: 2 ago. 2020.

302
“AQUI NÃO TEM MUITA COISA”
Os desafios vivenciados por mulheres de Pintadas-BA
no enfrentamento da violência doméstica e familiar

Geiziane Oliveira de Jesus1


Márcia Santana Tavares2

Sumário: 1 Introdução. 2 Caminhos metodológicos. 3 O município de Pintadas e as


barreiras locais no enfrentamento da violência doméstica e familiar. 4 Relatos das
participantes do estudo: os desafios no enfrentamento da violência doméstica e familiar.
5 Reação/enfrentamento à violência doméstica e familiar. 6 Considerações finais.

1 ∙ INTRODUÇÃO
A Declaração Sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (1993) reco-
nhece que a violência constitui uma violação dos direitos e liberdades fundamen-
tais das mulheres, sendo resultado de relações de poder historicamente desiguais
entre homens e mulheres.
Trata-se de um problema histórico que continua a afetar profundamente as socie-
dades contemporâneas, ultrapassando fronteiras geográficas, sociais, atingindo
mulheres de todas as idades, classes, religiões, raças/etnias, orientações sexuais,
escolarização e diferentes origens. Não obstante seja praticada em diversos espaços,
o local de maior ocorrência é no âmbito doméstico e familiar, principalmente por
parceiros (namorados, maridos, ex-namorados, ex-maridos, companheiros).
Em que pese a violência atingir todas as mulheres indistintamente, algumas
pertencentes a grupos minoritários são consideradas mais vulneráveis ao problema,
como aquelas residentes em municípios de pequeno porte,3 predominantemente
rurais, como é o caso de Pintadas-BA.
Muito embora possa ser considerado um dos grupos mais vulneráveis, a pro-
blemática de mulheres em situação de violência em municípios de pequeno porte,
predominantemente rurais, ocupa um espaço reduzido em estudos e pesquisas. A
carência de pesquisas não significa que não exista violência sexista nesses espaços
ou que os índices são menores, apenas evidenciam que a atenção em torno dessas
mulheres é secundarizada tanto pelas academias, quanto pelo próprio Estado.

1 Graduada em Direito. Mestre em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos


pela UFBA. Servidora pública do Tribunal de Justiça da Bahia.
2 Assistente social. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora
do Curso de Serviço Social do Instituto de Psicologia da UFBA e do Programa de Pós-Graduação em
Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da UFBA.
3 São classificados como municípios de pequeno porte aqueles com até 100 mil habitantes (IBGE, 2010).

303
O Mapa Nacional da Violência (2015) indica que as mulheres que vivem em
municípios de pequeno porte formam um dos grupos mais vulneráveis à violência de
gênero.4 De acordo com o referido mapa, a taxa de assassinatos de mulheres por 100
mil habitantes aumentou 12,5% no Brasil entre 2006 e 2013, sendo os municípios com
as maiores taxas os de pequeno porte. Isso indica a importância de serem estudadas as
circunstâncias locais e não apenas os fatores globais (WAISENFILZ, 2015).
Os dados apontam discrepâncias no enfrentamento da violência contra mulheres
que vivem em municípios de pequeno porte (WAISENFILZ, 2015), sinalizam falhas
na proteção do Estado brasileiro para mulheres em situação de violência, eviden-
ciam que as políticas públicas até agora implementadas não conseguiram impactar
todas as mulheres brasileiras com a mesma intensidade. A Política Nacional de
Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres não está atingindo seu objetivo de
garantir proteção integral a todas as cidadãs, especialmente aquelas inseridas em
contextos de vulnerabilidade5 (NUNES, 2017).
Dentro desta linha, pretendendo contribuir com o rompimento dessa invisi-
bilidade, este artigo6 objetiva trazer à tona os desafios vivenciados por mulheres
pintadenses no enfrentamento da violência doméstica e familiar. As dificuldades
enfrentadas por elas se assemelham em muito àquelas enfrentadas por tantas outras
mulheres que vivem em municípios de pequeno porte do País.
O artigo está estruturado em tópicos: o segundo explica a metodologia empre-
gada; o terceiro apresenta o município de Pintadas e as barreiras locais para
enfrentamento da violência doméstica e familiar; o quarto e o quinto tópicos
trazem as narrativas das mulheres de Pintadas, destacando, sucessivamente, seus
relatos quanto aos desafios vivenciados por elas, como reagem/enfrentam o pro-
blema e quais as medidas propostas por elas para ajudar as mulheres pintadenses
no enfrentamento do problema.

2 ∙ CAMINHOS METODOLÓGICOS
Para cumprir o objetivo proposto, considerou-se necessário quebrar o silêncio des-
sas mulheres, para que as marcas da violência no corpo e na mente sejam revertidas

4 Neste artigo definimos violência de gênero como “qualquer tipo de violência (física, social
ou simbólica) que tenha por base a organização social dos sexos e que seja perpetrada contra
indivíduos especificamente em virtude do seu sexo, identidade de gênero ou orientação sexual.
Dentro dessa perspectiva, a violência de gênero pode atingir tanto homens quanto mulheres, como
se verifica no caso da violência contra homossexuais e transexuais, vítimas constantes de todo tipo
de agressão. Entretanto, histórica e numericamente, é a violência masculina contra mulheres e, em
especial, a violência doméstica [...]” (SARDENBERG; TAVARES, 2016, p. 8).
5 O termo vulnerabilidade social é comumente utilizado para fazer referência a situações de risco a
que se encontram expostos indivíduos e dificuldades que enfrentam para acesso a bens e serviços
sociais como saúde, educação e justiça. A expressão é também adotada quando um indivíduo ou
um grupo, é excluído econômica e socialmente, está sem trabalho, perde os vínculos sociais, com a
família e seu círculo de convivência e sociabilidade (ADORNO, 2001).
6 Este artigo condensa algumas das discussões contidas na dissertação de mestrado “Aqui não tem
muita coisa” - Narrativas das mulheres de Pintadas-Ba sobre a violência doméstica e familiar
em suas vidas e as barreiras para enfrentamento”, defendida no Programa de Pós-graduação em
Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM/UFBA).

304
em voz, constituindo um conjunto de recursos para procura de dados e de análises
(DARON, 2009). Assim, optou-se pelos relatos orais, através da realização de rodas de
conversas e entrevistas com um roteiro previamente elaborado, centrado em narrati-
vas sobre situações de violência doméstica e familiar ao longo de suas vidas.
A roda de conversa é um espaço para que as participantes falem de seu quoti-
diano, tanto na esfera da vida privada, como na pública, podendo ouvir a si mes-
mas, escutar as outras e trocar entre si conhecimentos, como também confidên-
cias. Portanto, é um ambiente importante para discussão e construção de saberes
e práticas. É considerada uma metodologia participativa que pode ser utilizada
em diversos contextos para promover uma cultura de reflexão sobre os direitos
humanos (AFONSO; ABADE. 2008). Da mesma forma, as entrevistas narrativas,
em que relatam suas histórias de vida, propiciam situações de contato para que as
entrevistadas contem suas vivências.
Foram realizadas duas rodas de conversas, nos dias 19 e 20 de abril de 2018 –
ambas aconteceram em uma sala de aula do Colégio Estadual Normal de Pintadas e
participaram um total de 20 mulheres que tinham na ocasião entre 15 a 34 anos –, e
4 entrevistas semiestruturadas com mulheres que estão ou, em algum momento da
vida, estiveram em situação de violência doméstica e familiar: Julia,7 com 18 anos de
idade; Fernanda, com 29 anos; Joana, com 39 anos de idade, as três mulheres residen-
tes na sede do município; e Ester, com 52 anos, moradora da zona rural do município.
A seguir apresentamos, resumidamente, o município de Pintadas, sua localiza-
ção geográfica, número de habitantes e analisaremos as barreiras locais no enfren-
tamento da violência doméstica e familiar, destacando a escassez de equipamentos
da rede de proteção às mulheres no município.

3 ∙ O MUNICÍPIO DE PINTADAS E AS BARREIRAS LOCAIS NO


ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
Pintadas é um município de pequeno porte, com 10.342 habitantes, localizado
no Estado da Bahia, situado no Território de Identidade Bacia do Jacuípe,8 no
semiárido, área do Polígono das Secas, a 272 km à Oeste da capital, Salvador, com
área de 531,4 Km2 e altitude de 300 m. O município é predominantemente rural,
a população majoritariamente sobrevive da agricultura e da agropecuária, o que
acarreta grandes fluxos migratórios no período de estiagem na busca por oportuni-
dades de sobrevivência e de melhoria das condições de vida em outras localidades,
especialmente, nas regiões Sul e Sudeste do País (PTDS, 2010).
A região semiárida compreende municípios com características que extrapo-
lam o baixo índice de chuvas; normalmente, chove menos de 800 mm por ano.
Caracterizam-se também pela falta de infraestrutura, um sistema de transporte

7 Os nomes das mulheres são fictícios, de modo a garantir o seu anonimato.


8 O conceito de Território de Identidade está previsto no Decreto 12.354, de 25.8.2010, art. 1º, § 1º:
“Considera-se Território de Identidade o agrupamento identitário municipal formado de acordo
com critérios sociais, culturais, econômicos e geográficos, e reconhecido pela sua população como
o espaço historicamente construído ao qual pertence, com identidade que amplia as possibilidades
de coesão social e territorial”.

305
eficiente que inviabiliza a articulação entre a região, ausência de uma rede que
estruture a produção econômica, falta de saneamento básico, entre outras dificul-
dades (ALMEIDA, 2016).
Em Pintadas, assim como na maior parte dos municípios brasileiros de pequeno
porte, não existe órgão criado especialmente para a defesa e proteção dos direitos
das mulheres; a rede de atendimento às vítimas de violência doméstica e familiar é
escassa. O que existe, para além de uma delegacia de polícia comum, é um Centro
de Referência de Assistência Social (CRAS), que também não é um órgão específico
para as mulheres em situação de violência, dividindo suas ações com várias outras,
como atendimento às pessoas idosas, com deficiência, entre outras. Na ausência de
um Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM), os atendimentos de
mulheres e meninas em situação de violência são realizados pelas equipes especia-
lizadas dos CRAS que, por lidarem com vários tipos de violação de direitos, não
conseguem focalizar nas políticas públicas para as mulheres (NUNES, 2017).
Inexiste no município uma delegacia especializada de atendimento às mulhe-
res, a mais próxima está localizada no município de Feira de Santana, distante
142 km de Pintadas. Os casos de violência contra as mulheres são atendidos
pela delegacia de polícia comum do município e encaminhados para uma Vara
Criminal localizada na Comarca de Ipirá, distante 44 km de Pintadas, uma vez
que esta é distrito judiciário daquela. Ademais, não existe no município qualquer
outro órgão que auxilie as mulheres em situação de violência doméstica e familiar,
nenhuma promotoria de justiça – a mais próxima também está situada em Ipirá
–, nem mesmo nenhum posto da Defensoria Pública, estando o mais próximo
localizado em Feira de Santana.
Scoot e seus colaboradores (2010) observam que, enquanto as estudiosas recla-
mam sempre da insuficiência de serviços nos grandes centros urbanos, nos municí-
pios rurais, a ausência de centros de referências, casas-abrigo e delegacias especia-
lizadas é muito mais evidente, e pouco se tem criticado. Além disso, fatores como a
distância entre as moradias, o transporte precário e a deficiência nas comunicações
com localidades de difícil acesso também contribuem para que a violência contra
estas mulheres permaneça.
Essa realidade, marcada por fatores simbólicos e culturais, tem no seu con-
texto, principalmente geográfico, um complicador para que as políticas públi-
cas de enfrentamento da violência contra a mulher sejam implementadas. Até
o presente, no cenário nacional Delegacias da Mulher (DDM), casas-abrigo e
as demais assistências foram pouco pensadas levando em consideração essas
mulheres. Os desafios para implementar estes tipos de ação, cada vez mais rea-
lizadas no meio urbano, passam por recursos, por distância, por disponibili-
dade de funcionários, por dificuldades de anonimato, por oposição no poder
local e por uma série de outros fatores que deixam as mulheres rurais expostas
à sensação de impotência e a experiência de se sentirem alvos de esquecimento
sistemático (SCOOT et al., 2010, p. 73).
A ausência de proteção pelo Estado, confirmada em decorrência da escassez
de equipamentos e políticas públicas voltadas para a realidade dessas mulheres,
dificulta a denúncia e, consequentemente, a proteção das vítimas de violência
doméstica e familiar, tornando ineficazes os direitos garantidos pela Lei Maria da
Penha no município de Pintadas.

306
Neste sentido, podemos afirmar que a maioria das conquistas alcançadas pelas
mulheres dos grandes e médios centros urbanos, apesar de ainda serem insufi-
cientes, não chega efetivamente às mulheres que vivem em Pintadas, assim como
àquelas que vivem em muitos outros municípios de pequeno porte do país. Essas
mulheres continuam submetidas às diversas formas de violência conjugadas, deixa-
das ao relento pelo próprio Estado, aquele que deveria criar mecanismos capazes de
coibir a violência no interior da família.
As informações prestadas pela Delegacia de Polícia do município de Pintadas
confirmam este fato. De acordo com os bancos de dados da referida delegacia, que
foram disponibilizados para essa pesquisa, entre os anos de 2014 a 2018, foram
finalizados 48 inquéritos policiais por infração ao art. 7º da Lei 11.340/2006 (Lei
Maria da Penha) e encaminhados para o Ministério Público. Destes inquéritos,
aproximadamente 54% são ameaças, 50% lesões corporais, 52% violência psicoló-
gica, 33% violência patrimonial, 31% violência moral, 2% tentativa de feminicídio.
Insta salientar que as modalidades de violência psicológica, moral e patrimonial
identificadas nos inquéritos vêm acompanhadas de outras formas de violência,
nunca estão isoladas. Em relação aos agressores, 94% são atuais ou ex-parceiros e
6% corresponde a filhos homens das vítimas.
Os dados citados revelam um número muito pequeno de mulheres que buscam
amparo dos órgãos públicos, em algumas situações nem sequer é aberto um inqué-
rito para apuração dos fatos. Segundo o agente da delegacia que nos atendeu, esses
dados correspondem apenas aos inquéritos que foram gerados e finalizados, uma
vez que muitas vezes, antes de iniciar o procedimento, o delegado convida o agressor
para dar “uma prensa”, o que segundo ele já resolve o problema. Essas atitudes dos
profissionais competentes acabam tornando os dados subnotificados, pois, ao invés
de abrir um inquérito policial para apurar os fatos, acabam atuando como uma
espécie de aconselhadores, promovendo a reconciliação do casal, o que demons-
tra que a violência contra as mulheres continua sendo tratada como um problema
secundário, que pode facilmente ser solucionado no âmbito privado, pelo próprio
casal ou através de apoio psicológico ou algum tipo de assistência (TAVARES, 2013).
Além disso, a maioria das mulheres de Pintadas permanece em silêncio e
somente procuram ajuda em situações mais graves que envolvem ameaças e lesões
corporais. Segundo o Plano Territorial de Desenvolvimento Sustentável (PTDS) do
Território Bacia do Jacuípe (2010), estima que mais de 2/3 (dois terços) das mulheres
que sofrem algum tipo de violência nos municípios do Território sofrem caladas e
só recorrem à polícia em casos extremos, quando ocorrem casos de ameaça com
arma de fogo, espancamentos com fraturas ou cortes e ameaças aos filhos. Os moti-
vos são a cultura em não denunciar, a falta de estrutura das instâncias públicas e
despreparo dos seus agentes (PTDS, 2010).
Nos depoimentos das participantes do estudo, analisados no próximo tópico,
perceberemos, nitidamente, que as circunstâncias locais do município de Pintadas,
como o modo de vida influenciado pelo machismo exacerbado, o grau de proximi-
dade muito grande entre as pessoas, a escassez de equipamentos da rede de atendi-
mento à mulher e políticas públicas de prevenção e combate à violência de gênero
dificultam a materialização da Lei Maria da Penha, o que contribui com silêncio e
exposição das mulheres às diversas formas de violência doméstica e familiar.

307
Todos esses fatores constituem óbices à efetividade da Lei n. 11.340/2006 no muni-
cípio em questão. É importante destacar que, de acordo com os dados informados
pela delegacia de polícia local, aproximadamente 11% das mulheres que denunciaram
o agressor pela primeira vez retomam a delegacia novamente e, na maioria das situa-
ções, as agressões posteriores se manifestam de forma ainda mais gravosa.

4 ∙ RELATOS DAS PARTICIPANTES DO ESTUDO: OS DESAFIOS NO


ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
As colaboradoras desse estudo permaneceram por muito tempo em silêncio ou
permanecem ainda hoje. Além dos motivos que comumente influenciam as mulhe-
res a não denunciarem os agressores – sentimento de culpa, medo de serem mortas,
crença na mudança do agressor, dependência financeira, dependência emocional,
preocupação com o futuro dos filhos, sentimento de vergonha em expor o problema
para a família, a sociedade, os vizinhos, não contarem com o apoio da família,
se sentirem mais respeitadas socialmente estando casadas –, as participantes do
estudo destacam o fato de residirem em um município de pequeno porte, marcado
pela influência do machismo, proximidade entre as pessoas, sem equipamentos da
rede de proteção às mulheres e servidores qualificados para atendê-las, como os
principais motivos de não buscarem ajuda do Poder Público.
Podemos perceber na fala de Fernanda “todo mundo pensava que era mil mara-
vilhas. Como é que eu vou dizer a todo mundo que se eu falar um A com ele, ele vem
pra cima de mim?”, como o intenso controle social de suas ações influencia na forma
como ela conviveu com a violência doméstica e familiar. Esse “todo mundo” sig-
nifica a família, os amigos, os vizinhos, mas também os membros da comunidade
local, dado que praticamente todas as pessoas se conhecem.
Uma das características de cidade pequena é a proximidade entre as pessoas,
“aonde quer que o indivíduo vá há alguém que o conhece ou que é seu parente”
(AMORIM; NADER, 2017, p. 124). Em tais localidades, o indivíduo se adapta ao
constante convívio com os outros, havendo um permanente controle do compor-
tamento pelos membros da comunidade em todas as esferas da vida. Esse controle
é exercido por uma série de atores sociais, desde parentes, vizinhos, comerciários,
prestadores de serviço, ou seja, um grande número de membros da comunidade.
A mesma preocupação é manifestada também nas falas de Ester: “Ainda bem que
não tinha ninguém no momento, só tinha eu e ele! Você já pensou se tivesse alguém
para ver? A vergonha e a decepção!” e de Joana: “O que a sociedade ia achar de mim?”.
O fato de residirem em um município de pequeno porte é um dos motivos deter-
minantes para manter o silêncio dessas mulheres, visto que a proximidade muito
grande existente entre as pessoas, em virtude do reduzido número de habitantes,
gera um mútuo controle, julgamento moral e intensa recriação narrativa das ações
dos indivíduos e suas famílias (AMORIM; NADER, 2017).
O diálogo a seguir foi estabelecido entre as participantes da roda de conversa
e confirma, exatamente, como as informantes da pesquisa convivem com essa
realidade perturbadora:
– Eu tenho vergonha de apanhar e no outro dia sair na rua com o olho roxo. Que
foi isso? Cair! Como é que tu cai e bate o olho?

308
– E os vizinhos que moram perto?
– [...] os vizinhos tudo fofoqueiro [...]
– [...] qualquer coisinha o vizinho tá de olho!
– [...] cidade pequena, meu Deus!
– [...] O que um faz todo mundo quer saber! Se cuspir ali, todo mundo sabe.
– Isso quando não acrescenta. A mulher apanha lá, e aí já saem dizendo ele
quase matou.
– Inventam várias coisas que nem aconteceu.
O diálogo acima, conjugado com o depoimento das mulheres entrevistadas,
evidencia que, se para uma mulher que vive em uma grande cidade é necessário
ter coragem para denunciar o agressor, para as mulheres que vivem em cidades
pequenas essa coragem precisa ser ainda maior. Ao decidirem denunciar terão que
lidar com o julgamento moral da comunidade e as fofocas depreciativas, que muitas
vezes lhes atribuem a culpa pelas agressões, acusando-as de não cumprirem como
deveriam o seu papel de mulher, como esposa e mãe (AMORIM; NADER, 2017), em
outras palavras, de não serem uma “verdadeira mulher”.
No contexto pintadense, a “verdadeira mulher” é aquela submissa ao marido, que
cuida do lar, do marido e dos filhos (DIAS; REINHEIMER, 2011). Enquanto o “verda-
deiro homem” é o homem de coragem, valentia e destemor (OSTERNE, 2011).
No tocante à dimensão cultural do machismo, é importante destacar as peculiari-
dades da região Nordeste, onde os atributos da macheza são historicamente associados
à identidade masculina. Destarte, a figura do vaqueiro é referência para os homens do
sertão, “descrito como ágil, detentor de força, corajoso, valente, um indivíduo que não
desiste diante de obstáculos, perigos ou das dificuldades impostas por sua atividade,
que não foge à luta, por mais árdua que seja” (VANIN, 2001, p. 191).
É patente a relação predominante da violência doméstica e familiar com o
machismo que impera no município. Com efeito, as violências perpetradas contra
as participantes da pesquisa ocorreram por razões diversas relacionadas direta-
mente com a lógica patriarcal, que vão desde ódio, raiva, desprezo, humilhação,
insubordinação feminina ao desejo masculino, descontrole das emoções, perda de
prestígio viril (BANDEIRA, 2017). Por não apresentarem o padrão estético contem-
porâneo, padrão este que exige da mulher boa aparência física, simbolizada através
de um corpo “perfeito”, cabelos longos e lisos, ou por não realizarem os afazeres
domésticos da forma que se espera.
Desta forma, temendo os julgamentos sociais, as mulheres se calam, como evi-
denciam as declarações de Joana e Fernanda:
– Quando ele quebrou o celular na minha cara isso aqui ficou tudo roxo, aí per-
guntaram o que foi, mas eu também não disse o que foi! Só disse para uma pessoa
que a gente conversa muito, que foi ele que tinha me batido. Para as outras eu disse
que foi um machucado, que eu tinha batido na pia, estava lavando o banheiro,
abaixei e bati. (JOANA)
– Se fosse um lugar grande, eu teria dado queixa no primeiro tapa que ele tinha me
dado, numa cidade pequena, se eu desse queixa do meu companheiro e continuasse
com ele, todo mundo iria falar: isso é uma descarada...o marido tá batendo, espan-
cando e tá junto! (FERNANDA)

309
Portanto, confirma-se mais uma vez que o intenso julgamento moral da comu-
nidade e que as maledicências dificultam o enfrentamento da violência doméstica
e familiar por mulheres pintadenses, de modo que elas preferem manter o silêncio
a verem seus nomes circulando pela cidade. No segundo depoimento destacado
acima, Fernanda temia que o fato se tornasse público, pois, caso mudasse de ideia e
desejasse continuar com o autor da violência, passaria a conviver com comentários
maldosos de pessoas que passariam a lhe atribuir a culpa pela violência.
Igualmente, outro motivo que contribui para o silêncio dessas mulheres é a
escassez de equipamentos da rede de proteção garantidos pela Lei Maria da Penha.
Perguntando na roda de conversa sobre o que havia no município de Pintadas para
apoiar às mulheres que enfrentarem à violência doméstica e familiar, as respostas
foram estas: “Aqui é o fim do mundo”, “Aqui não tem muita coisa”, “Oxe! Ave Maria!
Se for falar tudo (que não tem no município), acaba o ano e não fala”.
Em que pese a Lei n. 11.340/2006 representar um marco jurídico, podendo ser
considerada um eficaz mecanismo institucional de coibição e prevenção à violência
doméstica e familiar contra a mulher, ainda não é o suficiente para garantir uma
vida livre de violência, uma vez que a sociedade ainda precisa evoluir muito no que
diz respeito concretizar os direitos estabelecidos nas normas (SOUZA, 2016, p. 170).
Neste sentido, as mulheres que vivem em municípios de pequeno porte formam
um dos grupos mais vulneráveis à violência de gênero, pois a Lei Maria da Penha
não consegue lhes garantir uma igualdade material. As mulheres de Pintadas, por
exemplo, convivem com a ausência de mecanismos públicos de proteção social e
jurídica assegurada pela referida Lei.
Destarte, se na capital baiana a rede de proteção apresenta serviços precários e
insatisfatórios, sem infraestrutura, com atendimento moroso e pouco qualificado
(FRANCO; TAVARES, 2016), em Pintadas, esta rede nem sequer existe, o que
dificulta a denúncia e o cumprimento do que prescreve a legislação, tornando as
mulheres ainda mais vulneráveis à situação de violência doméstica e familiar.
Marisa Sanematsu (2017), diretora do Instituto Patrícia Galvão, especializado na
produção de notícias e conteúdos sobre os direitos das mulheres brasileiras, salienta
que muitas cidades pequenas não têm rede adequada de acolhimento para a mulher
que sofre qualquer tipo de violência, isso faz com que ela permaneça mais tempo
no ciclo violento. Além disso, ela sinaliza a ausência de recursos e investimentos em
políticas públicas voltadas para a defesa da mulher que vive nesses espaços, uma
vez que não há delegacia da mulher, nem profissionais capacitados para atendê-las.
Efetivamente, a existência de uma única delegacia comum e um único hospi-
tal no município, nos quais trabalham profissionais, em sua maioria, da própria
cidade, que, inclusive, conhecem as vítimas, favorece a manutenção do silêncio
das mulheres pintadenses.
Diante de tais dificuldades, podemos considerar ainda mais difícil para uma
mulher que reside em um município de pequeno porte sem uma delegacia especia-
lizada, sem um CRAM, casa abrigo, ou quaisquer ações de apoio às mulheres para
enfrentamento deste problema, romper com o ciclo de violência em que se vê enredada.
No próximo tópico, veremos como as mulheres participantes da pesquisa rea-
gem e enfrentam a violência doméstica e familiar, em meio à convivência com essas

310
diversas barreiras e quais as medidas propostas por elas para ajudar tanto a elas
próprias, quanto outras mulheres pintadenses que também sofrem com o problema.

5 ∙ REAÇÃO/ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E FAMILIAR
Apesar dos enormes desafios, as participantes do estudo relatam várias formas
de reação/enfrentamento à violência doméstica e familiar de caráter individual, que
variam muito de acordo com a subjetividade e a história de vida e vivência de cada uma.
As falas sublinhadas abaixo foram destacadas no decorrer da roda de conversa, sig-
nificando ações individuais de reações/enfrentamento à violência doméstica e familiar:
– Uma vez, o meu mesmo me agrediu por causa dos amigos dele. Mas também ele
me bateu e eu também bati nele até umas horas.
– É por isso que eu não caso. Eu já disse lá em casa. Eu casar? Nunca nessa vida.
– Não gosto de cabelo pequeno! Meu cabelo era grande. Meti na tesoura.
– Eu tentei estudar cinco anos. Todo ano eu desistia, porque meu marido dizia:
tu tá indo para escola para tu arrumar um macho. Esse ano eu disse [...] eu vou
estudar de noite, se tiver eu vou e tá acabado.
Como podemos observar, as participantes das rodas de conversa elegem estra-
tégias individuais de enfrentamento ao problema – reações às agressões, através
de agressões recíprocas físicas e verbais, negativa à obrigatoriedade do casamento,
indo de encontro à vontade do parceiro, fazendo prevalecer sua própria vontade,
seja em relação ao seu próprio corpo, como, por exemplo, cortando o cabelo, seja
em relação ao desejo de estudar.
Entre as estratégias individuais de sobrevivência à violência doméstica e fami-
liar, Ester, que mora na zona rural do município, salienta que além de se esconder,
também esconde as munições das armas:
– Me afasto de perto [...] dou de uma que estou fazendo alguma coisa, me escondo,
aí agora ele vai lá deita e dorme.
– [...] eu sou esperta, quando eu sei que tá bebendo, se tiver uma espingarda carre-
gada, eu vou lá e tiro a espoleta, entendeu como é que é? (ESTER).
Outra estratégia de Ester é manter o celular por perto para em qualquer situação
mais grave ligar para alguém da família pedindo ajuda:
– Se a gente ver que aquela agressão vai prosseguir, o que você faz? Você se afasta
de perto, você corre, você vai para algum lugar, chega ali num ponto que dá sinal,
liga e diz vem me buscar aqui em tal lugar [...]
– Teve um dia que eu precisei ligar para meu irmão [...] Nesse dia eu fiquei com
raiva, eu cheguei e liguei para meu irmão, subi em cima da trincheira do tanque, aí
deu sinal, eu liguei e disse: meu irmão vem aqui na roça me buscar que eu quero ir
pra casa, ir pra rua. Aí ele apareceu lá, quando ele veio eu peguei montei na garupa
da moto dele e fui embora, larguei ele lá sozinho. Entendeu? Não cheguei a comentar
com meu irmão o que havia acontecido, só que o meu companheiro estava bêbado.
– Demorou mais ou menos uma hora de relógio para meu irmão chegar. Nesse
tempo eu sai de casa, fui lá para o mato, pra roça, deixei ele lá só. Quando ele fica
só, ele deita e garra no sono, aí nesse momento ele dormiu eu já estava lá no mato,
porque eu disse, se acontecer alguma coisa daqui mesmo, eu já estou longe (ESTER).

311
As reações de Ester demonstram certa passividade diante das agressões do com-
panheiro, ela faz tudo para manter o casamento e ser vista como uma “verdadeira
mulher” perante a sociedade e a família. Ao mesmo tempo, vive em permanente
estado de alerta, sobressaltada, temendo a próxima agressão do marido, que pode
vir a qualquer hora e por qualquer motivo.
É interessante observar nesses relatos que Ester quando está na zona rural con-
vive com peculiaridades decorrentes desse fato, como, por exemplo, distância, difi-
culdade de deslocamento, dificuldade de encontrar alguém para pedir ajuda; assim,
para se proteger, ela conta apenas consigo mesma e com um aparelho de celular.
Por último, Joana foi a única participante que recorreu à Delegacia de Polícia.
Na memória de Joana aparecem as dificuldades de denunciar o parceiro, momentos
em que ia até a porta da delegacia, mas, por medo de que algo pior lhe acontecesse,
se arrependia e não realizava a denúncia.
– Eu já tinha ido outras vezes (na delegacia), mas não tive a coragem de entrar!
Eu fui até a porta de entrada, mas não tive coragem de entrar lá pra dentro.
Umas três vezes, eu sei que em um dia só eu fui umas duas vezes, mas aí depois
teve várias outras vezes que eu ia até a porta da delegacia, mas não tinha cora-
gem de entrar! (JOANA).
O fato de praticamente todas as pessoas se conhecerem influenciou Joana a bus-
car oferecer denúncia em outro município vizinho, Ipirá, para, desta forma, evitar
que chegasse ao conhecimento do autor da violência:
– Eu ficava com medo de registrar uma queixa aqui e logo ele ficar sabendo e ir
fazer alguma coisa comigo, aí eu tentei em Ipirá, eu disse quando vier de lá eu já
venho mais forte e estou segura, aí eu não consegui [...]
– [...] não registrava em Ipirá só em Feira [...] ou registrava aqui (em Pintadas) na
delegacia ou ia para Feira [...] (JOANA).
Chegando a Ipirá, ela foi informada que não poderia fazer este procedimento
lá, visto que também não tem Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher.
Desta forma, restaram-lhe duas opções, realizar a denúncia em Pintadas na
Delegacia de Polícia Comum ou se deslocar até a cidade de Feira de Santana, onde
tem Delegacia Especializada.
O medo, a perda de tempo, a distância, o gasto com passagem, entre outros fato-
res, desestimularam Joana a seguir em frente para Feira de Santana, então ela retor-
nou para Pintadas e resolveu esperar mais um pouco pela mudança do ex-marido.
Quando, finalmente, Joana constatou que a mudança não chegaria, quando ela
percebeu que sua vida realmente estava em risco, ela tomou sua decisão, encarou o
medo, a vergonha, e, decidiu denunciar.
– Eu disse: não! Vou esperar a próxima vez, quem sabe melhora. Aí da última vez
ele pegou uma faca para me matar, e ficava passando a faca assim (encenação de
alguém passando uma faca em forma de cruz), disse que era a cruz da morte, que
eu ia dormir, mas não ia acordar viva, que eu ia amanhecer com os pés juntos. Aí
eu fiquei trancada no quarto com meu filho, o mais novo, que na verdade não era
trancada porque ele rancou os trincos da fechadura. Eu disse: é! ou hoje ou nunca!
Se eu conseguir escapar dessa eu vou lá à delegacia não importa se seja aqui, ou
em Feira, seja lá onde for.
Assim, eu não tive apoio de ninguém, tomei minha decisão, eu fui à delegacia (de
Pintadas), registrei a queixa, passei uma semana para registrar essa queixa.

312
– Isso foi no domingo, aí eu fui à segunda feira, mandaram eu voltar na terça,
fui na terça mandaram eu voltar na quinta. Eu fiquei a semana todinha indo lá.
Primeiro eu conversei com o delegado, aí o delegado mandou eu ir no outro dia,
fui e o delegado não estava, mandou eu ir no outro dia.
– Eu passei uma semana, mas consegui! Graças a Deus! (JOANA).
Entre a decisão de denunciar e a concretização da denúncia, Joana teve que con-
viver com a espera por um servidor que lhe prestasse o atendimento adequado. O
delegado que atua na delegacia da cidade também atende na delegacia de outros
municípios vizinhos, deste modo, nem todo dia está no município. Como é possível
verificar nos relatos da entrevistada, ela procurou a delegacia numa segunda-feira e,
durante toda a semana, precisou retornar a fim de concretizar a denúncia.
Além de não ter uma delegacia especializada, o fato de não ter um delegado
atendendo constantemente pode ser considerado um desafio ainda maior para as
mulheres pintadenses no enfrentamento do problema, visto que precisam aguardar
a próxima vinda do delegado à cidade para serem ouvidas e requererem a concessão
de medidas protetivas de urgência.
As mulheres que moram no município de Pintadas convivem com diversas bar-
reiras no enfrentamento da violência doméstica e familiar. Aquelas que enfrentam o
machismo, superando a vergonha da família, dos vizinhos, dos membros da comu-
nidade local, quebram silêncio e perdem o medo de denunciar o agressor, passam
a conviver com outras barreiras, notadamente, a escassez de órgãos locais da rede
de proteção à mulher no município, ausência de órgãos especializados, delegacias,
centros de referência de atendimento à mulher, casas abrigo, ou qualquer outro,
falta de profissionais no município, demora na prestação dos serviços e ausência de
políticas públicas de prevenção e combate ao problema.
Diante desse cenário, as entrevistadas sugerem algumas medidas que podem
ser tomadas para ajudá-las, como também ajudar outras mulheres do município de
Pintadas que sofrem com o mesmo problema. Descrevemos a seguir algumas sugestões:
– Eu acho que aqui no município de Pintadas deveria ter um órgão só para isso,
para acolher essas pessoas, e pessoas que saibam como falar. Pessoas que soubes-
sem conversar, que entendessem de fato o que está passando com aquela pessoa,
porque realmente não é fácil. Não é fácil você chegar assim e entregar seu compa-
nheiro que você vive há muitos anos [...] Se aqui tivesse uma casa de apoio, alguma
coisa assim, tipo CRAS, só para isso, com privacidade é lógico, para conversar com
essas pessoas. Acho que deveria ter palestras, alguma coisa [...] (FERNANDA).
– Eu acho que deveria ter algo para ajudar, porque nem só eu passava por esse tipo
de agressões, muitas outras mulheres passam pela mesma situação, e ficam talvez
como eu, com vergonha, com medo de tomar uma atitude. Então eu acho que a
nossa cidade deveria ter alguém para acolher essas mulheres que acabam sendo
agredidas pelos próprios companheiros. Tem o CRAS, eu acho que o CRAS não
serve para isso, eu acho que deveria ter algo que incentivasse as mulheres a não
passar pelo que eu passei, porque falar a verdade não é fácil, eu sofri muito. E para
a sociedade a maioria questiona, por que apanhou? Por que continua apanhando?
Então eu acho que deveria ter alguma coisa para a proteção das mulheres, direta-
mente para o caso. Um órgão diretamente para nós mulheres (JOANA).
– Deveria ter um local de acompanhamento, porque muitas pessoas que passam
por isso sofrem caladas e acabam ficando nessa situação que eu fiquei, sem ami-
gas, sem ninguém, sem a família. Se tivesse um lugar desse, eu acho que eu iria,

313
quem sabe eliminar tudo que ainda tem aqui, a gente sempre vai ficar com as
marquinhas [...] (JULIA).
O que as participantes da pesquisa pleiteiam são os equipamentos da rede de
proteção à mulher, garantidos pela Lei Maria da Penha, ou seja, a implantação de
uma delegacia especial de atendimento à mulher, de um CRAM, uma casa abrigo,
órgãos capazes de lhes dar o apoio multidisciplinar necessário para enfrentarem
o problema. Pleiteiam por profissionais qualificados que tenham capacitação de
gênero para atender, que saibam compreender seus motivos e não fiquem lhes cul-
pando pela violência sofrida.
Elas sonham com a eficácia da legislação brasileira no município de Pintadas.
Enquanto isso não acontece, vão criando estratégias de sobrevivência, umas man-
tendo o silêncio, outras sendo sua própria bússola, contando apenas consigo mes-
mas, sua determinação e capacidade de superação (FRANCO; TAVARES, 2016).
Outras, quando percebem que não serão capazes de superar sozinhas, recorrem à
única delegacia de polícia existente no município.

6 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho de escrever sobre a violência, principalmente contra mulheres que
vivem em pequenos municípios, muitas vezes invisibilizadas, requer uma atenção
basilar. Ao mesmo tempo em que se fala sobre a vida de mulheres que têm seus
direitos humanos e fundamentais violados, é uma forma também de dar visibi-
lidade ao problema, tanto no campo dos estudos feministas quanto das políticas
públicas, dos direitos humanos, contribuindo com a transformação dessa realidade.
Para além de um trabalho acadêmico, as rodas de conversas e entrevistas reali-
zadas foram ocasiões nas quais as mulheres tiveram a oportunidade de falar, desa-
bafar, sugerir caminhos a serem traçados, e, principalmente, serem ouvidas. De tal
maneira, foi também um momento de contribuir com o rompimento do silêncio na
memória dessas mulheres.
As colaboradoras da pesquisa demonstraram solidão, desamparo, insatisfação
com os valores conservadores que as enredam em relacionamentos abusivos e com a
falta de mecanismos públicos propícios a protegê-las. Revelaram a sensação de esta-
rem vivendo em um município situado no “fim do mundo”, fim este caracterizado
como um lugar distante, esquecido, que “não tem muita coisa” capaz de apoiá-las no
enfrentamento da violência.
Podemos concluir que, para garantir às mulheres pintadenses os direitos previstos
na Lei Maria da Penha, o Estado e o próprio município necessitam, com urgência,
investir na implantação dos equipamentos da rede de atendimento às mulheres e polí-
ticas públicas de combate e prevenção à violência doméstica e familiar em Pintadas.
Em relação às políticas públicas de combate e prevenção ao problema, destaca-
mos algumas medidas que podem ser adotadas: campanhas municipais de conscien-
tização da violência doméstica e familiar, através de outdoors, panfletos, cartazes,
divulgação na rádio comunitária, no carro de som, de modo a sensibilizar a comu-
nidade sobre a gravidade do problema; investir na educação baseada na igualdade
e não na discriminação, promovendo debates constantes nas escolas municipais e
estaduais, e na comunidade local, com foco na desnaturalização dos papéis tradicio-
nais de gênero; palestras e rodas de conversas com a população, homens e mulheres
314
para falar a respeito da violência doméstica e familiar, em especial, chamando os
homens para refletirem sobre o machismo e o patriarcado; capacitação continuada
dos profissionais que lidam com o atendimento destas mulheres, na delegacia, no
CRAS, no hospital, para proporcionarem empatia, acolhimento e garantia de maior
proteção jurídica às vítimas.
Fazem-se necessárias também ações concretas dirigidas às mulheres, seus filhos e
filhas. Nessa perspectiva, no município de Pintadas, sugerimos a criação de um órgão
de proteção às vítimas de violência doméstica e familiar, com atendimento multidisci-
plinar, oferecido em especial por advogadas, psicólogas e assistentes sociais.
Por fim, lembramos que a violência não pode ser combatida apenas por meio
da proteção e conscientização das mulheres. É preciso também criar um espaço
específico para os homens autores de violência, com o objetivo de reeducá-los antes
de serem inseridos de volta na sociedade. Apenas a punição não resolve o problema,
uma vez que o autor da violência, sem um tratamento adequado, poderá continuar
fazendo outras vítimas, que podem ser inclusive as mesmas mulheres.

REFERÊNCIAS
ADORNO, Rubens de Camargo Ferreira. Capacitação solidária – Um olhar sobre jovens
e sua vulnerabilidade social. Os jovens e sua vulnerabilidade social. São Paulo: AAPCS –
Associação de Apoio ao Programa Capacitação Solidária, 2001.
AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO. Violência contra a mulher é maior no interior de SP. 2017.
Disponível em: https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencia-contra-mulher-e-
maior-no-interior-de-sp/. Acesso em: 28 ago. 2018.
ALMEIDA, Cleidenea Bastos. Mulheres que tecem os fios do desenvolvimento social de
Pintadas-BA. Salvador, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/28469.
Acesso em: 3 mar. 2019.
AMORIM, Érika Oliveira; NADER, Maria Beatriz. Violência contra a mulher: questio­
na­mentos frente ao silenciamento em cidades de pequeno porte. Vozes, Pretérito & Devir:
dossiê temático: gênero e diversidade, ano IV, vol. VII, n. I (2017), ISSN: 2317-1979.
AFONSO, M. L. M.; ABADE, F. (2008). Para reinventar as rodas. Belo Horizonte: Rede de
Cidadania Mateus Afonso Medeiros (RECIMAM). Publicação eletrônica. Disponível em:
https://ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/lapip/PARA_REINVENTAR_AS_RODAS.
pdf. Acesso em: 20 out. 2020.
BANDEIRA, Lourdes Maria. Violência, gênero e poder: múltiplas faces. 2017. In:
STEVENS, Cristina; et al (Org.). Mulheres e violências: interseccionalidades. Brasília:
Technopolitik, 2017.
DARON, Vanderléia L. P. Um grito lilás: cartografia da violência às mulheres do campo
e da floresta. Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2009.
DIAS, Maria Berenice; REINHEIMER, Thiele Lopes. Da violência contra a mulher como
uma violação de direitos humanos – artigo 6º. In: CAMPOS, Carmen Hein (Org.). Lei
Maria da Penha – comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011.
NUNES, Ana Carolina Almeida Santos. Implementação de políticas públicas de enfren­
tamento à violência contra mulheres em municípios de pequeno porte. Rev. Serv. Público.
Brasília, v. 68, n. 3, p. 503-532, jul./set. 2017.

315
OSTERNE, Maria do Socorro Ferreira. Violência contra a mulher na dimensão cultural
da prevalência do masculino. O público e o privado, Fortaleza, n. 18, jul./dez. 2011.
PTDS – Plano Territorial de Desenvolvimento Sustentável. 2010. Disponível em: http://
softwarelivre.org/articles/0028/5338/PTDS_BACIA_DO_JACUIPE.pdf. Acesso em:
2 jan. 2017.
SCOOT, P. et al. Onde mal se ouvem os gritos de socorro: notas sobre a violência contra a
mulher em contextos rurais. Gênero e geração em contextos rurais. Ilha de Santa Catarina: Ed.
Mulheres, 2010. Disponível em: www.ufpe.br/fagesufpe/images/documentos/Livros_Fages/
genero%20e%20gera_o%20em%20contextos%20rurais.pdf. Acesso em: 2 jan. 2017.
SARDENBERG, Cecília M. B.; TAVARES, Márcia S. Introdução. In: SARDENBERG,
Cecília M. B.; TAVARES, Márcia S. Violência de gênero contra mulheres: suas diferentes
faces e estratégias de enfrentamento e monitoramento. Salvador: EDUFBA, 2016, p. 7-16.
SOUZA, Firmiane Venâncio do Carmo. Violência de gênero na Lei Maria da Penha: que
mulheres estão protegidas? Disponível em: www.feminismos.neim.ufba.br/index.php/
revista/article/view/400. Acesso em: 6 dez. 2017.
TAVARES, Marcia Santana. Roda de conversa entre mulheres: denúncias sobre a inapli­
ca­bilidade da Lei Maria da Penha em Salvador/BA e a descrença na justiça. Seminário
Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X.
Disponível em: www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/20/13733357
19_ARQUIVO_RodadeConversaentreMulheres.pdf. Acesso em: dez. 2018.
TAVARES, Marcia Santana. Violência contra as mulheres e acesso à justiça: notas sobre
uma Roda de Conversa em Itinga/BA. Revista Feminismos, v. 4, n. 1, jan./abr. 2016. Dispo-
nível em: www.feminismos.neim.uf ba.br/index.php/revista/article/view/397. Acesso
em: dez. 2018.
VANIN, Iole Macedo. Homens valentes, mulheres abnegadas: vislumbrando gênero
na literatura sobre a região do Piemonte da Chapada Diamantina. Fazendo gênero na
historiografia baiana. Organizado por Cecilia M.B. Sardenberg, Iole Macedo Vanin e
Lina Maria Brandão de Aras. Salvador: NEIM/UFBA, 2001, p. 183 a 199.
WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil.
Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/MapaVio
lencia_2015_mulheres.pdf. Acesso em: nov. 2020.

316
ASPECTOS JURÍDICOS DA VULNERABILIDADE
PSICOLÓGICA E SEXUAL DA CRIANÇA À PORNOGRAFIA
Guilherme Schelb1

Sumário: 1 Introdução. 2 A vulnerabilidade psicológica das crianças. 2.1 A influência das


imagens sobre as crianças. 2.2 A classificação indicativa. 3 O sistema legal de proteção
da vulnerabilidade psicológica e sexual da criança contra a pornografia. 4 Pornografia e
infância. 4.1 Criança participando de ato pornográfico. 4.2 Criança exposta a mensagem
pornográfica. 4.3 Músicas e textos pornográficos. 4.4 Pedofilia e pornografia. 5 A grave
lacuna legal na formulação de políticas públicas de educação. 6 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
Neste artigo, me proponho a analisar algumas dimensões jurídicas do impor-
tante conceito da vulnerabilidade psicológica e sexual da criança à pornografia.
Embora a abordagem seja jurídica, será necessário analisar aspectos metajurídi-
cos imprescindíveis à compreensão e à aplicação das normas legais. Por essa razão,
incursionarei em temáticas da psicologia.
A metodologia jurídica utilizada se fundamenta na premissa de que a
Constituição, as leis e as decisões das Cortes Superiores devem ser respeitadas em
todo o território nacional, inclusive em suas escolas e suas mídias.
Embora a defesa da infância contra a pornografia seja expressa no ordenamento
jurídico brasileiro, tornaram-se frequentes os eventos e as práticas ilegais em que
crianças foram expostas publicamente ao pornográfico. Materiais didáticos, nor-
mas pedagógicas da Educação e programas de rádio e televisão aberta desrespei-
tam cotidianamente os direitos da criança e submetem-na a mensagens e imagens
impróprias. Isto se tornou fato público e notório.
Necessário, portanto, a restauração do respeito às leis que protegem a integri-
dade psicológica e sexual das crianças, incumbindo ao Ministério Público brasileiro
a função constitucional de garantir o respeito aos direitos da criança, especialmente,
quando as violações são praticadas no âmbito de serviços públicos e televisão aberta.
(Constituição Federal, art. 129, incisos II e III).
Ainda nesse sentido, é consenso mundial a proteção da infância. Os tratados
internacionais que estabelecem normas universais de proteção da criança são os de
maior ratificação entre as nações.
A Constituição Federal brasileira, por sua vez, estabelece absoluta prioridade
quanto aos direitos e garantias de crianças e adolescentes:

1 Procurador Regional da República. Mestre em Direito Constitucional.

317
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão. (Grifo nosso).
O art. 5 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proíbe toda e qualquer
forma de violação à dignidade humana especial da criança, notadamente negligên-
cia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Essa proteção especial da criança engloba diversas dimensões: física, sexual,
psicológica, cognitiva, afetiva, familiar e social.
A Lei brasileira é bem específica ao proteger a integridade psicológica e sexual
da criança contra conteúdos impróprios ao seu entendimento de pessoa em desen-
volvimento, especialmente a pornografia. Isto envolve qualquer tipo de mensagem
indevida ao entendimento infantil, transmitida por vídeos, fotos, músicas ou textos
escritos com esse conteúdo.
Abordarei aqui o sistema legal de proteção da vulnerabilidade psicológica e
sexual da criança contra o pornográfico.

2 ∙ A VULNERABILIDADE PSICOLÓGICA DAS CRIANÇAS


Crianças são pessoas em desenvolvimento e, por isto, se apresentam em situa-
ção de vulnerabilidade psicológica e sexual. A criança não distingue entre o que é
informado, sugerido ou ordenado, pois não possui maturidade psicológica e cog-
nição desenvolvidas para compreender muitos temas e fatos da vida. Na infância,
o conhecimento lógico está fortemente submetido à fantasia e à imaginação. A
linguagem é ainda predominantemente subjetiva e sequer a noção de tempo está
consolidada (SUNDERLAND, 2015).
O Código Civil reconhece esta especial condição psicológica das crianças e dis-
põe no art. 3º: “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da
vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos”.
A Psicologia também identifica a especial vulnerabilidade cognitiva, emocional
e sexual das crianças, pois ainda não desenvolveram o discernimento, a maturidade
e a experiência para conduzir a própria vontade. Mensagens impróprias ou abusivas
são capazes de influenciar negativamente o comportamento das crianças, pois elas
não têm capacidade de lidar com informações complexas devido ao seu insipiente
entendimento. Os critérios que regularão sua vontade, interesses e caráter ainda
estão em formação. (BRITTO, 2010, p. 105).
O Conselho Federal de Psicologia afirma que
a autonomia intelectual e moral são construídas paulatinamente. É preciso
esperar, em média, a idade dos 12 anos para que o indivíduo possua um
repertório cognitivo capaz de liberá-lo, tanto do ponto de vista cognitivo
quanto moral, da forte referência a fontes exteriores de prestígio e autoridade.
(BRITTO, 2010, p. 23).
Por esta razão, os nefastos efeitos da publicidade e propaganda de bebidas alcoó-
licas e cigarros sobre crianças são objeto de proibição legal no Brasil e no mundo.

318
Pesquisas revelam que a simples associação de imagens de empatia infantil – como
bonecos, animais ou figuras – a produtos, induz a criança a consumi-los, ainda que
extremamente nocivos, como o cigarro e a bebida alcoólica.
No Brasil, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar),
reconhecendo a fragilidade cognitiva infanto-juvenil, instituiu norma proibindo o
merchandising em programas infantis, ou seja, a apresentação disfarçada de produ-
tos ou serviços para o consumo, no conteúdo de uma programação, ou seja, os pró-
prios anunciantes de produtos se autorrestringiram na veiculação de publicidade
dirigida ao público infantil, reconhecendo a fragilidade psicológica das crianças.

2.1 ∙ A INFLUÊNCIA DAS IMAGENS SOBRE AS CRIANÇAS


A Organização Mundial da Saúde (OMS) realizou uma extensa pesquisa sobre
a influência das imagens de cigarro em filmes no comportamento de crianças e
adolescentes. O estudo Smoke-free movies: from evidence to action constatou que
a imagem de fumantes em filmes possui grande influência no comportamento
de crianças e adolescentes, induzindo-os fortemente ao consumo de cigarros.
A influência é tamanha, que a recomendação da OMS é que menores de 18 anos
não tenham acesso a filmes em que existam cenas de pessoas fumando cigarros
(ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2015).
O fundamento científico desta pesquisa é a constatação empírica da grande
influência de imagens no comportamento de crianças e adolescentes. Assim, do
mesmo modo e com o mesmo fundamento científico, crianças são altamente vul-
neráveis a mensagens visuais pornográficas ou obscenas, pois as induzem abusi-
vamente a praticar ou agir conforme as imagens a que são expostas. A capacidade
reduzida (vulnerabilidade psicológica) das crianças para lidar e compreender a
sexualidade adulta e temas afins impõe uma proteção legal especial. Por essa razão,
as leis brasileiras protegem as crianças não apenas de contato sexuais físicos mas
também de imagens e mensagens pornográficas.

2.2 ∙ A CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA


A Constituição brasileira, reconhecendo a vulnerabilidade psicológica da
criança, estabelece:
Art. 21. Compete à União: [...] XVI - exercer a classificação, para efeito indica-
tivo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão; [...]
Art. 220. [...] § 3º Compete à lei federal : I - estabelecer os meios legais que garan-
tam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou pro-
gramações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como
da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde
e ao meio ambiente. [...]
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão aten-
derão aos seguintes princípios: [...] IV - respeito aos valores éticos e sociais da
pessoa e da família.
Concretizando esses mandamentos constitucionais, a Lei n. 10.359/2001 exige
que a classificação indicativa abarque os “programas que contenham cenas de sexo
ou violência” (art. 3º, parágrafo único, grifo nosso).

319
O Ministério da Justiça, por sua vez, estabeleceu critérios de avaliação da ade-
quação de imagens ou cenas ao público infantil. A Portaria n. 1.189/2018 regula-
mentou o processo de classificação indicativa de programas de rádio, televisão e
espetáculos públicos, e definiu os seguintes critérios temáticos de classificação indi-
cativa: “violência, sexo e nudez e drogas” (Art. 2º, inciso VI). Induvidosamente, as
diretrizes e normas dessa portaria fazem parte do sistema de garantias dos direitos
da criança e do adolescente.
Importante consignar que pais e mães ou responsáveis legais podem permitir
aos filhos menores assistir a programas de rádio, televisão e a espetáculos públicos
segundo sua discrição pessoal, ainda que não recomendados pela classificação indica-
tiva. Mas esta discrição dos responsáveis legais por crianças possui dois limites legais.
O primeiro desses limites são as leis. A classificação indicativa não revoga as leis
que estabelecem proteção legal contra o pornográfico, especialmente o disposto no
Código Penal (arts. 218-A, 234 e 247) e no ECA (arts. 78, 79 e 81).
O segundo limite foi bem delineado pelo Superior Tribunal de Justiça ao decidir
que o poder familiar prevalece sobre a classificação indicativa, salvo na hipótese de
programas indicados para maiores de 18 anos de idade, situação em que a proibição
é obrigatória até para as famílias. A ministra relatora, Nancy Andrighi, bem funda-
mentou: “Aqui exsurge a segunda função da classificação: delimitar a liberdade de
educação. A classificação é indicativa para as faixas inferiores aos 18 anos; para esta
é proibitiva. (BRASIL, 2011, grifo nosso).

3 ∙ O SISTEMA LEGAL DE PROTEÇÃO DA VULNERABILIDADE


PSICOLÓGICA E SEXUAL DA CRIANÇA CONTRA A PORNOGRAFIA
A Constituição brasileira reconhece expressamente a vulnerabilidade psicoló-
gica das crianças e determina à União estabelecer a prévia classificação de progra-
mas de televisão e rádio, assim como de espetáculos públicos, bem como exigir o
estabelecimento de meios legais para a defesa da infância contra programas radio-
televisivos impróprios, como já visto (arts. 21, inciso XVI, e 220, § 3º).
O Código de Defesa do Consumidor expressamente reconhece a fragilidade
psicológica da criança:
Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza,
a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiên-
cia de julgamento e experiência da criança [...]. (Grifo nosso).
O Estatuto da Criança e do Adolescente concretiza o mandamento constitucio-
nal de proteção das crianças contra o pornográfico e determina:
Art. 78. As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a
crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com
a advertência de seu conteúdo.
Parágrafo único. As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensa-
gens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca.
Art. 79. As revistas e publicações destinadas ao público infantojuvenil [...] deve-
rão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família.

320
Art. 81. É proibida a venda à criança ou ao adolescente de: [...] V - revistas e
publicações a que alude o art. 78; [...]. (Grifos nossos).
O Código Penal, por sua vez, também concretiza o mandamento constitucional
de proteção da integridade psicológica e sexual das crianças:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de
14 (catorze) anos.
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou indu-
zi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer
lascívia própria ou de outrem:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos. [...]
Art. 247 - Permitir alguém que menor de dezoito anos, sujeito a seu poder ou
confiado à sua guarda ou vigilância: I - freqüente casa de jogo ou mal-afamada,
ou conviva com pessoa viciosa ou de má vida; II - freqüente espetáculo capaz
de pervertê-lo ou de ofender-lhe o pudor, ou participe de representação de
igual natureza; [...].
Todos estes graves crimes têm como objeto jurídico a dignidade psicológica e
sexual das crianças em face da exposição ou apresentação de mensagens pornográ-
ficas e, ao interpretar essas normas legais, é preciso ter em mente a finalidade maior
de proteção às pessoas em desenvolvimento (BRASIL, 2012).
O Direito Penal reconhece a necessidade de uma proteção especial a crianças e
adolescentes, sobretudo em razão de sua imaturidade sexual e cognitiva (GRECO;
RASSI, 2010, p. 64 e 65). A doutrina afirma em uníssono que a dignidade sexual da
criança não se ofende apenas com o contato físico-sexual, mas com qualquer prática
que viole a integridade sexual infantil: O estupro pode se configurar mesmo sem con-
tato físico entre o autor e a vítima, como na hipótese de um estuprador que ordena que
a vítima explore seu próprio corpo ou se masturbe (CUNHA, 2016, p. 460).
A Justiça brasileira é clara ao interpretar essas normas penais, salientando a
relevância da proteção da integridade psicológica e sexual das crianças. Como bem
pontuou o ministro Felix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça: “O estupro de
vulnerável é mais abrangente; visa o resguardo, em sentido amplo, da integridade
moral e sexual dos menores de 14 anos, cuja capacidade de discernimento, no que diz
respeito ao exercício de sua sexualidade é reduzido” (BRASIL, 2016a, grifo nosso).
Consoante esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça condenou empre-
sário por estupro de vulnerável (Código Penal, art. 217-A) em virtude de haver
induzido uma criança de 10 anos de idade a se despir e tê-la contemplado lasciva-
mente, sem que tenha havido qualquer contato físico com a vítima:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL EM CONTI­
NUIDADE DELITIVA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE
JUSTA CAUSA E ATIPICIDADE DA CONDUTA. CONTEMPLAÇÃO LAS­
CIVA DE MENOR DESNUDA. ATO LIBIDINOSO CARACTERIZADO. TESE
RECURSAL QUE DEMANDA REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. AUSÊNCIA
DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. RECURSO DESPROVIDO.
O Parquet classificou a conduta do recorrente como ato libidinoso diverso da
conjunção carnal, praticado contra vítima de 10 anos de idade. Extrai-se da
peça acusatória que as corrés teriam atraído e levado a ofendida até um motel,

321
onde, mediante pagamento, o acusado teria incorrido na contemplação lasciva
da menor de idade desnuda.
Discute-se se a inocorrência de efetivo contato físico entre o recorrente e a vítima
autorizaria a desclassificação do delito ou mesmo a absolvição sumária do acusado.
A maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contem-
plação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos arts. 213 e
217-A do Código Penal - CP, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos,
que haja contato físico entre ofensor e ofendido.
O delito imputado ao recorrente se encontra em capítulo inserto no Título VI do CP,
que tutela a dignidade sexual. Cuidando-se de vítima de dez anos de idade, condu-
zida, ao menos em tese, a motel e obrigada a despir-se diante de adulto que efetuara
pagamento para contemplar a menor em sua nudez, parece dispensável a ocorrência
de efetivo contato físico para que se tenha por consumado o ato lascivo que configura
ofensa à dignidade sexual da menor. Com efeito, a dignidade sexual não se ofende
somente com lesões de natureza física. A maior ou menor gravidade do ato libidi-
noso praticado, em decorrência a adição de lesões físicas ao transtorno psíquico que
a conduta supostamente praticada enseja na vítima, constitui matéria afeta à dosi-
metria da pena, na hipótese de eventual procedência da ação penal. (BRASIL, 2016c).
Em outro caso, o mesmo tribunal condenou a 12 anos de prisão, por estupro de
vulnerável, professor que apertou a vagina de alunas com idade entre oito e nove
anos de idade dentro da sala de aula. (BRASIL, 2016c).
Vê-se, assim, que a integridade psicológica e sexual das crianças pode ser gra-
vemente violada por meio de imagens pornográficas, e o ordenamento jurídico
brasileiro delimita clara e expressamente a sua proteção.

4 ∙ PORNOGRAFIA E INFÂNCIA
A criança pode ser vítima da exposição à pornografia em duas circunstâncias:
I. quando participa da filmagem ou fotografia pornográfica; e
II. quando vê, lê ou ouve mensagem pornográfica.

4.1 ∙ CRIANÇA PARTICIPANDO DE ATO PORNOGRÁFICO


A lei brasileira estabelece que qualquer cena que envolva criança ou adolescente
em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou ainda a exibição de seus
órgãos genitais se configura pornografia infantojuvenil, conforme estabelece o ECA:
Art. 241-E. Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena de sexo
explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança
ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição
dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente
sexuais. (Grifo nosso).
A referência direta aqui é aos crimes de pornografia infantil em que crianças ou
adolescentes participam de filme, foto ou cena pornográfica, ou em que se comer-
cializa, transmite ou armazena de qualquer forma esse conteúdo, consoante os arts.
240 e 241 a 241-C do ECA.
Em relação às crianças há uma proteção especial, pois a pornografia pode se
configurar até mesmo sem a nudez. O Superior Tribunal de Justiça decidiu que são
pornográficas fotos com ênfase genital, ainda que as crianças estejam vestidas:
322
É típica a conduta de fotografar cena pornográfica (art. 241-B do ECA) e de arma-
zenar fotografias de conteúdo pornográfico envolvendo criança ou adolescente (art.
240 do ECA) na hipótese em que restar incontroversa a finalidade sexual e libidi-
nosa das fotografias, com enfoque nos órgãos genitais das vítimas – ainda que cober-
tos por peças de roupas –, e de poses nitidamente sensuais, em que explorada sua
sexualidade com conotação obscena e pornográfica. (BRASIL, 2015, grifo nosso).
Nesse mesmo julgado, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu importante
critério sobre a proteção de crianças e adolescentes contra a pornografia:
A definição legal de pornografia infantil apresentada pelo artigo 241-E do ECA
não é completa e deve ser interpretada com vistas à proteção da criança e do ado-
lescente em condição peculiar de pessoas em desenvolvimento (art. 6º do ECA),
tratando-se de norma penal explicativa [...].
A propósito do tema, leciona Eduardo Luiz Michelan Campana que: [...] o legis-
lador define o que se compreende pela expressão “cena de sexo explícito ou por-
nográfica”: qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades
sexuais explícitas (visíveis), reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais
de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais. A definição
não é completa, pois não abarca todas as situações de encenação que ensejam
representação de pornografia infantojuvenil, necessitando de uma valoração cul-
tural pelo intérprete, o que caracteriza os novos tipos penais abertos.
Do mesmo sentir é o comentário de Válter Kenji Ishida, que entende que não
é obrigatório que a criança ou adolescente esteja nua para que consumados os
delitos de pornografia infantil:
A criança ou adolescente não precisa só estar nua, mas pode estar, por exemplo,
com as vestes íntimas. [...] A meu sentir, a melhor interpretação que se pode dar
ao dispositivo do art. 241-E do Estatuto da Criança e do Adolescente, atendendo
a mens legis, é a de que o legislador quis se referir a “zonas erógenas”, também
não condicionando a incidência do tipo aberto do art. 240 do ECA à nudez das
vítimas. Assim, o tipo penal do art. 240 do ECA terá incidência não só no caso
de fotografias de crianças desnudas, mas também nos casos em que a nudez não
é expressa, como no caso presente, em que as crianças foram fotografadas “de
calcinha” e, em posições que evidenciam a finalidade sexual do paciente, per-
fazendo, assim, o elemento subjetivo do injusto. (BRASIL, 2015, grifos nossos).
Aplica-se aqui o princípio constitucional imanente da “melhor e mais eficaz pro-
teção da criança”, conforme já decidiu a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça:
Deve o magistrado se valer dos meios de interpretação colocados à sua disposição
para adequar condutas, preencher conceitos abertos e, por fim, buscar a melhor
aplicação da norma de acordo com a finalidade do diploma em que ela está inse-
rida, que, no caso dos autos, é a proteção da criança e do adolescente em condição
peculiar de pessoas em desenvolvimento (art. 6º do ECA). (BRASIL, 2012).

4.2 ∙ CRIANÇA EXPOSTA A MENSAGEM PORNOGRÁFICA


É crime apresentar mensagem pornográfica ou permitir o acesso a esta a
menor de 14 anos, conforme disposto no ECA (arts. 78 e 241-E) e Código Penal
(arts. 217-A, 218-A e 234).
A ênfase legal é o fato de expor criança a imagem de penetração vaginal ou a
outro ato libidinoso como coito anal, masturbação, carícias íntimas, sexo oral, entre
outras práticas sexuais.

323
Especificamente em relação ao crime do art. 218-A do Código Penal, não é neces-
sária a presença física da criança no mesmo espaço em que se realize a conjunção
carnal ou ato libidinoso. Basta que a relação ou ato sexual seja realizada à vista dela,
ainda que visualizando tudo por meio de equipamentos eletrônicos ou vídeos. De
toda a forma, a criança está presenciando libidinagem alheia. (NUCCI, 2016, p. 1115).
Embora a definição legal do tipo penal em questão contenha o fim específico de
“satisfazer lascívia própria ou de outrem”, ou seja, que o autor pratique o ato com
o objetivo pessoal de obter prazer ou satisfação libidinosa, é inegável que o objeto
jurídico protegido pela norma penal é a integridade psicológica e sexual da criança
ou adolescente menor de 14 anos. Caso a exposição pornográfica da criança ocorra
sem a comprovação dessa finalidade específica, restará a proteção legal constante
do art. 232 do ECA, que protege a criança de constrangimentos: “Submeter criança
ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangi-
mento: Pena - detenção de seis meses a dois anos”.

4.3 ∙ MÚSICAS E TEXTOS PORNOGRÁFICOS


A proteção da infância contra conteúdos pornográficos se estende também à
programação de rádios e, por decorrência natural, às músicas ou a qualquer outra
veiculação por meio de ondas sonoras.
A classificação indicativa determinada pelo art. 21, inciso XVI, da Constituição é
expressa ao se referir a programas de rádio: “XVI - exercer a classificação, para efeito
indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão;” (grifo nosso).
O Código Penal proíbe apresentar mensagem pornográfica em público, inclusive
pelo rádio, audição ou recitação:
Art. 234 - Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para
fim de comércio, de distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho,
pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno: Pena - detenção, de seis meses
a dois anos, ou multa.
Parágrafo único - Incorre na mesma pena quem:
III - realiza, em lugar público ou acessível ao público, ou pelo rádio, audição ou
recitação de caráter obsceno. (Grifos nossos).
Essa norma penal protege não apenas crianças e adolescentes mas também toda
pessoa que se encontre em lugar público. Importante realçar que esse normativo
penal não impede que as pessoas cantem ou ouçam músicas pornográficas ou obs-
cenas, mas devem fazê-lo sem constranger os outros a ouvi-lo.
O Superior Tribunal de Justiça decidiu expressamente, quanto à vigência e eficá-
cia jurídica do art. 234 do Código Penal, que
O princípio da adequação social não pode ser usado como neutralizador, in
genere, da norma inserta no art. 234 do Código Penal. II - Verificado, in casu, que
a recorrente vendeu, a duas crianças, revista com conteúdo pornográfico, não há
se falar em atipicidade da conduta afastando-se, por conseguinte, o pretendido
trancamento da ação penal. Recurso desprovido. (BRASIL, 2006).
O caso concreto se referia à venda de revistas pornográficas a duas crianças,
uma de oito anos de idade e a outra de nove. As revistas continham textos e fotos
obscenas, especialmente coito anal. No voto vencedor, consta:

324
Admitir-se como socialmente aceita ou tolerada a conduta consistente em vender
revistas com conteúdo altamente pornográfico a crianças em tenra idade (oito e
nove anos) seria ignorar o elemento normativo cultural previsto no tipo em aná-
lise. Talvez, se se estivesse a falar da venda destas revistas a adultos, ter-se-ia, aí
sim, a correta aplicação do princípio, eis que, nesta hipótese, não se neutralizaria
o tipo, porquanto na sociedade brasileira atual pode-se tolerar esta prática, mas
jamais tê-la como lícita se a venda se dirigir a crianças, como ocorreu in casu.
Em suma, a venda de revistas com este conteúdo pornográfico é sim considerada
obscena. (BRASIL, 2006, grifo nosso).
No Brasil, crianças são expostas com frequência a músicas pornográficas. Televisão
aberta, rádios e espetáculos públicos disseminam músicas que de forma explícita
incentivam a prática sexual e a pornografia. Sem nenhum respeito à Constituição e às
leis, crianças são cotidianamente expostas a esse conteúdo impróprio, que as estimula
à prática sexual precoce. Torna-se importante, aqui, trazer um exemplo real de música
pornográfica a que as crianças brasileiras são submetidas cotidianamente:
Eu não tô de brincadeira, eu meto tudo eu pego firme pra valer; chego cheio de
maldade, eu quero ouvir você gemer; eu te ligo e chega à noite, vou com tudo e
vai que vai; tem sabor de chocolate o sexo que a gente faz; corpo quente, tô suado,
vem melar e vem lamber; só o cheiro, só um toque, já me faz enlouquecer; já me
faz enlouquecer; vodka ou água de coco pra mim tanto faz; eu gosto quando fica
louca; [...]. (Amor de Chocolate, cantor Naldo, grifos nossos).
Criança exposta a este tipo de música será abusivamente estimulada a um compor-
tamento erótico e incompatível com sua idade e, até mesmo, à prática sexual precoce.
Textos pornográficos também são impróprios ao entendimento de crianças e
podem causar dano ao seu desenvolvimento afetivo, cognitivo e sexual. Leia este
texto do livro Leituras de Escritor, de Ana Maria Machado, em que consta trecho do
livro O Cobrador, de Rubem Fonseca:
Não vou tirar a roupa, ela disse, a cabeça erguida. Estão me devendo xarope,
meia, cinema, filé mignon e buceta, anda logo. Dei-lhe um murro na cabeça.
Ela caiu na cama, uma marca vermelha na cara. Não tiro. Arranquei a camisola,
a calcinha. Ela estava sem sutiã. Abri-lhe as pernas. Coloquei os meus joelhos
sobre as suas coxas. Ela tinha uma pentelheira basta e negra. Ficou quieta, com
olhos fechados. Entrar naquela floresta escura não foi fácil, a buceta era apertada
e seca. Curvei-me, abri a vagina e cuspi lá dentro, grossas cusparadas. Mesmo
assim não foi fácil, sentia o meu pau esfolando. Deu um gemido quando enfiei
o cacete com toda força até o fim. Enquanto enfiava e tirava o pau eu lambia os
peitos dela, a orelha, o pescoço, passava o dedo de leve no seu cu, alisava sua
bunda. Meu pau começou a ficar lubrificado pelos sucos da sua vagina, agora
morna e viscosa. (Grifos nossos).
Este texto foi objeto de leitura e estudo para alunos de 10 e 11 anos de idade em
escolas brasileiras, sob o pretexto de ensino de literatura.
Seria uma boa medida determinar que os textos, revistas e livros, inclusive
didáticos ou paradidáticos, dirigidos ou apresentados às crianças sejam subme-
tidos a uma classificação indicativa sob o ponto de vista da adequação dos temas
e linguagem, sob o trinômio sexo-drogas-violência, para que pais e professores
pudessem aferir a conveniência de apresentá-los aos filhos menores ou alunos,
consoante os arts. 78 e 79 do ECA.

325
Importante salientar que não se está aqui a propagar nenhum tipo de censura ou
restrição à liberdade das pessoas adultas de expressar suas ideias ou vontade de produ-
zir ou consumir pornografia. A liberdade de expressão é fundamental em uma socie-
dade democrática. Mas a proteção da dignidade e integridade sexual infantil também é
um valor constitucional, e de absoluta prioridade, conforme o art. 227 da Constituição.
É preciso conciliar valores constitucionais antagônicos em uma medida justa.

4.4 ∙ PEDOFILIA E PORNOGRAFIA


Em diversos casos colhidos na Justiça criminal, uma característica muito
comum de estupradores de crianças (pedófilos) é o “cuidado” e até “carinho” que
demonstram na aproximação inicial com as vítimas.
Ao contrário de estupradores violentos, que ameaçam e agridem, os pedófilos agem
inicialmente de maneira muito ardilosa. Primeiro, conquistam a simpatia da criança
com dinheiro ou presentes ou fazem brincadeiras “inocentes”, em que procuram esta-
belecer uma relação de confiança com a vítima, muitas vezes, sem nenhum contato
físico. Assim, iniciam o contato físico aos poucos, com toques sutis no corpo da criança
ou estímulos sonoros, músicas ou conversas eróticas. Com o tempo, começam a fazer
carinho nas partes íntimas da criança, sem que a vítima se sinta constrangida. Esta
situação pode levar a vítima a gostar dos carinhos e até mesmo a pedir por eles.
Muitos pedófilos adultos sentem uma satisfação especial em corromper a sexua-
lidade da criança. Não é apenas a satisfação de sua libido, mas o prazer mórbido de
corromper uma frágil e indefesa pessoa em desenvolvimento.
Observa-se, assim, que, em muitos casos, a pornografia é o meio utilizado pelo
estuprador de crianças (pedófilo) para erotizar suas vítimas indefesas ou convencê-
-las a consentir na prática sexual mórbida.

5 ∙ A GRAVE LACUNA LEGAL NA FORMULAÇÃO


DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO
Há uma grave lacuna na formulação de políticas públicas de Educação no Brasil,
consistente no desrespeito às leis que protegem a integridade psicológica e sexual de
crianças contra a pornografia.
A análise de documentos do Ministério da Educação (MEC) que estabelecem
diretrizes para o Ensino Básico revela a ausência completa de fundamentos legais
e o desrespeito explícito aos direitos de crianças e adolescentes. Apresentam-se, a
seguir, três exemplos emblemáticos.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC, por exemplo, que estabele-
cem valores e princípios da educação básica brasileira, orientam os professores
quanto à sexualidade infantil:
A manipulação curiosa e prazerosa dos genitais e as brincadeiras que envolvem
contato corporal nas regiões genitais são frequentes nos ciclos iniciais. A inter-
venção dos educadores nessas situações deve se dar de forma que aponte a ina-
dequação de tal comportamento às normas do convívio escolar, não cabendo a
eles (professores) condenar ou aprovar essas atitudes, mas sim contextualizá-las.
Compete aos educadores compreender, então, que não se trata de aberração que
justifique informar aos pais. É função da própria escola estabelecer diretamente

326
com seus alunos os limites para o que pode ou não ocorrer dentro dela. (BRASIL,
1998, p. 300-301, grifos nossos).
Em outras palavras, o que o Ministério da Educação está recomendando aos
professores é que, caso uma criança toque em seus órgãos genitais ou dos colegas,
o que incluiria a masturbação (“prazerosa”) ou brincadeiras sexuais com os cole-
gas, a escola deve apenas intervir para evitá-lo em ambiente escolar, mas não deve
informar a família do aluno sobre o fato (“não se trata de aberração que justifique
informar aos pais”), afinal, “é função da escola estabelecer, diretamente, com seus
alunos os limites para o que pode ou não ocorrer dentro dela”.
Esta orientação é completamente ilegal, pois subtrai da família o conhecimento
de fatos relevantes sobre o comportamento sexual do filho menor na escola, pre-
judicando o exercício do direito constitucional de criá-los e educá-los, privando a
família de suas prerrogativas no exercício do poder familiar.
Em outra passagem do mesmo documento, igualmente ilegal, afirma o Minis­
tério da Educação que “Os adolescentes têm todo o direito ao prazer (sexual)”
(BRASIL,1998, p. 304).
O Código Penal estabelece a idade 14 anos para a autonomia de consentimento
na prática sexual. É uma inferência jurídica decorrente do limite etário estabelecido
nos arts. 217-A e 218-A. Ao punir severamente quem mantiver relação sexual ou
atos libidinosos com menor de 14 anos de idade ou apresentar imagens ou cena
dessa natureza, a norma penal expressa uma proibição cujo objeto jurídico é a pro-
teção à integridade sexual e psicológica de crianças e adolescentes.
Ao proclamar, em suas orientações aos professores brasileiros, que “os adoles-
centes têm direito ao prazer sexual”, o Ministério da Educação desconsidera com-
pletamente a tutela legal dos interesses de crianças e adolescentes, com a agravante
de estimular abusivamente pessoas em desenvolvimento a práticas sexuais.
O Guia Escolar para a Identificação de Abusos e Exploração Sexual contra
Crianças e Adolescentes do Ministério da Educação, de 2011, sugere aos professores
exercitar “o prazer erótico e o ato sexual” como “direito” da criança. Veja o que
consta no referido guia, na página 59, item 5, “Direito ao Prazer Sexual”: “Direito
ao Prazer Sexual – prazer sexual, incluindo autoerotismo, como fonte de bem-estar
físico, psicológico, intelectual e espiritual”.
Reconhecer ou sugerir o “direito ao prazer sexual” a crianças é uma forma dis-
simulada e perversa de violar as leis que protegem sua integridade psicológica e
sexual. Na orientação transcrita, sugere-se abertamente aos professores incentivar
seus alunos, crianças e adolescentes, à masturbação (“autoerotismo”). Segundo as
leis brasileiras, crianças devem ser protegidas não apenas do contato físico sexual
mas também de qualquer mensagem abusiva a seu entendimento.
É urgente restaurar a vigência das leis e da Constituição em políticas públicas
da Educação brasileira.

6 ∙ CONCLUSÃO
Diante da crônica violação de direitos da infância na televisão aberta e políticas
públicas da Educação, torna-se imprescindível restaurar o respeito à Constituição e
às leis que estabelecem proteção especial das crianças contra a pornografia e proíbem:

327
I. apresentar, induzir, sugerir ou estimular criança à prática libidinosa como mas-
turbação, sexo anal, sexo oral, entre outros, pessoalmente ou por meio de filmes,
livros, desenhos, ou qualquer outro meio audiovisual.
II. permitir o acesso ou expor crianças a filme, música ou texto pornográfico ou
que contenha cenas ou expressões obscenas, assim entendido o que expõe, total
ou parcialmente, órgãos genitais ou imagem de sexo ou atos libidinosos.
Incumbe ao Ministério Público brasileiro a defesa dos direitos e garantias funda-
mentais, sobretudo quando há violação da integridade sexual e psicológica de crianças.
É urgente e necessário restaurar o respeito às leis que protegem a infância de men-
sagens pornográficas abusivas, especialmente em políticas públicas da Educação e
televisão aberta.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: ter­
ceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/Secretaria de Educação
Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 6. Turma. Habeas Corpus n. 168.610/BA. Relator
mi­nistro Sebastião Reis Júnior. 2012. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/docs_inter
net/revista/eletronica/stj-revista-eletronica-2012_227_2_capSextaTurma.pdf.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.209.792/RJ. Relatora ministra
Nancy Andrighi. 2011. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/216079
65/recurso-especial-resp-1209792-rj-2010-0156876-9-stj/inteiro-teor-21607966.
Acesso em: out. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 6. Turma. Recurso Especial n. 1.543.267/SC. Relatora
ministra Maria Thereza de Assis Moura. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/
dl/crime-fotografar-crianca-pose-sensual.pdf. Acesso em: out. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.583.228/MG. Relator ministro
Felix Fischer. 2016a. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/894069630/
recurso-especial-resp-1583228-mg-2016-0052134-1/decisao-monocratica-894069650?
ref=juris-tabs. Acesso em: out. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.598.077/SE. Relator ministro
Rogerio Schietti. 2016c. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/3682
93403/recurso-especial-resp-1598077-se-2015-0137272-5/inteiro-teor-368293415.
Acesso em: out. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 5. Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus
n. 15.093/SP. Relator ministro Felix Fischer. 2006. Disponível em: https://stj.jusbra
sil.com.br/jurisprudencia/7156892/recurso-ordinario-em-habeas-corpus-rhc-15093-sp
-2003-0177467-5/inteiro-teor-12873846?ref=serp. Acesso em: out. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Habeas Corpus n.
70.976/MS. Relator ministro Joel Ilan Paciornik. 2016c. Disponível em: https://stj.
jusbrasil.com.br/jurisprudencia/862564530/recurso-ordinario-em-habeas-corpus-rhc-
70976-ms-2016-0121838-5/inteiro-teor-862564541?ref=juris-tabs. Acesso em: out. 2020.
BRITTO, Igor Rodrigues. Infância e publicidade: proteção dos direitos fundamentais da
criança na sociedade de consumo. Curitiba: Editora CRV, 2010.

328
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte especial. 8. ed., rev., ampl. e
atual. Salvador: JusPodivm, 2016.
GRECO, Alessandra Orcesi Pedro; RASSI, João Daniel. Crimes contra a dignidade sexual.
São Paulo: Atlas, 2010.
MACHADO, Ana Maria. Leituras de escritor. 4. ed. São Paulo: Edições SM, 2015.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Smoke-free movies: from evidence to action.
3. ed. Genebra: OMS, 2015. Disponível em: https://www.who.int/tobacco/publications/
marketing/smoke-free-movies-third-edition/en/. Acesso em: 6 set. 2020.
SUNDERLAND, Margot. O valor terapêutico de contar histórias: para as crianças, pelas
crianças. Editora Cultrix, 2015.

329
ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA
E DIREITOS FUNDAMENTAIS
Desafios da consolidação de uma justiça penal negociada

Iuri do Lago Nogueira Cavalcante Reis1


Yuri Coelho Dias2
Leandro Barbosa da Cunha3

Sumário: 1 Introdução. 2 Acordo de colaboração premiada: um novo modelo de Justiça


Penal e seus riscos para o Estado Democrático de Direito. 3 Direitos fundamentais e
princípios: da necessidade de uma metodologia específica para resolver antinomias
aparentes. 4 Autonomia da vontade e verdade real no acordo de colaboração premiada.
5 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O acordo de colaboração premiada tornou-se um dos mais importantes meios
de obtenção de prova para promover o desmantelamento de organizações crimino-
sas e de esquemas complexos de corrupção. Tamanho foi o impacto provocado no
Ordenamento Jurídico Pátrio que o Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal
Federal, chegou a afirmar que tal acordo constituiu um paradigma para a Justiça
Penal brasileira, porquanto favoreceria um modelo de Justiça Negociada diferente
daquele que tradicionalmente era utilizado pelos juízes criminais (QO/PET 7074/DF).
Contudo, é de conhecimento geral que o Direito brasileiro historicamente ado-
tou um modelo inquisitorial de processo, atribuindo ao juízo poderes investigató-
rios que, por diversas vezes, atentaram contra o Estado Democrático de Direito e
contra os direitos fundamentais. Neste sentido, muito embora o acordo de colabo-
ração premiada derive dos sistemas acusatórios típicos da Common Law, a ambição
inquisitorial existente no processo penal pátrio pode vir a subvertê-lo em proveito
do dogma da verdade real.
Indaga-se, portanto, se determinados meios de obter a celebração do acordo de
colaboração premiada são lídimos ou não – ou ainda – se o princípio da verdade
real, representado pelo interesse público, deve preponderar sobre a autonomia da
vontade, a qual decorre do direito fundamental à liberdade. A resposta acaba por
não ser simples, já que ambas normas jurídicas possuem natureza abstrata e deman-
dam a análise das circunstâncias concretas que as permeiam.

1 Mestrando em Direito Econômico e Sustentável no IDP. Advogado.


2 Mestrando em Direito Econômico e Sustentável no IDP. Advogado.
3 Graduando em Direito pelo UniCEUB. Estagiário.

331
Preliminarmente, convém destacar que não se desconhece a preferência dou-
trinária pelo termo “autonomia privada” em detrimento da expressão “autonomia
da vontade”, já que o primeiro, de cunho mais científico, traduz a noção de que a
vontade, por si só, não emana situações jurídicas senão quando o Direito, direta ou
indiretamente, delimita e autoriza. Todavia, por opção dos autores, acredita-se que
a denominação “autonomia da vontade” demonstra com maior nitidez a importân-
cia do elemento volitivo, razão pela qual será utilizada adiante.
Destarte, o presente estudo visa a desenvolver breves reflexões sobre a impor-
tância do acordo de colaboração premiada e do novo paradigma que se instituiu
com sua vinda, analisando também seus desafios de adaptação a um modelo de
processo penal de jaez negocial, de modo que os direitos fundamentais possuem
um importante papel no desenvolvimento e aprimoramento desta nova dogmática.

2 ∙ ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA:


UM NOVO MODELO DE JUSTIÇA PENAL E SEUS RISCOS
PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O contrato é consequência da capacidade humana de realizar transações
mediante as faculdades racionais, constituindo um passo nevrálgico em relação à
autotutela pautada lastreada pela força e pela violência. Embora se estime que o
surgimento do contrato tenha decorrido originariamente do direito de propriedade
(HEGEL, 1997, p. 70-71), atualmente, os atos negociais não se limitam a tratar de
temáticas atinentes à esfera jurídica privada, tal como ocorre com os contratos
administrativos e com o instituto dos negócios jurídicos processuais previsto pela
inteligência do art. 190 do Código de Processo Civil.
A bem da verdade, no processo penal, igualmente se estima que os acordos sem-
pre existiram, seja em maior, seja em menor intensidade. Segundo o jurista esta-
dunidense Robert R. Strang, todos os países do mundo possuem alguma forma de
plea bargaing ou negócios jurídicos penais que dispõem sobre o mérito, ainda que
informais (STRANG, 2014). Inexoravelmente, os espaços de consenso no Direito
Penal sempre estiveram presentes, ainda que em fase de inquérito policial.
No Brasil, por exemplo, os acordos na seara penal nunca deixaram de existir.
Não obstante, assumiram maior importância no cenário contemporâneo – prin-
cipalmente no que tange ao combate ao crime organizado –, de modo a constatar
que o desenvolvimento de mecanismos negociais no âmbito do processo penal é
uma tendência mundial da doutrina moderna (FERNANDES, 2005, p. 265), sendo
originária principalmente dos sistemas da Common Law, nos quais o diálogo entre
acusador e acusado sempre foi mais intenso que nos países que adotaram mode-
los inquisitoriais. Ademais, tal expansão diz respeito à clara influência da Análise
Econômica do Direito (TABAK, 2015, p. 327):
Com uma lei desse tipo, as pessoas são induzidas a denunciar casos de corrup-
ção, o que aumenta a chance de recuperação de recursos públicos desviados. Na
situação anterior não ocorriam denúncias, e as pessoas com informações impor-
tantes e a própria sociedade perdiam. Na nova situação, a sociedade recupera, ao
menos parcialmente, os recursos desviados, e os denunciantes, que propiciaram
essa recuperação, recebem uma recompensa pelo esforço.

332
No âmbito internacional, diversos são os tratados formalizados com fulcro no
combate ao crime organizado – tais quais a Convenção de Palermo e a Convenção
de Mérida –, haja vista que as organizações criminosas estão cada vez mais profis-
sionais e engenhosas. Segundo informações do Ministério Público Federal,4 até 19
de março de 2020, quase 40% do total dos condenados na Operação Lava Jato pela
Justiça Federal do Paraná em primeira instância realizaram acordo de colaboração
premiada, visto que, dos 165 condenados, 49 celebraram o referido acordo.
Segundo os dados fornecidos pelo Ministério Público Federal, somente em
Curitiba, até 2020, aproximadamente R$ 4 bilhões já foram restituídos aos cofres
públicos, sendo previstos ainda R$ 2,1 bilhões em multas compensatórias decorren-
tes de acordos de colaboração, e R$ 12,4 bilhões de multas compensatórias decor-
rentes de acordo de leniência, o que demonstra que valores muito altos retornarão
ao erário mediante a utilização dos instrumentos penais negociais.
Para além disso, há de se ter em vista que os acordos de colaboração premiada
promoveram uma alteração na lógica do modus operandi punitivo do Estado, que
consistia tão somente em aplicar penas privativas de liberdade, porquanto os refe-
ridos atos negociais estabeleceram como objetivo primordial não o cerceamento
do direito de ir e vir do réu, mas a reparação dos danos provocados, denotando um
fenômeno de uma certa “privatização” do Direito Penal (GRECO, 2016, p. 12), já que
o mero encarceramento dos réus não teria o condão de reconstituir o status quo ante
e de efetuar uma concreta reparação dos danos provocados.
A transposição de um instituto com viés de negócio jurídico do Common Law
para o Direito Penal brasileiro exigiu do intérprete um esforço hermenêutico intrans-
ponível (SILVA, 2019, p. 208), haja vista que, além de incomum ao Direito Público
brasileiro, no qual sempre predominou o princípio da obrigatoriedade da ação penal,
acordos do tipo acabam por incidir não apenas sobre aspectos processuais, pois é pos-
sível que o acordo de colaboração premiada influencie na pena efetivamente aplicada,
que é instituto de direito material. Isso porque, em que pese os acordos sempre estives-
sem presentes no Direito Processual Penal Brasileiro, a chamada segunda dimensão
da justiça negociada introduziu a flexibilização de alguns parâmetros dantes sequer
questionados. Neste sentido (VASCONCELLOS, 2018, p. 21):
Em concordância com tais significados assumidos, a justiça criminal negocial
relaciona-se diretamente com as ideias de obrigatoriedade e oportunidade da
ação penal, visto que se instrumentaliza por meio de espaços de oportunidade
no processo. Entretanto, diferencia-se de mecanismos puros de oportunidade,
que permitiriam a não persecução penal de delitos em casos específicos, sem a
imposição de qualquer sanção ou consequência penal. Além disso, nos meca-
nismos negociais ocorre a participação de ambas as partes do processo penal
(acusação e defesa): “há uma manifestação volitiva, com o mesmo sentido e
finalidade, dos dois polos processuais”. Por sua vez, critérios de oportunidade,
como possibilidade de não persecução penal, podem ser realizados em decisões
exclusivas do órgão acusador
Na realidade, embora muitas críticas sejam levantadas à justiça penal negociada
no sentido de que o interesse público envolvido não pode ser transigido, esta é uma

4 Disponível em: http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/lava-jato/resultados. Acesso em: 25 ago. 2020.

333
proposição que parte de pressupostos errôneos. Isso porque “a indisponibilidade
sobre o direito material não importa necessariamente na inadmissibilidade das
convenções sobre o processo” (CABRAL, 2016, p. 165). A indisponibilidade de um
direito não se confunde, portanto, com a impossibilidade de sua negociação.
Ademais, a nova justiça penal negociada não tem por finalidade a relativização
do interesse público, mas a proposição de uma perspectiva penal baseada no con-
senso, que está lastreada pelos parâmetros da autonomia da vontade e da boa-fé
(MENDONÇA, 2017, p. 68). Não se trata, portanto, de renunciar aos princípios, mas
de propor uma nova perspectiva para eles (DINAMARCO, 2003, p. 11-15), de modo
a adequá-los ao contexto jurídico contemporâneo.
Os acordos de colaboração premiada, neste sentido, evidenciam o desgaste das
Teorias Clássicas da Função da Pena. Inicialmente, concebeu-se a pena para repri-
mir a incidência do ilícito, sob a inspiração dos filósofos Immanuel Kant e G. W. F.
Hegel. No entanto, historicamente, a prática revelou que as penas assumiram uma
feição tão somente simbólica, já que, conquanto buscasse a retribuição do mal cau-
sado, havia grande descompasso em prevenir a ocorrência dos crimes – inexistindo,
quanto a tal aspecto, o propósito sério em desenvolver uma política criminal efetiva.
Doravante, sob a doutrina do filósofo Ludwig Feuerbach, as penas adquiriram o
escopo de atenuar a superveniência dos crimes através da prevenção geral e da inti-
midação dos potenciais infratores, de modo a reparar a falha das teorias anteriores.
Entretanto, não logrou êxito em amparar o infrator em si, em “transformá-lo”. Por
isso, as modernas teorias aliaram tanto os aspectos gerais de repressão e prevenção
do crime, quanto os específicos de ressocialização do agente, que deveria retornar
do cárcere totalmente apto ao convívio social.
Tal desiderato, entretanto, mostrou-se inatingível no cenário brasileiro atual.
O Conselho Nacional de Justiça 5 estipulou que a taxa de reincidência criminal dos
maiores de dezoito anos até 2019 era, em média, de 42%. Não obstante, em alguns
Estados da Federação, como o Espírito Santo, o mesmo índice pode chegar a 75%,
o que demonstra claramente a ineficiência das instituições carcerárias em atingir
seus objetivos declarados.
Ademais, um dos aspectos que sempre ficou de fora de todas as teorias men-
cionadas foi a reparação dos danos provocados pelos ilícitos. Se a ressocialização
do infrator é uma medida quase utópica no cenário atual, que conta com mais de
770 mil encarcerados e péssimas condições de alojamento e saneamento básico,6 o
mínimo que se pode desejar é que os prejuízos provocados pelos crimes possam ser
atenuados. Afinal, mais útil que uma prisão longa e infrutífera é a reparação dos
danos (GOMES, 2011, p. 643-644).
É neste cenário que surgem os acordos de colaboração premiada, cuja aplicação,
inexoravelmente, acarreta certa sensação de impunidade perante a opinião pública,
porquanto, por influência da superexploração da violência pelos meios midiáticos,
os cidadãos são levados a crer na penitenciária como ambiente adequado para os
criminosos, mas desconhecem que o cárcere é responsável por promover a absorção

5 Disponível em: www.conjur.com.br/dl/panorama-reentradas-sistema.pdf. Acesso em: 25 ago. 2020.


6 Disponível em: www.novo.justica.gov.br/news/depen-lanca-paineis-dinamicos-para-consulta-do-
infopen-2019. Acesso em: 7 jun. 2020.

334
de uma subcultura carcerária pelo recluso, podendo também provocar problemas
psicológicos e de saúde, além de expor o interno a uma maior influência dos fatores
criminógenos (BITENCOURT, 2017, p. 179-182), já que acabará por nutrir contato
com criminosos profissionais.
É inegável, portanto, que os acordos de colaboração premiada, diante da falência
da pena de prisão, constituem uma espécie de terceira via para o Direito Penal,
porquanto consistiria em buscar uma punição mais eficiente que aquela resultante
tão somente da pena privativa de liberdade: “a reparação substituiria ou atenuaria
complementarmente a pena, naqueles casos nos quais convenha tão bem ou melhor
aos fins da pena e às necessidades da vítima” (ROXIN, 1992, p. 155).
A utilização dos acordos de colaboração premiada favoreceu, portanto, uma
nova perspectiva sobre o Direito Processual brasileiro. Em igual sentido, o Ministro
do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello asseverou entendimento semelhante
no voto na Questão de Ordem na Petição 7.074:
A regulação legislativa do instituto da colaboração premiada importou em
expressiva transformação do panorama penal vigente no Brasil, criando meios
destinados a viabilizar e a forjar, juridicamente, um novo modelo de Justiça cri-
minal que privilegia a ampliação do espaço de consenso e que valoriza, desse
modo, na definição das controvérsias oriundas do ilícito criminal, a adoção de
soluções fundadas na própria vontade dos sujeitos que compõem e integram a
relação processual penal.
Ademais, os mecanismos probatórios comuns, tais quais a prova testemunhal
e a documental, nem sempre logram êxito na reconstrução da matéria fática pelo
juízo, vez que os infratores profissionais atuam em moldes quase sempre empresa-
riais, tornando-se cada vez mais sofisticados e distantes dos aparatos investigativos
do Estado. Contudo, os próprios integrantes das organizações criminosas tendem
a conhecer com detalhes seu funcionamento, razão pela qual se tornam, desta feita,
atores importantíssimos para o desmantelamento de tais instituições criminosas.
Convém notar também que o investigado, ao colaborar com a acusação, acaba
por auxiliar o Estado na investigação e na derrocada da organização criminosa,
favorecendo a proteção da sociedade e da eficácia das normas jurídicas; recebendo,
em contrapartida, benefícios ligados à pena e à execução penal (CORDEIRO, 2020,
p. 3). Trata-se de verdadeira associação mutualística que se estabelece entre o cola-
borador e o Estado, evidenciando o interesse recíproco, já que, enquanto o órgão
acusatório angaria novas provas para a persecução penal, o colaborador poderá
obter situação jurídica mais favorável.
Percebe-se, portanto, que os acordos de colaboração premiada transformaram-
-se num instrumento de política criminal, uma vez que estimulam os integrantes
de organizações criminosas a colaborar com Justiça para desvelar os esquemas
delitivos muitas vezes entranhados na Administração Pública e cuja apuração, sem
a colaboração do réu, seria totalmente incerta e improvável de se concretizar, razão
pela qual é mais benéfico premiar o comportamento do réu colaborador a permitir
a vigência de uma engenhosa empresa do crime que prejudicará toda a sociedade.
Desta feita, há evidente discrepância entre o novo modelo de Justiça Criminal
e o Processo Penal tradicional. Enquanto no processo litigioso há um modelo de
“ganha-perde”, em que ou o Ministério Público obtém a condenação e “ganha”, ou
“perde” caso o réu seja absolvido. De outro lado, o modelo negocial, que é pautado
335
na autonomia da vontade, é de “ganha-ganha” (MENDONÇA, 2017, p. 62), por-
quanto ocorrem concessões recíprocas entre a acusação e a defesa.
Ademais, no processo litigioso brasileiro, por grande inspiração inquisitorial,
o cerne da relação processual é o juiz, que é o responsável por promover a solução
da controvérsia mediante a prolação de sentença que absolva ou condene o réu.
Já no processo penal negocial, o Estado-Juiz assume um viés mais fiscalizatório,
possibilitando que as partes possam adquirir maior protagonismo na solução do
caso, aproximando-se em maior medida do sistema acusatório.
Para além disso, a acusação e o acusado não figuram, como ocorre no modelo
tradicional, como sujeitos separados por um antagonismo, porquanto o investigado
compromete-se a cooperar no modelo negocial, conforme se aduz do art. 4º da Lei
n. 12.850/2013, ressignificando o nemo tenetur se detegere, de modo que assumem
o colaborador e o Ministério Público uma espécie de convergência de interesses em
função do acordo que fora celebrado.
Neste sentido, em casos cujo lastro probatório é totalmente desfavorável ao réu
e que provavelmente lhe resultará uma pena elevada, a doutrina estadunidense cos-
tuma se referir ao Best Alternative to a Negotiated Agreement (BATNA), uma escala
de ponderação na qual se estabelece que quanto pior é a alternativa fora do acordo,
maior a sua chance de celebração, já que se torna um dos únicos meios de evitar a
incidência de uma pena maior. Neste sentido (CORDEIRO, 2020, p. 36):
A colaboração do acusado pode se dar por razões morais de arrependimento e
de busca do correto, mas também pode ocorrer por válida estratégia processual.
É a aplicação da teoria econômica do crime, em tempos modernos ressaltada
por Becker (1968) na explicação de que a maioria dos homens escolheria prati-
car delitos se a utilidade esperada pelo crime excedesse a utilidade esperada do
emprego do tempo em outras atividades, como um trabalho normal. O ganho
pelo crime supera o custo do risco de ser descoberto. Se percebe o réu que o
resultado do processo será a condenação, pode ser-lhe interessante até confessar
o crime, apenas para obter a atenuação da pena (pela confissão espontânea do
art. 65, III, d, do Código Penal). É favor de pena que incidirá independentemente
do bom intento do colaborador, bastando que seja utilizada a confissão como
uma das provas da culpa na sentença.
De toda sorte, em que pese o acordo de colaboração premiada obtivera sucesso
em transplantar ao Brasil o paradigma da justiça penal negociada, nem sempre o
país foi exitoso com os experimentos consensuais no Direito Processual Penal. Na
chamada primeira dimensão da justiça penal negociada, que foi aquela marcada
pela Lei n. 9.099/1995, a metodologia de solução dos crimes de menor potencial
ofensivo e das contravenções penais ficou aquém do esperado.
O espaço de conciliação proposto pela Lei de Juizados Especiais foi, de certo
modo, imposto às partes, figurando como uma espécie de rito burocrático. Neste
sentido, a transação penal é realizada sem qualquer individualização ou obe-
diência às características socioeconômicas do autor, que, em muitos casos, vai à
audiência sem a presença de um advogado, ou quando ocorrem transações penais
mesmo quando não há justa causa para o oferecimento da denúncia ou da queixa
(WUNDERLICH, 2004, p. 233).
A colaboração premiada, por sua vez, representa uma “segunda dimensão” para a
justiça penal negociada no Brasil (WUNDERLICH, 2017, p. 21), porquanto assentou

336
o princípio do devido processo consensual como sua diretriz – o que não significa,
entretanto, que o ordenamento jurídico brasileiro já se encontra totalmente apto
a receber as mudanças propostas pelo novo paradigma, haja vista que o arquétipo
jurídico do Brasil sempre foi portador de uma matriz historicamente inquisitória de
tal forma que, para alguns autores, o sistema que vige atualmente, inclusive, poderia
ser caracterizado como neoinquisitório (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 49).
A autonomia da vontade – cerne do acordo de colaboração premiada –, no
entanto, não pode ser irrestrita, porquanto ela está resignada aos princípios consti-
tucionais e às normas jurídicas como um todo. Alguns doutrinadores não admitem,
por exemplo, que o Ministério Público e o colaborador possam, em comum von-
tade, nem mesmo com o aval do Juiz, instituir uma nova modalidade de pena, ou
reduções maiores que as legalmente autorizadas, porquanto tais medidas violariam
o princípio da legalidade (CORDEIRO, 2020, p. 62-63):
Embora crescente o excepcionamento à obrigatoriedade, não se pode permitir
excepcionamento à lei como limite da persecução criminal. A pena na colabo-
ração premiada vem como favor judicial na Lei da Criminalidade Organizada
(“Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes [...]), em obediência ao
princípio da jurisdicionalidade, onde se compreende que apenas ao juiz é dado
dosar e fixar a pena do condenado. Não deixou essa lei de estabelecer os limites
de favores de pena, restritivamente indicados como sendo o perdão judicial,
a redução em até 2/3 da pena privativa de liberdade ou sua substituição por
restritiva de direitos. Apenas nesse limite está contida a negociação da colabo-
ração premiada. Nem o juiz e menos ainda o Ministério Público poderão criar
penas diferenciadas dos favores legais.
Não restam dúvidas, portanto, que o novo paradigma da justiça penal negociada
trará diversos desafios para o ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que, em
meio à histórica crise paradigmática da função da pena, o acordo de colaboração
premiada criou uma espécie de terceira via para o Direito Penal (SILVA, 2017, p.
295), porquanto transcendeu as noções tradicionais de repressão e prevenção do
crime em prol do escopo de reparar os danos acarretados pelo ilícito penal.
De toda sorte, é importante não subverter tais instrumentos negociais numa mer-
cantilização do processo, pois tais acordos devem ser um modo de realização do justo,
e não o contrário. Tampouco se pode coagir o colaborador, uma vez que este deve agir
de maneira voluntária e sem quaisquer pressões físicas, psicológicas ou emocionais
(SILVA; GOMES, 2014, p. 242). Afinal, de modo algum pode a colaboração premiada
violar direitos fundamentais, pois estes são indisponíveis e inalienáveis.
Neste sentido, o sustentáculo da nova justiça penal negociada reside no cha-
mado princípio do devido processo consensual, o qual resulta da noção de que a
autonomia da vontade está atrelada à própria dignidade da pessoa humana, e de
que a criação de espaços de consenso no processo penal provocaria a ascensão de
um novo paradigma processual pautado nos valores da liberdade, da eficiência, da
boa-fé objetiva e da lealdade (MENDONÇA, 2017, p. 64), contribuindo para a cons-
trução de um Processo Penal mais célere e democrático.
Não foi por outra razão que o legislador, por intermédio da Lei n. 13.964/2019,
alterou a redação do § 7º do art. 4º da Lei n. 12.850/2013 e inseriu uma série de
incisos, os quais dispõem sobre os aspectos que o Juízo deverá analisar para aferir a
legalidade e a voluntariedade do acordo de colaboração premiada:

337
§ 7º Realizado o acordo na forma do § 6º deste artigo, serão remetidos ao juiz,
para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da inves-
tigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu
defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação:
I - regularidade e legalidade;
II - adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§ 4º
e 5º deste artigo, sendo nulas as cláusulas que violem o critério de definição do
regime inicial de cumprimento de pena do art. 33 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7
de dezembro de 1940 (Código Penal), as regras de cada um dos regimes previstos
no Código Penal e na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal)
e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo § 5º deste artigo;
III - adequação dos resultados da colaboração aos resultados mínimos exigidos
nos incisos I, II, III, IV e V do caput deste artigo;
IV - voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em
que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares.
Não obstante a nevrálgica importância em assegurar a autonomia da vontade
do colaborador – a qual decorre do direito fundamental à liberdade –, por diversas
vezes, o Parquet e o próprio Juiz, eivados ainda por uma mentalidade inquisitorial,
e a fim de obter informações relevantes para o deslinde do processo, utilizam-se de
prisões e de outros mecanismos de pressão para que o investigado aceite realizar o
acordo de colaboração premiada, de modo a vilipendiar os preceitos basilares deste
negócio jurídico processual.
Isso porque, muitas vezes, a colaboração premiada acaba por ser o único meio
possível, por exemplo, para desmantelar uma complexa organização criminosa em
relação à qual são insuficientes as provas tradicionais (v.g, prova documental, tes-
temunhal, etc.), de forma que, em função de um suposto bem maior, os atores do
Poder Judiciário acabam por empregar meios de duvidosa constitucionalidade.
Assim, em proveito da utilidade do depoimento do investigado para alcançar a
suposta verdade real do processo, muitas vezes, o acordo de colaboração premiada
instrumentaliza-se como forma de transgredir direitos fundamentais do colaborador,
o que é inadmissível perante um Estado Democrático de Direito que deve prezar pela
autonomia da vontade como cerne potencial de dignidade da pessoa humana; não
podendo, pois, valer-se do referido acordo para realizar ambições inquisitoriais.
Não por coincidência, o Plea Bargaining norte-americano surgiu num contexto
filosófico muito influenciado pelo utilitarismo (SOUSA, 2020, p. 102), segundo
o qual, em apertadíssima síntese, deve-se realizar um cálculo entre prazer e dor
para estabelecer se determinada conduta deve ser tomada. Neste sentido, o pró-
prio Bentham entende a liberdade como um direito instrumental e não como um
atributo intrínseco ao humano (MULGAN, 2012, p. 24), interpretação da qual se
poderia admitir, por exemplo, o uso de pressão contra o investigado em sede de
acordo de colaboração premiada, já que se almejaria um “bem maior”.
Desta feita, é de suma importância ponderar sobre qual norma deve prevalecer:
a autonomia da vontade, representada pelo direito constitucional à liberdade, ou
a utilidade do acordo de colaboração premiada como meio de obtenção de prova,
que é um reflexo do princípio da verdade real do processo penal e traduz o interesse
público em obter o correto deslinde do feito.

338
3 ∙ DIREITOS FUNDAMENTAIS E PRINCÍPIOS:
DA NECESSIDADE DE UMA METODOLOGIA ESPECÍFICA
PARA RESOLVER ANTINOMIAS APARENTES
Há muito o monopólio das normas do Direito esteve reservado unicamente às
regras jurídicas. Contudo, atualmente, fazem parte de tal acervo igualmente os
princípios, cujo papel tornou-se ainda mais relevante no Século XXI, já que deter-
minadas situações – comumente denominadas como hard cases – demandam do
julgador uma maior flexibilidade para decidir, razão pela qual os princípios tor-
nam-se instrumentos imprescindíveis para o correto deslinde dos feitos.
Conquanto regras e princípios pertençam a um mesmo grupo – o das normas
jurídicas – há de se constatar que suas dinâmicas de funcionamento são distin-
tas. Para o jurista norte-americano Ronald Dworkin, as primeiras seguiriam um
modelo de aplicação do “tudo ou nada” (DWORKIN, 2007, p. 39), o qual se define
praticamente pela noção de que a materialização suporte fático da norma é algo que
não pode ocorrer de modo parcial, porquanto as situações jurídicas eventualmente
irradiadas pela incidência normativa resultam do total preenchimento dos pressu-
postos materiais; e se um deles não estiver presente, o suporte fático simplesmente
não incide, inviabilizando a eficácia normativa.
Neste sentido, o jurista italiano Norberto Bobbio, ao apontar os três critérios
clássicos de solução de antinomias – isto é, de conflitos aparentes entre as regras –,
quais sejam, a hierarquia, a especialidade e a cronologia, concebeu um sistema de
certo modo estanque em que uma das duas normas conflitantes deixaria de incidir
a fim de que a outra tivesse a plena eficácia. Por isso a lógica do “tudo ou nada”
referida por R. Dworkin.
Tal modelo coaduna perfeitamente com o sistema silogístico do Cálculo
Quantificacional Clássico, no qual, em sua estrutura básica: “Se X à então Y”.
Embora fundamentais para o raciocínio jurídico, os silogismos mostram-se muitas
vezes simplórios ante casos mais complexos em que o enorme número de interesses
envolvidos não permitiria a aplicação de uma fórmula analítica, porquanto acabam
por demandar, continuadamente, que o magistrado busque não a eliminação, mas
a coexistência das normas conflitantes.
É com auxílio da Lógica Moderna que o jurista Robert Alexy cunha a chamada
Lei de Colisão, que visa estabelecer um mecanismo de solução de divergências entre
princípios (ALEXY, 2015, p. 99):
Se o princípio P1 tem precedência em face do princípio P2 sob as condições C:
(P1 P P2) C, e se do princípio P1, sob as condições C, decorre a consequência
jurídica R, então, vale uma regra que tem C como suporte fático e R como conse-
quência jurídica: C à R . As condições sob as quais um princípio tem precedência
em face de outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a conse-
quência jurídica do princípio que tem precedência. Essa lei, que será chamada de
“lei de colisão”, é um dos fundamentos da teoria dos princípios aqui defendida.
Ela reflete a natureza dos princípios como mandamentos de otimização: em
primeiro lugar, a inexistência de relação absoluta de precedência e, em segundo
lugar, sua referência a ações e situações que não são quantificáveis. Ao mesmo
tempo, constituem eles a base para a resposta a objeções que se apoiam na proxi-
midade da teoria dos princípios com a teoria dos valores.

339
Desta feita, segundo os ensinamentos do grandioso jurista alemão, os princípios
devem ser concebidos como mandamentos de otimização, isto é, como normas em
relação às quais se deve buscar a máxima eficácia possível, ainda que, prima facie, seus
conteúdos normativos não pareçam harmônicos. Trata-se, portanto, de se utilizar do
sopesamento para solucionar os impasses existentes entre os princípios – diferente
dos três critérios clássicos para solução de antinomias elencados por Bobbio.
Isto se deve porque os princípios apresentam um maior grau de abstração em rela-
ção às regras – as quais tendem a apresentar um conteúdo jurídico mais bem definido –,
exigindo do intérprete, para determinar a precedência do princípio, que considere as
diversas circunstâncias fáticas e peculiaridades integrantes do caso concreto (ÁVILA,
2015, p. 43), mas sem buscar a exclusão do princípio precedido, haja vista que ambos
devem, harmonicamente, apresentar o maior índice de incidência possível.
Tal distinção entre regras e princípios é nevrálgica para proporcionar a com-
preensão da natureza jurídica dos direitos fundamentais, haja vista que, assim
como os princípios, eles demandam do jurista uma maior atenção ao caso concreto.
Afinal, não são incomuns os casos em que os direitos fundamentais colidem com
normas outrossim importantes e basilares para um Estado Democrático de Direito,
como a tensão quase atemporal existente entre a liberdade e a igualdade.
Neste sentido, impõe-se analisar se o direito fundamental à liberdade, sob o aspecto
da autonomia da vontade, deve preceder à segurança pública especificamente no que
tange a utilidade do depoimento do investigado para o posterior desmantelamento de
organizações criminosas, cujo pilar é o princípio da verdade real no processo penal.
Destarte, a seguir, realizar-se-á a ponderação entre a autonomia da vontade e a verdade
real para elucidar se é ou não admissível que os atores do Poder Judiciário se utilizem de
mecanismos de pressão sobre o investigado a fim de “estimular” a celebração do acordo.

4 ∙ AUTONOMIA DA VONTADE E VERDADE REAL


NO ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA
Não obstante seja um negócio jurídico processual celebrado no âmbito do Poder
Público, a colaboração premiada guarda diversas semelhanças com institutos do
Direito Privado, tais qual a pacta sunt servanda. Esta pressupõe, etimologicamente,
o acordo livre e voluntário entre as partes, sob pena de eivar o contrato por invali-
dade. A mesma dinâmica também é aplicável ao acordo de colaboração premiada,
razão pela qual não se admite, prima facie, que seja imposto ao investigado.
Contudo, em homenagem ao princípio da verdade real e ao interesse público,
poderia parecer viável utilizar dos mecanismos institucionais (v.g. prisões cautela-
res) para incentivar a celebração do acordo de colaboração premiada, já que, muitas
vezes, a contribuição do investigado é de suma importância para possibilitar que o
sistema penal obtenha os elementos necessários para desmantelar a Organização
Criminosa, ou, no mínimo, orientar a investigação policial.
Há de se perceber, entretanto, que a autonomia da vontade, por se relacionar
com o modo de expressão e de concepção do indivíduo em sociedade, está também
atrelada à dignidade humana. À guisa da inteligência da Constituição Federal de
1988, erigiu-se a dignidade como um dos fundamentos da República (art. 1º, III, da
Constituição Federal), a qual estabelece, desde o iluminismo, que o sujeito não pode

340
ser instrumentalizado para finalidade diversa de si mesmo (KANT, 2004, p. 52),
haja vista que não haveria nada mais valioso que o próprio ser humano.
Tal máxima, que é derivada dos ensinamentos kantianos, arrefece a tendência utili-
tarista dos acordos em âmbito penal, porquanto determina que não se pode vilipendiar
a condição humana ainda que em prol do interesse público – como é o caso do des-
mantelamento das organizações criminosas. Afinal, por mais que se pretenda reprimir
a prática criminosa, não faria muito sentido combater uma infração cometendo outra.
Ademais, exercer pressão sobre o investigado para que este celebre acordo de cola-
boração premiada é uma conduta que viola a própria matriz do referido instituto, já
que ele deriva dos países de Common Law em que o modelo acusatório é adotado.
Seria, pois, subvertê-lo a uma lógica inquisitorial que é totalmente incompatível com
o ideário responsável por originar o acordo de colaboração premiada. Até porque, no
processo penal brasileiro, não se deve buscar a “verdade” a todo custo.
Neste sentido, inexoravelmente, o princípio da verdade real é arcaico e é
um dogma mais mitológico que efetivamente jurídico, haja vista que (LOPES
JÚNIOR, 2020, p. 389):
O mito da verdade real está intimamente relacionado com a estrutura do sistema
inquisitório; com o “interesse público” (cláusula geral que serviu de argumento
para as maiores atrocidades); com sistemas políticos autoritários; com a busca de
uma “verdade” a qualquer custo (chegando a legitimar a tortura em determina-
dos momentos históricos); e com a figura do juiz-ator (inquisidor).
O maior inconveniente da verdade real foi ter criado uma “cultura inquisitiva”
que acabou se disseminando por todos os órgãos estatais responsáveis pela per-
secução penal. A partir dela, as práticas probatórias mais diversas estão autori-
zadas pela nobreza de seus propósitos: a verdade.
Noutra dimensão, devemos sublinhar – na esteira de FERRAJOLI – que a ver-
dade substancial, ao ser perseguida fora das regras e controles e, sobretudo, de
uma exata predeterminação empírica das hipóteses de indagação, degenera o
juízo de valor, amplamente arbitrário de fato, assim como o cognoscitivismo
ético sobre o qual se embasa o substancialismo penal, e resulta inevitavelmente
solidário com uma concepção autoritária e irracionalista do processo penal.
No mesmo sentido, é possível afirmar que a verdade real é uma integrante de
longa data da chamada mitologia processual penal (CASARA, 2015, p. 317-318), que
não traduz nada senão fins políticos:
Grosso modo, poder-se-ia afirmar que os mitos processuais penais autoritários
subsistem em ambiente democrático, por serem úteis para determinados fins
estatais, ainda que esses objetivos (a que se poderia chamar de “jogo sujo”) per-
maneçam velados nos regimes democráticos. Contudo, tal explicação falha, por
ignorar que a mitologia autoritária é objeto de adesão sincera e, até, despudo-
rada, dos agentes estatais e da própria população, mesmo daquela parcela que,
não raro, sofre com o patrimônio autoritário posto a serviço do Estado.
Como se pode inferir, a questão não se resume à aplicação da lógica utilitarista.
Para além da singela relação entre meio e fim, há um problema cultural que se
abre a múltiplas chaves de leitura. Aqui, portanto, cabe aderir à hipótese, já men-
cionada ao longo da obra, de que, em uma sociedade autoritária (ou, melhor, em
uma tradição capaz de naturalizar práticas dissociadas do ideal democrático) o
recurso a mitos autoritários soa óbvio e é naturalizado. Eis porque a superação

341
da mitologia processual penal autoritária exige a desconstrução do óbvio, a par-
tir da ruptura com a tradição que aposta no poder penal, por meio de práticas de
natureza repressiva e violenta (correlatas à fase de desenvolvimento do capital),
em detrimento da cognição à solução dos mais diversos problemas sociais.
[...]
Reafirmar a tradição sempre serviu à legitimação do poder (e dos abusos daque-
les que o detém), ao fornecer elementos para que o Estado atue e se imponha
sobre sujeitos (tratados como objetos) relativamente passivos. É a tradição que
leva à aceitação acrítica dos mitos processuais penais, ainda que autoritários, em
pleno ambiente democrático.
Assim, a eterna busca por uma suposta verdade que legitime os meios utiliza-
dos para obtê-la é prática extremamente lesiva para um Estado que pretende ser
Democrático de Direito, já que, além de inalcançável e incerta, tal “verdade” pode
encobrir a violação de diversos direitos fundamentais. No caso do investigado,
induzi-lo a celebrar o acordo de colaboração premiada – ainda que se valendo de
meios institucionalizados tais qual a prisão – é uma clara subversão, conforme antes
exposto, não apenas à própria etimologia do instituto, mas outrossim à Constituição
Federal de 1988, já que é um modo de forçar a confissão (ROSA, 2015, p. 113).
Convém salientar ainda que as prisões cautelares são medidas excepcionais,
cuja aplicação deve incidir apenas quando preenchidos os pressupostos necessários
(PRADO, 2018, p. 89), conforme dispõe a inteligência do art. 312 c/c art. 313, ambos
do Código de Processo Penal. Desta feita, é inadmissível que se negocie a liberdade
do investigado em sede do referido acordo, haja vista que as cautelares pessoais só
devem ser impostas quando presentes os requisitos da lei.
Inexoravelmente, o absurdo de dispor sobre a liberdade do colaborador provo-
caria ainda mais a banalização da prisão preventiva, fazendo com que os efeitos
do acordo de colaboração premiada assemelhem-se aos do plea bargaining norte-
-americano, porquanto haverá a possibilidade de inocentes celebrarem o acordo
por receio de terem cerceadas suas liberdades fundamentais. Estudos apontam que
cerca de 56% dos réus que aceitam o plea bargaining são inocentes.7
A situação torna-se ainda mais grave quando os membros do Parquet promo-
vem a negociação prévia da pena, submetendo-a em seguida para homologação do
Juízo. Afinal, no contexto brasileiro, possibilitar que os promotores disponham
sobre a pena não é apenas uma subversão aos princípios da individualização das
penas e da isonomia, mas outrossim faz coincidir o papel de julgador com o de
acusador, aumentando ainda mais a carga inquisitória do sistema penal brasileiro.
Exemplifica-se com o caso Alberto Youseff (FONSECA, 2017, p. 222-223):
Na primeira sentença proferida, oito pessoas foram condenadas à prisão, em
um processo célere para os padrões da Justiça brasileira (cerca de um ano entre
denúncia e sentença), sendo que seis desses réus foram condenados a pagar uma
indenização de quase 19 (dezenove) milhões de reais à Petrobras para compensar
os prejuízos sofridos por causa dos desvios de que foi vítima a companhia.
Foram aplicadas penas privativas de liberdade que variam de quatro a onze anos
e seis meses de reclusão. Os primeiros réus colaboradores, Alberto Youssef e
Paulo Roberto Costa, por sua vez, foram condenados, respectivamente – apenas

7 Disponível em: www.conjur.com.br/2019-jan-15/funcionamento-vantagens-desvantagens-plea-


bargain-eua. Acesso em: 31 ago. 2020.
342
nesse processo, eis que outros ainda serão julgados – a penas de nove anos e dois
meses de prisão e sete anos e seis meses de prisão. O regime de pena acima de
quatro anos impede a substituição por pena restritiva de direitos e a pena acima
de oito anos tem que ser cumprida em inicialmente fechado.
Contudo, ambos os réus colaboradores cumprirão apenas as penas acertadas
no acordo que firmaram com o Ministério Público: Alberto Youssef cumpre
três anos de reclusão em regime fechado e Paulo Roberto Costa cumpre um
ano de prisão domiciliar e, em seguida, um ano recolhendo-se ao domicílio
apenas nos finais de semana.
Ademais, em que pese a renúncia ao direito de permanecer em silêncio seja um
dos pontos nevrálgicos para o funcionamento do acordo de colaboração premiada,
há de se ter em vista que também importante que não vincule perpetuamente o
investigado. Até porque, antes da homologação, sempre é possível que ele se retrate,
já que não se poderia conceber uma manifestação volitiva efetivamente livre que
não pudesse ser retratada.
Neste sentido, o depoimento do colaborador pode não ser espontâneo, porém é
de suma importância que seja voluntário (MENDES; BARBOSA; 2016, p. 77). Não é
por outro motivo que o legislador, ao editar a Lei n. 13.964/2019, deu maior clareza ao
papel do Juízo durante a homologação do acordo de colaboração premiada, alterando
o § 7º do art. 4º da Lei n. 12.850/2013, conforme visto. Não é lícito ao magistrado, con-
tudo, intervir no conteúdo das negociações realizadas entre o investigado e o Parquet.
Neste sentido, recentemente, no dia 25.06.2020, a 2ª Turma do Supremo Tribunal
Federal anulou a sentença condenatória proferida pelo ex-Juiz Sergio Moro no caso
“Banestado”, porquanto entenderam que aquele magistrado, alhures, teria partici-
pado das negociações feitas em sede de acordo de colaboração premiada – inclu-
sive tomando depoimentos de um dos envolvidos –, razão pela qual teria violado a
imparcialidade, conforme trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes (Ag.Reg. no
Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 144.615-Paraná):
Não há aqui uma mera homologação de acordo de colaboração premiada para veri-
ficação de sua legalidade e voluntariedade. Tampouco ocorre no caso uma mera
produção de prova de ofício pelo julgador. Este caso concreto apresenta caracterís-
ticas que caracterizam manifesta ilegalidade por violação à imparcialidade.
A leitura das atas de depoimentos (eDoc 1, p. 80-83, 101-102) demonstra de um
modo evidente a atuação acusatória do julgador. Ao analisar a sequência de atos
verifica-se a proeminência do julgador na realização de perguntas ao interro-
gado, as quais fogem completamente ao controle de legalidade e voluntariedade
de eventual acordo de colaboração premiada.
Ainda que o acordo aqui analisado e a sua homologação judicial tenham ocorrido
em momento anterior à promulgação da Lei 12.850/13, me parece claro que a neces-
sidade de imparcialidade judicial está consolidada na Constituição e em tratados
internacionais de direitos humanos há muito mais tempo. Isso não pode ser igno-
rado! E a proteção da imparcialidade deve ser dar por meios efetivos para tanto
Ora, o Juiz deve assumir o papel de garantidor, não podendo, sob o pretexto de
“fazer justiça”, ignorar os direitos e garantias que são inerentes ao processo penal
democrático. Permitir que os membros da Magistratura ou do Parquet possam
utilizar medidas coercitivas – ainda que indiretas – para dissuadir o investigado
é também criar um precedente absurdo e autoritário que coloca em risco toda a
dinâmica processual ora existente.
343
Não se pode admitir a instrumentalização da figura do investigado, porquanto –
como é sabido desde os tempos iluministas – não haverá liberdade se as leis per-
mitirem a desumanização das pessoas em prol do utilitarismo como se elas fossem
coisas (BECCARIA, 1999, p. 72). Há de se observar também que a negociação da
liberdade do colaborador assemelha-se muito a uma forma de tortura para obter as
informações desejadas – a qual é vedada pelo ordenamento pátrio, conforme rati-
fica a inteligência do art. 5º, III, da Constituição Federal de 1988.
Neste sentido (GOMES; COIMBRA, 2020, p. 8):
Assim, a prática da tortura sedimenta um atentado à dignidade humana na
medida em que se nega ao torturado a sua condição de pessoa, transmudan-
do-o em mero objeto. Há, inegavelmente, em tal fato, uma degradação da vítima
quanto à sua condição humana, privando-a da liberdade, de forma que se trans-
figura num objeto, ficando à mercê do torturador.
Nesse sentido, ensina-se que a tortura se consubstancia na conduta em que aflora
o ápice do desprezo pelo indivíduo subjugado que já se encontra na mais com-
pleta humilhação humana, com o seu estado físico e mental extenuado.
Sendo assim, ao sopesar os riscos existentes na busca incessante pela verdade
real, fica bem evidenciado que a autonomia da vontade, na presente análise, possui
um peso muito maior que o princípio da verdade real – devendo, portanto, precedê-
-lo e incidir em maior grau, de modo a resguardar a voluntariedade do investigado
para que não seja constrangido, direta ou indiretamente, a celebrar o acordo de
colaboração premiada, por mais que este possa ser fundamental para o desmantela-
mento das organizações criminosas no caso concreto.

5 ∙ CONCLUSÃO
O acordo de colaboração premiada tornou-se um importantíssimo meio de obten-
ção de provas, desempenhando um papel fundamental para o desmantelamento das
organizações criminosas – principalmente no âmbito da Administração Pública –,
bem como para reparar os prejuízos gerados aos cofres do Estado, já que, na prática, a
devolução de valores ao erário é quase uma conditio sine qua non do referido acordo,
instituindo, assim, um novo modelo de Justiça Penal Negociada no Brasil.
Não obstante a enorme utilidade processual e a inovação paradigmática provocada,
o acordo de colaboração premiada deve constituir-se como instrumento de realização
dos direitos e garantias fundamentais, e não como um mecanismo de busca incessante
pela verdade, já que, através do processo, o máximo que pode ser obtido é sua equi-
valente jurisdicional. Admitir o vilipêndio aos direitos fundamentais em prol de uma
suposta verdade criaria um precedente terrível e autoritário para os futuros acordos.
Até porque o princípio da verdade real, por si só, já remonta a uma tradição
autoritária e inquisitória que é totalmente incompatível com a natureza do acordo
de colaboração premiada, cuja matriz histórica remete aos sistemas da Common
Law, baseada principalmente no modelo acusatório de processo. Por mais que cada
Estado Nacional possua suas próprias peculiaridades, subverter o referido acordo
em prol da verdade real é fato que o desvirtuaria completamente.
Portanto, realizado o sopesamento entre a autonomia da vontade e o princípio
da verdade real, percebe-se que, embora não prescindam da segurança pública e
da necessidade de arrefecer a prática de crimes pelas organizações criminosas, as

344
circunstâncias fáticas e jurídicas existentes demonstram que a dignidade humana
deve sempre ser ponto de chegada e de partida dos institutos do Direito, razão pela
qual se mostra inadmissível a utilização de mecanismos coercitivos – ainda que
institucionalizados pelo Estado – para obter a celebração do acordo de colaboração
premiada, de modo que a autonomia da vontade deve preceder, neste caso, o dogma
da verdade real do processo penal.

REFERÊNCIAS
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1999.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 5. ed.
São Paulo: Saraiva Jur, 2017.
CABRAL, Antônio do Passo. Acordos processuais no processo penal. In: CABRAL, Antônio
do Passo; PACELLI, Eugênio; CRUZ, Rogério Schietti (Coord.). Processo Penal. Salvador:
JusPodivm, 2016.
CASARA, Rubens. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015.
CORDEIRO, Nefi. Colaboração premiada: caracteres, limites e controles. Rio de Janeiro:
Forense, 2020.
DINARMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2003.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.
FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria geral do procedimento e o procedimento no
processo penal. São Paulo: RT, 2005.
FONSECA, Cibele Benevides Guedes da. Colaboração premiada. Del Rey, 2017.
GOMES, Luiz Flávio. A impunidade da macrodelinquência econômica desde a perspectiva
criminológica da teoria da aprendizagem. In: DOTTI, René Ariel; PRADO, Luiz Regis
(Org.). Doutrinas essenciais de direito penal econômico e da empresa. v. I. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011.
GOMES, Luís Roberto; COIMBRA, Mário. Princípio da dignidade da pessoa e da huma­
nidade das penas. In: PRADO, Luiz Regis (coord.). Direito penal constitucional: a (des)
construção do sistema penal. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal – parte geral. v. 1. 18. ed. Niterói: Impetus. 2016.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução
de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
MENDES, Soraia da Rosa; BARBOSA, Kássia Cristina de Sousa. Anotações sobre o requisito
da voluntariedade e o papel do/a juiz/a em acordos de colaboração premiada envolvendo

345
investigados/as e/ou réus/és presos/as provisoriamente. A Delação/Colaboração premiada
em perspectiva. Organização Soraia da Rosa Mendes. Brasília: IDP, 2016.
MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis na colaboração premiada: entre
a legalidade e autonomia da vontade. In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; MOURA, Maria
Thereza de Assis (Org.). Colaboração premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
MULGAN, Tim. O Utilitarismo [The Utilitarianism]. 2012.
NUNES, Geilson; NÁRIMA, Naessa; OLIVEIRA, Patrícia Roberta Leite de. Colaboração
premiada: aplicabilidade e limites à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Direito &
Realidade, Monte Carmelo (MG), v. 6, n. 6, 2018.
PRADO, Luiz Regis. Prisão preventiva: a contramão da modernidade. Rio de Janeiro:
Forense, 2018.
ROSA, Alexandre de Morais. A teoria dos jogos aplicada ao processo penal. 2. ed. Empório
do Direito, 2015.
ROXIN, Claus. Fines de la pena y reparación del daño: de los delitos y de a las víctimas.
Tradução española de Julio Maiery Elena Carranza. Buenos Aires: Ad Hoc, 1992.
SILVA, Marcelo Rodrigues da; GOMES, Luiz Flávio. Organizações criminosas e técnicas
especiais de investigação. Salvador: JusPodivm, 2014.
SILVA, Marcelo Rodrigues da. A colaboração premiada como terceira via do direito penal
no enfrentamento à corrupção administrativa organizada. Revista Brasileira de Direito
Processual Penal. v. 3, n. 1, 2017.
SILVA, Marcos Vinicius Lopes da. A natureza jurídica do acordo de delação e a (i)legalidade
da não denúncia prevista na Lei n. 12.850/2013. In: CALLEGARI, André Luís (Org.).
Colaboração premiada: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
STRANG, Robert R. Plea bargaining, cooperation agreements, and immunity orders. Resource
Material Series, n. 92. UNAFEI, Tokyo, Japan. Mar. 2014. Disponível em: www.unafei.or.jp/
publications/pdf/RS_No92/No92_05VE_Strang1.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
SOUSA, Marllon. Plea bargaining no Brasil. 2. ed. rev., atual. e ampl. Salvador:
JusPodivm, 2020.
ROXIN, Claus. Derecho Penal. Madrid: Civitas, 1997.
TABAK, Benjamin Miranda. A análise econômica do direito – Proposições Legislativas
e políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, Senado Federal, Subsecretaria de
Edições Técnicas, ano 52, n. 205, jan./mar. 2015.
VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. 2. ed.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.
WUNDERLICH, Alexandre. A vítima no processo penal: impressões sobre o fracasso da Lei
n. 9.099/95. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 12, n. 47, mar.-abr. 2004.
WUNDERLICH, Alexandre. Colaboração premiada: o direito à impugnação de cláusulas
e decisões judiciais atinentes aos acordos. In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; MOURA, Maria
Thereza de Assis (Org.). Colaboração premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

346
DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE
À CONSTITUIÇÃO AMBIENTAL
João Carlos de Carvalho Rocha1

Sumário: 1 Introdução. 2 Meio ambiente e direitos humanos na ordem internacional.


3 Meio ambiente no Direito Constitucional comparado. 4 Pluridimensionalidade dos
direitos fundamentais. 5 Natureza fundamental do direito ao meio ambiente. 6 Conteúdo
do direito fundamental ao meio ambiente. 6.1 Funções do direito fundamental ao meio
ambiente. 6.2 Conflituosidade em face de outros direitos fundamentais – Núcleo essencial
e mínimo ambiental. 6.3 Feixe de direitos ambientais de segunda geração. 7 A defesa do
meio ambiente como princípio da ordem econômica. 8 Conclusões.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O fenômeno jurídico da constitucionalização das questões relacionadas a agenda
ambiental é recente, não apenas no Brasil, mas também em âmbito internacional.
Todavia, a constitucionalização ambiental tem se expandido de forma evidente nas
últimas décadas. Em 2003 era possível relacionar 55 constituições nacionais que con-
templavam alguma norma de caráter geral sobre meio ambiente (SAMPAIO, 2003,
p. 99-102) entre aquelas que definem apenas sua proteção como tarefa estatal, as que
definem como dever de todos e do Estado, que definem concomitantemente como
direito subjetivo e tarefa do Estado e, por último, as que preveem norma de proteção
genérica. Passada pouco mais de uma década, outro levantamento, efetuado em 2017,
indica a ocorrência de algum tipo de normatização constitucional quanto ao meio
ambiente em 148 de 196 constituições nacionais (O’GORMAN, 2017, p. 435-462).
Os diversos textos constitucionais variam nas suas disposições sobre o meio
ambiente, seja dedicando um único artigo, seja com disposições minudentes, ora
com um enfoque sobre o ambiente em si, outros a partir do acesso do homem ao
ambiente saudável. Além das diferenças formais (texto analítico vs. texto sintético,
remessa à regulamentação vs. aplicação imediata), a distinção mais relevante parece
ser entre a acepção objetiva de ambiente, em torno da qual se construiria um direito
dos bens ambientais, e a acepção subjetiva, que articula o direito ao ambiente como
direito de acesso da pessoa humana a certo estado ou qualidade. Outrossim, cabe
verificar como as acepções de ambiente se articulam no discurso constitucional
sobre a organização econômica e o desenvolvimento.
Analisaremos adiante essas perspectivas, visando prevenir os riscos da frag-
mentação do meio ambiente na constituição em compartimentos estanques e autos-
suficientes, o que reduziria as conexões de sentido no sistema jurídico.

1 Procurador Regional da República. Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade


Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS).

347
Cabe anotar que o sistema jurídico, como adverte Juarez Freitas, é necessaria-
mente aberto, sujeito a modificações decorrentes das correlações internas e das
influências de fatores materiais e históricos (FREITAS, 2002, p. 31). Não há que
se confundir pluralismo com fragmentação. A Constituição brasileira é plura-
lista, porque espelha uma sociedade complexa, marcada por uma diversidade de
grupos sociais com interesses, projetos e ideologias conflitantes, mas coexistentes
(ZAGREBELSKY, 2003, p. 13). O desejo de vida em comum em uma sociedade desse
tipo só se torna possível pelo reconhecimento dialógico da relevância dos processos
democráticos de escolha. A pós-modernidade impele à convivência entre múltiplos
valores e princípios, mediante a realização aberta da constituição.
Para que seja possível essa pluralidade fluida, sem que o campo jurídico não
perca a sua especificidade, e se dilua na política, na filosofia ou em qualquer outro
saber, necessária se faz uma adequada compreensão da norma jurídica e das suas
implicações no campo axiológico, de sorte a superar o positivismo sem recair em
formulações meramente ideológicas. É necessário, portanto, distinguir os princípios
fundamentais, entendidos como diretrizes basilares do sistema, dos valores, que são
mais genéricos e indeterminados, e das normas que enunciam regras (FREITAS,
2002, p. 56). Os princípios são mandatos de otimização, porque ordenam que algo
seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades judiciais e reais
existentes (ALEXY, 2001, p. 86).

2 ∙ MEIO AMBIENTE E DIREITOS HUMANOS


NA ORDEM INTERNACIONAL
No plano internacional também ocorre um incremento na celebração de trata-
dos internacionais, a partir da década de 1970. O ponto de viragem foi a Convenção
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo no
ano de 1972. Diferentes levantamentos sobre o número de tratados internacionais a
respeito de matéria ambiental indicam uma tendência de diversificação das questões
abordadas (minorando os acordos de conteúdo exclusivamente conservacionista),
bem como eleva-se a média anual de acordos multilaterais assinados de 1,23 ao ano,
entre 1920 e 1973, para 4,2 ao ano, a partir de 1974 (LE PRESTRE, 2000, p. 169).
Interessante paralelo evolutivo entre a internacionalização da proteção aos direi-
tos humanos e a da proteção ao meio ambiente é efetuado por Cançado Trindade,
tendo, respectivamente, como marcos os anos de 1948 e 1972. Segundo o autor,
“logo se percebeu que, em cada um dos dois domínios de proteção, existia uma
inter-relação entre os distintos setores objeto de regulamentação” (TRINDADE,
1993, p. 39-41). Inter-relação que se estabelece a partir de três pontos: a) indivisibili-
dade de todos os direitos humanos; b) globalização espacial dos direitos humanos e
proteção do meio ambiente; c) emergência das obrigações erga omnes.
Na Conferência de Teerã, em 1968, foi proclamada a indivisibilidade de todos
os direitos humanos, incluídos os direitos civis, políticos, bem como os econômi-
cos, sociais e culturais. Em 1974, a Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos
Estados das Nações Unidas incluía, pela primeira vez, a responsabilidade interge-
racional com a proteção e preservação do meio ambiente como responsabilidade
de todos os Estados (TRINDADE, 1993, p. 41-43). E o Protocolo Adicional I de
1977 às Convenções de Genebra de 1949 sobre Direito Internacional Humanitário

348
incluiu, em seus artigos 35(3) e 55, a proteção ao meio ambiente natural contra
danos extensos, duráveis e graves causados em combate (TRINDADE, 1993, p.
123). Posteriormente, na Conferência do Rio, realizada em 1992, foram aprovadas a
Convenção da Biodiversidade e a Agenda 21, bem como foi assinada a Convenção-
-Quadro sobre a Mudança do Clima. Dessa última convenção-quadro resultou o
vigente Acordo de Paris, aprovado em 2015.
A questão dos tratados internacionais sobre meio ambiente e seu desenvolvi-
mento paralelo mas convergente aos tratados sobre direitos humanos ganha maior
relevância se observarmos a tendência para o entrelaçamento entre ordens jurídicas
estatais com aquelas de natureza internacional ou comunitária, fenômeno jurídico
conhecido por transconstitucionalismo e que acompanha a globalização das rela-
ções sociais, econômicas e de trabalho.

3 ∙ MEIO AMBIENTE NO DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADO


A produção de leis sobre proteção ambiental, associada com o maior protago-
nismo de normas internacionais, não tardou a se refletir na constitucionalização
do ambiente, na medida em que novas constituições são promulgadas ou os textos
em vigor são revisados.
De acordo com Canotilho, a nota de pioneirismo quanto à consagração do direito
fundamental ao meio ambiente está com a Constituição portuguesa (1976), seguida
da Constituição espanhola (1978) (CANOTILHO, 2004, p. 179). A Constituição
portuguesa, por seu artigo 66, 1, não apenas proclama que “todos têm direito a
um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o
defender”, como nos artigos 66, 2 e 81, a), consagra o desenvolvimento sustentável
como incumbência prioritária do Estado. A Constituição espanhola, embora com
formulação algo distinta, reflete a mesma influência recebida da Conferência de
Estocolmo, ao estabelecer o direito ao ambiente sustentável, correlacionado com o
desenvolvimento da pessoa, ao mesmo passo em que define o dever de preservá-lo
[art. 45, (1)]. Em seguida, em 45 (2), atribui ao Estado o dever de zelar pelo uso
racional dos recursos naturais, com o propósito de proteger e promover a qualidade
de vida e o meio ambiente (GASPAR, 2005, p. 27-29). O direito ao ambiente em
Portugal classifica-se entre os direitos sociais, econômicos e culturais, enquanto na
Espanha é um direito fundamental orientador (CANOTILHO, 2004, p. 185).
Se a constitucionalização do meio ambiente nos países ibéricos refletiu processos
de redemocratização que ocorreram logo após a tomada de consciência mundial das
questões ambientais ocorrida em Estocolmo, por outro lado, a estabilidade consti-
tucional da maioria dos países do Ocidente Europeu acarretou um ritmo mais lento
para o processo de constitucionalização do ambiente. Pedro Portugal Gaspar cita o
exemplo da França como o de um país em que, não obstante a ausência de preceito
constitucional específico sobre o ambiente, predominaria uma visão ecocêntrica
dos problemas jurídico-ambientais (GASPAR, 2005, p. 26-27). Nesse sentido, Michel
Prieur registra que em 1976 o então ministro da Justiça da França, J. Lecaunet, sus-
tentava que a Constituição Francesa reconhecia um direito implícito à qualidade
de vida, a partir dos direitos à saúde, à segurança material, ao repouso e ao lazer,
e que aquele direito à qualidade de vida tornava necessária uma política ambien-
tal abrangente (PRIEUR, 2004, p. 27). Com a aprovação da Lei Constitucional n.

349
2005-205, de 1º de março de 2005, o cenário modificou-se sensivelmente. Referida
lei constitucional altera a Constituição da França e aprova a Carta do Ambiente (art.
2º da lei constitucional).2 Após proclamar em seu preâmbulo que a existência da
humanidade é indissociável do meio natural e que a preservação do ambiente goza
do mesmo status de outros interesses fundamentais da nação francesa, o art. 1º da
Carta do Ambiente declara que todos têm o direito de viver em um ambiente equili-
brado e saudável. E seu art. 6º determina que as políticas públicas devem promover
o desenvolvimento sustentável. Merece especial destaque a inovadora Constituição
da Bélgica (1994), que inclui o direito ao ambiente são diretamente no âmbito do
direito fundamental a viver conforme a dignidade humana.3
Outros países europeus centram a proteção ambiental como tarefa do Estado. A
Constituição italiana refere a proteção do meio ambiente como uma atribuição do
Estado italiano e de suas regiões [art. 117, (2), s), e art. 117, (3)].4 A Lei Fundamental
da Alemanha, pelo artigo 20a (42ª Emenda, de 27.10.1994), estabelece a proteção dos
recursos naturais: “The state, also in its responsibility for future generations, protects
the natural foundations of life and the animals in the framework of the constitutional
order, by legislation and, according to law and justice, by executive and judiciary”
(TSCHENTSCHER, 2016, p. 34).5
No âmbito da União Europeia, a Carta de Direitos Fundamentais adotada em Nice
em 7 de dezembro de 2000 consagra como direito de solidariedade a proteção do meio
ambiente e determina, por seu art. 37, que todas as políticas da União devem integrar
um elevado nível de proteção do ambiente e a melhoria da sua qualidade, e assegu-
rá-los de acordo com o princípio do desenvolvimento sustentável (SOARES, 2002,
p. 104). A mesma disposição está incorporada ao texto do Tratado da Constituição
Europeia, artigo II-97. A solução europeia para a questão do direito fundamental ao
ambiente é claramente compromissária, estando aquém das disposições constitucio-
nais de Portugal, Espanha, França e Bélgica. Tim Hayward, ao tempo em que destaca
o papel do Tribunal Europeu de Direitos Humanos no reconhecimento do nexo entre
proteção ambiental e direitos humanos, critica o dispositivo europeu como dema-
siado tímido na formulação de um direito ao meio ambiente adequado, sobretudo
quando confrontado com a Convenção de Aarhus sobre acesso à informação, par-
ticipação pública e acesso à justiça em matéria ambiental, celebrada em 1998 por 42
países europeus (HAYWARD, 2005, p. 173-183).
As constituições dos países da América Latina também refletem a influência
da Conferência de Estocolmo e das tendências contemporâneas do constituciona-
lismo europeu, ao que se agregam os recentes aportes no novo constitucionalismo

2 Loi constitutionnelle n. 2005-205. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?ci


dTexte=LEGITEXT000006051372&dateTexte=20200903.
3 Art. 23, (5) da Constituição belga. Disponível em: www.senate.be/doc/const_fr.html.
4 Costituzione della Repubblica Italiana. Senato della Repubblica, Ufficio delle informazioni parlamen­
tari. Disponível em: https://www.senato.it/documenti/repository/istituzione/costituzione.pdf.
5 Canotilho apresenta a seguinte tradução para a língua portuguesa: “Assumindo a responsabilidade
frente a gerações futuras, o Estado protege os bens naturais da vida, fazendo-o no respeito pela
ordem constitucional, através da legislação e da actuação conforme a lei e em respeito dos poderes
executivo e judicial.” (CANOTILHO, 2004, p. 180).

350
latino-americano. Destacadamente, o direito fundamental ao meio ambiente está
reconhecido nos textos constitucionais dos seguintes países da região:6 Argentina
(art. 41), Bolívia (em especial art. 9, n. 6 e 342-347), Chile (art. 19, n. 8), Colômbia
(art. 79), Costa Rica (art. 50), Equador (arts. 71 a 74), México (art. 4º), Paraguai
(arts. 6º e 7º), Peru (art. 2º, 22), Venezuela (art. 127). Por outro lado, na Guatemala
(art. 97), no Panamá (art. 114) e no Uruguai (art. 47), a proteção ambiental é tratada
como dever do Estado e dos habitantes do território nacional.
O Equador teve, no interregno de uma década, duas constituições com extensa
normatização da matéria ambiental. A Constituição equatoriana de 1998 não ape-
nas tratava simultaneamente da proteção do meio ambiente como dever primordial
do Estado (art. 3, n. 3, art. 42) e como direito fundamental (art. 23, n. 3, art. 32 e art.
86), mas especialmente previa no art. 89, n. 3, disposição constitucional expressa
sobre biossegurança, cometendo ao Estado regular, sob estritas normas de biossegu-
rança, a propagação no meio ambiente, a experimentação, o uso, a comercialização
e a importação de organismos geneticamente modificados. A Constituição de 2008,
refletindo a concepção de Estado multicultural em voga no constitucionalismo dos
países andinos, efetua a identificação da natureza com a deidade Pachamama e a
reconhece como sujeito de direito. No mesmo sentido, a Constituição boliviana de
2009, embora mencione Pachamama apenas no preâmbulo, refere-se diretamente
ao meio ambiente em 34 disposições, sendo uma das mais abrangentes sobre a maté-
ria, seja na disciplina integrada da questão ambiental com a herança cultural local,
seja na opção pelo desenvolvimento sustentável. Em termos comparativos, nossa
Constituição Federal de 1988 menciona o termo meio ambiente por dezenove vezes.
No Brasil, além do art. 225 da Constituição Federal de 1988, no qual estão defi-
nidos os marcos do Direito Ambiental brasileiro, há verdadeiro sistema de proteção
constitucional do meio ambiente, que se evidencia pelos seguintes dispositivos, os
quais, quando não tratam de forma explícita do ambiente, a ele são necessariamente
correlacionados: 1) a proteção ao meio ambiente como pré-requisito ao atendimento
dos objetivos fundamentais da República (art. 3º, inc. I a IV); 2) o exercício da cida-
dania ambiental, inclusive pelos meios de atuação direta previstos na Constituição
Federal (art. 1º, inc. II e parágrafo único); 3) o acesso à justiça para a tutela coletiva
do meio ambiente, com destaque para os arts. 5º, inc. LXXIII (ação popular ambien-
tal), e 129, inc. III (legitimidade do Ministério Público para a ação civil pública e
para o inquérito civil público); 4) o meio ambiente e a questão federal, especial-
mente em face das regras de competência comum fixadas no art. 23, incisos VI, VII,
VIII e IX, da Constituição em vigor e de competência legislativa concorrente do art.
24, VI, VII e VIII, além da competência suplementar do município (art. 30, inc. II);
5) a defesa do meio ambiente como princípio geral da atividade econômica (art. 170,
inc. VI) e as suas correlações com os demais princípios que conformam a ordem
econômica; 6) a proteção do meio ambiente no âmbito das políticas urbana (arts.
182 e 183), agrícola, fundiária e da reforma agrária (arts. 184 a 191), cultural (arts.
215 e 216), de ciência e tecnologia (art. 218), e indígena (art. 231); 7) a natureza do

6 As constituições dos países latino-americanos, aqui referidas, foram consultadas a partir do


Banco de Dados Políticos das Américas, mantido na rede mundial de computadores pelo Centro
de Estudos Latino-Americanos (CLAS) da Georgetown University. Disponível em: https://pdba.
georgetown.edu/porthist.html.

351
meio ambiente como bem de uso comum do povo (art. 225, caput); 8) o significado
do dever, atribuído ao Poder Público e à coletividade, de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações (art. 225, caput, in fine).

4 ∙ PLURIDIMENSIONALIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


Os direitos fundamentais estão desde sempre envolvidos pela heterogeneidade
e ambiguidade conceitual e terminológica (SARLET, 2006, p. 33). Direitos funda-
mentais não são apenas liberdades públicas, porque abrangem tanto direitos de
autonomia e de defesa como direitos políticos de cidadania e direitos econômi-
cos, sociais e culturais (MIRANDA, 1993, p. 47-49). Nem se confundem com os
direitos humanos, embora a desejada simetria de conteúdo. Entretanto, concei-
tualmente, os direitos humanos são aqueles proclamados em declarações inter-
nacionais, compreendendo corpo de princípios e garantias da pessoa humana no
âmbito do direito internacional público.7
A história dos direitos fundamentais é a história de ampliação da autonomia
humana e do exercício da cidadania. Assim, ao longo do tempo o catálogo de direi-
tos fundamentais vem sendo ampliado, com a inclusão de novos conteúdos, com
a proteção de novos direitos que antes eram invisíveis à proteção constitucional.
Como as demandas da cidadania tendem a convergir para uma agenda comum em
cada período histórico, fala-se em gerações ou dimensões dos direitos fundamen-
tais. É o que ocorre atualmente com os direitos fundamentais relacionados com
a agenda ambiental contemporânea. De resto, os direitos fundamentais são todos
simultaneamente operacionais, não importando o momento em que surgiram.
A doutrina indica a existência de, pelo menos, três dimensões dos direitos fun-
damentais. A primeira dimensão corresponde aos direitos de defesa e de liberdade
individual do Estado Liberal, direitos ditos negativos, porque impõem limites à
atuação do Estado em prol da autonomia do indivíduo. Incluem-se no rol os direitos
de igualdade formal, de liberdade religiosa, de expressão, de liberdade de imprensa,
de reunião, de propriedade individual, de habeas corpus, do devido processo legal,
e os direitos políticos de votar e de capacidade eleitoral passiva.
É justamente a crise do Estado Liberal oitocentista que leva aos experimentos
de institucionalização da democracia social, com sua correlata carta de direi-
tos. Aqui o desiderato é a igualdade de oportunidades em uma sociedade bem
organizada, cuja organização estatal promova a distribuição do bem-estar social
(SARLET, 2006, p. 56-57).
Esses direitos incluem a universalização da prestação do ensino, da saúde e
da assistência social. Mas não se resumem a direitos de natureza prestacional.
Os direitos dos trabalhadores são reconhecidos, no plano individual e coletivo.

7 Nesse sentido, sustentando a dimensão internacional dos direitos humanos, em contraposição à


dimensão constitucional dos direitos fundamentais, vejam-se Ingo Sarlet (2006, p. 35-42), Jorge
Miranda (1993, p. 49-52), J.J. Gomes Canotilho (2002, p. 391) e Robert Alexy (1999, p. 55). Por
outro lado, e sem descaracterizar a distinção, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias
considera que os acordos internacionais concernentes à proteção dos direitos humanos constituem
fonte do mecanismo comunitário de proteção aos direitos fundamentais, conforme lembrado por
Ana Salinas de Frías (2000, p. 80).

352
A começar por aqueles que ensejaram as lutas mais renhidas no século XIX, o
direito de greve, a redução da jornada de trabalho, o repouso semanal remu-
nerado e o direito a férias. Surge o conceito de seguridade social. O direito à
propriedade individual ganha novos contornos, porque a propriedade deixa de
ser um absoluto individual para ter reconhecido seu valor social.
A crise do Estado de Bem-Estar Social traz consigo a terceira dimensão dos
direitos fundamentais. Não que essa terceira dimensão se oponha aos direitos
sociais, econômicos e culturais reconhecidos no catálogo de direitos fundamentais
de segunda dimensão. É que a crise do Estado contemporâneo põe em evidência
a insuficiência dos direitos sociais de segunda dimensão para atender ao amplo
espectro de desafios de um mundo simultaneamente globalizado e desregulamen-
tado, no qual se percebe que viver se tornou mais perigoso. São, portanto, direitos
de solidariedade e fraternidade. Ser solidário é perceber-se no mundo com outras
pessoas, em complexa teia de sociodiversidade, e ter a abertura de dialogar com o
outro, e no diálogo construir os laços vinculantes que permitem a atuação conjunta
sem redução da parte ao todo ou do todo à parte. São direitos de titularidade difusa,
que incluem o direito ao meio ambiente e à qualidade de vida, a proteção do consu-
midor, a proteção e o acesso ao patrimônio cultural e histórico, dentre outros.
Muitos desses direitos ainda estão em fase de reconhecimento no plano consti-
tucional e direcionam mudanças para um novo paradigma que se vislumbra, mas
ainda não foi alcançado. Assim, a inclusão de novos direitos fundamentais na terceira
geração ou a existência já de uma quarta geração é, senão controversa, indetermi-
nada. Esses novíssimos direitos fundamentais incluiriam os direitos de comunicação
e informação decorrentes da expansão das novas tecnologias, bem como a internet e
os meios de comunicação móvel e a transmissão digital de dados. Mas, também, os
direitos ambientais intergeracionais, especialmente em face das mudanças climáticas,
e aqueles relacionados com as novas técnicas da biotecnologia e da bioengenharia.
A definição de dado direito fundamental em sentido material implica em uma
prévia valoração, no sentido de reconhecer a sua importância, de modo que seja
apto a ser reconhecido por qualquer constituição legítima. O amplo campo dos
direitos fundamentais em sentido material é correlato, portanto, há uma concep-
ção aberta da constituição, própria de sociedades democráticas, e se torna ainda
mais prenhe de questões em face da complexidade das mudanças trazidas pela
pós-modernidade. Alça relevância o papel do intérprete, em especial, mas não ape-
nas, do magistrado, na formulação das normas jusfundamentais que escapam da
literalidade do dispositivo, dependendo, para sua validade, de uma fundamentação
jusfundamental correta.
Em um sistema constitucional como o brasileiro, que permite o reconhecimento
de direitos fundamentais não enumerados (CF/88, art. 5º, § 2º), é possível formu-
lar normas de direito fundamental que decorram do sistema constitucional como
um todo, sem vínculo direto com determinado dispositivo. Mas mesmo no âmbito
do texto constitucional, quando se trata de direitos fundamentais situados fora do
catálogo do art. 5º, torna-se mais complexa a atividade do intérprete em apontar sua
correta identificação. Ainda assim, há cerca de doze possíveis exemplos de direitos
fundamentais localizados nos Títulos VII e VIII da CF/88 (SARLET, 2006, p. 136-
138), entre eles o direito à proteção do meio ambiente veiculado pelo art. 225.

353
Entretanto, cumpre atentar que a permanente busca humana por autonomia
moral e reconhecimento leva à seguinte situação limite: para que a Constituição
de um Estado Democrático e Social de Direito permaneça garantindo a afirmação
da pessoa humana, não basta fundar-se na dignidade humana, é preciso ir além,
para afirmar, mediante a leitura sistêmica da Constituição e pelo reconhecimento
da abertura material do catálogo, a dignidade da vida em geral, e dos processos
ecológicos essenciais que a mantêm e garantem sua continuidade intergeracional.

5 ∙ NATUREZA FUNDAMENTAL DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE


Afirmar que existe um direito ao ambiente, dimensão subjetiva do Direito
Ambiental, ainda não é afirmar a fundamentalidade desse direito. Não se discute que
há um sistema legal de proteção ao meio ambiente e políticas públicas objetivamente
formuladas para dar eficácia a essa proteção, mas cabe perquirir se é adequado falar
em direito fundamental ao meio ambiente, do ponto de vista da pré-compreensão das
premissas éticas do estatuto jusfundamental, e se essa perspectiva reforça ou enfra-
quece a tutela objetiva ao bem socioambiental (HAYWARD, 2005, p. 74).
É de se ter em linha de consideração três argumentos que parecem opor óbices
contra a definição do direito ao meio ambiente como direito fundamental: a) trata-
-se de um direito difuso, cujo objeto de fruição é indivisível; b) não se pode buscar
individualmente o reconhecimento desse direito em juízo; c) o direito do ambiente
põe em conflito direitos dos animais e de elementos naturais inanimados contra
direitos fundamentais titularizados à pessoa humana. Passaremos ao exame das
três objeções apontadas, sendo que as duas primeiras, por sua proximidade temá-
tica, serão tratadas conjuntamente.
Afirmar a natureza difusa do direito ao ambiente nada mais é do que reconhe-
cer uma característica compartilhada com os demais direitos de terceira dimensão,
ditos direitos de solidariedade. Assim, a titularidade coletiva, que chega a ser inde-
terminável, é, justamente, marca distintiva desse grupo de direitos fundamentais
(SARLET, 2006, p. 58). De fato, a difusibilidade desses direitos já fora apontada
pela doutrina, como observado na seção anterior. O direito fundamental ao meio
ambiente, como direito de solidariedade, é também um interesse difuso, termo que
aqui empregamos em sua acepção processual, porque “[n]em são interesses mera-
mente colectivos, nem puros interesses individuais, ainda que possa projectar-se, de
modo específico, directa ou indirectamente, nas esperas jurídicas destas ou daque-
las pessoas” (MIRANDA, 1993, p. 66).
Entretanto, a defesa do direito fundamental ao meio ambiente não se exaure
exclusivamente no seu exercício coletivo. Há no direito ao meio ambiente, como
consigna Jorge Miranda, uma pretensão negativa, visto que a conservação do meio
ambiente resulta na possibilidade de cada pessoa buscar não ser afetada hoje por
dano ao ambiente em que vive (MIRANDA, 1993, p. 476). Para a efetividade dessa
pretensão negativa resultam necessários meios de acesso à justiça, mediante ação
popular, ação civil pública ou outro meio processual legítimo, visando reparar ou
acautelar-se de dano ou ato lesivo.
Sobre o conflito entre direitos dos animais, ou mesmo de elementos naturais
inanimados, e direitos fundamentais da pessoa humana, sustentar que o direito ao

354
bem-estar animal pode restringir a liberdade humana parece restringir os direitos
fundamentais à primeira dimensão (DOMÉNECH PASCUAL, 2004, p. 33). A par-
tir dessa leitura restrita, todos os direitos de solidariedade poderiam ser abordados
como restrições ao direito de liberdade.
Acresce que nenhuma incompatibilidade opera entre os direitos fundamentais e
a concomitante existência de deveres fundamentais. Pelo contrário, o complexo de
deveres fundamentais correlatos ao feixe de direitos fundamentais ambientais visa
a dar máxima eficácia àqueles direitos fundamentais, ressaltando a dimensão obje-
tiva do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (TEIXEIRA, 2006, p.
92), que é a manutenção das condições dinâmicas propícias à vida.
Vale ainda lembrar, quanto à correlação entre dignidade humana e pesqui-
sas com animais, que o respeito a parâmetros éticos e jurídicos para o progresso
científico, democraticamente estabelecidos pela sociedade, em vez de obstaculizar
a pesquisa científica possibilita o desenvolvimento de uma ciência acorde com os
parâmetros sociais elegidos como humanamente relevantes. A capacidade de dis-
cernimento sobre quais as pesquisas e os métodos cientificamente necessários, que
utilizem animais, seus órgãos, tecidos e código genético, e aqueles que são desneces-
sários, cruéis e mesmo fúteis, decorre da capacidade de agir com dignidade.
Nesse sentido, Richard A. Epstein ressalta a importância social e cultural dos
animais na evolução da sociedade humana para descartar a hipótese de que os ani-
mais possam ser tratados apenas como objetos. Por outro lado, também não acolhe
a identificação dos animais com outros grupos cujos direitos foram sendo reconhe-
cidos ao longo da história, como escravos e mulheres, até porque escravos e mulhe-
res sempre foram seres humanos, compartilhando da mesma natureza dos demais
integrantes da espécie, ainda que tivessem sido equiparados a objetos ou declarados
incapazes em determinadas fases da história humana. Descarta ainda, em contra-
posição irônica com a própria distinção entre racionalidade e animalidade efetuada
por Kant, o que considera ser um absolutismo em estilo kantiano dos que pretendem
equiparar a vida humana à vida animal, mas reconhece a necessidade de estabelecer
uma hierarquia entre os animais, de modo a proteger os animais sencientes da dor,
do medo, das condições precárias de vida e das pesquisas da indústria cosmética,
entre outros males (EPSTEIN, 2004, p. 144).
A intensa socialização dos impactos decorrentes da instrumentalização do
meio ambiente, como veículo para propósitos definidos pela técnica humana,
rompe limites com os quais antes não se necessitava ter vigilância. A garantia de
um ambiente hígido de contaminações genéticas torna-se garantia de continuidade
dos processos bióticos, da vida em geral e da própria dignidade humana. A pessoa
humana é duplamente afetada pela moderna biotecnologia: nossa espécie desen-
volve as técnicas de alteração genética aplicáveis a outros organismos e, ao mesmo
tempo, suporta, com nosso entorno, os impactos ambientais decorrentes.
A proteção à integridade e diversidade do patrimônio genético natural, como
direito fundamental, encontra sua justificação na própria dignidade da pessoa
humana, insculpida no art. 1º, III, da CF/88, sem prejuízo de também encontrar
suporte na abertura material do catálogo do art. 5º, e na sua estreita correlação com
outros direitos fundamentais, em especial o direito à vida e ao meio ambiente. É
incontroverso, pelo que já foi apresentado, que, quando se trata do direito à vida

355
no âmbito da ordem constitucional, não se está a reconhecer apenas o direito à
existência biológica, mas a vida com dignidade e qualidade, em todas as suas for-
mas, o que pressupõe uma relação com o entorno natural que não seja fundada na
espoliação dos bens ambientais.

6 ∙ CONTEÚDO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE


A garantia de manutenção dos processos vitais que possibilitam a integridade
e a continuidade do meio ambiente é um direito humano, reconhecido pelo direito
internacional público, e, ao mesmo tempo, é um direito constitucional reconhe-
cido pela Constituição Federal de 1988 e pela maioria das constituições dos países
democráticos. É, pois, um direito fundamental.8 Canotilho alerta que a questão não
é saber se, do ponto de vista da dogmática jurídica, há um direito fundamental ao
ambiente, mas “em saber que tipo de direito fundamental se pretende positivar na
qualidade de direito fundamental ao ambiente” (CANOTILHO, 2004, p. 179).
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 parece ser suficientemente clara no reco-
nhecimento de um direito fundamental ao meio ambiente, quando dispõe no caput
do art. 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações”. O primeiro direito fundamental ao ambiente, que dá sentido de unidade
aos direitos ambientais, é o direito de acesso ao ambiente ecologicamente equilibrado.
Portanto, ao direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado cor-
responde o dever fundamental de defendê-lo e preservá-lo. A referência expressa
às presentes e futuras gerações evidencia que a titularidade coletiva desse direito
é exercida com cláusula de garantia de continuidade. A fruição dos atributos
ambientais não pode comprometer a sua capacidade de reprodução e regeneração.
O direito fundamental ao ambiente, em seu aspecto coletivo e intergeracional, traz
consigo, por imperativo, o dever fundamental de proteção ambiental. Após, no § 1º
do mesmo artigo, incisos de I a VII, o constituinte elenca rol de deveres de cum-
primento necessário, para assegurar a efetividade do direito fundamental ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado. Esses deveres são cometidos diretamente ao
Poder Público, que tem o encargo de desempenhar a governança ambiental e imple-
mentar as políticas públicas ambientais. Todavia, em se tratando de garantir um
direito de máxima difusibilidade, devem ser observados por todos.
É de se avançar que o direito ao ambiente não se resume a apenas um único direito
fundamental, mas representa verdadeiro conjunto de direitos fundamentais. Há,
pela perspectiva dos direitos fundamentais, não apenas um feixe de direitos autô-
nomos decorrentes do direito ao ambiente, mas inserção do direito ao ambiente no
âmbito de outros direitos, como o direito à saúde, à habitação e dos trabalhadores
(MIRANDA, 1993, p. 443-444). No mesmo sentido, a jurisprudência tem aplicado

8 E como tal reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal. Cf. ADI-MC 3540 / DF - Relator: Min. Celso
de Mello. Julgamento: 1º.9.2005. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 3 fev. 2006, p.-00014
EMENT VOL-02219-03, p. 00528. Antes, em julgado de 1995, o STF adotara o mesmo entendimento
ao julgar o MS 22164/SP, acórdão da lavra do mesmo relator (Julgamento: 30.10.1995. Órgão Julgador:
Tribunal Pleno. Publicação: DJ 17 nov. 1995, p.-39206 EMENT VOL-01809-05, p. 01155).

356
direitos fundamentais já consagrados em prol da proteção ambiental. Conforme
registra David Ordóñez Solís, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) tem
reconhecido a dimensão ambiental de determinados direitos fundamentais.9 Essas
tendências não são excludentes, ambas evidenciam a transversalidade socioambiental
de todo o Direito, que encontra sua unidade na constituição ambiental.

6.1 ∙ FUNÇÕES DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE


O direito fundamental ao meio ambiente apresenta função prestacional e de
participação. Canotilho questiona a possibilidade de prestações ambientais originá-
rias. Aduz que seria necessário fixar precisamente o conteúdo da prestação ambien-
tal e estabelecer uma clara individualização das medidas ambientais necessárias,
adequadas e proporcionais para satisfazer a pretensão em causa (CANOTILHO,
2004, p. 188-189). Nesse círculo de giz traçado pelo autor, pouco podemos avançar.
Isso porque Canotilho tenta situar o direito fundamental ao meio ambiente como
direito prestacional em sentido estrito, o que é incompatível com a natureza difusa
dos efeitos das ações positivas do Estado. Veja-se que as ações do Estado em prol do
meio ambiente não são em si difusas, mas se propagam difusamente, assim como
ocorre com os impactos negativos. Por outro lado, o dever do Estado em promover
ações positivas em prol do meio ambiente, no horizonte imediato e tendo em mira
a responsabilidade com as futuras gerações, constitui-se em uma dimensão fun-
cional prestacional, em sentido amplo, do direito fundamental ao meio ambiente
(MEDEIROS, 2004, p. 115).
A discussão sobre o conteúdo dos direitos fundamentais de proteção passa pela
definição do seu objeto e alcance, vale dizer, sobre investigar as fronteiras em rela-
ção ao perigo que se busca evitar. No âmbito do direito fundamental ao ambiente, a
possibilidade de fruição de um ambiente indene de significativos impactos adversos,
sem a presença ativa do Estado, estaria virtualmente na dependência do isolamento
de determinada área em relação à presença humana. Como os efeitos poluentes
das atividades humanas se fazem sentir inclusive em regiões despovoadas, como o
continente antártico, a hipótese se revela irrealizável. Aliás, não constitui nenhuma
novidade que a fruição de determinados direitos fundamentais depende, para sua
melhor efetividade, de prestações estatais na esfera organizacional e procedimental
(SARLET, 2006, p. 226).
Esses aspectos procedimentais e organizacionais, que compreendem elementos
de governança ambiental esboçados na Constituição Federal, encontram a sua plena
operacionalidade no plano infraconstitucional. Realça, dos aspectos organizacio-
nais e procedimentais do direito fundamental ao meio ambiente, a necessidade de
uma permanente atividade cooperativa que inclua os órgãos competentes das três

9 Cita os casos Kyrtatos vs. Grécia (decisão de 22 de maio de 2003) e López Ostra vs. Espanha (decisão
de 9 de dezembro de 1994), nos quais o direito à vida privada e familiar foi invocado em favor da
proteção ambiental. Também é comentado o precedente Hatton vs. Reino Unido (decisão de 8
de julho de 2003), no qual o TEDH matiza o alcance da sua jurisprudência ante decisões estatais
que têm incidência em questões ambientais, para concluir: “Los Estados miembros deben tener en
cuenta la protección del medio ambiente cuando actúan en el marco de su margen de apreciación
y el Tribunal debe examinar la cuestión de si tal margen ha sido o no desbordado por los Estados
miembros.” (ORDÓÑEZ SOLÍS, 2006, p. 181-189).

357
esferas da federação, as instituições técnicas especializadas, a sociedade civil e até
mesmo a cooperação com os governos estrangeiros, para dar cumprimento a todas
as demandas das agendas ambiental e de biossegurança.
É próprio aos direitos fundamentais de solidariedade, por serem coletivos, e por
conviverem com outros direitos fundamentais, que os instrumentos procedimentais
de participação nos processos garantidores de sua eficácia jurídica e social busquem
modelos cooperativos e participativos, os quais afetarão a própria organização do
Estado. Avulta a necessidade de os gestores ambientais prestarem contas dos seus
atos e que haja clareza no acesso à informação.

6.2 ∙ CONFLITUOSIDADE EM FACE DE OUTROS DIREITOS


FUNDAMENTAIS – NÚCLEO ESSENCIAL E MÍNIMO AMBIENTAL
A conflituosidade entre o direito ao ambiente e o direito ao desenvolvimento,
ou à habitação, ou à propriedade, não é essencialmente distinta de conflitos entre
direitos fundamentais consagrados, como o direito à privacidade e o direito de
imprensa. Na verdade, a conflituosidade é inerente aos direitos fundamentais, já
que coexistem mutuamente, não sendo possível a um direito fundamental simples-
mente anular ou se sobrepor a outro. Razão pela qual uma das mais desafiadoras
partes da teoria dos direitos fundamentais diz com os métodos de solução de confli-
tos entre direitos fundamentais, uma vez que em um modelo de constituição aberta
é inevitável que os diversos direitos fundamentais se restrinjam mutuamente.
A questão que se coloca é até onde o direito fundamental ao meio ambiente pode
ser restringido em face de outro direito fundamental, vale dizer, quais as restri-
ções às restrições sofridas por aquele direito. O que nos remete à questão do núcleo
essencial do direito fundamental ao ambiente.
Algumas constituições europeias trazem disposições sobre o núcleo essencial.
Assim, a Lei Fundamental da Alemanha dispõe que em nenhum caso o conteúdo
essencial de um direito fundamental pode ser violado (art. 19.2), e a Constituição
espanhola determina que a lei, ao regular os direitos fundamentais, deve sem-
pre respeitar o seu conteúdo essencial (art. 53.1). No Brasil, ainda que não haja
disposição semelhante, a relevância do estudo do conteúdo essencial reside na
atividade de hermenêutica constitucional, e, portanto, no seu conteúdo mesmo
concretizado pela aplicação judicial.
Observa-se que no plano normativo, já mesmo em nível constitucional, há a
tendência de inclusão das questões ambientais na formulação das diversas políticas
públicas e na definição principiológica da função social da propriedade urbana e
agrária, o que confirma a opção socioambiental da ordem constitucional brasileira.
Como essa inclusão se articula, na prática, é uma questão concernente à efetividade
dos direitos fundamentais, entretanto o princípio do desenvolvimento sustentável,
que se verá adiante, tem papel importante na solução desses conflitos.
Estreitamente relacionada com a questão do núcleo essencial do direito funda-
mental ao ambiente está a questão do mínimo ambiental. Por mínimo ambiental
podemos firmar, a princípio, dois entendimentos, distintos mas não excludentes:
a) o mínimo ambiental compreendido como a configuração de um mínimo exis-
tencial que inclua as condições ambientais mínimas compatíveis com a existência;
b) o mínimo ambiental compatível com o atendimento de condições mínimas para
358
a realização do direito fundamental ao meio ambiente considerado em si mesmo.
Cumpre, pois, esclarecer a própria noção de mínimo existencial.
Ricardo Lobo Torres afirma que: “Há um direito às condições mínimas de exis-
tência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda
exige prestações estatais positivas” (TORRES, 1989, p. 29). Assim, o mínimo exis-
tencial tem duplo status, sendo protegido negativamente contra a intervenção do
Estado, ao passo que é garantido positivamente por prestações estatais. Para o autor,
o problema do mínimo existencial confunde-se com a própria questão da pobreza;
e seu fundamento está nas condições do exercício da liberdade.
É estreme de dúvida que a degradação ambiental atinge de forma mais virulenta
os mais pobres, do que são exemplos a desertificação, a contaminação dos rios, a
escassez crescente das fontes de água potável e a poluição atmosférica. Se a atividade
estatal em prol do mínimo existencial não considerar entre os seus componentes a
variável ambiental, não será sustentável a médio e longo prazo, além de acarretar
maiores custos no que se refere aos cuidados com a saúde pública e a nutrição.
O mínimo ambiental, além de atender as necessidades humanas básicas, haverá
de incluir a garantia de continuidade dos atributos ambientais presentes. O mínimo
ambiental é delineado sem prejuízo dos melhoramentos ambientais, já que entre
os objetivos do direito ambiental, fixado em normas constitucionais e infracons-
titucionais, estão o melhoramento e a restauração dos padrões ambientais. E aqui
tangenciamos com outro tema, que é a proibição de retrocesso ambiental.
A proibição de retrocesso social é um princípio axiológico comum aos direitos
fundamentais. Tem grande relevância no debate da eficácia dos direitos de solida-
riedade, especialmente ante as mudanças no Estado Social ocorridas nas últimas
três décadas. A proibição de retrocesso tout court pode significar, tão somente, a
incompreensão de novas questões sociais, que não podem ser resolvidas pelo mesmo
antigo arranjo normativo. Cumpre antes verificar se o retrocesso que se insere no
debate é um autêntico retrocesso ou uma mudança imprevista da agenda social.
Canotilho discute qual o critério a ser considerado na proibição do retrocesso
ambiental, se a situação global ecológica ou os bens ecológicos concretamente conside-
rados (CANOTILHO, 2004, p. 182). A situação global ecológica é critério por demais
amplo para que possa ser considerado como parâmetro útil para os Poderes Públicos
e os indivíduos. Quanto à operacionalização do princípio em relação aos bens ecoló-
gicos (água, solos, fauna e flora, na classificação do autor), indica o critério de grau de
esgotamento. Ainda que se trate de um critério mais concreto, é de se ponderar que
o Direito Ambiental deve atuar de modo a prevenir que se chegue a uma situação de
limite de esgotamento, portanto a proibição de retrocesso ecológico deve ser fixada
nos limites em que o bem ambiental tem capacidade de autorregeneração, do contrá-
rio estaria comprometido o dever constitucional em relação às gerações futuras.
Com razão Carlos Alberto Molinaro, quando afirma que a proibição da degra-
dação ambiental visa a proteger o núcleo essencial do direito fundamental, e, por-
tanto, a garantir a efetividade da própria Constituição, não apenas do ponto de vista
estritamente jurídico, mas também em sua eficácia social. A partir dessa premissa,
e considerando a natureza específica dos direitos fundamentais ambientais, e a pro-
teção ao mínimo existencial ambiental, o autor avança, ao afirmar que o princípio
de proibição de retrogradação socioambiental “não está submetido ao denominado

359
princípio da reserva do possível, tampouco ao princípio da reserva parlamentar
orçamentária” (MOLINARO, 2007, p. 437-438). Essa reserva da reserva, em alusão
à reserva do possível, é condizente com a própria natureza essencial do mínimo
ecológico quanto à efetividade dos direitos fundamentais ambientais. Qualquer
organização política que não assegure hoje o mínimo ecológico deixa de observar a
responsabilidade intergeracional e, portanto, não preenche as condições elementa-
res para o efetivo cumprimento da constituição ambiental.

6.3 ∙ FEIXE DE DIREITOS AMBIENTAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO


Canotilho distingue com acuidade entre os direitos relacionados com a primeira
geração de problemas ecológicos e os direitos relacionados com a segunda geração
de problemas ecológicos (CANOTILHO, 2004, p. 177-178). Aqui o termo geração é
adequado porque diz com o sequenciamento cronológico de agendas ambientais.
Os problemas de primeira geração são aqueles relativos à poluição das águas, ar e
solo e à degradação dos elementos naturais pelo seu uso não sustentado. Referidos
problemas são próprios da organização social industrial do século XX e manifes-
tam-se em âmbito local ou regional.
Entre os problemas ecológicos de segunda geração, Canotilho ressalta aqueles
relacionados com a higidez da atmosfera e as mudanças climáticas. Em comum,
esses problemas são próprios de um mundo globalizado, decorrem de múltiplas
causas e são de complexa reversão. Trazem à baila a tormentosa questão da respon-
sabilidade ambiental intergeracional e da definição de parâmetros globais de gover-
nança dos recursos planetários comuns. Compartilham as mesmas características
de problemas de segunda geração, ainda que não citados pelo autor, a contaminação
por organismos geneticamente modificados, o acúmulo de substâncias tóxicas no
ambiente e a contaminação radioativa.
No âmbito do direito internacional público, a Convenção sobre a Diversidade
Biológica consagra a conservação da diversidade biológica como interesse comum da
humanidade, do que decorre o dever de preservá-la. Ressalte-se que como as diversas
espécies vivas integram uma complexa rede de cadeias alimentares, é impossível ter o
conhecimento exato dos efeitos da redução da diversidade em um grupo de espécies
em relação à totalidade de seres vivos. O conceito de diversidade biológica, portanto,
está inarredavelmente vinculado com as noções de meio ambiente e ecossistema.
A segunda consequência jurídica da definição da conservação da diversidade
biológica como interesse comum da humanidade é o reconhecimento de que cada
indivíduo, de todas as gerações presentes e futuras, possui o direito e o dever de
participar da conservação do patrimônio genético. Daí se extrai que os países sig-
natários da convenção devem considerar em seu ordenamento interno a proteção ao
patrimônio genético tendo em vista garantir a conservação da diversidade biológica.

7 ∙ A DEFESA DO MEIO AMBIENTE COMO PRINCÍPIO


DA ORDEM ECONÔMICA
A caracterização do meio ambiente como bem coletivo total e o reconhecimento
do direito de todos à proteção do ambiente ecologicamente equilibrado e à integri-
dade e diversidade do patrimônio genético, extraídos ambos do art. 225 da Carta

360
Republicana, articulam-se com a defesa do meio ambiente como princípio confor-
mador da ordem econômica (CF/88, art. 170, inciso VI), bem como com as demais
normas constitucionais sobre meio ambiente ou que tratem de matérias relacionadas.
De acordo com Eros Grau, a defesa do meio ambiente, erigida em princípio da
ordem econômica, é “dotada de caráter constitucional conformador, justificando a
reivindicação pela realização de políticas públicas” (GRAU, 1997, p. 261), vale dizer,
é princípio que explicita valoração política que evidencia o núcleo ideológico de
macrovalores dominantes no processo constituinte. Os princípios conformadores
são definidores da forma do Estado, da estrutura do Estado e do regime político
(CANOTILHO, 2002, p. 1150). Os princípios da ordem jurídica da economia são ele-
mentos essenciais da organização normativa do fenômeno econômico, definindo a
forma como se realiza aquela atividade (DERANI, 1997, p. 236). A inclusão da defesa
do meio ambiente como princípio conformador da ordem econômica tem, portanto,
profunda influência em toda a organização socioeconômica e política do país.
As correlações entre ecologia e economia, não obstante evidenciadas desde o
prefixo comum a ambas, que remete ao étimo grego oikos (casa), são complexas e
não raro evidenciam litígios de grande porte entre concepções conflitantes sobre
a organização da espécie humana em sociedade. Até a consolidação da sociedade
industrial e de massas, no segundo pós-guerra do século XX, o ambiente era tratado
como conjunto de recursos naturais. Nos últimos quarenta anos passou a ser objeto
de investigações econômicas. Inicialmente, como um fator limite para o desenvolvi-
mento econômico. Após, como dado que confere sentido a um desenvolvimento que
seja sustentável pela disponibilidade racional de recursos naturais e pela capacidade
em absorver as emissões geradas pelo homem.
O desenvolvimento sustentável constitui-se na formulação de um compromisso
político da comunidade internacional e incorporado aos ordenamentos constitu-
cionais de diversos países. Tem por objetivo a manutenção dos recursos naturais
(apropriados no processo de produção), compatibilizada com a construção da sadia
qualidade de vida, vale dizer, do bem-estar social e ambiental (DERANI; RIOS,
2005, p. 89). Todos esses fatores correlacionados e operantes em economias indus-
triais de mercado. O relatório Nosso Futuro Comum foi apresentado em 1987 pela
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e escrito no marco
histórico imediatamente anterior à queda do Muro de Berlim, quando persistia a
divisão entre economias capitalistas e de modelo soviético. Assim, nem adentrou
sobre as possibilidades da sociedade pós-industrial nem sobre a melhor organização
econômica interna de cada país. Apenas refere que o desenvolvimento sustentável
encontra limites impostos pela tecnologia e pela organização social.
O conceito de desenvolvimento sustentável, por evitar as grandes polêmicas
relacionadas com a interação entre ambiente e economia, traz consigo o risco de se
constituir em um discurso sem concretude e, portanto, em uma ideologia, resul-
tando na legitimação das práticas exploratórias existentes, ligeiramente melhoradas,
decerto, mas sem indicar qualquer mudança de padrão tecnológico, ou no regime de
propriedade ou na melhor distribuição dos resultados econômicos pela sociedade. O
emprego acrítico dos termos desenvolvimento sustentável e responsabilidade socioam-
biental possibilita reduzir esses conceitos a meros jargões do cotidiano econômico,
conferindo aparência de funcionalidade aos modelos econômicos preexistentes.

361
Não se deve confundir a otimização no uso de recursos com sustentabilidade. O
melhor uso de recursos ambientais, factualmente limitados, dilata o exaurimento
desses recursos no tempo, mas não transmuda em renováveis recursos limitados
como minerais ou que têm sua sustentabilidade limitada por motivos populacio-
nais, como a criação de mamíferos domésticos para fins de alimentação humana.
A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento foi apresentada como
uma proclamação de 27 princípios que sintetizam os pontos de convergência dos Estados-
-Partes da Conferência. A formulação mais clara do desenvolvimento sustentável está
no princípio 3 da Declaração: “O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo
a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades de desenvolvimento e
do meio ambiente das gerações presentes e futuras” (CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES
UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1997, p. 593-594).
Todavia, o princípio 3 da Declaração do Rio só pode ser adequadamente com-
preendido se lido conjuntamente com o princípio 4 (SANDS, 2003, p. 55). O princípio 3
constitui-se em uma conquista dos países em desenvolvimento, pois reconhece o
direito ao desenvolvimento daquelas nações. De fato, antes de dizer que o desenvolvi-
mento deve ser pautado por esta ou aquela diretriz, o princípio 3 afirma a existência de
um direito internacional ao desenvolvimento. E os seus efeitos, na comunidade inter-
nacional, devem ser equitativos, para as presentes e futuras gerações. Há um claro pro-
pósito distributivista na formulação daquele princípio, o que é reforçado na correlação
entre combate à pobreza e promoção do desenvolvimento sustentável (princípio 5).
Por sua vez, o princípio 4 tem a seguinte redação: “Para alcançar o desenvolvimento
sustentável, a proteção ambiental constituirá parte integrante do processo de desen-
volvimento e não poderá ser considerada isoladamente deste” (CONFERÊNCIA DAS
NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1997, p.
594). O princípio 4 expressa o compromisso de avançar a agenda ambiental dos deba-
tes diplomáticos para o centro da economia. A proteção ao meio ambiente não é mais
um fator de limitação ao desenvolvimento. Pelo contrário, o desenvolvimento passa a
ser avaliado, também, pelo grau de proteção ambiental que propicia.
É na leitura conjunta do princípio 3 com o princípio 4 que o desenvolvimento
sustentável começa a adquirir consistência.
Em diversas outras passagens da Declaração do Rio as referências tópicas ao desen-
volvimento sustentável vão sendo apresentadas e estabelecem correlações de valor e
sentido que permitem fixar parâmetros substantivos para o modelo de desenvolvi-
mento proposto. Assim, os seres humanos são o centro das preocupações relacionadas
com o desenvolvimento sustentável, reconhece-se o seu direito a uma vida saudável e
produtiva em harmonia com a natureza (princípio 1). A responsabilidade dos países
em prol do desenvolvimento sustentável é comum, mas diferenciada, reconhecen-
do-se o maior impacto dos países industrializados (princípio 7). As modalidades de
produção e consumo insustentáveis devem ser reduzidas e eliminadas (princípio 8).
O saber científico e tecnológico deve contribuir ao desenvolvimento sustentável
(princípio 9). O sistema econômico internacional deve contribuir para o crescimento
econômico e o desenvolvimento sustentável de todos os países (princípio 12). Deve-se
promover a participação das mulheres, dos jovens e das populações indígenas no
desenvolvimento sustentável (princípios 20, 21 e 22, respectivamente). O desenvolvi-
mento sustentável tem compromisso com a paz mundial (princípios 24 e 25).

362
O desenvolvimento sustentável opera, portanto, em duas dimensões distintas,
ainda que complementares: a da ordem econômica internacional e a da organização
da economia nacional de cada país. No âmbito internacional, o desenvolvimento
sustentável representa uma importante flexão nas normas de direito internacional
econômico, pois vai contra a lógica liberal de tratamento igualitário para todos os
Estados, com a consequente liberação do comércio internacional sem considerar as
necessidades sociais e ambientais dos diversos países (VARELLA, 2003, p. 39).
A observância ao desenvolvimento sustentável no âmbito da ordem econômica
internacional acarreta inevitavelmente a consideração das principais conven-
ções internacionais sobre meio ambiente na tomada de decisões sobre comércio
internacional, nomeadamente, da Convenção sobre a Diversidade Biológica, da
Convenção sobre Mudanças Climáticas, da Convenção do Habitat, da Convenção
do Desenvolvimento Social e da Agenda 21 (VARELLA, 2003, p. 43).
Embora a Constituição Federal de 1988 não faça referência nominal ao desenvol-
vimento sustentável, estreme de dúvida que é o único modelo compatível com a leitura
sistemática do seu art. 170. A conclusão decorre do agregado normativo de ser o Brasil
um Estado Democrático de Direito fundado na dignidade da pessoa humana (CF/88,
art. 1º, III) e de constituir objetivo fundamental da República garantir o desenvolvi-
mento nacional (CF/88, art. 3º, II), delimitando uma principiologia geral da atividade
econômica que inclui a defesa do meio ambiente e uma principiologia específica do
meio ambiente (CF/88, art. 225), a qual inclui a responsabilidade intergeracional.
A noção de sustentabilidade diz com a capacidade de realizar mudanças eco-
nômicas qualitativamente positivas e duráveis ao longo de gerações. É expressão
na ordem econômica da responsabilidade intergeracional e, portanto, da forma-
ção e proteção de um patrimônio ambiental da humanidade (MACHADO, 1994,
p. 46). O desenvolvimento não sustentável mais cedo ou mais tarde afeta o pleno
desenvolvimento da pessoa humana, reduzindo as liberdades das gerações futuras
(VARELLA, 2003, p. 43).
O princípio de defesa do meio ambiente não se constitui em uma simples obri-
gação de não fazer, definida pelo não molestar o ambiente, mas na exigência de uma
conduta ativa do agente econômico, na busca da sustentabilidade. Portanto, qual-
quer atividade econômica que não considere a variável ambiental deixará de atender
aos requisitos constitucionais para aquela atividade (DERANI, 1997, p. 237-238).
Ademais, as políticas públicas correlatas com as políticas econômica e ambiental
devem ser harmonizadas em torno da sustentabilidade.
Essa busca pela sustentabilidade torna-se tanto mais evidente na medida que a
Emenda Constitucional nº 42, de 31 de dezembro de 2003, alterou o art. 170, inc.
VI, para acrescentar após “defesa do meio ambiente”, a oração “inclusive mediante
tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de
seus processos de elaboração e prestação”. Essa interação entre os artigos 225, caput
e 170, inciso VI, da Constituição Federal se dá além da intranormatividade inerente
ao texto constitucional, para alcançar os próprios elementos da realidade de que
tratam aqueles dispositivos constitucionais (DERANI, 1997, p. 239-240).
Na busca de superar a conflituosidade entre economia e ambiente, dentro da
perspectiva de integração dos componentes ecológicos na ordem da economia social
de mercado deve haver uma atitude de precaução na avaliação e no planejamento da

363
atividade econômica, de modo a garantir a integridade do ambiente onde aquela ati-
vidade impactará. Trata-se, portanto, de ampla reestruturação do Estado e da eco-
nomia, que torna imperativas a formulação e a implementação de políticas públicas
ambientalmente adequadas, vale dizer, sustentáveis. E nesse ponto também se faz
necessário que o Estado, seja como agente planejador, indutor ou protagonista da
atividade econômica, atue em prol de uma economia que seja ecológica e social.

8 ∙ CONCLUSÕES
O meio ambiente é reconhecido como um direito humano, na ordem interna-
cional, e como um direito fundamental no âmbito das constituições nacionais. Na
Constituição de 1988, o meio ambiente é tratado como direito fundamental ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, como bem ambiental e como princípio con-
formador da ordem econômica. O acesso à justiça, inclusive de forma coletiva, é
assegurado para garantir a proteção ambiental ou reparar o dano.
A abordagem do meio ambiente como um direito fundamental apresenta vanta-
gens ante a mera objetivação da disciplina legal dos bens ambientais. A nota de fun-
damentalidade do direito ao meio ambiente explicita o vínculo inexorável entre o
meio ambiente sadio e a dignidade da vida humana. É falaciosa a pretensão de tratar
objetivamente algo que não apenas nos rodeia e envolve, mas do qual fazemos parte,
cabendo lembrar que a espécie humana é uma forma de vida resultante da biosfera
deste planeta, circunscrita a limitantes físicos, químicos e geológicos comuns.
O meio ambiente é um sistema altamente complexo de interações energéticas
que ocorrem em escalas diversas, ordenado de forma a propiciar a vida e a sua
reprodução, em cujo próprio conceito se inclui o resultado desses processos, vale
dizer, a vida em sua biosociodiversidade. A constituição ambiental estabelece os
princípios, direitos, deveres, objetivos e meios de governança e de acesso à justiça
correspondentes à biosociodiversidade de cada país.
O direito fundamental ao meio ambiente, e o feixe de direitos fundamentais
daí decorrentes, funda-se na dignidade humana e, especialmente, na dignidade da
vida em geral. Sem reduzir o valor específico da dignidade da pessoa humana, um
dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, a Constituição reconhece a
dignidade da vida em geral e protege os processos ecológicos que possibilitam sua
diversidade e continuidade.
No que concerne particularmente à pessoa humana, em razão da autonomia
moral, torna-se possível o reconhecimento de si mesmo, do seu entorno e da liber-
dade de escolha que leva ao estabelecimento de instituições que maximizem a ciên-
cia em prol da pessoa humana e do ambiente.
A opção constitucional por um modelo de desenvolvimento sustentável acarreta
o dever de agir proativamente, na afirmação de soluções econômicas e tecnológicas
menos impactantes, e, preferencialmente, renováveis.
No Brasil, é possível verificar que a Constituição de 1988, a partir do direito
fundamental ao meio ambiente enunciado no art. 225 e da sistematização das
demais normas constitucionais relacionadas com o meio ambiente, estabelece
abrangente sistema de proteção constitucional do meio ambiente, conformando-
-se em articulada Carta Ecológica Constitucional, à qual cabe dar efetividade.

364
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no Estado constitucional democrático. Colisão
de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no Estado de direito
democrático. Tradução de Luiz Afonso Heck. Revista de Direito Administrativo, Rio de
Janeiro, n. 217, p. 55-66, jul./set. 1999.
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Versión castellana de Ernesto
Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5.
ed. Coimbra: Almedina, 2002.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra:
Coimbra Editora, 2004.
COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso
futuro comum. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1991.
CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E DESEN­VOL­VI­
MEN­TO. Agenda 21. 2. ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1997.
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997.
DERANI, Cristiane; RIOS, Aurélio Virgílio Veiga. Princípios gerais do direito internacional
ambiental. In: RIOS, Aurélio Virgílio Veiga; IRIGARAY, Carlos Teodoro Hugueney (org.).
O direito e o desenvolvimento sustentável: curso de direito ambiental. São Paulo: Peirópolis;
Brasília: IEB, 2005. p. 87-122.
DOMÉNECH PASCUAL, Gabriel. Bienestar animal contra derechos fundamentales.
Barcelona: Atelier, 2004.
EPSTEIN, Richard A. Animals as objects, or subjects, of rights. In: SUNSTEIN, Cass R.;
NUSSBAUM, Martha C. (ed.). Animal rights: current debates and new directions. Oxford:
Oxford University Press, 2004. p. 143-161.
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
GASPAR, Pedro Portugal. O Estado de emergência ambiental. Coimbra: Almedina, 2005.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 1997.
HAYWARD, Tim. Constitutional environmental rights. Oxford: Oxford University
Press, 2005.
LE PRESTRE, Philippe. Ecopolítica internacional. São Paulo: Editora Senac, 2000.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Estudos de direito ambiental. São Paulo: Malheiros, 1994.
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora,
1993. tomo IV.
MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007.
O’GORMAN, Roderic. Environmental constitutionalism: a comparative study. Transnational
Environmental Law, Cambridge, v. 6, issue 3, p. 435-462, Nov. 2017.

365
ORDÓÑEZ SOLÍS, David. La protección judicial de los derechos fundamentales de
solidaridad: derechos sociales, medio ambiente y consumidores. Granada: Comares, 2006.
PRIEUR, Michel. Droit de l’environnement. 5. ed. Paris: Dalloz, 2004.
SALINAS DE FRÍAS, Ana. La protección de los derechos fundamentales en la Unión Europea.
Granada: Comares, 2000.
SAMPAIO, José Adércio Leite. Constituição e meio ambiente na perspectiva do direito
constitucional comparado. In: SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY,
Afrânio. Princípios de direito ambiental na dimensão internacional e comparada. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003. p. 37-111.
SANDS, Philippe. Principles of international environmental law. 2nd. ed. Cambridge:
Cambridge University Press, 2003.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2006.
SOARES, António Groucha. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – a
protecção dos direitos fundamentais no ordenamento comunitário. Coimbra: Coimbra
Editora, 2002.
TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 177, p. 29-49, jul./set. 1989.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio-ambiente. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993.
TSCHENTSCHER, Axel. The Basic Law (Grundgesetz) 2016: the Constitution of the
Federal Republic of Germany (May 23rd, 1949) – introduction and translation. 4th ed.
Bern/Würzburg: Jurisprudentia, July 2016. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/
papers.cfm?abstract_id=1501131.
VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional econômico ambiental. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. Traduccíon castellana
de Marina Gascón. 5. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2003.

366
A DEFESA DE DIREITOS PREVISTOS NA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL E O MANDADO DE INJUNÇÃO
A evolução jurisprudencial e legal da eficácia do mandado
de injunção no ordenamento jurídico brasileiro

José Mauro Queiroz Rocha1


Erika Conceição Gelenske Cunha2

Sumário: 1 Introdução. 2 A origem do mandado de injunção. 2.1 A introdução do


mandado de injunção no ordenamento jurídico brasileiro. 2.2 Mandado de injunção como
uma inovação jurídica para sanar as normas constitucionais de eficácia limitada. 3 Teorias
da eficácia das normas jurídicas. 3.1 Normas jurídicas de eficácia plena. 3.2 Normas
jurídicas de eficácia contida. 3.3 Normas jurídicas de eficácia limitada. 4. Características
do mandado de injunção. 4.1 O mandado de injunção. 4.2 Conceito. 4.3 Procedimento.
4.4 Espécies. 4.5 Legitimidade. 4.6 Objeto. 4.7 Finalidade. 4.8 Competência. 5. Teorias da
eficácia do mandado de injunção. 5.1 Teorias doutrinárias. 6 O mandado de injunção no
caso concreto. 6.1 A evolução jurisprudencial. 7 A lei e a eficácia da decisão do mandado de
injunção. 7.1 Eficácia da decisão à luz da Norma Legal n. 13.300/2016. 8 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
Após um longo período de ditadura militar, que durou cerca de vinte anos,
a Carta Política de 1988 foi promulgada em face dos excessos que ocorreram no
período de ditadura. A vigente Constituição Federal foi marcada por uma forte
proteção contra o Estado e um excessivo protecionismo em favor da sociedade em
geral, trazendo em seu corpo um rol extensivo de direitos e garantias individuais e
coletivas, alguns já produzindo todos seus efeitos e outros dependendo de normas
infraconstitucionais para os produzirem.
A fim de proteger esses direitos em si positivados e dependentes de legislação
complementar para que seus titulares possam deles gozar, a própria Constituição
Federal traz o instrumento que visa a impedir que direitos não sejam desfrutados por
inércia legislativa da máquina estatal. No inciso LXXI de seu art. 5º, a Constituição
da República Federativa do Brasil, de forma inédita, prevê-se que o mandado de
injunção (MI), tema central deste estudo, será concedido sempre que a falta de norma

1 Servidor Público do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Pós-Graduando em


Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário. Graduado em Gestão Pública pela
Universidade Metodista de São Paulo.
2 Professora Orientadora. Docente do Ensino Superior na Universidade Estácio de Sá e Fundação
Getúlio Vargas nas modalidades presencial e EaD. Pesquisadora. Mestre em Bens Culturais
Projetos Sociais (FGV). Especialista em Ensino Superior, Psicologia, Gestão Estratégica de
Recursos Humanos e Inovação em Turismo. Graduada em Psicologia e Turismo.

367
regulamentadora não viabilizar o exercício de direitos e liberdades constitucionais e
das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.
O mandado de injunção, inovação jurídica trazida pela Carta Magna de 1988,
consiste em remédio constitucional que visa a combater a omissão e a morosidade da
função legislativa e reguladora do Poder Público, a fim de fazer valer o exercício de
direito, liberdade ou prerrogativa prevista na Constituição Federal (MORAES, 2015).
Por ser esse um instrumento nunca previsto em constituições anteriores e só
ter sido regulamentado recentemente em 2016, nesses pouco mais de 28 anos da
Lei Maior, os tribunais tiveram que aprender a lidar com ele, havendo mudanças
na posição jurisprudencial adotada pela Corte Suprema do País, o que trouxe, deste
modo, o questionamento: de que forma a evolução jurisprudencial e legal acerca do
mandado de injunção vai ao encontro da concretização dos direitos constitucionais?
Há uma hipótese, um pré-julgamento, de que a posição concretista adotada pela
jurisprudência e ratificada pela lei tornou mais viável o exercício do direito funda-
mental previsto em norma de eficácia limitada por seus titulares. Aproximando-se,
assim, o direito da ética.
O presente artigo tem como objetivo descomplicar o entendimento sobre o mandado
de injunção e sua aplicação no caso concreto, para isso pretende-se explicar seu conceito,
suas especificidades, a evolução jurisprudencial de sua eficácia, compreendendo a atual
aplicação da recente Lei n. 13.300/2016, que disciplina o processo e o julgamento dos
mandados de injunção, legalizando a eficácia das decisões de tais ações constitucionais.
A Constituição Federal de 1988 é conhecida como a Constituição Cidadã, pois,
como dito anteriormente, ela carrega diversos direitos dados aos cidadãos pelo poder
constituinte originário, sendo de suma importância que estes não sejam impedidos de
gozar tais direitos por simples inércia ou falta de conveniência do legislador infraconsti-
tucional. É trabalhado, neste artigo, o instrumento que o próprio constituinte originário
disponibilizou para que o exercício de direitos, liberdades ou prerrogativas constitu-
cionalmente previstos não sejam inviabilizados por negligência de outro Poder. Sendo,
assim, cuida-se de uma matéria de relevância social, pois tal remédio constitucional pre-
tende que os titulares desses direitos fundamentais não sejam privados do seu exercício.
Este estudo foi realizado por meio de uma pesquisa bibliográfica e documental de
abordagem qualitativa de caráter exploratório – ou seja, foram realizados levantamen-
tos de informações através de doutrinas publicadas, de julgados e jurisprudências e de
documentos jurídicos oficiais e legais, os quais serviram de base fundamental teórica
para a análise do que ocorre na prática acerca do tema –, o que proporcionou, deste
modo, maior familiaridade com o problema e foco principal no processo e seu signifi-
cado, qual seja: a evolução da eficácia das decisões de mandados de injunção e a efetiva
concretização de direitos, liberdades ou prerrogativas constitucionalmente previstos.

2 ∙ A ORIGEM DO MANDADO DE INJUNÇÃO


2.1 ∙ A INTRODUÇÃO DO MANDADO DE INJUNÇÃO NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO
Com base na doutrina de Bonavides (2015), a constituição passou por três eta-
pas históricas de suma importância que tiveram relação com os valores políticos,

368
jurídicos e ideológicos na caracterização formal das instituições. A primeira
fase da constituição é vinculada ao modelo francês e ao inglês do século XIX; a
segunda, atrelada ao modelo norte-americano; e, por último, iniciada em meados
de 1930 e ainda em curso, tem-se a visão de traços fundamentais no sistema jurí-
dico brasileiro, atados ao constitucionalismo alemão. O referido autor classifica
a Carta Magna de 1988 como uma Constituição do Estado social, ou seja, “uma
Constituição de valores refratários ao individualismo no Direito e ao absolutismo
no Poder” (BONAVIDES, 2015, p. 379).
A fim de entender melhor essa classificação, é importante compreender que o
surgimento da Constituição Federal de 1988 veio após um longo período de dita-
dura militar, como dito anteriormente, fazendo com que o novo ordenamento fosse
tomado excessivamente de normas protecionistas em favor da sociedade, em face
das atrocidades contra os direitos humanos que ocorreram durante esse período
obscuro da ditadura militar. Por isso, a Constituição vigente, ao estabelecer uma
enorme gama de direitos sociais e liberdades em relação às Constituições anteriores,
é conhecida como a “Constituição Cidadã”.
O constituinte originário, à época, viu-se preocupado em conferir eficácia às
normas contidas na nova Constituição, havendo discussões acerca da criação de
mecanismo com o qual a nova Constituição dispusesse meio hábil para possibilitar
a aplicação de direitos nela previstos. Há controvérsias sobre o momento da criação
de tal instrumento, mas consta, nos anais do Senado Federal, a defesa – pelos cons-
tituintes Ruy Bacelar, Virgílio Távora, Carlos Virgílio e também Gastone Righi – de
uma ferramenta capaz de reprimir a omissão legislativa, quando da falta de norma
regulamentadora que limitasse o seu direito.
Assim, no contexto histórico da redemocratização do País, surge o mandado de
injunção, o qual pretende harmonizar o ser e o dever-ser, a fim de que o povo, para
quem a Constituição foi criada, não tenha limitados os seus direitos por omissão
legislativa. Observa Canotilho (1993, p. 367 apud TAVARES, 2012, p. 1018):
Se um mandado de injunção puder, mesmo modestamente, limitar a arrogante
discricionariedade dos órgãos normativos, que ficam calados quando a sua
obrigação jurídico-constitucional era vazar em moldes normativos regras atua-
tivas de direitos e liberdades constitucionais. Se, por outro lado, através de uma
vigilância judicial que não extravase da função judicial, se conseguir chegar a
uma proteção jurídica sem lacunas; se, através de pressões jurídicas e políticas,
se começar a destruir o “rochedo de bronze” da incensurabilidade do silêncio,
então o mandado de injunção logrará os seus objetivos.
Trata-se de uma visão bastante crítica dos órgãos normativos, o que ratifica a
importância do mandado de injunção no ordenamento jurídico brasileiro.

2.2 ∙ MANDADO DE INJUNÇÃO COMO UMA INOVAÇÃO JURÍDICA PARA


SANAR AS NORMAS CONSTITUCIONAIS DE EFICÁCIA LIMITADA
Observa-se em ordenamentos jurídicos de outros países que há institutos seme-
lhantes ao mandado de injunção brasileiro, por exemplo: os mandados do direito
inglês e do norte-americano. Embora apresentem a mesma grafia na tradução, o
writ of injunction, tanto o previsto no direito norte-americano quanto o do direito
inglês, não se comparam no instituto prático ao writ instituído pela Carta de 1988.

369
Bastos (2010), ao fazer a analogia do instrumento brasileiro com o de ordena-
mentos jurídicos internacionais, afirma que o mandado de injunção pátrio é um
instrumento inédito, sem precedente tanto no direito nacional quanto no alienígena.
Também refutando a igualdade a instrumentos análogos no direito inglês e no
antigo direito português e afirmando que cabe aos órgãos jurisdicionais e à dou-
trina a definição do mandado de injunção, Moraes (2015, p. 180) ensina:
Apesar das raízes históricas do direito anglo-saxão, o conceito, estrutura e fina-
lidades da injunção norte-americana ou dos antigos instrumentos lusitanos não
correspondem à criação do mandado de injunção pelo legislador constituinte de
1988, cabendo portanto à doutrina e à jurisprudência pátrias a definição dos con-
tornos e objetivos desse importante instrumento constitucional de combate à ine-
fetividade das normas constitucionais que não possuam aplicabilidade imediata.
Entende da mesma forma Piovesan (2003, p. 178) quando assevera que, “nos moldes
em que é concebido, o mandado de injunção não encontra similar no direito alienígena”.
No mesmo sentido, Fernandes (2016) leciona que, nas mesmas especificidades
do atual mandado de injunção brasileiro, não há paradigmas adequados em busca
no direito comparado.
Ante ao exposto, observa-se que poucos doutrinadores abordam a questão his-
tórica do mandado de injunção e quando o fazem não se aprofundam no tema,
demonstrando-nos o pensamento majoritário acerca da existência de institutos
semelhantes em direitos alienígenas, mas com a observação de que o mandado de
injunção brasileiro é singular, sendo sua origem e sua natureza jurídica definidas
pelo direito pátrio, em sede de doutrina e jurisprudência.

3 ∙ TEORIAS DA EFICÁCIA DAS NORMAS JURÍDICAS


Faz-se necessário, antes de aprofundar estudo do mandado de injunção, abordar
a eficácia das normas jurídicas em uma análise não tão profunda, sem esgotar todo o
assunto, a fim de introduzirmos definitivamente o remédio constitucional em epígrafe.
Há algumas correntes acerca deste tema, todavia preferimos utilizar a classi-
ficação segundo José Afonso da Silva, por ser a mais utilizada. Conforme Paulo e
Alexandrino (2016, p. 57) pontuam, “O professor José Afonso da Silva formulou
uma classificação das normas constitucionais, que, sem dúvida, é a predominan-
temente adotada pela doutrina e jurisprudência pátrias”. Para não ser explanado
apenas um ponto de vista, abordaremos em conjunto a conceituação ministrada por
Maria Helena Diniz, que, embora tenha uma classificação divergente daquela elabo-
rada por José Afonso da Silva, traz diferença que é meramente literal, apresentando
em sua essência as mesmas características, à exceção de uma nova classificação
denominada norma de eficácia absoluta, conforme será exposto no próximo item.

3.1 ∙ NORMAS JURÍDICAS DE EFICÁCIA PLENA


Como a definição já diz, são aquelas que estão plenas (prontas) para produzir
ou têm a possibilidade de produzir todos os seus efeitos desde a entrada em vigor
da Constituição, sem necessidade de norma infraconstitucional. Possuem, inclu-
sive, aplicabilidade direta, imediata e integral, seja em sede de poder constituinte

370
originário, seja em decorrência do poder constituinte reformador, quando da pro-
mulgação de emendas à constituição.
Silva (2012, p. 100) leciona que as normas de eficácia plena são
[...] aquelas que, desde a entrada em vigor da Constituição, produzem, ou têm
possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interes-
ses, comportamentos e situação, que o legislador constituinte, direta e normati-
vamente, quis regular.
Por sua vez, Maria Helena Diniz estabelece uma nova classificação: as normas
supereficazes ou de eficácia absoluta. Advoga Diniz que, além de a norma consti-
tucional ter plena executabilidade a partir da entrada em vigor da Constituição,
esta norma é imutável, ou seja, “contra elas nem mesmo há o poder de emendar”
(DINIZ, 2001, p. 109).
No que tange à classificação acerca das normas constitucionais de eficácia plena,
o significado desta tem semelhança com o da classificação do professor José Afonso
da Silva, tendo Diniz (2001, p. 112) se posicionado da seguinte maneira:
São plenamente eficazes, as normas constitucionais que forem idôneas, desde
sua entrada em vigor, para disciplinarem as relações jurídicas ou o processo de
sua efetivação, por conterem todos os elementos imprescindíveis para que haja
a possibilidade da produção imediata dos efeitos previstos, já que, apesar de
suscetíveis de emenda, não requerem normação subconstitucional subsequente.
Podem ser imediatamente aplicadas.
Analisados os entendimentos supramencionados, é pacífico o entendimento de
que as normas de eficácia plena são autoaplicáveis e não exigem norma comple-
mentar ou que restrinja o seu sentido. Tais normas não serão objeto deste estudo,
haja vista que a defesa destas deve ser tratada por meio de outros remédios consti-
tucionais que não o mandado de injunção, já que não há omissão de norma regu-
lamentadora, podendo ser protegidas por habeas corpus, habeas data, mandado de
segurança ou ação popular, conforme o caso.

3.2 ∙ NORMAS JURÍDICAS DE EFICÁCIA CONTIDA


Quanto à aplicabilidade, estas se assemelham à norma de eficácia plena, ou seja,
possuem aplicabilidade direta, imediata, no entanto não possuem aplicabilidade
integral, pois podem ser restringidas por normas regulamentadoras, ou seja, o legis-
lador ordinário pode vir a limitar uma norma jurídica, reduzindo a sua abrangência.
Nesse sentido explica Puccinelli Júnior (2013, p. 111-112):
As normas compreendidas nesta categoria apresentam altíssimo grau de eficácia,
visto que propensas à produção de todos os seus efeitos, ao mesmo tempo que se
dobram a uma virtual relativização operada em face de restrições constitucio-
nalmente autorizadas. É dizer: possuem eficácia plena e imediata, mas possivel-
mente não integral.
Desde o nascedouro, gozam de aplicabilidade e surtem efeitos plenos. Porém, na
medida em que se materializarem os pressupostos de sua restrição, perdem abran-
gência e deixam de reger hipóteses dantes imersas em sua zona de incidência.
Esta redução da abrangência de uma norma constitucional pode ocorrer por
diversos instrumentos – por outras normas constitucionais, edição de regramentos

371
infraconstitucionais ou pela ocorrência de determinadas situações, como diante do
estado de defesa ou do estado de sítio, podendo-se impor restrições aos direitos
fundamentais; ou, ainda, por motivo de ordem pública, bons costumes e paz social,
conforme leciona Silva (2012).
Apresentando o mesmo conceito, mas inspirada nas lições de Michel Temer,
Maria Helena Diniz propõe uma mudança de nomenclatura, denominando-as essas
como de eficácia relativa restringível. Assim explica Diniz (2001, p. 113):
Correspondem essas normas às de eficácia contida de José Afonso da Silva, mas,
aceitando a lição de Michel Temer, preferimos denominá-la normas constitucio-
nais de eficácia redutível ou restringível, por serem de aplicabilidade imediata ou
plena, embora sua eficácia possa ser reduzida, restringida nos casos e na forma
que a lei estabelecer; têm, portanto, seu alcance reduzido pela atividade legislativa.
O art. 5º, XII, da Constituição Federal, que trata sobre o livre exercício de qual-
quer trabalho, ofício ou profissão, “atendidas as qualificações profissionais que a lei
estabelecer”, é um exemplo clássico de norma constitucional de eficácia contida, ou
seja, qualquer trabalho, profissão e ofício são, desde a promulgação da Constituição
Federal, exercíveis por qualquer pessoa do povo. A partir disto, lei posterior poderá
ser editada no sentido de restringir essa eficácia, com limitações previstas no orde-
namento jurídico; é exemplo o direito de exercer a advocacia, que é regulado pela
Lei n. 8.906, de 04 de julho de 1994, a qual estabelece em seu art. 3º que “o exercício
da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são
privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)”.

3.3 ∙ NORMAS JURÍDICAS DE EFICÁCIA LIMITADA


São normas de eficácia indireta, mediata e reduzida, ou seja, que não produzem
efeito no momento da sua entrada em vigor no ordenamento jurídico, pois, dife-
rente das outras, dependem de uma norma ulterior regulamentadora a fim de que o
texto normativo tenha efeito no campo prático.
Segundo Puccinelli Júnior (2013, p. 113),
As normas de eficácia limitada não surtem a plenitude de seus efeitos de ime-
diato, necessitando de complementação legislativa ou de atuação administrativa
para lograrem aplicação integral. Por isso, diz-se que tal espécie não é autoapli-
cável, porquanto sua inteira operatividade condiciona-se a uma futura e incerta
regulamentação (integração) normativa, quando não se faz dependente da ges-
tão governamental. Ornada com uma estrutura quase esquálida, essa categoria
normativa detém aplicabilidade indireta, mediata e reduzida.
A fim de detalhar um pouco mais a denominação da abordagem consagrada
por José Afonso da Silva, Diniz (2001) faz uma ressalva no que concerne à nomen-
clatura de tal classificação, chamando-a de norma de eficácia relativa dependente
de complementação legislativa, pois depende de complementação por meio de
lei ordinária ou lei complementar. Assim, por não terem essas normas recebido
do constituinte normatividade suficiente para regulamentação de seu conteúdo,
dependendo do Poder Público regulamentar a matéria por norma infraconstitu-
cional, a autora preferiu denominá-las como normas com eficácia relativa depen-
dente de complementação legislativa.
É válido exemplificar tal abordagem com o art. 37, inciso VII, da Constituição
Federal, o qual dispõe “o direito de greve será exercido nos termos e nos limites
372
definidos em lei específica”. Tal lei nunca foi criada no ordenamento jurídico pátrio,
restando inviável, em princípio, o exercício do direito constitucional mencionado,
porém esse assunto será abordado com maior detalhe quando analisarmos a evolu-
ção jurisprudencial da eficácia da decisão.

4 ∙ CARACTERÍSTICAS DO MANDADO DE INJUNÇÃO


4.1 ∙ O MANDADO DE INJUNÇÃO
O mandado de injunção está previsto no art. 5º, inciso LXXI, da Constituição
Federal: “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regula-
mentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das
prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.
Posteriormente, a Lei n. 13.300/2016 em seu art. 2º também o prevê:
conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta total ou parcial de
norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades
constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e
à cidadania.
À luz da previsão constitucional, a doutrina majoritária já apontava dois requi-
sitos ao mandado de injunção: a) falta de norma regulamentadora a uma previsão
constitucional e b) inviabilidade de exercer direitos e liberdades constitucionais ou
prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Exige-se nexo
causal entre estes dois requisitos, conforme apontam Tavares (2012), Moraes (2015)
e Fernandes (2016) em suas obras.
Nesse sentido, Puccinelli Júnior (2013) leciona tratar-se de uma garantia sem pre-
cedente que pressupõe a existência de um nexo de causalidade entre a inviabilização
do direito, da liberdade ou da prerrogativa constitucional e a omissão normativa.
Em uma abordagem rígida, Temer (2012, p. 745) profere:
Pode-se até criticar a sua previsão constitucional. Pode-se até pleitear, na revisão,
sua exclusão da Carta Magna. O que não se deve é torná-lo letra morta, invia-
bilizá-lo de tal modo que “a falta de norma regulamentadora” continue a fazer
“inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas
inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” (CF, art. 5º, LXXI).
Observamos, assim, que tal instrumento atua sobretudo na seara das normas cons-
titucionais de eficácia limitada, pois, por falta da norma regulamentadora de direito
constitucional, o cidadão fica sem ferramentas legais para concretamente exercê-lo.
Verifica-se, deste modo, a importância desse remédio no Direito Constitucional.

4.2 ∙ CONCEITO
Trata-se de ação constitucional que, no intuito de suprir a omissão do Poder
Público, almeja a viabilizar um direito, uma liberdade ou uma prerrogativa prevista
em normas de eficácia limitada positivadas constitucionalmente.
O mandado de injunção brasileiro é pioneiro no ordenamento jurídico mundial,
sendo um instrumento disponível a qualquer pessoa prejudicada pela omissão de
norma regulamentadora, objetivando garantir a concretização de direitos, prerroga-
tivas e liberdades – haja vista a inércia da própria administração pública, conferindo,
assim, sua imediata aplicação, logo evitando que a constituição se torne “letra morta”.
373
De acordo com os ensinamentos de Silva (2015, p. 451),
Constitui um remédio ou ação constitucional posto à disposição de quem se con-
sidere titular de qualquer daqueles direitos, liberdades ou prerrogativas inviáveis
por falta de norma regulamentadora exigida ou suposta pela Constituição. Sua
principal finalidade consiste assim em conferir imediata aplicabilidade à norma
constitucional portadora daqueles direitos e prerrogativas, inerte em virtude de
ausência de regulamentação. Revela-se, neste quadrante, como um instrumento
da realização prática da disposição do art. 5º, § 1º.
Observa-se que Silva (2015) menciona o §1º do art. 5º da Constituição Federal,
que prevê: “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm apli-
cação imediata”, legitimando a imediata existência, eficácia e aplicabilidade do
mandado de injunção, quando a norma constitucional de eficácia limitada não
possuir imediata aplicação.
Temer (2012) afirma que será cabível o mandado de injunção sempre que a omis-
são de norma regulamentadora causar prejuízos a outrem. Para o autor, o Poder
Judiciário, caso entenda que a omissão esteja caracterizada, detém poderes suficien-
tes para implementar a norma constitucional carente de regulamentação.
No mesmo sentido, Bulos (2015) aponta essa ação como meio processual
constitucional à disposição do indivíduo impedido de exercer prerrogativas,
direitos e liberdades constitucionais por falta de norma regulamentadora para
que este os possa exercer.
Observa-se que a conceituação do mandado de injunção é muito próxima entre
os diversos autores, uma vez que o legislador foi bem claro ao inserir seu conceito no
texto constitucional, posteriormente, ratificado na Lei n. 13.300/2016.

4.3 ∙ PROCEDIMENTO
Importante ressaltar que, embora tenha havido mora na edição de uma lei que
regulamentasse o assunto, os procedimentos utilizados no mandado de injunção
eram observados no que cabia, os mesmos da norma de mandado de segurança,
conforme disposto pelo parágrafo único do art. 24 da Lei n. 8.038/1990.
Todavia, no dia 23 de julho de 2016, foi promulgada a Lei n. 13.300, que dispõe
sobre o processo e o julgamento do mandado de injunção e contém a previsão dos
procedimentos adotados por essa ação, desde petição inicial até recursos, utilizando,
agora, como regras subsidiárias as contidas na Lei de Mandado de Segurança (Lei n.
12.016/2009) e no novo Código de Processo Civil.

4.4 ∙ ESPÉCIES
Com a regulamentação da Lei n. 13.300/1990, observamos claramente as espé-
cies de mandado de injunção.
A primeira divisão de espécie é quanto à ausência de norma regulamentadora.
Essa lei, ao positivar o mandado de injunção, prevê a importante possibilidade de
este ser total ou parcial, ou seja, quando não houver norma regulamentadora de
direito fundamental, o mandado de injunção será total; porém, este será parcial
quando a norma existente não regulamentar de forma suficiente, tornando inviável
o pleno exercício de direito, liberdade ou prerrogativa.

374
A outra divisão é referente ao impetrante, pois este pode ser individual, quando
a ação é proposta em nome próprio, por qualquer pessoa física ou jurídica que
defende interesse próprio; ou coletivo, quando há proposição por legitimado pre-
visto na lei, com defesa de direitos, liberdades ou prerrogativas pertencentes a um
grupo indeterminado ou determinado de pessoas, classe ou categoria. Esta espécie é
uma inovação da lei, pois não há previsão constitucional expressa, sendo positivada,
agora, pelo parágrafo único do art. 12 da Lei n. 13.300/1990.

4.5 ∙ LEGITIMIDADE
Quanto à legitimidade ativa, antes da regulamentação trazida pela Lei n.
13.300/2016, a doutrina já tratava do assunto, apontando no polo ativo qualquer
pessoa, física ou jurídica, que atenda às condições constitucionais (TAVARES,
2012), ou seja, tenha o nexo causal de ter um direito, uma liberdade ou uma prerro-
gativa constitucional inviabilizados por falta de regulamentação.
Neste sentido, Puccinelli Júnior (2013) leciona que podem impetrar o mandado
de injunção as pessoas nacionais ou estrangeiras, físicas ou jurídicas, desde que a
falta de norma regulamentadora inviabilize o exercício de direitos, liberdades ou
prerrogativas constitucionalmente previstos.
Apesar de não haver previsão expressa na Carta Cidadã acerca de mandado de
injunção coletivo, este já podia ser ajuizado coletivamente, por analogia à previsão
do mandado de segurança coletivo, conforme ensina Bulos (2015, p. 786).
Por analogia, os mesmos legitimados do art. 5º, LXX, da Carta Magna para
propor o writ coletivo podem ajuizar, em regime de substituição processual, o
mandado de injunção coletivo (partidos políticos representados no Congresso,
sindicatos, associações e entidades de classe).
Como bem lembram Fernandes (2016) e Cavalcante (2016), a recente Lei n.
13.300/2016 regulamentou expressamente a legitimidade, tanto individual – pes-
soas naturais ou jurídicas – quanto coletiva. Em seu art. 12, essa lei prevê de forma
expressa o mandado de injunção coletivo, podendo impetrar o writ injuncional tanto
aqueles já consagrados pela jurisprudência e previstos na Lei n. 12.016/2009, que
regula o mandado de segurança, quanto o Ministério Público, na defesa da ordem
jurídica, do regime democrático ou dos interesses sociais ou individuais indisponí-
veis, e a Defensoria Pública na promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos
individuais e coletivos dos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da CF.
A lei inova não só prevendo expressamente o mandado de injunção coletivo
como ampliando seu rol de legitimados ativos frente aos legitimados para impe-
trar o mandado de segurança coletivo, destacando-se a legitimidade do Ministério
Público e da Defensoria Pública (CAVALCANTE, 2016).
No que se refere à legitimidade passiva, nunca houve um consenso, especial-
mente sobre a possibilidade ou não da inclusão do particular como réu ou deman-
dado na ação injuncional.
Uma primeira corrente, considerada majoritária, aponta que somente pessoa estatal
pode ser demandada na ação injuncional, haja vista que no polo passivo só podem estar
aqueles entes estatais aos quais pode ser imputável o dever de regulamentar a Carta
Magna (MORAES, 2015), não cabendo ao particular a condição de sujeito passivo, pois
a este não recai qualquer dever de editar normas regulamentadoras (BULOS, 2015).
375
Como apontado por Bulos (2015), o Supremo Tribunal Federal (STF) adotou
esse posicionamento em diversos julgados de mandado de injunção, o que o levou a
ser considerado a posição majoritária.
Entretanto, há posicionamento contrário, como o de Silva (2015, p. 456):
Não importa a natureza do direito que a norma constitucional confere; desde
que seu exercício dependa de norma regulamentadora e desde que esta falta, o
interessado é legitimado a propor o mandado de injunção, quer a obrigação de
prestar o direito seja do Poder Público, quer incumba a particulares.
Puccinelli Júnior (2013), ao tratar desse assunto, reforça o entendimento de
Silva (2015), alegando que a sentença proferida em mandado tem a finalidade de
conferir ao impetrante somente a fruição do direito material, e não a edição de
norma regulamentadora, podendo, assim, os efeitos da sentença recair tanto nos
entes públicos quanto nos privados.
A Lei n. 13.300/2016, ao regulamentar a legitimação, em seu art. 3º, dispôs como
impetrado aquele com atribuição para editar norma regulamentadora, seja o Poder,
seja o órgão, seja a autoridade responsável pela edição, ratificando o entendimento
de que os particulares não figuram como réus, uma vez que não têm o dever de
editar norma regulamentadora.
Importante ressaltar, como lembra Cavalcante (2016), que, se a omissão for
de norma de iniciativa reservada a Chefe de outro Poder, ao procurador-geral da
República ou aos Tribunais Superiores, o writ deverá ser impetrado contra estes,
conforme entendimento do Pretório Excelso.

4.6 ∙ OBJETO
O objeto do mandado de injunção se dá com lacunas constitucionais, e estas
omissões, conforme ensina Bulos (2015), podem ser de qualquer grau hierárquico.
Especificando este entendimento, Tavares (2012) leciona que não são omissões de
qualquer norma constitucional que constituem objeto do writ injuncional, devendo
ser, antes de tudo, omissões perante uma norma constitucional de eficácia limitada
que ainda dependa de regulamentação ou que regulamente de forma insuficiente o
exercício de direito fundamental. Havendo legislação que regulamente, não caberá
o mandado de injunção, mesmo que a norma regulamentadora seja incongruente
com a Constituição Federal, pois não cabe mandado de injunção com o intuito de
alterar lei ou torná-la inconstitucional.
Embora o objeto do mandado de injunção assemelhe-se com o da ação direta
de inconstitucionalidade por omissão, no objeto daquele, conforme ensinam
Paulo e Alexandrino (2016, p. 214), “busca-se solução para um caso concreto,
individualmente considerado, diante de um direito subjetivo obstado pela inércia
do legislador”, enquanto que o objeto deste é em tese realizado de forma abstrata,
sem se referir a um caso concreto.
Outra característica que diferencia o objeto destes dois instrumentos constitu-
cionais é retirada da própria Constituição Federal de 1988 ao exigir uma omissão
qualificada para o writ injuncional, ou seja, o mandado de injunção é cabível só
quando a falta de norma regulamentadora tornar inviável exercício de direito e liber-
dades constitucionais e das prerrogativas referentes à nacionalidade, à cidadania e

376
à soberania; ao passo que, na ação direta de inconstitucionalidade por omissão,
tem-se como objeto qualquer omissão constitucional.

4.7 ∙ FINALIDADE
Em relação à finalidade do mandado de injunção, havia uma grande divergência
de interpretação que residia em determinar se o mandado de injunção se destinaria
apenas a estimular a produção da norma faltante pelo órgão competente ou se pos-
sibilitaria o suprimento judicial da inexistente norma (BARROSO, 2009).
Mendes e Branco (2014) apontam a existência das duas correntes: uma enten-
dendo que o mandado de injunção destinar-se-ia apenas a verificar a existência de
omissão impeditiva de exercício de direito fundamental e, na contramão, a cor-
rente segundo a qual o constituinte originário, de forma excepcional, teria dotado
o Tribunal do poder de editar normas, uma atividade judicial que teria fortes seme-
lhanças com a atividade legislativa.
Entretanto, a lei que regulamenta o mandado de injunção, Lei n. 13.300/2016,
trouxe uma importante disposição legal que acarreta uma atualização doutrinária.
Ao prever, no inciso II de seu art. 8º, que a mora legislativa pode ser suprida pela
decisão judicial quando deferida a injunção, o dispositivo legal deixou claro que a
finalidade da ação injuncional é viabilizar o exercício de um direito ou prerrogativa
constitucionalmente previstos.

4.8 ∙ COMPETÊNCIA
Cavalcante Filho (2016, p. 265) leciona que “o mandado de injunção é instru-
mento de controle difuso de constitucionalidade”, ou seja, a competência para pro-
cessar e julgar o mandado de injunção não é exclusiva do Supremo.
A Carta Magna a distribui de acordo com o impetrado entre o Supremo
Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, excetuando-se, ainda, os casos
de competência dos órgãos da Justiça Militar, Eleitoral, do Trabalho e da Justiça
Federal (MORAES, 2015).

5 ∙ TEORIAS DA EFICÁCIA DO MANDADO DE INJUNÇÃO


5.1 ∙ TEORIAS DOUTRINÁRIAS
A eficácia do mandado de injunção, ou melhor, a eficácia das decisões do man-
dado de injunção é um tema de importância relevância dentro do estudo deste
instrumento. Tendo a doutrina e a jurisprudência apontado as seguintes correntes:
a não concretista e a concretista, que pode ser geral ou individual, subdividindo-
-se esta em direta ou intermediária (MORAES, 2015). Devido à importância do
assunto, serão abordadas a seguir cada uma delas individualmente.

5.1.1 ∙ TEORIA NÃO CONCRETISTA


De acordo com Bulos (2015), a decisão, nesta corrente, só reconheceria a mora
legislativa, não concretizando qualquer direito subjetivo pleiteado pelo requerente.
Com fundamento no princípio da separação dos Poderes, previsto no art. 2º da

377
Carta Magna, o Poder Judiciário não tem competência para, coercitivamente,
fazer com que a norma regulamentadora omissa seja produzida. Assim, o Poder
Judiciário apenas incentiva a produção da norma omissa pelo órgão competente.
Essa foi a teoria adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos primeiros
vinte anos de vigência da Constituição Federal, sofrendo várias críticas pela dou-
trina por um cumprimento inibido do papel do writ de injunção (BULOS, 2015).
Fernandes (2016) leciona que, nesta visão, a natureza da decisão é meramente
declaratória, não sendo viabilizado o exercício do direito para o autor da ação. O
Judiciário, neste caso, apenas afirma que há um direito sem regulamentação e que o
órgão competente encontra-se em mora.
Essa posição é criticada por tornar seus os efeitos idênticos aos da ação direta de in­
constitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º), apesar de serem institutos diversos.
Como observado por Puccinelli Júnior (2013), a tese não concretista estaria
estendendo o rol de legitimidade ativa da ação direta de inconstitucionalidade por
omissão a qualquer pessoa, em virtude da inércia do Poder Legislativo, desmere-
cendo o conteúdo do art. 103 da Constituição Federal, e em nada adiantaria exigir
o limitado rol de legitimados para propor tal ação.
Apesar de ter se consolidado no início da década de 1990, esta corrente vem
sendo relativizada, paulatinamente, pela própria Suprema Corte. Fernandes (2016)
aponta como alguns motivos dessa mudança de posição a forte crítica doutriná-
ria, a qual entendia que a interpretação restritiva do writ não era a que desejava o
constituinte originário, e a insistente inércia dos Poderes Públicos em viabilizar os
direitos constitucionais por norma infraconstitucional e a mudança da composição
da Corte Constitucional.

5.1.2 ∙ TEORIA CONCRETISTA


A teoria concretista, de acordo com Cavalcante Filho (2016), tem por fundamento
a sentença aditiva, ou seja, a implementação do exercício do direito omisso. Destarte,
ao julgar procedente a injunção, o Poder Judiciário profere uma sentença aditiva, ou
seja, que efetiva o exercício do direito até que a norma regulamentar seja editada.
A doutrina majoritária divide esta corrente em duas: a teoria concretista geral e
a teoria concretista individual.

5.1.2.1 ∙ Teoria concretista geral


Na teoria concretista geral, a sentença detém o efeito erga omnes, ou seja, abrange
a todos a obtenção de um determinado direito, mesmo que não se tenha ingressado
com a ação, conforme Bulos (2015), aqui o juiz ou tribunal está incumbido de legis-
lar no caso concreto.
Moraes (2015), em sua obra, leciona no mesmo sentido: uma decisão com efeito
erga omnes atinge todos, independente de terem ingressado com a ação ou não,
entretanto essa normatividade conferida está vinculada ao caso concreto.
Nas palavras de Bulos (2015, p. 791), “a sentença, proferida na injunção, é erga
omnes, tem eficácia ampla, abrangendo a todos, pois o Judiciário implementa o
exercício do direito, mediante uma deliberação irrestrita”.

378
Por se tratar da ação de uma competência atípica, ou melhor, típica de outro
órgão, o Poder Legislativo – normatividade geral –, esta corrente recebe duras crí-
ticas da doutrina por uma possível afronta ao princípio da separação dos Poderes,
previsto no art. 2º da Carta Magna.

5.1.2.2 ∙ Teoria concretista individual


Na teoria concretista individual, ao contrário do defendido na corrente concre-
tista geral, o efeito da decisão é inter partes, sendo somente o autor da ação bene-
ficiado com a decisão judicial. Nos dizeres de Cavalcante Filho (2016, p. 270), “o
Tribunal dá uma regulamentação provisória à matéria, mas que atinge apenas o
impetrante, e não terceiros”.
A doutrina majoritária sempre foi mais simpatizante com esta corrente,
Canotilho (1993 apud MORAES, 2015, p. 190) já se posicionava neste sentido:
O mandado de injunção não tem por objecto uma pretensão a uma emanação,
a cargo do juiz, de uma regulação legal complementadora com eficácia “erga
omnes”. O mandado de injunção apenas viabiliza, num caso concreto, o exer-
cício de um direito ou liberdade constitucional perturbado pela falta parcial de
lei regulamentadora. Se a sentença judicial pretendesse ser uma normação com
valor de lei ela seria nula (inexistente) por usurpação de poderes.
Paulo e Alexandrino (2016), a respeito da teoria individual, entendem que a deci-
são proferida na injunção deva produzir efeito inter partes, ou seja, somente para o
autor do mandado de injunção, não estendendo os efeitos da decisão para outrem.
Esta teoria ainda é subdividida, pela doutrina, em outras duas: direta
e intermediária.

5.1.2.2.1 ∙ Teoria concretista individual direta


Para a teoria concretista individual direta, a decisão já confere a viabilização
do direito fundamental de pronto, sem abrir prazo ao órgão competente para
regulamentar a norma, ou seja, assim que julgado procedente o writ injuncional,
a sentença confere ao impetrante a eficácia da norma constitucional pleiteada,
conforme leciona Bulos (2015).
Segundo Moraes (2015), o escopo desta teoria é a imediata implementação
da eficácia da norma constitucional ao autor, logo que se julgar procedente o
mandado injuncional.
No mesmo sentido entendem Paulo e Alexandrino (2016), ao ensinarem que
nesta teoria, quando a decisão judicial é procedente à ação injuncional, concretiza-se
de forma direta e imediata a eficácia da norma constitucional apenas ao impetrante.
Fernandes (2016, p. 596), ao tratar sobre a teoria concretista individual direta,
de maneira concisa assevera: “é a corrente que sustenta que o Poder Judiciário deve
viabilizar (implementar) o direito de forma imediata (de plano)”.
Percebe-se, pelas definições dos autores, que não é necessário comunicação ou
recomendação ao Poder Público omisso, viabilizando-se diretamente o direito no
caso concreto, ou seja, estabelecendo-se o mérito entre o impetrante e a lacuna da
norma originária da ação.

379
5.1.2.2.2 ∙ Teoria concretista individual intermediária
Com um enfoque mais moderno, nesta teoria, assim como na não concretista, o
Poder Judiciário, ao julgar procedente o mandado de injunção, informa a omissão
da norma regulamentadora ao Poder Público; todavia, abre-se prazo para que o
Legislativo cumpra sua função típica e edite a norma faltante. Ultimado o prazo, o
impetrante terá seu direito assegurado (BULOS, 2015).
Paulo e Alexandrino (2016) comentam que, julgado procedente o mandado de
injunção, não há a imediata concretização do direito, liberdade ou prerrogativa
constitucional para o autor da ação, mas sim o estabelecimento de um prazo para
que se supra a norma faltante; e somente após esse prazo, caso persista a omissão
legislativa, estaria o Poder Judiciário autorizado a estabelecer as regras necessárias
à viabilização do exercício do direito pleiteado ao autor da ação.
Com a edição da Lei n. 13.300/2016, ficou regulamentado o processamento e
julgamento da injunção, e, no inciso I do art. 8º, o legislador afirma que, se reco-
nhecida a mora pelo Judiciário, este determinará prazo para que o impetrado
(legislador) edite a norma regulamentadora. Permanecendo a inércia após o prazo,
o impetrante passaria a possuir direito subjetivo e de forma definitiva a exercer o
direito objeto do mandado de injunção, conforme o caso concreto.
Este prazo não é definido, a lei menciona apenas prazo razoável, mas há uma
tendência de que seja, no mínimo, cem dias, prazo similar ao do processo legis-
lativo sumário, onde cada Casa Legislativa possui 45 dias para apreciar e votar o
projeto de lei, podendo ser o prazo prorrogado por mais 10 dias em favor da Casa
Iniciadora, quando o projeto tiver sofrido alterações materiais na Casa Revisora
(CAVALCANTE FILHO, 2016).
Moraes (2015) filia-se a esta posição idealizada pelo ministro Néri da Silveira,
afirmando que, ao estabelecer um prazo para que o Poder Público omisso possa
regulamentar a norma faltante, a teoria concretista individual intermediária se ade-
qua perfeitamente ao princípio da separação dos Poderes, haja vista que, somente
após ultimado o prazo estabelecido em decisão judicial, ou seja, depois da decla-
ração oficial da omissão legislativa, se persistir a inércia, o Poder Judiciário fixará
as condições necessárias ao exercício do direito pelo impetrante. Ressalta-se que o
citado autor entende que o prazo nunca poderia ser inferior ao do processo legis-
lativo sumário, pois, como ensina Cavalcante Filho (2016), o processo legislativo
sumário submete o projeto às mesmas fases previstas no procedimento comum
ordinário, mas com prazos constitucionalmente estabelecidos; exigir prazo inferior
a estes seria uma afronta ao princípio do devido processo legislativo.

6 ∙ O MANDADO DE INJUNÇÃO NO CASO CONCRETO


6.1 ∙ A EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL
O mandado de injunção vem evoluindo jurisprudencialmente ao longo desses
pouco mais de 28 anos da Constituição Cidadã. Levando em conta que o objetivo
geral deste estudo é simplificar a compreensão de tal remédio constitucional, enten-
demos ser mais didático explorar os três momentos em que o Supremo Tribunal
Federal adotou uma das correntes explicadas no item cinco deste artigo e os julga-
dos que o levaram a estes posicionamentos.
380
A primeira corrente adotada pelo STF foi a não concretista, e o marco deste
posicionamento foi o julgamento MI n. 107/DF, uma lide em que oficial do Exército
impetrou o writ contra o presidente da República, pois este não encaminhou, em
tempo hábil, ao Congresso Nacional projeto de lei que disciplinasse a duração dos
serviços temporários, conforme previa, antes da Emenda Constitucional n. 18 de
1998, o § 9º do art. 42 da Constituição Federal. O impetrante, à época, estaria há
nove anos nessa situação e, ao décimo ano, passaria à reserva das Forças Armadas,
conforme regulava a legislação pré-constitucional.
Com alicerce no princípio da separação dos Poderes e o princípio da demo-
cracia, a aplicação da teoria concretista foi afastada, visto que o Poder Judiciário,
neste caso, não detinha competência para decidir positivamente, ou seja, o Tribunal
firmou o posicionamento de mera decisão declaratória, a qual se limitava apenas a
reconhecer a omissão inconstitucional, informando ao legislador sobre a mora em
legislar e que era necessário proceder à elaboração da lei regulamentadora.
A maioria doutrinária criticou este posicionamento da Suprema Corte, por
ela ter interpretado de maneira restritiva os direitos fundamentais, acometendo a
máxima efetividade constitucional, conforme Fernandes (2016, p. 597) ensina:
Há forte crítica doutrinária sobre o entendimento esposado no MI nº 107/DF. Com
certeza com raríssimas exceções, a esmagadora doutrina constitucional e proces-
sual sempre criticou veementemente o posicionamento do Pretório Excelso. Entre
as críticas estão as que não concordam com a interpretação restritiva e amesqui-
nhada do writ em detrimento da máxima efetividade da Constituição.
Em breves comentários a respeito do primeiro posicionamento do Supremo
quanto ao mandado de injunção, afirma Bulos (2015, p. 791): “o mandado de injun-
ção, nos primeiros vinte anos de vigência da Carta de 1988, cumpriu, de modo
inglório, o seu papel”.
Ao julgar o Mandado de Injunção n. 232/RJ, relatado pelo ministro Moreira
Alves, sobre o art. 195, §7º, da Constituição Federal, que prevê isenção de contri-
buições para a seguridade social às entidades beneficentes de assistência social que
cumprem requisitos previstos em lei, decidiu que, se passado seis meses, e a norma
faltante não fosse elaborada, o requerente passaria a gozar da isenção prevista.
Moraes (2015, p. 189) menciona:
Também, de maneira excepcional, o STF adotou a posição concretista, para pro-
teger o direito constitucional previsto no art. 195, § 7º (“são isentas de contribui-
ção para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que
atendam às exigências estabelecidas em lei”) e desrespeitado pela inércia estatal.
No mesmo sentido, ao julgar o Mandado de Injunção n. 284/DF, relatado
pelo ministro Marco Aurélio, conferiu aos requerentes, independente de nova
comunicação ao Poder Legislativo, a mesma decisão proferida no Mandado de
Injunção n. 283/DF, pois ambos eram sobre o § 3º do art. 8º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, que dispõe acerca de uma reparação de natureza
econômica, conforme disposto em lei. Assim, prescindiu de nova comunicação ao
Legislativo e possibilitou a ingressão imediatamente com ação ordinária ou comum
para obter a reparação econômica prevista.
Mendes e Branco (2014, p. 1208) apontam que
as decisões proferidas nos Mandados de Injunção n. 283 (Rel. Sepúlveda
Pertence), 232 (Rel. Moreira Alves) e 284 (Rel. Celso de Melo) sinalizam para
381
uma nova compreensão do instituto e a admissão de uma solução “normativa”
para a decisão judicial.
Indicam, assim, a adoção da teoria concretista individual intermediária.
Menciona-se, também, que a Suprema Corte nacional adotou a posição concre-
tista individual direta, ao julgar os MI n. 721/DF e MI n. 758/DF, ambos relatados
pelo ministro Marco Aurélio e referentes à aposentadoria especial de que trata o
§ 4º do art. 40 da Constituição Federal. A Corte Máxima não abriu prazo e nem
comunicou previamente o Legislativo, viabilizando o direito constitucional por
uma aplicação do princípio da analogia e apenas determinou-se a comunicação ao
Congresso Nacional, posteriormente, a fim de que suprisse a omissão legislativa.
Sobre estes julgados, Bulos (2015, p. 792) comenta:
[...] julgou procedente pedido formulado em mandado de injunção para, de forma
mandamental, assentar o direito do impetrante à contagem diferenciada do tempo
de serviço em decorrência de atividade em trabalho insalubre (CF, art. 40, § 4º), ado-
tando como parâmetro o sistema de regime geral de previdência social, que dispõe
sobre a aposentadoria especial na iniciativa privada. (Lei n. 8.213/91, art. 57).
A respeito dessas sentenças concretizadoras tomadas pelo Supremo, Mendes e
Branco (2014) afirmam que isso é um indicativo de que a Suprema Corte admitiu a
possibilidade de uma regulamentação provisória editada pelo próprio Poder Judiciário,
sendo uma espécie de sentença aditiva, conforme denominação do direito italiano.
Após passar pelas correntes não concretista e concretista individual, o Supremo
Tribunal Federal, em 2007, ao julgar três mandados de injunção acerca do direito
de greve dos servidores públicos civis, adotou a teoria concretista geral, em um caso
marcante para o Direito Constitucional.
Inicialmente, conforme ensinam Mendes e Branco (2014), a posição do Supremo
Tribunal Federal quanto ao direito de greve dos servidores públicos civis era não
concretista, deixando de reconhecer o direito de greve dos servidores públicos civis
sob o argumento de que se tratava de norma de eficácia limitada e que não gozava
de autoaplicabilidade. Logo, o Poder Legislativo somente era exortado pelo Poder
Judiciário a suprir a omissão legislativa, não se admitindo concretizar o usufruto
do direito ora discutido, essa posição foi adotada no Mandado de Injunção n. 20,
relatado pelo Min. Celso de Mello, e ratificada nos MI n. 485 e n. 585/TO, relatados
pelos ministros Maurício Corrêa e Ilmar Galvão, respectivamente.
Posteriormente, no julgamento do Mandado de Injunção n. 631/MS, relatado
pelo ministro Ilmar Galvão, foi proposta pelo ministro Carlos Velloso a aplicação
das regras previstas na Lei n. 7.783/1989, que regulamenta o direito de greve dos
trabalhadores privados, no que couber, aos servidores públicos civis. Observa-se,
aqui, uma concretização do direito constitucional na forma individual e direta.
A posição do ministro Carlos Velloso observou os “parâmetros constitucio-
nais referentes à atuação da Corte como eventual legislador positivo” (MENDES;
BRANCO, 2014, p. 1209), fato que inspirou proposta de revisão do entendimento
até então adotado pelo Supremo.
Encontrava-se na Corte Máxima os Mandados de Injunção n. 670/ES e n. 708/DF,
relatados pelo ministro Gilmar Mendes, e o n. 712/PA, relatado pelo ministro Eros Grau,
todos tratando sobre o direito de greve dos servidores civis, um direito que vinha sendo
formalmente inviabilizado por mais de dezessete anos em face da inércia legislativa.

382
Mendes (2014, p. 1211), ao comentar o julgado do MI n. 670/ES, diz: “Tendo em
vista essa situação peculiar, entendi devesse recomendar a adoção explícita de um
modelo de sentença de perfil aditivo, tal como amplamente desenvolvido na Itália”.
O ministro Gilmar Mendes não defendeu uma postura legislativa positiva do
Poder Judiciário ao propor tal mudança, mas somente a concretização de um direito
que já estava havia mais de uma década mitigado pela inércia do Poder Público. Isso
porque, em um Estado Democrático de Direito, como o é o Brasil, o Judiciário pode
e deve censurar uma conduta omissiva do Legislativo, a fim de garantir que direitos
constitucionais sejam minimamente reconhecidos. Tal proteção judicial efetiva não
pode ser negligenciada.
Mendes disponibilizou trecho de seu voto, no MI n. 670/ES, no sentido de uma
sentença aditiva com eficácia erga omnes, ou seja, para todos os servidores:
[...] acolho a pretensão tão somente no sentido de que se aplique a Lei n. 7.783/1989
enquanto a omissão não seja devidamente regulamentada por Lei específica para
os servidores públicos.
Nesse particular, ressalto ainda que, em razão dos imperativos da continuidade
dos serviços públicos, não estou por afastar que, de acordo com as peculiaridades
de cada caso concreto e mediante solicitação de órgão competente, seja facultado
ao juízo competente impor a observância a regime de greve mais severo em razão
de tratar-se de “serviços ou atividades essenciais”, nos termos dos art. 10 e 11 da
Lei n. 7.783/1989.
Creio que essa ressalva na parte dispositiva de meu voto é indispensável por-
que, na linha do raciocínio desenvolvido, não se pode deixar de cogitar dos
riscos decorrentes das possibilidades de que a regulação dos serviços públicos
que tenham características afins a esses “serviços ou atividades essenciais” seja
menos severa que a disciplina dispensada aos serviços privados ditos “essenciais”.
Isto é, mesmo provisoriamente, há de se considerar, ao menos, idêntica confor-
mação legislativa quanto ao atendimento das necessidades inadiáveis da comu-
nidade que, se não atendidas, coloquem “em perigo iminente a sobrevivência, a
saúde ou a segurança da população” (Lei n. 7.783/1989, parágrafo único, art. 11).
(MENDES; BRANCO, 2014, p. 1213).
Ao julgar o MI n. 712, o ministro Eros Grau proferiu proposta semelhante à do
ministro Gilmar Mendes, a qual também foi sugerida como solução ao MI n. 708.
Em outubro de 2007, o Tribunal conheceu, por maioria, os Mandados de
Injunção n. 670, 712 e 708, propondo solução para a omissão legislativa, sob o forte
argumento de que ao Poder Legislativo não é facultado se concede ou não o direito
de greve, pois tal direito já foi concedido pela Constituição.
Assim, ficou afastado de vez o entendimento de que ao Judiciário competia ape-
nas dar ciência ao Legislativo.
Conforme Bulos (2015), reconheceu-se o equívoco jurisprudencial formando no
Min. 107/DF e que a interpretação restritiva do remédio constitucional não pode mais
prevalecer, sob pena de acabar com sua gloriosa função para a qual foi concebido.
O efeito erga omnes do mandado de injunção não foi unânime na Corte, sendo
o ponto de maior discussão. Mendes e Branco (2014) advogam que, embora o man-
dado de injunção tenha caráter subjetivo, a decisão deste procede a uma dimen-
são objetiva e deve ser estendida a todos aqueles que guardem similitude jurídica,

383
comportando, assim, uma eficácia erga omnes para que a decisão seja concretizada
a todos aqueles que demandarem em causas idênticas, independentemente de ser
uma omissão do Poder Público, uma conduta ou a despeito de uma determinada lei.
Fernandes (2016) aponta que esta posição do Supremo de eficácia erga omnes
vem ao encontro da propalada objetivação dos processos subjetivos, por uma série
de princípios, como o da celeridade e da economia processual.
Cavalcante Filho (2016) afirma que não há usurpação da função legislativa por
parte do Judiciário, haja vista que, apesar de decisão com efeitos erga omnes, estes
abrangem apenas a situação concreta, ou seja, mesma relação jurídica como base.
Observa-se que a evolução jurisprudencial da eficácia do mandado de injunção
passou por diversas correntes: não concretista, evoluindo para a teoria concretista
individual intermediária, posteriormente para a concretista individual direta e, por
fim, para concretista geral, no entanto cada corrente era adotada dependendo do caso
concreto, ou seja, havia certo temor jurídico acerca de que corrente o Supremo iria ado-
tar em cada caso, porém esta insegurança foi superada com a promulgação da Lei n.
13.300, de 23 de julho de 2016, que dispõe sobre o processo e o julgamento do mandado
de injunção e trata de maneira expressa sobre a eficácia da decisão na ação injuncional.

7 ∙ A LEI E A EFICÁCIA DA DECISÃO DO MANDADO DE INJUNÇÃO


7.1 ∙ EFICÁCIA DA DECISÃO À LUZ DA NORMA LEGAL N. 13.300/2016
Em seu art. 8º, a Lei n. 13.300/2016 tratou sobre a eficácia da decisão, adotando
como regra a corrente concretista individual intermediária, ou seja, reconhecido o
estado de mora legislativa, o juiz ou o Tribunal primeiramente fixará prazo razoável
para que o omisso edite a norma. Caso o prazo acabe, e a mora legislativa não tenha
sido suprida pelo impetrado, o Judiciário estabelecerá as condições em que se dará
o exercício do direito fundamental reclamado ou, se for o caso, as condições em que
o interessado poderá promover ação própria para usufruí-lo.
Moraes (2015), filiando-se a posição do ministro Néri da Silveira, indica como
prazo razoável 120 dias, sendo facultado ao julgador variar este prazo, porém nunca
fixando prazo menor que o prazo do processo legislativo sumário – até 100 dias.
Todavia, o parágrafo único desse mesmo artigo 8º possibilita a dispensa da fixação
do prazo se o impetrado já tiver deixado o prazo expirar sem editar norma regula-
mentadora em mandado de injunção anterior.
Conforme foi exposto anteriormente, a regra adotada pela lei quando a eficácia
subjetiva é a individual, ou seja, limitada às partes e no mandado de injunção cole-
tivo, é que a sentença também se limitará às pessoas integrantes da coletividade, do
grupo, da classe ou da categoria substituídos pelo impetrante. Entretanto, excep-
cionalmente, a legislação autoriza a eficácia ultra partes ou erga omnes, tanto para
o mandado de injunção individual como para o coletivo. O § 1º do art. 9º confere
essa exceção apenas quando a eficácia ultra partes for inerente ou imprescindível ao
exercício do direito, da liberdade ou da prerrogativa em discussão.
O mesmo art. 9º em seu § 2º autoriza a decisão monocrática do relator em casos
análogos de decisões já transitadas em julgado, fato que, como leciona Fernandes
(2016), já vinha sendo adotado pela jurisprudência desde o MI n. 795/DF em ques-
tão de ordem suscitada pelo então ministro Joaquim Barbosa.
384
7.2 ∙ SUPERVENIÊNCIA DA NORMA REGULAMENTADORA
A lei também trata das hipóteses em que o Poder Público supre a omissão legis-
lativa e edita a norma faltante. Se o mandado de injunção estiver em trâmite, e a
omissão é suprida antes de prolatada a decisão, este fica prejudicado e extingue-se
o processo sem resolução de mérito, conforme parágrafo único do art. 11. Por sua
vez, se, após julgado procedente o mandado de injunção, a norma regulamentadora
é editada, o impetrante terá sua situação regida pela lei superveniente.
Por fim, quanto aos efeitos jurídicos produzidos, o art. 11 é claro ao estabelecer
que a norma superveniente produzirá efeitos ex nunc em relação aos beneficiados
por decisão transitada em julgado, tendo como única exceção o caso em que a apli-
cação da norma editada lhes seja mais favorável.

8 ∙ CONCLUSÃO
O mandado de injunção é o remédio constitucional instituído pelo consti-
tuinte originário para defender a concretização de direitos, liberdades ou prerro-
gativas que este positivou na Constituição Federal da omissão do Poder Público.
Como mencionado em breve histórico da positivação da norma, a Carta de 1988
veio após um longo período de abusos do Estado, e a omissão de regular um
direito também é uma forma de abuso, o qual é combatido através do instru-
mento objeto deste estudo.
Observados ordenamentos jurídicos alienígenas, apontou-se a característica
pioneira e ímpar deste instituto no cenário do Direito Constitucional. Haja vista
que a atuação do mandado de injunção é restrita às normas de eficácia limitada que
não foram regulamentadas por legislação infraconstitucional, compreendemos que
foi explicada de maneira sucinta e eficiente a teoria da eficácia das normas jurídicas.
A Constituição Federal e a legislação conceituam muito bem o instituto do
mandado de injunção, restando-nos adentrar com mais profundidade no campo
do objeto, legitimidade, e finalidade do instrumento constitucional. Assim, a fim
de atender a uma parte do objetivo geral aqui proposto, utilizando linguagem des-
complicada e analisando diversas doutrinas com preceitos legais, ficou claro que o
objeto é uma norma constitucional de eficácia limitada que, quando negligenciada,
faz restar inviabilizado o exercício de direitos, liberdades ou prerrogativas consti-
tucionais a qualquer pessoa, natural ou jurídica, sendo esta o legitimado ativo, ao
passo que o legitimado passivo só poder ser o Poder Público responsável pela omis-
são, conforme pacificado pela lei. Também foi pacificado pela lei que a finalidade do
mandado de injunção não é só exortar a edição da norma faltante, mas precipua-
mente viabilizar o exercício de um direito fundamental sem regulamentação.
As teorias da eficácia da decisão do mandado de injunção são matéria de extrema
importância para o entendimento do assunto e consequentemente para o cumpri-
mento do objetivo deste trabalho. Assim, foi aprofundada e embasada na doutrina
dominante a explicação de todas as correntes: a não concretista, a qual assenta que
ao Poder Judiciário só cabe comunicar o Poder Público da inércia inconstitucional;
a concretista individual direta, na qual, assim que julgada procedente a injunção, a
decisão implementa eficácia sem prévia ciência ao Legislativo; a concretista indivi-
dual intermediária, que anota a fixação de um prazo para que o Poder competente
edite a norma faltante e, se o prazo expirar, possibilita que a decisão produza seus
385
efeitos concretizantes; e, por fim, a teoria concretista geral, que determina efeito
erga omnes às decisões judiciais, já implementando o exercício do direito.
Em uma abordagem histórica da evolução jurisprudencial acerca da eficácia do
mandado de injunção, têm-se três períodos claramente distintos e exaltados pela
doutrina. Em um primeiro momento a corrente adotada pela Corte Máxima era a
não concretista, evoluindo de forma tímida à concretista individual, intermediária
e direta; posteriormente, em uma quebra de paradigmas pela Corte Nacional, foi
adotada a corrente concretista geral. Atualmente, a Lei n. 13.300/2016 trata sobre
o tema e adota a teoria concretista individual intermediária como regra de eficácia
das decisões dos mandados de injunção, havendo uma única exceção, já abordada,
em que se aceita o efeito erga omnes das decisões.
Percebe-se, ao longo deste artigo, que a jurisprudência referente ao mandado de
injunção sofreu várias alterações. Aliado ao fato deste instituto ser único no orde-
namento jurídico internacional e ter sido apresentado pela Constituição Cidadã,
observamos que o Supremo Tribunal Federal foi aprendendo a lidar com ele e aper-
feiçoando sua interpretação e consequentemente sua jurisprudência sobre o assunto
a fim de que o mandado de injunção atingisse sua real finalidade, desejada pelo
constituinte originário, fato que serviu de inspiração ao se editar a lei que dispõe
sobre o mandado de injunção, a n. 13.300/2016.
Assim, entende-se que este trabalho ratifica a hipótese previamente apresentada,
de que “a evolução jurisprudencial e legal tornou mais viável o exercício do direito
fundamental previsto em norma de eficácia limitada aos seus titulares”, o que se tra-
duz como uma abordagem positivista do direito, no sentido de aproximar-se da ética.
Dessarte, conclui-se que este artigo chegou aos seus objetivos de forma satisfa-
tória ao analisar e descrever diversas teorias e pensamentos doutrinários acerca do
mandado de injunção, somando eles a evolução jurisprudencial e legal que existe
sobre o instituto. Abordou-se, assim, de forma inteligível os conhecimentos neces-
sários para que qualquer pessoa que não tenha familiaridade com o tema possa
entender tal remédio constitucional e sua aplicação de forma descomplicada, dei-
xando visível ao cidadão que o exercício do seu direito fundamental tem defesa no
caso concreto, no campo jurídico brasileiro.
Não ser atemporal é uma limitação que este artigo apresenta, haja vista que os
direitos fundamentais são limitados no espaço e no tempo, seus instrumentos de
defesa e a forma como são aplicados também sofrem mudanças no decorrer do
tempo; outrossim, não foi possível analisar algum julgado sob a ótica na novíssima
Lei n. 13.300, de 23 de julho de 2016, que disciplina o processo e o julgamento do
mandado de injunção. Isto posto, fica como sugestão para trabalhos futuros uma
releitura da jurisprudência e da legislação a fim de verificar se a posição apresen-
tada neste trabalho continua vigente e se, havendo alteração de posição, esta foi ao
encontro do direito e da ética.

REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 4. ed. São
Paulo: Saraiva, 2009.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

386
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.
BRASIL. Lei n. 8.038, de 28 de maio de 1990. Institui normas procedimentais para os
processos que especifica, perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal
Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8038.htm. Acesso
em: 12 abr. 2017.
BRASIL. Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/L8906.htm. Acesso em: 6 abr. 2017.
BRASIL. Lei n. 13.300, de 23 de junho de 2016. Disciplina o processo e o julgamento dos
mandados de injunção individual e coletivo e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13300.htm. Acesso em:
19 abr. 2017.
BRASIL. Senado Federal. Assembleia Nacional Constituinte (Atas de Comissões). Brasília.
Disponível em: http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf.
Acesso em: 22 mar. 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Omissões inconstitucionais (MI). Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaOmissaoInconsti
tucional. Acesso em: 15 abr. 2017.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Primeiros comentários à Lei 13.300/2016 (Lei
do Mandado de Injunção). Disponível em: http://www.dizerodireito.com.br/2016/06/
primeiros-comentarios-lei-133002016-lei.html. Acesso em: 19 abr. 2017.
CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Processo legislativo constitucional. 2. ed. Salvador:
JusPodivm, 2016.
DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 8. ed. Salvador:
JusPodivm, 2016.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito consti­
tucional. 9. ed. São Paulo. Saraiva, 2014.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 31. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 15.
ed. São Paulo: Método: 2016.
PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003.
PUCCINELLI JÚNIOR, André. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 8. ed. São Paulo:
Malheiros, 2012.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 38. ed. São Paulo:
Malheiros, 2015.
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

387
A PIRÂMIDE DE CONGRUÊNCIA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS COM A LINHA DA DIGNIDADE HUMANA
A materialização e a concretização da dignidade humana

José Pedro dos Reis1

Sumário: 1 Introdução. 2 A dignidade humana. 2.1 A dignidade humana subjetiva


e objetiva – A teoria do iceberg. 2.2 Materialização e concretização da dignidade
humana. 3 Os direitos fundamentais. 4 Degradação humana – Condições degradantes
ou degradáveis. 5 A pirâmide de congruência dos direitos fundamentais com a linha da
dignidade humana. 6 Condições agradáveis – Um novo conceito para novos direitos.
7 Considerações finais.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O princípio da dignidade humana é um tema árduo e espinhoso para ser tra-
tado em razão da sua noção conceitual aberta, indeterminada e imprecisa, que
é preenchida ou alterada em cada circunstância e momento social e histórico
vivido por um povo.
A ausência de um conteúdo exato e preciso do princípio da dignidade lhe atribui
um grande potencial dinâmico-atualizador, muito próximo ao das noções de con-
teúdo variável. Sendo um princípio dinâmico, abrangente e em constante evolução,
ele pressupõe e precede a relação de conhecimento, considerando a dificuldade em
se estabelecer uma relação exata entre o sujeito e o objeto de direito.
Por sua vez, a concepção atual do direito procura, como um dos principais obje-
tivos, reduzir as incertezas e as inseguranças jurídicas para que as pessoas possam
confiar no Estado e nas instituições, sabendo e esperando serem tratadas da mesma
forma entre elas, para que não haja desigualdade e exclusão social.
As normas jurídicas regem os comportamentos sociais, essa é a máxima que
se espera do Estado de Direito; os cidadãos confiam que no direito há a certeza
jurídica, porque positivados pelo Estado, evitando decisões contraditórias e
conflitantes para uma mesma temática e assegurando a confiança necessária
entre os agentes da justiça.
É o que afirma Hans Kelsen (2000, p. 279) sobre o princípio da segurança jurí-
dica: “[…] consiste no fato de a decisão do tribunal ser até certo ponto previsível
e calculável, em os indivíduos submetidos ao Direito se poderem orientar na sua
conduta pelas previsíveis decisões dos tribunais” (Grifo nosso).

1 Procurador do Trabalho. Pós-Graduando em Direito Constitucional Aplicado: Empresas, Estado e


Indivíduos diante da Interpretação Constitucional pela UNICAMP. Pós-Graduado em Direito Sanitá-
rio pela ESMPU/FIOCRUZ. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela ENAP.

389
Segundo J. J. Gomes Canotilho (2000, p. 256),
O homem necessita de segurança jurídica para conduzir, planificar e conformar
autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os
princípios da segurança jurídica e proteção à confiança como elementos constitu-
tivos do Estado de direito. Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção à
confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores consi-
derarem o princípio da proteção da confiança como um subprincípio ou como
uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a
segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurí-
dica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do
direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes
subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos
indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos. (Grifo nosso).
Dessa forma, constroem-se as expectativas do comportamento social previsível,
com o indivíduo sabendo que o direito dele é igual ao das demais pessoas. Conhecer
o conteúdo objetivo das normas jurídicas corresponde a ter uma certeza de como
agir, omitir, atuar e se comportar no ambiente social.
No Estado de Direito, o que se busca é a garantia contra o acaso, a tranquilidade
pessoal, psicológica, familiar e social, a confiança em que todos serão tratados de
forma igualitária, resultando na certeza e na segurança jurídica. O cidadão quer ter
a certeza e a segurança de que não há qualquer perigo a temer, de que está protegido
contra ameaças e injustiças.
Como bem destaca Dalmo de Abreu Dallari (1991, p. 179) a respeito da Decla­
ração de Direitos Humanos de 1948:
O exame dos artigos da Declaração revela que eram consagrados três objetivos
fundamentais: a certeza dos direitos, exigindo que haja uma fixação prévia e clara
dos direitos e deveres, para que os indivíduos possam gozar dos direitos ou sofrer
imposições; a segurança dos direitos, impondo uma série de normas tendentes
a garantir que, em qualquer circunstância, os direitos fundamentais serão res-
peitados; a possibilidade dos direitos, exigindo que se procure assegurar a todos
os indivíduos os meios necessários à fruição dos direitos, não se permanecendo
no formalismo cínico e mentiroso da afirmação de igualdade de direitos onde
grande parte do povo vive em condições subumanas. (Grifo nosso).
Assim, com base nesses pressupostos, neste artigo será oferecida uma proposta
de visualização mais perceptível de como ocorre a materialização dos direitos fun-
damentais e a consequente concretização do princípio constitucional da dignidade
humana, através da interligação simbiótica entre este princípio e aqueles direitos.
Os direitos fundamentais são imprescindíveis para a materialização da dignidade
humana. Quando se materializa um direito fundamental, está também se concreti-
zando a dignidade humana na vida do cidadão.
A realização efetiva dos direitos fundamentais é a única forma de acabarem, ou
diminuírem, as desigualdades e as exclusões sociais e se realizar a concretização
efetiva da dignidade humana.
A Constituição Federal de 1988 consagrou um amplo rol de direitos fundamen-
tais e os vinculou diretamente ao ideário da materialização e concretização da dig-
nidade humana. Assim, ao Estado brasileiro foi imposta a obrigação de atuar com o

390
objetivo de promover a materialização dos direitos fundamentais, devendo afastar
empecilhos que possam dificultar a sua implementação.
A fim de tornar clara a proposta, utiliza-se uma figura geométrica bem conhecida,
a da pirâmide, sugerindo-se a Pirâmide de Congruência dos Direitos Fundamentais
com a linha da Dignidade Humana Plena. Trata-se de uma maneira didática de se
demonstrar a estreita correlação do princípio da dignidade humana com os demais
direitos, considerando que, em síntese, quando um dos direitos fundamentais é
atingido, ao mesmo tempo, incondicionalmente, a dignidade humana também o
será, pois foi criada uma situação de desigualdade e exclusão social com a negação
daquele direito; com isso, há ofensa, de forma incontestável, à dignidade humana.
Observe-se, também, que o que se trata aqui é do princípio da dignidade
humana, fundamento da República Federativa do Brasil e também presente nos
tratados, nas declarações e nas convenções internacionais, no seu aspecto jurídico;
portanto, que exige uma materialização e concretização para se evitar tratamento
diferenciado entre os cidadãos.
O sentimento subjetivo de dignidade ligado à moral interna, própria de cada
pessoa, como sentimento individual, não pode e nunca será transformado em um
padrão igual para todos, pois o ser humano, com seus valores, suas crenças, suas
culturas, suas visões de mundo, não tem como ser definido cartesianamente. Essa é
a beleza do ser humano, um ser indescritível e maravilhoso!
Diante disso, incontestável que a dignidade humana é um sentimento infinito
dentro do ser humano; entretanto, uma parte ínfima desse sentimento é protegida
pelo direito positivado, aquela parte visível, como a de um iceberg, que tem outra por-
ção enorme e desconhecida dentro da água, dentro dos mistérios da mente humana.
Assim, essa pequena parte visível de direitos individuais, passível de ser nor-
matizada, foi disponibilizada pela pessoa para a possível convivência social. Essa
alienação de direitos de todos indivíduos para o bem comum precisa ser materiali-
zada para que possa haver a igualdade social. E essa materialização se dá através dos
direitos fundamentais positivados respeitados e garantidos a todas pessoas.
Afinal foi para isso que o ser humano cedeu seus direitos originários ao Estado,
conforme histórica e valiosa obra de Rousseau sobre o contrato social (2002, p. 22):
“Antes, portanto, de examinar o ato pelo qual o povo elege um rei, seria bom exami-
nar o ato pelo qual o povo é um povo, porque este ato, sendo necessariamente anterior
ao outro, constitui o verdadeiro fundamento da sociedade” (Grifo nosso).
E mais,
Convém que tudo quanto cada qual aliene em virtude do pacto social de seu
poder, de seus bens, de sua liberdade, seja apenas a parte cujo uso interesse
à sociedade [...] Os empenhos que nos ligam ao corpo social só são obrigató-
rios pelo fato de serem recíprocos [...] Porque é sempre reta a vontade geral, e
por que desejam todos, constantemente, a felicidade de cada um, se não pelo
fato de não haver quem não se aproprie dos termos de cada um e não pense
em si mesmo ao votar por todos? Isso prova que a igualdade de direito e a
noção de justiça que aquela produz derivam da preferência que cada qual se
atribui, e, por conseguinte, da natureza do homem, que a vontade geral, por
ser realmente conforme, deve existir no seu objeto, bem como na sua essência;
que deve partir de todos, para a todos ser aplicada; e que perde sua retidão

391
natural quando tende a algum objeto individual e determinado, porque então,
julgando do que nos é estranho, não temos nenhum real princípio de equidade
a conduzir-nos. (ROUSSEAU, 2002, p. 43-44).
Aliás, a estabilidade jurídica leva à preservação do sistema, e o papel da justiça
é se inserir profundamente no pacto original e ir até a essência do espírito constitu-
cional com o objetivo de buscar essa estabilidade social, e isso só pode ocorrer com
regras, definições e abrangências claras dos direitos e princípios constitucionais.
E é por isso, em razão de normas jurídicas bem definidas, bem interpretadas e
delineadas, que as pessoas sabem se guiar, sabem como agir, como prever e exigir
comportamentos sociais alheios. A clareza na definição dos princípios e normas
jurídicas tem por objetivo atender expectativas comportamentais, padrões sociais e
um ideal mínimo de ética. De acordo com Araújo (2016, p. 157),
O Direito é entendido como instrumento de estabilização das necessidades sociais
daquele conjunto de pessoas unidas pelo vínculo jurídico da cidadania (por esta-
rem sujeitas a uma entidade superior que “domina” um território), mas que deve
ser orientado muito mais por uma compreensão específica do ser humano como
sujeito dotado de dignidade e de capacidade de relacionar-se tanto com outras
pessoas quanto com as instituições postas à sua disposição para a realização das
ações cotidianas. (Grifo nosso).
A humanidade vive hoje em meio a uma pandemia causada pelo Coronavírus
e, neste momento histórico, difícil e inesperado, novos direitos fundamentais estão
surgindo com mais força, e outros se firmando, tais como os princípios da precau-
ção, da proteção e da solidariedade intergeracional, daí surge, também, outra razão
para se rever a noção conceitual do termo dignidade humana na esfera jurídica.

2 ∙ A DIGNIDADE HUMANA
A dignidade humana encontra-se, na sua origem, situada como imperativo
superior pré-jurídico, por exprimir, antes de tudo, um valor intrínseco da pes-
soa. E esse é o ponto principal, pois o valor do ser humano é insuscetível de ser
determinado, definido, delimitado e demonstrado no mundo dos fatos. Não há
como valorar materialmente uma pessoa ou a extensão e abrangência do seu
sentimento de dignidade.
Sófocles afirma essa posição humana em sua grandiosa obra Antígona ao colocar
o ser humano como o maravilhoso entre todas as maravilhas (apud MASSAÚ, 2013).
A noção de dignidade humana, em decorrência da sua imprecisão, é um conceito
que envolve inúmeras interpretações. A evolução do termo acompanha a história da
humanidade: antes, afeto a poucas pessoas e cargos, o dignitas atis; depois, para
uma qualidade universal, inalienável, irrevogável para todos os indivíduos.
Foi no humanismo que se estabeleceu e se enriqueceu a noção moderna da pes-
soa como indivíduo autônomo, independente e secular, vinculando-se a noção de
dignidade a esses atributos.
Nesse sentido, brilhante acórdão do ministro do STF Eros Grau:
Tem razão a arguente ao afirmar que a dignidade não tem preço. As coisas têm
preço, as pessoas têm dignidade. A dignidade não tem preço, vale para todos quan-
tos participam do humano. Estamos, todavia, em perigo quando alguém se arroga

392
o direito de tomar o que pertence à dignidade da pessoa humana como um seu
valor (valor de quem se arrogue a tanto). É que, então, o valor do humano assume
forma na substância e medida de quem o afirme e o pretende impor na qualidade
e quantidade em que o mensure. Então o valor da dignidade da pessoa humana
já não será mais valor do humano, de todos quantos pertencem à humanidade,
porém de quem o proclame conforme o seu critério particular. Estamos então
em perigo, submissos à tirania dos valores. [...] Sem de qualquer modo negar o
que diz a arguente ao proclamar que a dignidade não tem preço (o que subscrevo),
tenho que a indignidade que o cometimento de qualquer crime expressa não pode
ser retribuída com a proclamação de que o instituto da anistia viola a dignidade
humana. [...] O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afir-
mar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que
praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o
regime militar, esse argumento não prospera. (ADPF 153, voto do rel. min. Eros
Grau, j. 29-4-2010, p. DJE de 6 ago. 2010). (Grifos nossos).
A dignidade humana não pode ser criada, concedida, achada, perdida, com-
prada ou vendida, ela é inerente a todos seres humanos, já existe na própria pessoa,
independente de raça, cor, sexo, idade, língua, classe social, estatura ou integridade
psíquica ou física. Ela é intrínseca do ser humano, queira ele ou não.
A dignidade humana, na sociedade moderna e nos estatutos jurídicos, é o reco-
nhecimento social de que toda pessoa é merecedora de direitos mínimos garantidos
constitucionalmente e de tratamento sempre igual entre os demais iguais.
Além do elemento finalístico do homem como um fim em si mesmo, como causa
da dignidade humana, o segundo elemento que compõe a dignidade é a autonomia
da vontade, considerada o princípio supremo da moralidade, conforme o filósofo
Kant (apud RIBEIRO, 2012).
Ainda de acordo com Kant (apud RIBEIRO, 2012), o dever puro é o respeito
à lei universal:
Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei [...] Só pode ser objeto de res-
peito e, portanto, mandamento aquilo que está ligado à minha vontade somente
como princípio e nunca como efeito, não aquilo que serve de inclinação, mas que
a domina ou que, pelo menos, a excluí do cálculo na escolha, quer dizer a simples
lei por si mesma. [...] nada mais resta à vontade que a possa determinar do que
a lei objetivamente e, subjetivamente, o puro respeito por esta lei prática, e por
conseguinte à máxima que manda obedecer a essa lei, mesmo com prejuízo de
todas as minhas inclinações. (Grifo do original).

2.1 ∙ A DIGNIDADE HUMANA SUBJETIVA E OBJETIVA – A TEORIA


DO ICEBERG
Como se observa, há muita dificuldade em se definir e se delimitar o princípio
da dignidade humana, por estar intrinsecamente ligado ao ser humano, por ter uma
aparente abstração, pela sua generalidade e pela sua indeterminação, ocasionando
um vazio quando visualizado em termos absolutos em relação ao direito material.
A dignidade humana é um sentimento integrado a cada pessoa, ela tem uma
grande porção interna, subjetiva, e uma parte objetiva que o direito regula, que
pode ser materializada e consolidada no mundo material, pois essa pequena parte é
a que a pessoa cedeu para a constituição da sociedade.

393
Didaticamente, comparo a dignidade humana individual a um iceberg (teoria
do iceberg), no qual a parte visível, fora da água, é a parte concreta, palpável,
cedida pelo ser humano para a formação da sociedade, conforme Rousseau des-
creve em O Contrato Social, e deve ser protegida pelo direito positivado. Essa
parte externa do iceberg, que representa a dignidade do indivíduo nas relações
sociais, é a porção que deve ser tratada em iguais condições aos demais “icebergs”,
ou seja, as demais pessoas.
Abaixo da linha d’água (no âmago do ser humano), estão presentes todos os
direitos e interesses não universalizáveis; e acima, na superfície, exteriorizados,
aqueles que garantam a todos indivíduos as mesmas liberdades formais.
Na sociedade, essa última é a parte que deve ser padronizada para um trata-
mento igualitário entre todos indivíduos iguais, enquanto a parte interna da dig-
nidade humana (parte submersa do iceberg) – invisível, indecifrável, em razão da
diferença entre cada ser humano – tem uma forma, um jeito, um valor, é um local
impenetrável dentro do ser e da verdade de cada um, com suas crenças, suas con-
vicções, seus valores individuais, que o direito não deve e não tem como traçar um
ordenamento jurídico para igualar tratamentos. Até porque, estando no âmago de
cada um, o direito não tem como decifrar e tornar igual para todos.
Outra conclusão importante que se tira dessa análise da dignidade humana
como um iceberg se refere àqueles direitos fundamentais que surgem em determi-
nada época histórica em razão da necessidade social de se positivá-los.
Alguns valores humanos, embora tenham uma certa generalidade e aceitação
por parte da sociedade, acabam sendo sufocados dentro do indivíduo em razão
da cultura, das crenças, das posições políticas e do desinteresse social naquele
momento; entretanto, essa condição pode mudar, e essa parte interna, que se
torna uma demanda de um grupo grande ou uma necessidade social, vem à tona
e precisa ser normatizada para que todos se beneficiem e se submetam à nova
regra. É o caso da autodeterminação sexual, que por muitos anos ficou reprimida
dentro da parte submersa da dignidade humana e agora veio à tona e foi conside-
rada como um direito fundamental, bem como a autodeterminação informativa,
além de outros comportamentos sociais que se tornaram direitos fundamentais
positivados e reconhecidos.
Assim, quando uma parte interna desse iceberg, dessa dignidade humana invi-
sível, vem à tona pela aceitação social daquele comportamento, como os menciona-
dos, ela precisa ser regulamentada para ter igual aplicação para todos.
O Estado deve focar seus olhares para a parte objetiva da dignidade huma-
na, aquela que precisa ser materializada e consolidada socialmente em face do
contrato social.
O ser humano é o ator principal no Estado de Direito e no sistema normativo, e
a busca da satisfação de sua dignidade plena é o seu bem maior.

2.2 ∙ MATERIALIZAÇÃO E CONCRETIZAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA


A dignidade humana é protegida pelo ordenamento jurídico como um valor
supremo que, em sua essência, agrega todos os direitos fundamentais.

394
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), ideal comum a todos
os povos, em seu preâmbulo, dispõe, em síntese, ser dever de todos promover e
respeitar esses direitos e liberdades, através de medidas progressivas de caráter
nacional e internacional, assegurando seu reconhecimento e sua observância uni-
versal e efetiva para todos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos já em seu preâmbulo afirma:
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros
da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o funda-
mento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;
[...]
Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo,
a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa
humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resol-
vidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida
dentro de uma liberdade mais ampla; [...]. (Grifos nossos).
E, em seu artigo 1º, dispõe assim: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para
com os outros em espírito de fraternidade” (Grifo nosso).
Nossa Constituição Federal, logo no art. 1º, III, ao tratar dos Princípios
Fundamentais, cita como um de seus fundamentos a dignidade humana.
Dessa forma, ao decidir o constituinte originário elencar a dignidade humana
entre os fundamentos da República brasileira, obriga que esse princípio assuma,
além da função principiológica, a função de regra jurídica. Por isso a importância
de sua materialização e concretização no sistema normativo.
José Afonso da Silva (2007, p. 38) esclarece que “se é fundamento é porque se
constitui num valor supremo, num valor fundante da república, da federação, do
país, da democracia e do direito”. E, por isso, em razão dessa importância destacada
pelo mestre José Afonso, todos os direitos fundamentais são coadjuvantes da digni-
dade humana para a formação do ser em toda sua essência.
Essa intimidade e interação da dignidade humana com os direitos fundamentais
faz com que haja ofensa contra ela toda vez que um desses direitos é desrespeitado,
in re ipsa. Não há como atingir a dignidade humana, no aspecto jurídico, de forma
direta; isso só acontece quando há desrespeito a outro direito fundamental.
Ao mesmo tempo, toda vez que um direito fundamental é garantido ao cidadão,
a dignidade humana é materializada através dessa garantia.
Conforme Moraes (2019, p. 297),
Os direitos fundamentais não devem existir apenas em um plano teórico ou
semântico, é necessário adotar critérios de ordem material sobre esses direitos
para possibilitar sua promoção e seu exercício pelo Estado. Também classifica-
dos como direitos autoaplicáveis, é de suma importância que sejam avaliadas as
omissões do Estado, em todos os seus Poderes, sobre o seu exercício.
Nesse sentido, Sarlet (2007b, p. 383) bem define a dignidade da pessoa humana como
a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comuni-
dade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais

395
que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para
uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-res-
ponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais
seres humanos. (Grifo do original).
A dignidade humana é a pedra angular nos direitos fundamentais e configura o
mínimo existencial necessário em um Estado social de direito.
Diversas pessoas de variadas formações acadêmicas, inclusive do próprio direito,
afirmam que só conseguem ver a dignidade humana sendo ofendida quando pre-
senciam algo que lhes “salta aos olhos”. É preocupante esse tipo de subjetividade
porque assim depende do olho de cada um definir o que é dignidade humana,
finda que diversos olhares possam causar grande desigualdade social. Por isso a
necessidade de se demonstrar como se materializa e concretiza no mundo jurídico e
fenomênico o que seja dignidade humana no seu aspecto jurídico para evitar inter-
pretações equivocadas que se distanciem da realidade social esperada.
Sarlet (2007b, p. 379) entende que “a busca de uma definição necessariamente
aberta, mas minimamente objetiva impõe-se justamente em face da exigência de
um certo grau de segurança maior e estabilidade jurídica”.
Quando as regras não são claras e objetivas para a harmonia e a igualdade no
convívio em sociedade, coloca-se o contrato social em risco. Conforme o grande
Rousseau (2002, p. 24), na sua festejada obra sobre o contrato social, afirma:
As cláusulas deste contrato são de tal modo determinadas pela natureza do ato,
que a menor modificação as tornaria vãs e de nenhum efeito; de sorte que, con-
quanto jamais tenham sido formalmente enunciadas, são as mesmas em toda
a parte, tacitamente admitidas e reconhecidas, até que, violado o pacto social,
reentra cada qual em seus primeiros direitos e retoma a liberdade natural, per-
dendo a liberdade convencional pela qual ele aqui renunciou.
Conforme acórdão proferido pelo ministro do STF Celso de Melo, ao tratar
sobre a dignidade humana, afirma-se que esta
serve de parâmetro para a aplicação, interpretação e integração não apenas dos
direitos fundamentais e do restante das normas constitucionais, mas de todo o
ordenamento jurídico, imprimindo-lhe, além disso, sua coerência interna. Esta
eficácia de natureza jurídico-objetiva não se restringe a estes aspectos, assumindo
ainda maior relevância quando se verifica que o princípio da dignidade da pessoa
humana constitui, na verdade, uma norma legitimadora de toda a ordem estatal e
comunitária, demonstrando, em última análise, que a nossa Constituição é acima
de tudo, a Constituição da pessoa humana por excelência. Neste sentido, cos-
tuma afirmar-se que o exercício do poder e a ordem estatal em seu todo apenas
serão legítimas caso se pautarem pelo respeito e proteção da dignidade da pessoa
humana. Assim, a dignidade constitui verdadeira condição da democracia, que
dela não pode livremente dispor.
[...] A cláusula da reserva do possível – que não pode ser invocada, pelo poder
público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a imple-
mentação de políticas públicas definidas na própria Constituição – encontra
insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que
representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do
postulado da essencial dignidade da pessoa humana. [...] A noção de “mínimo
existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos consti-

396
tucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerro-
gativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas
de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito
geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado,
viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direi-
to à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o
direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à
alimentação e o direito à segurança (Declaração Universal dos Direitos da
Pessoa Humana, de 1948, art. XXV). (ARE 639.337 AgR, rel. min. Celso de
Mello, j. 23-8-2011, 2ª T, DJE de 15 set. 2011, grifos nossos).
As agressões aos princípios da dignidade humana, da igualdade e da não discri-
minação são efeitos imediatos do descumprimento de um direito fundamental no
mundo dos fatos, quando uma pessoa se sente desigual, discriminada ou excluída
é porque lhe foi retirado, ou negado, um direito que as demais pessoas detêm. Não
há como agredir de forma direta um desses princípios, da dignidade, da igualdade,
a não ser por meio do desrespeito e negação de outro direito no mundo material.

3 ∙ OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
O constitucionalismo, como instrumento supremo de limitação dos poderes do
Estado, está inerente e historicamente ligado aos direitos fundamentais.
Nas sábias palavras do ministro Marco Aurélio, do STF: “Os direitos fundamen-
tais são a parte mais importante do projeto constitucional de 1988, envolvidos os
valores liberdade, igualdade e dignidade. E a concretização desses direitos tem sido
a principal missão do Supremo”.2
Os direitos e as garantias fundamentais são valores que tiveram um alto custo
para a humanidade, por isso eles merecem compor o texto normativo constitu-
cional, que é o documento de maior valor, hierarquicamente superior, normativo
supremo em um ordenamento jurídico.
A inconteste evolução que o Direito Constitucional alcançou é fruto, em grande
medida, da aceitação dos direitos fundamentais como cerne da proteção da digni-
dade da pessoa e da certeza de que inexiste outro documento mais adequado para
consagra os dispositivos assecuratórios dessas pretensões do que a Constituição.
(MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 265, grifo nosso).
Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concer-
nentes às pessoas que, do ponto de vista do direito constitucional positivo,
foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido mate-
rial), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de
disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem
como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparadas,
agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição
formal. (SARLET, 2007a, p. 85).
Os direitos humanos fundamentais, por suas características estruturantes, for-
madoras e organizadoras da sociedade, são a matéria prima, os tijolos para a cons-
trução de um país democrático, e, por sua vez, a dignidade humana é a argamassa, o

2 Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, ao se pronunciar, em nome dos
ministros do STF, na sessão solene em homenagem aos 30 anos da Constituição Federal de 1988.

397
cimento, que une esses tijolos para a formação do ser humano em toda sua essência,
abrindo seu caminho pelo tapete da vida até sua autorrealização pessoal e social.
Miranda (2000, p. 180) afirma:
A constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prá-
tica ao sistema de direitos fundamentais, que, por sua vez, repousa na dignidade
da pessoa humana, isto é, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da
sociedade e do Estado.
E, por sua vez, Coelho (2009, p. 218) enuncia que “não há dúvida que os
direitos fundamentais […] são influenciados e tocados pelo primado da digni-
dade da pessoa humana”.
Os direitos fundamentais gravitam em torno da dignidade humana, sendo dessa
sempre interdependentes, inter-relacionados, entrelaçados, unidos, imbricados de
maneira indelével. A dignidade humana é o tronco do qual derivam os demais
direitos humanos fundamentais.
De acordo com Santos (2013, p. 27),
Como referência e ocupando posição central do Direito, encontra-se o ser humano,
sendo que sua dignidade é um bem maior a servir de referência e estrutura a todos
os direitos fundamentais, à autonomia individual e a personalidade de cada
indivíduo, funcionando essa dignidade como fundamento e limites dos direitos
indispensáveis. (Grifo nosso).

4 ∙ DEGRADAÇÃO HUMANA – CONDIÇÕES DEGRADANTES


OU DEGRADÁVEIS
A degradação humana está sempre relacionada ao descumprimento de uma
norma positivada.
Um meio ambiente de trabalho insalubre ou periculoso é um local onde há a
degradação pelo desrespeito às normas de segurança e saúde. Um mendigo é uma
pessoa que se encontra em condições degradantes em razão de que quase todos seus
direitos fundamentais estão lhe sendo negados pelo Estado e pela sociedade.
A palavra degradação tem sua origem etimológica no latim degradus, que signi-
fica degrau, ou grau, ou ainda, diferentes níveis de uma escada.
Conforme o Dicionário Online de Português (Dicio), que é considerado o
maior e mais completo dicionário de português contemporâneo, o significado
de degradáveis é:
Degradáveis vem do verbo degradar. O mesmo que: humilháveis, deterioráveis,
destituíveis, exiláveis, expatriáveis, ablegáveis, baníveis, desterráveis.
Significado de degradar – Deixar de ter dignidade; rebaixar-se: a indignidade
degradou-a; degradou-se com o uso de drogas [...] Punir com exílio; banir: o dita-
dor degradou o militante. (Grifos nossos).
Da mesma origem advém a palavra degredo, que era uma pena de exílio equiva-
lente à exclusão social completa do indivíduo punido, o qual era banido de seu país.
No caso da pena de degredo, do condenado eram retirados todos os seus direitos
e garantias, ficando com apenas um direito, o da vida, chegando-se ao extremo de
até o ar que respirava naquele local lhe ser negado, já que era exilado para outro país.

398
A dignidade e a degradação humana ocupam posições antagônicas no sis-
tema normativo.
Não há como simultaneamente uma pessoa ter dignidade plena, situação exce-
lente e desejada na qual tem garantidos todos direitos, e estar em condições degra-
dantes, quando lhe são negados os direitos; ou se tem uma, ou se tem outra situação.
Também se pode chegar até a uma degradação humana diferida, que ocorre, por
exemplo, quando um empregador não assina a carteira de trabalho do seu empre-
gado; futuramente, quando esse empregado for tentar se aposentar, ou necessitar de
outro benefício previdenciário, certamente lhe será negado o direito, em razão de
o empregador não ter recolhido sua contribuição para Previdência Social quando
deveria; e, portanto, não vai poder usufruir desses direitos, por isso diferida a
degradação. O ato cometido agora só vai trazer reflexos negativos no futuro.

5 ∙ A PIRÂMIDE DE CONGRUÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


COM A LINHA DA DIGNIDADE HUMANA
Diante da importância da preservação e do respeito aos direitos fundamentais
e à dignidade humana por todas as pessoas e instituições, em uma sociedade orga-
nizada em Estado Democrático de Direito, neste artigo é apresentada uma tentativa
teórica de demonstrar como se materializa e se concretiza no mundo jurídico o
princípio da dignidade humana previsto constitucionalmente.
Utilizando-se de forma simbólica a figura de uma pirâmide, semelhantemente à
pirâmide de Kelsen da hierarquia das normas ou à pirâmide de Maslow sobre a hie-
rarquia das necessidades humanas, apresenta-se na Figura 1, a seguir, o diagrama
da pirâmide de congruência dos direitos fundamentais com a linha da dignidade
humana, na qual, em seu apogeu, está a linha da dignidade humana.
Assim, figurativamente, se busca demonstrar que o ser humano só estará
esplendidamente no topo piramidal, com sua dignidade humana plena respeitada,
materializada e concretizada, quando a ele forem garantidos e efetivados, de fato, no
mundo real todos os direitos fundamentais; por isso, estes direitos formam a base,
o alicerce de todos os degraus da pirâmide ora proposta.
Na pirâmide de congruência dos direitos fundamentais, esses direitos gravitam
em torno da dignidade humana e em sua direção, na mesma linha do que afirma o
ministro Marco Aurélio Mello, do STF:
Ao lado da estruturação do poder e da limitação diante da soberania popular,
o constituinte deu especial ênfase à disciplina dos direitos fundamentais, todos
gravitando em torno da dignidade da pessoa humana. [...] Há destaque para a
rica jurisprudência sobre aquele que é tido como o centro normativo e axiológico
do sistema constitucional de direitos fundamentais: o princípio da dignidade da
pessoa humana.3 (Grifos nossos).
Os direitos fundamentais formam os degraus da figura piramidal, conside-
rados em sua essência, em sua importância para a formação de uma sociedade
justa, igualitária e solidária.

3 Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, ao se pronunciar, em nome dos
ministros do STF, na sessão solene em homenagem aos 30 anos da Constituição Federal de 1988.

399
Fonte: próprio autor.
Observações sobre a Figura 1:
1. A demonstração dos direitos fundamentais em forma do diagrama de uma
pirâmide é apenas para visualizar, de forma mais clara e objetiva, a LINHA
DA DIGNIDADE HUMANA e como ocorre a sua MATERIALIZAÇÃO, sua
EVOLUÇÃO e sua DEGRADAÇÃO. Não há hierarquia entre os direitos funda-
mentais em razão de serem: inalienáveis, imprescritíveis, irrenunciáveis, univer-
sais, invioláveis, interdependentes e inter-relacionados.
2. A LINHA DA DIGNIDADE HUMANA é dinâmica e evolutiva, a cada novo
direito fundamental aceito pela sociedade e acrescido na vida das pessoas, ela
se desloca sempre para cima, em razão do princípio da proibição do retrocesso
social. O desenho da Pirâmide vai se abrindo até o infinito.
3. CONDIÇÃO AGRADÁVEL OU AGRADANTE: acréscimo de novos direitos
à PIRÂMIDE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, novos degraus. Exemplos
recentes: direito fundamental à autodeterminação sexual, do ciberespaço, da
Bioética etc. É um conceito novo que se opõe à condição degradável, ou degradante.
4. CONDIÇÃO DEGRADÁVEL OU DEGRADANTE: ocorre quando há a
negação de um direito ao indivíduo. Em consequência, essa pessoa para

400
a qual o direito foi negado desce degraus na PIRÂMIDE DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS, afastando-se da LINHA DA DIGNIDADE HUMANA
garantida constitucionalmente.
5. Se todos os demais direitos fundamentais forem negados à pessoa, exceto o direito
à vida, teremos a sua degradação total e a exclusão social ao extremo. Equipara-se
à pena de degredo ou degrado (do latim degradus, do francês degrés, significando
também degraus ou graus).
Como referido, trata-se aqui de uma maneira didática de demonstrar a tese da
materialização e concretização do princípio da dignidade humana, ou seja, a cada
direito fundamental respeitado, a pessoa se aproxima mais da linha da dignidade
humana plena; ao contrário, a cada negação de um direito, se aproxima mais da
degradação humana plena.
Não há, nessa proposta, a intenção de usar a figura geométrica da pirâmide
no sentido de hierarquia ou superioridade, mas somente a de organizar mental e
didaticamente os direitos fundamentais em um formato visual capaz de demons-
trar, ao final, que, acima de todos os direitos e entrelaçados com eles, está o direito
à dignidade humana, posicionado, na sua plenitude, no ápice da pirâmide de
congruência dos direitos fundamentais com a linha da dignidade humana plena.
Só quando esse ápice for atingido é que o Estado terá cumprido sua promessa
constitucional ao cidadão integralmente.
Como bem observa Cerroni (1990, p. 21):
A democracia que o liberalismo prefere tende sempre a ser uma democracia
mínima, substancialmente ancorada nas trincheiras do processualismo e do
formalismo jurídico construídos em defesa de uma pirâmide garantista que no
seu vértice tem o indivíduo privado já emerso acima das dificuldades elementares
em que as grandes massas estão ainda submersas.
A pirâmide ora sugerida, assim como o Estado Democrático de Direito, tem em
toda a sua estrutura, dando-lhe a sustentação, os direitos fundamentais, respon-
sáveis por seus alicerces, por sua base, por suas colunas, na formação de todos os
degraus da democracia, objetivo do Constituinte e, ao chegar ao seu utópico apogeu,
se encontra a linha da dignidade humana plena, que, por sua vez, se inter-relaciona
intimamente com os demais direitos por toda a obra piramidal, que representa o
Estado Democrático de Direito.
Assim, sendo inseridos na pirâmide, um a um, degrau a degrau, os direitos
fundamentais, tendo na base da pirâmide o primeiro degrau, que sustenta os
demais, formado primeiramente pelo direito à vida e, em seguida, pelos demais –
direito à saúde, à liberdade, à igualdade, à intimidade, à moradia, ao trabalho,
ao lazer, à família etc. –, não havendo necessidade de se manter uma ordem
determinada nos degraus do diagrama, com exceção dos direitos à vida e à
saúde, como base para todos os direitos. No ápice, a linha da dignidade humana
plena, que é ofertada e garantida pela Constituição Federal a todas as pessoas,
objetivo maior do Estado.
Essa relação existente entre a dignidade da pessoa humana e os demais direitos
fundamentais não pode ser qualificada como de cunho subsidiário. Diversos auto-
res têm expressado essa preocupação conforme se segue.

401
Conforme Gomes e Freitas (2010),
A relação entre a dignidade e as pretensões constitucionais públicas subjetivas é
sui generis, visto que a primeira assume, simultaneamente, a função de elemento
e medida das segundas. Uma violação de um direito fundamental ofenderá, neces-
sariamente, a dignidade dos seres humanos. (Grifos nossos).
Ainda de acordo com Sarlet (2004), citado por Gomes e Freitas (2010),
o princípio da dignidade da pessoa humana atua como elemento fundante e infor-
mador dos direitos e garantias fundamentais e, ainda, serve de parâmetro para
aplicação, interpretação e integração, não apenas de tais pretensões constitucio-
nais, mas de todo o ordenamento jurídico. (Grifo nosso).
Pasqualini (1999, p. 80) afirma:
[...] portanto, os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana apre-
sentam, como traço comum, o fato de que ambos atuam no centro do discurso
jurídico constitucional, como um DNA, como um código genético, convivendo,
de forma indissociável.
Enfim, em face de todo exposto, a proposta deste estudo é utilizar o diagrama de
uma pirâmide (Figura 1) para representar e demonstrar, didaticamente, de forma
visual como se materializa e concretiza a dignidade humana no ordenamento jurí-
dico, usando sua relação sui generis com os direitos fundamentais.
Conforme Biagi (2005), citada por Gomes e Freitas (2010), tais direitos
são os pressupostos elementares de uma vida humana livre e digna, tanto
para o indivíduo como para a comunidade: o indivíduo só é livre e digno
numa comunidade livre; a comunidade só é livre se for composta por homens
livres e dignos.
Afirma ainda a elucidativa obra de Gomes e Freitas (2010):
O princípio em tela, em relação às pretensões essenciais, pode assumir, mas ape-
nas em certo sentido, a feição de lex generalis, até mesmo porque uma agressão a
determinado direito fundamental, simultaneamente, poderá constituir ofensa ao
seu conteúdo em dignidade. [...] O Estado Democrático de Direito exige a garantia
dos direitos fundamentais e, para tanto, deve estar centrado na dignidade da pes-
soa humana, já que os direitos são postos a serviço da realização do homem como
pessoa. Nessa perspectiva, a dignidade da pessoa humana deve figurar como valor
jurídico supremo, pois ela é a base das pretensões essenciais e o fundamento de
uma constituição operante. (Grifo nosso).
De acordo com José Afonso da Silva (1998, p. 92), “a dignidade da pessoa humana
é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do
homem, desde o direito à vida”.
Lemos e Barretto (2015, p. 1821) afirmam:
Em suas conclusões, Brownsword e Beyleveld (2001, p. 13), arguindo que o dis-
curso prático e político principal não é acerca da dignidade humana, mas sim
sobre Direitos Humanos, indicam que, apesar disso, a dignidade humana ine-
rente a todo e qualquer ser humano é a pedra basilar dos direitos inalienáveis, que
são detidos por todos igualmente. Assim entendida, argumentam os autores, a dig-
nidade humana é a rocha sobre a qual a superestrutura dos Direitos Humanos está
construída. A lógica dessa concepção de dignidade humana como fundamento
dos Direitos Humanos, no entanto, é que o discurso prático e político principal é
o dos Direitos Humanos, ao invés daquele da dignidade humana. (Grifo nosso).

402
Assim, de forma figurada, para sustentar a pirâmide de congruência dos direitos
fundamentais com a linha da dignidade humana, constitucionalmente garantidos, o
direito à vida estará formando a sua base, o seu alicerce estruturante. A importância
desse direito é óbvia, se o ser humano não tiver vida, não tem como ser detentor dos
demais direitos. Se destruídos a base e os alicerces de uma construção, toda ela se
desaba, se desfaz, deixa de existir. Assim, o direito à vida é a base e o alicerce que
sustenta todos os demais.
Outro direito vem em seguida, no próximo degrau da pirâmide dos direitos fun-
damentais, o direito à saúde; em seguida, nos degraus acima, os demais direitos sem
uma ordem definida, desde que estejam na formação da figura geométrica, como
devem estar à disposição do cidadão.
Assim, considera-se no desenho piramidal os direitos humanos fundamentais
como os alicerces, as bases, as colunas e os tijolos que formam e organizam a socie-
dade, sempre entrelaçados pela dignidade humana, consistentemente e de forma
harmônica com o princípio da igualdade, assim como o sangue que circula pelas
veias do ser humano, passando pelos órgãos vitais (direitos fundamentais) e vol-
tando sempre para seu coração, ou seja, ao topo, ao ápice.
Em razão dessa coesão entre dignidade e direitos fundamentais, quando qual-
quer um desses direitos sofre uma agressão, a dignidade humana também é ofen-
dida na mesma intensidade, gerando um efeito de desigualdade e exclusão social
para a pessoa que sofreu a perda do direito.
Para isso, tem-se por pressuposto que qualquer direito fundamental negado ao
cidadão traz como consequência, necessariamente, agressão também ao princípio
da dignidade humana in re ipsa, ou seja, pela força dos próprios fatos. Isso porque a
negação de um direito fundamental a um indivíduo o torna desigual no meio social
e, portanto, indiretamente a sua dignidade humana é afetada inexoravelmente.
Vislumbram-se, assim, os degraus da pirâmide preenchidos, em sua essência,
com os direitos humanos fundamentais, desde sua base até o topo, com a digni-
dade humana perpassando intimamente por todos eles até o ápice onde repousa
solenemente. Pode-se afirmar que a pessoa que chegou a esse apogeu e conseguiu
atingir a linha da dignidade humana plena é um ser autorrealizado, tem a felici-
dade prometida constitucionalmente a todos, é um ser feliz na plenitude humana,
no mundo fenomênico.
Nesse sentido, colacionam-se algumas decisões judiciais:
O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a cen-
tralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpre-
tativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento consti-
tucional vigente em nosso país, traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos
em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo
sistema de direito constitucional positivo. [...] O princípio constitucional da busca
da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postu-
lado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo
de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em
função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou
de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo,
esterilizar direitos e franquias individuais. Assiste, por isso mesmo, a todos, sem

403
qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado consti-
tucional implícito, que se qualifica como expressão de uma ideia-força que deriva
do princípio da essencial dignidade da pessoa humana. (RE 477.554 AgR, rel.
min. Celso de Mello, j. 16-8-2011, 2ª T, DJE de 26 ago. 2011. Vide ADI 4.277 e
ADPF 132, rel. min. Ayres Britto, j. 5-5-2011, p. DJE de 14 out. 2011, grifo nosso).
Desse modo, o ser humano que tiver todos esses direitos fundamentais garan-
tidos e efetivados de fato se sentirá autorrealizado, orgulhoso perante seus pares,
um cidadão completo, tratado de igual por igual em relação a todos os demais, um
cidadão que conseguiu a felicidade, de estar bem na sociedade em que vive.
A noção de dignidade humana ultrapassa o ser social e está imbricada na alma
das pessoas, e cada pessoa, com seus valores, conhecimentos, culturas, educação etc.,
traz no seu ser individual valores diversos, infinitos e variados, e o direito positivo não
pode ficar tentando decifrar esse maravilhoso ser indecifrável que é o ser humano, daí
a necessidade de, no mundo fenomênico das relações sociais, definir quando e como a
dignidade humana foi ofendida, considerando um padrão para todos cidadãos, que é
o que se busca e se espera das regras jurídicas em um Estado de Direito.
Assim, na tese que ora se apresenta, caso seja negado o direito à saúde, ou
à moradia, ou à segurança, ou qualquer outro, simultaneamente e inexoravel-
mente, o princípio da dignidade também recebe a agressão e há a degradação
humana e, para ser restabelecida a condição de pessoa digna, deverá o direito
negado ser novamente garantido.
Dessa forma, em contraposição à dignidade, quando qualquer um desses direitos
que formam a sagrada pirâmide dos direitos fundamentais é negado ao ser humano,
ocorre a degradação humana e, consequentemente, a desigualdade e a exclusão social.
Reforça essa ideia a posição de Sarmento (2004, p. 375):
Os direitos fundamentais, que constituem, ao lado da democracia, a espinha
dorsal do constitucionalismo contemporâneo, não são entidades etéreas, meta-
físicas, que sobrepairam ao mundo real. Pelo contrário, são realidades históri-
cas, que resultam de lutas e batalhas travadas no tempo, em prol da afirmação
da dignidade humana.
A degradação humana acontece quando há ofensa à dignidade da pessoa pela
negação de um direito fundamental; portanto, a dignidade e a degradação humana
estão em oposições opostas no ordenamento jurídico e nas vidas das pessoas.
A situação de degradação humana ocorre quando há a negação de um direito,
em especial, de um direito fundamental, a uma pessoa ou grupo específico; assim,
quando se nega ao cidadão um desses direitos, essa pessoa estará descendo degraus na
pirâmide dos direitos fundamentais e se distanciando da linha da dignidade humana.
Assim, aquela pessoa, ou pessoas, para a qual foi negado o direito estará em
patamar inferior às demais, está degradada, em posição de desigualdade, excluída
socialmente daquele direito.
O respeito à dignidade humana tem papel preponderante e é fator fundamental
na formação e implementação de um Estado Democrático de Direito, por isso a
dignidade precisa ser materializada e concretizada para que não haja desigualdades
sociais. Todos devem ser tratados de forma igual dentro da sua igualdade e desigual
na sua desigualdade.

404
Na esfera trabalhista, quando as forças-tarefa encontram trabalhadores em
situação análoga à de escravo, diz-se que essas pessoas estão em condições degra-
dantes porque a elas foram negados os direitos a salários, à alimentação, à moradia,
à liberdade, a condições dignas mínimas.
A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século  19 e o cerceamento à
liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não neces-
sariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o
como coisa, e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação,
mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive
do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a
capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso
também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. (Inq. 3.412,
rel. p/ o ac. min. Rosa Weber, j. 29-3-2012, p. DJE de 12 nov. 2012, grifo nosso).
Enfim, o que se busca com a presente proposta é demonstrar que a dignidade
humana na esfera jurídica não pode ser tratada com arbitrariedade, com interpre-
tações e aplicações infundadas e triviais, comportamentos que só contribuem para
sua banalização e perda do seu real sentido, jurídico, histórico e filosófico, além de
criar um devastador cenário de inseguranças jurídicas, totalmente contrário em
um Estado Democrático de Direito.

6 ∙ CONDIÇÕES AGRADÁVEIS – UM NOVO CONCEITO


PARA NOVOS DIREITOS
Este tópico apresenta-se após a demonstração da pirâmide dos direitos funda-
mentais e da linha da dignidade humana em razão de ser um novo conceito, surgido
durante exaustivos estudos.
Pois bem, o processo de garantir a eficácia dos direitos fundamentais é dinâ-
mico, todos os dias surgem novas necessidades humanas, novas tecnologias, ideias
para correções de rumos, enfim, novas exigências sociais. Diante disso, nesse pro-
cesso evolutivo, surgem outros direitos, como por exemplo os relacionados à bioé-
tica, biotecnologia, ciberespaço, realidade virtual, e, mais recentemente, o direito
à autodeterminação sexual, à precaução e o da solidariedade intergeracional, em
razão da pandemia de Covid-19.
Esses novos direitos somam-se à linha da dignidade humana prevista constitucio-
nalmente em 1988, que, na pirâmide dos direitos fundamentais, está no apogeu; sendo
assim, novos degraus são somados àqueles formados pelos direitos fundamentais já
consagrados, e a linha da dignidade humana, sendo dinâmica, como mostra toda his-
tória, se desloca para cima, para um novo patamar de direitos fundamentais.
Se, conforme dito alhures, quando há a negação de um direito, ocorre a degrada-
ção, contrário senso, havendo a aquisição de um novo direito, ocorrerá a agradação,
assim como a perda é condição degradável, o ganho de mais um direito, será condição
agradável – termo ora proposto e utilizado neste trabalho, frise-se, pela primeira vez
em estudos sobre a dignidade humana, como o mais plausível para a situação descrita.
Portanto, os termos agradável ao ser humano e agradante (aquisição de um
direito novo) são utilizados em contraposição a degradável e a degradante (perda ou
negação de um direito existente).

405
7 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
A materialização e a concretização do princípio da dignidade humana, consti-
tucionalmente assegurado a todas pessoas, à luz do ordenamento jurídico, são de
essencial importância para a plena realização social.
A dignidade humana é a espinha dorsal da estrutura do Estado Democrático de
Direito, ela tem como fim o resguardo e a proteção das qualidades e dos atributos
essenciais das pessoas como detentoras dos direitos fundamentais, que nada mais
são que emanações e concretizações da dignidade humana. Os direitos fundamen-
tais, resultados de conquistas históricas, não são entidades abstratas, etéreas ou
metafísicas. São direitos reais nas vidas das pessoas.
Assim, na busca de concretizar o princípio da dignidade humana, que detém
correlação íntima com os direitos fundamentais, apresenta-se neste trabalho
uma concepção nova de olhar esse princípio, de maneira que haja uma visua-
lização de quando e como há a materialização e a concretização da dignidade
humana no aspecto jurídico, ou seja, apresenta-se uma proposta que, em tese, é
capaz de colaborar para que a dignidade humana seja vista de forma mais real e
presente na vida das pessoas.
Nessa proposta, de forma elucidativa, apresenta-se o diagrama da pirâmide de
congruência dos direitos fundamentais, na qual, em seu ápice, repousa a linha da
dignidade humana plena.
Em contraposição à dignidade tem-se a degradação humana, quando ocorre a
perda ou a negação de um direito fundamental; entretanto, existem momentos his-
tóricos em que um novo direito se soma ao rol de direitos fundamentais. Neste caso,
utilizou-se o termo “condições agradáveis” em oposição a “condições degradáveis”.
Perde-se um direito, degrada-se, ganha-se um direito agrada-se.
Quando alguns dos direitos fundamentais são negados às pessoas, ofende-se a
dignidade humana, por serem esses direitos intrinsecamente relacionados e imbri-
cados com a dignidade humana, de modo que esta é automaticamente ofendida,
pela força dos próprios fatos, in re ipsa.
Torna-se de extrema importância para a sociedade que vive em um Estado
Democrático de Direito que o ordenamento jurídico ofereça para ela certeza e
segurança jurídicas.
A teoria da decisão, em sua visão holística, para a qual as expectativas são
organizadas e estruturadas, permite afirmar que o direito positivado, porque
controlado, busca reduzir as expectativas de frustração ao imprimir uma pauta
ordenadora de comportamentos.
Em razão disso, os destinatários das normas e das instituições jurídicas adqui-
rem uma certeza em seus comportamentos sociais – quando agir, quando omitir e
quando atuar efetivamente –, na medida em que conhecem, ou deveriam conhecer,
as normas que compõem o ordenamento jurídico. Esta é a sua certeza e segurança
contra imprevisões dos atos sociais.
O Estado de Direito tem como fundamento a concepção de normas capazes de
controlar ações sociais. Apenas desta forma é capaz de conter conflitos sociais, por
isso o sistema normativo é o estabelecedor da ordem social.

406
Dessa forma, ao demonstrar quando o princípio da dignidade humana é con-
cretizado na vida das pessoas, a noção de que é um conceito impreciso, vazio, sub-
jetivo se ameniza e, em alguns casos, deixa de existir, assim como o entendimento
a ele dado, que hoje não leva em conta sua real importância na formação do Estado
Democrático de Direito. Consequentemente, esta proposta também servirá para
contribuir para o fim do atual voluntarismo hermenêutico, muitas vezes arbitrário,
com interpretações livres pelos operadores do direito e pelo Poder Judiciário.

REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Jailton Macena de. Direitos humanos e solidariedade: Entre o universalismo e
o relativismo, por uma teoria dialógica dos direitos humanos. RIL: Revista de Informação
Legislativa, Brasília, ano 53, n. 212, p. 155-179, out./dez. 2016. Disponível em: https://
www12.senado.leg.br/ril/edicoes/53/212/ril_v53_n212_p155. Acesso em: 16 ago. 2020.
BIAGI, Cláudia Perotto. A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais na
jurisprudência constitucional brasileira. Revista de Direito do Estado 4, IBDP, Salvador,
p. 23-51, 2006.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BRASIL. Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. UNIC. Rio. Dispo­
nível em: https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/. Acesso em: 16 ago. 2020.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra:
Almedina, 2000.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Interpretação e aplicação da Constituição. 6. ed. Saraiva: São
Paulo, 2004.
CARVALHO, Luiz Junior Nunes. Dignidade da pessoa humana: uma abordagem da
questão prisional feminina. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49745/
dignidade-da-pessoa-humana-uma-abordagem-da-questao-prisional-feminina.
Acesso em: 16 ago. 2020.
CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Teoria geral dos direitos fundamentais. Disponível
em: http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalTvJustica/portalTvJusticaNoticia/anexo/Jo
ao_Trindadade__Teoria_Geral_dos_direitos_fundamentais.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
CERRONI, Umberto. Liberalismo e socialismo. Revista Novos Rumos, Marília, ed. 18/19,
p. 19-30, 1990. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/novosrumos/
article/view/2062. Acesso em: 7 out. 2020.
COELHO, Luiz Eduardo de Toledo. Os direitos fundamentais e o princípio da dignidade
da pessoa humana aplicados às relações privadas. Revista de Direito Constitucional e
Internacional, São Paulo, ano 17, n. 67, p. 214-243, abr./jun. 2009.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 16. ed. São Paulo:
Saraiva, 1991.
DEGREDO. In: Origem da Palavra. Disponível em: https://origemdapalavra.com.br/pala
vras/degredo/. Acesso em: 16 ago. 2020.
DEZIDERIO, Priscilla Pintor Ribeiro Pinto. Direitos fundamentais dos trabalhadores. 2019.
Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72072/direitos-fundamentais-dos-trabalhadores.
Acesso em: 16 ago. 2020.

407
DEGRADÁVEIS. In: Dicio – Dicionário Online de Português. Disponível em: https://www.
dicio.com.br/degradaveis/. Acesso em: 27 jul. 2020.
EDUCAMUNDO. Gerações de direitos fundamentais: conheça detalhes das 5 existentes.
2019. Disponível em: https://www.educamundo.com.br/blog/geracoes-de-direitos-funda
mentais. Acesso em: 16 ago. 2020.
FERREIRA NETO, Mário. A criminalidade, direitos fundamentais e humanos. Disponível
em: https://por-leitores.jusbrasil.com.br/noticias/2507854/a-criminalidade-direitos-fun
damentais-e-humanos. Acesso em: 16 ago. 2020.
GOMES, Magno Federici; FREITAS, Frederico Oliveira. Direitos fundamentais e
dignidade humana. 2010. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-
constitucional/direitos-fundamentais-e-dignidade-humana/. Acesso em: 16 ago. 2020.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
LEMOS, Fabrício; BARRETTO, Vicente de Paulo. Uma abordagem compreensiva da
dignidade humana. Revista Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 1815-1826, out.
2015. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/282444237_Uma_abor
dagem_compreensiva_da_dignidade_humana. Acesso em: 16 ago. 2020.
MASSAÚ, Guilherme Camargo. A dignidade humana em Pico Della Mirandola. Scribd. San
Francisco Califórnia. 2013. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/408909370/A-
Dignidade-Humana-Em-Pico-Della-Mirandola. Acesso em: 2 ago. 2020.
MENDES, Alessandra Torres Vaz. O direito humano fundamental das pessoas intersexo
à autodeterminação sexual. Boletim Científico ESMPU, Brasília, ano 18, n. 54, p. 383-405,
jul./dez. 2019.
MENDES, Gilmar Ferreira. A doutrina constitucional e o controle de constitucionalidade.
Rio de Janeiro: FGV, 1993. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/
rda/issue/view/2424. Acesso em: 16 ago. 2020.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora,
2000, v. IV. p. 180.
MORAES, Lucas Vasconcelos de. A responsabilidade civil do Estado: a evolução do
tema diante da violação generalizada dos direitos fundamentais da população carcerária
brasileira. Boletim Científico ESMPU, Brasília, ano 18, n. 54, p. 295-321, jul./dez. 2019.
NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa
humana. 2000. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/568/
r145-19.pdf?sequence=4. Acesso em: 15 ago. 2020.
PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico: uma introdução à inter­
pretação sistemática do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
RABELO, Iglesias Fernanda de Azevedo; GARCIA, Filipe Rodrigues. O direito à auto­
determinação informativa: Âmbito Jurídico, São Paulo, 2011. Disponível em: https://ambi
tojuridico.com.br/cadernos/direito-civil/o-direito-a-autodeterminacao-informativa/.
Acesso em: 16 ago. 2020.
RAMOS, Marcelene Carvalho da Silva. Cláusula aberta de direitos fundamentais e o § 3º
do art. 5º da CF – avanços e retrocessos. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado
do Paraná, Curitiba, n. 10, p. 197-223, 2019. Disponível em: http://www.pge.pr.gov.br/
408
sites/default/arquivos_restritos/files/documento/2020-01/2019_009%20Clausula%20
aberta%20de%20direitos%20fundamentais_Ramos%20M%20C%20SRevis.pdf. Acesso
em: 16 ago. 2020.
RIBEIRO, Bruno Quiquinato. A dignidade da pessoa humana em Immanuel Kant. Revista
Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3223, 28 abr. 2012. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/21605/a-dignidade-da-pessoa-humana-em-immanuel-kant.
Acesso em: 7 ago. 2020.
ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no código civil. São Paulo: Saraiva, 2005.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. Tradução Rolando Roque da Silva. Edição
eletrônica. Ed. Ridendo Castigat Mores. 2002. Versão para ebook. Disponível em: http://
www.ebooksbrasil.org/adobeebook/contratosocial.pdf. Acesso em: 6 ago. 2020.
SANTOS, José Eduardo Lourenço. A discriminação racial na internet e o direito penal:
preconceito sob a ótica criminal e a legitimidade da incriminação. Curitiba. 2013. Dispo­
nível em: https://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/29938/R%20-20T%20
-%20JOSE%20EDUARDO%20LOURENCO%20DOS%20SANTOS.pdf?sequence=1.
Acesso em: 16 ago. 2020.
SARLET, Ingo Wolfgang. Conceito de direitos e garantias fundamentais. Tomo Direito
Administrativo e Constitucional. Ed. 1, abril 2017. Disponível em: https://enciclopedia
juridica.pucsp.br/verbete/67/edicao-1/conceito-de-direitos-e-garantias-fundamentais.
Acesso em: 16 ago. 2020.
SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo
uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de
Direito Constitucional – RBDC, n. 9, p. 361-388, jan./jun. 2007b. Disponível em: http://
esdc.com.br/RBDC/RBDC-09/RBDC-09-361-Ingo_Wolfgang_Sarlet.pdf. Acesso em:
24 ago. 2020.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2007a.
SARMENTO, Daniel Antônio de Moraes. Os direitos fundamentais nos paradigmas
liberal, social e pós-social. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Crise e desafios da
constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 375-414.
SHIER, Adriana da Costa Ricardo. Regime jurídico do serviço público: garantia funda­
mental do cidadão e proibição de retrocesso social. Curitiba, 2009. Disponível em: https://
pt.scribd.com/document/75411327/ADRIANA-SCHIER-TESE. Acesso em: 16 ago. 2020.
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 212, p. 89-94, 1988. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/47169. Acesso em: 7 out. 2020.
SOARES, Andrea Antico. A dignidade da pessoa humana e sua dimensão comunitária
como centro de unidade e promoção dos direitos humanos fundamentais. 2019. Dispo­ní­
vel em: https://jus.com.br/artigos/73590/a-dignidade-da-pessoa-humana-e-sua-dimen
sao-comunitaria-como-centro-de-unidade-e-promocao-dos-direitos-humanos-e-
fundamentais. Acesso em: 16 ago. 2020.
STAMFORD, Artur. Certeza e segurança jurídica: reflexões em torno do processo de
execução. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 36, n. 141, p. 257-269, 1999.
Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/467/r141-20.pdf.
Acesso em: 16 ago. 2020.
409
SAÚDE PÚBLICA
Evolução do modelo brasileiro e interfaces com o direito à felicidade

Leonardo Weber R. Araújo1

Sumário: 1 Introdução. 2 O Direito à saúde: um panorama do surgimento e da evolução


do modelo brasileiro. 2.1 Reforma Sanitarista: principal marco na história da saúde pública
nacional. 2.2 O desenho normativo atual da saúde no Brasil: os pilares fixados pela CF/88.
3 Direito à felicidade: breves apontamentos e interface com as questões ligadas à saúde.
3.1 Felicidade: uma alusão cada vez mais presente nos textos legislativos internacionais.
3.2 As diversas compreensões conceituais que envolvem o tema e alguns julgados proferidos
pelo Supremo Tribunal Federal. 3.3 Apontamentos acerca da Constituição brasileira e
evidências da correlação entre felicidade e saúde pública. 4 Considerações finais.

1 · INTRODUÇÃO
Reflexões acerca da transitoriedade da vida e, claro, de como preservá-la pelo
maior tempo possível sempre estiveram presentes na história da humanidade. De
forma intrinsecamente conexa a essa temática, caminharam os debates relaciona-
dos à busca do ideal funcionamento do organismo dos indivíduos. Com o tempo, a
percepção de plena saúde deixou de exprimir tão somente um contraponto à ideia
de anormalidade do corpo físico ou de doença propriamente dita, passando a alcan-
çar uma dimensão mais ampla, que abarca, além de aspectos orgânicos, outros fato-
res essenciais ao pleno exercício das potencialidades humanas, como o bem-estar
mental e emocional e as condições do meio ambiente em que se vive.
A partir dessa compreensão, acabou sendo inevitável que as ciências jurídicas
passassem a cuidar da saúde como um bem intangível de primeira grandeza e, por
conseguinte, como garantia básica inerente a todo e qualquer ser humano. Assim
considerada, essa prerrogativa torna-se passível de proteção e até mesmo de promo-
ção pelos Entes Estatais, especialmente por aqueles que de alguma forma se filiam
ao paradigma do Welfare State.
No Brasil, esse percurso envolveu vários estágios, associados, inicialmente, à
estratégia de colonização aqui implementada, que mesclava caridade, atividades
missionárias e prática médica. De um modo geral, o período anterior à Constituição
de 1988 pode ser sumariado, no âmbito da saúde, por iniciativas voluntaristas e
benemerentes, por arroubos isolados de avanço no campo das políticas públicas

1 Analista do MPU – Especialidade Direito. Professor Universitário. Assessor-Chefe na


Procuradoria-Geral da República. Mestre em Direitos Sociais pelo Centro Universitário IESB.
Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bacharel em
Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

411
e por um modelo de assistência basicamente atrelado a aspectos previdenciários,
gerador, este último, de exclusão de boa parte dos cidadãos, sobretudo da população
rural, dos desempregados e dos trabalhadores informais.
Finalmente, alinhando-se a inúmeros e difundidos tratados internacionais, a
exemplo da Declaração Universal de 1948, a atual Carta Constitucional brasileira
(CF/88), por nítida influência do movimento conhecido como Reforma Sanitarista,
incorporou o direito fundamental à saúde no rol dos direitos sociais (art. 6º da CF/88).
A legislação constitucional, então, ao abordar a Seguridade Social (arts. 194 e
ss. da CF/88), inaugura, formalmente, o Sistema Único de Saúde (SUS), ambicioso
ideário pautado pela equidade, pela universalidade e pela integralidade, arcabouço
que se aprofunda com vasta regulação infraconstitucional, destacando-se, nesse
campo, a Lei n. 8.080/1990.
De outro giro, os debates acerca dos contornos que envolvem a compreensão e a
importância da felicidade há muito se encontram na pauta de diversas searas do saber,
como a psicologia e a filosofia. Assim como ocorre com a temática da saúde, dúvidas
não pairam acerca da complexidade da matéria, que envolve, entre outras variáveis,
aspectos individuais, sociais, culturais e econômicos. Não obstante a inequívoca
dificuldade para a fixação de balizas imprescindíveis à adequada inteligibilidade do
tema, cada vez mais países de todo o mundo aderem a propostas de incorporação de
tal termo em suas respectivas dogmáticas jurídicas, o que, de modo natural, tornou
premente uma maior investigação jurídico-acadêmica sobre o assunto.
Nesse contexto, o presente artigo se propõe a examinar os desenhos de saúde
pública já adotados no Brasil, com ênfase no vigente, correlacionando-os à ideia que
atualmente se tem a respeito do denominado direito à felicidade. Busca-se inves-
tigar, então, de forma mais específica, se uma maior efetividade quanto ao direito
social à saúde tenderia a gerar, em um determinado universo populacional, impac-
tos positivos em relação aos respectivos níveis de felicidade.

2 · O DIREITO À SAÚDE: UM PANORAMA DO SURGIMENTO


E DA EVOLUÇÃO DO MODELO BRASILEIRO
Basta rápida investigação histórica sobre os primeiros movimentos concernentes
à saúde no Brasil para se identificar a forte presença das congregações religiosas,
especialmente da Irmandade de Misericórdia, organização vinculada à igreja cristã
Católica. Como parte de uma eficaz estratégia que consolidou, em territórios ultra-
marinos, a colonização pela monarquia lusitana, tal instituição, desde o século XVI,
passou a se instalar em todas as regiões do País, exercendo, por meio das Santas Casas
de Misericórdia, um trabalho conjunto de caridade missionária e de prática médica.2
Ao abordar o formato de colonização portuguesa e o papel desempenhado pelas
Santas Casas de Misericórdia, interessantes são as considerações de Gonçalves:
[...] as Santas Casas de Misericórdia vieram para o Brasil assim que os primei-
ros colonizadores aqui se fizeram presentes. As Santas Casas de Misericórdia,

2 O primeiro estabelecimento médico instalado no País foi justamente a Santa Casa de Santos, cuja
inauguração data de 1543. Sobre a história das Santas Casas de Misericórdia no Brasil, conferir:
FRANCO, 2011.

412
juntamente com as Câmaras Municipais, foram precursoras do modelo colonizador
português exportado para o Brasil e para as demais colônias portuguesas. Todos os
reis portugueses teriam levado a sério suas responsabilidades missionárias e, dessa
forma, as instituições políticas e religiosas, que tanto se confundiam na metrópole,
chegaram às colônias seguindo o mesmo padrão. Quando Portugal se interessou em
colonizar o Brasil, a criação das primeiras cidades foi concomitante com a fundação
de filiais da Misericórdia, a exemplo do que ocorreu em outras regiões colonizadas
pelo Império português, como na África e na Ásia. (GONÇALVES, 2014, p. 63).
Conforme relatado, o propósito de tais organizações, afora aspectos espirituais,
voltava-se ao oferecimento de condições básicas de amparo a uma população que
contava, até então, apenas com conhecimentos decorrentes de práticas costumei-
ras para a preservação e a recuperação da saúde.3 Essa foi, em síntese, a realidade
sanitário-hospitalar, com repercussões sociais,4 que vigorou no Brasil, no campo
da prestação da saúde, durante os primeiros quatro séculos após a chegada dos
colonizadores. Os Períodos Colonial e Imperial não apresentaram, dessarte, mesmo
consideradas algumas iniciativas isoladas de saneamento atribuídas à coroa portu-
guesa,5 qualquer modelo minimamente estruturado de saúde pública.
Debruçando-se sobre tal cenário histórico, Sanglard esclarece:
O Brasil, herdeiro da tradição lusa de assistência, encontrou na Irmandade da
Misericórdia – ainda que se tratasse de instituição privada – o espaço público de
atendimento e acolhimento. Desde a sua criação em Lisboa, ao final do século
XV, a Irmandade viveu sob o padroado régio e exerceu o monopólio da gestão
hospitalar. Na Colônia, no Império e nos primeiros anos da República, a Santa
Casa da Misericórdia manteve a hegemonia da assistência médica no Brasil.
(SANGLARD, 2007, p. 259, grifo nosso).
À medida, porém, que profissionais brasileiros se formavam nos centros urba-
nos,6 ocupando, aos poucos, regiões interioranas, crescia a compreensão de que o
exercício da mencionada tripla função (missionária/caridade/prática médica) não
se revelava das mais funcionais.
Algumas décadas adiante, já no Período Republicano, começam a surgir no
Brasil instituições especializadas nas questões da saúde, como, em 1900, o Instituto
Soroterápico Federal (posteriormente Instituto Oswaldo Cruz e Fundação Oswaldo
Cruz) e o Instituto Butantan (1901). Simultaneamente, passa-se a debater a ideia,
já existente na Europa desde o século XVIII, de que os estabelecimentos de saúde,

3 Para conhecer, com maior profundidade, as fases do desenvolvimento da medicina no Brasil,


recomendam-se: RIBEIRO, 1997; TRINDADE, 2013.
4 Segundo o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, as contribuições realizadas em favor das
Casas de Misericórdia conferiam aos integrantes da sociedade o título e a mística de “homens
bons”. Exteriorizavam, assim, a generosidade cristã e incorporavam nítido prestígio social à
imagem dos legatários e (ou) participantes das irmandades (FREYRE, 2000).
5 Confira-se, sobre esse particular, o seguinte trabalho: MURTHA; CASTRO; HELLER, 2015.
6 Apenas em 1808, quatorze anos, portanto, antes da declaração de independência, foram criados
os primeiros cursos de Medicina no País, instalados na Bahia (Colégio Médico-Cirúrgico da
Bahia) e no Rio de Janeiro (Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro). Começa a ser
desenvolvida, então, ao longo do século XIX, mesmo que de maneira muito singela, uma cultura
médica local, ainda atrelada, em grande parte, às referidas irmandades.

413
mais do que “máquinas de curar”, deveriam reunir atividades correlacionadas ao
ensino e à pesquisa (FOUCAULT, 1984, p. 57).
Justamente essa mudança de compreensão é destacada por Sanglard (2006), para
quem o processo de separação entre espaços de estrita benevolência e de exercício
da medicina teve as duas primeiras décadas do século passado como importante
referência temporal, período em que o Estado deflagra iniciativas no sentido de
inaugurar o processo de estruturação da assistência hospitalar, bem assim da saúde
pública como um todo, tarefa que, segundo indica, foi capitaneada pelo médico
Carlos Chagas, evocado como sucessor de Oswaldo Cruz (SANGLARD, 2006, p. 19).
Ao longo desse período, correspondente à Primeira República ou República
Velha (1889/1930), denominada por Hochman (1998) de “Era do Sanitarismo”,7 per-
cebeu-se a necessidade de transformações urbanísticas e sanitárias, mormente nos
maiores aglomerados populacionais e nas regiões portuárias, tendo como nítido
objetivo a busca por um País mais saudável e produtivo, capaz de fomentar o cresci-
mento econômico que à época se almejava.
A partir de 1920, simultaneamente ao citado movimento sanitarista e às res-
pectivas propostas de mudanças urbanas e sanitárias, inicia-se no Brasil, de forma
paulatina, o desenvolvimento de um arquétipo de assistência médica individual
atrelado ao sistema previdenciário.
Foram criadas, com a conhecida Lei Eloy Chaves (Decreto n. 4.682/1923), as
Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs), que, voltadas, inicialmente, às empresas
ferroviárias, decorreram de pactos entre empregados e empregadores, que possi-
bilitavam aos trabalhadores acesso aos benefícios previdenciários e à assistência
médica e farmacêutica.
Já ao longo da década de 1930, com o apoio de Getúlio Vargas, o modelo repre-
sentado pelas CAPs foi impulsionado e fortalecido, passando a se revestir de natu-
reza jurídica de autarquias federais e a se denominar, de modo geral, de Institutos
de Aposentadorias e Pensões (IAPs), organizados não mais por empresas, mas por
categorias profissionais, tais como comerciários, industriários e bancários.
Durante todo esse período, como as CAPs e os IAPs assistiam apenas aos
empregados formais, continuou a competir às já referidas Santas Casas acudir ao
restante da sociedade, especialmente à população rural e aos trabalhadores urba-
nos, autônomos e informais.8 Impõe-se reconhecer, portanto, que a atuação das
Entidades de Misericórdia, muito embora ressaltasse desigualdades, revelou-se,
naquele momento histórico, de enorme relevância prática, especialmente quando se
considera a capilaridade de tais estabelecimentos pelo interior do País.

7 A estratégia utilizada pelo movimento estruturou-se, basicamente, em grandes campanhas para o


combate a epidemias, sendo por isso também denominado de “Sanitarismo Campanhista”, tendo como
ênfase a desinfecção de espaços públicos e programas obrigatórios de vacinação. Sobre o tema, conferir
os seguintes trabalhos, que abordam medidas impopulares e polêmicas atribuídas a Oswaldo Cruz,
durante a presidência de Rodrigues Alves (1902-1906), que levaram, em 1904, a um motim popular
conhecido como “Revolta da Vacina” (MEIHY; BERTOLLI FILHO, 1995; SEVCENKO, 1993).
8 As políticas públicas de previdência social e de saúde apenas começaram a ser expandidas na
década de 1970, com a criação do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural - FUNRURAL (Lei
Complementar n. 11/1971) e, ainda, com as Leis n. 5.859/1972 e n. 5.890/1973, que, respectivamente,
agraciaram trabalhadores domésticos e autônomos.

414
Merece ainda destaque o ano de 1941, quando começam a ser realizadas, com
o intuito de discutir o cânone brasileiro, as Conferências Nacionais de Saúde, e o
de 1949, quando é criado o Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência
(SAMDU) (Decreto n. 27.664/1949), mantido não só pelos Institutos existentes, mas
também pelas Caixas de Assistência que ainda remanesciam.
Fato político também sempre mencionado durante esse ciclo de mudanças
diz respeito à separação entre o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde,
ocorrida em julho de 1953; este último, inicialmente, direcionou sua atuação para o
atendimento da população rural.
Em 1966, o aumento de epidemias e da mortalidade infantil demandou a adoção
de medidas pelo governo à época estabelecido, especialmente o aprofundamento da
integração do arranjo inaugurado pela Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS) –
Lei n. 3.807/1960. Os IAPs, então, foram unificados,9 dando lugar ao conhecido
Instituto Nacional de Previdência Social – INPS (Decreto n. 72/1966 – Lei Eloah
Bosny), que, com natureza autárquica e vínculo com o Ministério do Trabalho e da
Previdência Social, passa a concentrar as contribuições sociais e coloca o Estado em
uma posição mais central no que concerne à prestação da saúde.
Posteriormente, tendo em vista a complexidade alcançada pelas várias funções
atribuídas ao Instituto Nacional de Previdência Social e a pressão decorrente da
ampliação das coberturas, surge, com a Lei n. 6.439/1977, o Instituto Nacional de
Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), órgão federal antecessor ime-
diato do Sistema Único de Saúde, que passa a assumir a área de assistência médica
(curativa), permanecendo com o INPS10 a competência para a concessão de benefí-
cios (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2001).
Menicucci (2014), ao abordar com concisão toda essa fase, refere-se, da seguinte
forma, à previdência social, à segmentação “meritocrática” do público a ser atendido
ou excluído desse sistema, bem como à origem do formato misto que hoje vigora na
prestação dos serviços de saúde no País:
[...] O mais importante nessa história é que o benefício era vinculado ao contrato de
trabalho formal, tendo as características de seguro e não de direito de cidadania.
Nesse sentido, reveste-se do caráter meritocrático vinculado à inserção no mer-
cado de trabalho, cujas diferenciações reproduz. Além disso, a política de saúde
brasileira apresentava diferenciação funcional e institucional: ao Ministério da
Saúde cabiam as ações de caráter coletivo e algumas de assistência básica, e à
Previdência Social, a saúde curativa restrita aos segurados.
Aspecto importante dessa origem, que também explicará um dos problemas
posteriores, diz respeito ao crescimento da assistência da previdência social, que
amplia gradativamente sua cobertura – depois das Caixas e dos IAPs, ocorre, em

9 Falleti, porém, apresenta justificativa adicional para tal unificação. Segundo a autora, a decisão de
reunir os Institutos de Aposentadoria, adotada pelo General Castelo Branco (1964-1967), teve o
propósito de desarticular a atuação dos trabalhadores urbanos, transferindo a gestão do modelo
a supostos “tecnocratas apolíticos”, o que, claro, acaba por minar um dos pilares do sindicalismo
então vigente (FALLETI, 2010).
10 Em 1990, por meio do Decreto n. 99.350/1990, fundiram-se o Instituto de Administração Financeira
da Previdência e Assistência Social (IAPAS) e o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS),
que, juntos, transformaram-se no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

415
1966, a unificação de todos os Institutos no Instituto Nacional de Previdência
Social, INPS, o que significou a cobertura de todos os assalariados urbanos;
portanto, expansão muito grande também da assistência médica. A opção polí-
tica dos governos para dar conta dessa ampliação de cobertura foi não prover
os serviços diretamente, mas comprá-los da rede privada. Nesse sentido, então,
a política pública voltada para a saúde incentivou o desenvolvimento do mer-
cado privado de saúde, tanto pela compra de serviços quanto pelos subsídios do
governo para a construção de unidades hospitalares. Fundamental também para
entender a trajetória posterior da dualidade do sistema brasileiro foi a estratégia
de fazer convênios com empresas que, por meio de subsídios governamentais, do
então INPS, se encarregassem da prestação de assistência à saúde a seus empre-
gados. Esse é o berço dos planos de saúde, porque desenvolveu nas empresas a
prática de prestar serviços aos empregados, o que gerou no mercado outra moda-
lidade institucional: as empresas médicas que geriam a assistência médica para
as empresas empregadoras. (MENICUCCI, 2014, p. 79, grifo nosso).
Enquanto todas essas transformações legais e institucionais ocorriam, autores,
como Falleti (2010), identificam os primeiros lampejos do movimento sanitário-
-desenvolvimentista que, pouco tempo depois, em contraposição ao sanitarismo
centralizador do início do século XX, começaria a despontar.
Nesse sentido, não é raro encontrar referências históricas que correlacionam
a origem mais remota de tal movimento ao Plano Trienal de Desenvolvimento
Econômico e Social (1962), edificado, durante o governo João Goulart (1961-1964),
com viés reformista e distributivista, pelo economista Celso Furtado.11
Aludida conexão também aparece nas ocasiões em que se menciona a 3ª
Conferência Nacional de Saúde (1963), pois, ao se verificarem alguns dos tópicos
que a estruturaram, como a necessidade de municipalização e a crítica à situação
sanitária do País, as premissas para a reforma abordada no próximo tópico mos-
tram-se, de fato, bastante presentes.12

2.1 · REFORMA SANITARISTA: PRINCIPAL MARCO


NA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA NACIONAL
Ao longo das décadas de 1970 e de 1980, em contraponto às propostas de saúde
previdenciária expostas no tópico anterior, florescia no Brasil um movimento que
compreendia a questão da saúde não mais sob a perspectiva individual, mas com
um viés nitidamente universal e igualitário.13
Essa visão, aos poucos absorvida pelos profissionais da saúde e pela sociedade
civil, transformou-se em propositura ordenada e metódica a partir da 8ª Conferência

11 Acerca do Plano Trienal e dos antecedentes da Reforma Sanitária: LABRA, 1988.


12 Quanto à 3ª Conferência Nacional de Saúde, recomenda-se a leitura da seguinte dissertação:
SOUZA, 2014.
13 Nesse período, duas teses de doutorado podem ser citadas como marcos significativos, pois
conferiram densidade acadêmica à teoria social da medicina e ao movimento pela reforma
sanitária (também chamado de “movimento sanitário” ou de “movimento da reforma sanitária”);
são elas: AROUCA, 1975; DONNANGELO, 1975.

416
Nacional de Saúde e acabou por representar o que, mais tarde, convencionou-se
denominar Reforma Sanitária Brasileira (RSB).14
Sérgio Arouca (1941-2003), um dos maiores expoentes dessa fase, assim resume
o espírito da reforma sanitária, deixando clara a pretensão de que o movimento
representasse mais do que uma mera inovação setorial:
O projeto da reforma [sanitária] é o da civilização humana, é um projeto civili-
zatório, que, para se organizar, precisa ter dentro dele princípios e valores que
nós nunca devemos perder, para que a sociedade como um todo possa um dia
expressar estes valores, pois o que queremos para a saúde é o que queremos para
a sociedade brasileira. (AROUCA, 2001, p. 6).
Pode-se dizer, com essa abordagem, que a RSB faz parte de um processo mais
amplo, não setorizado, voltado à valorização das garantias fundamentais e à retomada
da participação popular no campo das políticas públicas ligadas aos direitos sociais,
com ênfase, além da saúde, nas áreas do trabalho, da educação e da moradia.15-16
Destacam-se, nesse período de transição, as criações, em 1976, do Centro
Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e, em 1979, da Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (Abrasco), assim como a realização da citada 8ª Conferência Nacional de
Saúde, ocorrida em Brasília, em março de 1986, que mobilizou mais de 5 mil repre-
sentantes de todo o País (especialistas e usuários de saúde) e é sempre mencionada
como um dos episódios mais relevantes para a consolidação e a sistematização da
ideia de um verdadeiro projeto de saúde pública coletiva.
Após esse período de intensa mobilização da sociedade civil e de importantes
debates acadêmicos, surgem, dois anos mais tarde, robustecidas por emendas popu-
lares, as linhas condutoras do modelo de saúde constitucionalmente adotado, que se
caracteriza por um olhar mais global e social, em contraposição às perspectivas bio-
logicista e hospitalocêntrica17 do início do século XX, consideradas reducionistas.
Os contornos normativos decorrentes dessa fase estão delimitados na seção “Da
Saúde” (Título VIII, Capítulo II, Seção II, da CF/88), que abarca os arts. 196 a 200,
examinados no próximo tópico.

14 Sugere-se, para maior aprofundamento, a análise de artigo publicado no portal oficial da Fiocruz
(GARCIA, 2016). Ainda sobre esse período, merece destaque a dissertação escrita por Sarah
Escorel, orientanda do reconhecido sanitarista e político Sérgio Arouca, defendida, em 1987,
perante a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (ESCOREL, 1999).
15 Nesse exato sentido, prevê o art. 3º da Lei n. 8.080/1990 que “os níveis de saúde expressam a organização
social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a
alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a
atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais” (BRASIL, 1990a).
16 Na linha da previsão do art. 3º da Lei n. 8.080/1990, a Agenda 21 Global, documento que resultou
da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), abordou, em
seu capítulo 6 (Proteção e promoção das condições da saúde humana), a necessidade de um olhar
ampliado acerca do tema. Menciona-se, nesse tópico, o crescimento desordenado, a mobilidade
comprometida, a falta de saneamento, a poluição ambiental, entre outros, como fatores que,
conjugados, contribuem para um maior adoecimento da população (ONU, 1992).
17 Tais correntes, que se confrontaram com a posterior tendência “epidemiológica social/crítica”,
consideravam, respectivamente, que o principal motivo a comprometer a saúde de uma comunidade
estava correlacionado às infecções por micro-organismos e que os estabelecimentos hospitalares se
revelavam o locus mais importante para o enfrentamento e a cura dos problemas de saúde em geral.

417
2.2 · O DESENHO NORMATIVO ATUAL DA SAÚDE NO BRASIL:
OS PILARES FIXADOS PELA CF/88
Sabe-se que o direito à saúde não foi, no breve percurso constitucional do Brasil,
conteúdo explorado, até 1988, com preocupação, muito menos com profundidade.
Ao contrário, os textos constitucionais pretéritos à vigente Carta Constitucional
trataram de forma bastante efêmera e restritiva a temática da saúde.
Tendo como parâmetro tal trajetória, o amplo modelo de prestação do direito
social à saúde previsto na Constituição Federal de 1988 constituiu verdadeira revi-
ravolta ideológica e institucional no tratamento da matéria no ordenamento jurí-
dico pátrio, conforme bem enfatiza Menicucci:
A reforma sanitária que foi feita visando à criação do SUS, gravada na Constituição,
foi, de fato, uma ruptura com todos os princípios que ordenavam a política de saúde
até então. E nesse sentido podemos falar em reordenamento ideológico e institu-
cional. Ideológico devido aos princípios fundantes da política de saúde, que são
completamente alterados, e institucional em função da criação do sistema único.
(MENICUCCI, 2014, p. 78, grifo nosso).
Fruto da já discorrida Reforma Sanitarista, especialmente de movimentos sociais
de vários matizes, a inclusão da saúde como direito social deve ser identificada, ini-
cialmente, como uma conquista que envolve horizonte mais amplo, representativo
de uma clara escolha de fortalecimento e de implementação de políticas públicas
direcionadas à efetividade substancial de uma democracia que pretendia se fazer
inclusiva (e não apenas supostamente “meritocrática”, como outrora).
Além da previsão inaugural trazida pelo art. 6º da CF/88, que atualmente
apresenta rol exemplificativo de onze direitos sociais, o direito à saúde faz parte de
tópico mais abrangente, que regula a Seguridade Social, nesta incluídas, segundo a
previsão do art. 194, caput, da CF/88, além da temática ora versada, a Previdência
(arts. 201 e 202 da CF/88) e a Assistência Social (arts. 203 e 204 da CF/88).
Após dispositivo especificamente voltado ao financiamento da Seguridade
Social como um todo (art. 195, CF/88), o art. 196 da CF/88 não vacila quanto ao
império da proposta de saúde integral e de acesso universal e igualitário, sendo
assim abordado por Santos:
Diante do conceito afirmado pela Constituição de que “saúde é direito de todos e dever
do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação”, abandonou-se um sistema que apenas
considerava a saúde pública como dever do Estado, no sentido de coibir ou evitar a
propagação de doenças que colocassem em risco a saúde da coletividade, e assumiu-se
que o dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas
econômicas e sociais, além da prestação de serviços públicos de promoção, prevenção e
recuperação da saúde. A visão epidemiológica da questão saúde-doença, que privilegia o
estudo de fatores sociais, ambientais, econômicos e educacionais que podem gerar enfer-
midades, passou a integrar o direito à saúde. Esse novo conceito de saúde considera seus
determinantes e condicionantes (alimentação, moradia, saneamento, meio ambiente,
renda, trabalho, educação, transporte etc.) e impõe aos órgãos que compõem o Sistema
Único de Saúde o dever de identificar esses fatos sociais e ambientais, e ao governo o de
formular políticas públicas condizentes com a melhoria do modo de vida da população.
(SANTOS, 2010, p. 147-148, grifo nosso).

418
Tal arcabouço foi traçado pelo art. 198 da Constituição Federal e tem como
pilares uma rede hierarquizada e regionalizada, o atendimento integral e universal,
além da necessidade de participação da comunidade.
Aliás, quanto aos princípios basilares do SUS, a doutrina costuma examiná-los
sob duas perspectivas. Uma delas, de caráter mais conceitual ou doutrinário-ideo-
lógico, abarca a integralidade, a universalidade e a equidade; a outra diz respeito aos
chamados princípios organizativos.
A integralidade refere-se à ideia de “saúde total”, incluindo, portanto, serviços
assistenciais e curativos, em relação aos quais são valoradas as complexidades físi-
cas, psíquicas e sociais que compõem o bem-estar de cada indivíduo, com a utiliza-
ção de medidas preferencialmente preventivas (art. 198, I, da CF/88).
A universalidade, por sua vez, representa o acesso subjetivo irrestrito, ou seja,
que independe de quaisquer condicionantes.
Finalmente, a equidade chama a atenção para um aspecto prático significativo,
qual seja, o de que o sistema atua em ambiente marcado por consideráveis diferen-
ças regionais, culturais e patrimoniais, sendo imperiosa, portanto, a compreensão
acerca das vulnerabilidades de determinados grupos, a fim de que se implemente
um planejamento estratégico adequado ao conceito de igualdade material.
Referindo-se à amplitude de significados que podem ser alcançados por esses ter-
mos e à sua contextualização específica no âmbito do SUS, Paim e Silva assim discorrem:
A revisão dos estudos sobre universalidade, equidade e integralidade aponta para
distintas definições e abordagens teórico-conceituais. Ideologias e teorias compe-
tem na construção de conceitos, de modo que foi possível verificar desde elabora-
ções mais superficiais e parciais, até a produção de conceitos teóricos derivados de
fundamentação filosófica, além de pesquisas empíricas.
[…]
No SUS, universalidade supõe que todos os brasileiros tenham acesso igualitário
aos serviços de saúde e respectivas ações, sem qualquer barreira de natureza legal,
econômica, física ou cultural. A equidade possibilita a concretização da justiça com
a prestação de serviços, destacando um grupo ou categoria a ser alvo especial das
intervenções. E a integralidade tende a reforçar as ações intersetoriais e a construção
de uma nova governança na gestão de políticas públicas. (PAIM; SILVA, 2010, p. 113).
Há igual menção, por outro lado, aos chamados princípios organizativos, sinte-
tizados pela descentralização (divisão de atribuições entre os entes federados), pela
regionalização (municipalização, consideradas as características regionais) e pe-
la hierarquização (primária, secundária, terciária e quaternária), introduzidos com
o desiderato de que o modelo operasse com maior racionalidade e eficiência.
Esclarecidos os contornos gerais dos princípios norteadores, verifica-se que o art.
200 da CF/88 destaca algumas das atribuições do SUS, como, por exemplo, as alusi-
vas às vigilâncias sanitária e epidemiológica, bem como aquelas interligadas à saúde
do trabalhador (inciso II), à política de saneamento básico (inciso IV), ao fomento de
inovações científicas (inciso V) e à proteção ao meio ambiente (inciso VIII).
Impõe-se ressaltar, por fim, que, como consequência de uma experiência adotada
em período anterior a 1988, especialmente na já aludida fase em que a prestação da
saúde encontrava-se atrelada a aspectos previdenciários, o Brasil acabou por adotar

419
um sistema híbrido de saúde (público e privado), por meio do qual se estabelece a
possibilidade de que essa assistência seja exercida pela iniciativa privada.
Destarte, também com o propósito de cumprir os princípios da universalidade
e da integralidade, admite-se, no País, além das ações e dos serviços prestados
diretamente pelo SUS, por meio dos entes federados, a Assistência Complementar
(conforme art. 199, § 1º, da CF/88, e arts. 8º e 24 a 26 da Lei n. 8.080/1990) assim
como a Assistência Suplementar (que tem como amparo constitucional a previsão
dos arts. 197 e 199, caput, da Carta Magna).
Em síntese, rompendo com uma configuração prioritariamente voluntarista ou
subordinada às atividades produtivas e previdenciárias, a introdução desse conteúdo
no rol dos Direitos Sociais (art. 6º da CF/88) e seu posterior detalhamento no campo
da Seguridade Social (arts. 194 e ss. da CF/88), por meio de normas de eficácia plena
e aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º, da CF/88), trouxeram grande expectativa de
que uma nação mais igualitária, solidária, sã e feliz pudesse ser alcançada.

3 · DIREITO À FELICIDADE: BREVES APONTAMENTOS


E INTERFACE COM AS QUESTÕES LIGADAS À SAÚDE
A filosofia grega, por meio de diversos autores, como Platão e Aristóteles, men-
ciona, em diversas ocasiões, o termo eudaimonia, representativo, em apertada sín-
tese, de um sentimento de satisfação maior, muitas vezes correlacionado à prosperi-
dade exterior, à busca de sabedoria, de uma vida virtuosa, repleta de significados e,
finalmente, à perspectiva utópica de felicidade plena.18
Por sua vez, dos pontos de vista histórico e político, uma das referências frequen-
temente mencionadas sobre o assunto diz respeito à Declaração de Independência
dos Estados Unidos da América (1776), influenciada pelos ideais republicanos e ilu-
ministas de figuras como Thomas Jefferson (1743-1826), que apresenta interessante
associação entre os conceitos de vida, de liberdade e de busca da felicidade.
Abordando justamente Jefferson, Comparato (2008) observa que o líder estadu-
nidense era “suficientemente arguto para saber que ninguém possui um direito inato
à felicidade; que a realização desta, na vida individual, não depende exclusivamente
das virtudes dos cidadãos”, mas que a dignidade humana necessita de “condições
políticas indispensáveis para a busca da felicidade” (COMPARATO, 2008, p. 107).
Aprofundando-se no espírito que norteou a Declaração de Independência nor-
te-americana, Driver (2006) assim qualifica o direito à busca da felicidade:
Em uma ordem social racional, de acordo com a teoria iluminista, o governo
existe para proteger o direito do homem de ir em busca da sua mais alta aspi-
ração, que é, essencialmente, a felicidade ou o bem-estar. O homem é motivado
pelo interesse próprio (sua busca da felicidade), e a sociedade/governo é uma
construção social destinada a proteger cada indivíduo, permitindo a todos viver
juntos de forma mutuamente benéfica. (DRIVER, 2006, p. 32).
Textos advindos da Revolução Francesa subscrevem, no mesmo diapasão, a rele-
vância da busca da felicidade; e, ainda no ano de 1789, a Declaração de Direitos do

18 Para aprofundamento, recomenda-se a leitura dos seguintes textos: ARISTÓTELES, 1996;


SANTOS, 2001; SILVA, 2011.

420
Homem e do Cidadão,19 que, como se sabe, concentra-se na dimensão universal dos
direitos humanos, apresenta, em seu preâmbulo, a assertiva de que “a ignorância,
o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem” são geradores “dos males
públicos e da corrupção dos governos” e, por consequência, da infelicidade coletiva.20
Até mesmo no Brasil, ainda no período anterior à independência, esse ideário de
alguma maneira reverbera. Percebe-se alguma inspiração nesse sentido, por exem-
plo, na conhecida frase de D. Pedro I, então príncipe regente, que, em 1822, diante
da convocação da família real para que retornasse a Portugal, decide permanecer
no Brasil e proclama: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou
pronto! Digam ao povo que fico”.
Na sequência desse relevante episódio, um dos marcos do processo de eman-
cipação do Brasil, a aludida e famosa manifestação chega a ganhar espaço na dog-
mática jurídica, sendo encontrada instigante referência à “felicidade Política”21 na
parte preambular da Constituição de 1824.
Fato é que, não obstante perspectivas filosóficas, históricas e políticas, que não
serão objeto específico de maior abordagem no presente trabalho, o tema Direito e
Felicidade (Law and Happiness) tem, efetivamente, gerado cada vez mais reflexões
em diversos campos do estudo, como, por exemplo, o das ciências médicas, econô-
micas e jurídicas, conforme se passará a expor.

3.1 · FELICIDADE: UMA ALUSÃO CADA VEZ MAIS PRESENTE


NOS TEXTOS LEGISLATIVOS INTERNACIONAIS
A contar de meados do século passado, percebe-se que textos constitucionais de
países de localidades diversas, muito embora com concepções e objetivos distintos,
passam a incluir nos respectivos comandos legais a palavra felicidade.
Podem ser citados, a título inicial, o Japão e a Coreia do Sul, que, impactados pelos
efeitos da Segunda Guerra, incorporaram às respectivas Constituições de 1947 e de
1948 a noção de dignidade das pessoas correlacionada ao direito à busca da felicidade.22

19 A íntegra da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão pode ser consultada na biblioteca virtual
de Direitos Humanos da USP no seguinte endereço: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/
Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-
at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html. Acesso em: 27 fev. 2020.
20 Tais concepções, alguns anos depois, foram incorporadas às Constituições Francesas de 1791 e de
1793, conforme indica o seguinte texto: PEIXINHO, 2012.
21 “DOM PEDRO PRIMEIRO, POR GRAÇA DE DEOS, e Unanime Acclamação dos Povos, Imperador
Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os Nossos Subditos, que tendo-Nos
requeridos os Povos deste Imperio, juntos em Camaras, que Nós quanto antes jurassemos e fizessemos jurar
o Projecto de Constituição, que haviamos offerecido ás suas observações para serem depois presentes à
nova Assembléa Constituinte mostrando o grande desejo, que tinham, de que elle se observasse já como
Constituição do Imperio, por lhes merecer a mais plena approvação, e delle esperarem a sua individual, e
geral felicidade Política: Nós Jurámos o sobredito Projecto para o observarmos e fazermos observar, como
Constituição, que dora em diante fica sendo deste Imperio a qual é do theor seguinte:
[...]” (BRASIL, 1824, grifo nosso).
22 Confira-se, ilustrativamente, a redação do art. 13 da Constituição do Japão: “Todas as pessoas deverão
ser respeitadas como indivíduos. O direito à vida, à liberdade e à busca pela felicidade, contanto

421
Também sempre mencionado nas ocasiões em que se aborda a matéria, o Butão,
país asiático localizado ao sul da China e ao nordeste da Índia, preconizou em sua
Constituição de 2008 não somente o termo direito à felicidade, mas também ins-
tituiu um inusitado indicador denominado Índice Nacional de Felicidade Bruta.23
No Continente Africano, por sua vez, vários países, entre eles Libéria (1986),
Namíbia (1990), Gana (1992), Nigéria (1999), Egito (2004) e Suazilândia (2005),
incorporaram às respectivas legislações constitucionais o direito à felicidade, sendo
tais proposições, porém, mais relacionadas a fatores econômicos (LEAL, 2015).
Especialmente na Nigéria (1999), a menção à felicidade coletiva parece se contra-
por ao fenômeno do “Supercapitalismo”, abordado na obra de Robert Reich (2008).
Colhe-se dessa abordagem a tese de que o modelo que se estabelece após o chamado
“Capitalismo Democrático”, ao consolidar um cenário de fragilização de direitos tra-
balhistas, de ampla desregulação e de desmobilização da participação social, pode
acentuar os padrões de concentração de renda, comprometendo o bem-estar de signi-
ficativa parcela da população e, consequentemente, os respectivos níveis de felicidade.24
Nos Estados Unidos da América, a Constituição de 1787 não reproduziu a já
mencionada referência feita pela Declaração de Independência (1776). Tal previsão,
contudo, acabou sendo adotada em várias das Constituições dos Estados norte-
-americanos, como, verbi gratia, a Constituição do Estado da Virgínia, que con-
sagrou, explicitamente, na Seção I (Igualdade e Direitos do Homem), o direito das
pessoas a pursuing and obtaining happiness.25
Na França, o preâmbulo da Constituição de 1958 ratifica o reconhecimento
daquele país aos fundamentos fixados pela já referida Declaração de 1789, reiterando,
assim, ainda que obliquamente, a relevância do direito à felicidade para aquela nação.
Até mesmo a Organização das Nações Unidas, na Assembleia Geral realizada
em 2012, reconheceu a importância de que a felicidade e o bem-estar estejam
presentes na formulação das políticas públicas. Nesse sentido, deve-se lembrar

que não interfiram no bem-estar público comum, serão de suprema consideração na legislação e
em outras instâncias governamentais”. Fonte: sítio da Embaixada do Japão no Brasil. Disponível em:
https://www.br.emb-japan.go.jp/cultura/constituicao.html. Acesso em: 20 fev. 2020.
23 A respeito desse índice (GNH – Gross National Happiness), Merlo e Pedroso esclarecem que se
fundamenta, sobretudo, no fato de que não se deve avaliar o desenvolvimento de um país apenas se
calculando o crescimento econômico, mas também vários outros fatores, como o bem-estar psicológico,
a valorização da cultura, os níveis de educação e a governança (MERLO; PEDROSO, 2014).
24 Igualmente abordando esse viés do capitalismo, predatório e excludente, Barnes indica três
consequências não muito auspiciosas decorrentes desse modelo, quais sejam: “A destruição da
natureza, o aumento da desigualdade e a falha em promover a felicidade, apesar da pretensão de
fazê-la”. Tradução livre. Lê-se, no original: “the destruction of nature, the widening of inequality
and the failure to promote happiness despite the pretense of doing so” (BARNES, 2006, p. 25).
25 A íntegra do texto da Constituição do Estado da Virginia, de 1776, encontra-se disponível no seguinte
endereço eletrônico: https://law.lis.virginia.gov/constitution/article1/section1/. Acesso em: 10 mar.
2020. Ainda quanto ao tema, Comparato (2008), além de mencionar tal Carta Estadual, cita outros
dois Estados que seguiram os parâmetros da Virgínia: “É preciso assinalar que nesse campo dos direitos
individuais, os norte-americanos foram, incontestavelmente, pioneiros. [...] Em 16 de agosto do mesmo
ano, a Pennsylvania aprovou, juntamente com a sua Constituição, uma declaração de direitos largamente
copiada da Declaração de Independência. Quatro anos depois, em 1780, o Estado de Massachusetts
adotou também o seu Bill of Rights, redigido por John Adams” (COMPARATO, 2008, p. 112).

422
que vários dos aspectos destacados nos dezessete Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável – ODS (ONU, 2015), tais como a erradicação da pobreza, a redução das
desigualdades e a proteção do planeta, têm inequívoco potencial para impactar, de
forma direta e real, a vida e a felicidade das pessoas. Exatamente por esse motivo,
estabeleceu-se o dia 20 de março como o “Dia Internacional da Felicidade” (ONU,
2018), independentemente das inúmeras visões que se possa atribuir à matéria.

3.2 · AS DIVERSAS COMPREENSÕES CONCEITUAIS


QUE ENVOLVEM O TEMA E ALGUNS JULGADOS
PROFERIDOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Conforme já exposto, a compreensão acerca do significado da palavra felicidade
revela-se, a priori, fluida, sendo necessária a realização de estudo contextualizado para
que se possa ter maior percepção quanto ao alcance e às fronteiras por ela abarcadas.
Não se mostra incomum, ainda hoje, a abordagem da felicidade sob o panorama
do utilitarismo. Nesse campo, Sandel (2012), refletindo sobre o utilitarista Jeremy
Bentham (1748-1832), assim discorre:
Bentham, filósofo moral e estudioso das leis, fundou a doutrina utilitarista. Sua
ideia central é formulada de maneira simples e tem apelo intuitivo: o mais ele-
vado objetivo da moral é maximizar a felicidade, assegurando a hegemonia do
prazer sobre a dor. De acordo com Bentham, a coisa certa a fazer é aquela que
maximizará a utilidade. Como “utilidade” ele define qualquer coisa que produza
prazer ou felicidade e que evite a dor ou o sofrimento.
Bentham chega a esse princípio por meio da seguinte linha de raciocínio: todos
somos governados pelos sentimentos de dor e prazer. São nossos “mestres sobe-
ranos”. Prazer e dor nos governam em tudo que fazemos e determinam o que
devemos fazer. Os conceitos de certo e errado “deles advêm”.
Todos gostamos do prazer e não gostamos da dor. A filosofia utilitarista reconhece
esse fato e faz dele a base da vida moral e política. Maximizar a “utilidade” é um
princípio não apenas para o cidadão comum, mas também para os legisladores. Ao
determinar as leis ou diretrizes a serem seguidas, um governo deve fazer o possível para
maximizar a felicidade da comunidade em geral. (SANDEL, 2012, p. 48, grifo nosso).
Sabe-se que várias objeções são constantemente realizadas em relação à ótica
voluntarista de Bentham, destacando-se, em especial, a que versa sobre o perigo
de que a premissa que sustenta tal pensamento, qual seja, a da máxima felicidade,
vulnere garantias e direitos civilizatórios fundamentais, mormente aqueles relacio-
nados a grupos fragilizados e minoritários.
Justamente nesse ponto, John Stuart Mill (1806-1873) tenta estabelecer balizamen-
tos àquela versão do utilitarismo, ressaltando que, não obstante a busca pela felicidade
máxima, “o Governo não deve interferir na liberdade individual a fim de proteger uma
pessoa de si mesma ou impor crenças da maioria no que concerne à melhor maneira
de viver”. Enfatiza, ainda, que “as pessoas devem ser livres para fazer o que quiserem,
contanto que não façam mal aos outros” (apud SANDEL, 2012, p. 64).
Na esteira dessas relevantes proposições, podem ser apresentados, respecti-
vamente, os dois primeiros vieses do direito à felicidade, quais sejam, o da auto-
determinação, também chamado de “busca da felicidade”, do qual é decorrente a
liberdade das pessoas para se conduzirem da maneira que melhor lhes aprouver;

423
bem assim aquele que confere ênfase à dignidade dos seres humanos e, respeitado
esse pilar civilizatório, veda, ao menos em certa medida, as chamadas práticas que
priorizam os prazeres perversos.
Quanto ao primeiro viés, o da busca da felicidade, merecem ser extraídos de
julgado do Supremo Tribunal Federal excertos da seguinte ementa:
Recurso Extraordinário. Repercussão Geral reconhecida. Direito Civil e
Constitucional. Conflito entre paternidades socioafetiva e biológica. Paradigma
do casamento. Superação pela Constituição de 1988. Eixo central do Direito de
Família: deslocamento para o plano constitucional. Sobreprincípio da dignidade
humana (art. 1º, III, da CRFB). Superação de óbices legais ao pleno desenvolvi-
mento das famílias. Direito à busca da felicidade. Princípio constitucional implí-
cito. Indivíduo como centro do ordenamento jurídico-político. Impossibilidade
de redução das realidades familiares a modelos pré-concebidos.
[...]
3. A família, objeto do deslocamento do eixo central de seu regramento norma-
tivo para o plano constitucional, reclama a reformulação do tratamento jurídico
dos vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III,
da CRFB) e da busca da felicidade.
[...]
6. O direito à BUSCA DA FELICIDADE, implícito ao art. 1º, III, da Constituição,
ao tempo que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político,
reconhece as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade
de escolha dos próprios objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos meios
eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares. Precedentes
da Suprema Corte dos Estados Unidos da América e deste Egrégio Supremo
Tribunal Federal: RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 26/08/2011;
ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 14/10/2011.
7. O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero instrumento de consecução das
vontades dos governantes, por isso que o direito à busca da felicidade protege o
ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a sua realidade fami-
liar em modelos pré-concebidos pela lei. (BRASIL, 2017, grifo nosso).
Acerca da outra perspectiva (vedação aos prazeres perversos), por sua vez, o
Supremo Tribunal Federal enfrentou-a em diversas ocasiões, como nos julgamentos
das ADIs n. 2514/DF e n. 3776/DF, nas quais considerou inconstitucional, respec-
tivamente, leis estaduais, catarinense e potiguar, que autorizavam e disciplinavam
competições entre “galos combatentes”, prática popularmente conhecida como
rinha de galos. Os ministros do Excelso Pretório, por unanimidade, concluíram,
naquelas ocasiões, que tal atividade revelava o exercício prazeres mórbidos, atenta-
tórios a vários parâmetros constitucionalmente fixados.26
Pode-se, por outro lado, pensar a felicidade também no campo da democracia,
cotejando-a, assim, com a possibilidade conferida aos cidadãos para a efetiva parti-
cipação nos processos coletivos de diálogo e de tomada de decisão.
Para além de frases impactantes, como a de que “todo poder emana do povo”,
estampada no parágrafo único do art. 1º de nossa Constituição Federal, Frey e Stutzer

26 Ainda a respeito da limitação aos prazeres sádicos, recomenda-se a leitura de RIOS, 2006.

424
(2002), em texto regularmente citado, estabelecem concreta associação entre o exer-
cício dos instrumentos da democracia e o incremento da felicidade da população.
Ponderadas, claro, as realidades socioeconômicas completamente particulares
da Suíça, cenário empírico da pesquisa, concluíram que, quanto mais as pessoas
participam dos processos deliberativos, vivenciando mecanismos democráticos,
mais se tornam felizes.
Na referida investigação, replicada, mais tarde, por vários pesquisadores, em
outros contextos geopolíticos, os mencionados autores, em livre tradução, assim
discorrem a respeito da proposição:
A felicidade das pessoas é influenciada pelo tipo de sistema político em que elas
vivem. Instituições democráticas, em particular a possibilidade de participação
em pleitos eleitorais e de escolha direta em relação a alguns temas, contribuem
para a sensação de felicidade.
[…]
Estudos realizados na Suíça revelaram que a possibilidade de participar direta-
mente da democracia (democracia direta) exerce um significativo efeito na feli-
cidade, mais do que fatores demográficos e econômicos normalmente levados em
consideração. A diferença percentual verificada entre pessoas que têm maior parti-
cipação por meio da democracia direta e as pessoas que têm menos possibilidades
de participação direta foi maior do que a verificada entre pessoas que se encontram
no topo e na base das categorias de renda. (FREY; STUTZER, 2002, p. 35 e 36).
Sob essa ótica, a do engajamento das pessoas em espaços públicos de manifes-
tação e de debate, o Supremo Tribunal Federal, no âmbito da ADPF n. 187, relatada
pelo ministro Celso de Mello, autorizou a realização de passeatas conhecidas como
“Marchas da maconha”, que reúnem cidadãos favoráveis à descriminalização da
aludida droga, contrários, portanto, ao modelo proibicionista e aos efeitos dele
decorrentes. Na ocasião, foram lembrados, além da busca da felicidade, tanto o
direito à reunião em espaços públicos (liberdade-meio), desde que para fins pací-
ficos, quanto a prerrogativa da livre manifestação do pensamento (liberdade-fim).
Ao final do julgamento, os citados encontros foram permitidos e, por conseguinte,
conferiu-se interpretação conforme o texto constitucional ao art. 287 do Código
Penal, que tipifica o crime de apologia de fato criminoso (BRASIL, 2014).
Chega-se, finalmente, ao direito à felicidade apreciado em razão do bem-
-estar (well-being). Nesse ponto, a doutrina comumente apresenta duas dimensões
a serem consideradas.
A primeira, objetiva, concretizada pelos direitos sociais, pode ser encontrada de
forma mais genérica no ponto em que o constituinte pátrio reporta-se a uma socie-
dade justa, livre e solidária (art. 1º), bem assim, claro, no lastro dos já mencionados
arts. 6º e seguintes da Carta da República.
Extrai-se dessa vertente, denominada prestacional, que, sem que o Estado
forneça garantias objetivas mínimas, a liberdade sustentada por Stuart Mill não
pode ser exercida de maneira satisfatória. Colhe-se exatamente essa abordagem de
Tourinho (LEAL, 2013) na seguinte passagem:
Por essa perspectiva, o Estado não deve simplesmente cruzar os braços, permi-
tindo que o indivíduo exerça o seu direito à busca a felicidade, que é a acepção

425
negativa ou liberal do direito à felicidade. O direito prestacional à felicidade
invoca uma atuação do Estado de modo a fornecer ao indivíduo instrumentos que
o auxiliem na consecução do seu projeto de satisfação de preferências ou desejos
legítimos. (LEAL, 2013, p. 208 e 209, grifo nosso).
Trata-se, é importante lembrar, de uma alusão ao chamado mínimo existencial,
que não se refere à exclusiva sobrevivência (mínimo vital), mas ao entendimento de
que a vida deve se fazer acompanhar por parâmetros básicos de qualidade.
Tal compreensão é explorada em artigo de Sarlet e Zockun, para os quais
[...] da vinculação com a dignidade da pessoa humana resulta que a garantia
efetiva de uma existência digna (vida com dignidade) abrange mais do que a
garantia da mera sobrevivência física (que cobre o assim chamado mínimo
vital e guarda relação direta com o direito à vida), situando-se, de resto, além
do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se, nesse sentido, que, se uma vida sem
alternativas não corresponde às exigências da dignidade humana, a vida humana
não pode ser reduzida à mera existência. Tal linha de fundamentação, em termos
gerais, tem sido privilegiada também no direito constitucional brasileiro, res-
salvada especialmente alguma controvérsia em termos de uma fundamentação
liberal ou social do mínimo existencial e em relação a problemas que envolvem
a determinação do seu conteúdo, já que, não se há de olvidar, da fundamentação
diversa do mínimo existencial podem resultar consequências jurídicas distintas,
em que pese uma possível convergência no que diz com uma série de aspectos.
(SARLET; ZOCKUN, 2016, p. 121).27
Resta claro, diante desse quadro, que a busca pelo mínimo representativo do
bem-estar social não é o norte, o destino, devendo se configurar apenas como linha
de partida. Quanto ao máximo, a realidade será modulada pelo comprometimento
das sociedades, pelos contextos naturais e geopolíticos, que não se apartam das
potencialidades e das limitações econômicas de cada nação.
De outro ângulo, não há como negar a existência de uma dimensão emocional
ou imaterial da felicidade. Analisando essa segunda orientação, Tourinho (LEAL,
2013) defende que o direito à felicidade, apesar da evidente conexão com o fator
prestacional, não se revela como mera efetivação dos aludidos direitos sociais. Nesse
sentido, apesar de reconhecer tal vínculo, sustenta que
[...] o direito à felicidade vai além, porque dirige o esforço público para satisfação
de aspirações específicas dos indivíduos, voltadas para a realização de planos
racionais de concretização de preferências ou desejos legítimos, reputados por
eles como concretização de suas aspirações por felicidade e, do ponto de vista
coletivo, dirige o indivíduo para o total desenvolvimento de suas potencialidades
e talentos de modo a ser cada vez mais útil e enriquecedor para a coletividade.
(LEAL, 2013, p. 215).
Justamente acerca desse panorama intangível e da subjetividade da felicidade,
Richard Easterlin desenvolveu seu conhecido paradoxo, segundo o qual uma
sociedade, ao atingir um adequado padrão patrimonial, apresenta nítidos ganhos
em termos de felicidade. Porém, depois de alcançado referido patamar, esse cres-
cimento deixa de acontecer. Em outras palavras, o elo entre felicidade e condição
econômica só é identificado até certo ponto. Atingido um determinado marco, o

27 Quanto ao mínimo existencial e à dignidade da pessoa, sugere-se, ainda: BITENCOURT NETO, 2010.

426
avanço material ou prestacional não repercute mais, ao menos significativamente,
nos índices de felicidade (EASTERLIN, 1995; 2010).
Uma vez examinadas todas essas diferentes perspectivas acerca do tema, impõe-
-se reconhecer que nossa realidade ainda aponta para evidentes defasagens de
ordem objetiva. Por esse motivo, optou-se por explorar, no próximo tópico, com
maior verticalidade, o segmento prestacional da saúde, retomando a temática apre-
sentada na primeira parte do presente artigo e associando-a à ideia de felicidade.

3.3 · APONTAMENTOS ACERCA DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E


EVIDÊNCIAS DA CORRELAÇÃO ENTRE FELICIDADE E SAÚDE PÚBLICA
Após a previsão constante da primeira Carta Magna, que se reportava, em seu
preâmbulo, conforme já exposto, à noção de “felicidade política”, a palavra felicidade
não mais foi expressamente prevista em nossa dogmática constitucional, o que não
significa, contudo, que o respectivo significado tenha deixado de se fazer presente.
Nesse sentido, vários doutrinadores consideram que a lei maior vigente, ao não
hesitar quanto à essencialidade da dignidade humana, alberga, por consectário
lógico, a definição de felicidade, ainda que talvez com perfil mais neutro, mor-
mente quando utiliza a expressão qualidade de vida (art. 225 da CF/88 – Do Meio
Ambiente) ou o termo bem-estar, presente não só no preâmbulo, mas também nos
arts. 23, parágrafo único (equilíbrio entre desenvolvimento e bem-estar); 186, IV
(Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária); 193 (Da Ordem Social);
219 (Da Ciência, Tecnologia e Inovação); 230 (Dos Idosos); e 231 (Dos Índios).
Do ponto de vista jurisprudencial, julgados proferidos pelo Supremo Tribunal
Federal endossam esse entendimento. É o que se percebe, por exemplo, do Agravo
Regimental no Recurso Extraordinário n. 477.554, no qual o ministro Celso de
Mello, rememorando precedentes do próprio STF e da Suprema Corte norte-ameri-
cana, assim aborda o tema:
[…] Nesse contexto, o postulado constitucional da busca da felicidade, que
decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o princípio da dignidade da
pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e
expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria
teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja
ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e fran-
quias individuais. (BRASIL, 2011, p. 00287, grifo nosso).28
Pode-se buscar inspiração internacional mais remota desse ideário, a exemplo
da Constituição da República de Weimar, de 1919, que previa, em seu artigo 151, que
a vida econômica deveria corresponder aos ditames da justiça, assegurando a todos
uma existência digna. No mesmo sentido, a Declaração dos Direitos Humanos da
ONU de 1948 estabelece, em seu art. XXV, que todo ser humano tem direito a uma
qualidade de vida tal que lhe sejam assegurados saúde, alimentação, habitação, ves-
tuário e serviços de previdência social (ONU, 1948).
Especificamente no que concerne aos direitos sociais, a correlação entre feli-
cidade e garantias fundamentais foi evidenciada com a apresentação de duas

28 No mesmo sentido, podem ser citadas a ADI n. 3.300-MC/DF e a STA n. 223-AgR/PE.

427
propostas de emenda à Constituição, quais sejam, a PEC/Senado n. 19/201029 e a
PEC/Câmara n. 513/2010.30 Apesar de apresentadas perante casas parlamentares
distintas, ambas tiveram como objetivo, de forma idêntica, incluir, na redação do
art. 6º da CF/88, os seguintes termos: “São direitos sociais, essenciais à busca da
felicidade, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados” (grifo nosso).
Na seara da saúde, esse liame se revela ainda mais nítido, uma vez que o desen-
volvimento e o exercício pleno das potencialidades humanas, nos mais variados
níveis, estão relacionados, em boa medida, ao equilíbrio e ao bom funcionamento
do organismo.
Em harmonia com tal tese, não são poucos os autores que afirmam a existência de
patente vinculação entre o sentimento de felicidade e o estado de saúde ou de doença,
como Barak (2006), que, a despeito dos fatores subjetivos que envolvem o assunto,
demonstrou que há uma íntima ligação entre as emoções e o início ou progressão
do câncer, HIV, doenças cardiovasculares e transtornos autoimunes (BARAK, 2006).
Em igual vertente, Tourinho, não perdendo de vista vários autores com posição
semelhante, assim esclarece:
Segundo Schopenhauer “um mendigo saudável é mais feliz do que um rei doente”.
Madame du Châtelet recomendava: “Empenhemo-nos, portanto, em ter boa
saúde”. Stuart Mill chegou a inserir a saúde dentre os principais prazeres. Richard
Layard afirma que há sete fatores que nos afetam quanto à felicidade, sendo um
deles a saúde. Para a pesquisadora Carol Graham, ter saúde torna as pessoas mais
felizes e, melhor ainda, “a felicidade pode produzir efeitos positivos adicionais
sobre a saúde – um fato a que tanto se alude na literatura, mas que é mais difícil
de provar empiricamente com a maioria dos dados”. (LEAL, 2013, p. 254-255).31
Justamente no segmento das evidências empíricas, Frey e Stutzer, esqua-
drinhando o tema do ponto de vista sociodemográfico, asseveram que estudos

29 PEC/Senado n. 19/2010 – Ao final da 54ª legislatura, após ter sido aprovada pela Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania, a aludida PEC teve a tramitação arquivada, conforme o art.
332 do Regimento Interno do Senado. Informações disponíveis no endereço eletrônico: https://
www25.senado.leg.br /web/atividade /materias/-/materia/97622. Acesso em: 29 jun. 2020.
30 PEC/Câmara n. 513/201 – Após a apresentação de parecer favorável perante a Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania, a proposta foi arquivada, a teor do art. 105 do Regimento
Interno da Câmara dos Deputados. Informações disponíveis no endereço eletrônico: https://www.
camara.leg.br/proposicoes Web/fichadetramitacao?idProposicao=484478. Acesso em: 29 jun. 2020.
31 Corroborando essa tese, a professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade
de Ribeirão Preto Emanuele Seicenti de Brito, em entrevista concedida ao Instituto de Estudos
Avançados da USP, lista nove aspectos que, segundo entende, têm potencial para interferir no já
citado Índice de Felicidade Nacional Bruta. Nesse sentido, a professora “considera o bem-estar
psicológico, que inclui questões como autoestima e estresse; políticas de saúde e hábitos que
prejudicam ou melhoram a saúde; o uso do tempo, incluindo tempo para lazer e para a família; a
vitalidade comunitária, ou seja, o nível de interação com a sociedade em geral; a educação, a cultura
e as oportunidades de desenvolver atividades artísticas; o meio ambiente, ou seja, a percepção da
população quanto à qualidade da água e do ar, bem como o acesso a áreas verdes; a governança; a
representatividade social em órgãos públicos; e, por último, o padrão de vida, a renda familiar e a
qualidade de moradia” (CARDOSO, 2018, grifo nosso).

428
realizados em diferentes países e períodos indicaram que a má saúde diminui a
avaliação de felicidade (FREY; STUTZER, 2002, p. 28).
Finalmente, Vosgerau e Cabrera, perquirindo a questão sob a ótica da saúde
coletiva, afiançam tal pensamento e complementam:
Na área da saúde coletiva, recentemente, há uma tendência crescente para a
realização de investigações que analisem os fatores de proteção e promoção da
saúde. Entre os desfechos positivos em saúde que têm despertado a atenção dos
pesquisadores nacionais e internacionais, destacam-se a felicidade e o bem-estar
subjetivo. (VOSGERAU; CABRERA, 2013).
Exatamente nesse ponto, entrelaçam-se, em plena conformidade, a concepção
de saúde pública adotada a partir da Constituição de 1988 e a ideia de felicidade.
Retornando à já mencionada Reforma Sanitarista (item 2.1), verdadeiro marco
civilizatório que culminou com o paradigma de saúde constitucionalmente ado-
tado, Drauzio Varella, em artigo publicado por vários veículos de comunicação,
relembra a famosa frase do sanitarista Gonzalo Vecina, para quem “Sem o SUS, é
a barbárie”. Varella rememora seus mais de 20 anos de prática médica em período
anterior ao Sistema Único de Saúde para, na sequência, concordar, integralmente,
com a assertiva (VARELLA, 2019).
De igual modo, Marco Antônio Andreazzi, em entrevista à Agência de Notícias
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apesar de reconhecer que
a realidade da saúde pública se encontra distante dos alicerces que foram firmados
em 1988,32 ratifica o aludido histórico de avanços nas últimas três décadas, espe-
cialmente em relação à população carente afastada dos grandes centros urbanos.
Destaca, nesse sentido, o aumento dos serviços básicos e a significativa redução de
algumas patologias (PARADELLA, 2018).
Assim, do ponto de vista teórico, o modelo de saúde pública apresentado no
primeiro tópico costuma ser frequentemente exaltado, inclusive em fóruns inter-
nacionais, mostrando-se significativos, também no prisma prático, os progressos
estatísticos alcançados em inúmeros indicadores, como os referentes à vacinação
pública, à redução da mortalidade infantil, ao aumento do número de transplantes
e ao controle de endemias.
Nesse contexto, não restam incertezas de que incrementos em termos de uni-
versalização da prestação de saúde repercutem em índices de felicidade da popula-
ção beneficiada, direta ou indiretamente, sendo esse o raciocínio desenvolvido por
Fowler e Christakis:
[...] a doença é uma fonte potencial de infelicidade para os pacientes e também
para aqueles indivíduos que os cercam. Ofertar e possibilitar o acesso a serviços
de saúde de qualidade para os doentes pode não só melhorar o seu bem–estar
subjetivo, mas também pode ampliar o bem–estar subjetivo das pessoas que estão
conectadas direta ou indiretamente ao usuário dos serviços, num movimento de
cascata, justificando assim ainda mais a busca por um sistema de saúde equâ-
nime, universal e integral. (FOWLER; CHRISTAKIS, 2008, grifo nosso).

32 A respeito de algumas das mazelas que concretamente afligem nosso desenho de saúde pública,
como o subfinanciamento, a ineficiência da gestão e os desvios éticos, confira-se, pela ordem:
SANTOS; FUNCIA, 2019; MERE JUNIOR, 2017; e LOPES; TOYOSHIMA, 2013.

429
Por fim, resgatando a definição de felicidade democrática, uma das vertentes
abordadas no item 3.2, pode-se afirmar que a legislação brasileira, ao estimular a
participação popular nos processos de tomada de decisão no campo da saúde, tem
grande conexão com a já destacada pesquisa de Frey e Stutzer (2002), no sentido
de que pessoas que participam de maneira mais efetiva dos processos decisórios
coletivos tendem a se sentir mais felizes.
De se ressaltar, nesse cenário, mesmo que de forma sucinta, o precioso desígnio
buscado pela Lei n. 8.142/1990, que teve como desiderato central conferir viabilidade
prática aos propósitos constitucional (art. 198, III, da CF/88) e infraconstitucional (art.
7º, VIII, da Lei n. 8.080/1990) de garantir a presença da sociedade civil na gestão do SUS.
Detalhando o contexto em que se encontrava prevista tal participação social,
Costa e Vieira assim apontam:
As bases legais sobre a participação social no SUS foram promulgadas em 1990
na Lei Orgânica da Saúde (LOS). É importante registrar que a LOS foi editada
após importantes vetos do governo em uma atmosfera muito nebulosa quanto
à efetivação das conquistas constitucionais. A Lei n. 8.080/90 reafirma no seu
artigo 7° a participação social como um princípio para o SUS e a Lei n. 8.142/90
no seu artigo 1° define que, sem prejuízo das funções do Poder Legislativo, sejam
criados os conselhos e as conferências como forma de instituição de participação
da comunidade na gestão do SUS. (COSTA; VIEIRA, 2012, p. 247).
Em síntese, a Lei n. 8.142/1990 busca, então, atribuir concretude à previsão nor-
mativa de participação das comunidades quanto aos rumos das políticas públicas de
saúde, deixando clara a centralidade da atuação das Conferências e dos Conselhos
nela previstos.33
Percebe-se, portanto, seja pelo viés utilitarista, seja pelo prestacional, seja pelo
incentivo à efetiva participação democrática, a nítida conexão entre os contornos da
saúde púbica vigente e o direito à felicidade.

4 · CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso ordenamento jurídico, após longo processo histórico, inspirado, ao menos
em parte, na perspectiva do Estado de Bem-Estar Social, estabelece que a saúde con-
figura-se como “[...] direito de todos e dever do Estado” (art. 196, CF/88), diretriz,
não por acaso, reproduzida nas Cartas Estaduais de todos os entes da Federação.
Pode-se dizer, em apertada súmula, que o modelo sintetizado pelo referido
comando origina-se na chamada Reforma Sanitarista, movimento concebido e
fecundado, ao longo das décadas de 1970 e de 1980, nas organizações sociais comu-
nitárias, nos movimentos sindicais e nas universidades. Pautada por um conjunto
de preceitos que entrelaçam os ideais de saúde e de democracia, essa reforma propôs
radical alteração do desenho da saúde pública até então vigente no País, que supera
o binômio voluntarista-previdenciário e passa a ser norteado, entre outros, pelos
princípios da universalidade, da integralidade e da equidade.
Com a incorporação, pelo ordenamento jurídico pátrio, de uma visão ampliada da
saúde, começa-se a compreendê-la não apenas como requisito para a sobrevivência,

33 Acerca de tal tema, recomenda-se: NUNES, 2011.

430
em relação à qual se tem o natural impulso de preservação. Por esse olhar, para além
do panorama do direito à vida em si, as garantias relacionadas à saúde passam a
representar elemento fundamental atrelado à sua dignidade e à sua qualidade.
Constata-se, portanto, que a formulação estrutural básica da Carta
Constitucional, ao evidenciar, logo no primeiro dispositivo, a centralidade da
expressão dignidade, remete ao que a doutrina convencionou nomear “proibição da
insuficiência”, que, por seu turno, encontra-se vinculada, basicamente, à imposição
de que um conteúdo mínimo de direitos, aí incluídos os direitos sociais previstos no
art. 6º da CF/88, estará preservado.
Na esfera da saúde, pode-se afirmar que cada ser humano é capaz de compreender,
quase que intuitivamente, o significado das palavras dor, sofrimento e doença. Fixada
essa máxima, a conexão oposta, entre saúde e felicidade, revela-se praticamente ine-
quívoca. Portanto, quando o ordenamento jurídico pátrio fixa o mencionado baliza-
mento normativo, direciona-se, claramente, ao combate dos males que podem nos
afastar do ideal da cognominada “vida boa” e, por conseguinte, de uma vida feliz.
Nos diversos campos do conhecimento que se encarregam de investigar a temá-
tica da felicidade, paira consenso de que a matéria pode ser refletida sob diferentes
olhares. Especificamente no segmento jurídico, as várias legislações pelo mundo
que têm incorporado o tema em suas dogmáticas abordam, de maneira especial, a
percepção da felicidade sob o panorama utilitarista e prestacional.
Aliás, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em algumas ocasiões, o
direito à felicidade ou à busca de felicidade como nítido postulado implícito à Carta
da República, representativo da “ideia-força” decorrente do fundamento constitu-
cional da dignidade da pessoa.
Pode-se afirmar, assim, que, se um ordenamento jurídico é capaz de conferir
a seus destinatários arcabouço normativo adequado, priorizando a prevenção das
enfermidades que lhes podem acometer e, quando presentes, tratando-as de forma
adequada, estará, objetivamente, direcionado a prestigiar a felicidade de tal con-
junto de pessoas.
Nesses termos, ao dar ênfase à íntima correlação abordada, o presente trabalho
teve como propósito demonstrar que, no campo da saúde, as opções efetuadas pelo
legislador constituinte brasileiro de 1988, ao priorizarem um sistema destinado a
conferir a todos melhores condições de saúde, acabaram por homenagear, ao menos
no plano conceitual, por decorrência lógica, o denominado direito à felicidade.

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Livro V da Ética a Nicômaco. Trad. Vallandro, L. e Bornheim, G. In:
ARISTÓTELES. Os pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. p. 193-215.
AROUCA, Antônio Sergio da Silva. O dilema preventivista: contribuição para a
compreensão e crítica da medicina preventiva. 1975. Tese (Doutorado) – Universidade
Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas, SP, 1975. Disponível em: http://
repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/311321. Acesso em: 17 jan. 2020.
AROUCA, Antônio Sergio da Silva. SUS: revendo a trajetória, os avanços e retrocessos
da reforma sanitária brasileira. Tema Radis, 20 fev. 2001. p. 3-8.

431
BARAK, Y. The immune system and happiness. Autoimmunity Reviews, v. 5, n. 8, p.
523-527, 2006.
BARNES, Peter. Capitalism 3.0: a guide to reclaiming the commons. San Francisco:
Berrett-Koehler Publishers, 2006.
BITENCOURT NETO, Eurico. O direito ao mínimo para uma existência condigna. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC n. 513, de 2010. Inclui o direito à busca da felicidade
como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil e direito inerente a cada
indivíduo e à sociedade, mediante a dotação, pelo Estado e pela própria sociedade, das
adequadas condições de exercício desse direito. Disponível em: https://www.camara.leg.
br /proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=484478. Acesso em: 29 jun. 2020.
BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março
de 1824. Coleção de Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, 22 abr. 1824. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em:
3 mar. 2020.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Brasília, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Cons
tituicao.htm. Acesso em: 3 ago. 2020.
BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para
a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos
serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília,
20 set. 1990a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm.
Acesso em: 4 ago. 2020.
BRASIL. Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990b. Dispõe sobre a participação da
comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências
intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências.
Diário Oficial da União, Brasília, 29 dez. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/Leis/ L8142.htm. Acesso em: 3 jul. 2020.
BRASIL. Senado Federal. PEC n. 19, de 2010. Altera o art. 6º da Constituição Federal para
considerar os direitos ali previstos como direitos sociais essenciais à busca da felicidade.
Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/97622.
Acesso em: 29 jun. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 2514/DF. Relator ministro Eros Grau,
julgamento: 29.6.2005. Diário da Justiça, Brasília, 9 dez. 2005.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 3776/DF. Relator ministro Cezar Peluso,
julgamento: 14.6.2007. Diário da Justiça, Brasília, 29 jun. 2007.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 132/DF. Relator ministro Celso de Mello,
julgamento: 5.5.2011. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 14 out. 2011.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 187/DF. Relator ministro Celso de Mello,
julgamento: 15.6.2011. Diário de Justiça, Brasília, 28 maio 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 2. Turma. AgR no RE 477.554/MG. Relator ministro
Celso de Mello. DJe-164, divulg. 25.8.2011, public. 26 ago. 2011, ement. vol. 02574-02.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n. 477554/MG. Relator ministro Celso de Mello,
julgamento: 16.8.2011. Diário da Justiça, Brasília, 26 nov. 2011.

432
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n. 898060/SC. Relator ministro Luiz Fux,
julgamento: 21.9.2016. Diário da Justiça, Brasília, 24 ago. 2017.
CARDOSO, Thais. Desenvolvimento dos países pode ser medido pela felicidade. Instituto
de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. São Paulo, fev. 2018. Disponível
em: http://www.iea.usp.br/noticias/desenvolvimento-dos-paises-pode-ser-medido-pela
-felicidade. Acesso em: 18 fev. 2020.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São
Paulo: Saraiva: 2008.
COSTA, Ana Maria; VIEIRA, Natália Aurélio. Participação e controle social em saúde.
In: FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ et al. A saúde no Brasil em 2030: diretrizes para a
prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: organização e gestão do sistema de
saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012, v. 3, p. 237-271.
DONNANGELO, Maria Cecília Ferro. Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de
trabalho. São Paulo: Pioneira, 1975.
DRIVER, Stéphanie Schwartz. A Declaração de Independência dos Estados Unidos.
Tradução de Mariluce Pessoa. São Paulo: Jorge Zahar, 2006.
EASTERLIN, Richard A. et al. The Happiness-income Paradox Revisited. Proceedings
of the National Academy of Sciences, 2010, v. 107, n. 52, p. 22463-22468. Disponível em:
https://www.pnas.org/content/pnas/107/52/22463.full.pdf. Acesso em: 20 fev. 2020.
EASTERLIN, Richard A. Will Raising the Incomes of all Increase the Happiness of All?
Journal of Economic Behavior & Organization, 1995, v. 27, n. 1, p. 35-47. Disponível em:
http://ipidumn.pbworks.com/f/EasterlinIncomesandHappiness.pdf. Acesso em: 20 fev. 2020.
ESCOREL, Sarah. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário.
Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1999.
FALLETI, Tulia G. Infiltrating the State: the evolution of health care reforms in Brazil,
1964-1988. In: MAHONEY, James; THELEN, Kathleen. Explaining institutional change:
ambiguity, agency and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 38-62.
FOUCAULT, Michel. O nascimento do hospital. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do
poder. São Paulo: Graal, 1984.
FOWLER, J. H.; CHRISTAKIS, N. A. Dynamic spread of happiness in large social
network: longitudinal analysis over 20 years in the Framingham Heart Study. British
Medical Journal, London, n. 337, p. A2338, 2008.
FRANCO, Renato. Pobreza e caridade leiga: as Santas Casas de Misericórdia na América
portuguesa. 2011. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas. Departamento de História, São Paulo, 2011. Disponível
em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-25052012-133000/pt-br.php.
Acesso em: 20 jul. 2020.
FREY, Bruno S.; STUTZER, Alois. The economics of happiness. World Economics, v. 3.
n. 1, p. 25-41, January-March 2002.
FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Instituto Nacional de Assistência Médica da
Previdência Social (INAMPS). In: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Dicionário
histórico-biográfico brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2001. Dicionário temático. Disponível

433
em:  http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/instituto-nacional-
de-assistencia-medica-da-previdencia-social-inamps. Acesso em: 20 jul. 2020.
GARCIA, Marcelo. Memórias de um sanitarista na 8ª Conferência Nacional de Saúde.
Fiocruz Notícias, 5 out. 2016. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/memorias-
de-um-sanitarista-na-8a-conferencia-nacional-de-saude. Acesso em: 3 jun. 2020.
GONÇALVES, Aline Moreira. Dos porões ao hospício: a participação das Santas Casas
de Misericórdia na assistência aos alienados em Minas Gerais, no século XIX. 2014.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia, Belo Horizonte, 2014.
HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no
Brasil. São Paulo: Hucitec, 1998.
JAPÃO. Constituição (1947). Disponível em: https://www.br.emb-japan.go.jp/cultura/
constituicao.html. Acesso em: 20 fev. 2020.
LABRA M. E. Sanitarismo desenvolvimentista. In: Teixeira SMF (Org.). Antecedentes da
Reforma Sanitária. Rio de Janeiro: PEC, ENSP; 1988. Textos de Apoio. p. 15-25.
LEAL, Saul Tourinho. Direito à felicidade: história, teoria, positivação e jurisdição. Tese
(doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2013. 357 f.
LEAL, Saul Tourinho. O negro é lindo. África do Sul Connection. Migalhas. 2015.
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/africa-do-sul-connection/230497/
o-negro-e-lindo. Acesso em: 28 fev. 2020.
LOPES, Luckas Sabioni; TOYOSHIMA, Silvia H. Evidências do impacto da corrupção
sobre a eficiência das políticas de saúde e educação nos estados brasileiros. Planejamento
e Políticas Públicas, v. 41, p. 199-228, 2013.
MEIHY, Jose Carlos Sebe Bom; BERTOLLI FILHO, Claudio. Revolta da vacina. São
Paulo: Ática, 1995. (Coleção Guerras e Revoluções Brasileiras, v. 5).
MENICUCCI, Telma Maria Gonçalves. História da reforma sanitária brasileira e do
SUS: mudanças, continuidades e a agenda atual. História, Ciências, Saúde. Manguinhos.
Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 77-92, 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf /hcsm/
v21n1/0104-5970-hcsm-21-1-00077.pdf. Acesso em: 13 jan. 2020.
MERE JUNIOR, Yussif Ali. Porque a municipalização precisa mudar. Conselho Federal
de Medicina. 6 jan. 2017. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/index.php?option=
com_content&view=article&id=26643:2016-12-19-13-26-54&catid=46:artigos&
Itemid=18. Acesso em: 13 jan. 2020.
MERLO, S.; PEDROSO, Homell A. M. A implementação do direito à busca da felicidade
como da efetivação da dignidade da pessoa humana e a garantia ao mínimo existencial.
In: XXIII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI: (Re) Pensando o Direito: desafios
para a Construção de novos paradigmas. Florianópolis: Conpedi, 2014. p. 36-59.
MURTHA, Ney Albert; CASTRO, José Esteban; HELLER, Léo. Uma perspectiva
histórica das primeiras políticas públicas de saneamento e de recursos hídricos no Brasil.
Ambiente & Sociedade, v. 18, n. 3, p. 193-210, 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/
pdf/asoc/v18n3/1809-4422-asoc-18-03-00193.pdf. Acesso em: 5 fev. 2020.
NUNES, Francisco Pizzette. Pluralismo jurídico e participação popular em saúde: do
público ao privado. 2011. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa
Catarina, Departamento de Direito, Florianópolis, 2011.

434
ONU. Agenda 21 Global. Rio de Janeiro, 1992. Disponível em: https://www.mma.gov. br/
responsabilidade-socioambiental/agenda-21/agenda-21-global. Acesso em: 3 ago. 2020.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris: ONU, 1948. Disponível em:
http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_ universal.htm. Acesso em:
14 fev. 2020.
ONU. Dia Internacional da Felicidade é celebrado neste 20 de março. 2018. Disponível
em: https://news.un.org/pt/story/2018/03/1615052. Acesso em: 5 fev. 2020.
ONU. Transformando nosso mundo: a agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável.
2015. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda20
30-pt-br.pdf. Acesso em: 3 fev. 2020.
PAIM, Jairnilson Silva; SILVA, Lígia Maria Vieira da. Universalidade, integralidade,
equidade e SUS. BIS: Boletim do Instituto de Saúde, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 109-114,
ago. 2010. Disponível em: http://periodicos.ses.sp.bvs.br/scielo.php?script=sci_ arttext
&pid=S15 18-181220100002 00002&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 30 jul. 2020.
PARADELLA, Rodrigo. Constituição cidadã: 30 anos depois: saúde avança, mas segue
longo do idealizado em 1988. Agência IBGE. 29 maio 2018. Disponível em: https://
agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/21301-
saude-avanca-mas-segue-longe-do-idealizado-em-1988. Acesso em: 13 jul. 2020.
PEIXINHO, Manoel Messias. Os direitos fundamentais nas constituições francesas.
In: XXI CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa
e Pós-Graduação em Direito, 2012, Niterói-RJ. [Anais]. Florianópolis: CONPEDI, 2012.
REICH, Robert B. Supercapitalismo: como o capitalismo tem transformado os negócios,
a democracia e o cotidiano. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 2008.
RIBEIRO, Márcia M. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São
Paulo: Hucitec, 1997.
RIOS, Roger Raupp. Para um direito democrático à sexualidade. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 26, p. 71-100, jul.-dez. 2006.
SANDEL, M. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria
Alice Máximo. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
SANGLARD, Gisele. A construção dos espaços de cura no Brasil: entre a caridade e a
medicalização. Esboços. Revista do Programa de Pós-graduação em História da UFSC,
Florianópolis, v. 13, n. 16, p. 11-33, 2006. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.
php/esbocos/article/view/119/166. Acesso em: 19 jul. 2020.
SANGLARD, Gisele. Hospitais: espaços de cura e lugares de memória da saúde. Anais do
Museu Paulista: História e Cultura Material. São Paulo, v. 15, n. 2, p. 257-289, jul./dez.,
2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v15n2/a20v15n2.pdf. Acesso
em: 19 jul. 2020.
SANTOS, Bento Silva. Ética e “felicidade” em Platão e Aristóteles: semelhanças, tensões
e convergências. Cadernos de Atas da ANPOF, n. 1, 2001. Disponível em: https://www.
puc-rio.br/parcerias/sbp/pdf/3-jorge.pdf. Acesso em: 3 fev. 2020.
SANTOS, Lenir. Direito da saúde no Brasil. Campinas: Saberes, 2010.
SANTOS, Lenir; FUNCIA, Francisco. Emenda Constitucional 95 fere o núcleo à saúde.
Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, 24 jan. 2019. Disponível em: https://cee.

435
fiocruz.br/?q=Emenda-Constitucional-95-fere-o-nucleo-essencial-do-direito-a-saude.
Acesso em: 19 jul. 2020.
SARLET, Ingo Wolfgang; ZOCKUN, Carolina Zancaner. Notas sobre o mínimo
existencial e sua interpretação pelo STF no âmbito do controle judicial das políticas
públicas com base nos direitos sociais. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba,
v. 3, n. 2, p. 115-141, 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rinc/v3n2/2359-
5639-rinc-03-02-0115.pdf. Acesso em: 18 jun. 2020.
SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São
Paulo: Scipione, 1993.
SILVA, Franklin Leopoldo e. Felicidade, dos filósofos pré-socráticos aos contemporâneos.
Col. Saber de Tudo. 2. ed. São Paulo: Claridade, 2011.
SOUZA, Naiara Prato Cardoso de. A 3ª Conferência Nacional de Saúde (1963):
antecedentes para um sistema nacional de saúde público e descentralizado. 2014.
Dissertação (Mestrado) – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2014.
TRINDADE, Diamantino Fernandes. Médicos e heróis: os caminhos da medicina
brasileira desde a chegada da Família Real até as primeiras décadas da República. São
Paulo: Ícone, 2013.
VARELLA, Drauzio. Sem o SUS, é a barbárie. Drauzio, 22 ago. 2019. Disponível em:
https://drauziovarella.uol.com.br/drauzio/artigos/sem-o-sus-e-a-barbarie-artigo/.
Acesso em: 3 ago. 2020.
VEENHOVEN, R. Healthy happiness: effects of happiness on physical health and the
consequences for preventive health care. Journal of Happiness Studies, Nova Iorque, v.
9, p. 449-469, 2008.
VIRGÍNIA. Constituição do Estado. 1776. Disponível em: https://law.lis.virginia.gov/
constitution/article1/section1/. Acesso em: 10 mar. 2020.
VOSGERAU, M. Z. da S.; CABRERA, M. A. S. Estudo da felicidade no campo da saúde
coletiva: reflexões e possíveis contribuições. HU Revista, Juiz de Fora, v. 39, n. 1 e 2, p.
45-53, jan./jun., 2013.

436
ESTABILIDADE GESTACIONAL PROVISÓRIA
EXTENSIVA AO HOMEM
Loize Menezes dos Santos1
Bruna Christiane Dantas Campos2

Sumário: 1 Introdução. 2 Evolução do Direito Trabalhista. 3 Análise do Ato das


Disposições Constitucionais Transitórias. 4 O bem da vida. 5 Considerações finais.

1 ∙ INTRODUÇÃO
Uma das discussões precípuas com que o estudante de Direito se depara no
curso gira em torno do princípio da igualdade. Esse é um princípio de fundamen-
tal importância para o ordenamento jurídico e deve nortear o comportamento
que o futuro jurista deverá adotar para concretizar sua aplicabilidade, uma vez
que seu emprego eficaz é algo que deve ser perseguido e alcançado em um Estado
Democrático de Direito como é o nosso.
Com o avançar dos estudos, é natural perceber que mesmo um princípio de
tamanha grandeza pode vir a sofrer mitigações pela necessidade de fazer com que
a igualdade seja efetiva. Essa afirmação feita soa como contraditória, como de fato
o é, pois é como se a desigualdade (desigualdade a que chamaremos de legítima por
ter amparo legal para existir) fosse legitimada em alguns casos, como apresentado
aqui, para que dessa forma se alcance a isonomia.
Ao fazer uma primeira leitura do art. 10, inciso II, alínea b, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), pode-se acreditar estar diante
de uma situação da desigualdade legítima. Para fundamentar a discussão, cabe
apresentar o dispositivo mencionado: “[...] II - fica vedada a dispensa arbitrária ou
sem justa causa: [...] b) da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até
cinco meses após o parto”.
A análise desse conteúdo leva aos seguintes questionamentos: ao trazer o termo
“empregada”, o legislador estaria sendo taxativo ou exemplificativo? A desigualdade
aqui legitimada visa proteger o quê? O que está em ênfase é o emprego da gestante

1 Tecnóloga em Gestão Pública pela Universidade Norte do Paraná (Unopar). Graduanda do Curso
de Direito da Faculdade de Tecnologia e Ciências (UniFTC).
2 Diretora Acadêmica da Universidade Salgado de Oliveira (Universo). Professora das cadeiras
de Direito Empresarial, Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho da Faculdade de
Tecnologia e Ciências (UniFTC) e da Universo. Juíza Leiga da 4ª Turma Recursal do Tribunal de
Justiça do Estado da Bahia (TJBA). Mestra em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade
Católica de Salvador (UCSal). Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade
Salvador (Unifacs). Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Licenciada
em Matemática pela Unifacs.

437
ou a vida do nascituro que merece proteção? Qual o objetivo do legislador ao miti-
gar o princípio da igualdade? Quais os possíveis reflexos para a família advindos da
aplicabilidade extensiva ao homem, com vista a salvaguardar o bem da vida do nas-
cituro? O objetivo do que se pretende proteger realmente está sendo cumprido ao
se aplicar o dispositivo somente à empregada gestante? Como vem sendo aplicado o
referido dispositivo constitucional?
Nessa perspectiva, a escolha do tema “estabilidade gestacional provisória exten-
siva ao homem” justifica-se pela compreensão de que o dispositivo ora analisado
tem ampla discussão que perpassa a primeira inferência de que a proteção nele
contida visa assegurar, tão somente, o emprego da empregada gestante. Afastando
o primeiro foco, compreende-se que o principal bem a ser resguardado é a vida do
nascituro, pela percepção de que a aplicabilidade do ADCT somente cumprirá sua
efetiva função no momento em que for extensiva ao homem, visto que, diante de
situação de desemprego do companheiro, no momento que a família está sendo
ampliada, a estrutura de renda familiar é comprometida de forma significativa.
Nesse contexto, o objetivo geral deste estudo é analisar a estabilidade gestacional
provisória extensiva ao homem e seus possíveis reflexos à luz do princípio constitu-
cional da igualdade. Tendo como objetivos específicos: avaliar a aplicabilidade do
ADCT; verificar o impacto do dispositivo constitucional, quando aplicado de forma
extensiva ao homem, no que tange à proteção do bem da vida; analisar o ADCT
com foco no conceito da igualdade assegurado pela Constituição Federal.
A metodologia utilizada para realização desta pesquisa foi qualitativa e será
fundamentada por levantamentos bibliográficos e documentos científicos. Segundo
Minayo (2001, p. 22), os métodos qualitativos são apropriados quando o fenômeno
em estudo é complexo, de natureza social e não tende à quantificação. Em situação
normal, são empregados na percepção do contexto social e cultural e são um ele-
mento de suma importância para a pesquisa. Para isso, foi realizado estudo teórico
a partir de revisão bibliográfica. Em relação aos aspectos éticos, as normas de auto-
ria foram respeitadas, e todas as obras utilizadas possuem seus autores citados. O
artigo está organizado em três partes relativas à introdução, ao referencial teórico e
à análise do tema proposto.

2 ∙ EVOLUÇÃO DO DIREITO TRABALHISTA


Para melhor compreender a temática, é necessário traçar um panorama dos
principais pontos de luta do trabalhador para a conquista dos direitos trabalhistas
atuais, a fim de perceber a necessidade de proteção do hipossuficiente na relação de
trabalho, ou seja, do empregado/trabalhador.
Dessa forma, cabe trazer o entendimento da origem da palavra “trabalho”, que,
para Cassar (2009, p. 3):
Do ponto de vista histórico e etimológico a palavra trabalho decorre de algo
desagradável: dor, castigo, sofrimento, tortura. O termo trabalho tem origem
no latim – tripalium, espécie de instrumento de tortura ou canga que pesava
sobre os animais. Por isso, os nobres, os senhores feudais ou os vencedores não
trabalhavam, pois consideravam o trabalho uma espécie de castigo. A partir daí,
decorreram variações como tripaliare (trabalhar) e trepalium (cavalete de três
paus usado para aplicar a ferradura aos cavalos).

438
A partir do estudo etimológico da palavra, nota-se distinção entre a definição
originária da palavra e a definição que temos hoje. A máxima “o trabalho dignifica
o homem”, remete à reflexão de que a atividade laboral sempre esteve presente na
história de todas as civilizações. Somente nos tempos modernos surge a ideia de que
cumprir um papel no mundo trabalhista traz dignidade às pessoas, por ser fruto
das revoluções industriais que nos trouxeram um novo tipo de convivência social.
Na Antiguidade, o trabalho também tinha concepção muito diversa da que
temos atualmente: a prestação de serviço era relegada às camadas mais pobres da
população, tidas como escravos, além de não serem sujeitos de direitos, como bem
explica Martins (2008, p. 4):
A primeira forma de trabalho foi a escravidão, em que o escravo era conside-
rado apenas uma coisa, não tendo qualquer direito, muito menos trabalhista. O
escravo, portanto, não era considerado sujeito de direito, pois era propriedade do
dominus. Nesse período, constatamos que o trabalho do escravo continuava no
tempo, até de modo indefinido, ou mais precisamente até o momento em que o
escravo vivesse ou deixasse de ter essa condição. Entretanto, não tinha nenhum
direito, apenas o de trabalhar.
A Revolução Industrial chega a todo vapor com inovação tecnológica e desen-
volvimento de máquinas. A questão social era ausente nesse período, as péssimas
condições de vida e trabalho levaram a classe operária e os menos favorecidos, que
não gozavam de nenhum amparo jurídico, a exigir direitos e democracia política.
Após o surgimento dos sindicatos, os trabalhadores foram alcançando maiores con-
quistas, melhores condições de trabalho, e defendendo seus interesses.
No Brasil, as conquistas sociais relativas ao trabalho são tardias devido ao
reflexo do desligamento da escravidão. Somente por volta de 1880, há um grande
crescimento industrial que leva à multiplicação de estabelecimentos industriais e
a um consequente aumento na quantidade de trabalhadores, formando uma classe
desunida, dispersa, que não partilhava interesses comuns.
Para Nascimento (2012, p. 44):
O direito do trabalho nasce com a sociedade industrial e o trabalho assalariado
[...]. A principal causa econômica foi a Revolução Industrial do século XVIII,
conjunto de transformações decorrentes da descoberta do vapor como fonte de
energia e da sua aplicação nas fábricas e meios de transportes. Com a expansão
da indústria e do comércio, houve a substituição do trabalho escravo, servil e
corporativo pelo trabalho assalariado em larga escala, do mesmo modo que a
manufatura cedeu lugar à fábrica e, mais tarde, à linha de produção.
Os direitos sociais ganharam realmente força no século XX, passando a ser siste-
matizados, adquirindo o status de direitos constitucionais. A Constituição brasileira
de 1824 inicia o histórico da incorporação gradual das normas trabalhistas no orde-
namento jurídico. A posteriori, a Constituição de 1891 foi promulgada sob a influência
da Constituição americana, reconhecendo poucos direitos no âmbito trabalhista.
Cabe destacar que o México e a Alemanha tiveram papel importante na conquista
dos direitos trabalhistas. Os primeiros direitos trabalhistas, que eram chamados de
“sociais”, se consolidaram em 1917, no México. Logo após a experiência mexicana,
a Constituição de Weimar (Constituição do Império Alemão) de 1919 foi promul-
gada e também garantia “direitos sociais”, numa ruptura com o Estado liberal e uma

439
tentativa de ascensão do Estado social. Esses direitos trabalhistas seguiam as conven-
ções da recém-criada Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Na estipulação de leis que vinham para combater a lógica liberal e formalista
que se assentou no ordenamento jurídico brasileiro – e, consequentemente, refletiu
nas relações sociais, políticas, econômicas e trabalhistas – percebe-se um avanço
no debate acerca da questão social, principalmente, voltada para a relação empre-
gador e empregado. O aprimoramento da justiça trabalhista no Brasil veio, então,
com a Constituição de 1934 (art. 122), mas sua regulamentação somente ocorreu
em 1940 (Decreto n. 6.596).
Na Constituição de 1937, mesmo com a consagração de direitos aos trabalha-
dores, houve delicado intervencionismo do Estado, marcado pelo então governo de
Getúlio Vargas, ocorrendo retrocesso. Contudo, a criação da carteira profissional
foi um momento importante na tentativa de dignificação do trabalho, que originou
a atual Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), através do Decreto n.
21.175/1932, passando o trabalhador a ter uma identidade, ou seja, ele passou a ser
alguém; e as mulheres conquistaram o direito do voto, passando a assumir papéis
fundamentais em todos os campos de atuação.
Todos esses acontecimentos contribuíram para que o Direito do Trabalho adquirisse
reconhecimento mundial, resultando em terreno fértil para o seu desenvolvimento.
No Brasil, a Lei Áurea, sancionada em 13 de maio de 1888, foi o diploma legal
que extinguiu a escravidão. Segundo Monteiro (2012), com a abolição da escrava-
tura, os escravos se viram livres do jugo dos seus senhores, do trabalho forçado e
dos castigos cruéis no tronco e nas senzalas aos quais foram submetidos desde o
descobrimento. Em suma, na história do Brasil houve mais anos de escravidão do
que de trabalho remunerado livre.
A Constituição Federal de 1988 expressa em seu art. 1º que a República
Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos a dignidade da pessoa humana, a cidadania e o valor social do traba-
lho, conferindo-lhe, em seu art. 6º, o status de direito social, sendo um marco nas
conquistas da classe trabalhadora. Assim, o Direito do Trabalho tem como funda-
mento basilar a Magna Carta.
Santos (2005, p. 86-87) afirma que
a luta por direitos se realiza enquanto ação política, na medida em que a regula-
mentação de um determinado direito numa sociedade fundada no antagonismo
de classe não acontece naturalmente, mas é, na maioria das vezes, produto da
organização coletiva, da correlação de forças e da articulação entre luta institu-
cional, parlamentar e luta popular, extraparlamentar.
Tudo isso foi possível pela luta da classe trabalhadora que expressou, historica-
mente, um meio de garantir e efetivar direitos numa sociedade pautada na desigual-
dade social e na injustiça, concretizando a conquista de direitos.
Inclusive, cabe destacar que a OIT foi criada pela Conferência da Paz, assinada em
Versalhes, em junho de 1919, logo após a Primeira Guerra Mundial, e teve como objeti-
vos promover a justiça social e, em particular, respeitar os direitos humanos no mundo
do trabalho. Desde a sua criação, portanto, a OIT está assente no princípio, inscrito na
sua Constituição, de que não pode haver paz universal duradoura sem justiça social.

440
A partir do contexto de marginalização de grande parte da população do sis-
tema eleitoral e da participação política, surgem as greves e as insurreições, com
fundamentos voltados para a reivindicação de direitos políticos, de participar da
vida e das decisões políticas do país, tendo como objetivo expor a demanda dos
trabalhadores industriais, como expressão de formas de se comunicar socialmente
e influir politicamente.
Os avanços no campo trabalhista foram conquistados também pelos sindicatos,
que tiveram início após a abolição da escravatura com a chegada dos imigrantes
para substituir a mão de obra escrava. Portanto, no momento em que há compreen-
são de formação de uma classe operária, faz-se necessária a continuação da luta
para a aquisição de outros direitos trabalhistas.
Da escravidão aos dias atuais, muitas conquistas no âmbito do Direito
Trabalhista foram alcançadas, porém ainda há desigualdades. Infelizmente, são
comuns situações de abuso do trabalhador relativas a jornadas de trabalho excessi-
vas, local impróprio para o exercício das atividades, tratamento desrespeitoso, entre
outras. Por isso a importância de o cidadão conhecer a legislação trabalhista para
conhecer o próprio direito, a relação de contrato etc.
Hoje, o trabalho é valorizado como condição essencial para a ordem social,
sendo um direito fundamental inalienável para a condição de realização da pessoa
humana, de sua dignidade e senso de cidadania. E segue na sua institucionalização
como formador da dignidade do homem, pois agora a todos é garantido o direito de
subsistir, e o Estado possui o dever de proteger, possibilitando condições favoráveis
e meios de defesa a esse trabalho.
Nas últimas décadas do século XX, houve um fato marcante na sociedade brasi-
leira, que foi a inserção, cada vez mais crescente, da mulher no campo do trabalho,
que se explica pela combinação de fatores econômicos, culturais e sociais.
Em razão do avanço e do crescimento da industrialização no Brasil, ocorreram a
transformação da estrutura produtiva, o contínuo processo de urbanização e a redu-
ção das taxas de fecundidade nas famílias, proporcionando a inclusão das mulhe-
res no mercado de trabalho. Contudo, o papel ocupado pela mulher no mundo do
trabalho ainda não é motivo de tanta comemoração, pois, segundo a Organização
Internacional do Trabalho, elas estão mais presentes nas vagas de emprego, embora
ainda abaixo dos homens.
O estudo também mostra que as mulheres enfrentam desigualdades significati-
vas na qualidade do emprego que possuem. Por exemplo, em comparação com os
homens, as mulheres ainda têm mais que o dobro de chances de serem trabalhado-
ras familiares não remuneradas. Isso significa que elas contribuem para um negó-
cio familiar voltado para o mercado, muitas vezes sujeitas a condições de emprego
vulneráveis, sem contratos escritos, respeito pela legislação trabalhista ou acordos
coletivos. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2018).
Inclusive, o dado é confirmado pelo Ministério do Trabalho no Brasil,3 que
aponta o crescimento da ocupação feminina em postos formais de trabalho de

3 Cf. Mulheres ganham espaço no mercado de trabalho. Portal Brasil, Brasília, 12 mar. 2017. Disponível
em: https://www.douradosagora.com.br/noticias/economia/mulheres-ganham-espaco-no-mercado-
de-trabalho. Acesso em: out. 2020.

441
40,8% em 2007 para 44% em 2016. Apesar do avanço, o dado não condiz com o
percentual de mulheres na população brasileira. Segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), elas já são maioria por aqui, e representam 51,03%
da população (SBCOACHING, 2019).
Um dos fatores preponderantes para a conservação desse quadro desigual
envolve aspectos históricos, culturais e sociais. As mulheres continuam sendo as
principais responsáveis pelas tarefas domésticas, pelo cuidado com os filhos e pelas
demais responsabilidades familiares, ou seja, acumulando papéis mesmo quando
inseridas com sucesso no mercado profissional. Logo, conciliar a vida profissional
e as atividades da vida pessoal ainda é um desafio muitas vezes impossível para as
mulheres trabalhadoras.
Outro fator reside na rejeição do mercado de trabalho à mulher com responsabi-
lidades familiares. A mulher que possui filhos, muitas vezes, é preterida em seleções
de emprego ou para cargos de chefia.
Em 1932, durante o governo de Getúlio Vargas, as mulheres conquistaram o
direito do voto e desde então passaram a possuir papéis fundamentais em todos
os campos de atuação. Mas para que homens e mulheres sejam iguais como a lei
determina, tanto na teoria quanto na prática, é preciso continuar dando voz e vez
aos movimentos feministas, ou seja, aos pensamentos iniciados lá no século XIX,
quando a mão de obra feminina foi transferida para as fábricas, devido à consolida-
ção do sistema capitalista e à ascensão do desenvolvimento tecnológico.
Como exemplo, a diminuição do abismo que ainda separa homens e mulheres
no mercado de trabalho pode vir de políticas públicas que priorizem abertura de
vagas e ampliação do número de pré-escolas, creches e escolas de tempo integral.
Além disso, é necessário e inadiável nutrir o debate e a desconstrução dos papéis
sociais de gênero a fim de edificar um mercado de trabalho e uma sociedade mais
igualitários em condições e oportunidades para homens e mulheres.
Assim, haverá diminuição de algumas formas de exploração que ainda se man-
têm, como jornadas entre quatorze e dezoito horas e diferenças salariais acentuadas,
justificadas pelo pensamento de que é o homem quem deve trabalhar para sustentar
a casa, os filhos e a mulher.
Nota-se que, no Brasil, a trajetória da mulher no mercado de trabalho vem sendo
apresentada a cada ano com o aumento no nível de instrução da população femi-
nina e com a queda da taxa de fecundidade. Para conquistar posição e colocação no
mercado, a mulher adia projetos pessoais que, na verdade, são pessoais na visão da
sociedade machista, como o casamento e a maternidade.
Todo esse cenário reflete no surgimento de um ramo jurídico denominado
Direito Trabalhista, que possui autonomia, tendo um rol de normas e princípios
com vista a regulamentar a relação trabalhista, bem como salvaguardar os direitos
dos trabalhadores e trabalhadoras que outrora não possuíam nenhum.
Este artigo tem como objeto estudar uma dessas normas, que só existe hoje
dada a luta histórica dos trabalhadores que com muitas batalhas conseguiram fazer
constar na Constituição Federal vários dispositivos assecuratórios dos seus direitos,
que é o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que versa sobre o
direito da empregada gestante, conforme discorrido no tópico seguinte.

442
3 ∙ ANÁLISE DO ATO DAS DISPOSIÇÕES
CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS
O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de
1988, em seu art. 10, inciso II, alínea b, versa que “é vedada a dispensa arbitrária
ou sem justa causa, da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até
cinco meses após o parto”. Nessa perspectiva, a proteção à maternidade é um direito
fundamental que conta com a intervenção do Estado para que seja garantido.
Nesse mesmo sentido existe o aceno do Tribunal Superior do Trabalho (TST) ao
elaborar a Súmula n. 244, que amplia a aplicabilidade do ADCT, assegurando que o
desconhecimento, por parte do empregador, do estado gravídico da servidora não é
motivo para a não aplicação do dispositivo constitucional.
GESTANTE. ESTABILIDADE PROVISÓRIA (redação do item III alterada na
sessão do Tribunal Pleno realizada em 14.09.2012) – Res. 185/2012, DEJT divul-
gado em 25, 26 e 27.09.2012.
I - O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta o direito ao
pagamento da indenização decorrente da estabilidade (art. 10, II, “b” do ADCT).
II - A garantia de emprego à gestante só autoriza a reintegração se esta se der
durante o período de estabilidade. Do contrário, a garantia restringe-se aos salá-
rios e demais direitos correspondentes ao período de estabilidade.
III - A empregada gestante tem direito à estabilidade provisória prevista no art.
10, inciso II, alínea “b”, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
mesmo na hipótese de admissão mediante contrato por tempo determinado.
A Carta Magna é repleta de dispositivos que visam proteger a maternidade. O
art. 6º trata a condição como um direito social que, como tal, merece todo o pro-
tecionismo do Estado como garantidor dos mecanismos necessários para que se
alcance a proteção enunciada no referido dispositivo.
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,
a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a prote-
ção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição.
Ainda nessa linha, pode-se observar a garantia constitucional trazida pelo inciso
II do art. 201, quando assegura proteção à maternidade, especialmente à gestante.
O que se extrai do art. 203, I, é a proteção à família, à maternidade, à infância, à
adolescência e à velhice.
Nesse sentido, o art. 391-A da Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, assegura que
a confirmação do estado de gravidez advindo no curso do contrato de trabalho,
ainda que durante o prazo do aviso prévio trabalhado ou indenizado, garante à
empregada gestante a estabilidade provisória.
Notadamente, existe o aceno constitucional para que haja uma proteção
especial aos pilares basilares da sociedade, pilares estes que aqui chamaremos
simplesmente de família.
Assim, é possível perceber o amplo leque de dispositivos que trazem o amparo à
maternidade com vista a salvaguardar o direito à vida. Nesse sentido, um questio-
namento comum surge acerca da aplicabilidade da licença-maternidade e da estabi-
lidade provisória garantida à gestante: trata-se de um direto personalíssimo, certo?

443
Para tentar elucidar um pouco as dúvidas acerca de como vêm sendo aplicados os
dispositivos legais, necessário se faz visitar alguns diplomas. Em primeiro plano, será
avaliada a possibilidade de licença-maternidade; para tanto, vejamos a Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT), que, em seu art. 392-B, traz o seguinte ensinamento:
Art. 392-B. Em caso de morte da genitora, é assegurado ao cônjuge ou compa-
nheiro empregado o gozo de licença por todo o período da licença-maternidade
ou pelo tempo restante a que teria direito a mãe, exceto no caso de falecimento
do filho ou de seu abandono.
No que tange à estabilidade gestacional, a Lei Complementar n. 146/2014 entende
que tal proteção pode vir a deixar de ser um direito personalíssimo da gestante,
passando a ser um direito de quem for o responsável legal pela guarda e proteção
do filho deixado por ela: “Art. 1o O direito prescrito na alínea b do inciso II do art.
10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, nos casos em que ocorrer
o falecimento da genitora, será assegurado a quem detiver a guarda do seu filho”.
Quando o assunto é adoção, as garantias também estão presentes. A CLT asse-
gura que à empregada que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção de
criança ou adolescente será concedida licença-maternidade. Assegura ainda que,
tratando-se de adoção ou guarda judicial conjunta, ensejará a concessão de licen-
ça-maternidade a um dos adotantes ou guardiães (empregado ou empregada). Em
suma, se o assunto é guarda e proteção do filho, pouco importa o gênero, não é
algo simplesmente voltado à maternidade. Historicamente é a mãe quem assume a
responsabilidade da guarda e da criação do menor, mas esse cenário vem mudando
paulatinamente. Nesse contexto, vale uma análise acerca da importância de alcan-
çar a paternidade responsável.
Antes de adentramos no tema, faz-se necessário avaliar o sentido da expressão
paternidade, bem como entender seu conceito. Para isso, é preciso observar o que
ensina Paulo Luiz Netto Lôbo quando assegura que a paternidade se dá pela consti-
tuição de valores e pela singularidade da pessoa humana adquiridas principalmente
na convivência familiar durante a infância e a adolescência. Logo, pai é um ato de
escolha, de mútua vontade de amar e ser amado, é quem assumiu esses deveres,
ainda que não seja o genitor (LÔBO, 2006, p. 796 apud RODRIGUES, 2016).
Assim, fica a compreensão de que a paternidade, natural ou não, possui bases
no afeto e na responsabilidade em relação àquele que é carecedor da plenitude do
comprometimento, em seu desenvolvimento digno, de quem lhe deu a vida ou o
escolheu para ser seu filho.
A Constituição Federal de 1988 ampliou o conceito de família quando reco-
nheceu como entidade familiar a união estável entre um homem e uma mulher
e a família constituída de um dos pais com seus filhos, além da família oriunda
do matrimônio. Considera a família a base da sociedade, como bem apresenta o
art. 226: “[...] a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Ainda
enfatiza no inciso V do mesmo artigo que “[...] os direitos e deveres referentes à
sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.
O art. 226, § 7º, da CF define o planejamento familiar fundado nos princípios da
dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, bem como na utilização
de recursos educacionais e científicos, para sua realização. O planejamento familiar de
origem governamental é dotado de natureza promocional, não coercitiva, orientado

444
por ações preventivas e educativas e por garantia de acesso igualitário a informações,
meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade.
A Lei n. 9.263, sancionada em 12 de janeiro de 1996, regulamentou também o
planejamento familiar no Brasil e estabeleceu em seu art. 2º que “entende-se pla-
nejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que
garanta direito igual de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher,
pelo homem ou pelo casal”. É considerado um ato consciente de escolher entre ter
ou não filhos de acordo com seus planos e expectativas.
Em 1995, o Brasil participou da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, reali-
zada em Beijing, na China. No item 96 do acordo firmado entre os países presentes,
ficou estabelecido: as relações igualitárias entre a mulher e o homem, a respeito das
relações sexuais e da reprodução, incluindo o pleno respeito à integridade pessoal,
exigem o consentimento recíproco e a vontade de assumir conjuntamente a respon-
sabilidade e as consequências do comportamento sexual.
Quando se tratar de norma específica, pode-se observar o Estatuto da Criança
e do Adolescente – Lei n. 8.069/1990, que traz expressamente o princípio da pater-
nidade responsável: “Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito per-
sonalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou
seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”.
E ressalta:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta
Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades
e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder
público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referen-
tes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profis-
sionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária.
O planejamento familiar associado à paternidade responsável compreende não
só decidir sobre o número de filhos, mas também quanto a aumentar o intervalo
entre as gestações. E se utiliza das técnicas de reprodução assistida como recurso
à procriação, não praticando a seleção de embriões com finalidades eugênicas para
escolha de atributos físicos, bem como para suprimir a filiação por meio da mono-
parentalidade, entre outros.
O propósito do legislador é que a paternidade seja exercida de forma responsável,
porque assim todos os princípios fundamentais, como a vida, a saúde, a dignidade
da pessoa humana e a filiação, serão respeitados.
Nesse contexto, cabe esclarecer que o princípio da paternidade responsável ini-
cia na concepção, e é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança
e ao adolescente o direito à convivência familiar, colocando-os a salvo de toda
forma de discriminação, vedando expressamente as designações discriminatórias
relativas ao estado de filiação.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, ratificada pelo Brasil
em 24 de setembro de 1990, dispõe no artigo 7º que: “A criança será registrada

445
imediatamente após seu nascimento e terá direito, desde o momento em que
nasce, a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer
seus pais e a ser cuidada por eles”.
Como forma de garantir maior efetividade ao exercício do direito de filiação,
bem como maior obrigatoriedade ao princípio da paternidade responsável, surge a
Lei n. 8.560, de 29 de dezembro de 1992, que regula a investigação de paternidade
dos filhos havidos fora do casamento, prevendo que o reconhecimento dos filhos é
irrevogável, além de indicar as formas de reconhecimento.
Infelizmente, ainda na sociedade moderna, as mães são vistas como as principais
responsáveis por educar e cuidar de suas crianças, enquanto os pais adquirem um
papel secundário na criação dos filhos. Para mudar esse cenário, é preciso investir em
educação e políticas públicas que promovam um papel igualitário para pais e mães,
inclusive na extensão de direitos até então inerentes somente ao sexo feminino.
Não se pode deixar de afirmar que avanços são visíveis na relação maternidade
e paternidade,4 porém ainda está longe de alcançar o tratamento igualitário no cui-
dado das crianças; a fim de que isso ocorra, são necessárias amplas mudanças para
que homens e mulheres se dediquem de maneira equitativa à vida reprodutiva. Há
exemplos de alguns avanços, como a licença-paternidade,5 que em alguns estados
e municípios pode atingir um mês. Entretanto, ao se comparar com o tempo da
licença-maternidade, que varia de quatro a seis meses, a diferença ainda coloca as
mulheres como as principais ou únicas responsáveis pelo cuidado das crianças.
Em suma, é fato que a família sofreu modificações: a mulher trabalha, as tarefas
são mal distribuídas, não há nenhum elemento de submissão entre o casal, e, acom-
panhando tais modificações, surgiram modelos familiares monoparentais, nos quais
existe a figura de apenas um adulto e seus filhos. Tal situação pode ser gerada por
divórcio, viuvez, geração independente por parte de uma mulher ou mesmo de um
homem. Assim, futuramente, a família poderá alterar-se novamente consoante a evo-
lução da sociedade, já que é um dos seus elementos constitutivos (ESTEVES, 2013).
A desigualdade de gênero impacta significativamente na diferença entre os
papéis sociais de pais e mães. A partir do momento em que se estabelecerem papéis
rígidos sobre o que é ser mulher-mãe e ser homem-pai, não haverá questionamen-
tos sobre as desigualdades de gênero nem sobre o cumprimento dos seus direitos e
deveres. Isso ainda reforça a necessidade de o ser masculino adquirir certos direitos
de caráter extensivo, a fim de diminuir essas diferenças de papéis.
Daí a relevância da discussão da estabilidade gestacional extensiva ao homem
como forma de diminuir a desigualdade de gênero e de garantir ao nascituro o
direito à vida, mesmo porque a família tradicional, formada por pai, mãe e filhos
não é a única possibilidade, nem o casamento é regra para que uma família se ini-
cie. Famílias paralelas, reconstituídas, monoparentais, multiparentais ou mesmo

4 Cf. SITUAÇÃO da paternidade no mundo: falta licença, sobra trabalho. Lunetas, São Paulo, 1º jul.
2019. Disponível em: https://lunetas.com.br/situacao-da-paternidade-no-mundo-2019/.
5 Cf. PERASSOLO, João. Licença-paternidade maior reduz uso de remédios por mães. Folha de S.Paulo,
São Paulo, 4 jul. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2019/07/licenca-
paternidade-maior-reduz-uso-de-remedios-por-maes.shtml.

446
unipessoais encontram respaldo na lei, na doutrina e na jurisprudência, uma vez
que o direito deve atender aos anseios sociais.
Quanto ao princípio da paternidade responsável, é interessante analisar seu
alcance diante das diversas conotações do termo: autonomia para decidir responsá-
vel e conscientemente sobre ter ou não filhos; ou quantos filhos as pessoas desejam
ter. Outrossim, também interpretado sob o aspecto da responsabilidade dos pais
para com os filhos (dever parental).
Segundo Sandri (2006), o direito parental diz respeito à responsabilidade dos
pais para com os filhos, no dever de cuidar e provê-los, e ao planejamento fami-
liar, no que diz respeito à autonomia do indivíduo para escolher quanto, não só
ao aumento mas também à diminuição ou constituição da prole, diferentemente
de controle da natalidade, que é imposição ao indivíduo, por parte do Estado, de
controle demográfico e diminuição dos nascimentos.
Isabela Santos (2013 apud OLIVEIRA; RANGEL, 2017) reforça que os princí-
pios da paternidade responsável e da dignidade da pessoa humana constituem a
base para a composição da família no ordenamento jurídico brasileiro por retratar
a ideia de responsabilidade, que deve ser observada tanto na formação como na
manutenção da família.
Lado outro, ao transcorrer sobre o instituto dos alimentos, o qual tem fundamen-
tal importância no estudo do Direito de Família, pois sua principal finalidade é
garantir a sobrevivência, o bem-estar e o sustento do alimentando, na maioria das
vezes, a criança ou adolescente, a quem a Carta Magna e o Estatuto da Criança e do
Adolescente conferem absoluta e indiscutível proteção, através da legislação e dos
princípios acima comentados, entre outros. (OLIVEIRA; RANGEL, 2017).
O primeiro direito fundamental do ser humano é o de sobreviver, logo, o maior
compromisso do Estado é garantir a vida. Junto a isso surge o direito a alimentos
como princípio da preservação da dignidade humana. Saliente-se que a obrigação
alimentar se dá quando o genitor deixa de prover o sustento do filho, e, caso a pres-
tação não ocorra de forma espontânea, havendo prova do vínculo de parentesco ou
da obrigação alimentar, caberá ação de alimentos para garantir o adimplemento do
encargo alimentar, como prevê a referida Lei n. 5.548/1968.
Visto isso, talvez se possa dizer que o primeiro direito fundamental do ser
humano é o de sobreviver, e este, sem dúvidas, é o maior compromisso do Estado:
garantir a vida. Com isso, surge o direito a alimentos como princípio da preserva-
ção da dignidade humana.
Toda essa reflexão sobre o princípio da paternidade responsável remete ao nas-
cituro, pois, para que o feto tenha um crescimento saudável, faz-se necessário a
mãe estar bem nutrida, daí a defesa do caráter extensivo ao homem da estabilidade
gestacional, visto que existem disposições constitucionais e infraconstitucionais
que tutelam a criança, mas que são flagrantemente desrespeitadas.
A mulher, enquanto gestante, também tem violados seus direitos fundamen-
tais, constitucionalmente assegurados, a começar pelo fato de que grande parte da
sociedade ainda acredita que a sexualidade da mulher está associada à reprodução.
A defesa é que os genitores garantam o necessário, visto que o direito à vida está
correlato ao princípio da dignidade da pessoa humana.

447
Frise-se que o Código Penal tipifica o abandono material no art. 244 e o moral
no art. 246 como crimes.
Nesse contexto, pode-se observar a ratificação da responsabilidade solidária
entre os membros da família com vista a proteger o novo integrante dela. Apesar
de o ADCT expressamente defender o gênero feminino, existem diversos enten-
dimentos e/ou legislações, conforme demonstrado, que afastam a característica
personalíssima do direito à estabilidade provisória gestacional para resguardar a
vida do nascituro.

4 ∙ O BEM DA VIDA
O direito à vida é garantido a todas as pessoas, sem nenhuma distinção, sendo
este o mais importante, já que sem ele os demais ficariam sem fundamento. A
Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado asse-
gurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar
vivo, e a segunda, de se ter vida digna quanto à subsistência.
Segundo Moraes (2003), o início da mais preciosa garantia individual deverá
ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão somente, dar-lhe o enquadramento
legal, pois, do ponto de vista biológico. A vida se inicia com a fecundação do óvulo
pelo espermatozoide, resultando um ovo ou zigoto. Assim, a vida viável, portanto,
começa com a nidação, quando se inicia a gravidez.6 Conforme adverte o biólogo
Botella Lluziá (apud MORAES, 2003, p. 64), o embrião ou feto representa um ser
individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a
do pai nem com a da mãe, sendo inexato afirmar que a vida do embrião ou do feto
está englobada pela vida da mãe. É importante ressaltar que a Constituição protege
a vida de forma geral, inclusive uterina.
Nesse contexto, cabe a discussão pelo direito do nascituro, que alcança posição
de destaque tanto na doutrina quanto nas legislações, principalmente depois do
advento do Código Civil Brasileiro, Lei n. 10.406/2002, que lhe confere tratamento
especial, bem como para identificar quando se pode chamar o ser de vivo, pois, a
partir daí, ter-se-ão a pessoa e, logo, a conquista da personalidade jurídica.
No ordenamento jurídico brasileiro, a lei que determina as regras sobre o
começo e o fim da personalidade é o Código Civil, que em seu art. 2º estabelece: “A
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo,
desde a concepção os direitos do nascituro”. Observada ainda com o caput do art. 7º
da Lei de Introdução ao Código Civil n. 12.376/2010, que traz a seguinte redação: “A
lei do país em que for domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o
fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família”.
Segundo Venosa (2004), os romanos não possuíam termo específico para desig-
nar os sujeitos de direito, pois persona é usado nos textos com a significação de ser
humano em geral, aplicando-se também aos escravos, que não eram sujeitos da

6 “EMENTA: Ao nascituro assiste, no plano do Direito Processual, capacidade para ser parte,
como autor ou como réu. Representando o nascituro, pode a mãe propor a ação investigatória,
e o nascimento com vida investe o infante da titularidade da pretensão de direito material, até
então apenas uma expectativa resguardada.” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL. Jurisprudência TJRS, C-Cíveis, V-1, T-15, p. 16-25, RJTJRS, V-104/418, 1990).

448
relação jurídica; eram considerados coisas (res). Portanto, a personalidade, conjunto
de atributos jurídicos ou aptidões, no Direito Romano e em todas as civilizações anti-
gas, não era atributo de todo ser humano. E a personalidade jurídica coincidia com o
nascimento, antes do qual se tinha tão somente o feto, que nada mais era que parte da
mãe (portio mulieris viscerum). Assim, não possuía direitos e/ou quaisquer atributos
conferidos ao homem. Contudo, seus interesses eram resguardados, chegando mesmo
a equipará-lo ao nascido, não para adquirir personalidade, mas para tutela e proteção.
De acordo com o Dicionário Jurídico Brasileiro (SANTOS, 2001, p. 166) nascituro é:
S.m. Ser humano já concebido, mas ainda por nascer. Também chamado feto,
por estar ainda dentro do ventre materno. Comentário: Por uma ficção do
direito, é considerado provisoriamente com certa capacidade jurídica: direitos
do “nascituro”, sendo os mesmos resguardados, desde a sua concepção até o seu
nascimento, pela lei civil e penal, quando fala do aborto, que é, no Brasil, consi-
derado assassínio (CC, art. 4º e CP, art. 124).
Nas palavras de Venosa (2004, p. 68):
O nascituro é um ente já concebido que se distingue de todo aquele que não
foi ainda concebido e que poderá ser sujeito de direito no futuro, dependendo
do nascimento, tratando-se de uma prole eventual; isso faz pensar na noção
de direito eventual, isto é, um direito em mera situação de potencialidade para
quem nem ainda foi concebido. É possível ser beneficiado em testamento o ainda
não concebido. Por isso, entendemos que a condição de nascituro extrapola a
simples situação de expectativa de direito. Sob o prisma do direito eventual, os
direitos do nascituro ficam sob condição suspensiva.
Frise-se que a doutrina moderna defende que o direito do nascituro é resguar-
dado desde a concepção, devendo-se nomear curador se o pai vier a falecer estando
a mulher grávida, e não tiver o pátrio poder, e pode ser beneficiário de uma doação
feita pelos pais, bem como adquirir bens por testamento, conforme, respectiva-
mente, os arts. 1.779, 542 e 1.799, I, do Código Civil Brasileiro.
Observa-se que esses direitos outorgados ao nascituro ficam sob condição sus-
pensiva, isto é, ganharão forma se houver nascimento com vida.
Em suma, o nascituro é o ser que, embora não nascido, já esteja gerado; é vida
que depende de outra vida por certo tempo, até que adquira autonomia biológica.
Embora não tenha ainda todos os requisitos da personalidade, possui regime prote-
tivo do Direito, tendo proteção legal dos seus direitos desde a concepção.

5 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de
1988 é legado da luta histórica dos trabalhadores, e, em seu art. 10, II, b, versa que
é vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa “da empregada gestante, desde a
confirmação da gravidez até cinco meses após o parto”.
Da primeira leitura surge a interpretação que esse dispositivo assegura apenas
o emprego da empregada gestante, porém, diante de um quadro gestacional, o bem
maior a ser tutelado é a vida do nascituro. Uma vez que o direito à vida é a base
principal e somente a partir dele as outras ramificações dos direitos tornam-se pos-
síveis, daí a necessidade de sua proteção por parte não só do Estado, mas também
da sociedade e da família.

449
Nesse contexto, a conclusão de que a aplicabilidade desse dispositivo vem sendo
feita de forma equivocada, pois diante da situação do desemprego de qualquer dos
pais, no momento em que a família será ampliada, impacta diretamente a vida do
feto. Dessa forma, o ADCT, que tem como objetivo fundamental proteger a vida,
só terá cumprido sua razão de existir quando empregado de forma extensiva ao
homem. Essa ação visa resguardar a manutenção do padrão de vida familiar, asse-
gurando, assim, uma gestação saudável que refletirá no nascituro.
Ademais cabe ressaltar que a paternidade responsável é um princípio assegu-
rado na Constituição Federal, além de ter previsão legal no Estatuto da Criança e do
Adolescente e no Código Civil, sendo conceituada como a obrigação que os pais têm
de prover a assistência moral, afetiva, intelectual e material aos filhos.
Logo, o ADCT não pode continuar a ter aplicabilidade equivocada e restritiva,
pois existe a responsabilidade solidária entre os membros da família com vista a
proteger seu novo integrante.

REFERÊNCIAS
AGÊNCIA CÂMARA. Novo de novo: projeto de lei pretende modificar 310 artigos do novo
Código Civil. Conjur, São Paulo, 24 jan. 2003. Disponível em: https://www.conjur.com.
br/2003-jan-24/projeto_visa_modernizar_aperfeicoar_codigo_civil. Acesso em: fev. 2020.
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2016.
CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho. 3. ed. Niterói: Impetus, 2009.
ESTEVES, Luísa. A mutação da família. Entrementes, [s. l.], 11 abr. 2013. Disponível em:
http://entrementes12c.blogspot.com.br/2013/04/a-mutacao-da-familia.html. Acesso em:
abr. 2020.
GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 9. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2015.
MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa social. Teoria, método e criatividade.
18. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
MONTEIRO, Patrícia Fontes Cavalieri. Discussão acerca da eficácia da Lei Áurea.
Meritum, Belo Horizonte, v. 7, n. 1, p. 355-387, jan./jun. 2012.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação do direito do trabalho. 37. ed. São Paulo:
LTr, 2012.
OLIVEIRA, Rafael Guimarães de; RANGEL, Tauã Lima Verdan. Princípio da paternidade
responsável e sua aplicabilidade na obrigação alimentar. Âmbito Jurídico, Rio Grande, ano
XX, n. 164, set. 2017. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-164/
principio-da-paternidade-responsavel-e-sua-aplicabilidade-na-obrigacao-alimentar.
Acesso em: out. 2020.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Mulheres ainda são menos
propensas a atuar no mercado de trabalho do que os homens na maior parte do mundo,
diz OIT. Notícias OIT, Genebra, 7 mar. 2018. Disponível em: https://www.ilo.org/brasi
lia/noticias/WCMS_619819/lang--pt/index.htm. Acesso em: maio 2020.

450
RODRIGUES, Camila Elizabeth. Paternidade responsável. Âmbito Jurídico, Rio Grande,
ano XIX, n. 152, set. 2016. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/. Acesso
em: mar. 2020.
SANDRI, Vanessa Berwanger. Princípio jurídico da paternidade responsável: distinção
entre planejamento familiar e controle de natalidade. 2006. Trabalho de Conclusão de
Curso (Bacharelado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2006. Disponível em: https://pesquisandojuridicamente.files.wordpress.
com/2010/09/principio-juridico-da-paternidade-responsavel.pdf. Acesso em: abr. 2020.
SANTOS, Bianca Marques. A luta das mulheres no mercado de trabalho. DireitoNet,
[s. l.], 9 jun. 2018. Disponível em: https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/10738/A-
luta-das-mulheres-no-mercado-de-trabalho. Acesso em: maio 2020.
SANTOS, Silvana Mara de Morais dos. O pensamento da esquerda e a política de
identidade: as particularidades da luta pela liberdade de orientação sexual. 2005. Tese
(Doutorado em Serviço Social) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2005. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/
bitstream/123456789/27471/1/TESE%20Silvana%20Mara%20de%20Morais%20dos%20
Santos.pdf. Acesso em: out. 2020.
SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro: terminologia jurídica com
algumas notas, observações e comentários; brocardos latinos (jurídicos e forenses). Belo
Horizonte: Del Rey, 2001.
SBCOACHING. Mulher no mercado de trabalho: crescimento, importância e fatos. Blog
SBCoaching, São Paulo, 21 fev. 2019. Disponível em: https://www.sbcoaching.com.br/
blog/mulher-mercado-trabalho/. Acesso em: maio 2020.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia
Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

451
DIREITOS FUNDAMENTAIS EM PROCESSO
A proteção constitucional à honra e à imagem da pessoa-residente
e a discriminação de origem como ofensa aos direitos individuais

Manoel Jorge e Silva Neto1

Sumário: 1 Introdução. 2 As diversas espécies de honra. As imagens protegidas pela Consti-


tuição de 1988. 2.1 O direito à honra e suas espécies. 2.2 As imagens protegidas pela Constitui-
ção de 1988. 3 A pessoa-residente como titular do direito à honra e à imagem. 4 Hipóteses de
transgressão do direito à honra e à imagem-atributo da pessoa-residente. 5 A discriminação
de origem como ofensa aos direitos individuais. 6 Instrumentos de garantia do direito à honra
e à imagem da pessoa-residente. 6.1 A ação civil pública. 6.2 A ação popular. 7 Conclusões.

1 · INTRODUÇÃO
Muitos são os direitos individuais expressamente protegidos pela Constituição
de 1988; poucos, porém, os contemplados com efetiva tutela no plano da realidade
física. A desproporcional equação jurídica que confere direitos no plano formal,
mas os deixa, de fato, à míngua, parece ter relação com o generalizado desconheci-
mento acerca da própria existência do direito constitucionalmente protegido.
Isso é o que se sucede com o direito à honra e à imagem da pessoa-residente. O
sistema da ciência do Direito no Brasil ainda não se pronunciou a respeito do tema,
conquanto não sejam escassas as hipóteses mediante as quais, por ação – principal-
mente – ou por omissão, são maltratados os direitos individuais da pessoa-residente.
Logo, o propósito do artigo é iniciar discussão acerca do direito à honra e à ima-
gem da pessoa-residente, obedecendo, no entanto, à seguinte ordem: as diversas espé-
cies de honra e as imagens protegidas pela Constituição (item 2); a pessoa-residente
como titular do direito à honra e à imagem (item 3); hipóteses de transgressão do
direito à honra e à imagem da pessoa-residente (item 4); a discriminação de origem
como ofensa aos direitos individuais (item 5); instrumentos de garantia do direito à
honra e à imagem da pessoa-residente (item 6); e, finalmente, as conclusões (item 7).

2 · AS DIVERSAS ESPÉCIES DE HONRA. AS IMAGENS


PROTEGIDAS PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988
2.1 · O DIREITO À HONRA E SUAS ESPÉCIES
O direito à honra foi objeto de explícita referência no art. 5º, X, da Constituição
(“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,

1 Subprocurador-Geral do Trabalho. Diretor-Geral Adjunto da ESMPU. Coordenador da Assessoria


Constitucional Trabalhista da Procuradoria-Geral da República (PGR). Professor-Visitante no
Levin College of Law, na Universidade da Flórida (EUA). Professor-Visitante na Universidade
François Rabelais (França).
453
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de
sua violação”).
São duas as espécies de honra: a honra subjetiva e a honra objetiva. A primeira
se refere ao sentimento que o indivíduo tem sobre si mesmo. A segunda está rela-
cionada ao respeito, à boa fama granjeada pelo indivíduo em razão da forma como
se porta no meio social.
Admite-se a responsabilização por dano à honra subjetiva em virtude de inclu-
são indevida do nome da pessoa como devedora em banco de dados de caráter
público, conforme já consolidado na jurisprudência:
RESPONSABILIDADE CIVIL – INDENIZAÇÃO – INDICAÇÃO DO NOME
COMO DEVEDOR INADIMPLENTE – SERASA – COBRANÇA – DÉBITO
INDEVIDO – DANO MORAL CARACTERIZADO E PROVADO – I. O banco
que promove a indevida inscrição de devedor no SERASA responde pela repara-
ção do dano moral; II. A simples negativação de nome junto ao SERASA consti-
tui fato que, de per si, é suficiente para atingir a honra subjetiva de uma pessoa;
III – Recurso improvido (TJMA – Ap 000644-2003 – (44.713/2003) – 3ª C. Cív. –
Rel. des. Cleones Carvalho Cunha – J. 22.5.2003).
Todavia, igualmente não deve persistir qualquer dúvida acerca de as coletivi-
dades poderem sofrer agravo ao direito à honra, notadamente porque possuem
patrimônio imaterial.
Em verdade, a jurisprudência já admitiu até mesmo que pessoas jurídicas podem
ser protegidas quanto à honra objetiva, visto que a de natureza subjetiva é específica
da pessoa humana.
Observe-se a ementa seguinte:
2. INDENIZAÇÃO MORAL – PESSOA JURÍDICA – HONRA OBJETIVA –
IMPROCEDÊNCIA – HONORÁRIOS – I – A pessoa jurídica está protegida
quanto à honra objetiva, pois a honra subjetiva é privilégio dos humanos. II –
A violação da honra objetiva, além da ofensa, precisa da prova da oitiva ou
conhecimento por outras pessoas. III – A apelante não fez esta prova, por isso
impõe-se improcedência do pedido, conforme sentença de primeiro grau. IV –
Os honorários, em caso de improcedência, devem observar o § 4º do art. 20 que
remete às alíneas a, b e c do § 3º, mesmo artigo do CPC. V – Apelação improvida
(TJDF – APC 20000110270830 – DF – 4ª T. Cív. – Rel. des. Vera Andrighi – DJU
27.8.2003 – p. 46).
Mas o direito à honra não deve ser confundido com o direito à imagem, espe-
cialmente quando se constata a existência de imagens constitucionalmente tutela-
das, como se verá a seguir.

2.2 · AS IMAGENS PROTEGIDAS PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988


O desenvolvimento da tecnologia trouxe inúmeros benefícios à civilização, mas
acarretou excessos que resultaram na restrição à liberdade e à dignidade das pes-
soas, o que não seria diferente com relação à imagem.
Com efeito, após o advento da fotografia, com a possibilidade de a imagem ser
captada sem consentimento da pessoa, surgiram situações de conflito precisamente
em razão de inexistência de manifestação de vontade quanto à captação da imagem.

454
2.2.1 · AMPLITUDE DA TUTELA CONSTITUCIONAL: IMAGEM-RETRATO E
IMAGEM-ATRIBUTO (DIREITO DE IMAGEM E DIREITO À IMAGEM)
A primeira observação a ser feita, analisando-se os incisos V, X e XXVIII, a, da
Constituição (CF), é a respeito da amplitude do direito individual.
No art. 5º, XXVIII, a, da CF, a proteção se dirige ao direito de imagem, que se
identifica com a imagem física da pessoa: “São assegurados, nos termos da lei: a) a
proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem
e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas”.
Se a norma constitucional protege a reprodução da imagem humana, é evidente
que o preceptivo se destina à tutela específica da imagem física da pessoa.
Por sua vez, no art. 5º, V, da CF se propõe a defesa do direito à imagem: “É
assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por
dano material, moral ou à imagem”.
E no art. 5º, X, da CF? Qual imagem é protegida em seu enunciado? Ambas, seja o
direito de imagem (imagem física), seja o direito à imagem (imagem social), pois refere
que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, asse-
gurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Ora se o direito protegido é a imagem, e não o direito de imagem, prescrito no
art. 5º, XXVIII, a, da CF, tampouco o direito à imagem, definido no art. 5º, V, da CF,
é certo que as duas espécies se encontram preservadas no art. 5º, X, da CF. Portanto,
nota-se a amplitude da tutela constitucional.
Com evidência, embora o senso comum se habitue a admitir a imagem como
sinônimo de expressão fisionômica da pessoa, a Constituição de 1988 promoveu a
tutela de duas espécies de imagem que são absolutamente inconfundíveis: a ima-
gem-retrato (direito de imagem) e a imagem-atributo (direito à imagem).
A imagem-atributo, também chamada de “imagem social”,2 é o resultado da
construção dos atributos subjetivos do indivíduo, com tutela específica admitida no
assinalado art. 5º, V, da Constituição.
Observa-se essa espécie, por exemplo, nas situações em que determinados profis-
sionais liberais passam a ser amplamente conhecidos pela especial forma de atuação
profissional, como na hipótese de advogado que se notabilizou na defesa de interesses
empresariais perante o Poder Judiciário e tenha sido divulgada em jornal de grande
circulação, por equívoco, a notícia de sua contratação por sindicato de trabalhadores.
É óbvio nada haver de irregular na defesa judicial dos interesses dos trabalhadores
mediante o patrocínio de causa proposta pelo grêmio profissional; todavia, se algum
prejuízo for ocasionado à imagem profissional de defensor de interesses empresariais –
que, na espécie, traduz-se em imagem-atributo –, será possível a sua indenização.
É correto concluir que o direito à imagem-atributo geralmente está relacionado
à atividade profissional da pessoa, uma vez que é por meio desse domínio exis-
tencial que o indivíduo consolida o mais relevante plexo de seus atributos, aqueles
de cunho profissional; todavia, não está o direito individual exclusivamente preso
ao contexto das profissões. Assim por exemplo, examine-se hipótese de pessoa

2 MARTÍNEZ, 1997, p. 45.

455
notabilizada pela filantropia. É provável a existência de alguém que tenha a sua
imagem-atributo identificada com a assistência aos desamparados. De forma deli-
berada ou não, construiu essa pessoa atributos que a identificam com a causa assis-
tencialista. Se, por algum modo, for veiculada informação inverídica que vulnere o
seu direito à imagem, surge a possibilidade de reparação.
Em síntese conclusiva, temos o seguinte:
• Art. 5º, XXVIII, a, da CF = Direito à imagem-retrato = Direito de imagem;
• Art. 5º, V, da CF = Direito à imagem-atributo = Direito à imagem; e
• Art. 5º, X, da CF = Direito à imagem-retrato (direito de imagem) e direito à
imagem-atributo (direito à imagem) = Direito a imagem.

2.2.1.1 · Imagem-atributo de produto


A imagem-atributo é direito individual que se destina, de modo semelhante, às
pessoas jurídicas ou ao produto, porque unidades empresariais despendem vultosas
quantias destinadas à construção da imagem de determinado produto, que poderá,
todavia, ser atingida em virtude de veiculação de notícia inverídica. Por exemplo, se
empresa alimentícia possui determinado produto que é consumido por segmento
de consumidores preocupados com a questão ambiental, uma falsa notícia quanto
à utilização de agrotóxicos na matéria-prima produzirá enorme – e provavelmente
irreversível – gravame à imagem do produto.

2.2.1.2 · Imagem-atributo de pessoa jurídica


A própria pessoa jurídica também poderá ser vulnerada em sua imagem-atri-
buto, como na situação em que há divulgação, de forma inverídica, de notícia sobre
fato ocorrido com a empresa não condizente com o seu “retrato social”.
Assim, unidades empresariais têm grande preocupação em demonstrar publica-
mente a sua eficiência em determinada atividade. Pois bem, se for ofendida a ima-
gem-atributo de empresa que buscou o reconhecimento público de sua eficiência,
divulgando-se equivocadamente prestação de serviço realizada de modo insatis-
fatório, torna-se viável a responsabilização do veículo de mídia, de qualquer outro
agente econômico ou do concorrente que tenha veiculado a notícia.

2.2.1.3 · Distinção entre imagem-atributo e honra


Certo de que o objetivo desta investigação se prende ao exame dos direitos indi-
viduais relativos à honra e à imagem da pessoa-residente, é indeclinável o esforço
quanto à delimitação de cada um desses direitos.
Fácil é distinguir a imagem-retrato da honra, bastando indicar a hipótese em
que é revelada a imagem fisionômica da pessoa sem a sua autorização, mas são des-
tacados seus atributos morais.
Um pouco mais sutil é a distinção entre imagem-atributo e o direito à honra.
Caracterizado o direito à imagem-atributo como “retrato social” ou ainda “ima-
gem social”, e, por outro lado, referida a honra objetiva como bom conceito, boa
fama do indivíduo no meio social, surgiriam dúvidas a respeito da autonomia dos
direitos individuais apontados. Não há, contudo, fundamento para a identificação.

456
Qualquer indivíduo, no domínio das relações sociais que trava, poderá acarretar
para si juízo de valor favorável ou desfavorável sobre a sua reputação enquanto pessoa.
Será conhecido como honesto ou desonesto, por exemplo; tudo dependerá da forma
como se comporta no relacionamento com outros indivíduos. As considerações da cole-
tividade feitas sobre a sua conduta moral estão no contexto da defesa do direito à honra.
No romance O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde3 descreve a personalidade
abjeta de um jovem, cujo conceito que dele fazia a coletividade era o pior que se
podia imaginar, tendo em vista o seu comportamento execrável, o que terminou por
caracterizar a sua honra objetiva. Mas ser “bom” ou “mau” caráter nada tem a ver
com a imagem-atributo, e sim com o direito à honra.
Outrossim, ainda no terreno das relações sociais do mesmo indivíduo, há um
campo de atuação no qual ele pretende ser visto; por exemplo, como bom advogado
defensor de causas operárias ou bom engenheiro construtor de pontes. Não guarda
a imagem-atributo de bom advogado ou de bom engenheiro nenhuma relação com
a honra objetiva que aos profissionais possa ser atribuída pela comunidade. O advo-
gado pode ser excelente defensor de causas operárias, mas ter péssimo caráter; o enge-
nheiro pode ser homem honrado por gozar de excelente fama, em razão da conduta
moral incensurável, mas não ter boa imagem-atributo de construtor de pontes em
decorrência dos inúmeros desabamentos de construções sob sua responsabilidade.
Não pode persistir, assim, qualquer tentativa de identificar a imagem-atributo e
o direito à honra, porque há sem-número de situações nas quais um desses direitos
individuais pode vir a ser violado sem que, nem de longe, se cogite da transgressão
do outro, como vimos nos exemplos mencionados.
Assim, tracejados todos os contornos relativos ao direito à imagem, de ima-
gem e a imagem, cumpre destacar que os problemas mais marcantes observados
no âmbito da pessoa-residente são os relacionados à honra e à imagem-atributo,
que invariavelmente se associam também a questões pertinentes à denominada
discriminação de origem, que se consubstancia em comportamento expressamente
vedado pelo art. 3º, IV, da Constituição Federal de 1988.
Portanto, mesmo sem deixar de reconhecer que a proteção à imagem física da pes-
soa-residente não deve ser esquecida, cumpre-me, neste trabalho, inserir no núcleo cen-
tral da investigação os problemas afetos à honra e à imagem-atributo de tais indivíduos.
É possível cogitar sobre honra e sobre imagem-atributo da pessoa-residente?
É o que tentarei responder no próximo subitem.

3 · A PESSOA-RESIDENTE COMO TITULAR


DO DIREITO À HONRA E À IMAGEM
O que é pessoa-residente? Trata-se de nova tipologia no âmbito do Direito Civil,
vinculada ao relevante tema de sua Parte Geral que estuda as pessoas? A pessoa-re-
sidente tem personalidade jurídica? É pessoa natural ou jurídica?

3 O próprio escritor era muitíssimo cioso da própria imagem-atributo, tanto que, ao visitar os
Estados Unidos para uma série de conferências nos idos de 1880, quando passou pela alfândega
e sofreu a habitual pergunta se tinha algo a declarar, Wilde foi cortante, como informa Marcello
Rollemberg: “Nada, além da minha genialidade” (WILDE, 2000, p. 9).

457
Convictamente, trata-se de questionamentos indispensáveis ao fim de examinar
o direito à imagem da pessoa-residente, sem os quais se torna materialmente inviá-
vel desencobrir a natureza jurídica e as possibilidades de tutela ao direito individual
desses sujeitos.
Em primeiro lugar, registre-se que a civilização percorreu longo caminho até
alcançar o estágio de organização social da atualidade, em que os aglomerados
humanos optaram pela fixação em determinado território como forma de prover
mais segurança e condições de sobrevivência aos integrantes da comunidade.
Nem sempre foi, assim, contudo. Desde a era mais primitiva, quando achados
arqueológicos dão evidência do atávico nomadismo das populações, passando pela
Idade Antiga, cuja Diáspora judaica foi tão bem retratada nos escritos bíblicos, atin-
gindo até mesmo a Idade Média, com as constantes migrações que resultaram das
guerras de conquista, o fato é que a consolidação dos aglomerados humanos em
limites territoriais precisos é fenômeno historicamente recente.
Acredito, porém, que aconteceu com as cidades o mesmo que se sucedeu com a casa
do indivíduo: embora o lugar onde o homem primitivo se homiziava das feras e protegia
a si e à sua família possa ser considerado fenômeno antropológico muito mais antigo que
a organização social dos indivíduos nas cidades, assim como também deva ser destacado
que a casa ocupa grau de importância mais elevado em razão de sua precedência, frise-
-se que, uma vez fixado o indivíduo nos limites citadinos, passou a devotar-lhe especial
deferência como contrapartida a diversos benefícios advindos da moradia na cidade,
tais como: segurança, serviços (com a divisão social do trabalho), alimentação (com
o incremento das feiras, especialmente a partir da Idade Média), e, principalmente, o
desenvolvimento das relações sociais e dos modelos de organização política.
E mais: ainda que a casa seja considerada de importância maior que a cidade,
é certo que a casa podia ser muito mais protegida no recinto da cidade. Por conse-
quência, o binômio casa-cidade passou a ostentar compostura inseparável.4
Logo, indivíduos que consolidavam habitação em determinada cidade o faziam moti-
vados pelas mais distintas carências humanas, entre as quais as inerentes às relações sociais.
Como não poderia deixar de ser, as pessoas que habitavam as cidades come-
çaram a cultivar natural e inevitavelmente uma relação de pertencimento com a
cidade na qual residiam.
Por sua vez, essa relação de pertencimento originou a figura da pessoa-residente.
Todavia, a indigitada relação de pertencimento evidentemente que não colhe ape-
nas o afeto do indivíduo pela sua cidade; de modo semelhante, pertencer a uma
determinada unidade da federação ou mesmo a um país denota a força detida por
este sentimento de origem.
Deveras, a tendência humana à generalização tem proporcionado autênticos
acintes, verdadeiros ataques à dignidade da pessoa tão só à conta de ter nascido em
determinada cidade, estado ou país.

4 Essa relação inseparável foi magistralmente positivada na Ley del Suelo espanhola, pedra angular
do direito urbanístico naquele país, cujo art. 1º destaca que “a atividade construtora se submete à
intervenção administrativa [...] e nada mais justificado uma vez que [...] a vinculação dos edifícios
à cidade é tão íntima que ao construí-los não se pode esquecer que se está construindo ao mesmo
tempo a cidade”. (Tradução livre).

458
Note-se, por exemplo, o que se sucede com os indivíduos de diversas nacionali-
dades, cujos estereótipos bem evidenciam ofensa à honra e (ou) à imagem-atributo:
“francês não toma banho”; “brasileiro é desonesto” etc.
E, mesmo no contexto da realidade brasileira, não são poucas as conclusões
pejorativas que se consolidaram sobre as pessoas nascidas nos mais distintos esta-
dos de nossa Federação: “baiano é preguiçoso”; “carioca é malandro”; “mineiro é
sovina”, e por aí vai...
Consequentemente, exceção feita aos nacionais, que têm tutela específica rela-
cionada à sua própria nacionalidade, como se verá a seguir, a pessoa-residente tem
vinculações com o estado ou a cidade onde nasceu.
Iniciando, assim, as respostas aos questionamentos formulados, pode-se dizer
que a pessoa-residente é ente coletivo despersonalizado que possui vinculações de
ordem antropológica, social, cultural e jurídica com a cidade ou o estado-membro.
Por que “ente coletivo”? Simplesmente em virtude de a figura da pessoa-residente
não estar presa a sujeito de direito, mas sim designar ente de expressão coletiva.
Por exemplo, observe-se o que acontece quando é mencionado o comportamento
de pessoas de determinada cidade ou de um dado país. A característica alcança
todos os indivíduos indistintamente, e nenhum deles individualmente. Portanto, ao
registrar a ideia de pessoa-residente, consolida-se fundamento para a tutela de inte-
resse transindividual, uma vez que é impossível delimitar quais sejam os indivíduos
integrantes do respectivo universo.
A pessoa-residente não merece tutela por pertencer a qualquer grupo vulnerá-
vel. A ideia que fundamenta a proteção jurídica é o mero e simples fato de pertencer
à cidade ou ao estado-membro.
A pessoa-residente não é novo tipo que surge para o estudo da Parte Geral do
Direito Civil e que corresponde ao relevante tema das pessoas. É apenas uma ficção
criada com fundamento na realidade da proteção às coletividades, expressão da
tutela coletiva, quando, não raro, são promovidos ataques a direitos fundamentais
previstos no art. 5º, X, da CF, como a vida privada, a imagem-atributo e a honra.
A pessoa-residente é ente despersonalizado. Não é pessoa natural ou jurídica, já
que não detém qualquer personalidade, como já referido.
Por fim, note-se que a pessoa-residente possui vinculações de natureza antro-
pológica, social, cultural e jurídica com a cidade ou com o estado. Antropológica
porque a cidade é, antes de tudo, fenômeno resultante das aglomerações humanas,
que é objeto de estudo da Antropologia. E a federação, que cria estados, é também
resultado dos anseios das populações. Há vinculação social em virtude de a cidade
ser, a um só tempo, causa e efeito de fatos sociais. Subsistem vinculações culturais
desde que se entenda que os objetivos citadinos se aliam à solução de problemas
humanos do cotidiano, o que determina fortíssima conexão à cultura.
Assim também ocorre com o estado-membro, cuja singularidade geofísica
poderá impor a adoção de planejamento econômico e modelo de urbanização que
vá ao encontro, respectivamente, dos caracteres climatológicos e físicos da região,
bem como da compostura singular de regiões metropolitanas do estado.

459
E, finalmente, observam-se nítidas relações jurídicas da pessoa-residente com a
cidade e o estado, porquanto o indivíduo, diante da circunstância de neles residir,
passa a ostentar feixe de direitos e obrigações, exemplificado quando é destinatário
de serviços públicos e obrigado ao respectivo pagamento de taxas por tais serviços
prestados ou postos à sua disposição.

4 · HIPÓTESES DE TRANSGRESSÃO DO DIREITO À HONRA


E À IMAGEM-ATRIBUTO DA PESSOA-RESIDENTE
Conforme ficou evidente ao longo da exposição dos itens anteriores, a pessoa-resi-
dente não é pessoa natural ou jurídica, não detém qualquer personalidade, mas é titu-
lar de direitos. Entre os direitos cuja tutela deva ser destinada à pessoa-residente está
o direito à vida privada, à honra e à imagem, todos protegidos pelo art. 5º, X, da CF.
Como não é objeto desta investigação o estudo de eventual ofensa à vida privada
da pessoa-residente, centralizarei os exemplos em casos concretos e (ou) hipotéticos
de transgressão à sua honra e imagem-atributo.
Contudo, como visto no item anterior, muitos casos de transgressão a direitos da
pessoa podem se relacionar à vinculação a país, e não a cidade ou a estado.
Nessas hipóteses, não se cogitará sobre ofensa a direitos de pessoa-residente,
mas sim de transgressão a direitos fundamentais pertinentes à nacionalidade.
Com evidência, não apenas é direito humano de todo indivíduo possuir ao menos
uma nacionalidade, como também que deva ser incondicionalmente respeitada.
Logo, qualquer alegação que exponha a honra ou a imagem-atributo de nacio-
nais deverá ser repelida com veemência, como simples efeito de opção legítima da
pessoa por determinada nacionalidade – no caso da adquirida ou secundária –, ou
como forma de proteger a nacionalidade originária resultante do local de nasci-
mento (jus soli) ou dos laços de consanguinidade (jus sanguinis).
É conhecida a execrável reputação da mulher brasileira que é disseminada espe-
cialmente em Portugal e Espanha, onde são associadas a prostitutas. Em casos tais,
não há dúvida que se opera ignominiosa transgressão à honra das brasileiras, cuja
repercussão do comportamento discriminatório enseja a devida reparação no alti-
plano das cortes internacionais.
Com convicção, porém, não posso concluir que as brasileiras são pessoas-
-residentes; são nacionais. E, a partir de tal condição, é possível alcançar a devida
reparação por ofensa ao direito humano e fundamental à nacionalidade, além de
imposição de obrigações de fazer ao Estado dentro do qual se disseminou o nefando
preconceito, especialmente para obrigá-lo à implementação de campanhas desti-
nadas a proteger a dignidade dos estrangeiros discriminados naquele país. Mas
repito: o fundamento para a proteção não se liga à ideia de pessoa-residente, e sim
ao contexto dos direitos da nacionalidade, cuja tutela está prevista nos arts. 12 e 13
da Constituição Federal.
É possível, todavia, perceber hipóteses de transgressão à honra da pessoa-
-residente, da pessoa que pertence à cidade onde nasceu.
Além dos já conhecidos estereótipos segundo os quais “baiano é preguiçoso”,
“carioca é malandro” etc., mediante os quais a assertiva discriminatória se dirige

460
aos originários de determinadas unidades de nossa Federação, percebe-se, infeliz-
mente, a existência de preconceito dirigido, de forma específica, a pessoas nascidas
ou residentes em determinadas cidades.
É o caso dos indivíduos nascidos em Pelotas, no Estado do Rio Grande do Sul,
que passaram a ser identificados a homossexuais. Nesse passo, se é verdade que não
é circunstância agravante à honra de quem quer que seja a opção pela homossexuali-
dade, não deixa de ser verdade também que indivíduos heterossexuais têm o direito
fundamental à identificação sexual condizente com a sua opção. Não se sabe ao
certo como ou quando começou essa generalizada ideia de que indivíduos do sexo
masculino residentes ou originários de Pelotas têm tendência à homossexualidade.
Refere-se comumente ao fato de que, nos séculos XVIII e XIX, famílias abasta-
das daquela região enviavam os seus filhos para universidades europeias, principal-
mente localizadas na França. Ao retornarem daquele País, adquiriram o hábito de
usar gravatas do tipo blastron – atípicas no Brasil à época – assim como babados
de diversos tipos nas golas das camisas, fato que, combinado com a pronúncia da
língua francesa – que induz o falante a fechar os lábios para produzir o som da vogal
“u” – passou a ser identificado como ausência de virilidade.
Outra localidade que sofreu e ainda sofre o estigma do preconceito é Arapiraca,
no Estado de Alagoas. Com efeito, os homens casados daquela cidade passaram a
ser conhecidos como “chifrudos”, “cornos” etc., circunstância que maltrata a honra
de homens e mulheres ali nascidos ou residentes.
A má fama também encontra explicação em fato do passado: segundo se comenta,
houve, no século XIX, rumoroso caso de homem casado cuja mulher fora flagrada
mantendo relações sexuais com outro indivíduo. A partir daí a estória se espalhou por
todo o estado, consolidando-se a pérfida imagem de homens e mulheres de Arapiraca.
Em verdade, segundo pesquisa de opinião realizada em 2014, a cidade brasi-
leira em que maior percentual de pessoas espontaneamente declarou já ter mantido
relações sexuais fora do casamento foi São Paulo-SP, seguida das cidades do Rio
de Janeiro-RJ, Brasília-DF, Belo Horizonte-MG, Curitiba-PR e Salvador-BA,5 não
havendo, no particular, qualquer registro sobre números significativos no Estado de
Alagoas, ou, pior ainda, na cidade de Arapiraca.

5 · A DISCRIMINAÇÃO DE ORIGEM
COMO OFENSA AOS DIREITOS INDIVIDUAIS
Após delimitação de diversas hipóteses de maltrato à honra e imagem-atributo
da pessoa-residente, cumpre destacar, neste item, que tais transgressões ofendem a
cláusula constitucional antidiscriminatória referida no art. 3º, IV, da CF, razão por
que convirá exame particularizado do preceptivo constitucional.
Outrossim, diante da existência de preceito constitucional que explicita-
mente protege as pessoas contra comportamento discriminatório ilegítimo, surge
o questionamento alusivo à efetiva necessidade quanto à criação da figura da
pessoa-residente.

5 GAZETAONLINE, 2014.

461
De início, observe-se o comando incisivo do art. 3º, IV, da CF, segundo o qual
“constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - omissis;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação”.
Conquanto seja correto afirmar que a geografia humana registra a existência de
alguns critérios determinativos da origem das populações humanas (etnia, nacio-
nalidade, religião etc.), deve-se alertar que o preceptivo constitucional não se limita
aos critérios geográfico-humanos, podendo ser considerado qualquer elemento ati-
nente à origem para reprovar a discriminação ilegítima nele fundada.
Imagine-se, por exemplo, pessoa pertencente a determinada família, na qual mui-
tos indivíduos a ela vinculados tenham sido notoriamente conhecidos pela prática
de crimes das mais variadas espécies. Parece evidente que integrante deste grupo
familiar, tão só por tal condição, não possa e não deva ser vítima de qualquer discri-
minação tendo por base a vinculação familiar, máxime porque, mesmo diante do fato
de crimes praticados por pessoas da mesma família, o próprio Texto Constitucional
revela que nenhuma pena passará da pessoa do condenado (art. 5º, XLV, da CF).
Logo, é possível concluir que os critérios postos no art. 3º, IV, da CF e destinados a re-
provar práticas discriminatórias ilegítimas ostentam caráter francamente exemplificativo.
Dito isso, é relevante apontar o que pode ser considerado discriminação legí-
tima e ilegítima, tornando-se a investigação indispensável para o reconhecimento
de hipóteses em que a imagem da pessoa-residente possa ser levada em considera-
ção para efetivar discrímen e outras em que a referida desequiparação seja proscrita
pelo sistema constitucional.
Não obstante já tenha sido afirmado aqui ser o escopo do trabalho voltado ao
estudo da honra e da imagem-atributo, cumpre assinalar que a imagem física da
pessoa, a denominada imagem-retrato deve ser destacada no momento, notada-
mente porque há situações nas quais se tornará legítima a discriminação que tenha
como causa a imagem física do indivíduo.
Observe-se a seguinte e hipotética situação: determinada etnia indígena foi des-
coberta na região amazônica, e antropólogos verificaram também que a referida
comunidade possuía enorme resistência às pessoas de olhos azuis.
Pergunta-se: indivíduos com tais traços na imagem podem ser impedidos de
relacionarem-se com os indígenas? A proibição seria ilegítima?
É de obviedade acaciana a constatação segundo a qual indivíduos com olhos
azuis não poderiam se relacionar com integrantes da tribo indígena primitiva, a
qualquer título, como médico, professor ou qualquer outra profissão vocacionada a
melhorar as condições de vida dos aborígenes.
O fato, indisputável, é que a simples presença de pessoas com mencionados tra-
ços fisionômicos convulsionaria de tal forma e com tal intensidade as relações a
ponto de inviabilizar a aproximação à comunidade.
Portanto, não é a circunstância de a Constituição Federal deixar de referir “olhos
azuis” no art. 3º, IV, que impede o Poder Público de utilizar o critério para fins de
desequiparação legítima, porque nem toda discriminação é reprovada pelo sistema
constitucional e, desenganadamente, o art. 3º, IV, revela compostura exemplificativa.

462
Embora seja verdade que a norma constitucional condene a escolha dos critérios
origem, raça, sexo, cor e idade para desequiparar pessoas, não é menos verdade
que, em muitas situações, o recurso aos anteditos critérios termina por configurar
até mesmo imposição ditada pela circunstância da vida, como se viu na situação
relativa à tribo indígena.
Toda vez que a discriminação é consumada em razão de uma situação de fato
que a determine, está-se diante da discriminação legítima; quando, todavia, não há
correspondência entre o fator de desequiparação utilizado e uma circunstância de
fato, observa-se a discriminação ilegítima.
Explica-nos Celso Antônio Bandeira de Mello que
qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou situações pode ser escolhido
pela lei como fator discriminatório, donde se segue que, de regra, não é no traço
de diferenciação escolhido que se deve buscar algum desacato ao princípio iso-
nômico [...]. [...] as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláu-
sula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação
lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a
desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação
não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição.6

6 · INSTRUMENTOS DE GARANTIA DO DIREITO À HONRA


E À IMAGEM DA PESSOA-RESIDENTE
Tracejados os caracteres da pessoa-residente, bem assim as hipóteses concretas
de transgressão a direitos dessa coletividade, cabe enunciar alguns instrumentos de
garantia previstos na Constituição Federal e aptos à defesa judicial da honra e da
imagem-atributo da pessoa-residente.

6.1 · A AÇÃO CIVIL PÚBLICA


Instrumento processual de defesa da coletividade por excelência, a ação civil
pública é, por esse motivo, examinada precedentemente em tema de tutela da pes-
soa-residente. Registre-se, em primeiro lugar, que o art. 1º da Lei n. 7.347/1985 (Lei
da Ação Civil Pública – LACP) refere a utilização da medida não apenas para a tutela
judicial do meio ambiente, consumidor, bens e direitos de valor artístico, estético, his-
tórico, turístico e paisagístico, por infração à ordem econômica, à ordem urbanística,
mas, sobretudo, in genere, a qualquer outro interesse difuso ou coletivo (art. 1º, IV).
Consequentemente, a proteção à honra e à imagem da pessoa-residente se dá por
meio da referida cláusula aberta prevista na LACP.
De sorte a tornar efetiva a tutela judicial à honra e à imagem da coletividade em
questão, a ação civil pública poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o
cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.
Com isso, resta evidente que a medida tem caráter precipuamente cominatório,
conquanto não se possa desvencilhar do objeto da ação contingente pleito destinado
à reparação pecuniária do patrimônio material ou imaterial lesado.

6 BANDEIRA DE MELLO, 1993, p. 17.

463
Assim, além do preceito cominatório dirigido ao estancamento da conduta
lesiva à honra ou à imagem da pessoa-residente, o pedido poderá ser dirigido à
reparação do patrimônio imaterial mediante fixação de dano moral difuso.
Não caberá o pedido de indenização por dano moral coletivo, porque a pessoa-
-residente em estado-membro ou em cidade está inserida no contexto de destina-
tários indeterminados e indetermináveis, sendo certo que é materialmente inviável
desencobrir, no universo dos residentes em unidades da Federação ou em qualquer
cidade, por menor que seja, quais são precisamente aqueles que poderão ser bene-
ficiados pelo provimento judicial; caberá, todavia, pedido de dano moral difuso.
Além do pedido de paralisação do comportamento transgressor aos direitos
fundamentais, a ação civil pública também se prestará à obtenção de provimento
liminar para o fim de impedir, initio litis, o prosseguimento da atitude deletéria,
comissiva ou omissiva, à honra ou imagem de tais indivíduos.

6.2 · A AÇÃO POPULAR


Também vocacionada à tutela judicial de direitos da pessoa-residente é a ação
popular. Com legitimidade atribuída exclusivamente ao cidadão – o que tem título
de eleitor –, a ação popular ostenta a elevada missão de declaração de nulidade de atos
lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios,
de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista e tantas mais.
O dado interessante a respeito da Lei da Ação Popular que a torna efetivo instru-
mento de proteção da pessoa-residente é o seu § 1º, art. 1º, verbis: “Consideram-se
patrimônio público para os fins referidos neste artigo, os bens e direitos de valor
econômico, artístico, estético, histórico e turístico”.
Posto desta forma, penso que, embora a honra e a imagem da pessoa-residente
nada tenham a ver com “bens e direitos de valor econômico”, não há a mesma con-
clusão no caso dos valores artístico, estético, histórico ou turístico.
Convictamente, a ofensa à honra ou à imagem-atributo das pessoas que resi-
dem em determinada cidade ou estado-membro poderá muito bem desenvolver
desdobramentos que seguramente infligirão sério abalo aos valores prestigiados
pela Lei n. 4.717/1965. Destarte, uma vez consumado ato cujo resultado, mediato
ou imediato, possa infligir lesão à honra ou à imagem-atributo da pessoa-residente,
abre-se naturalmente a via para propositura de ação popular em razão de os valores
consubstanciados na norma de regência serem igualmente objeto de transgressão.
A ação será proposta contra as pessoas jurídicas de direito público ou de direito
privado referidas no art. 1º da Lei n. 4.717/1965, assim como contra as autoridades,
funcionários ou administradores que houverem realizado o comportamento ou
mesmo autorizado, aprovado ou ratificado o ato impugnado; ou em caso de omissão,
na hipótese de terem dado oportunidade à lesão (art. 6º, caput, Lei n. 4.717/1965).

7 · CONCLUSÕES
1. São duas as espécies de honra: a honra subjetiva e a honra objetiva. A primeira se
refere ao sentimento que o indivíduo tem sobre si mesmo. A segunda está relacio-
nada ao respeito, à boa fama granjeada pelo indivíduo em razão da forma como se
porta no meio social;

464
2. Há também duas imagens protegidas constitucionalmente: a imagem-retrato e
a imagem-atributo;
3. Pessoa-residente é ente coletivo despersonalizado que possui vinculações de
ordem antropológica, social, cultural e jurídica com a cidade ou o estado-membro;
4. O agravo à honra ou à imagem-atributo de nacionais não se insere na tutela
específica à pessoa-residente, porque será possível alcançar a devida reparação
por ofensa ao direito humano e fundamental à nacionalidade;
5. Haverá tutela específica à pessoa-residente em casos nos quais a ofensa se dirija
ao indivíduo em virtude de pertencer a determinada cidade ou estado-membro
da Federação;
6. Embora seja verdade que a norma constitucional condene a escolha dos cri-
térios origem, raça, sexo, cor e idade para desequiparar pessoas, não é menos
verdade que, em muitas situações, o recurso aos anteditos critérios termina por
configurar até mesmo imposição ditada pela circunstância da vida. Assim toda
vez que a discriminação é consumada em razão de uma situação de fato que a
determine, está-se diante da discriminação legítima; quando, todavia, não há
correspondência entre o fator de desequiparação utilizado e uma circunstância
de fato, observa-se a discriminação ilegítima;
7. Muitos comportamentos agressores à honra e à imagem-atributo podem ser
considerados atitudes discriminatórias ilegítimas;
8. A proteção à honra e à imagem da pessoa-residente se dá por meio do art. 1º,
IV, da Lei n. 7.347/1985 (LACP). Para tornar efetiva a tutela judicial à honra e à
imagem da coletividade em questão, a ação civil pública poderá ter por objeto a
condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer;
9. Não caberá o pedido de indenização por dano moral coletivo, porque a pessoa-
-residente em estado-membro ou em cidade está inserida no contexto de desti-
natários indeterminados e indetermináveis, sendo certo que é materialmente
inviável desencobrir no universo dos residentes em unidades da Federação ou
em qualquer cidade, por menor que seja, quais são precisamente aqueles que
poderão ser beneficiados pelo provimento judicial; caberá, todavia, pedido de
dano moral difuso;
10. A ação civil pública ainda se prestará à obtenção de provimento liminar para o
fim de impedir, initio litis, o prosseguimento da atitude deletéria, comissiva ou
omissiva, à honra ou imagem da pessoa-residente;
11. A ação popular também está vocacionada à tutela judicial de direitos da
pessoa-residente;
12. A ofensa à honra ou à imagem-atributo das pessoas que residem em determinada
cidade ou estado-membro poderá muito bem desenvolver desdobramentos que
seguramente infligirão sério abalo aos valores prestigiados pela Lei n. 4.717/1965;
13. A ação será proposta contra as pessoas jurídicas de direito público ou de direito pri-
vado referidas no art. 1º da Lei n. 4.717/1965, assim como contra as autoridades, fun-
cionários ou administradores que houverem realizado o comportamento ou mesmo
autorizado, aprovado ou ratificado o ato impugnado; ou em caso de omissão, na hipó-
tese de terem dado oportunidade à lesão (art. 6º, caput, Lei n. 4.717/1965).

465
REFERÊNCIAS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.
ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993.
GAZETAONLINE, [s. l.] edição de 27 ago. 2014. Acesso em: 9 mar. 2015.
MARTÍNEZ, Miguel Ángel Alegre. El derecho a la propia imagen. Madrid: Ed. Tecnos, 1997.
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de direito constitucional. 9. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2018.
WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: L&PM Pocket, 2001.
WILDE, Oscar. A esfinge e seus segredos. São Paulo: Record, 2000.

466
O DIREITO DE ACESSO À INFORMAÇÃO COM O ADVENTO
DAS NOVAS TECNOLOGIAS E SUA VIOLAÇÃO NO
COMBATE À PANDEMIA DE COVID-19
Maria da Glória Teles Farias1
Camila Cardoso Takano2
Lucas Gonçalves da Silva3

Sumário: 1 Introdução. 2 A constitucionalização de direitos e o acesso à informação.


3 O acesso à informação conectado à rede. 4 O acesso à informação na pandemia de
Covid-19. 5 A inclusão digital como viabilizadora do acesso à informação. 6 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
A constitucionalização dos direitos fortaleceu a concretização dos direitos fun-
damentais e permitiu o reconhecimento dos indivíduos como sujeitos de direitos
frente aos Estados, com poder para se opor a abusos e buscar a satisfação de suas
necessidades. Aliado a isso, as inovações tecnológicas, em especial a internet e o
poder computacional, têm-se mostrado como os grandes propulsores das conquis-
tas do cidadão contemporâneo.
Diferente dos estados autoritários, que exercem o sigilo da informação do
Estado, na democracia o acesso à informação é direito garantido. Nesta senda,
o acesso à informação é direito humano disposto na Convenção Americana dos
Direitos Humanos,4 como obrigação positiva a cargo do Estado de disponibilizar
aos cidadãos a informação pública. É considerado instrumento fundamental para
o cidadão o controle da atividade estatal, garantindo a transparência e de uma boa
gestão pública.

1 Advogada. Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Sergipe. Especialista


em Direito do Estado pela Faculdade Guanambi. Graduada em Direito pela UNIT.
2 Servidora Pública Federal. Mestranda em Direito Constitucional pela UFS. Pós-graduada em
Direito do Trabalho pela Universidade Candido Mendes. Graduada em Direito pela UFOP.
3 Professor da Graduação e do Programa de Mestrado da UFS. Vice-Presidente do CONPEDI. Pós-
-doutor pela UFBA e pela Università Degli Studi G. d’Annunzio. Doutor e Mestre pela PUC/SP.
4 Em 1969, foi aprovada a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que entrou em vigor
em 1978 e foi ratificada, até janeiro de 2012, por 24 países: Argentina, Barbados, Brasil, Bolívia,
Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, República Dominicana, Equador, El Salvador, Granada,
Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Suriname,
Uruguai e Venezuela. A convenção define os direitos humanos que os Estados ratificantes se
comprometem internacionalmente a respeitar e a dar garantias para que sejam respeitados. Ela
cria, também, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e define atribuições e procedimentos
tanto da Corte como da CIDH.

467
A sociedade da informação mudou completamente as relações sociais ao facili-
tar o acesso à informação e permitir a minimização das diferenças entre os diversos
nichos sociais. A internet propicia uma mobilização perante a sociedade nunca vista
antes, tendo-se tornado uma ferramenta essencial para auxiliar a democratização
do acesso à informação.
Em face disso, busca-se realizar uma análise do poder do direito de acesso à
informação a partir da Constituição Federal de 1988 (CF/1988) e das novas tec-
nologias, com a edição da Lei n. 12.527/2011, que tornou obrigatória a disposição
das informações pelos órgãos públicos na rede mundial de computadores. Nesse
contexto, será abordada a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 690, que discutiu a violação pelo
Ministério da Saúde do acesso à informação sobre a evolução da Covid-19 no Brasil.
Em seguida, será discutido como esse direito necessita de atuação estatal direcio-
nada para o investimento na inclusão digital, pelo fato de boa parte da população
ainda não ter acesso à internet.
Foi realizada pesquisa bibliográfica com base em obras e artigos a respeito do
constitucionalismo brasileiro, da sociedade em rede e da atuação estatal com o
advento das novas tecnologias, bem como pesquisa documental com fundamento
na Lei de Acesso à Informação, na decisão do STF na ADPF n. 690/2020 e na pes-
quisa TIC Domicílios, realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil.
Será utilizado o método o dedutivo, tendo em vista que se partirá de uma pre-
missa maior, que é a análise da constitucionalização do acesso à informação e sua
regulamentação com o advento das novas tecnologias, para a menor, que é o estudo
de como esses marcos influenciaram na concretização do direito de acesso à infor-
mação e como, mesmo assim, ainda sofre violações.

2 ∙ A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DE DIREITOS
E O ACESSO À INFORMAÇÃO
A CF/1988 foi um marco no processo de redemocratização e na construção do
novo Direito Constitucional brasileiro. Anteriormente, o Estado brasileiro havia
vivenciado o período ditatorial, marcado por diversas limitações a direitos.
O Direito Constitucional renasceu e a nova Constituição foi capaz de promo-
ver a travessia do Estado brasileiro de um regime autoritário e intolerante para um
Estado democrático de direito, propiciando o mais longo período de estabilidade
institucional da história da república do Brasil (BARROSO, 2005, p. 3).
Barroso dispõe, ainda, que:
Além das complexidades inerentes à concretização de qualquer ordem jurídica,
padecia o país de patologias crônicas, ligadas ao autoritarismo e à insinceridade
constitucional (v. infra). Não é surpresa, portanto, que as Constituições tivessem
sido, até então, repositórios de promessas vagas e de exortações ao legislador infra-
constitucional, sem aplicabilidade direta e imediata. Coube à Constituição de 1988,
bem como à doutrina e à jurisprudência que se produziram a partir de sua promul-
gação, o mérito elevado de romper com a posição mais retrógrada. (2005, p. 6).
O Estado Moderno é marcado pela limitação do poder estatal e pela declaração de
direitos fundamentais. Tais direitos referem-se a um conjunto de dispositivos contidos

468
na CF/1988, destinados a estabelecer garantias e deveres aos cidadãos, normatizando as
noções básicas e centrais que regulamentam a vida social, política e jurídica dos cida-
dãos que vivem no País. Dessa forma, “toda discrição, pública ou privada, haverá de
estar juridicamente vinculada, formal e materialmente, aos direitos fundamentais, ao
menos em sistemas jurídicos democráticos, abertos e unitários” (SARLET, 2012, p. 9).
Os direitos fundamentais decorrem de batalhas de toda a sociedade, em busca
de proteger e impor o respeito e a preservação dos direitos mais básicos.
[...] os direitos fundamentais podem ser considerados simultaneamente pressu-
posto, garantia e instrumento do princípio democrático da autodeterminação do
povo por intermédio de cada indivíduo, mediante o reconhecimento do direito
de igualdade (perante a lei e de oportunidades), de um espaço de liberdade real,
bem como por meio da outorga do direito à participação (com liberdade e igual-
dade), na conformação da comunidade e do processo político, de tal sorte que a
positivação e a garantia do efetivo exercício de direitos políticos (no sentido de
direitos de participação e conformação do status político) podem ser considera-
dos o fundamento funcional da ordem democrática e, neste sentido, parâmetro
de sua legitimidade. (SARLET, 2012, p. 9).
Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988 trouxe, em seu art. 5º, inciso
XXXIII, a proteção ao direito de acesso à informação:
Art. 5º [...] XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações
de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas
no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja
imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
Esse direito foi corroborado posteriormente pelo art. 37, § 3º, inciso II, incluído
pela EC n. 19/1998:
Art. 37 [...] § 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na admi-
nistração pública direta e indireta, regulando especialmente: [...]
II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos
de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII.
O reconhecimento do acesso à informação como um direito humano fundamen-
tal gerou consequências benéficas na evolução da responsabilidade governamental
e no trato com a coisa pública. A partir do momento em que cada cidadão tem
capacidade de acessar, encontrar e entender os dados e os documentos produzidos
pela Administração Pública, o espaço para desmandos e ilicitudes são reduzidos. Os
agentes públicos se veem vigiados em todos os seus atos, proporcionando à socie-
dade uma maior segurança quanto às suas atitudes.
A previsão constitucional brasileira tem base internacional na Convenção Americana
de Direitos Humanos, que reconhece o acesso à informação em seu artigo 135 como
direito humano universal ao dispor sobre o direito de buscar e receber informações.
Não é necessário justificar um interesse direto ou afirmar um prejuízo pessoal
para obter a informação em poder do Estado, exceto nos casos em que se aplique uma
legítima restrição. Por outro lado, quem acessa a informação sob o controle do Estado,

5 “Art. 13, 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito
compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem
consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por
qualquer outro processo de sua escolha.”

469
tem o direito de divulgar essa informação para que ela circule na sociedade, de modo
que esta possa conhecê-la, acessá-la e avaliá-la. O direito de acesso à informação par-
tilha, assim, das dimensões individual e social do direito à liberdade de expressão, que
devem ser simultaneamente garantidas pelo Estado (MARINO, 2011, p. 7).
A obrigação dos Estados de prover as informações solicitadas implica em deve-
res especiais de proteção e garantia. A adequada satisfação do direito de acesso à
informação supõe a necessidade de incorporar ao ordenamento jurídico um recurso
efetivo e idôneo que possa ser usado por todas as pessoas para solicitar a informação
requerida (MARINO, 2011, p. 9).
Em relação à obrigação de criar um mecanismo especial para tornar exigível o
direito de acesso, o Estado
deve garantir a efetividade de um procedimento administrativo adequado para
a tramitação e a resolução das solicitações de informação, que estabeleça prazos
para resolver e entregar a informação, e que esteja sob a responsabilidade de
funcionários devidamente capacitados. (MARINO, 2011, p. 9).
O acesso à informação é um direito que necessita de ampla atividade estatal
voltada para a adoção de medidas que impulsionem a participação da sociedade
na gestão pública.

3 ∙ O ACESSO À INFORMAÇÃO CONECTADO À REDE


No final do século XX, iniciou-se a fase da revolução tecnológica, na qual as
relações sociais começaram a sofrer mudanças, o que acarretou novos desafios
para o constitucionalismo, como resguardar os direitos fundamentais diante dos
novos riscos, potencializar o exercício dos direitos fundamentais e assegurar a
garantia de novos direitos, limitando, assim, o exercício do poder (DANTAS;
CONI JUNIOR, 2017, p. 8).
O sociólogo espanhol Manuel Castells (2005, p. 220) estuda os efeitos e os refle-
xos da chamada “sociedade em rede”, conceituando-a como
uma estrutura social baseada em redes operadas por tecnologias de comuni-
cação e informação fundamentadas na microelectrónica e em redes digitais
de computadores que geram, processam e distribuem informação a partir de
conhecimento acumulado nos nós dessas redes.
Na mesma linha, o filósofo Pierre Lévy (1999, p. 19) entende que as telecomunica-
ções são de fato responsáveis por estender de uma ponta à outra do mundo as possi-
bilidades de contato amigável, de transações contratuais, de transmissões de saber, de
trocas de conhecimentos, de descoberta pacífica das diferenças. O fino enredamento
dos humanos de todos os horizontes em um único e imenso tecido aberto e interativo
gera uma situação absolutamente inédita e portadora de esperança, já que é uma res-
posta positiva ao crescimento demográfico, embora também crie novos problemas.
Com essa evolução tecnológica, surgem novas ferramentas que permitem a
transmissão de informações de uma forma muito acelerada, as quais podem impul-
sionar o andamento da administração pública, melhorar a qualidade dos serviços
prestados e aproximar o cidadão da gestão do dinheiro público. Assim, a internet é
conduzida a um papel social muito importante na democratização de direitos, como
um meio atual essencial para o fortalecimento do acesso à informação pelos indi-
víduos na sociedade, permitindo incentivar movimentos e divulgar informações.
470
Para concretizar os mandamentos constitucionais, de acordo com as novas tecno-
logias, o Brasil regulamentou o direito de acesso à informação pela Lei n. 12.527/2011,6
inspirada pela lei modelo de acesso à informação da Organização dos Estados das
Américas.7 Essa nova lei trouxe outra perspectiva interna para o acesso à informação
pública, ainda mais por ter uma base estruturante no direito internacional.
Em linhas gerais, a Lei n. 12.527/2011 estabelece que toda informação que for
produzida ou custodiada por órgãos e entidades públicas é passível de ser ofertada
ao cidadão, a menos que esteja sujeita a restrições de acesso legalmente estabelecidas,
quais sejam: informações classificadas nos graus de sigilo reservado, secreto ou ultras-
secreto, nos termos da própria Lei de Acesso à Informação; informações pessoais, afe-
tas à intimidade e à vida privada das pessoais naturais; ou informações protegidas por
outras legislações vigentes no País, como é o caso do sigilo fiscal e do sigilo bancário.8
A partir dessa regulamentação, os órgãos públicos foram obrigados a fornecer
suas informações em portais na rede mundial de computadores. O cidadão não pre-
cisa mais se deslocar fisicamente para solicitar informações e documentos públicos,
podendo fazê-lo pelos sites governamentais através da internet.
A Lei nº 12.527/2011, que busca difundir a Informação Pública, é um espectro
importante, pois significa um avanço em matéria de transparência, porém sus-
cita algumas questões para reflexão. Impõe o dever dos entes da administração
de publicizarem dados que, se forem colocados efetivamente em rede e tiverem
uma correta utilização, podem contribuir ao debate democrático e ao controle
social. (LIMBERGER, 2016a, p. 48).
No intuito de consolidar a garantia de acesso, a Lei de Acesso à Informação não
somente previu sanções disciplinares9 a servidores que lhe ofendam as disposições,

6 Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art.
37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990;
revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991;
e dá outras providências.
7 Essa lei estabelece a mais ampla aplicação possível do direito de acesso à informação que esteja
em posse, custódia ou controle de qualquer autoridade pública. A lei se baseia no princípio de
máxima publicidade, de tal maneira que qualquer informação em mãos de instituições públicas
seja completa, oportuna e acessível, sujeita a um claro e preciso regime de exceções, que deverão
estar definidas por lei e ser legítimas e estritamente necessárias em uma sociedade democrática.
8 “Art. 1º Esta Lei dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito
Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do
art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal.
Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei:
I - os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo
as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público;
II - as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais
entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.”
9 “Art. 33. A pessoa física ou entidade privada que detiver informações em virtude de vínculo de
qualquer natureza com o poder público e deixar de observar o disposto nesta Lei estará sujeita às
seguintes sanções:
I - advertência;
II - multa;
III - rescisão do vínculo com o poder público;

471
como também isentou qualquer servidor de responsabilidade civil, penal ou admi-
nistrativa pela iniciativa de cientificar as autoridades superiores a respeito de fato
que tenha implicado a prática de crimes ou atos de improbidade, de que tenha
conhecimento, mesmo que este decorra do exercício de cargo, emprego ou função.
O direito de acesso à informação gera obrigações para todas as autoridades
públicas de todos os ramos do poder e dos órgãos autônomos, de todos os níveis
de governo. Esse direito também vincula aqueles que cumprem funções públicas,
prestam serviços públicos ou executam recursos públicos em nome do Estado. Esse
direito envolve a informação sob custódia, gestão ou posse do Estado; a informa-
ção que o Estado produz ou está obrigado a produzir; a informação sob o poder
daqueles que administram os serviços e os fundos públicos, unicamente relativa a
esses serviços ou fundos; e a informação que o Estado capta, e a que está obrigado a
compilar no cumprimento de suas funções.
No que diz respeito à comunicação existente na rede mundial de computado-
res, não é qualquer comunicação que significa informação; deve ser considerada
tão somente aquela que contribui para a formação cultural da cidadania. Assim, a
informação pública em rede, acessada e compreendida de maneira adequada, serve
de instrumento dos valores democráticos (LIMBERGER, 2016a, p. 35).
Limberger (2016a, p. 37) afirma:
A informação disponibilizada em rede, quando realmente tenha o caráter
formador, servirá para implementar a pauta dos direitos humanos, de modo a
difundi-los em escala global e a consolidar a prática democrática no corpo do
Estado, a partir da vivência cidadã.
O acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos
de governo deve ser viabilizado, desde que respeitados o direito à intimidade e à
vida privada e as situações legais de sigilo (LIMBERGER, 2016a, p. 26). Como bem
pontua Stefano Rodotà (2008, p. 60 e 70), a tutela da privacidade e o amplo acesso
às informações são finalidades incompatíveis entre si, visto que a primeira implica
a restrição dessa possibilidade de fazer circular certas categorias de informações. O
problema, posteriormente, tornou-se concreto, tanto que hoje a questão das relações
entre leis sobre a proteção de dados e leis sobre a liberdade de informação é segura-
mente uma das mais delicadas e urgentes.
A efetividade do direito de acesso decorre da disponibilidade de um número mais
amplo de informações sobre a atividade de quem coleta dados; mas, sobretudo, o
direito de acesso confirma sua tendência de ser um instrumento que torna a atividade
de organismos públicos e privados a mais transparente possível, efetivando institucio-
nalmente as condições para um controle social difuso (RODOTÀ, 2008, p. 72).
O exercício da transparência de informações públicas possui relação com a con-
cretização de direitos sociais, visto que, a partir daí, é possível fiscalizar os atos pra-
ticados pelo Estado. Quanto mais a informação é disponibilizada, maior cuidado
haverá com o trato do dinheiro público (LIMBERGER, 2016a, p. 45). Assim, essa

IV - suspensão temporária de participar em licitação e impedimento de contratar com a


administração pública por prazo não superior a 2 (dois) anos; e
V - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a administração pública, até que seja
promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade.”

472
lei representou um passo importante na consolidação da democracia brasileira ao
viabilizar a participação popular e o controle social nos atos governamentais, o que
tem por consequência a melhora da gestão pública.

4 ∙ O ACESSO À INFORMAÇÃO NA PANDEMIA DE COVID-19


Como já citado anteriormente, o direito de acesso à informação é grande aliado
do exercício da cidadania, sendo, por isso, considerado um direito humano reco-
nhecido em âmbito internacional e consagrado na Constituição de 1988. É devido
a esse direito aliado à conexão em rede que a sociedade hoje pode lidar melhor com
situações globais, como a pandemia do Coronavírus. Por meio das informações
prestadas pelo governo, os indivíduos têm acesso quase instantâneo aos cuidados
que devem ser tomados, aos atos do governo voltados para o controle da crise e à fis-
calização do gasto público. A pandemia do Coronavírus trouxe novas perspectivas
dos direitos fundamentais, envolvendo também o direito de acesso à informação a
respeito de como, quando e quais informações os cidadãos teriam o direito saber.
No mês de junho 2020, enquanto o Brasil vivenciava a alta de contaminados
por Covid-19, o Ministério da Saúde tomou a decisão de retirar de seu site10 algu-
mas informações a respeito dos infectados. O site ficou fora do ar por um tempo e,
quando retornou, não havia divulgação a respeito do número de mortes acumu-
ladas e de casos registrados, além de se constatar um adiamento na liberação dos
resultados diários para as 22h, anteriormente atualizados às 19h.
Contrários a esse ato, os partidos políticos Rede Sustentabilidade, Partido
Socialismo e Liberdade (PSOL) e Partido Comunista do Brasil (PCdoB) interpuse-
ram perante o STF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental,11 dis-
pondo contra a sequência de atos do Poder Executivo Federal, através do Ministério
da Saúde, de restringir a publicidade dos dados relacionados à Covid-19, o que
configuraria violação a preceitos fundamentais da Constituição Federal. Tais atos
consistiam em alteração do balanço diário da Covid-19 pelo Ministério da Saúde,
retirada do site de divulgação dos dados por mais de 24h e omissão de dados sobre
a evolução da Covid-19 no Brasil.
O processo foi distribuído para o Ministro Alexandre de Moraes, o qual deter-
minou, em caráter liminar, o restabelecimento da forma de divulgação anterior,
reconhecendo a violação a preceitos da Constituição Federal, como o direito de
acesso à informação.12 Na íntegra da decisão, o Ministro apresentou como fun-

10 Site do Ministério da Saúde que fornece informações sobre a Covid-19: https://covid.saude.gov.br.


11 Lei n. 9.882/1999: “Art. 1º A arguição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será
proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito
fundamental, resultante de ato do Poder Público”.
12 Dispositivo da decisão: “Diante do exposto, CONCEDO PARCIALMENTE A MEDIDA CAUTELAR
na presente arguição de descumprimento de preceito fundamental, ad referendum do Plenário
desta SUPREMA CORTE, com base no art. 21, V, do RISTF, para DETERMINAR AO MINISTRO
DA SAÚDE QUE MANTENHA, EM SUA INTEGRALIDADE, A DIVULGAÇÃO DIÁRIA DOS
DADOS EPIDEMIOLÓGICOS RELATIVOS À PANDEMIA (COVID-19), INCLUSIVE NO SÍTIO
DO MINISTÉRIO DA SAÚDE E COM OS NÚMEROS ACUMULADOS DE OCORRÊNCIAS,
EXATAMENTE CONFORME REALIZADO ATÉ O ÚLTIMO DIA 04 DE JUNHO”.

473
damento a obrigatoriedade do Estado em fornecer as informações necessárias à
sociedade, obrigação esta consagrada na Constituição como a garantia instru-
mental ao pleno exercício do princípio democrático, que permite a necessária
fiscalização dos órgãos governamentais, efetivamente possível com a garantia de
publicidade e transparência (BRASIL, 2020, p. 6).
A decisão destacou ainda que, “salvo situações excepcionais, a Administração
Pública tem o dever de absoluta transparência na condução dos negócios públicos,
sob pena de desrespeito aos artigos 37, caput13 e 5º, incisos XXXIII e LXXII”, dis-
pondo, por fim, que a modificação dos dados apresentados pelo Ministério da Saúde
não caracteriza qualquer excepcionalidade às necessárias publicidade e transparên-
cia, uma vez que esses dados são importantes para a organização de “análises e
projeções comparativas necessárias para auxiliar as autoridades públicas na tomada
de decisões e permitir à população em geral o pleno conhecimento da situação de
pandemia vivenciada no território nacional” (BRASIL, 2020, p. 6-7).
“A realização do princípio da publicidade constitui-se em um dever da
administração e se complementa com o direito à informação do cidadão. Desta
conjugação, tem-se a satisfação dos demais princípios que regem a administra-
ção pública” (LIMBERGER, 2016a, p. 44). Assim, ficou entendido que, em um
ambiente pandêmico, a disponibilização de informações a respeito da quanti-
dade de pessoas infectadas é de extrema importância, de tal forma que foi con-
cedida decisão liminar com fundamento no grave risco de interrupção abrupta
da coleta e divulgação de dados epidemiológicos, imprescindíveis para as ações
de combate à doença.
Essa situação expõe como o direito de acessar uma informação pública vai muito
além do fornecimento de informações a respeito de gastos públicos ou controle da
gestão da administração pública por portais da transparência, ideia esta que a maior
parte das pessoas têm a respeito desse direito. Por isso, a formação cultural de base
se mostra essencial para que o cidadão tenha conhecimento das ferramentas que
possui para exercer seus direitos e evitar desmandos e ilicitudes.

5 ∙ A INCLUSÃO DIGITAL COMO VIABILIZADORA


DO ACESSO À INFORMAÇÃO
Com a elevação da internet ao patamar de importante ferramenta para a
democratização de direitos, surge a necessidade de trabalhar a ideia de inclusão
digital. Esse direito envolve o acesso à internet e se apresenta como fundamental
na sociedade da informação, pois se tornou requisito necessário para o exercício
pleno da cidadania.
O acesso à internet consiste numa garantia do indivíduo referente à sua esfera
particular, na medida em que viabiliza a identificação dos dados pessoais que sobre
ele circulam, como também representa uma garantia em relação ao Estado, ao per-
mitir o controle de sua atuação por meio da realização daquilo que é postulado pelo
princípio da publicidade e do direito de acesso à informação.

13 “Art. 37, caput: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte [...].” (BRASIL, 2020, p. 7-8).

474
A virtualidade modifica o conceito de cidade física, mas continua necessitando
do caráter de educação [...] para que este contato em rede sirva à civilização. O
desafio consiste, assim, em que o espaço virtual não seja uma mera reprodução
das mazelas existentes na vida real, mas seja possível uma qualificação do debate,
e não apenas uma manipulação da opinião pública. (LIMBERGER, 2016a, p. 87).
A pesquisa TIC Domicílios 2019,14 divulgada pelo Comitê Gestor da Internet no
Brasil, em maio de 2020, revela que apenas 74% da população brasileira possui acesso
à internet. Ao se fazer uma separação por classes, identifica-se que pouco mais de 50%
da área rural e das classes “D” e “E” acessam a internet. Fazendo um comparativo com
os dados de 2018, em que cerca de 70% dos brasileiros haviam utilizado a internet e
apenas 48% das pessoas da área rural e das classes “D” e “E” tinham tido acesso, pode-
-se verificar um crescimento tímido. Apesar de, numericamente, aparentar um bom
cenário, já que mais da metade dos brasileiros já acessam a internet, socialmente esse
número é muito alarmante, devido ao cenário de intensa dependência tecnológica em
que a sociedade está inserida. Esse crescimento não condiz com a necessidade de uso
da internet que se tem atualmente para a vida social, visto que o Poder Público tem
cada vez mais se utilizado de meios tecnológicos para alcançar o cidadão.
Não há democracia quando se pretende que a cidadania seja exercida efetivamente
apenas por uma parcela da população, pois ainda que a população seja formada em
sua predominância por pessoas de pouca escolaridade, a ignorância do povo não
pode servir como pretexto para impedi-lo de participar do processo democrático e
de exercer a sua cidadania de forma plena, sendo abominável qualquer pretensão no
sentido de limitar essa participação. A ideia de democracia não se resume ao princípio
majoritário, ao governo da maioria. Há outros princípios a serem preservados e há
direitos da minoria a serem respeitados (BARROSO, 2005, p. 41).
A democracia na sociedade da informação somente se justifica se forem garan-
tidos os direitos sociais fundamentais estabelecidos constitucionalmente, tais como
a inclusão digital, para que seja possível construir uma sociedade da informação
livre, justa e igualitária, conforme dispõe um dos nobres objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil. Para isso, o governo eletrônico deve ser direcionado
ao cidadão e ao bem comum de toda a coletividade, assegurando os direitos básicos
para que essa democracia eletrônica seja possível.
Atualmente, um dos grandes objetivos da democracia é possibilitar uma rede
de comunicação direta entre Administração e administrados, que propicie apro-
fundamento democrático e maior transparência e eficiência da atividade pública.
O cidadão que exerce os direitos fundamentais em rede não age mais de maneira
passiva, mas se torna peça chave para a construção do processo democrático
(LIMBERGER, 2016b, p. 35).
Para a formação cultural de uma sociedade com o intuito de compreender os
conteúdos disponibilizados na internet, necessário que haja um direcionamento
dos recursos públicos. Quanto maior o investimento, maior o nível de formação
cultural dos indivíduos, o que torna a população capaz de fiscalizar os atos do
Estado, por meio de ferramentas disponibilizadas, fortalecendo o exercício cidadão.

14 Estudo nacional que analisou indivíduos acima de 10 anos em 23.490 domicílios. A análise foi feita
de outubro de 2019 a março de 2020. O objetivo foi estudar o acesso às tecnologias de informação
e comunicação (TIC), uso da internet, governo eletrônico e atividades culturais na internet.

475
As novas tecnologias têm um papel fundamental [...], pois permitem uma divul-
gação da informação pública de forma potencializada, na medida em que atin-
gem um grande número de cidadãos. [...] Para isso é necessária uma cidadania
educada, que se interesse pelos assuntos públicos e que acesse e compreenda a
informação que é posta à sua disposição. (LIMBERGER, 2016a, p. 86).
O indivíduo que precisa buscar uma informação pública na rede, além de ter
que lidar com a problemática de conseguir acesso à tecnologia, deve superar a
dificuldade de encontrar essa informação, já que nem sempre ela é prestada com
a devida transparência.
[...] a introdução da tecnologia só por si não assegura nem a produtividade, nem
a inovação, nem melhor desenvolvimento humano. [...] agir no desenvolvimento
potencial específico da sociedade em rede necessita da combinação de iniciativas
em sectores como a tecnologia, os negócios, a educação, a cultura, a reestruturação
espacial, o desenvolvimento de infra-estruturas, a mudança organizacional e a
reforma institucional. É na sinergia entre estes processos que as acções têm capaci-
dade de mudar os mecanismos da sociedade em rede. (CASTELLS, 2005, p. 26-27).
A informação pública transmitida em rede facilita o acesso pelos cidadãos e
permite um controle mais eficaz da Administração Pública. Para a consolidação
desse direito, necessário que se invista em políticas públicas focadas na inserção
de todos os indivíduos no ambiente digital, visto que de nada adianta investir no
aparelhamento estatal para disponibilizar informações e serviços se o cidadão não
tem capacidade de ter acesso ao instrumento.

6 ∙ CONCLUSÃO
A internet trouxe novas formas de comunicação e interação, descentralizando
o acesso à informação e fortalecendo a ideia de espaço democrático, com liberdade
para manifestação de pensamentos, ideias e opiniões, como também para o recebi-
mento dessas informações. A partir do surgimento das novas tecnologias, o direito
de acesso à informação passa a ser exercido com mais efetividade do que original-
mente previsto na Constituição de 1988.
A sociedade vive tempos de indignação que necessitam de novas formas de mani-
festação, típicas da sociedade da informação. O direito de acesso à informação faz
parte do rol de direitos necessários para assegurar a todos uma existência digna, livre e
igual. Logo, não basta ao Estado reconhecê-lo formalmente, mas buscar concretizá-lo.
A obrigatoriedade de disponibilizar as informações públicas na rede mundial de
computadores foi um marco para o Estado democrático de direito. Com isso, é preciso
manter constante fiscalização do que deve ser divulgado e combater o subjetivismo do
poder ao tentar escolher como e quando as informações devem ser prestadas.
A situação retratada, a respeito das informações da pandemia de Covid-19, foi
(é) um desafio da mais elevada gravidade para a sociedade brasileira e as autorida-
des públicas e exemplifica a importância de não poder negligenciar o direito funda-
mental do acesso às informações.
Conclui-se que há diversos desafios para a construção do governo e da democra-
cia em âmbito digital no País; entre eles, um dos mais significativos é a necessidade
de assegurar a participação dos excluídos nesse processo, pois é justamente essa
participação que confere legitimidade ao governo, fazendo com que este seja um

476
Estado Democrático de Direito. Desse modo, a formação cultural da sociedade, vol-
tada à inclusão digital para viabilizar o acesso à informação, torna a sociedade mais
atuante e conduz ao restabelecimento do equilíbrio social.

REFERÊNCIAS
BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O
triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, Rio
de Janeiro, v. 240, 2005. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/
article/view/43618. Acesso em: 10 jun. 2020.
BRANCO, Marcelo. Software livre e desenvolvimento social e económico. In: CASTELLS,
Manuel; CARDOSO, Gustavo (org.). A sociedade em rede: do conhecimento à acção
política. Lisboa: Centro Cultural de Belém, 2005.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental 690 Distrito Federal. Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal,
[2020]. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADP
F690cautelar.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: do conhecimento à política. In: CASTELLS,
Manuel; CARDOSO, Gustavo (orgs.). A sociedade em rede: do conhecimento à acção
política. Lisboa: Centro Cultural de Belém, 2005.
CENTRO REGIONAL DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE
DA INFORMAÇÃO (CETIC.BR). Principais resultados TIC Domicílios 2018. São Paulo:
Cetic.br, ago. 2018. Disponível em: https://cetic.br/media/analises/tic_domicilios_2018_cole
tiva_de_imprensa.pdf. Acesso em: 9 jun. 2020.
CENTRO REGIONAL DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE
DA INFORMAÇÃO (CETIC.BR). TIC Domicílios 2019. São Paulo: Cetic.br, maio 2020.
Disponível em: https://cetic.br/media/analises/tic_domicilios_2019_coletiva_imprensa.
pdf. Acesso em: 9 jun. 2020.
CHAVES, Márcio Mello. Privacidade e segurança na era da internet das coisas. In:
PINHEIRO, Patrícia Peck G. (org.). Direito digital 3.0 aplicado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2018.
CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Lei Modelo Interamericana
Sobre o Acesso à Informação Pública. Aprovada em 8 de junho de 2010. Disponível em:
https://www.right2info.org/resources/publications/instruments-and-standards/ameri
cas_model-int-am-law-on-ati_portuguese. Acesso em: 10 jun. 2020.
DANTAS, Miguel Calmon; CONI JUNIOR, Vicente. Constitucionalismo digital e a
liberdade de reunião virtual: protesto e emancipação na sociedade da informação. Revista
de Direito, Governança e Novas Tecnologias, Brasília, v. 3, n, 1, p. 44-65, jan./jun. 2017.
Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/revistadgnt/article/view/2168.
Acesso em: 14 out. 2020.
FOUNTAIN, Jane. Questões centrais no desenvolvimento político do estado virtual. In:
CASTELLS, Manuel; CARDOSO, Gustavo (org.). A sociedade em rede: do conhecimento
à acção política. Lisboa: Centro Cultural de Belém, 2005.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999.
LIMBERGER, Têmis. Cibertransparência: informação pública em rede. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2016a.

477
LIMBERGER, Têmis. Novas tecnologias e direitos humanos: uma ref lexão à luz da
concepção de esfera pública. In: BUNCHAFT, Maria Eugenia; LIMBERGER, Têmis.
Novas tecnologias, esfera pública e minorias vulneráveis. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2016b.
MARINO, Catalina Botero. O direito de acesso à informação no marco jurídico interame­
ricano. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Comissão Interamericana de
Direitos Humanos. 2. ed. Montevidéu: OEA, 2011. Disponível em: https://www.oas.org/pt/
cidh/expressao/docs/publicaciones/20140519%20-%20PORT%20Unesco%20-%20El%20
Derecho%20de%20Acceso%20a%20la%20Informacion%202a%20Edicion%20adjusted.
pdf. Acesso em: 2 jun. 2020.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos
Humanos. 1969. San José: Costa Rica, 2020. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/
basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em 20 jun. 2020.
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Organização,
seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012.
SILVA, Lucas Gonçalves da; NASCIMENTO, L. L. P. A constitucionalização do direito
como paradigma para a ciência jurídica: o necessário cuidado para com algumas arma­
dilhas do neoconstitucionalismo brasileiro. In: COUTINHO, Júlia Maia de Meneses;
PASSOS, Daniela Veloso Souza (org.). Temas do pensamento constitucional brasileiro.
Belo Horizonte: Arraes Ed., 2015. v. IV. p. 125-139.

478
O DEVER FUNDAMENTAL
DE BOA GESTÃO PROCESSUAL NO MPF
Maria Viveiros Peixoto Volkmer Fell1

Sumário: 1 O dever fundamental de boa administração pública e o contexto de crise.


2 A gestão de processos (inclusive judiciais) nos órgãos de administração da justiça. O
planejamento estratégico do MPF. 3 Proposta de rol de decisões de gestão processual.
4 Ministério Público como Administração Pública. Decisões da gestão processual como
atos administrativos. 5 Conclusões.

1 ∙ O DEVER FUNDAMENTAL DE BOA ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA E O CONTEXTO DE CRISE
Direitos fundamentais são direitos humanos – aqueles cujo exercício é impres-
cindível para o alcance da dignidade humana – incorporados ao ordenamento jurí-
dico doméstico (BARROSO, 2020, p. 491 e 493).
As doutrinas brasileira (FREITAS, 2014; OLIVEIRA, 2008) e estrangeira
(MUÑOZ, 2012) reconhecem o direito fundamental à boa administração pública.
Esse direito consta expresso no artigo 41 da Carta de Direitos Fundamentais da
União Europeia (Tratado de Nice, de 2001)2 e “[h]oje é frequente que as novas cons-
tituições incorporem como novo direito fundamental o direito ao bom governo ou
o direito à boa administração” (MUÑOZ, 2012, p. 14).
Consoante Jaime Rodríguez-Arana Muñoz (2012, p. 17 e 27),
[o] bom governo e a boa administração têm muito que ver com a adequada
preparação das pessoas que em cada caso exercem influência. Devem ter men-
talidade aberta, metodologia do entendimento e sensibilidade social. Devem tra-
balhar sobre a realidade, utilizar a razão e levar em consideração os problemas
coletivos a partir de perspectivas de equilíbrio para serem capazes de entender
tais problemas e considerar a pluralidade de enfoques e dimensões existentes.

1 Servidora do Ministério Público Federal. Pós-graduada em Direito Público pela PUC-Minas.


Graduada em Direito pela Uerj.
2 “Artigo 41. o Direito a uma boa administração. 1. Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos
sejam tratados pelas instituições e órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo
razoável. 2. Este direito compreende, nomeadamente: – o direito de qualquer pessoa a ser ouvida
antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afecte desfavoravelmente, – o
direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito dos legítimos
interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial, – a obrigação, por parte
da administração, de fundamentar as suas decisões. 3. Todas as pessoas têm direito à reparação,
por parte da Comunidade, dos danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no
exercício das respectivas funções, de acordo com os princípios gerais comuns às legislações dos
Estados-Membros. [...]”

479
Para que seja boa e democrática, a Administração Pública “há de responder a uma
rica gama de critérios que poderíamos qualificar de internos, porque visam à sua pró-
pria articulação interior, aos processos de tramitação, à sua transparência, à claridade e
simplificação de suas estruturas, à objetividade de sua atuação etc.”, fazendo prevalecer “a
finalidade do serviço ao cidadão” (MUÑOZ, 2012, p. 27).
Outrossim, “[o] Estado Constitucional pode ser traduzido como o Estado das esco-
lhas administrativas legítimas e sustentáveis” (FREITAS, 2014, p. 13). Nesse sentido, o
direito fundamental à boa administração impõe a “obrigação de justificar, na tomada das
decisões administrativas, a eleição dos pressupostos conducentes à preponderância dos
benefícios (sociais, econômicos e ambientais) sobre os custos envolvidos” (FREITAS,
2014, p. 13). Essas decisões, a serem suficientemente motivadas, devem ser consistentes
intertemporalmente e coerentes valorativamente. A discricionariedade correlacionada
deve estar atada às prioridades constitucionais: “a escolha produtiva tem de se mostrar
fortemente alinhada com métricas e programas do Estado Constitucional” (FREITAS,
2014, p. 13 e 15). O direito fundamental à boa administração é atendido quando se faz
“legítima e sustentável a liberdade do agente público” (FREITAS, 2014, p. 16).
Conforme Freitas (2014, p. 15, 23 e 48), boa administração é a “transparente,
sustentável, dialógica, imparcial, proba, respeitadora da legalidade temperada,
preventiva, precavida, eficaz e avaliada segundo indicadores qualitativos”. Eficaz
é a administração que “escolha fazer o que constitucionalmente deve fazer”, em
analogia ao conceito de Peter Drucker, ou que faça “aquilo que deve ser feito”.
Já a eficiência tem acepções diversas, e uma delas é a de compromisso com resultados:
[N]a teoria do direito administrativo em nosso país, a visão do agir estatal em fun-
ção dos resultados tem encontrado recente expressão ao redor de três grandes ideias:
eficiência, política pública e controle de resultados. Dessas três grandes ideias, nas
suas interseções com o Direito, derivam múltiplas linhas de investigação. Elas têm em
comum esta preocupação central com uma administração pública que proporcione
resultados concretos à sociedade. (SOUZA, 2017, p. 44).
Juarez Freitas (2014, p. 48) distingue “os princípios da eficiência (dever de fazer
de modo certo e positivo)” e “da economicidade (dever de otimizar a atuação esta-
tal)”. Outros autores, no entanto, aproximam esses conteúdos. Diogo de Figueiredo
Moreira Neto (2008, p. 105), ao apontar eficiência como um dos paradigmas do Direito
Administrativo pós-moderno, define-a como a produção de “bens e serviços de melhor
qualidade o mais rápido, na maior quantidade possível e com os menores custos para a
sociedade, para efetivamente atender a suas necessidades cada vez mais demandantes”.
Freitas (2014), Muñoz (2012) e Oliveira (2008) não classificam o direito funda-
mental à boa administração em nenhuma das cinco gerações ou dimensões dos
direitos fundamentais. A própria classificação seria questionável (BARROSO,
2020, p. 499). Contudo, por ser direito a prestações, que se realizam “por via de
obrigações positivas por parte do Poder Público”, por meio da “entrega de bens,
utilidades ou serviços” (BARROSO, 2020, p. 501), parece-nos se aproxime o direito
fundamental à boa administração dos direitos sociais, logo “de segunda dimen-
são”.3 Por outro lado, se “a satisfação de um de seus titulares implica a satisfação de

3 Embora, em termos históricos, não caiba falar em direito fundamental “de segunda geração”, expressão
que se refere a direitos positivados ou reconhecidos, de modo geral, na primeira metade do século XX.

480
todos” (BARROSO, 2020, p. 500), seria direito difuso. É também “direito implícito”,
porquanto, aberto que é o catálogo constitucional (art. 5º, § 2º), decorre de norma
não expressa textualmente, mas pode ser razoavelmente deduzido dos múltiplos
princípios ou regras da Constituição Federal (FREITAS, 2014, p. 13; BARROSO,
2020, p. 505). Mesmo assim, essa norma implícita teria eficácia imediata.4
Entretanto, o conteúdo desse direito é vago como o de “meio ambiente equili-
brado” ou como o de “autodeterminação dos povos”. Afinal, há múltiplas formas de
se realizar a boa administração pública.
Ocorre que direitos fundamentais podem ser estabelecidos com a estrutura de
regra ou de princípio.5 “[O] tratamento dogmático e jurisprudencial mais comum
é que direitos fundamentais sejam tratados como princípios” (BARROSO, 2020, p.
507), compreendidos estes como “mandados de otimização a serem aplicados pelo
intérprete na maior extensão possível” (BARROSO, 2020, p. 507-508). No último
caso, o referente direito fundamental pode sofrer restrições quando ponderado com
outro direito fundamental ou interesse coletivo. Contudo, direitos fundamentais
são direitos subjetivos, logo, posições jurídicas protegidas pelo Direito, sindicáveis
judicialmente e às quais correspondem deveres jurídicos. Violado direito funda-
mental, “nasce para titular uma pretensão, que pode ser exercida mediante a propo-
situra de uma ação judicial” (BARROSO, 2020, p. 494).
Na verdade, parece-nos que o princípio gerador do direito fundamental à boa
administração consiste simplesmente na síntese dos outros princípios constitucionais
aplicáveis à Administração Pública, mormente os enunciados no caput do art. 37 da
Constituição Federal. Essa síntese, por sua vez, decorre eventualmente de ponderação.
A dificuldade em reconhecer a autonomia do direito fundamental à (tão complexa)
“boa administração” advém de baixa ou ausente exigibilidade desse direito.
Direitos subjetivos consistem em situações jurídicas que implicam, em contrapar-
tida, o dever de outrem de realizar algo (MIRANDA, 2019, p. 44). Logo, “afirmar que
de determinado direito fundamental decorrem direitos subjetivos implica, na prática,
reconhecer certo grau de exequibilidade ou jurisdicidade que [...] irá depender da
normatividade de cada direito fundamental especificamente” (MIRANDA, 2019, p.
45), sendo jurisdicidade a capacidade do juiz de fazer valer o direito coativamente.
Ausente essa característica da suscetibilidade de tutela jurisdicional, é possível, na
classificação de Ricardo García Manrique, chamar de “fictício” o direito fundamental,
em oposição ao “verdadeiro” (MANRIQUE, 2010 apud MIRANDA, 2019, p. 44-45).
Luís Roberto Barroso (2020, p. 517-518) afirma que, “em sua dimensão subje-
tiva, direitos fundamentais protegem posições jurídicas individuais, desfrutáveis ou
exigíveis por um titular determinado, em proveito próprio”. Em contrapartida, em
sua dimensão objetiva, o direito fundamental produz impacto sobre o ordenamento
jurídico e sobre sua interpretação, ou seja, tem força irradiante, e gera deveres de

4 CR: “Art. 5º. […] § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
5 Não falaremos em “conceito jurídico indeterminado” de boa administração, pois, como leciona
Binenbojm (2014, p. 231-232), “conceitos jurídicos indeterminados são técnicas legislativas
que traduzem a abertura das normas jurídicas, carecedoras de complementação”; surgem esses
conceitos quando o próprio legislador escolhe o uso de termos vagos e imprecisos. No caso, inexiste
direito fundamental expresso em lei.

481
prestações positivas a serem realizadas por instituições específicas e procedimentos
indispensáveis a seu funcionamento.
Ora, se é perfeitamente reconhecível a dimensão objetiva do direito fundamental
à boa administração, é pífia sua aptidão à proteção de posições individuais. Então,
mostra-se como “fictício” esse direito, ainda que Munõz (2012, p. 14) afirme (sem
apresentar exemplo concreto) ser esse “exigível perante os Tribunais”.
Por ser direito transindividual, o direito à boa administração poderia ser (e é)
rotineiramente defendido pelo Ministério Público, em sua atuação extrajudicial e
judicial. Mas isso se faz propriamente por meio da defesa de seus corolários (trans-
parência; probidade; legalidade etc.). Em pesquisa no Sistema Aptus (mecanismo de
busca do Sistema Único)6 realizada em 1º.9.2020, não se encontrou causa, veiculada,
por exemplo, em ação civil pública, na qual se pretendesse tutelar precisa e uni-
camente o direito fundamental à boa administração. Encontram-se referências a
esse termo de busca, dentre outras, em ações de improbidade administrativa respei-
tantes a licitações. Na página de pesquisa de jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal,7 nenhuma decisão tem em sua ementa o termo “direito fundamental à boa
administração”. O que se vê é que esse direito é invocado complementarmente em
relação a outros direitos fundamentais de feição mais densa ou concreta.
Assim, é inegável o dever moral de boa administração. É inegável que as normas
do ordenamento devam ser criadas (e interpretação também é criação) e obedeci-
das em busca do valor da boa administração. Contudo, há princípios aplicáveis à
Administração Pública expressos e mais específicos, como o da eficiência e o da
publicidade, os quais consistem em aspectos configurantes da boa administração e
cuja acionabilidade se mostra mais praticável.
Quanto ao princípio da eficiência, sua relevância torna-se hoje preponderante,
em vista do contexto nacional de escassez no consumo, produção e comercialização
de produtos e serviços. A última crise fiscal brasileira iniciou-se em 2014 e apro-
fundou-se este ano com a pandemia de Covid-19. O Brasil encontra-se em recessão,
marcada por forte queda do PIB.8
Então, se arrecadação de tributos decai, e a Administração Pública se deve pau-
tar pela eficácia dos direitos fundamentais, inclusive realizando prestações positi-
vas, sobretudo as referentes ao mínimo existencial (BARROSO, 2020, p. 517-518), o
embate pelos recursos tende a se acentuar, e o contingenciamento já se opera.

6 O Único é a plataforma on-line de gestão de expedientes utilizada no Ministério Público Federal


(MPF) há onze anos e em constante ampliação e aprimoramento de funções. O sistema é regido,
entre outros atos normativos, pela Portaria PGR n. 350/2017, que o conceitua como meio eletrônico
de prática de atos administrativos, procedimentais e processuais e de registro, distribuição,
tramitação, instrução e controle de documentos, procedimentos e processos (art. 1º). Dele faz parte
o mecanismo de busca textual Aptus, cujo link está disponível para consulta a qualquer interessado
no Portal da Transparência do MPF.
7 Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search. Acesso em: 2 set. 2020.
8 Cf. ALVARENGA, Darlan; SILVEIRA, Daniel. PIB tem tombo recorde de 9,7% no 2º trimestre
e Brasil entra de novo em recessão. G1, São Paulo e Rio de Janeiro, 1º set. 2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/09/01/pib-tem-queda-recorde-de-97percent-no-2o-
trimestre-e-brasil-entra-de-novo-em-recessao.ghtml. Publicado em: 1º set. 2020. Acesso em: 2
set. 2020.

482
Da crise, quatro anos atrás, resultou a promulgação da Emenda Constitucional n.
95/2016, a qual, acrescentando dispositivos ao Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, criou o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da
Seguridade Social da União, a vigorar por vinte exercícios financeiros. Dentre
outras medidas, os dispositivos estabeleceram limites individualizados, mediante
a correção de valores do Orçamento Federal executados em 2016 por índices infla-
cionários, a vigorar a partir de 2017, para as despesas primárias do Poder Executivo,
de órgãos do Legislativo e do Judiciário, do Ministério Público da União e da
Defensoria Pública da União. Constitucionalizou-se matéria até então tratada em
leis complementares e ordinárias. Vedou-se a abertura de créditos especiais e suple-
mentares. Estabeleceram-se, como sanções para o descumprimento desses limites,
a proibição de incremento remuneratório ou em vantagens a agentes públicos; a
proibição de criação de cargo, emprego ou função que implique aumento de des-
pesa; a proibição de realização de concursos públicos e admissão ou contratação de
pessoal, a qualquer título, ressalvadas as reposições. Em suma: congelaram-se (em
valores reais, não nominais) despesas federais.
Conforme dados do Portal9 da Transparência do MPF, em 30.8.2020, 31 dos 1.049
cargos de analista do MPU/Direito estavam vagos, bem como 21 cargos dos 612
procuradores, procuradores regionais e subprocuradores-gerais da República – exce-
tuadas as reservas técnicas (vagas reservadas para investiduras decorrentes do cum-
primento de decisões judiciais). Ainda que não seja alta a taxa percentual de vacância,
quem trabalha no MPF vive a percepção interna de carência crescente de servidores.
As tarefas do Ministério Público, a seu turno, não só mudaram historicamente,
mas também cresceram. Alexander Araujo de Souza (2014) afirma que o Ministério
Público surgiu como órgão destinado à proteção dos interesses do rei e para fisca-
lizar a lei posta pelo soberano; foi incumbido de funções acusatórias que permiti-
ram a democratização do processo penal e a imparcialidade jurisdicional; passou a
intervir judicialmente em favor de pessoas carentes ou necessitadas; e, finalmente,
recebeu o encargo de tutelar direitos e interesses transindividuais. Como institui-
ção autônoma, nos termos da Constituição Federal de 1988, destina-se “à tutela
dos direitos fundamentais coletivamente considerados dos cidadãos, seja no âmbito
penal, seja em âmbito cível, em juízo ou extrajudicialmente”. No século XXI, alar-
gam-se suas funções no cenário transnacional.
Duas são as tendências de expansão relativamente às funções que o Ministério
Público exerce atualmente: a) no âmbito cível, uma expansão que se iniciou na
segunda metade do século XX, e já se encontra consolidada em diversos países,
relativa à tutela não monopolística dos direitos transindividuais; b) no âmbito
penal, uma expansão a nível transnacional. (SOUZA, 2014, p. 15).
É ampla a gama de interesses defendidos pelo Ministério Público Federal, siste-
matizados nas áreas de atuação correspondentes às sete Câmaras de Coordenação
e Revisão (CCRs), mais a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão:10 Direitos

9 Disponível em: http://www.transparencia.mpf.mp.br/conteudo/gestao-de-pessoas/cargos-vagos-


e-ocupados/servidores/2020/cargos-vagos-e-ocup ados_2020_Julho.pdf. Acesso em: 30 ago. 2020.
10 Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/institucional/sobre/pgr. Acesso em: 31 ago. 2020.

483
Sociais e Fiscalização de Atos Administrativos em Geral; Criminal; Consumidor e
Ordem Econômica; Meio Ambiente e Patrimônio Cultural; Combate à Corrupção;
Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais; Controle Externo da Atividade
Policial e Sistema Prisional; e Direitos do Cidadão.
Muitas das funções do Parquet, talvez a maior parte, são exercidas por meio da
atuação em processos judiciais. No presente artigo, pretendemos analisar como se
deve cumprir o dever de boa gestão de processos judiciais no MPF, em especial sob
o prisma da eficiência.

2 ∙ A GESTÃO DE PROCESSOS (INCLUSIVE JUDICIAIS) NOS


ÓRGÃOS DE ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA. O PLANEJAMENTO
ESTRATÉGICO DO MPF
É outro direito fundamental o acesso à justiça, e o Poder Judiciário brasileiro bem
como as funções essenciais à justiça devem zelar por esse direito. Determinando
sua realização, o inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal, incluído pela
Emenda Constitucional n. 45/2004 (“Reforma do Judiciário”), assegura a razoável
duração do processo. A tempestividade da prestação jurisdicional é considerada
como necessária ao acesso à justiça, e a gestão processual é meio de incremento da
celeridade (ANDRADE, 2020).
De modo amplo, gestão de processos é “um conjunto de práticas que têm o obje-
tivo de buscar o aperfeiçoamento contínuo dos processos organizacionais de uma
empresa ou instituição. Para tanto, os gestores se propõem a identificar, desenvolver,
documentar, monitorar e controlar os processos da companhia” (FIA, 2019). A pró-
pria gestão de processos é também é um processo, ou seja, conjunto organizado e
sistemático de ações (FIA, 2019). Os processos organizacionais, a seu turno, são con-
juntos de atividades realizadas por pessoas ou equipamentos de uma organização e
“envolvem a transformação de insumos (entradas) para atender a um objetivo espe-
cífico, de alguma forma relacionado com os resultados da empresa” (FIA, 2019). As
etapas da gestão de processos são planejamento, modelagem, simulação, execução,
monitoramento e melhorias (FIA, 2019).
Atentos à necessidade e à obrigação de boa gestão, nos últimos anos os tribunais
brasileiros e os diferentes ramos do Ministério Público criaram secretarias e asses-
sorias de gestão estratégica e escritórios de processos de trabalho.
O tema é atual – há mais de vinte anos, se considerarmos os influxos ideoló-
gicos e políticos que levaram à propositura da Emenda Constitucional n. 19/1998
(uma das apelidadas “Reforma Administrativa”), na qual se incluiu o princípio da
eficiência no caput do art. 37 da Constituição da República – e vem sendo tratado
sob diferentes recortes.
Uma das etapas da gestão de processos (que se faz em busca de resultados como
a celeridade) é o planejamento. Rodrigo Pagani de Souza (2017, p. 40) vincula os
resultados da Administração a seu planejamento, propondo
seja dada atenção maior, na formulação de normas sobre gestão pública, à pre-
cisa estipulação jurídica dos aspectos fundamentais das metas na administração
pública. Por exemplo, cumpre ao Direito estipular não apenas que haverá metas

484
ou resultados a atingir, mas também delinear quais os possíveis conteúdos dessas
metas; definir os meios a empregar ou ações a realizar para alcançá-las; exigir
estudos ou estimativas de impacto das ações planejadas; desenhar os processos
a seguir para elaboração das metas; definir formas de monitoramento de sua
execução e avaliação dos resultados efetivamente alcançados; estabelecer previa-
mente quais as consequências do seu descumprimento (sancionatórias ou não, a
depender do caso), sempre fixando, de resto, as competências para realizar tudo
isso. Cumpre, numa palavra, levar a sério a aspiração de uma administração de
resultados, mediante precisa estipulação jurídica dos seus aspectos fundamentais.
Moreira Neto (2008, p. 125-128), ao cuidar dos “resultados” como paradigmas do
Direito Administrativo contemporâneo, ressalta a inafastabilidade do prévio planejamento.
Devido à importância do tema, uma das dez comissões do Conselho Nacional
do Ministério Público é a de Planejamento Estratégico,11 e o conselho instituiu em
2012 o Fórum Nacional de Gestão.12
Também por isso, o MPF elaborou, há uma década, seu primeiro planejamento
estratégico institucional.
O planejamento estratégico deve ser entendido como um plano de ação que leva
a organização a definir seus objetivos e qual a melhor forma de alcançá-los, a
partir da reflexão sobre sua missão, seus valores e sobre como deseja ser reco-
nhecida. Ele é projetado para longo prazo e busca resolutividade na atuação e
satisfação dos clientes. No caso dos órgãos públicos, o cliente é a sociedade.13
Conforme definido no art. 2º da Portaria PGR n. 687/2011 (Planejamento Estratégico
2011-2020 – prorrogado até 2021 por meio da Decisão PGR n. 17/2020, visto que se
encontra em elaboração o próximo PEI), a missão do MPF é “promover a realização da
Justiça, a bem da sociedade e em defesa do Estado Democrático de Direito”.
A Portaria PGR n. 687/2011 evidencia a visão multidimensional da realidade
do MPF e a preocupação com o uso racional dos recursos institucionais e com a
obtenção de resultados práticos:
Art. 3º Os objetivos estratégicos do MPF estão distribuídos em três perspectivas
e sete temas, conforme elencados abaixo:
I - Perspectiva Aprendizado e Crescimento:
a) objetivo 1: Trabalhar alinhado à estratégia com foco em resultados;
b) objetivo 2: Desenvolver conhecimentos, habilidades e atitudes dos membros
e dos servidores;
c) objetivo 3: Assegurar a atratividade das carreiras do MPF; e
d) objetivo 4: Prover soluções de tecnologia da informação e comunicação ali-
nhadas com a estratégia.
II - Perspectiva Processos Internos:

11 Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/comissoes/apresentacao. Acesso em:


2 set. 2020.
12 Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/comissoes/comissao-de-planeja
mento-estrategico/atuacao/fng/o-forum/apresentacao. Acesso em: 2 set. 2020.
13 Disponível em: https://portal.mpf.mp.br/intranet/novoplanejamento#oquee. Acesso em: 16 ago. 2020.

485
a) tema 1 - Sustentabilidade orçamentária:
1 - objetivo 5: Assegurar a transparência e a qualidade do gasto e da gestão orça-
mentária; e
2 - objetivo 6: Estabelecer prioridades claras na realização de investimentos.
b) tema 2 - Comunicação e conhecimento:
1 - objetivo 7: Implementar o processo de Gestão do Conhecimento;
2 - objetivo 8: Fomentar relacionamento com públicos de interesse; e
3 - objetivo 9: Institucionalizar uma política que aperfeiçoe a comunicação
interna, a comunicação com a sociedade e a comunicação com a imprensa.
c) tema 3 - Modelo de gestão - objetivo 10: Proporcionar uma atuação institucional
estratégica, efetiva, célere, transparente e sustentável.
d) tema 4 - Estrutura:
1 - objetivo 11: Fortalecer as estruturas de apoio à investigação;
2 - objetivo 12: Fortalecer a segurança institucional;
3 - objetivo 13: Assegurar corpo pericial flexível às demandas; e
4 - objetivo 14: Adequar a estrutura para uma atuação institucional eficiente e segura.
e) tema 5 - Modelo de atuação:
1 - objetivo 15: Atuar de forma integrada, coordenada e regionalizada;
2 - objetivo 16: Fortalecer a atuação extrajudicial;
3 - objetivo 17: Aperfeiçoar a atuação judicial; e
4 - objetivo 18: Garantir o pleno exercício do poder investigatório.
f) tema 6 - Fortalecimento da Instituição:
1 - objetivo 19: Fomentar e acompanhar a produção de proposições legislativas
no interesse da realização da Missão; e
2 - objetivo 20: Buscar maior protagonismo da Instituição perante a sociedade civil
em temas relevantes para o MPF.
III - Perspectiva Sociedade:
a) tema 7 - Ser percebida com uma Instituição que atue efetivamente na defesa
da sociedade por meio de:
1 - objetivo 21: Combate à criminalidade e à corrupção;
2 - objetivo 22: Proteção do Regime Democrático e promoção dos Direitos
Fundamentais;
3 - objetivo 23: Atuação preventiva;
4 - objetivo 24: Aproximação com o cidadão; e
5 - objetivo 25: Trabalho em grupo e parcerias.
Percebe-se o alinhamento do Planejamento Estratégico com o espírito do art. 74
da Constituição Federal.14 O planejamento é feito para que a missão institucional

14 “Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de
controle interno com a finalidade de: […] II - comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto
à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades
da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito
privado; [...]”

486
seja cumprida de maneira efetiva e, no posterior controle, assim se o ateste ou se
verifique a necessidade de correção de rumos.
São indicadores, definidos no Anexo IV da Portaria n. 687/2011, entre outros: na
atuação extrajudicial, os números de cumprimento de recomendações, o número
de arquivamentos definitivos e a quantidade de termos de ajustamento de conduta
celebrados e os percentuais de prescrição; na atuação judicial, os percentuais de
“favorabilidade no ajuizamento de ações” e de “favorabilidade das ações judiciais”;
os percentuais específicos de favorabilidade das ações de improbidade, das ações
criminais, das ações cíveis/tutela e das ações eleitorais; a quantidade de condenações
em processos referentes ao combate à criminalidade e à corrupção; e os percentuais
de prescrição. Alguns dos métodos de mensuração estão em revisão.15
Ademais, a gestão dos serviços ministeriais é tema permanentemente debatido e
estudado no MPU. Para se trazer exemplo recente, o InovaEscola – Laboratório de
Aprendizagem e de Transformação da Escola Superior do Ministério Público da União
(ESMPU), entre outras iniciativas, tem promovido ciclos de debates em 2020. Já se
tratou do uso do design na melhoria dos serviços públicos e de “tópicos como Internet
das Coisas (IoT), dados e Inteligência Artificial (IA) e as perspectivas e os desafios da
implementação de ferramentas de IA no setor público e privado” (CAPESMPU, 2020).
Em 31 de agosto de 2020, foi publicada a Portaria SG/MPF n. 18/2020, que criou
a Comissão Permanente de Apoio à Gestão Estratégica e designou sua composi-
ção. Conforme noticiado, a “proposta idealizada pela Secretaria de Modernização
e Gestão Estratégica (SGE) busca fortalecer o alinhamento entre as unidades e a
Secretaria e agregar a realidade das unidades na definição de ações estratégicas do
MPF” (PGR-SECOM, 2020d).
Também recentemente, a Instrução de Serviço n. 1, de 29 de maio de 2020, da
Secretaria Adjunta de Modernização e Gestão Estratégica do Ministério Público
Federal, veio instituir e dispor sobre a Metodologia de Gestão de Processos (no
sentido amplo) no âmbito do MPF. Propõe “desenvolver e disseminar métodos,
padrões e soluções para viabilizar a gestão de processos como instrumento con-
tínuo da gestão estratégica” (art. 1º). Define atribuições do Escritório de Processos
Organizacionais do Ministério Público Federal (EPO/MPF) e dos Escritórios de
Processos Locais (EPOs Locais). Na Cadeia de Valor do MPF descrita na instrução,
os resultados institucionais esperados são a defesa dos interesses sociais e indivi-
duais indisponíveis, a defesa da ordem jurídica e a defesa do regime democrático.
Os “clientes” são a sociedade e o Poder Judiciário. Os “produtos” são: ajuizamento
de ações; subsídio a processos judiciais; aprimoramento jurisprudencial; aprimora-
mento de orientações extrajudiciais; instauração de inquéritos civis públicos; reco-
mendações; termos de ajustamento de conduta; recomposição de danos; melhoria
de indicadores sociais, culturais, econômicos e ambientais. Para fins da Instrução
n. 1/2020, consideram-se:
Processos: conjunto de atividades interdependentes, realizadas de forma contí-
nua e padronizada, ordenadas no tempo e no espaço de forma encadeada, que

15 Disponível em: http://www.transparencia.mpf.mp.br/conteudo/planejamento-estrategico/finali


dades-e-objetivos-estrategicos/2020/finalidades-e-objetivos-estrategicos_2020_Julho.pdf. Acesso
em: 16 ago. 2020.

487
transformam insumos (bens tangíveis e intangíveis-demandas, dados, equipa-
mentos) em saídas (produtos, serviços, informações) que produzem resultados e
agregam valor à Instituição.
Processos finalísticos: aqueles ligados à essência do MPF, estão diretamente rela-
cionados à missão do órgão. Esses processos recebem apoio de outros processos
internos e entregam valor diretamente ao cidadão.
Processos de gerenciamento: aqueles que o orientam a tomada de decisão, pro-
movem a formulação de políticas e o estabelecimento das diretrizes visando o
alcance dos objetivos e metas institucionais. São responsáveis por coordenar
os recursos e meios necessários à melhoria do desempenho organizacional e
otimizar a execução dos processos finalísticos e de suporte. São processos que
entregam valor para outros processos e não diretamente aos cidadãos.
Processos de suporte: aqueles ligados ao funcionamento básico da organização.
Têm a função de oferecer apoio aos processos finalísticos, aos de gerenciamento
e a outros processos de suporte. São processos que entregam valor para outros
processos e não diretamente aos cidadãos.
As decisões de gestão processual aqui estudadas são, dessa forma, processos
finalísticos e de gerenciamento.
No que tange aos processos judiciais, a perspectiva da gestão de processos é
aplicável e tem merecido desenvolvimentos. Fala-se hoje em juiz-gestor de pessoas
(LOPES, 2013). Fala-se em gestão processual nos tribunais como mecanismo indutor
de efetividade e celeridade da prestação jurisdicional (FIOREZE, 2011). O Conselho
Nacional de Justiça, em julho de 2020, publicou o manual Gestão Processual no
Tribunal do Júri.16
Ricardo Fioreze (2011, p. 262-264) considera que o Poder Judiciário, “como inte-
grante da Administração Pública” e objetivando “a prestação de tutela jurisdicional
dotada de efetividade e tempestividade – capaz, em tempo razoável, de assegurar
resultados úteis aos seus destinatários”, é ambiente propício ao exercício da gestão
pública, visto ser “indispensável que os recursos disponíveis sejam utilizados de
modo mais eficiente”:
Entre os recursos disponíveis, o principal deles – e para o qual convergem os
demais, em especial os recursos humanos, por meio das atividades deles resul-
tantes – é o processo, meio do qual se vale o Estado para empreender a atividade
jurisdicional, que consiste em uma série de atos interligados e coordenados com
o objetivo de prestar a tutela jurisdicional justa, cuja exteriorização, por sua vez,
se faz por meio do procedimento.
O processo, seja por uma perspectiva estática, como método, seja por uma pers-
pectiva dinâmica, como sucessão de atos, também deve ser alvo de gestão. Aliás,
na concepção de processo organizacional ou processo de trabalho, o processo
(judicial) pode ser visualizado como entrada (insumo) – pois corresponde a
um método, uma disciplina procedimental –, transformação (execução de ati-
vidades) – os vários atos praticados no curso do procedimento transformam
entradas em saídas – e saída (produto ou serviço) – vários atos que compõem o
procedimento representam resultados das transformações, como, por exemplo,

16 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/07/Gesta%CC%83o_processual_


no_Tribunal_do_Ju%CC%81ri_02_07.pdf. Acesso em: 24 ago. 2020.

488
a sentença, que, em apertada síntese, é o produto de certificação do direito que
resulta da transformação, por meio de atividade intelectiva do juiz, das alegações
formuladas pelas partes nos autos.
A intensa disciplina legal a cuja observância se submete o processo não torna
inócua a gestão de sua tramitação. Ao contrário, conforme o contexto, o pro-
cesso (judicial) corresponde a um dos elementos que compõem os processos de
trabalho (entrada, transformação e saída) adotados pelos órgãos judiciários.
A gestão da tramitação processual – ou, simplesmente, gestão processual –
incumbe ao juiz, como decorrência da condição de diretor do processo que lhe é
reservada – embora, em muitas situações, a atribuição pode e deve ser delegada
aos seus auxiliares. (FIOREZE, 2011, p. 263).
Quanto ao MPF, existem decisões de gestão processual tomadas em nível
macroinstitucional, tais como a introdução da sistemática de ofícios; a própria
alocação de unidades, cargos, funções e ofícios; a criação de ofícios de atuação
concentrada ou polos de atuação, levando-se em conta a carga de trabalho pre-
vista em cada região do País ou dos estados e a situação orçamentária verificada. O
uso das estatísticas (Único) e BIs norteiam, em diferentes esferas, o planejamento
do MPF; o Sistema para Mapeamento de Ofícios e Funções (MOF)17 auxilia na
tarefa. Em 2018 e em 2019, para fazer frente às limitações impostas pela Emenda
Constitucional n. 95/2016, vários ofícios do MPF sofreram redistribuição tempo-
rária ou fusão, após autorização do Conselho Superior do MPF (CSMPF).18 Em
2019, a então procuradora-geral da República apresentou ao CSMPF proposta de
resolução que instituía “ofícios de atuação concentrada em polos no âmbito do
MPF”, com o fito de “agregar novos modelos de trabalho, sobretudo em momento
de restrição orçamentária”, para “viabilizar um novo modelo de especialização da
atuação institucional com foco na solução de problemas complexos em áreas como
meio ambiente, criminal e de tutela coletiva”, preservando-se, contudo, “os prin-
cípios da inamovibilidade, da independência funcional e do promotor natural”
(MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2019a).

17 Sistema fruto de projeto da 7ª CCR e usado ao menos pela 1ª CCR. “A plataforma tem como principal
objetivo facilitar a organização e visualização dos Ofícios e Funções dos membros, dos Grupos de
Trabalho (GTs), relatorias e comissões vinculadas às diversas áreas de atuação das Câmaras. Além
de informações relacionadas à composição e estrutura organizacional da 1ª CCR, estão disponíveis
dados relacionados aos membros vinculados à temática da Câmara, tais como informações de
contato e histórico da atuação nos diversos Ofícios, Câmaras e GTs” (PGR-SECOM, 2020b).
18 “Nesta semana, o secretário-geral, Alexandre Camanho, encaminhou ao Conselho Superior do
MPF nota técnica referente à proposta de fechamento da PRM Joaçaba e da PRM Rio do Sul,
com deslocamento de seus ofícios únicos para a PR/SC. Além disso, está em análise no CSMPF
a indicação de fusão de outras 11 unidades do MPF: PRM Laranjal com a PR/AP, PRM Oiapoque
com a PR/AP, PRM Janaúba com a PRM Montes Claros (MG), PRM Poços de Caldas com a PRM
Pouso Alegre (MG), PRM Ituiutaba com a PRM Uberlândia (MG), PRM Cabo de Santo Agostinho/
Palmares com a PR/PE, a PRM Goiana com a PR/PE, a PRM Guajará-Mirim com a PR/RO, PRM
Canoas com a PR/RS, PRM Lagarto com a PR/SE e a PRM Propriá com a PR/SE. Ao longo de 2018,
o Conselho Superior autorizou uma fusão (da PRM Cachoeira do Sul à PRM Santa Cruz do Sul) e
sete redistribuições temporárias de ofícios: da PRM Coxim para a PR/MS, da PRM Itapipoca para
a PR/CE, da PRM Itumbiara para a PR/GO, da PRM Assu (RN) para a PRM Mossoró (RN), da
PRM Tefé para a PR/AM, da PRM Tucuruí para a PR/PA e da PRM Apucarana (PR) para a PRM
Londrina (PR).” (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2019b).

489
Afetando mediatamente as decisões individuais de gestão processual, os plane-
jamentos temáticos19 e as orientações das câmaras de coordenação e revisão promo-
vem a realização dos princípios da unidade e da eficiência. A edição de manuais de
atuação igualmente o faz.
Em cada uma das unidades do MPF, a divisão em núcleos (geralmente cível,
criminal e de combate à corrupção), as regras de distribuição processual e os sub-
sequentes parâmetros inseridos no Sistema Único (grupos de distribuição, limites,
desonerações) se baseiam de alguma forma no quantitativo de expedientes, por
matéria, historicamente recebido.
No que é pertinente à gestão realizada pelos membros e integrantes de gabinetes,
foco deste artigo, também vêm sendo feitos estudos no MPF. Em 29 de novembro
de 2019, foi publicada a portaria que designou os integrantes da equipe do projeto
“Inovação do apoio administrativo aos Gabinetes de Procuradores da República”,
tocado pela Assessoria de Planejamento Estratégico (APGE) da Procuradoria da
República no Distrito Federal. Essa APGE vem empreendendo diagnóstico da dis-
tribuição de tarefas entre integrantes das assessorias – cadastramento de peças em
sistemas eletrônicos, controle de prazos, registro de participação do membro em
audiências, elaboração e envio de ofícios, intimações e memorandos –, inclusive por
meio de questionário enviado aos gabinetes de todos os membros do MPF.20

3 ∙ PROPOSTA DE ROL DE DECISÕES DE GESTÃO PROCESSUAL


Conceituaremos gestão processual, para nossos fins, como o emprego de recur-
sos organizacionais do MPF (entradas) no objetivo da produção de manifestações
em sede judicial (saídas), bem como o planejamento requerido para esse emprego.21
Essa atividade de gestão envolve o pensamento estratégico e as práticas sistemáticas
da observação e do questionamento.
Em seguida, conceituaremos como boa e eficiente gestão o dispêndio de tempo e
energia no que realmente importa: no imprescindível ou no desejável, no que trans-
forma a realidade no sentido pretendido. Para tanto, no contexto do exercício das
funções constitucionais do Ministério Público, o impacto da atuação ministerial
deve se refletir no proporcional dimensionamento do tempo e da energia a serem
despendidos no ato. Causas de maior impacto, no que diz respeito aos interesses da
coletividade, devem receber maior atenção e tempo dos servidores e membros do
MPF. Atos puramente mecânicos devem ser realizados no menor tempo possível,
com o mínimo de energia possível.
Tratemos, desse modo, do que realmente importa. Nos feitos judiciais, o
Ministério Público é voz que busca ser ouvida pelo Judiciário; o caráter de suas
promoções é argumentativo e não decisório. Então, o que realmente produz efeito,
quando se fala em atividade essencial à justiça – logo, atividade de demanda –, é
o que convence, logo influencia o órgão julgador e leva ao atingimento da decisão

19 Em maio de 2019, a 7ª CCR aprovou planejamento temático para o biênio 2019-2020 (PGR-SECOM, 2019b).
20 Ofício Circular n. 20/2020, de 5 de agosto de 2020 – etiqueta Único PR-DF-00064922/2020.
21 Não se trata, portanto, da gestão processual realizada pelo juiz da causa no termos do art. 139 do
Código de Processo Civil.

490
favorável; ou, ainda, em caso contrário, o que lança sementes de ideias, abrindo
caminhos para a mudança de jurisprudência ou de costumes.
Por conseguinte, as saídas (produtos ou serviços) ministeriais, como as peças
processuais, são prestações promocionais; são discurso, lábia, comunicação, persua-
são. Atuar em processos judiciais é, em essência, escrever e apresentar manifestações
(peças), despachar com juízes, desembargadores ou ministros, oficiar em audiências
ou sessões de julgamento e prestar atendimento às partes e informações à imprensa.
Não convém estabelecer limite rígido entre boa administração na atividade-fim e
boa administração na atividade-meio. Se as boas instalações físicas e o bom cafezinho
propiciam a melhor atuação dos agentes do MPF em processos judiciais, é visível o
quão indireta a relação de causalidade se faz. Intermediariamente, podemos falar de
questões como o treinamento e a atualização de pessoal, bem como os cuidados com
o networking, as quais podem ou não influenciar a atuação contenciosa. Os recursos
tecnológicos, da mesma forma, podem ou não influir na atividade de gestão. Como
exemplo positivo, a lei do processo eletrônico (Lei n. 11.419/2006) estabeleceu regras
que possibilitaram o uso juridicamente válido de sistemas de informação como ins-
trumentos da gestão processual; nesse sentido, a integração (interoperabilidade) de
sistemas do MPF com Polícia Federal22 e com o Poder Judiciário23 produz ganho
de eficiência nas consultas e no cadastramento de manifestações. Trata-se, porém, de
providências realizadas em nível institucional, não individual.
Sob a ótica da gestão processual direta e imediata, buscaremos neste item esbo-
çar rol de métodos, técnicas ou parâmetros utilizáveis:
a. escolhas pré-processuais, conforme prioridades, de arquivamento, investigação
e propositura de demanda;24 escolhas processuais de interposição de recurso ou
de mera manifestação de ciência de decisão desfavorável; a conformidade da
decisão à jurisprudência deve ser um dos nortes;
b. uso de formulários – a PGR, por exemplo, passou a adotar, em agosto de 2020,
formulário para o recebimento de representações; o instrumento organiza as infor-
mações apresentadas, o que facilita a triagem e o encaminhamento das notícias;
c. escolhas de intervenção ou não nos expedientes cíveis, quando cabíveis, visto
que, diferentemente do Poder Judiciário, regido pela regra da vedação do non
liquet, o Ministério Público tem alguma margem de escolha dos casos social-
mente mais relevantes;25

22 A Procuradoria-Geral da República e a Diretoria-Geral da Polícia Federal trataram do assunto no


segundo semestre de 2020 (PGR-SECOM, 2020c).
23 Interoperabilidade com o sistema mais utilizado. Na PRR2, em 17.8.2020, iniciou-se a
interoperabilidade entre Sistema Único e eproc, finalizando-se a interoperabilidade Único-Apolo,
sistema utilizado há mais tempo e em vias de substituição pelo eproc.
24 Cf. PGR adota procedimento para otimizar análise de representações criminais. Formulário com
hipóteses de arquivamento, previstas em normas e lei, permite dar respostas mais céleres à sociedade.
Notícias PGR, Brasília, 22 ago. 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-
adota-procedimento-para-otimizar-analise-de-representacoes-criminais. Acesso em: 24 ago. 2020.
25 Segundo Freitas (2014, p. 15), na decisão administrativa, devem-se “expor os fundamentos fáticos
e jurídicos da eleição de prioridades, de maneira intertemporalmente consistente”.

491
d. priorizações referentes à atuação como parte ou como custos legis; em processos
criminais ou cíveis, é possível eventualmente priorizar-se a atuação como parte;
em vista do princípio da unidade, muitas vezes a manifestação como custos iuris
é convergente com a atuação da parte, o que torna despicienda a repetição de
argumentos para aquele e mais decisiva a atuação desta;
e. busca, em qualquer fase, da celebração de negócios processuais, quando cabíveis –
suspensão condicional do processo, transação penal, colaboração premiada, no
processo penal; acordos pré-processuais (como termo de ajustamento de con-
duta, na tutela coletiva) ou processuais, sobre direito material ou sobre procedi-
mento, nos processos cíveis;
f. priorização dos feitos de impacto coletivo em detrimento de feitos de impacto
individual; suscitação de incidentes de resolução de demandas repetitivas, inci-
dentes de assunção de competência ou outros instrumentos de resolução de
dissídios em massa;
g. prevenção de nulidades processuais; manifestação pelo saneamento das nulida-
des, quando possível; busca de promoções conformes à jurisprudência;
h. busca de atuação conforme aos atos normativos do CNMP, às orientações das
câmaras de coordenação e revisão e às diretrizes das corregedorias;
i. escolha de casos nos quais se despachará com o magistrado ou com seus asses-
sores e/ou se fará sustentação oral, tomando-se como parâmetro a fundamen-
talidade dos direitos envolvidos, as qualidades da parte, a repercussão atual ou
previsível do caso na imprensa e na sociedade, o posicionamento dos colegas
atuantes nas diferentes instâncias, a probabilidade da procedência da demanda
ou do provimento do recurso;
j. simplificação material de manifestações – manifestação sobre o óbice processual
com abstenção de posicionamento sobre mérito, se possível e suficiente;26 elabo-
ração de parecer por referência ou remissão, com transcrição, na manifestação do
custos legis, de argumentações do MPF-parte;
k. aspectos formais das manifestações – uso de ementas em pareceres, tabelas comparati-
vas (por exemplo, no cotejo de jurisprudência em recurso especial) e imagens, quando
cabíveis, como reforço do poder de convencimento; concisão e limite da extensão das
peças; simplicidade da linguagem, sobretudo em hipótese de declínio da intervenção
e nas ciências;27 uso de manifestação única para vários processos; elaboração de mani-
festações sem cabeçalho (sem número do processo nem nome das partes);
l. racionalização com o uso de modelos – uso de modelos do próprio gabinete ou
obtidos de outros gabinetes, inclusive por meio de pesquisas no Sistema Aptus;
uso de modelos sugeridos por mecanismos de inteligência artificial;28

26 Em geral, o princípio da prevalência do julgamento do mérito não impede essa forma de atuação como
custos em recurso, pois o mérito já se encontra apreciado em instância inferior no momento da análise.
27 Sistemas eletrônicos mais modernos, como o eproc, utilizado pelo Tribunal Regional da 2ª Região,
permitem a exaração de “ciente, com renúncia ao prazo [recursal]” sem a necessidade de redação
de uma única linha.
28 Como os que o Tribunal de Justiça de Rondônia já utiliza (sistema Sinapses). O uso de modelos
decorre do pensamento decorrente do modo de produção industrial fordista, em série ou em linha

492
m. racionalização com o uso de ferramentas de tecnologia – acompanhamento,
mediante mecanismo push, de movimentações de processos referentes a casos
mais sensíveis; uso de sistema para acompanhamento do cumprimento de obri-
gações pactuadas;29 novamente, uso de inteligência artificial;30 de modo infor-
mal, grupos de aplicativos como WhatsApp ou Telegram podem ser utilizados
para a troca de informações sobre processos judiciais;
n. gestão de pessoas – divisão (delegações e subdelegações) de tarefas na equipe do
gabinete conforme as capacidades e qualificações – membro, assessor, analista,
estagiário, secretário ou assistente; por exemplo, com a atribuição de casos mais
complexos aos menos experientes; solicitações de reforço às assessorias em caso
de necessidade excepcional;
o. controle de prazos, por meio de elaboração de tabelas ou pelo registro no Sistema Único.

4 ∙ MINISTÉRIO PÚBLICO COMO ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA. DECISÕES DA GESTÃO PROCESSUAL
COMO ATOS ADMINISTRATIVOS
De muitas maneiras se exerce a função promocional do MPF: na realização de
eventos, dentre eles as audiências públicas; na elaboração e distribuição de mate-
rial educativo; na articulação parlamentar e na expedição de notas técnicas ao
Legislativo Federal etc. Entretanto, nosso foco é a atuação em processos judiciais.
Por conseguinte, entendemos que o problema ou questão da (boa) gestão processual
situa-se na fronteira entre o Direito Administrativo e o Processual. E, portanto, as
normas fundamentais do Código de Processo Civil,31 de aplicabilidade em todos os
ramos do Direito Processual,32 imperam.
Ainda assim, o membro e o servidor do MPF prestam serviço público ao gerir
processos? Podem as decisões de gestão processual ser consideradas como atos

de montagem. Na escrita das manifestações, é patente o ganho de eficiência verificado com o uso
de modelos como ponto de partida.
29 Em 2019, a PGR iniciou o uso do Sistema de Monitoramento de Colaborações. “Além de
informações em tempo real, Simco permite adotar providências para garantir pagamento de
multas e cumprimento de medidas penais” ajustadas em acordos de colaboração premiada (PGR-
SECOM, 2019a).
30 A inteligência artificial já é utilizada na atividade extrajudicial do MPF, em apoio na revisão
de arquivamentos para fins de homologação. É previsível que, num médio prazo, expanda-se o
uso para a atuação no contencioso judicial. “Único IA: 5ª CCR passará a utilizar funcionalidade
de Inteligência Artificial. Funcionalidade já é usada pela 1ª CCR e automatiza sugestões de
homologação de arquivamento de procedimentos, acelerando o trabalho de avaliação do analista.
[…] Com a nova versão, um robô passa a fazer sugestão de homologação” (PGR-SECOM, 2020a).
31 Dentre elas: “Art. 3º [...] § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual
de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do
Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. Art. 4º As partes têm o direito de obter
em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”.
32 Código de Processo Civil: “Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais,
trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e
subsidiariamente”; arts. 139, 362, 638 e 790 do Código de Processo Penal etc.

493
administrativos para os fins do cumprimento do dever fundamental de boa admi-
nistração? A doutrina administrativista pode ser considerada um bom enfoque
dessas atividades e as normas administrativas incidem nesse métier?
“O direito administrativo deveria ser pandêmico: sempre”, pois “detrás do
termo pandemia está a ideia de espalhar em todo o povo” (TOMELIN, 2020, p. 35).
Sim, é preciso admitir que o Parquet exerce funções administrativas em sua atua-
ção finalística e tem facetas de serviço público. A atividade jurisdicional é espécie
de serviço público (FIOREZE, 2011, p. 259), e a atividade ministerial, essencial ao
exercício da função jurisdicional, também o é.
Em primeiro lugar, os membros e servidores do MPF são agentes públicos, regi-
dos por leis específicas. Ainda que, nos termos do conceito de Marçal Justen Filho
(2010, p. 854), servidor público seja
pessoa física que atua como órgão de pessoa jurídica de direito público mediante
vínculo jurídico de direito público, caracterizado pela investidura em posição jurí-
dica criada por lei, pela ausência de função política, pela ausência de integração
em corporações militares e pela remuneração proveniente dos cofres públicos.
Nota-se que apenas a função política descaracterizaria os membros do Parquet; as
demais são compartilhadas. Contudo, o próprio Justen Filho (2010, p. 856) explicita
que “o não exercício de atividade política” significa que o fundamento da inves-
tidura do sujeito não seja a escolha pelo voto popular e, como decorrência, que o
desempenho das funções correspondentes não traduza “escolhas discricionárias da
população”. Logo, nos termos expostos pelo autor, o enquadramento dos procura-
dores da República como servidores públicos estatutários é possível.
Em segundo lugar, a Administração Pública em sentido estrito e objetivo é a
atividade de realização da função administrativa, ou seja, de concreta execução da
vontade do Estado contida na lei. Sua finalidade é a satisfação direta e imediata dos
fins do Estado ou dos interesses coletivos, e seu regime jurídico é predominante-
mente de direito público (DI PIETRO, 2015, p. 88-91). Função, por sua vez, é um
conjunto de atribuições vinculadas à realização de determinadas finalidades. “Existe
função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol
do interesse de outrem” [grifos no original] (BANDEIRA DE MELLO, 2010, p. 193).
Como o Ministério Público executa a vontade da lei em regime de direito público
para satisfazer diretamente a interesses coletivos, conclui-se que o órgão exerce fun-
ção administrativa e compõe a Administração Pública.
Por outro lado, o conceito de Direito Administrativo de Di Pietro (2015, p. 89) exclui
a atividade contenciosa do âmbito de incidência das normas de Direito Administrativo:
[R]amo do Direito Público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídi-
cas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica
não contenciosa que exerce e os bens e meios de que se utiliza para a consecução
de seus fins, de natureza pública.
Maria Sylvia Di Pietro enumera como espécies de atividades de Administração
Pública em sentido objetivo o fomento, a polícia administrativa e o serviço público.
Conceitua serviço público exatamente como Administração Pública em sentido obje-
tivo (“toda atividade que a Administração Pública executa, direta ou indiretamente, para
satisfazer à necessidade coletiva, sob regime jurídico predominantemente público”) e

494
traz como exemplos os serviços postal, de telecomunicações, de fornecimento de ener-
gia, transporte etc., passando longe de qualquer atividade jurídica ou promocional.
Parece demasiadamente restritivo conceito, pois o trabalho referente à atuação
em processos judiciais é serviço, em oposição ao fornecimento de bens materiais –
nenhum advogado duvida que é prestador de serviços, por exemplo –, e o membro
do Ministério Público funciona como advogado da sociedade. Sem dúvida sua atua-
ção se dá em função pública.
Justen Filho (2010, p. 569) define serviço público como a “atividade prestacional
da Administração Pública, destinada a fornecer utilidades necessárias diretamente
à realização dos direitos fundamentais” e consistente do fornecimento de bens
materiais e imateriais. Embora o autor apenas cite como exemplos a distribuição
de energia elétrica e o transporte coletivo de passageiros, resta evidente que o for-
necimento de bens imateriais é precisamente a prestação de serviços. Além disso,
o acesso à justiça é diretamente necessário à realização dos direitos fundamentais.
Amaral e Guimarães (2013, p. 655) não titubeiam ao afirmar que o Ministério
Público, em sua atividade-fim, exerce função administrativa. Segundo os autores,
as competências dos órgãos do Ministério Público existem em função dos direitos
fundamentais dos administrados que lhes cabe tutelar.
Ribeiro (2015, p. 32-35) classifica o Ministério Público como órgão de soberania. Na
configuração dos Poderes da República no Brasil, é quase um “quarto poder”; embora
lotado no Executivo, é autônomo. Todavia, conforme Ribeiro (2015, p. 101-102),
a tentativa de vários doutrinadores nacionais e alienígenas de esboçar definiti-
vamente as características das funções típicas levadas a cabo pelo Estado restou
frustrada. As conclusões, desalinhadas e assimétricas, ora considerando aspec-
tos orgânicos de cada uma das funções, ora fixando-se nos aspectos materiais,
são incapazes, de maneira peremptória, de compartimentar as várias atividades,
principalmente nessa quadra, levando-se em conta a realidade do Estado brasi-
leiro, nas três funções típicas reconhecidas pela doutrina.
São características da função administrativa listadas por Paulo Modesto (2006
apud RIBEIRO, 2015, p. 104-116):
(1) atividade polinuclear; (2) instrumental e subalterna; (3) exercida pelo Estado
ou por quem lhe faça as vezes; (4) realizada sob a lei ou para dar aplicação
estritamente vinculada à norma constitucional; (5) produzida por órgãos hie-
rarquizados; (6) sujeita à dupla sindicabilidade jurídica; (7) com o objetivo de
dar concreção às finalidades estabelecidas pelo sistema do direito positivo como
sendo dever do Estado.
O qualificativo “subalterno” é típico de regimes antidemocráticos e desiguais, e
destilado com o fim de separar agentes políticos de agentes administrativos. A dicoto-
mia é frequentemente falha, visto que os titulares dos Poderes da República também
se sujeitam ao regime jurídico- administrativo em muitos de seus atos. Quanto ao item
5 da lista de Modesto, segundo a qual a função administrativa é exercida por órgãos
hierarquizados (internamente), Ribeiro (2015, p. 105-106) considera a característica
da hierarquia compatível com a independência funcional do Parquet. Dispositivos
como os arts. 5º e 10 da Lei Orgânica do Ministério Público indicariam isso. Ademais,
o procurador-geral de Justiça resolve conflitos de atribuição e expede recomendações;

495
o fato de o arquivamento de peças informativas e de inquérito civil ser passível de
revisão também comprovaria a existência de hierarquia e controle interno.
Emerson Garcia (2017, p. 110-111) considera que a “natureza jurídica do
Ministério Público, a exemplo de outras estruturas organizacionais dotadas de
autonomia (v.g.: os Tribunais de Contas), ocupa uma posição intermediária entre
as teorias do órgão e da pessoa jurídica”. Além disso, as “atribuições do Conselho
Nacional do Ministério Público também permitem que a Instituição passe a osten-
tar uma pequena semelhança em relação aos órgãos administrativos”.
Em terceiro lugar, é visível a incidência de normas atinentes a serviços públi-
cos sobre as atividades ministeriais, ainda que ausente a figura do usuário (indivi-
dualizado) dessas prestações. Por exemplo, a Lei n. 13.460/2017, que dispõe sobre
participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos,
conceitua, em seu art. 2º, serviço público como a “atividade administrativa ou de
prestação direta ou indireta de bens ou serviços à população, exercida por órgão ou
entidade da administração pública”, e Administração Pública como “órgão ou enti-
dade integrante da administração pública de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a Advocacia Pública e a Defensoria
Pública”. Vê-se que a advocacia e a defensoria públicas, ambas funções essenciais
à justiça previstas no Capítulo IV do Título IV da Constituição da República e
ambas instituições prestadoras de serviços referentes ao contencioso judicial, são
consideradas pelo legislador como integrantes da Administração Pública, o que,
no mínimo, aproxima o Ministério Público do rol legal, por analogia. Aliás, em seu
Planejamento Estratégico, o próprio MPF se coloca na missão de prestar serviços ao
“cliente” sociedade.
Assim, sem desconhecer a predominância da face político-jurídica e autônoma
do Ministério Público, “agente da vontade política transformadora” ou “agente da
sociedade civil” (GOULART, 2020, p. 107 e 140) destinado a defender o regime
democrático e os direitos fundamentais, inclusive em posição contramajoritária,
é possível considerar como serviço público ou como atividade administrativa em
sentido amplo a prestação ministerial.
Essa atividade se materializa sobretudo por meio de atos administrativos. Estes são
manifestações de vontade funcional aptas a gerar efeitos jurídicos, produzidas no exercí-
cio de função administrativa (JUSTEN FILHO, 2010, p. 316). Essa emanação de vontade
pode traduzir-se de modo direto ou indireto, por meio da movimentação física do
corpo humano ou por instrumentos. Assim, quando uma petição recebe o carimbo
de um equipamento, no protocolo de uma repartição pública, existe manifestação
indireta de vontade. (JUSTEN FILHO, 2010, p. 317, grifo do original).
Além disso, o próprio silêncio pode consistir em manifestação de vontade (JUSTEN
FILHO, 2010, p. 323-324). O gestual de um guarda de trânsito é recorrentemente
citado como exemplo de ato administrativo.
As escolhas de gestão processual podem ser feitas expressa ou tacitamente nos
gabinetes dos procuradores da República; decisões podem ser delegadas às asses-
sorias, ou resultar da conjugação das atividades de mais de uma pessoa (como atos
compostos). Essas características não afastam a possibilidade de caracterização das
decisões ora estudadas como atos administrativos.

496
Vontade funcional é aquela objetivamente vinculada à satisfação de necessida-
des coletivas, e pode-se “aludir a uma vontade institucional, indicando o vínculo
entre a decisão do indivíduo e a realização dos fins que norteiam a instituição em
que ele se integra” (JUSTEN FILHO, p. 317).
São aspectos do ato administrativo o sujeito (o agente público), o conteúdo ou
objeto (aquilo que por ele é determinado ou estabelecido), a forma (modo de exte-
riorização do ato), o motivo (causa jurídica eleita pelo agente para a produção do
ato) e a finalidade (resultado ou interesse que se busca satisfazer por meio do ato)
(JUSTEN FILHO, 2010, p. 333-334).
A competência administrativa, por sua vez, é a atribuição normativa da legiti-
mação para a prática de um ato administrativo pelo órgão público ou pessoa inves-
tida de cargo (JUSTEN FILHO, 2010, p. 334-336).
A forma do ato tem natureza instrumental – sua disciplina visa realizar o valor
da segurança jurídica –, e quanto a esse aspecto, incide o princípio da proporciona-
lidade. Os modos de formalização dos atos administrativos são tão variados quanto
os modos de comunicação humana. Há, porém, três alternativas fundamentais:
forma escrita, forma verbal e forma gestual (JUSTEN FILHO, 2010, p. 337). A forma
é garantia de segurança jurídica. “Fora disso ficaremos integralmente na mão do
intérprete”, por isso a tipicidade seria atributo do ato administrativo. Entretanto,
ausente prejuízo, a falta de enquadramento do ato em um tipo conduz ao sanea-
mento do defeito (TOMELIN, 2020, p. 45 e 50).
Justen Filho (2010, p. 325-326) rechaça a segregação ou dicotomia dos atos
materiais ou “de pura execução de um comando normativo” em relação aos atos
administrativos, visto que “todos os atos que correspondam ao modelo normativo e
envolvam o desenvolvimento de função administrativa são administrativos”.
Os atos normativos também podem ser administrativos, ainda que distintos
dos atos administrativos em sentido (r)estrito. “O ato administrativo normativo
complementa o mandamento de uma norma legal, disciplinando como as condutas
futuras deverão ser praticadas” (JUSTEN FILHO, 2010, p. 327). Na classificação
quanto à natureza, atos decisórios são os que “impõem uma solução determinada
como a escolhida pela Administração Pública, usualmente traduzindo o reconhe-
cimento ou a constituição de um direito ou dever”, enquanto atos de execução são
“aqueles por meio dos quais se desenvolve a atividade administrativa, produzindo
a satisfação de um dever ou, se defeituoso, o surgimento da responsabilidade jurí-
dica” (JUSTEN FILHO, 2010, p. 351-352).
Nas rotinas da gestão processual, o estabelecimento de diretrizes em abstrato e
a execução dessas diretrizes podem ser atribuídos ao mesmo agente, ou a diferentes
operadores do gabinete. Além disso, em alguns casos podem não bastar as diretri-
zes em abstrato, fazendo-se necessária decisão específica sobre a forma de atuar.
Portanto, nos termos da doutrina de Justen Filho (e certamente de muitos outros),
tenham as decisões referentes ao trato dos processos judiciais sido pensadas em abs-
trato e comunicadas à respectiva equipe (o que sói ocorrer, mediante o prévio estabe-
lecimento de parâmetros), ou sejam as decisões feitas nos casos concretos, podemos
entender que essas escolhas são externadas mediante a prática de atos administrativos.

497
Tais atos possuem os atributos da presunção relativa de legitimidade e de regulari-
dade, da imperatividade ou exigibilidade – os direitos e deveres contemplados no ato
podem tornar-se exigíveis – e da autoexecutoriedade – autoriza-se a realização de atos
concretos necessários à implementação da decisão (JUSTEN FILHO, 2010, 342-347).
Contudo, os atos administrativos podem ser viciados quanto a seus aspectos.
Vícios de competência são inexistência de competência, defeito quanto ao sujeito e
excesso de poder; vícios de forma são ofensa aos requisitos de existência e validade,
ofensa ao procedimento e defeito de motivação; vícios de conteúdo são ofensas
aos requisitos de existência ou validade; vícios de motivo são a ausência de esco-
lha consciente, equívoco quanto à natureza dos fatos, quanto à causalidade entre
motivo e decisão ou quanto à necessidade; vícios de finalidade são o vício quanto
à escolha da finalidade, desvio de poder, desvio de procedimento e abuso de poder
(JUSTEN FILHO, 2010, p. 368-369).
Não convém, entretanto, prolongar-nos no tema da imperatividade e exigibi-
lidade, tampouco no dos vícios, visto que os atos aqui estudados têm, individual-
mente, conteúdo e efeitos muito imediatos; são atos tópicos e de abrangência interna
corporis. Ademais, no que respeita à pessoa do procurador, são praticados em obe-
diência ao princípio da independência funcional.
Os atos administrativos são revogáveis quando se tornam inconvenientes ao
interesse público (JUSTEN FILHO, 2010, p. 396).
Todos os atos administrativos, como “declarações de vontade da administração
pública lato sensu”, emanadas em nível infralegal com o fito de se produzirem efei-
tos no mundo jurídico, são controláveis (FREITAS, 2014, p. 28). De modo geral, os
atos administrativos são duplamente sindicáveis, sujeitando-se a controles adminis-
trativos e jurisdicionais. A presunção de legitimidade, ou seja, de conformidade à lei
e ao Direito, pode ser afastada por meio de revisão judicial, “respeitado seu mérito”
(JUSTEN FILHO, 2010, p. 345).
Quanto aos atos de gestão processual, existem os controles exercidos pelas
instâncias administrativas revisionais e correicionais (corregedorias do MPF e do
CNMP). O controle realizado pelo juízo ou tribunal perante o qual se atua e pelas
instâncias superiores se dá no próprio âmbito de cada processo, em regra. Mediante
a favorabilidade ou não da decisão, opera-se um controle qualitativo das manifes-
tações ministeriais. Mas também é possível, em casos extremos, a judicialização
de demanda cível ou criminal em face do próprio membro atuante. O art. 181 do
Código de Processo Civil, por exemplo, estabelece que o “membro do Ministério
Público será civil e regressivamente responsável quando agir com dolo ou fraude no
exercício de suas funções”, e ilícitos funcionais podem ensejar sanção penal.
Dá-se ainda o controle social, inclusive pelos pares e pela imprensa.
Contudo, no que tange ao Parquet, é sempre de ser ponderado o princípio da
independência funcional. Esse princípio institucional tem uma série de definições
doutrinárias. A mais tradicional acepção é a de que a independência funcional se
traduz na prerrogativa do membro de atuar livremente consoante sua consciência e
o Direito (COURA; FONSECA, 2015, p. 43-44). A Portaria PGR n. 687/2011 define
em seu Anexo II, item 1.3: “Independência funcional: a liberdade do membro do
MPF de, no exercício de suas atribuições, agir de acordo com o seu convencimento

498
na interpretação da Constituição e das leis, sem vinculação hierárquica e de forma
a assegurar o cumprimento da Missão”.
Segundo Carlos Vinícius Ribeiro (2010 apud COURA; FONSECA, 2015, p. 51),
essa prerrogativa geraria discricionariedade na atuação extrajudicial, na qual se
exerce atividade administrativa. Mas é impossível deixar de estender esse enten-
dimento para a caracterização de muitas das escolhas da atuação judicial. Para
Antônio Cláudio da Costa Machado (1989 apud COURA; FONSECA, 2015, p. 49),
por exemplo, o princípio da independência funcional “conferiria aos promotores-
-procuradores ampla possibilidade de alteração do próprio posicionamento ou do
posicionamento de outro órgão do Ministério Público exteriorizado em processo
judicial ou em procedimento administrativo” (COURA; FONSECA, 2015, p. 49).
Ocorre que o “posicionamento” é, muitas vezes, a escolha processual: propor ou
não a ação; recorrer ou não; intervir ou não. Contudo, a identidade não é absoluta:
sustentar oralmente ou não, despachar com o magistrado ou não, qual feito prio-
rizar, são escolhas estratégicas que não representam posicionamento como parte
ou como custos legis. Por outro lado, manifestar-se pela extinção sem resolução do
mérito ou pelo prosseguimento, pela procedência ou improcedência, por exemplo,
são posicionamentos que não se refletem necessariamente em decisões de gestão.
Fato é que, por inarredável consequência da independência funcional, as deci-
sões ministeriais de gestão processual são discricionárias.
Discricionariedade é a “competência administrativa (não mera faculdade) de
avaliar e escolher, no plano concreto, as melhores soluções, mediante justificativas
válidas, coerentes e consistentes de sustentabilidade, conveniência ou oportunidade”
(FREITAS, 2014, p. 24). Essa discricionariedade pode ser referente ao plano das
condições de incidência da norma, quando se lida com conceitos indeterminados
(cognitiva), ou atinente à escolha das consequências a se buscarem dentre as opções
lícitas (FREITAS, 2014, p. 24). Atos discricionários envolvem escolhas de meios e de
metas (FREITAS, 2014, p. 33), ou escolhas “do ‘se’ e do ‘como’” (BINENBOJM, 2014,
p. 225). A discricionariedade é “mera condição para implementar as providências
administrativas com eficácia, eficiência e sustentabilidade”; só é legítima se pautada
por princípios, inclusive os do Direito Administrativo, e pelos demais limites do
Direito (FREITAS, 2014, p. 47-48 e 58).
Todavia, na lição de Georges Vedel (1973 apud FREITAS, 2014, p. 40), inexistem
pura discricionariedade ou pura vinculação. São praticados os atos administrati-
vos, conforme a doutrina contemporânea, em graus decrescentes de vinculação
conforme se vinculem a regras, envolvam conceitos jurídicos indeterminados ou se
vinculem a princípios (BINENBOJM, 2014, p. 221-225).
Ademais, como já visto e segundo Juarez Freitas (2014, p. 15), não existe discricio-
nariedade administrativa imune a controles democraticamente estabelecidos, no ati-
nente a meios, processos e efeitos. Tal imunidade acarretaria a arbitrariedade. Impõe-se
o controle finalístico multidimensional, superando a mera exigência do controle de
legalidade. O direito fundamental à boa administração implica a eventual responsabili-
zação por condutas omissivas e comissivas (FREITAS, 2014, p. 21, 30 e 44). Para tanto,
é indispensável a motivação ou fundamentação suficiente da escolha realizada, com a
indicação dos fundamentos fáticos e jurídicos, sob pena de nulidade do ato.

499
Na motivação dos atos administrativos, a ser interpretável dialeticamente, “a hie-
rarquização axiológica é decisiva”. Mas o dever de motivar só existe “segundo propósi-
tos relevantes, com boa-fé”. Dessa forma, ressalvam-se os atos de mero expediente, os
“autodecifráveis”, os “ordinatórios de feição interna” e as “respostas-tipo”, para atos no
caso de haver “número elevado de pessoas abrangidas por decisões idênticas”; ainda
assim, esses devem ser motiváveis, logo, passíveis de aprovação no teste de racionali-
dade intersubjetiva (FREITAS, 2014, p. 25, 29, 63, 68 e 73). Em regra, seriam controlá-
veis os porquês e o timing das decisões administrativas (FREITAS, 2014, p. 45).
Segundo Hartmut Maurer (1985 apud FREITAS, 2014, p. 78), a motivação serve
até mesmo “como autocontrole para a autoridade, que, por meio dela, é obrigada a
estudar com rigor sua decisão”; sua obrigatoriedade faz valorizar a impessoalidade
e “prestigiar a independência do agente público”, mostrando-se “útil à criação de
ambiente juridicamente confiável e previsível para as relações administrativas de
longo prazo”, pois a presunção de legitimidade dos atos administrativos é cada vez
mais relativa (FREITAS, 2014, p. 81-84).
De resto, analisados os atos de gestão processual como atos administrativos
realizados na prestação de serviço público, é clara a incidência, sobre eles, de nor-
mas referentes à probidade administrativa,33 à atualidade da prestação dos serviços
públicos,34 à motivação dos atos administrativos,35 ao consequencialismo.36 Afinal,

33 Lei n. 8.429/1992: “Dos Atos de Improbidade Administrativa que Atentam Contra os Princípios da
Administração Pública. Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os
princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade,
imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: […] II - retardar ou deixar de
praticar, indevidamente, ato de ofício; [...]”.
34 Lei n. 13.460/2017: “Art. 4º Os serviços públicos e o atendimento do usuário serão realizados de
forma adequada, observados os princípios da regularidade, continuidade, efetividade, segurança,
atualidade, generalidade, transparência e cortesia”.
35 Lei n. 9.784/1999: “Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos
e dos fundamentos jurídicos, quando: I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses; […]
VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos,
propostas e relatórios oficiais; VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de
ato administrativo. § 1º A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em
declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou
propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato. § 2º Na solução de vários assuntos da mesma
natureza, pode ser utilizado meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde
que não prejudique direito ou garantia dos interessados”. A lei do processo administrativo federal
seria “verdadeiro quadro ou fonte normativa primordial de ordenação da atuação administrativa,
pautando requisitos mínimos para instauração, instrução e decisão relativos à formação e posterior
execução da vontade funcional da Administração Pública” (CUNHA, 2014, p. iii).
36 Decreto-Lei n. 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro): “Art. 20. Nas esferas
administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos
sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. (Incluído pela Lei n. 13.655,
de 2018) Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida
imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive
em face das possíveis alternativas. (Incluído pela Lei n. 13.655, de 2018) Art. 21. A decisão que, nas
esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste,
processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas
e administrativas. (Incluído pela Lei n. 13.655, de 2018) Parágrafo único. A decisão a que se refere o
caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra

500
a visão do ordenamento jurídico como sistema unitário e consistente, composto
de elementos e de relações, é um pressuposto ideológico que a dogmática assume
(FERRAZ JÚNIOR, 2015, p. 140 e 166) e o Direito aspira à unidade dos conteúdos
normativos (REGLA, 2014, p. 94).
Também a proporcionalidade como princípio do Direito Administrativo é
aplicável aos atos de gestão processual do Ministério Público: “a força vinculante
da proporcionalidade não cessa de se mostrar prestimosa à vigilância no tocante à
qualidade da conduta do agente público, em sentido lato”. São subprincípios da pro-
porcionalidade a adequação entre meios e fins, a necessidade e a proporcionalidade
em sentido estrito (FREITAS, 2014, p. 90-92).
Por fim, o “sistema administrativo não se constrói dotado de estreitos e definiti-
vos contornos, sobretudo porque o dogma da completude não resiste à constatação
de que as contradições e as lacunas acompanham as normas, à feição de sombras”.
O fenômeno jurídico pode ser multifacetado (FREITAS, 2014, p. 76).
Logo, não se mostra necessária a absoluta pertinência dos (f)atos às categorias
jurídicas para que se colham os frutos da classificação das decisões de gestão pro-
cessual como atos administrativos.

5 ∙ CONCLUSÕES
O direito fundamental à boa gestão processual, por ter conteúdo vago e gené-
rico, é um direito soft, não exigível autonomamente. Ainda assim, em vista da
incontestável dimensão objetiva desse direito, surge o dever fundamental de boa
gestão, inclusive da processual, a delinear as condutas dos agentes públicos e as
providências das instituições. O referido direito oriundo de norma principiológica
também deve ser realizado por meio de densificação e de apoio em outras regras e
princípios constitucionais e administrativos.
Em sua faceta da eficiência, é ainda mais premente a observância do dever fun-
damental de boa gestão em tempo de crise fiscal.
Para o atingimento da boa gestão processual pelo MPF, mostra-se adequado e
útil o enfoque administrativista na compreensão de vários de seus aspectos, ainda
que não se reconheça peremptoriamente a natureza de atos administrativos das
respectivas decisões e atos executórios.
Isso porque o Direito Administrativo se constitucionalizou nas últimas décadas
e a atuação com eficiência, legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade
é exigência da probidade. As prerrogativas da Administração são hoje instrumen-
tais e somente se justificam na estrita medida do atendimento ao interesse público.
Além disso, o princípio da atualidade dos serviços públicos impõe a obrigação de
boa gestão. As consequências da atuação ministerial, na lida com os processos
judiciais, devem ser previamente sopesadas, para o estabelecimento de prioridades,

de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor
aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais
ou excessivos. (Incluído pela Lei n. 13.655, de 2018) Art. 22. Na interpretação de normas sobre
gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das
políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”.

501
conforme a proporcionalidade. A motivação dos referentes atos, que afetam direitos
do cidadão, deve ser suficiente, consoante critérios de boa-fé. Logo, obedecendo a
esse conjunto de deveres no exercício das atividades de gestão processual, cujo rol
exemplificativo se propôs, os agentes públicos do MPF realizam o direito difuso à
boa administração pública.

REFERÊNCIAS
AMARAL, Cynthia Pardo Andrade; GUIMARÃES, Daniel Serra Azul. Inquérito civil –
poderes investigatórios e controle externo. In: SABELLA, Walter Paulo; DAL POZZO,
Antônio Araldo Ferraz; BURLE FILHO, José Emmanuel. Ministério Público: vinte e
cinco anos do novo perfil constitucional. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 654-672.
ANDRADE, Érico. Gestão processual flexível, colaborativa e proporcional: cenários para
implementação das novas tendências no CPC/2015. Revista da Faculdade de Direito da
UFMG, Belo Horizonte, n. 76, p. 183-212, jan./jun. 2020. Disponível em: https://web.
direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/2065/1929. Acesso em: 1º set. 2020.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O poder normativo do Executivo no Brasil.
In: TAVARES, André Ramos; LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang. Estado
Constitucional e organização do poder. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 193.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais,
democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.
CAPESMPU. CAPESMPU informa: 3º ciclo de debates InovaEscola. Destinatário: Maria
Viveiros Peixoto Volkmer Fell. [S. l.], 26 ago. 2020. 1 mensagem eletrônica.
COURA, Alexandre de Castro; FONSECA, Bruno Gomes Borges da. Ministério Público
brasileiro: entre unidade e independência. São Paulo: Ltr, 2015.
CUNHA, Bruno Santos. Aplicabilidade da Lei Federal 9.784/99. Orientador: Thiago
Marrara de Matos. 2014. 209 f. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) –
Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2014. Disponível em: https://teses.
usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-11022015-150338/publico/Bruno_Santos_Cunha_
Aplicabilidade_da_Lei_Federal_9784_99_Integral.pdf. Acesso em: 16 ago. 2020.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e
dominação. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
FIOREZE, Ricardo. Gestão processual: mecanismos de efetividade e celeridade
da atividade jurisdicional. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo,
v. 77, n. 4, p. 259-279, out./dez. 2011. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/
handle/20.500.12178/28359. Acesso em: 16 ago. 2020.
FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2014.
FUNDAÇÃO INSTITUTO DE ADMINISTRAÇÃO (FIA). Gestão de processos: o que é,
benefícios e características. Blog FIA, [s. l.], 20 fev. 2019. Disponível em: https://fia.com.
br/blog/gestao-de-processos/. Acesso em: 31 ago. 2020.
GARCIA, Emerson. Ministério Público: organização, atribuições e regime jurídico. 6. ed.
São Paulo: Saraiva, 2017.

502
GOULART, Marcelo Pedroso. Elementos para uma teoria geral do Ministério Público. 2.
ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
LOPES, Joemilson Donizetti. O juiz como gestor: gestão de pessoas. In: CURSO DE
FORMAÇÃO PARA INGRESSO NA CARREIRA DA MAGISTRATURA, 1., 16 ago.
2013, Belo Horizonte. Palestras [...]. Belo Horizonte: TJMG, 2013. Disponível em: https://
bd.tjmg.jus.br/jspui/handle/tjmg/681. Acesso em: 31 ago. 2020.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Gestão em pauta: ofícios de atuação concentrada em
polo respeitam princípios da independência funcional e do promotor natural. Destinatário:
Maria Viveiros Peixoto Volkmer Fell. [S. l.], 19 fev. 2019a. 1 mensagem eletrônica.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Gestão em pauta: confira os últimos andamentos
da redistribuição temporária de ofícios e fusões. Destinatário: Maria Viveiros Peixoto
Volkmer Fell. [S. l.], 15 mar. 2019b. 1 mensagem eletrônica.
MIRANDA, Felipe Arady. Direitos fundamentais em tempos de crise econômico-
financeira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-
moderno: legitimidade: finalidade: eficiência: resultados. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
MUÑOZ, Jaime Rodríguez-Arana. Direito fundamental à boa administração pública.
Belo Horizonte: Fórum, 2012.
OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Responsabilidade civil do Estado: reflexões a partir do
direito fundamental à boa administração pública. Revista Brasileira de Direito Público -
RBDP, Belo Horizonte, ano 6, n. 21, p. 43-53, abr./jun. 2008. Disponível em: http://www.
direitodoestado.com.br/artigo/gustavo-henrique-justino-de-oliveira/responsabilidade-
civil-do-estado-ref lexoes-a-partir-do-direito-fundamental-a-boa-administracao-
publica. Acesso em: 2 set. 2020.
PGR-SECOM. Boletim MPF em Destaque. Destinatário: Maria Viveiros Peixoto Volkmer
Fell. [S. l.], 2 abr. 2019a. 1 mensagem eletrônica.
PGR-SECOM. Boletim MPF em Destaque. Destinatário: Maria Viveiros Peixoto Volkmer
Fell. [S. l.], 1º jun. 2019b. 1 mensagem eletrônica.
PGR-SECOM. Boletim MPF em Destaque. Destinatário: Maria Viveiros Peixoto Volkmer
Fell. [S. l.], 21 maio 2020a. 1 mensagem eletrônica.
PGR-SECOM. Boletim MPF em Destaque. Destinatário: Maria Viveiros Peixoto Volkmer
Fell. [S. l.], 11 jul. 2020b. 1 mensagem eletrônica.
PGR-SECOM. Boletim MPF em Destaque. Destinatário: Maria Viveiros Peixoto Volkmer
Fell. [S. l.], 15 ago. 2020c. 1 mensagem eletrônica.
PGR-SECOM. Boletim MPF em Destaque. Destinatário: Maria Viveiros Peixoto Volkmer
Fell. [S. l.], 1º set. 2020d. 1 mensagem eletrônica.
REGLA, Josep Agiló. Teoria geral das fontes do direito. Lisboa: Escolar Editora, 2014.
RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves. Ministério Público – funções extrajudiciais: histórico,
natureza jurídica, discricionariedade, limites e controle. Belo Horizonte: Fórum, 2015.
SOUZA, Alexander Araujo de. Ministério Público: de onde vim, quem sou, para onde
vou? Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 54, p.
3-32, out./dez. 2014.

503
SOUZA, Rodrigo Pagani de. Em busca de uma administração pública de resultados.
In: PEREZ, M. A.; SOUZA, R. P. de (coord.). Controle da administração pública. Belo
Horizonte: Fórum, 2017. p. 39-62.
TOMELIN, Georghio Alessandro. Escassez geral nas catástrofes: cidadãos sufocados
pelas prerrogativas da administração pública. In: WARDE, Walfrido; VALIM, Rafael
(coord.). As consequências da Covid-19 no direito brasileiro. São Paulo: Contracorrente,
2020. p. 35-65.

504
DIREITO À EDUCAÇÃO E ATUAÇÃO COORDENADA
DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (2001-2020)
Mario Luis Grangeia1

Sumário: 1 Introdução. 2 PFDC e especialização em grupos de trabalho. 3 Direito


à educação: prioridades de Grupo de Trabalho da PFDC. 4. MPF e direito à
educação: focalizando três momentos. 5 Discussão: do fortalecimento do MP à
atuação coordenada. 6 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O atual perfil do Ministério Público brasileiro remonta as inovações da
Constituição de 1988, reforçadas pela Lei Orgânica do Ministério Público da União
(Lei Complementar n. 75/1993) – o redesenho dos MPs estaduais partiu de outras
leis. Uma dessas mudanças foi a criação da Procuradoria Federal dos Direitos do
Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público Federal (MPF) para a defesa dos
direitos civis e sociais fixados no texto constitucional. Embora seja um marco do
fortalecimento do MPF fora da persecução criminal, a PFDC é relativamente pouco
estudada no Direito e nas Ciências Sociais. Aquela lei de 1993 definiu a designação
de um subprocurador-geral da República como procurador federal dos Direitos do
Cidadão e 27 procuradores da República como procuradores regionais dos Direitos
do Cidadão, para agirem nos Estados e Distrito Federal.
Como o MP decide suas prioridades e estratégias em prol da efetivação de direi-
tos fundamentais? A questão costuma ser vinculada à pulverização do poder do
órgão em milhares de autoridades, ao vácuo de leis e diretrizes (até de governos) e a
outros fatores. Quanto à atuação do MPF em prol do direito à educação, a questão
será interpelada a partir de uma vasta análise documental que permite atentar à
história do Grupo de Trabalho Educação, criado na PFDC em 2001 e renomeado
GT Educação em Direitos Humanos entre 2016 e 2020.2 Os documentos estudados
incluíram relatórios anuais (desde 2001), resoluções de encontros de procuradores
(desde 1998) e as atas de reuniões daquele GT que é o mais longevo grupo de traba-
lho ativo na PFDC.
Na seção 2, discute-se a atuação da PFDC, realçando seus GTs, que unem
procuradores dispostos a se especializarem na tutela de certos direitos. A seção 3

1 Doutor em Sociologia (UFRJ), pesquisador associado ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre


Desigualdade (NIED/UFRJ), analista de Comunicação do MPF desde 2005 e líder adjunto do GP
Movimentos Sociais (2019-2022) na Câmara de Desenvolvimento Científico da ESMPU.
2 Foi renomeado GT Educação e Direitos Humanos em agosto de 2020 (Portaria PFDC n.8/2020).

505
mapeia temas prioritários do GT Educação desde 2001, focalizando quão diversa
pode ser a atuação coordenada do MPF na defesa desse direito.3 Na seção 4, frisa-se
o percurso do GT a partir da seleção de três momentos: o ano inicial (2001), centrado
numa capacitação interna pela ESMPU; o ano atual (2020), com uma reestruturação
em andamento; e o ano intermediário (2011).
Ao completar dez anos, o GT fez um diagnóstico da atuação do MPF em
educação, que levou à criação do projeto MPEduc, executado pelo MPF e MPs
Estaduais em 371 municípios ou regiões até 2018 – o projeto foi pesquisado por este
autor e por pesquisadores da UFRJ com apoio da ESMPU.4 Ideias de autores das
Ciências Sociais sobre a autonomia do MP são interpeladas na seção 5, que retoma
proposições à tutela coordenada da educação pelo MPF derivadas daquela pesquisa
da ESMPU (GRANGEIA; CARVALHAES, 2019). A conclusão traz uma reflexão
que se julga promissora sobre a proteção coordenada de direitos.

2 ∙ PFDC E ESPECIALIZAÇÃO EM GRUPOS DE TRABALHO


Na tutela de direitos fundamentais, os procuradores federais e regionais dos
Direitos do Cidadão – na PFDC ou em sedes em capitais estaduais e DF – e seus
pares em outros municípios podem, por iniciativa sua ou representação alheia,
notificar autoridades para prestarem informação em determinado prazo. Após esse
retorno, o procurador deve avaliar se houve violação de direitos e notificar os res-
ponsáveis para a violação não persistir nem se repetir. Se não for atendido, cabe ao
procurador avaliar se a demanda é judicializável. Como a PFDC atua na coordena-
ção da proteção de Direitos do Cidadão, subsidiando essa atuação e articulando-a
em nível nacional (tal como as Câmaras setoriais do MPF), uma medida, desde os
anos 2000, foi a formação de grupos de trabalho (GTs) especializados em certos
temas; cada GT tem seus objetivos, prioridades e linhas de atuação.5
Na Agenda da Cidadania para 1999 (Brasil/MPF, 1998), ata de Encontro Nacional
dos Procuradores dos Direitos do Cidadão (ENPDC), os 56 membros signatários
viram 5 áreas como prioritárias: saúde; entidades filantrópicas e sua fiscalização;
direitos humanos e criminalidade; assistência social e pessoas com deficiência; e
reforma agrária. Em cada área, indicaram até uma dezena de estratégias de atuação.
Tais encontros tornaram-se periódicos e “marcados pela busca em definir com mais
precisão as matérias de atribuição dos PDC, de institucionalizar procedimentos,
de fixar prioridades e prazos, de autoavaliar-se”, segundo a então titular da PFDC,
Ela Wiecko (2006, p. 1). As resoluções desses eventos informam muito da defesa de
direitos constitucionais pelo MPF.

3 Mais informações sobre os trajetos dos GTs Educação e Saúde constam em Grangeia (2017).
4 Pesquisa “Diálogos institucionais para a efetivação de direitos: estudo do projeto Ministério
Público pela Educação” (v. GRANGEIA; CARVALHAES, 2019; GRANGEIA; CARVALHAES;
COELHO, 2020).
5 Visando à coordenação e revisão de trabalhos de PRDCs e membros atuantes em Direitos
do Cidadão (ex.: ratificando arquivamentos e declínios de atribuição), a PFDC criou, em 2013,
seus núcleos descentralizados (DF, RJ, SP, RS e PE). Entre a especialização temática em GTs e a
descentralização regional da PFDC, a primeira iniciativa é mais significativa.

506
Um desafio inicial da PFDC foi a formação de parcerias com instituições públi-
cas e da sociedade civil, nacionais ou não, em reforço à atuação do MP e sem perdas
à sua autonomia. Tal rede poderia, em tese, sujeitar o MP a riscos como a cooptação
e perda da inovação. Dificuldades da aliança foram citadas em relatório:
Passamos a conviver com grandes indagações, dúvidas e, por que não dizer,
algum descrédito advindo da sociedade com a própria capacidade de atuação
[...] pessoas, as instituições e organizações sentiram a paralisação dos projetos
que se encontravam em andamento (RPFDC, 2003, p. 3).
Uma ameaça frisada nesse relatório foi a falta de recursos de custeio de viagens
da titular da PFDC para acompanhar iniciativas fora de Brasília, o que foi sanado,
segundo o texto, com o apoio do Executivo.
As mudanças e continuidades nos GTs da PFDC podem ser captadas em um
exame sobre os anos de criação e término desses grupos (v. Tab. 1 e 2):

Tabela 1 ∙ Grupos de Trabalho da PFDC (2001-2020/1o sem.)


Grupo de Trabalho Ano de Grupo de Trabalho Ano de
(até 1o sem./2020) criação (Criados em 2001) término
Discriminação Racial
Comunicação Social 2004 2004
(depois, Discriminação)
Direito à Cidade e à
2018 Educação –
Moradia Adequada
Direitos da Criança Padronização de
2016 2004
e do Adolescente Ofícios da Cidadania
Direitos Sexuais e
2005* Políticas Públicas 2004
Reprodutivos**
Direitos Humanos Regramento do
2016 2003
e Empresas Inquérito Civil Público
Educação (Educação em Sistema Prisional e
2001 2004
Direitos Humanos, 2016-) Segurança Pública
Inclusão de pessoas
2005 Tortura 2004
com deficiência
Memória e Verdade 2010 Trabalho Escravo 2004
Migrações e Refúgio 2018
Prevenção e Combate à Tortura 2015
Reforma Agrária 2008
Saúde 2003
Saúde Mental 2017
* Outros GTs extintos no período: Alimentação adequada (2004-16), Efeitos da corrupção
(2002-4), Impactos sociais dos megaeventos e Moradia adequada (2010-12), Previdência e
assistência social (2006-16), Segurança pública (2005-07) e Sistema prisional (2007-15).
** GT extinto entre 2012 e 2016.
Fonte: elaboração própria baseada em Brasil/MPF, 2001, Brasil/PGR, 2020, portarias PFDC.

507
Tabela 2 ∙ Grupos de Trabalho da PFDC (2020/2o sem.)*
Grupo de Trabalho Grupo de trabalho (cont.)
Combate ao Racismo e
População LGBTI+: proteção de direitos
Promoção da Igualdade Racial
Mulher, Criança, Adolescente e Idoso:
Reforma Agrária e Conflitos Fundiários
proteção de direitos
Seguridade Social e População em
Prevenção e Combate à Tortura
Situação de Rua
Liberdades: consciência, crença e
Migração e Refúgio
expressão
Educação e Direitos Humanos Saúde Mental
Pessoas com Deficiência Direitos Humanos e Empresas
Memória e Verdade
* Além dos GTs, há duas Relatorias Temáticas: Assistência farmacêutica e medicamento de
alto custo; e Tráfico de Pessoas.
Fonte: elaboração própria baseada em Brasil/MPF, 2020.

3 ∙ DIREITO À EDUCAÇÃO:
PRIORIDADES DE GRUPO DE TRABALHO DA PFDC
Menos de um mês se passou entre a proposta de criar o GT Educação, no ENPDC
de 2001, até a portaria que o instituiu. O documento elencava cinco necessidades
para o grupo, iniciado com 17 membros: adotar iniciativas junto ao Governo Federal
para a Década das Nações Unidas para a Educação em Direitos Humanos (1995-
2004); estudar políticas e estratégias para garantir o acesso ao ensino público; dar
ênfase à inclusão escolar das pessoas com deficiência; assegurar a qualidade do
ensino em todos os níveis; e fiscalizar a aplicação de recursos e programas federais.
Diagnosticar a política nacional de educação, o acesso e a qualidade do ensino e a
gestão de recursos públicos era a meta inicial do GT, que logo pediu à Escola Superior
do Ministério Público da União (ESMPU) a oferta do curso “Educação como direito
humano”, para se capacitar, e escalou duas duplas de membros para estudarem
legislações e jurisprudências sobre ensino superior e verbas públicas da educação.
Também solicitaram às PRDCs que fizessem levantamentos de materiais de interesse
do GT e de entidades, governamentais ou não, atuantes na área educacional.
Um panorama de rotinas e critérios de reconhecimento de cursos superiores foi
traçado por técnicas do Ministério da Educação logo no início do GT, que, em 2002,
elegeu duas prioridades: programas e recursos federais no ensino básico (merenda, livro
didático, Fundef etc.) e superior (fundações de apoio, autonomia etc.). O grupo ressaltou
necessidades como a adaptação de métodos de ensino e convívio de alunos com e sem
deficiência – tal inclusão foi tema da cartilha “O acesso de pessoas com deficiência às
classes e escolas comuns da rede regular de ensino”, uma das primeiras publicações da
PFDC, com revisão de leis, orientações pedagógicas e outras a pais e docentes.

508
No terceiro ano do GT (2003), há relativa descontinuidade de prioridades em
relação a antes: fundações de apoio; exercício do poder de polícia pelo Ministério da
Educação; filantropia; e qualidade do ensino básico e equalização do acesso. Cada
tema foi estudado por um subgrupo que criaria um plano de ação do MPF. Outros
planos eram ter um minisseminário interno de apuração on-line do orçamento e
reunião com técnicos da Controladoria Geral da União.
Após três anos sem atividades registradas, o GT Educação foi recriado no fim
de 2006 a partir de uma portaria de 13 meses antes. Nenhum dos quatro membros
do biênio 2006-07 participara dos anos iniciais, o que afetava a atuação, sobretudo
a curva de aprendizado, do GT. Na tabela a seguir (Tab. 3), são resumidos temas
eleitos prioridades das duas versões do GT até 2020:

Tabela 3 ∙ GT Educação: temas prioritários (2001-2015)*


Período Temas prioritários
– Programas e recursos federais para ensino básico; e
2001-02
– Ensino superior.
– Fundações de apoio;
– Poder de polícia do MEC;
2003
– Filantropia; e
– Qualidade do ensino básico e equalização do acesso.
– Fundeb;
– Novas disciplinas (Filosofia, Sociologia, História e cultura
afro-brasileira);
2006-07 – Capacitação de professores em educação inclusiva;
– Cotas nas universidades;
– Bolsa Família; e
– Vestibulinhos.
– Política nacional de educação do adolescente em conflito com a lei;
2008-09 – Recursos constitucionais para educação (DRU); e
– Novas disciplinas e educação inclusiva.
– Capacitação docente para novas disciplinas;
– Bolsa Família;
– Diplomas médicos estrangeiros;
– Cartilha eletrônica;
2009-10
– Ensino a distância;
– Seleção de pós-graduação;
– Colégios militares;
– Política educacional para jovem em conflito com lei/Sinase.
– Instituições federais de ensino;
– Instituições privadas de ensino superior;
2011
– Programas do FNDE; e
– Avaliações como o Exame Nacional do Ensino Médio.

509
Período Temas prioritários
– Ensino de História e cultura afro-brasileira e indígena;
2012 – Acesso à informação de políticas educacionais; e
– Fiscalização do ENEM.
– Ministério Público pela Educação (MPEduc, lançado em 2014);
2013-15
– ENEM.
– Acesso democrático e isonômico a cursos de pós-graduação;
– Cobrança de valores em Colégios Militares e outras instituições oficiais;
– Educação profissionalizante para adolescentes em conflito com a lei;
– Capacitação de professores de Filosofia, Sociologia, História e cultura
2016-20*
afro-brasileira e indígena e Educação ambiental;
– Adesão ao sistema educacional de beneficiários do Bolsa Família;
– Revalidação dos diplomas de médicos formados em Cuba; e
– Qualidade do ensino universitário, incluindo ensino a distância.
* Renomeado como GT Educação em Direitos Humanos.
Fonte: elaboração própria baseada em RPFDCs, resoluções ENPDCs e atas de reuniões do GT.

No ENPDC de 2008, por exemplo, foram fixadas diretrizes de atuação aos pro-
curadores em diversos temas educacionais:
• Ensino de filosofia, sociologia, história e cultura afro-brasileiras e indígena:
membros orientados a fiscalizar o cumprimento das leis sobre as disciplinas
(ofício posterior propôs intercâmbios com MPs estaduais);
• Educação Inclusiva: acompanhar, com GT Inclusão, ações do MEC e Secretarias
para capacitar professores em educação inclusiva, Libras e Braille;
• Seleção de mestrados e doutorados: discutir com a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) a necessidade de só dar
bolsas às escolas que cumprem princípios da gestão pública;
• Cotas em universidades: verificar a situação normativa e jurisprudencial dos
estados na implantação de cotas étnico-raciais no ensino superior; e
• Recursos vinculados à educação: a) GT estuda possível representação para pro-
por ação direta de inconstitucionalidade contra norma da Desvinculação de
Recursos da União; e b) PDCs pretendiam averiguar descumprimentos locais de
percentuais mínimos da educação.
Resoluções como essas visavam “orientar atuações e a criar objetivos para a
temática dos direitos humanos”, como definiu Gilda Carvalho (2012), procuradora
federal dos Direitos do Cidadão entre 2008 e 2012. Segundo ela, as diretrizes con-
tribuíam à maior efetividade na missão do MP de zelar pelo respeito dos Poderes e
serviços de relevância pública a direitos constitucionais.

4 ∙ MPF E DIREITO À EDUCAÇÃO: FOCALIZANDO TRÊS MOMENTOS


Afinal, como a educação é vista por membros do MP? Para responder à questão,
analisam-se documentos e dados oficiais de três instantes das últimas duas décadas:

510
inicial (2001), atual (2020) e ponto médio (2011). O foco nesses três anos permite
lançar luz a uma gama de possíveis estratégias de atuação coordenada do MPF em
prol do direito à educação.

4.1 ∙ GT EDUCAÇÃO E INÍCIO DA ESPECIALIZAÇÃO


No relatório das atividades da PFDC em 2001, a pretensão declarada do GT é ampla:
análise e diagnóstico da política nacional de educação, do acesso e qualidade do
ensino e da gestão dos recursos públicos na área da educação, com o objetivo
de traçar linhas de atuação do Ministério Público Federal para a melhoria da
educação no País. (RPFDC 2001, p. 31).
Os membros planejavam o curso interno “Educação como direito humano” e estu-
davam as legislações e jurisprudências já referidas quando, na sua segunda reu-
nião, ouviram técnicas do MEC traçarem um panorama sobre o ensino superior,
focalizando rotinas e critérios de credenciamento e reconhecimento de cursos de
interesse de instituições de ensino. À época, planejavam reuniões com o Conselho
Nacional de Educação e o Fundo de Desenvolvimento da Escola – sem menções
depois – e definiram quatro pontos para atuar: parâmetros curriculares nacionais;
plano nacional do livro didático; educação de menores infratores; e estrutura e fun-
cionamento do ensino superior (atas não exibem processo decisório do GT).
O primeiro ano do GT foi apontado como “basicamente de capacitação” (Brasil/
MPF, 2006, p. 22): “todos acreditam que a capacitação oferecida mudou suas capacida-
des quanto à análise do assunto e que já estão prontos para a fixação de objetivos práti-
cos que se reflitam na atuação institucional”. Foram citados sem detalhamento pontos
a estudar mais: desvios de recursos;6 irregularidades em cursos superiores; falta de
vagas para cursos noturnos em instituições públicas; descumprimento da gratuidade
em instituições oficiais; excesso ou falta de vagas em certos locais; e falta de política de
capacitação de professores. Na reunião às vésperas do primeiro aniversário do GT, que
reuniu 19 de 24 membros, foi adiado o debate da ideia de divisão do grupo por ensino
básico e superior, que não se concretizou nas duas décadas seguintes.

4.2 ∙ MPF E DIREITO À EDUCAÇÃO: SONDAGENS EM 2011


Para promover direitos fundamentais, o MP usa audiências públicas, termos
de ajustamento de conduta e outras ferramentas no papel de “instância que agrega
esforços, visando construir uma base institucional para o cumprimento do direito”
(VIANNA; BURGOS, 2002). Um questionamento usual entre estudiosos do MP e
do Judiciário se refere a seus critérios, prioridades e estratégias na tutela de direi-
tos. Respostas parciais emergiram de enquete do Conselho Nacional do Ministério
Público (CNMP) sobre como membros do MP pontuam, em escala de 1 a 10, a
relevância e prioridade dos temas (v. Tabela 4).7

6 Decidiram iniciar troca de dados com GT Combate à Corrupção (2CCR) para evitar retrabalho.
7 Nessa enquete para o planejamento estratégico do MP, membros foram instados a classificar a
relevância e prioridade de 11 temas da atuação. Tais dimensões não se sobrepõem, pois um tema
pode ser avaliado relevante por membros que podem não ver urgência de MP atuar nele.

511
Tabela 4 ∙ Principais temas para membros do MPF (2011)
Tema Relevância Prioridade
Crime organizado 9,48 9,27
Fiscalização de contas públicas 9,27 9,06
Crimes contra a administração pública 9,24 9,09
Saúde 9,15 8,88
Patrimônio público 9,13 8,97
Lavagem de dinheiro 9,01 8,53
Educação 8,97 8,56
Controle externo da atividade policial 8,85 8,46
Tutela do meio ambiente 8,78 8,46
Crime contra sistema financeiro 8,75 -
Tráfico de drogas - 8,49
Fonte: Grangeia; Carvalhaes; Coelho (2020) com base em CNMP (2011, p. 148-151).
Membros do MPF viam a educação como secundária, segundo enquete do
CNMP para o Planejamento Estratégico do MP. Como mostra a Tabela 4, a maio-
ria julgava a educação menos relevante e prioritária do que temas como o crime
organizado, a fiscalização de contas públicas e o patrimônio público. Em 2011, tam-
bém o GT Educação captou, em levantamento para curso da ESMPU sobre direito
à educação, ministrado pelo procurador Sérgio Luiz Pinel Dias, então integrante
do GT, que raros membros do MPF atuam em temas da área fora do ensino supe-
rior, em que pese os vários programas federais focados na educação básica, como o
Programa Dinheiro na Escola. A Tabela 5 reúne os dados do GT sobre os níveis de
ensino com maior atuação do MPF.

Tabela 5 ∙ Atuação do MPF em educação, por nível de ensino (até 2011)


Tema Ações civis públicas Recomendações
Ensino Superior 76,83% (199) 79,14% (148)
Ensino Básico 10,42% (27) 7,48% (14)
Pós-graduação 5,79% (15) 5,34% (10)
Escolas Técnicas 5,79% (15) 8,02% (15)
(Total) 259 184
Fonte: Grangeia, Carvalhaes, Coelho (2020) com base em Pinel Dias (2011, p. 4 e 7).
Os focos mais comuns das ações e recomendações eram cobranças de taxas,
aval ao funcionamento de cursos, concursos, Fundo de Financiamento Estudantil e
pessoas com deficiência. Face a tal quadro, aquele integrante do GT Educação mos-
trou, na capacitação da ESMPU sobre o direito à educação, que haveria cinco possi-
bilidades de o MPF atuar no ensino básico: Programa Nacional do Livro Didático;

512
Transporte Escolar; Merenda Escolar; Programa Dinheiro Direto na Escola; e o
Plano de Ações Articuladas (PINEL DIAS, 2011).
A busca de suprir tal desatenção levou o GT Educação a criar o projeto Ministério
Público pela Educação (MPEduc), com o qual MPF e MPs estaduais buscaram firmar
a educação básica de qualidade como direito. Ele se desdobra em fases: apura dados
de condições das escolas; convoca audiências públicas para discutir a qualidade do
ensino; visita escolas para registrar suas condições e se aproximar da comunidade;
faz diagnóstico das principais demandas locais; expede recomendações para gesto-
res públicos sanarem as irregularidades; e convoca outra audiência para divulgar
iniciativas e omissões desses gestores.8

4.3 ∙ EDUCAÇÃO E DIREITOS HUMANOS: GT EM TRANSIÇÃO EM 2020


De 2016 até 2020, o GT Educação em Direitos Humanos priorizou, em atuação
citada em relatórios e outros documentos oficiais, uma gama de temas que incluem
desde o nível de acesso a cursos de pós-graduação até a adesão de beneficiários do
Bolsa Família às salas de aula, passando pela capacitação de professores de discipli-
nas mais recentes no currículo do ensino médio. Pelo rol de prioridades do GT nesse
período, percebe-se que a atuação coordenada em prol da educação contemplou
tanto o ensino superior como os outros níveis de escolaridade, o que tende a sugerir
uma menor concentração da iniciativa focada no nível superior, como verificou o
levantamento feito pelo GT em 2011.
Com o fim do biênio 2018-2020 na PFDC, a gestão que iniciou em 2020 teve a neces-
sidade de suprir o encerramento já previsto dos GTs anteriores e começou a estruturar
novos GTs (Portaria PFDC n. 8/2020, v. Tab. 2), que inclui o GT Educação e Direitos
Humanos, desdobramento do GT Educação (2001-2016) e GT Educação em Direitos
Humanos (2016-2020). A diretriz dele, oficializada naquela portaria de criação de GTs
e Relatorias Temáticas, é “atuar na promoção e defesa de uma educação voltada para a
cidadania e a democracia, em especial na superação de qualquer forma de discrimina-
ção e na promoção da cultura da paz e contra toda e qualquer forma de violência”.
Assim como nos cursos internos do GT quando de sua criação (2001) e 10o ani-
versário, a ESMPU volta a ser parceira em potencial do GT Educação – e demais
grupos de trabalho da PFDC, de acordo com o procurador federal dos Direitos
do Cidadão, Carlos Alberto Vilhena. Em notícia no portal do MPF, foi indicada a
expectativa de uma parceria com a ESMPU para aperfeiçoamento da atuação nas
matérias de direitos humanos. As frentes da cooperação previstas em notícia de
agosto de 2020 incluem, por exemplo, a proposta de cursos de capacitação e a publi-
cação de uma coletânea de artigos.

5 ∙ DISCUSSÃO: DO FORTALECIMENTO DO MP
À ATUAÇÃO COORDENADA
A primeira Lei Orgânica dos MPs nos Estados, de 1981, antecipou traços do MP
fixados na Constituição, como o princípio da unidade (expressão da vontade de cada

8 Para uma análise mais profunda sobre o MPEduc, ver Grangeia; Carvalhaes; Coelho (2020).

513
um vale como manifestação do MP), indivisibilidade (membros substituem seus pares
sem perdas ao caso, segundo normas internas e legais) e independência funcional
(não há submissão a ordens superiores sobre medidas a tomar). Essa lei uniformizou a
estrutura e competências do órgão e atendeu a reivindicações internas como a ocupa-
ção de cargos de chefia apenas pela categoria e benefícios relativos à saúde.9
Os instrumentos mais usados pelo MP na tutela dos interesses coletivos foram
criados pela Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985). Fruto de debate acir-
rado entre o anteprojeto de uma comissão de juristas e outro de promotores em
São Paulo, essa lei introduziu a ampla defesa de interesses coletivos, como saúde
e educação, meio ambiente, direito do consumidor, ordem urbanística. Com a
Constituição, o uso da Lei da ACP foi ampliado para a defesa de “outros interesses
difusos e coletivos” – defesa depois pautada em leis referentes a novos interesses
metaindividuais, como a lei sobre pessoas com deficiência, Código de Defesa do
Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente etc.

5.1 ∙ AUTONOMIA E DISCRICIONARIEDADE DO MP:


LEITURAS DAS CIÊNCIAS SOCIAIS
A renovação do MP a partir de 1988 não se deu sem divisões internas. Para
Sadek (2000), uns membros, pelo receio com a politização e midiatização do MP (e
abandono da atuação penal), defendem uma instituição mais sujeita a mecanismos
tradicionais de controle; outros, com olhar positivo aos avanços constitucionais,
preferem um órgão vocacionado à tutela dos interesses sociais.
Ao estudar a atuação dos promotores em São Paulo, Silva (2001) criou uma tipo-
logia de perfis diametralmente opostos de membros do MP (“promotor de fatos” e
“promotor de gabinete”) que contrasta visões frente às mais novas atribuições do
MP em prol da cidadania.
O tipo ideal promotor de fatos indica a tendência de alargamento das funções dos
promotores para muito além da esfera jurídica. O tipo ideal promotor de gabinete
indica a leitura das novas atribuições do promotor dentro da esfera jurídica e o
desconforto com as fronteiras imprecisas entre atribuições judiciais e extrajudi-
ciais. (SILVA, 2001, p. 22).
Na trajetória da PFDC e seus GTs, fica clara a sobreposição (esperável, por se
tratar de uma construção para fins analíticos) dos tipos ideais propostos por Silva.
A julgar por estratégias já discutidas outrora (GRANGEIA, 2017), um membro da
área de Direitos do Cidadão deve dosar sua face “promotor de fatos”, que valoriza
procedimentos extrajudiciais e age como articulador político e a face “promotor de
gabinete”, que privilegia uma atuação via autos judiciais.
A capacidade do MP de nacionalizar debates de políticas sociais a implantar foi
frisada por Casagrande (2008, p. 276): “em função desta grande capacidade de ali-
mentar os ‘fluxos de deliberação’ do sistema político que ganham relevo as ‘políticas

9 Sucessivas mudanças legais acomodaram anseios de seus membros. Também de 1981, a Lei da
Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/1981) inovou na regulamentação de direitos
difusos ao legitimar o MP como defensor dos direitos relativos a um meio ambiente saudável e lhe
ofereceu um novo instrumento: a ação de responsabilidade civil e criminal.

514
internas’ do Ministério Público, materializada pelo estabelecimento de programas
de ação e pautas de prioridades”. Além de reforçar a importância da coordenação de
questões prioritárias e estratégias, o autor, que é procurador do Trabalho, destacou
que o MP pode ter questionada a legitimidade de agir nos casos de “iniciativas indi-
viduais tomadas unicamente sob a bandeira da independência funcional [...] deslo-
cadas da realidade social e política” (Op. cit., p. 277). Daí o relevo da coordenação de
algumas atuações. Em certos casos, a atuação do MP pode ser legitimada igualmente
por meio de interações com instituições civis como ONGs, que podem ser pela via
judicial ou extrajudicial e menos ou mais formais (GRANGEIA, 2013), e com entes
públicos, como órgãos da área de educação, como o MPEduc pôde comprovar.
Interações como essas podem contribuir para a accountability do MP. Afinal,
como notou Kerche (2009), uma quase abdicação dos políticos sobre a instituição
protege-a razoavelmente de injunções político-partidárias, mas não afasta a neces-
sidade de prestar contas, até para evitar discricionariedades:
O argumento de que os promotores e procuradores somente cumprem a lei, não
precisando, por este motivo, de instrumentos de accountability, não se sustenta.
É a possibilidade de exercer a discricionariedade, somada à autonomia, aos ins-
trumentos de ação e ao amplo leque de atribuições, que transforma o Ministério
Público em uma organização pouco comum à democracia. (KERCHE, 2009, p. 70).
Embora a literatura que trata do MP no Brasil o defina como autônomo e discricio-
nário, tais conceitos foram pouco interpelados por trabalhos empíricos, numa lacuna
que se buscou reduzir com a já citada pesquisa da ESMPU sobre o MPEduc, cujas pro-
posições do par de autores (GRANGEIA; CARVALHAES, 2019) é retomada adiante.

5.2 ∙ ATUAÇÃO COORDENADA EM EDUCAÇÃO:


PROPOSIÇÕES DE ESTUDO DA ESMPU
Iniciativas como o projeto MPEduc permitem lançar novo olhar à atuação coor-
denada do MP em prol de direitos fundamentais. Em relação à educação, o refe-
rido estudo permite pensar, por exemplo, a articulação entre atores com expertises
distintas, a atualização e capacitação dos integrantes dos MPs, convergências de
atuações com a sociedade civil, entre tantos outros focos. Ao fim desta seção, cabe
repassar proposições extraídas da pesquisa da ESMPU:
• Especialização: o MP deve ter clareza de que diálogos institucionais se pautam
por agendas com interesses ora convergentes, ora divergentes e que dominar
Direito não inibe a autocrítica por desconhecer outras áreas do saber;
• Adaptabilidade: dada a heterogeneidade inerente à estrutura local do MP, a
coordenação de projetos nacionais deve avalizar adaptações, para evitar que o
modelo de iniciativa torne-se inibidor do trabalho, e não como acelerador;
• Institucionalização: deve-se cogitar criar Assessorias de Relações Institucionais
para perenizar canais de diálogo com instituições, sem deixar à mercê de víncu-
los pessoais que membros possam formar com atores locais;
• Focalização: iniciativas como o MPEduc devem equilibrar capilarização e
aprofundamento, sob o risco de inquéritos civis abertos serem numerosos, mas
pouco avançarem (“menos é mais” é expressão que traduziria essa ideia);

515
• Relações horizontais: articulação com atores estatais e da sociedade civil deve
ocorrer com a disponibilidade para trocas horizontais, em vez de se impôr
visões normativas;
• Subdivisão: deve-se replicar aprendizado valioso do MPEduc que é olhar muni-
cípios populosos de forma plural, tornando diálogos mais eficazes; e
• Articulação: coordenações de projetos nacionais devem ser equipadas à altura
do escopo, de modo que sejam instâncias de mais articulação do que de mera
homologação (ou não) de iniciativas locais.

6 ∙ CONCLUSÃO
A coordenação dos membros do MP por GTs especializados em certos direi-
tos fundamentais favorece enfrentar dois desafios tão correntes dentro do órgão: a
rotatividade de membros por promoções e remoções; e inadequação, para a defesa
de direitos difusos, de instrumentos adotados pelo MP na esfera penal. Com a inte-
gração viabilizada por GTs e outras estruturas, busca-se inibir o risco de perdas
decorrentes da rotatividade e se provê instrumentos para a atuação judicial ou
extrajudicial. É comum medidas extrajudiciais sucederem tentativas frustradas ou
ainda pendentes de resposta do Judiciário. Em outros casos, tais iniciativas vêm
da avaliação de que a Justiça, quando tarda, se torna falha. De um modo ou outro,
busca-se justiça sem ingressar no Judiciário.
O desenvolvimento da PFDC, como se vê na história do GT Educação, ilustra
de maneira exemplar potencialidades do MP abertas pelo constituinte e expandidas
desde então pela legislação infraconstitucional e regulamentações internas. Este
estudo ilumina efeitos práticos do processo de fortalecimento do MP ainda anterior
à Constituição. Mas, se a ampliação dos poderes do MP é insuficiente para explicar
a atuação na esfera não penal, um exame sobre mecanismos de especialização de
seus membros traz subsídios úteis para uma compreensão mais ampla de desempe-
nhos mais recentes desse ator político.
O acompanhamento do GT Educação põe em relevo desde uma ruptura na
curva de aprendizado, como a inatividade do grupo entre 2003 e 2006, até a per-
sistência de determinadas pautas. A trajetória do GT avança de uma capacitação
interna até uma conscientização externa do direito à educação, via MPEduc e outras
iniciativas. Relatórios, resoluções, atas de reuniões e outros materiais analisados
foram claros sobre critérios, prioridades e estratégias de defesa de direitos sociais,
interpelando indagações internas e externas.
A trajetória do GT Educação/Educação em Direitos Humanos atesta que não se
trata apenas de conciliar garantias a indivíduos e ao processo legal com a atuação
proativa para a efetivação de direitos. Há dissensos até naturais sobre fins e meios
usados para tutelá-los. Um desafio da atuação coordenada no MPF é equilibrar os
princípios da independência funcional e da unidade para o primeiro não gerar uma
desarticulação e o segundo não inibir sua autonomia.
Em resposta a questionamentos sobre a legitimidade da intervenção do MP
em certas causas, é imprescindível a especialização de seus membros, com cursos,
intercâmbios com especialistas, estudos, manuais de atuação – o que torna até mais

516
meritório o plano atual de parceria entre a PFDC e ESMPU. A atual condição de
o GT Educação e Direitos Humanos estar aberto a novas prioridades e estratégias
pode ser vista como uma oportunidade de dar ênfase a trocas com outros atores
especializados. Ao ver a pauta aberta como virtude, vinculada à pretensão de maior
participação social, realça-se aqui quão válido é afastar o risco de se ater ao direito à
educação no plano teórico, e não prático – risco esse bem enunciado pelo educador
Paulo Freire (1996, p. 25): “A teoria sem a prática vira ‘verbalismo’, assim como a
prática sem teoria vira ativismo. No entanto, quando se une a prática com a teoria
tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade.” A atuação coorde-
nada do MPF na tutela do direito à educação e outros direitos fundamentais será,
ainda mais do que tem sido, um meio de articular esses polos.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério Público Federal. PFDC: Grupos de trabalho e relatorias temáticas.
Brasília: MPF, 2020. Disponível em: www.mpf.mp.br/pfdc/gts-e-relatorias. Acesso: ago. 2020.
BRASIL. Ministério Público Federal. Agenda da cidadania para 1999. Brasília: MPF, 1998.
BRASIL. Procuradoria Geral da República. PFDC: Grupos de trabalho e relatorias
temáticas. Brasília: PGR, 2020. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/institucional/
grupos-de-trabalho/gts/. Acesso: ago. 2020.
BRASIL. Procuradoria-Geral da República. Grupos de trabalho: Educação (2001-03).
Brasília: PGR, 2006. Disponível em: http://midia.pgr.mpf.gov.br/pfdc/gt_encerrados/
gt_enc_educacao.pdf. Acesso: ago. 2020.
CARVALHO, Gilda. Apresentação. In: BRASIL/MPF. Diretrizes temáticas PFDC.
Brasília: MPF, 2012.
CASAGRANDE, Cassio. Ministério Público e a judicialização da política: estudos de
caso. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
GRANGEIA, Mario Luis. Entre gabinetes e fatos: Ministério Público Federal e direitos
à educação e saúde. Revista Brasileira de História e Ciências Sociais. v. 9, n. 18. 2017. p.
116-136.
GRANGEIA, Mario Luis; CARVALHAES, Flavio. Dialogando por direitos: ativismo do
Ministério Público à luz do projeto MP pela Educação (MPEduc). (Artigo final de Pesquisa
Científica Aplicada). Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2019.
GRANGEIA, Mario Luis; CARVALHAES, Flavio; COELHO, Ruan. Alcance e limites do
ativismo do Ministério Público como fiscal da educação. Dilemas: Revista de Estudos de
Conflito e Controle Social. [no prelo].
KERCHE, F. Virtudes e limites: autonomia e atribuições do Ministério Público no Brasil.
São Paulo: Edusp, 2009.
PINEL DIAS, S. L. Curso direito à educação: panorama das ações do MPF em educação.
Brasília: ESMPU, 2011. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/informacao-e-
comunicacao/eventos/apresentacao-gt-educacao.pdf. Acesso em: ago. 2020.

517
SADEK, Maria Tereza. Cidadania e Ministério Público. In: SADEK, M. T. (org.). Justiça
e cidadania no Brasil. São Paulo: Sumaré/Idesp, 2000. p. 11-37.
SILVA, Cátia A. Justiça em jogo: novas facetas da atuação dos promotores de Justiça. São
Paulo: Edusp, 2001.
WERNECK VIANNA, Luiz; BURGOS, Marcelo B. Entre princípios e regras: cinco
estudos de caso de ação civil pública. Dados. v. 48, n. 4. 2005. p. 777-843.
WIECKO, Ela. Palestra de abertura do XII ENPDC. Brasília: MPF, 2006.

518
CIDADANIA E O NOVO NORMAL
Da justiça cosmopolita às práticas de efetividade jurisdicional

Matheus Muniz Guzzo1

“Precisamos do conhecimento, visão e experiências de todos para responder às


perguntas para as quais não temos resposta e para identificar as perguntas que
ainda nem percebemos que temos que fazer.”
(Tedros Adhanom, Diretor-Geral da
Organização Mundial da Saúde)

Sumário: 1 Introdução. 2 Justiça e cidadania cosmopolitas. 3 Pandemia, cooperação e


Judiciário internacional. 4 Protagonismo do Poder Judiciário brasileiro. 5 Considerações
finais e transitórias.

1 ∙ INTRODUÇÃO
De princípio, necessário se faz estabelecer o conceito de “comum”. Com efeito,
é como um: o que o outro tem de mim e me identifico (NOVO NORMAL..., 2020).
Nessa relação íntima entre o outro e o eu, o ser humano busca alguma forma de
similitude no próximo para estreitar os laços de afeição entre si, ou mesmo criar
barreiras à inclusão do diferente, formando, nesse viés, um padrão comportamental
adequado a dadas circunstâncias de tempo e lugar.
O que é comum nem sempre é normal, entretanto. A ideia de normalidade nasce
para estabelecer um ambiente de convívio social saudável, no qual as pessoas pos-
sam livremente exercer os seus direitos assegurados em dada ordem jurídica. “A
normalidade, portanto, seria a constituição de um padrão que assegura às pessoas
que estão contidas nele uma certa proteção, segurança, continuidade, e, portanto,
sobrevivência”2 (NOVO NORMAL..., 2020).
É nesse sentido de normalidade que, v.g., o legislador busca no comportamento
socialmente aceito a eleição dos bens jurídicos mais importantes a serem tutelados
na fragmentária seara criminal. Nessa direção, “o pensamento jurídico moderno
reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção
de bens jurídicos essenciais ao indivíduo e à comunidade” (PRADO, 1999, p. 47).

1 Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito.


2 Maria Aparecida Schirato (NOVO NORMAL..., 2020) ensina que o novo, de alguma forma,
desinstala o indivíduo do que já conhece. Com o novo, ele espera um padrão de vida que não
lhe pertence ainda. O novo vem carregado de necessidade de mudança, e a mudança é algo
profundamente traumático e assustador.

519
Ocorre que a comunidade internacional depara hoje com um cenário jamais
visto nas mesmas dimensões. A pandemia de Covid-19 surge para reformular aque-
les padrões comportamentais outrora enrijecidos em um status de regularidade,
obrigando o homem ao – inimaginável – isolamento social, à busca desenfreada
de tratamentos imunológicos e médico-hospitalares, ao desenvolvimento de planos
públicos e privados para a sustentação da economia e ao acordo internacional de
cooperação entre os povos.
Tamanhas mudanças refletem diretamente no exercício da jurisdição, que é a
forma de que o Direito se vale para solucionar os conflitos, mediante a substituição
da vontade das partes por um terceiro imparcial. Atentos à transformação do novo
tempo, juízes, promotores, defensores, advogados, serventuários, jurisdicionados,
enfim, todos devem valer-se de seus indispensáveis papéis para contribuir com o
enfretamento da pandemia da forma menos traumática possível, e, por que não,
viver o que de bom pode resultar o novo.

2 ∙ JUSTIÇA E CIDADANIA COSMOPOLITAS


Numa das mais importantes obras da filosofia política do pós-guerra, a Teoria
da Justiça, o norte-americano John Rawls (1997) defende a concepção de justiça
seguindo um viés social de distribuição das parcelas de poder, fundada em prin-
cípios suficientes a assegurar direitos fundamentais e impor obrigações recíprocas
para a pacificação social.
Rawls inaugura sua obra lapidando cara definição:
A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos
sistemas de pensamento. Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser
rejeitada ou revisada se não é verdadeira; da mesma forma leis e instituições, por
mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas
se são injustas. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que
nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa
razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem
maior partilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns pou-
cos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos.
Portanto numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas
invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação
política ou ao cálculo de interesses sociais. A única coisa que nos permite acei-
tar uma teoria errônea é a falta de uma teoria melhor; de forma análoga, uma
injustiça é tolerável somente quando é necessária para evitar uma injustiça ainda
maior. Sendo virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça
são indisponíveis. (RAWLS, 1997).
À luz da inviolabilidade individual fundada na justiça, de que cada pessoa é
portadora e que não pode ser lançada à margem do regramento, existem certas
garantias individuais impassíveis de supressão em absoluto, ainda que no escopo
de proteger outros direitos. Sistematicamente, pode-se vislumbrar no art. 64, § 4º,
da Constituição Federal as chamadas cláusulas pétreas, em que o constituinte ori-
ginário, preocupado com a defesa dos direitos fundamentais, principalmente após
um período de limitação de garantias, resguardou sob o pálio da Carta Magna a
existência desse núcleo duro de direitos assegurados indistintamente a todos.

520
Nessa senda, os direitos amparados pela justiça não estão sujeitos ao acordo polí-
tico ou ao cálculo de interesses sociais, sendo, portanto, invioláveis (RAWLS, 1997).
Dentro da ideia de justiça equitativa, a liberdade – indisponível em um regime
democrático – se irradia à natureza jusfilosófica de cidadania. Paulo Bonavides
(BONAVIDES; MIRANDA; AGRA, 2009) ensina que o conceito contemporâneo de
cidadania seguiu em direção a uma perspectiva em que os cidadãos não são apenas
aqueles que votam, mas toda e qualquer pessoa que tem meios de exercer esse direito
de forma consciente e participativa. Assim, cidadania é o requisito de acesso aos
direitos sociais, como educação, segurança e previdência, e aos direitos econômicos,
tais quais o salário justo e o emprego, que permitem o desenvolvimento de todas as
potencialidades dos cidadãos, incluindo a participação ativa, organizada e cons-
ciente da construção da vida coletiva na democracia (BONAVIDES; MIRANDA;
AGRA, 2009).
A garantia das liberdades fundamentais, a igualdade de oportunidades e o tra-
tamento favorecido dos menos favorecidos alicerçam a ideia de justiça equitativa,
que pretende a formação de uma sociedade igualitária, onde os indivíduos possam,
de fato, fazer uso dos recursos naturais e artificiais de forma solidária e renovável.
Por força disso, todos os cidadãos teriam acesso aos direitos sociais e econômicos
ofertados pela comunhão de pessoas, organização essa que contaria com a sua inter-
venção positiva, culminando na tomada de decisões democráticas.
Não obstante a incansável busca pela definição acadêmica de cidadania, vez ou
outra associada aos elementos nacionalidade, política e povo, certo é que, a despeito
desse tecnicismo, se tem procurado cada vez mais a tutela dos valores dela inerentes.
Já em 1789 a revolucionária Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen
(Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão), no seu artigo VI, previa que a
lei deve ser igual para todos e assegura aos cidadãos a igualdade de dignidades, sem
distinção que não seja dos seus atributos pessoais. Vê-se, tal como está escrito:
La loi est l’expression de la volonté générale; tous les citoyens ont droit de con-
courir personnelement, ou par leurs représentants à sa formation; elle doit être
le même pour tous, soit qu’elle protège soit qu’elle punisse. Tous les citoyens étant
égaux à ses yeux, sont également admissibles à toutes dignités, Área Cível 3 places
et emplois publics, selon leur capacité, et sans autres distinctions que celles de leurs
vertus et de leurs talents.
Nessa esteira, se ausente o exercício da cidadania, torna-se impossível conceber
em qualquer fase da história moderna uma comunidade guiada pelo bem comum,
ante a própria falta da comunhão de pensamentos para a formação do aspecto de
normalidade. O cidadão assume função imprescindível na formatação do social-
mente aceito; mais que isso, do socialmente esperado, principalmente na relação
vertical com o Estado, pois carece deste a proteção dos seus direitos mais caros. A
afirmativa remonta ao pensamento rousseauniano sobre a teoria do contrato social:
Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum
a pessoa e os bens de cada associado e em que cada uma, ao unir-se a todos, só a
si mesmo obedeça e continue tão livre como antes. Tal é o problema fundamental
que no Contrato Social encontra solução. (ROUSSEAU, 2010).
Os anseios sociais do mundo contemporâneo exigem, na linha do exposto, a ideali-
zação de um novo projeto prático para a efetividade dos direitos individuais alcançados

521
na evolução histórica. No século XXI, a ampliação dos meios de acesso às tecnologias
modificou intimamente a comunicação, permitindo a interação dos povos em tempo
real. Constrói-se, pois, um ambiente internacional público, onde as diferenças e identi-
dades culturais dialogam mutuamente, numa troca imediata de informação.
Esse vaivém de conteúdo altera constantemente a vida das pessoas. E, justa-
mente em razão disso, deve-se questionar: os benefícios desse conjunto de tecnolo-
gias obedecem à igualdade plural?
No livreto A paz perpétua (1795), após desenvolver os artigos sobre o direito
interno de um país, da forma republicana, e a formação da federação de Estados
livres para o direito internacional, Immanuel Kant inaugura a teoria do cosmopoli-
tismo dentro da ideia de sociedade sem fronteiras. Soraya Nour (2003) resume com
maestria o pensamento kantiano:
O terceiro artigo definitivo é assim formulado: “o direito cosmopolita deve se
limitar às condições de uma hospitalidade universal” (Kant, 1795:357). Ele é
estabelecido a partir do princípio de que todos, originariamente, têm o mesmo
direito sobre o solo (Kant, 1797:352) e, assim, “ninguém tem mais direito que um
outro de estar em um lugar da Terra” (Kant, 1795:358). O direito sobre o solo não
é um “direito adquirido” (Kant, 1797:238), como o que se pode ter sobre coisas,
que é tratado pelo “Direito Privado” de Kant, mas sim um direito decorrente do
direito à liberdade, um “direito originário”. Deste direito decorre o direito sobre
o próprio corpo e, como o corpo precisa de espaço, a propriedade originária
coletiva sobre o solo (Kant, 1797:353). Disso se origina o “direito de visita” (Kant,
1795:358), ou seja, o direito do cidadão da Terra de tentar a comunidade com
todos e, para esse fim, de visitar todos os lugares da Terra (Kant, 1797:353), bem
como o “direito à hospitalidade” (Kant, 1795:358), ou seja, o direito de, nessa
tentativa de se relacionar com o outro, não ser tratado pelo estrangeiro como ini-
migo (Kant, 1797:352). A lesão ao direito, nesse caso, ocorre quando o que chega
a um lugar não é aceito pelos que ali já estão. (NOUR, 2003, grifos do original).
Nessa linha, o ciberespaço e a ciberdemocracia tornam possível o Direito
Cosmopolita, uma vez que facilitam o diálogo de informações entre os cidadãos
da terra. A cooperação de homens e mulheres planetários em prol da hospitalidade
ampla, possivelmente viabilizada, concretiza o Direito Cosmopolita, a depender do
fator tempo e da vontade política de todos nós (ALMEIDA, 2003).
Esse diálogo internacional jamais se mostrou tão audível como no ano de 2020.
Surge, portanto, a necessidade de efetivar-se a cooperação internacional das nações,
marcando um divisor de águas nos rumos da humanidade, quando, pela força do
invisível, homens e mulheres se veem obrigados à ampliada hospitalidade universal.
Percebe-se, à clarividência, que o sistema de marginalização social não encontra
alicerce quando a humanidade é abalada pelo seu bem mais relevante: a vida. E, já
não vale a defesa individual pelo instinto de sobrevivência, inútil se não observada
à luz da conscientização coletiva.

3 ∙ PANDEMIA, COOPERAÇÃO E JUDICIÁRIO INTERNACIONAL


No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a
elevação do estado de contaminação à pandemia de Covid-19, doença causada pelo
novo coronavírus (Sars-CoV-2). Naquela ocasião, o diretor-geral da OMS, Tedros

522
Adhanon Ghebreyesus, alertou: “Pandemia não é uma palavra para ser usada à
toa ou sem cuidado. É uma palavra que, se usada incorretamente, pode causar um
medo irracional ou uma noção injustificada de que a luta terminou, o que leva a
sofrimento e mortes desnecessários”.3
Dois dias após a declaração do diretor-geral, a OMS declarou que a Europa se
havia convertido no novo epicentro da pandemia.
Entre 18 e 19 de maio de 2020, na 73ª Assembleia Mundial da Saúde, a primeira a
ser realizada virtualmente, uma resolução histórica foi aprovada para unir o mundo
na luta contra a pandemia de Covid-19, copatrocinada por mais de 130 países – o
maior número já registrado – e adotada por consenso. Quatorze chefes de Estado
participaram das sessões.4 No discurso de encerramento, Tedros Adhanom exclamou:
O COVID-19 tirou de nós as pessoas que amamos. Ele nos roubou vidas e meios de
subsistência; abalou os pilares do nosso mundo; e ameaça destruir o tecido de nossa
cooperação internacional, mas também nos lembrou que, apesar de todas as nossas
diferenças, somos uma raça humana e somos mais fortes quando estamos unidos.5
Até o encerramento deste artigo, a Johns Hopkins University & Medicine, res-
ponsável pelo Coronavirus Resource Center, contabilizava mais de 26 milhões de
casos confirmados e mais de 860 mil mortes provocadas pela Covid-19 no mundo.6
Nessa disseminação desmedida de sofrimento e angústia, o coronavírus finca
um marco definitivo na cosmopolia das relações humanas, consagrando a hospita-
lidade recíproca agora cabalmente necessária. Os povos de todo o globo, ameaçados
em conjunto, quiçá do próprio extermínio da raça humana, unem-se em esforços
comuns para a busca de soluções concretas para a salvaguarda da vida, afinal, a
doença não enxerga os padrões sociais normatizados pela civilização, bastando a
ela o simples e frágil conjunto de atributos biológicos do corpo. De uma forma ou
outra, pelo vírus, põe-se o homem em pé de igualdade; pés descalços de humildade.
O impacto econômico e social torna-se evidente no gritante número de vítimas,
na redução de empregos, na queda de arrecadação pública e privada, no aumento do
número de infrações penais, no medo, na ansiedade e na depressão. Como se não
bastasse, acusações de corrupção na saúde pública, devastações ambientais, desvio de
poder e ofensas aos direitos humanos internacionais encontram espaço para o boom no
terreno de instabilidade político-social criada pelo sofrimento, pela dor e pelo medo.
Como asseverado alhures, numa sociedade justa, as liberdades da cidadania
são consideradas inderrogáveis. Se nesse sistema de repartição de poderes em que
o exercício do comando é transferido para determinados agentes, que deveriam
zelar pela tutela das garantias individuais, tal sistemática não ocorre, surge o Poder
Jurisdicional como grande zelador e promotor dos direitos fundamentais.

3 Disponível em: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks


-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020. Acesso em: 12 jul. 2020.
4 Disponível em: https://www.who.int/es/news-room/detail/29-06-2020-covidtimeline. Acesso em:
12 jul. 2020.
5 Disponível em: https://www.who.int/es/news-room/detail/19-05-2020-historic-health-assembly-
ends-with-global-commitment-to-covid-19-response. Acesso em: 12 jul. 2020.
6 Disponível em: https://coronavirus.jhu.edu/. Acesso em: 3 set. 2020.

523
O professor Pedro Lopes Ferreira, diretor do Centro de Estudos e Investigação em
Saúde da Universidade de Coimbra, atento às particularidades da União Europeia,
especialmente no que concerne aos efeitos da pandemia em Portugal, alerta:
Se quisermos sobreviver em termos de saúde e politicamente, os nossos legislado-
res e dirigentes políticos têm de alterar substancialmente a forma como encaram
o setor da saúde na sociedade portuguesa. A experiência que estamos a viver bem
demonstra que a frase “a saúde em todas as políticas, todas as políticas na saúde”
da OMS faz cada vez mais sentido. A experiência atual revela que é imperioso
que o Ministério da Saúde ascenda a posições superiores na hierarquia interna
dos governos em Portugal. É urgente o desenvolvimento de políticas inovado-
ras e serviços públicos personalizados para a pessoa idosa e dependente, bem
como medidas direcionadas para a habitação, o emprego, a assistência médica,
as infraestruturas, a proteção social e a melhoria das condições dos lares, entre
muitas outras. (FERREIRA, 2020).
Cabendo, assim, ao Judiciário uma prestação pública célere e atenta às vivências
da sociedade em tempo real, é hora de uma efetiva mudança nas maneiras com as
quais o poder estatal é desempenhado. Novos tempos exigem, pois, novas posturas.
Em Portugal, entre as inúmeras medidas adotadas pelas autoridades públicas
destacam-se aquelas atinentes à seara penal, que visam prevenir os riscos de contá-
gio que incidem sobre a população prisional portuguesa. Num primeiro momento,
a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais aprovou várias medidas que
visam diminuir os riscos de introdução do coronavírus no sistema prisional a partir
do exterior. No dia 10 de abril, por iniciativa do governo, a Assembleia da República
aprovou um “Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das
medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19” (Lei n. 9/2020,
de 10 de abril de 2020).7
Em busca da redução do efetivo carcerário lusitano, a Lei n. 9/2020 dispôs no
seu artigo 2º que são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por deci-
são transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos, dentre outras
medidas de perdão parcial de penas de prisão, regime especial de indulto das penas,
regime extraordinário de licença de saída administrativa de reclusos condenados e
antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional.
De outro continente, a justiça norte-americana inaugurou, também, novos capí-
tulos nos anais da Suprema Corte.
A título de exemplo, a discussão final das causas (oral arguments) era apresen-
tada em audiência presencial perante os nove ministros (justices) da Suprema Corte
dos Estados Unidos. A realização desse ato físico bem ilustra como é – ou era – a
preservação da praxe forense pelo tribunal estadunidense.
Com a expansão do coronavírus e a consequente necessidade de adoção de
medidas de prevenção, partindo precipuamente dos poderes instituídos, a Corte
deu um relevante passo para a modernização do seu sistema de justiça, como regis-
tra José Rogério Cruz e Tucci:

7 Disponível em: https://dre.pt/pesquisa/-/search/131338919/details/maximized. Acesso em: 13 jul. 2020.

524
Pois bem, por força do distanciamento social também recomendado na cidade de
Washington, quebrando secular tradição, a Suprema Corte norte-americana, no
último dia 4 de maio de 2020, determinou que a sessão de apresentação dos oral
arguments passasse a ser realizada por meio virtual remoto, restringindo-se ao áudio,
disseminado ao vivo pela internet. E, de fato, a primeira sessão de debates nesse
sistema inédito foi o de n. 19-46, U.S. Patent and Trademark Office v. Booking.com,
cuja questão central pode ser resumida na viabilidade ou não de registro do domínio
eletrônico booking.com. [...] Por fim, apresentada a síntese dos argumentos pela advo-
gada da demandada, a discussão, que durou aproximadamente 1h15m, foi encerrada
pelo ministro presidente, declarando apenas: “case submited”, ou seja, processo já
submetido à corte e concluso para a prolação do veredito. (TUCCI, 2020).
Os oral arguments apreciados virtualmente pela Suprema Corte Americana
representam um icônico marco no processo de informatização do plexo judiciá-
rio, servindo o case de referencial plenamente viável para a atualização da defasada
forma de composição dos conflitos pela substituição das partes, dentro de um pro-
cesso extenso e demorado, caracterizado pelo contato pessoal e pelo uso exacerbado
de materiais de consumo.
Tribunais de todo o mundo editaram normas que viabilizassem o exercício da
atividade judicante, como a redução dos expedientes forenses, a suspensão de pra-
zos processuais, a virtualização dos processos físicos, o desenvolvimento remoto
das atividades laborais, entre tantas outras ações criativas que, sobretudo, revela-
ram-se eficazes para a manutenção do estado de direito.

4 ∙ PROTAGONISMO DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO


Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano
de 2019 a extrema pobreza subiu no Brasil  e já somava 13,5 milhões de pessoas
sobrevivendo com até R$ 145,00 mensais. A desigualdade é gritante. Como, então,
levar àquelas pessoas a prestação jurisdicional efetiva, garantindo-lhes seus direitos
fundamentais conquistados numa história chagada pela discriminação social e pelo
seletivismo político?
Atento às mudanças introduzidas pelo “novo normal” e obediente ao seu mister
constitucional, o Judiciário brasileiro inaugurou uma série de medidas para viabili-
zar o acesso à justiça, contribuindo enormemente para a manutenção dos direitos e
garantias fundamentais no Brasil.
O Supremo Tribunal Federal (STF) lançou no dia 27 de março de 2020 o “Painel
de Ações Covid-19”, uma plataforma dinâmica e interativa em que é possível acom-
panhar as ações perante a Corte relacionadas à pandemia do coronavírus, com
atualização automática a cada cinco minutos. O mecanismo alerta os gabinetes dos
ministros quando uma ação ou petição tem relação com a pandemia, impulsio-
nando o trabalho dos gabinetes, que têm dado preferência a esses pedidos.8
Até o fechamento deste artigo, o portal do STF apresentava os seguintes núme-
ros e gráficos:

8 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=440336&
ori=1. Acesso em: 13 jul. 2020.

525
Fonte: https://transparencia.stf.jus.br/extensions/app_processo_covid19/index.html. Acesso
em: 3 set. 2020.
Dentre tantas decisões de relevo imensurável, destaca-se a condução da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 709, que tem por objeto
um conjunto de ações e omissões do Poder Público que implicariam alto risco de
contágio e de extermínio de diversos povos indígenas. Em decisão proferida no dia
10 de julho de 2020, o ministro Luís Roberto Barroso deferiu parcialmente uma
série de medidas cautelares em defesa à dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º,
inc. III), aos direitos à vida (CF, art. 5º, caput) e à saúde (CF, arts. 6º e 196), bem
como ao direito dos povos indígenas de viverem em seu território, de acordo com
suas culturas e tradições (CF, art. 231).
O relator deferiu medidas como a criação de barreiras sanitárias, a constituição
da Sala de Situação, a inclusão, no Plano de Enfrentamento e Monitoramento da
Covid-19 para os Povos Indígenas, de medida emergencial de contenção e isola-
mento dos invasores em relação às comunidades indígenas ou de providência alter-
nativa apta a evitar o contato e determinou à União que formule, no prazo de até
trinta dias, um plano de enfrentamento da Covid-19 para os povos indígenas brasi-
leiros, com a participação do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) e
de representantes das comunidades indígenas.9
Uma das principais mudanças na realidade do Judiciário brasileiro foi a imple-
mentação e o incentivo à virtualização dos autos físicos de processos judiciais.
Em entrevista ao Boletim Extra da Associação de Magistrados do Estado do
Rio de Janeiro (AMAERJ), o presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro (TJRJ), desembargador Cláudio de Mello Tavares, revelou considerar
que a pandemia do coronavírus definiu “uma nova normalidade para os serviços
judiciais”: a “realidade digital”. Para o presidente do TJRJ, o Judiciário passou nos

9 Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343710124&ext=.pdf.


Acesso em: 13 jul. 2020.

526
últimos três meses pela maior transformação digital vista na última década, deman-
dando o novo tempo celeridade processual. Cláudio de Mello apontou a tecnologia
como um ator relevante nesse processo de adaptação:
Durante este período foram prolatadas no Judiciário nacional mais de 5 milhões
de sentenças e 8 milhões de decisões. Só no TJRJ foram aproximadamente 430 mil
sentenças e 440 mil decisões. Muitas vezes o que a crise traz não é uma transfor-
mação total das realidades, mas, sim, uma aceleração de realidades que já aponta-
vam cenários de futuro. Alguns exemplos são o trabalho remoto (home office) e a
economia freelancer, com o enfraquecimento das organizações e a necessidade de
trabalhar de forma independente. Isso gera vários desafios para a economia, para
a sociedade e para o Judiciário. O interessante é a reflexão sobre um novo contexto
de mundo, uma nova normalidade e uma nova realidade, pós-Covid-19. Nesse
ponto destaca-se cada vez o comprometimento de uma prestação jurisdicional
célere e efetiva e também a busca por medidas alternativas de solução de conflito.10
O espírito de solidariedade também invadiu os muros das instituições essen-
ciais. A Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (AMPERJ)
iniciou no mês de abril campanha destinada a recolher fundos em prol da população
mais vulnerável ao coronavírus. Em apenas três meses de arrecadação voluntária,
foram contabilizados R$ 82.528,00, destinados a 41 instituições do projeto Ação
da Cidadania, idealizado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em 1993. O
programa forma uma imensa rede de mobilização de alcance nacional para ajudar
32 milhões de brasileiros que, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), estavam abaixo da linha da pobreza. O principal eixo de atuação da
Ação da Cidadania é uma extensa rede de mobilização formada por comitês locais
da sociedade civil organizada, em sua maioria compostos por lideranças comunitá-
rias, mas com participação de todos os setores sociais.11
Como se vê, a pandemia do coronavírus veio vestir nova roupagem ao Judiciário,
transformando padrões anteriormente estabelecidos e gerando uma nova normali-
dade imbuída de valores humanos como a caridade, a humanização e a solidarie-
dade. No âmbito das instituições, objetivos que já eram traçados para o Direito
contemporâneo saíram das folhas de papel, como o uso mais aprofundado das
tecnologias e a celeridade processual, desembocando na almejada efetividade das
decisões judiciais.
Por mais antagônico que pareça, esse novo tempo cintila um avanço da huma-
nidade. Buscam, assim, os Poderes Constituídos o caminhar na mesma velocidade
dessa incógnita etapa de transição econômica, política e social.

5 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS


São transitórias pela própria ausência de definitividade. Não há como assegu-
rar que dentro de instantes os relatos deste artigo se mostrarão condizentes com a

10 Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/web/guest/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/


7331672. Acesso em: 13 jul. 2020.
11 Disponível em: https://www.amperj.org/blog/2020/07/07/amperj-encerra-campanha-em-auxilio-
as-vitimas-do-coronavirus/ e http://www.mprj.mp.br/coronavirus-covid-19/campanha-amperj.
Acessos em: 13 jul. 2020.

527
realidade, porque o mundo avança aceleradamente. Na data de produção do pre-
sente estudo, ainda não existe vacina para imunização contra o coronavírus. Talvez
amanhã já o tenha. Não importa, um legado foi deixado.
O comportamento “normal” sofreu drásticas alterações. A higienização corpo-
ral e dos ambientes públicos e privados e o uso de máscaras de proteção são, tam-
bém, exemplos das mudanças referentes ao socialmente aceito. Nunca se imaginou
uma realidade como a vivida no ano de 2020.
Do mesmo modo, a cooperação humanitária internacional nunca recebeu tanto
relevo quanto agora. Povos de todas as etnias, culturas, religiões e regiões do planeta
comungam num só objetivo, como se se consolidasse uma espécie de sociedade uni-
tária de nações, em que os valores maiores são pautados na pura e simples dignidade
da pessoa humana.
A experiência internacional aponta boas práticas que podem se revelar viáveis
para incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro. Do mesmo modo, o pionei-
rismo do Judiciário nacional – um dos mais bem estruturados do mundo – serve
de exemplo para a comunidade internacional. A reciprocidade das descobertas
estreita, pois, o laço entre os povos.
No plano individual, práticas humanísticas são adotadas como regra pelas pes-
soas. Os servidores públicos e os profissionais da saúde, exatamente por servirem
à população, apropriam-se do protagonismo deste novo tempo, afinal, a complexa
máquina estatal que presta os serviços indispensáveis para a sobrevivência digna é
movida pelas mãos firmes e, mais que nunca, afáveis dos seus agentes delegatários.
Assim, como reflete o professor Pedro Lopes Ferreira (2020), embora não se
saiba o que será a “normalidade” do pós-pandemia, de uma coisa não há como dis-
cordar: haverá um mundo diferente, e a relação que homens e mulheres terão entre
si nunca mais será a mesma. Caberá a todos não cometer os erros do passado.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Guilherme Assis de. Do direito internacional público ao direito cosmopolita:
o direito internacional dos direitos humanos (DIDH) como transição. São Paulo: Núcleo
de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, 2003. Disponível em: https://nev.
prp.usp.br/wp-content/uploads/2014/08/down028.pdf. Acesso em: 12 jul. 2020.
BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura. Comentários à
Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
FERREIRA, Pedro Lopes. E depois da Covid-19. UC against COVID-19, Coimbra, 27
mar. 2020. Disponível em: https://www.uc.pt/covid19/article?preview=true&key=a-
c1352b39d1. Acesso em: 12 jul. 2020.
NOUR, Soraya. Os cosmopolitas. Kant e os “temas kantianos” em relações internacionais.
Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 7-46, jun. 2003. Disponível em: https://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-85292003000100001#topo1.
Acesso em: 13 jul. 2020.
NOVO NORMAL: entenda melhor esse conceito e seu impacto em nossas vidas. Maria
Aparecida Rhein Schirato analisa o conceito de novo normal, a busca do ser humano pela
normalidade e como encarar o novo da melhor maneira. Insper, São Paulo, 7 maio 2020.

528
Disponível em: https://www.insper.edu.br/noticias/novo-normal-conceito/. Acesso em:
12 jul. 2020.
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Tradução de Mário Francisco de Sousa.
Oeiras: Editorial Presença, 2010.
TUCCI, José Rogério Cruz e. Tradição da Suprema Corte dos EUA é quebrada pela
Covid-19. Consultor Jurídico, São Paulo, 19 maio 2020. Disponível em: https://www.
conjur.com.br/2020-mai-19/paradoxo-corte-tradicao-suprema-corte-eua-quebrada-
covid-19. Acesso em: 12 jul. 2020.

529
ESTADO E CRIMINALIDADE
A omissão estatal em relação à segurança pública no Brasil

Maximiliano de Oliveira Rodrigues1

Sumário: 1 Introdução. 2 O direito à segurança pública. 2.1 Estado Democrático de


Direito e direitos humanos. 2.2 A segurança pública como direito fundamental. 2.3 A
segurança pública na Constituição Federal de 1988. 2.4 A política de segurança pública
no Brasil. 3 Razões por trás da crise de segurança: olhando para grandes problemas.
3.1 Polícia para quem? E violência policial. 3.2 A falência do sistema prisional influencia
a segurança pública na rua. 3.3 A ausência de segurança pública e a insegurança coletiva:
causas sociais da violência e da criminalidade. 4 Alternativas que podem ser trabalhadas
na tentativa de diminuir os problemas da violência, criminalidade e insegurança. 4.1 A
integração do sistema de segurança pública. 4.2 A construção de uma polícia cidadã no
Brasil. 4.3 A participação popular nas políticas de segurança pública. 4.4 Reestruturação
do sistema prisional, caminhos para a reforma. 5 Considerações finais.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O presente artigo procura demonstrar os múltiplos desafios a enfrentar quando
falamos do tema da segurança pública e tem entre os objetivos exercitar reflexões
para a compreensão dessa matéria.
A temática da gestão da segurança composta por desafios nos remete ao aspecto
da construção social desse problema da violência e sua problematização sociológica.
É um fenômeno complexo que merece muita discussão. Envolve reflexão sobre o
cenário brasileiro atual, palco de fenômenos que não são novos. Utilizando-se do
método dedutivo, a partir de bibliografia, dados, documentos e leis, constrói um
panorama da área através de uma narrativa da configuração da segurança pública
no País, sob o ponto de vista sociológico, englobando polícia e crime, com algu-
mas de suas causas sociais; justiça; sistema penitenciário; e políticas de segurança
pública. Narrativa que defende que há uma forte contradição entre os princípios
democráticos inaugurados com a Constituição de 1988 e as práticas institucionais
das polícias e do sistema de justiça criminal.
Entre as justificativas para o estudo, está desconstruir princípios estabelecidos
na sociedade, considerados como solução para todos os problemas, tais como: ban-
dido bom é bandido morto; leis mais pesadas; mais repressão e mais polícia; mais
encarceramento; tolerância zero; diminuição da maioridade penal; e outras ideias
com mesmo viés repressivo.

1 Agente de Segurança Institucional no Ministério Público Federal. Pós-graduado em Políticas e


Gestão em Segurança Pública na Universidade Estácio de Sá.

531
A sociedade acusa o Estado de ser omisso em relação a esse problema, as estatís-
ticas criminais e a sensação de insegurança da população confirmaram-se como o
grande ponto vulnerável de sucessivos governos, embora a Constituição afirme que
a segurança pública é dever do Estado e uma responsabilidade de todos.
Segurança pública é um tema de relevância em nossa sociedade. Debatida e
apropriada por políticos, governantes e cidadãos, a questão da segurança pública
se tornou ainda mais importante em decorrência do processo de desenvolvimento
econômico e social que vivenciamos no Brasil nas últimas três décadas. A violên-
cia urbana, que assola diversas cidades brasileiras, traduz-se em um sentimento
generalizado de insegurança, mudando hábitos e comportamentos da população.
Inúmeros são os estudos e pesquisas realizados que tratam da violência urbana e
dos fatores a ela relacionados; este é mais um que se soma na tentativa de refletir a
respeito do tema, na busca por alternativas.
Não se pretende oferecer uma fórmula mágica e milagrosa de controle da crimina-
lidade. Objetiva-se, sim, estudar alguns dos fatores constituintes da insegurança, ou da
falta de segurança pública, e propor alternativas que auxiliem a minimizar o problema.

2 ∙ O DIREITO À SEGURANÇA PÚBLICA


2.1 ∙ ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E DIREITOS HUMANOS
O Estado Democrático de Direito é caracterizado, de acordo com a orientação de
Marchi (2010, p. 24), pela submissão ao império da lei. Conforme nos ensina Barreira
(2010, p. 99), dizemos que é o Estado submetido ao Direito, “o Estado Democrático
de Direito, portanto, é o Estado Constitucional submetido à Constituição e aos
valores humanos nela consagrados” (CUNHA JR., 2012, p. 543). Assim, a atuação
estatal deve ocorrer respeitando o previsto na legislação, especialmente na lei maior
de qualquer Estado, sua Carta Constitucional. A autoridade pública deve agir em
consonância com o Direito. Há outro princípio capital que estabelece ao cidadão o
direito de ser respeitado pelo Poder Público e pela Administração, esperando, com
isso, a garantia de seus direitos individuais.
Ao longo da história presenciamos a afirmação de determinados direitos e sua
classificação em gerações. A partir dos ideais da Revolução Francesa de 1789, Marchi
(2010, p. 39-40) propõe a seguinte interpretação das gerações de direitos: na pri-
meira geração, estabeleceu-se ao ser humano o direito à vida e à liberdade, relativos
à individualidade. Já na segunda, os direitos envolviam trabalho, respeito e existência
material, considerados como direitos sociais. Na terceira geração, o Direito trans-
cende os direitos civis ou individuais, pretendendo ver o ser humano respeitado em
toda plenitude de sua dimensão humana; são os direitos difusos e transindividuais.
É fim do séc. XVIII, e o direito à segurança já denotou sua importância quando foi
citado na primeira geração de direitos (BOBBIO, 1992), no documento “Declaração
de Direitos da Virgínia” (1776), em seu artigo 3º, mencionando a “proteção e segu-
rança do povo”. Na França, em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, no artigo XII, fez referência ao tema segurança pública, ficando expressa a
ação do Estado para assegurar os direitos humanos.
Para que a dignidade humana seja respeitada e levada em consideração e con-
vertida em realidade concreta, e, assim, os direitos fundamentais sejam observados,

532
o Estado conta com o monopólio legítimo da violência física. Weber (2004 apud
DIAS, 2011) nos ensina sobre a necessidade de se ter uma concentração de armas e
homens armados sob uma autoridade. O Estado moderno é uma associação política
autorizando a coerção física. Noutro estudo, Barreira (2010, p. 94) argumenta em
mesmo sentido e vê a política como uma disputa pelo poder, tendo a violência como
forma básica de manutenção desse poder.

2.2 ∙ A SEGURANÇA PÚBLICA COMO DIREITO FUNDAMENTAL


A segurança pública é responsável por um papel fundamental na manutenção
do Estado de Direito. Em conformidade com o ordenamento jurídico-constitucio-
nal e tendo como limite de sua atuação os direitos fundamentais da pessoa humana,
os órgãos ligados à segurança pública são indispensáveis à convivência pacífica, à
repressão do crime e à fruição de direitos de uma sociedade democrática, conforme
Machado (1993, p. 29).
Em pleno século XXI, a sociedade brasileira enfrenta graves problemas envol-
vendo cidadania e direitos humanos, em razão do aumento da violência e da crimi-
nalidade. São graves violações aos direitos humanos, com o desrespeito à cidadania,
fruto de muita violência e de alta criminalidade, gerando um clima de insegurança
e intranquilidade na sociedade, e isso traz um problema mais grave, que é a forma-
ção de uma cultura do medo.
Conforme Silva (2012, p. 67), segurança pública como dever do Estado e direito
fundamental do cidadão e da coletividade nos remete ao Pacto Social, quando todos
os indivíduos abriram mão de parcela de suas liberdades para dar origem ao Estado,
que, em contrapartida, com o monopólio do uso da força, ficou encarregado de
proporcionar segurança a todas as pessoas no espaço de sua soberania.
Em relação à segurança pública, é notória a ineficiência: basta ver os altos e
crescentes índices de criminalidade, o aumento indiscriminado de encarcerados,
levando ao problema de superlotação dos presídios, o descontrole em relação ao
tráfico de drogas e armas, entre outras tantas causas que contribuem para a incapa-
cidade estatal naquilo que envolve segurança pública.
Souza (2015), ao abordar o tema segurança, informa ser um direito fundamental,
predominantemente difuso, que os cidadãos e a sociedade possuem de se sentirem
protegidos, em razão das políticas de segurança pública praticadas pelo Estado e da
prestação adequada e eficaz desse serviço público.

2.3 ∙ A SEGURANÇA PÚBLICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988


Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 5
de outubro de 1988, nasceu um novo Brasil, instituído como Estado Democrático
de Direito, tendo como objetivos a garantia dos direitos individuais e sociais, prin-
cipalmente a vida, a liberdade, a segurança, a igualdade e a propriedade, apresen-
tando dentre os seus fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
Conforme o mandamento contido no art. 5º, caput, da Constituição Federal, a
segurança passa a ser considerada direito individual. A segurança é, também, con-
siderada um direito social do cidadão, e por esta razão, outra vez, é mencionada no
art. 6º do mesmo Documento Constitucional.

533
Ao contrário do que aconteceu na economia e em outras áreas de política social,
a transição democrática não permitiu reformas mais profundas nos órgãos de polí-
cia, na justiça criminal e nas prisões brasileiras, muito pelo contrário. As institui-
ções, em suas arquiteturas e funções constitucionais, modificaram-se quase nada.
Falando em linguagem mais direta: no funcionamento de todo o sistema penal, é
notável a manutenção de práticas institucionais e organizacionais baseadas em ação
violenta e discricionária do Estado. Diante dessa constatação, Lima, Sinhoretto e
Bueno (2015, p. 124) afirmam “não existir consenso de que a moral do sistema penal
seja a defesa da vida, como previsto no artigo 5º da Constituição”.
A expressão “segurança” está positivada no Preâmbulo, além de figurar no caput
dos arts. 5º e 6º, momento em que o Estado assegura o direito social à segurança.
Além disso, no art. 144 do texto constitucional é expressa de maneira direta a questão
da segurança pública, pois é nele que estão elencados os órgãos componentes do sis-
tema e suas devidas atribuições. Os órgãos responsáveis pelo cuidado com a segurança
pública são: polícia federal; polícia rodoviária federal; polícias civis; polícias militares
e corpos de bombeiros militares, cada um com sua devida competência estabelecida.
Quando o legislador constituinte estabeleceu no caput do art. 144 que a segu-
rança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, surge uma
questão: com o termo “responsabilidade de todos”, estaria o constituinte chamando
a sociedade à participação?
A impressão que passa é de que a intenção foi esta: estimular a participação popular.
Antevendo que somente os órgãos mencionados não dariam conta de tamanha res-
ponsabilidade, deixou implícito que a democracia necessitaria da participação popular.
Considerando que o problema da segurança é de todos nós, está corretíssimo o que
afirma Soares (2006, p. 111): “[O]u todos estaremos seguros ou viveremos, todos, no
medo e na insegurança, tal a situação vivenciada atualmente pela sociedade brasileira”.
Segundo Silva (2012, p. 82), no imaginário popular a presença de mais policiais
nas ruas pode inibir o cometimento de crimes, que os efetivos das polícias devem
ser multiplicados, que quanto mais polícia nas ruas, melhor, como se esta fosse a
solução. Ideia nesse sentido é considerada a solução mais básica para o extermínio
da criminalidade, porém até o momento se mostrou ineficaz, mas continua como a
salvadora de todos os problemas.
O entendimento de Bengochea et al. (2004, p. 120) afirma que vivemos um
momento de transição, pois a democracia brasileira é jovem, os problemas de
violência e da criminalidade são complexos e, assim, devem receber tratamento
adequado. Da mesma forma, a função policial precisa ser entendida dentro de sua
complexidade característica. Existe demanda por segurança pública para que seja
um serviço de qualidade, e que, acima de tudo, a polícia respeite e garanta os direi-
tos do cidadão para o qual o serviço está sendo prestado.

2.4 ∙ A POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL


Da lição de Moura (2014, p. 56) extraímos que, nas décadas de 1980 e 1990, a
preocupação da sociedade brasileira era a luta contra o arbítrio e os resquícios da
ditadura, dado o momento histórico. Recentemente, a violência e a criminalidade

534
deixaram de ser exclusivas dos subúrbios e passaram a ocorrer também nas áreas
nobres das cidades, atingindo as camadas privilegiadas da sociedade; foi aí que
iniciou um debate mais marcante a respeito do tema, buscando alternativas para
resolver o problema.
Para compreender como os governantes tratam políticas sociais, Soares (2007, p.
83) recorda da tragédia do sequestro do ônibus 174, no coração da Zona Sul carioca.
Era junho de 2000, um jovem tomou de assalto o veículo, transformando a cena
num triste espetáculo televisivo. Como resultado, a morte de uma refém diante das
câmeras da TV. Estávamos em meados do segundo mandato do governo Fernando
Henrique Cardoso. Até então, sucessivos ministros da Justiça elaboravam lenta-
mente um plano nacional de segurança. Na época, a preocupação econômica era o
foco do governo. Com o desfecho do caso, o presidente da República ordenou a seus
auxiliares que tirassem da gaveta o plano, na tentativa de demonstrar à sociedade
o comprometimento da equipe com a questão que envolvia a segurança pública. É
fácil concluir que no calor da hora, na pressa para dar uma resposta à sociedade,
boa coisa não poderia resultar. O primeiro plano de segurança pública da recente
história democrática fora elaborado em, surpreendente, uma semana.
Esse flagrante comprova o descaso com a segurança pública. O que deveria ser
política de Estado, situando-se acima das picuinhas político-partidárias, torna-se
política de governo, ficando restrita a quatro anos de mandato.
Dado o que está acontecendo hoje em nosso País em relação à classe política, é
possível afirmar que a maioria não tem nenhuma preocupação com o que pensa o
eleitor, o foco é garantir mais um mandato, custe o que custar. É fácil entender por
que as políticas de segurança não funcionam. Projetos nessa área demandam tempo
para que os resultados apareçam. Normalmente tempo superior ao de um mandato.
Isso envolve um custo político que nenhum governante tem coragem para assumir.
E Soares (2007, p. 91) nos ensina mais, informando que o político vive uma
armadilha política em razão da contradição entre o ciclo eleitoral e o tempo para
surgimento dos resultados de políticas públicas, comprovando a ideia de que o
único interesse é pela manutenção do mandato.
As políticas públicas de segurança não se articulam com as demais políticas sociais
nem com os órgãos da própria Administração que as instituiu, seja em nível federal,
estadual ou municipal. Não há comunicação eficiente entre os órgãos do Poder Público.
Os recursos materiais e humanos envolvidos nessas políticas não são utilizados de
forma adequada. Prova disso é que, até pouco tempo atrás, o governo federal anunciava
que o problema da segurança pública era responsabilidade dos governos estaduais,
esquecendo a previsão constitucional que implica a responsabilidade a todos.
Lima, Sinhoretto e Bueno (2015, p. 126) contribuem, na mesma linha, afirmando
a inexistência de um projeto de políticas de segurança pública, principalmente res-
peitando os requisitos da democracia e a garantia de direitos humanos. O controle
social está sob a responsabilidade das polícias militares, que muitas vezes pautam
suas ações no confronto.
Importante lembrar que estamos falando de Brasil, povoado por uma sociedade
complexa e formada por diferentes segmentos sociais. É nesse território continental
que se observa o quadro dramático da segurança pública. A gestão da segurança

535
está embasada no amadorismo, constituindo um desastre histórico para o povo.
Conforme asseveram Costa e Balestreri (2010, p. 63), são décadas de demagogia e
má politização. A lição de Abreu (2010, p. 119-120) corrobora a ideia de que, com
o descontrole nos índices de criminalidade e violência, as alternativas, novamente,
são mais armas e mais policiais, sem levar em consideração as evidentes deficiências
humanas e materiais presentes nas corporações.
No entendimento de Silva (2012, p. 88), em razão de deficiências e equívocos de
todas as ordens, é um sistema complexo que não está apto para o cumprimento de
sua finalidade, como provam muitos números apresentados em relatórios de vio-
lência e criminalidade. Apesar disso, há um fator positivo: a questão da segurança
pública deixou de ser um assunto de responsabilidade do Estado, passando a ser
discutido por todos os segmentos da sociedade.

3 ∙ RAZÕES POR TRÁS DA CRISE DE SEGURANÇA:


OLHANDO PARA GRANDES PROBLEMAS
3.1 ∙ POLÍCIA PARA QUEM? E VIOLÊNCIA POLICIAL
Na história brasileira, o conceito de segurança pública sempre foi relacionado
com poder de polícia, e após a promulgação da Constituição Federal é que surgiu
a preocupação envolvendo os direitos humanos. Das lições de Lanfranchi (2014,
p. 79) e Bengochea et al. (2004, p. 121), extraímos os ensinamentos a respeito do
desenvolvimento histórico da polícia no País. Afirmam eles que foi uma instituição
criada para proteção da elite brasileira, nas suas mais diversas épocas.
No período imperial destacavam-se os serviços prestados aos nobres, donos das
terras. Com a proclamação da República, em 1889, o poder e a riqueza permane-
ciam nas mãos da elite, formada pela oligarquia cafeeira. O Estado criou a polícia
política, que fazia a perseguição dos movimentos insurgentes contra o sistema e a
proteção do patrimônio das oligarquias. Em momentos históricos marcantes, Era
Vargas (1937-1945) e durante a ditadura militar (1964-1984), o poder de polícia
estava baseado na relevância política. A técnica policial nesses períodos era fundada
em práticas de tortura, chegando até execuções sumárias.
A partir da análise do desenvolvimento histórico, podemos afirmar que a polí-
cia, no Brasil, em todas as épocas, esteve e está a serviço dos interesses das classes
dominantes. Pensar no controle das atividades policiais exige uma compreensão
histórica e política das polícias, sob pena de cairmos na armadilha do mito de que
a polícia está para proteger todos. Mesmo nos regimes democráticos, com governos
ditos progressistas, a polícia agiu e age de modo a conter a população mais pobre e
criminalizar movimentos e lideranças sociais.
Reforçamos esse conceito a partir do entendimento de Bengochea et al. (2004,
p. 121), ensinando-nos que a polícia foi criada e é dirigida para proteger a classe
dominante, pequena na relação com a grandeza de excluídos existente em nossa
sociedade. É como se fosse um órgão do Estado a serviço de particulares, voltado
para a defesa de uma minoria restrita. A ordem da classe dominante é para que a
polícia a defenda contra os perigosos ou inconvenientes da sociedade.

536
A principal forma de atuação policial no Brasil é através do uso da força, seu ins-
trumento de intervenção. Ocorre de maneira amadora, sem qualificação, não leva
em consideração as consequências dessa atuação e, em elevado número de vezes,
despreza a legalidade.
Lima, Sinhoretto e Bueno (2015, p. 129-130) informam ser a reação à forma
padrão de atuação policial. Caracteriza-se pela imprevisibilidade das ações, pela
irracionalidade e pelo uso excessivo da força, ignorando previsões legais. Como
exemplo dessa prática é possível citar o policiamento nas favelas, baseado em incur-
sões. A lógica é a da imprevisão, e para os moradores isso é uma constante invasão
de suas vidas cotidianas.
A irracionalidade se confirma com base nas justificativas apresentadas para as
incursões; normalmente, a motivação é o cumprimento de mandados de prisão,
para captura de traficantes e foragidos, apreensão de armas e drogas, intervenção
em conflitos entre facções rivais. Não são levados em consideração os custos de cada
ação, o efetivo resultado para a diminuição dos índices de violência e criminalidade
e muito menos o quanto melhoram a vida da comunidade. O que aparece são os
números de mortos, de presos e de apreensões.
Embora ainda exista um número significativo de pessoas que aceitem a prática
de violência pelas instituições policiais, não é possível que uma nação que se diz
democrática e civilizada permita um alto índice de mortes através das mãos desses
agentes. A crescente violência não deve ser combatida pela mesma violência par-
tindo das mãos do Estado.
Segundo Soares (2006, p. 117), um círculo vicioso ocorre dentro da instituição
policial, marcando negativamente a imagem da corporação. Embora os problemas
não envolvam a maioria, são inegáveis as práticas de corrupção, tortura, chacinas,
execuções sumárias, disputas internas, ineficiência e má politização. Ramos (2007, p.
74) nos ensina que quem mais sofre com esse círculo de violência e criminalidade são
as populações pobres, das favelas e dos subúrbios, que se encontram entre a opressão
dos traficantes e seus grupos armados e a corrupção e violência das forças policiais.
Na visão de Soares (2006, p. 117), existem muitos problemas internos que impe-
dem o adequado funcionamento dos órgãos policiais. Há falta de valorização dos
profissionais tanto financeiramente quanto em relação à formação para o desem-
penho das atribuições. É possível vislumbrar a falta de avaliação de operações,
consequência da falta de planejamento. Resultam em organizações ineficientes, sem
inteligência ou criatividade em suas ações, perdendo o respeito e a confiança da
população. A verdade é que a instituição polícia está falida. Sua forma de organi-
zação encontra-se esgotada, urge pensar fórmulas mais modernas que atendam aos
requisitos da democracia e às exigências do mundo atual, envolvendo garantia e res-
peito aos direitos fundamentais dos cidadãos. Em observância a nossa Constituição
Federal, a polícia deveria ater-se a sua função: preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio.
Entretanto, na lição de Silva (2010, p. 82), isso não ocorre porque “o sistema te
empurra para fazer o que sempre foi feito, qualquer mudança no sentido de impri-
mir nova direção, novos valores, inclusive para atender à dinâmica da sociedade,
você vai ter muita dificuldade”. É uma luta contra uma ideologia.

537
3.2 ∙ A FALÊNCIA DO SISTEMA PRISIONAL
INFLUENCIA A SEGURANÇA PÚBLICA NA RUA
O Brasil figura entre as sociedades que mais encarceram no mundo. Está consoli-
dado o entendimento de que prendemos muito, mas prendemos mal. Atualmente, no
País, existem 654.372 presos. São dados extraídos de um levantamento realizado pelo
CNJ, cuja preocupação está na quantidade de prisões provisórias – 34% do total de
presos – e no tipo de crime que está levando o desviante a ser encarcerado. Toda essa
quantidade de presos existe sem levarmos em consideração uma possível melhora
nos serviços de investigação dos órgãos policiais. Imaginemos, como nos fazem pen-
sar Lima, Sinhoretto e Bueno (2015, p. 131), que, apenas para citar um tipo específico
de crime, os homicídios sejam todos esclarecidos, em torno de 60 mil anuais. Onde
colocaríamos essas pessoas responsáveis por crimes graves, uma vez que o sistema
já apresenta um déficit de mais de 220 mil vagas? Certamente o quadro do sistema
prisional seria agravado. Parece visível que a política criminal está equivocada. É
necessária uma mudança urgente na tentativa de minimizar esse caótico problema.
Dos números informados pelo levantamento do CNJ, duas questões chamam
atenção: primeira – quantidade total de presos provisórios ocorre porque muitos
ficam detidos além do necessário, pela simples falta de acompanhamento, depen-
dentes de uma precária assistência judiciária, seja por parte da promotoria, pelo
lado do sistema judiciário ou pela própria administração penitenciária.
A prisão provisória nos apresenta um problema interessante de difícil solução:
a necessidade de eficiência do Direito Penal versus o razoável prazo de duração do
processo. E esse problema precisa ser resolvido, utilizando ferramentas diferentes
das que usamos hoje, porque não estamos obtendo resultados satisfatórios.
De volta aos números apresentados pelo CNJ, a segunda questão a que devemos
nos ater é para os tipos de crimes que mais têm levado à prisão ultimamente. Dentre
os presos provisórios, 62% estão encarcerados por crimes relacionados ao tráfico de
drogas ou por crimes contra o patrimônio (roubo ou furto). O percentual de presos
acusados de crimes contra a pessoa fica em torno de 15%.
De acordo com estudo de Lima, Sinhoretto e Bueno (2015, p. 130), em pesquisa
semelhante, esses valores confirmam o baixo índice de esclarecimento dos crimes
contra a vida, evidenciando o aspecto central assumido pela questão patrimonial.
Nas palavras dos autores, “prende-se muito mais para regular a circulação indevida
de riqueza do que para prevenir violência e garantir vidas”. O sistema penal voltou
suas garras para o combate aos crimes patrimoniais e de tráfico de drogas e deixou
de lado o crime mais grave, que é o atentado contra a vida.
Somos obrigados a pensar a respeito do alerta de Soares (2006, p. 95), quando
nos lembra que a Lei de Execução Penal foi promulgada em 1984 e que há muito
tempo não é cumprida; assim, “não se pode prender aos milhares e despejar essa
multidão no inferno, dotando a massa de ferramentas de organização e ação crimi-
nosa”. O que acontece é que a bomba-relógio fica cada vez mais perto de explodir.
Exemplos de violações e problemas facilmente identificáveis: superlotação além
de todos os limites aceitáveis; presos são misturados independentemente do tipo
de crime cometido; falta de acompanhamento de sua situação jurídica; condi-
ções de higiene e salubridade longe do razoável; enfim, condições absolutamente

538
degradantes. Raríssimas são as oportunidades para estudo e trabalho. Sobre os pro-
blemas que envolvem a arquitetura carcerária: as penitenciárias são muito grandes,
o que acarreta dificuldade na administração e na vigilância. Apesar do tamanho,
ainda assim há superlotação, que é responsável por transformar as cadeias em ver-
dadeiras fábricas de violações de direitos individuais.
O descumprimento estatal em relação à Lei de Execução Penal é a motivação
principal de rebeliões e outros desdobramentos maléficos. Como os presos não
possuem meios para exigir do Estado tal cumprimento, resta-lhes a revolta contra
o sistema. Quando o problema não é tratado adequadamente, o resultado pode ser
a conversão da indignação justa em combustível criminoso para práticas de terro-
rismo injustificáveis. Sabe-se que o Primeiro Comando da Capital (PCC) extraiu
sua força entre os presos a partir da revolta contra crimes perpetrados pelo Estado
no final dos anos 1980 e ao longo da década de 1990.
A ineficiência das penitenciárias se evidencia com a falta de competência do
Estado para administrar esse sistema. Não é possível que ilegalidades de toda forma
sejam cometidas, resultando em direitos violados e falta de imposição de limites aos
presos. O único controle sobre a massa carcerária é mantê-la dentro dos muros, mas lá
dentro o Estado não influencia absolutamente nada. O domínio interno está nas mãos
dos detentos, e assim vemos crimes tanto no interior quanto fora das casas prisionais.
Quando é o Estado que se omite não cumprindo seu dever, renunciando ao
Direito, o crime impõe sua força e alimenta a onda de violência. Com nossas peni-
tenciárias transformadas em masmorras, universidades do crime e incapazes de
qualquer melhoramento humano, um aspecto é necessário que fique claro: algum
dia o preso será solto na sociedade, e seria interessante que houvesse um tratamento
adequado para ele durante o período de cárcere, a fim de reabilitá-lo à convivência
pacífica e dissuadi-lo da ideia e da necessidade de reincidência.
Buscando possibilitar essa reabilitação, nas palavras de Lajóia (2012, p. 72),
deveríamos esperar que, pelo menos, a prisão não piorasse a pessoa, já que o encar-
ceramento é antinatural para o homem. Entretanto, o que fazemos é segregar a
pessoa entre as piores, almejando com isso que ela se torne melhor. Devido a esse
tratamento é que as penitenciárias durante longo período se mantiveram afastadas
da investigação pública, tempo em que era comum aceitar que o preso fosse com-
parado a uma besta selvagem, podendo, até mesmo, ser eliminado por policiais nos
casos de rebeliões.
Para Machado (1993, p. 13), há muito trabalho a ser realizado, e o objetivo prin-
cipal é “impedir que os presos sejam tratados como feras para proteger cidadãos
honestos de serem retaliados por presos desumanizados devido ao tratamento cruel
e degradante que recebem no cárcere”.

3.3 ∙ A AUSÊNCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA E A INSEGURANÇA


COLETIVA: CAUSAS SOCIAIS DA VIOLÊNCIA E DA CRIMINALIDADE
A violência e a criminalidade não são explicadas simplesmente pela ineficiência
dos órgãos de segurança. Existe um sem-número de variáveis que produzem essa
violência e criminalidade enfrentada por todos. Podemos citar a miséria, o consumo
excessivo de álcool e drogas, a facilidade para obtenção de armas não legalizadas, a

539
inadequada distribuição de renda, a corrupção em termos gerais, o desemprego, o
consumismo exagerado estimulado pela globalização, a carência nas áreas de edu-
cação, saúde e habitação, e a ineficiência do Poder Judiciário, entre outros fatores.
É bem verdade que o País vive uma onda de violência e criminalidade muito
alta, mas, além dos índices alarmantes, a mídia cumpre um importante papel ao
tornar o que já é ruim muito pior, quando, diariamente, nos bombardeia com as
mais diversas notícias relacionadas a crimes. É a construção de sentimento de medo
que pode ser verificada através do aumento de empreendimentos imobiliários,
conhecidos como condomínios fechados, que vêm ganhando cada dia mais adeptos,
principalmente nas maiores cidades brasileiras.
A razão do crescimento se explica porque os moradores desses ricos empreendi-
mentos, com maior poder financeiro, se sentem amedrontados e inseguros, motiva-
dos pela ineficiência ou ineficácia do sistema público de segurança, e buscam pro-
teção como julgam mais adequado. Resultado: trancam-se atrás de muros e grades
para ter a sensação de superproteção e com isso a tranquilidade almejada.
A segurança vira, então, sinônimo de exclusão, de distinção e de status, pois o
Estado fica incumbido de cuidar dos direitos coletivos, enquanto os ricos cuidam de
si mesmos, em seus espaços excludentes e seguros. “Formam-se assim os ‘enclaves
fortificados’, que são espaços privatizados, fechados e monitorados para residência,
consumo, lazer ou trabalho” (CUBAS, 2005 apud MELO, 2010, p. 135).
Não temos uma simples separação física delimitada por um muro, mas o invisí-
vel, que foge ao olhar comum, que é a manutenção de uma ordem privada e de privi-
légios de uma classe representada pela divisória de concreto e tijolos. Dessa forma,
a maneira de se proteger contra o crime origina espaços de separação e exclusão,
destacando a distância social.
É um movimento que expõe a utilização de equipamentos de segurança em defesa
dos interesses particulares, em detrimento do coletivo, conforme nos demonstra
Porto (2013, p. 288). E ela ainda segue, propondo que assim surge a “lógica do salve-
-se quem puder e como puder, compatível com outra lógica que informa esse tipo de
raciocínio, a de fazer justiça com as próprias mãos, levando cidadãos a se armarem
e a se prepararem para a guerra urbana”.
As elites estão protegidas, mas para as camadas populares o mesmo não pode
ser dito. Há a precariedade dominante por todas as periferias urbanas. É uma con-
vivência diária com tráfico e armas, resultando em muita violência. Além disso,
o ambiente nas periferias é caracterizado pela ausência estatal nos mais diversos
aspectos, pois temos desemprego em grande quantidade, ou subemprego, falta de
estímulo à educação, maternidade na adolescência, crianças abandonadas, baixa
autoestima generalizada estimulando um culto à violência, famílias desestrutura-
das, resultando esse complexo todo em péssimas condições sociais.
Essas populações são duplamente penalizadas, estão jogadas à própria sorte,
precisando enfrentar a tirania do tráfico ou, ainda pior, segmentos corruptos e
violentos das polícias. A transição democrática esperada após a promulgação da
Constituição Cidadã não ocorreu nessas regiões. São comunidades pobres, “sub-
traídas” da cidadania, desconhecedoras dos direitos civis e humanos e das liber-
dades fundamentais. Esses problemas estão bastante localizados em determinadas

540
áreas das grandes cidades, contudo, começaram a avançar os limites geográficos
das periferias e favelas, projetando seus efeitos sobre toda uma cidade e impulsio-
nando a criminalidade para além de patamares aceitáveis.
É uma cadeia de problemas inter-relacionados, e os desdobramentos de um pro-
blema refletem-se no seguinte e assim por diante. A roda começa a girar e não para
mais, principalmente pela ausência do Estado e sua omissão em enfrentar para valer
essas dificuldades. Vejamos um resumo:
A violência começa em casa, atingindo mulheres e crianças; desdobra-se na
maternidade precoce e na paternidade demissionária. Famílias traumatizadas
pelo desemprego e dificuldades econômicas crônicas; pais que se perdem no
alcoolismo, desorientados pela insegurança que se generaliza em todas as esferas
da sua vida; crianças privadas de afeto, porque seus pais foram privados do amor
próprio; adolescentes que não encontram na escola acolhimento, mas rejeição,
que não se encantam com o universo do conhecimento – ao contrário, sentem-
-se hostilizados no ambiente da educação formal; professores desvalorizados,
profissionalmente, desmotivados, esforçando-se heroicamente em condições
precárias. A violência avança sobre as escolas, invadidas pelo medo. Transborda
para as ruas, esses labirintos desenhados pelo crescimento urbano desordenado,
onde a sociabilidade pacífica e construtiva da vizinhança é degradada pela seg-
mentação das gangues. Culmina no recrutamento dos jovens do sexo masculino
pelo tráfico de armas e drogas, que lhes oferece vantagens materiais e benefí-
cios simbólicos e afetivos. Alimenta-se da idealização da violência que a mídia
propaga e muitas meninas reproduzem, acriticamente, reprocessando a versão
requintada do velho machismo, em cujo âmbito se associavam masculinidade e
agressividade. (SOARES, 2006, p. 125).
Como enfrentar os problemas acima mencionados com polícia? Isso é imprati-
cável, mas não raro vemos incursões policiais de toda ordem nessas regiões. Como
resultado, normalmente, um banho de sangue. E a rotina nunca se altera. Nesses
locais temos jovens e suas famílias desestruturadas e em crise, escolas incapazes
de responder pela ausência de pais, aliás, esse nem é seu papel. Desemprego, alcoo-
lismo, etc. Temos, ainda, tráfico de drogas e de armas, que resultam em outros
crimes. Um círculo vicioso está formado e necessita ser enfrentado com seriedade
pelos órgãos governamentais, que precisam compreender a insegurança em toda
essa complexidade. Uma proposta de solução não pode contar apenas com as orga-
nizações policiais, deve envolver diferentes setores estatais, capazes de entender a
violência em sua pluridimensão.
Necessário pensar ainda em outro foco gerador de violência, que é o crime pra-
ticado pelo Estado, por exemplo, quando descumpre a legislação, não aplicando a
Lei de Execução Penal, desrespeitando o Estatuto da Criança e do Adolescente, dei-
xando de combater a corrupção, a tortura e as execuções praticadas pelos próprios
agentes, os quais deveriam garantir a segurança da população.
Do acima exposto, conforme Barreira (2010, p. 107), podemos relacionar desi-
gualdade social e violência, porém não podemos fazer a mesma relação para pobreza
e violência. E exemplos que justificam essa assertiva existem não só no Brasil, mas
ao redor do mundo.
Em nosso País a injustiça social, tamanha são as desigualdades existentes, é
fator preponderante e elemento responsável por fornecer motivos para explicar a

541
insegurança pública em razão da alta criminalidade e violência. Tal explicação se
baseia, por exemplo, na presença da ideologia consumista, em que uma classe con-
sumidora, expressiva em quantidade, não possui capacidade de fato para consumir,
pois não tem ao menos as condições financeiras para suportar dignamente a própria
sobrevivência. Em relação a esse tema, Costa e Balestreri (2010) fazem um paralelo
dos valores inseridos inconscientemente no coletivo. A religião seria o consumismo,
os shopping centers equivaleriam aos templos e às igrejas, e os deuses são os produ-
tos à disposição. “A idolatria do mundo contemporâneo é profundamente relacio-
nada ao consumismo tecnológico” (COSTA; BALESTRERI, 2010, p. 57).
O jovem sem condições financeiras e com formação ética-moral deficiente,
bombardeado a todo momento pelo sistema, recebendo a informação de que viver
significa ter, comprar, adquirir, possuir; esse sujeito, à sua maneira, ou seja, através
da prática criminosa, custe o que custar, conseguirá o bem material almejado para
sanar sua necessidade.
Além do exposto até o momento e com base no estudo de Costa e Balestreri
(2010, p. 57-58), podemos afirmar que a violência e a criminalidade são potencia-
lizadas pela ausência de adultos na condição de educadores preocupados com a
formação e a construção de juízo moral. Isso significa praticamente uma máquina
geradora de violência em nossa sociedade.

4 ∙ ALTERNATIVAS QUE PODEM SER TRABALHADAS


NA TENTATIVA DE DIMINUIR OS PROBLEMAS DA VIOLÊNCIA,
CRIMINALIDADE E INSEGURANÇA
As políticas de segurança pública no Brasil são praticamente inexistentes, quase
todos os projetos na área fracassaram, por diferentes motivos. Entretanto, não pode-
mos mais arranjar desculpas, necessitamos de trabalho, duro, sério e responsável para
buscar minimizar os efeitos maléficos causados pela violência e pela criminalidade.
As medidas precisam ser colocadas em prática uma por vez, a exemplo do que faz
um dependente químico que primeiro tenta vencer as primeiras 24 horas. No caso
da segurança pública, além de um passo após o outro, é necessário entender que
algumas iniciativas simultâneas são necessárias para que cada passo seja possível
e cumpra com seus objetivos. É necessária a transformação de algumas estruturas
sociais brasileiras porque, enquanto nosso País for como é hoje, qualquer iniciativa
na segurança será apenas um paliativo, sem valor.

4.1 ∙ A INTEGRAÇÃO DO SISTEMA DE SEGURANÇA PÚBLICA


Com base no ensinamento de Porto (2013, p. 284), estabelecemos que o ponto
de partida é pensamento em longo prazo, portanto será necessário tempo e, além
disso, ações articuladas envolvendo as esferas federal, estadual e municipal. A cria-
ção das políticas públicas para a área de segurança deve ser coordenada.
Socorrendo-nos em Abreu (2010, p. 120), essa ideia de articulação fica evidente.
A população está cansada de não receber a contrapartida pelo pagamento de impos-
tos, a falta de segurança pública é um reflexo disso. A fim de fornecer uma resposta
satisfatória aos anseios populares, os órgãos oficiais do Estado precisam articular e

542
planejar suas ações, trabalhar como um sistema de fato. Não se quer segurança de
um órgão A porque é melhor que B, o que se busca é a garantia do direito, direito
fundamental à segurança pública, e isso apenas ocorrerá quando houver o estabele-
cimento de estratégias de atuação conjunta dos diversos órgãos existentes, pensando
e planejando ações em conjunto, de maneira integrada. O fim é um só: preservação
da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
Capra (1996 apud SILVA, 2012) nos oferece uma das afirmações mais notáveis acerca
do tema em estudo: “Quanto mais estudamos os principais problemas de nossa época,
mais somos levados a perceber que eles não podem ser entendidos isoladamente. São
problemas sistêmicos, o que significa que estão interligados e são interdependentes”.
Nesse sentido também:
Eu tenho a impressão de que o Brasil precisa de um choque de gestão na área
do Judiciário. A sociedade reclama punições num tempo socialmente adequado,
daí a necessidade de termos uma justiça criminal realmente séria, seja para a
defesa dos direitos das pessoas, direitos humanos, seja em razão da necessi-
dade de uma justiça criminal eficaz, que imponha as penas devidas num tempo
social e politicamente adequado, o que hoje é um problema no Brasil. Às vezes,
acusados perigosos são libertados por conta da demora do processo criminal,
do excesso de prazos na prisão provisória; a justiça não consegue decidir num
tempo adequado. Parece-me que esse tema seria uma prioridade política, que nos
envolve enquanto agentes do Judiciário, mas que envolve também outros setores.
Quando o assunto é justiça criminal, não nos referimos apenas ao juiz criminal,
estamos falando do promotor, do delegado. Necessitamos trabalho em conjunto.
(MENDES, 2012, p. 43).
Objetivando sanar esse problema de falta de integração, o trabalho a ser rea-
lizado, de acordo com Silva (2012, p. 77-78), deve ser baseado em três premissas
básicas, três eixos que devem servir como norteadores: prevenção, repressão e
correção. Nessa ordem.
Prevenção, como a primeira vertente, é a principal em razão da menor onerosidade
ao Estado e à sociedade como um todo. Sua eficácia está diretamente relacionada com
os resultados alcançados. Prevenção não só é fundamental como deve ser trabalhada
por todos, tanto a prevenção mediata – formação moral do indivíduo, de responsabi-
lidade da família, da escola, de instituições religiosas e afins – quanto a imediata – fun-
ção desenvolvida pelos órgãos de segurança com atribuições repressivas, as polícias.
A correção seria trabalhada como última vertente, quando não há mais alter-
nativa disponível capaz de tratar uma grave violação às regras de convivência. Os
elementos não foram eficazes, houve ruptura na teia de prevenção. É o momento,
então, da imposição legal através da persecução criminal. Ao infrator deve ser ofe-
recida oportunidade de retomada ao convívio social, desde que existam as mínimas
garantias de segurança para si e para a coletividade. Quando apenas um elemento
está desajustado, todo o sistema fica comprometido, como se pode observar em rela-
ção ao sistema carcerário, elemento-chave para a segurança pública, mas que não
está cumprindo, minimamente, com suas atribuições: permitir ao encarcerado um
tratamento adequado que oportunize sua reinserção de maneira digna ao seio social.
De acordo com Bengochea et al. (2004, p. 121-122), a almejada atuação sistêmica
deve ser embasada em cooperação intelectual, técnica e operacional entre os órgãos e as

543
instituições, cada qual fornecendo colaboração naquilo que de melhor possui, ou seja,
interação e compartilhamento de ferramentas e conhecimentos a favor da comunidade.
Jany e Robinson (2012, p. 61) colaboram com a ideia de integração do sistema,
informando que a segurança pública, responsável pela proteção e pelo fomento da
democracia, “deve fazer essa amarração incluindo público, indústria, políticos e
mídia, a fim de ser realmente eficiente para enfrentar os problemas do século 21”.
É necessária união de forças entre quem atua no setor de segurança e aqueles
que estão fora. Será uma luta que exigirá vontade política capaz de acabar com a
inércia existente e também força para enfrentar a corrupção, imiscuída em muitos
setores de nossa sociedade, resultando num sentimento de impotência e impuni-
dade. Entretanto, os objetivos são maiúsculos: tornar as cidades e ruas seguras para
vivermos, trabalharmos e construirmos uma família, com garantia de direitos e
cidadania para todos.

4.2 ∙ A CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍCIA CIDADÃ NO BRASIL


No tópico anterior trabalhamos a falta de articulação entre os órgãos que com-
põem o sistema de justiça criminal e de segurança pública. Observamos o quanto
essa desintegração na maneira de atuar é prejudicial para o adequado funciona-
mento do sistema e maléfica influência para a manutenção da ordem e da incolumi-
dade das pessoas e do patrimônio.
Se entre diferentes instituições existe esse desajuste, imaginemos o quão pior
não é quando essa falta de sintonia ocorre entre os órgãos policiais, diretamente
responsáveis pelo policiamento ostensivo e investigativo, que lidam com prevenção
e parte da repressão.
Estamos falando da falta de colaboração entre as polícias. Para Bengochea et al.
(2004, p. 128), as polícias estão diretamente relacionadas aos problemas que viven-
ciamos atualmente na segurança pública, uma vez que no conceito popular a polícia
é o fim do processo criminal, ou seja, a maioria das pessoas acredita que quando o
policial prende um infrator à lei, esse crime estará eliminado da sociedade. Essa
ideia está muito equivocada. O policial é o ponto inicial da persecução criminal,
ele prende. Depois leva para a delegacia, daí para o Ministério Público e então para
análise judicial, quando o juiz proferirá a sentença sobre o crime. Pode ser que a
prisão realizada seja revogada. Esse é o modelo que não tem funcionado a contento.
Modificações são necessárias, e uma das muitas propostas a serem trabalhadas
nos é apresentada por Soares (2006, p. 63) e envolve a desconstitucionalização da
polícia, ou seja, retirar do texto constitucional as atribuições previstas, transferindo
essas responsabilidades para os estados-membros, a fim de que estabeleçam que
tipo de polícia queiram ter. Nosso País é grande demais, as realidades em cada
região são muito distintas para se enquadrarem num modelo único.
Essa proposta objetiva, em última instância, uma unificação dos órgãos poli-
ciais, deixando o obscurantismo do passado e procurando atender aos interesses da
cidadania. A polícia deixará de fazer parte do problema para ser solução.
Conforme Lima, Sinhoretto e Bueno (2015, p. 140), nas últimas três décadas
o Brasil sofreu importantes mudanças. Na questão econômica e social houve

544
modificações profundas, e os órgãos policiais não acompanharam essa evolução,
sinalizando que suas próprias existências estão em risco, apesar da responsabili-
dade atribuída: a manutenção da democracia.
As polícias militares e civis são hoje polícias urbanas incompletas, meia polí-
cia cada uma. Se unificadas, numa só polícia, deveriam ser preparadas para uma
verdadeira atuação policial, num modelo diferente do que temos vigente, quando a
polícia não faz mais prevenção, atua apenas atendendo ocorrências. Soares (2006,
p. 63) propõe que sejam órgãos pequenos, municipais ou regionais, e trabalhando
de forma completa, ou seja, na prevenção de forma ostensiva e na investigação, em
favor de seu cliente que é único – a sociedade.
Para Bengochea et al. (2004, p. 119), o tema da formação e da qualificação profis-
sional é um processo que exige modernização nos conteúdos aplicados no currículo.
É uma atividade multidisciplinar e complexa, e essa variedade deve ser observada
no processo de formação e qualificação. O objetivo primeiro seria a prevenção da
violência e da criminalidade, com a devida compreensão de sua função pública nessa
nova forma de atuação, observando as previsões do Estado Democrático de Direito.
O agente precisa tanto de treinamento adequado para utilização das ferramentas
operacionais, arma de fogo e algemas, por exemplo, quanto de conhecimento claro
sobre formas de abordagens e atuação em protestos e manifestações. A mensagem
de Porto (2013, p. 293) nos ensina que o policial deve estar preparado para todos os
cenários de atuação, deve ser considerado um gestor do conflito, responsável por
devolver a paz, defendendo o cidadão, cumprindo e fazendo cumprir as leis, den-
tro das premissas democráticas e respeitando os direitos humanos. Especialmente
porque o policial uniformizado na rua, em cada esquina, é a máxima representação
da presença do Estado. Não existe outro símbolo que mais identifique a presença
estatal e a proximidade com o cidadão do que o agente policial fardado.
Na visão de Soares (2006, p. 136), as intervenções devem ser multissetoriais,
modificando mecanismos internos na instituição, alterando sua forma de gestão
e permitindo a participação da comunidade no processo. A relação da polícia com
a sociedade pode ser valiosíssima, relação baseada no respeito, na confiança e na
cooperação, preservando os valores democráticos da dignidade humana e da vida.
Conforme nos ensinam Costa e Balestreri (2010, p. 65), essa formação e capaci-
tação seria a educação de nossa polícia, já que o policial necessitará ser um educador
no sentido da prevenção, então nada mais justo do que educar, também, esse edu-
cador, o qual, em última análise, será um responsável pela transformação social na
comunidade em que atuar.
Além da qualificação, Barroso (2012, p. 79) chama atenção à importância que
se deve dar ao maior capital existente na instituição policial: o capital humano. De
nada resolve ter as melhores ferramentas operacionais, uma ótima qualificação, se
o elemento humano, que colocará tudo em prática, não estiver bem. Portanto, a
educação deve ser trabalhada de forma global, fornecendo ao policial as devidas
condições, físicas, psicológicas e materiais, para enfrentar os desafios diários na
prestação do serviço de segurança pública.
Esse novo modelo de polícia que está sendo proposto, na visão de Silva (2008, p.
72), pode se concretizar através do policiamento comunitário. Uma polícia próxima

545
da comunidade, trabalhando em favor dessa gente, tendo como parâmetros a pre-
venção e a solução de conflitos, servindo ao cidadão para desconstruir a ideia de
medo que este tem do policial. Numa atuação norteada pelos princípios de direitos
humanos, com construção de canais para participação social e elaboração de políti-
cas públicas, a partir do diálogo com o Estado e suas instituições.
O objetivo é construir nova cultura para a segurança pública brasileira. Firme,
enérgica, entretanto promotora da cidadania e dos direitos humanos.

4.3 ∙ A PARTICIPAÇÃO POPULAR


NAS POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA
Segundo Costa e Balestreri (2010, p. 27), a expansão da formação em segurança
pública por meio de cursos universitários em nível de graduação, especialização,
mestrado e doutorado só tem a colaborar para o debate e a construção de uma vida
mais harmoniosa em sociedade. É por intermédio desses cursos que o conhecimento
se produz e os problemas começam a ser tratados por meio da ciência, deixando
assim os “achismos” de lado.
O papel da universidade, com a participação da sociedade, é trazer ao debate
questões associadas às informações sobre direitos civis e à relação com a segurança
pública. O envolvimento da sociedade com a polícia. Nota-se uma discussão inter-
setorial envolvendo, no mínimo, três atores: sociedade, universidade e segurança
pública. A universidade tem papel central, pois seria responsável por estimular o
diálogo, baseado em reflexões críticas e aprofundadas. Um dos objetivos desse diá-
logo é transmitir a todos que os problemas envolvendo a segurança pública não são
exclusividade da polícia, muito pelo contrário, são responsabilidade de todos, com
expressão no texto constitucional, e dessa maneira devem ser tratados. Uma visão
que precisa ser alargada.
O problema da segurança é uma coisa tão séria que tem que ser discutida na
sociedade como um todo, e eu não admito que o Estado transfira a responsabili-
dade para a sociedade, mas também não admito que a sociedade se omita diante
desse quadro de segurança pública. (BARREIRA, 2010, p. 108).
Costa e Balestreri (2010, p. 44) chamam atenção acerca da contribuição das ins-
tituições de ensino superior, pois somente através de educação é que podemos pen-
sar em atingirmos condições reais de cidadania, com garantia de direitos humanos
e justiça social. É impensável uma sociedade sem educação ser pautada por atitudes
que envolvam respeito, confiança e proteção de direitos do cidadão.
Necessário falar sobre a escola, normalmente o primeiro espaço de socialização
depois da família. Conforme lição de Souza (2015, p. 3), somos levados a pensar
sobre os problemas de violência que envolvem esses espaços escolares que deveriam
ser de construção de conhecimentos. É cena cotidiana a presença de ocorrências de
violência e criminalidade nos arredores dos estabelecimentos de ensino, principal-
mente se forem instituições públicas. São casos dos mais variados, desde agressões
e ameaças, passando por discriminação racial, tráfico de drogas, porte de armas,
furtos e roubos. No local em que deveria predominar a paz para o melhor desen-
volvimento das atividades educacionais, por vezes, alunos e professores consideram
adequada a presença da polícia e não se dão conta de que, para a manutenção da

546
disciplina, os mestres perdem toda sua capacidade de desempenhar o papel a que se
prestam: o de educadores de forma integral.
A participação popular não pode ser vista apenas através das instituições de
ensino. Castro (2008, p. 80) nos apresenta a relevância do Estatuto das Cidades, Lei
n. 10.257, de 10 de julho de 2001, em seu art. 40, § 4º, inciso I, que dispõe sobre a
realização de audiências públicas, que devem ser garantidas pelos municípios para
que existam debates com a participação popular, por meio de associações dos vários
segmentos da comunidade.
Outra forma de resposta à violência está sendo desenvolvida nas comunidades,
especialmente comunidades pobres, em periferias e favelas de nossas cidades. O
ensinamento de Ramos (2007, p. 77) nos remete a projetos e programas focados
em atividades culturais e artísticas. São ações envolvendo jovens, em sua maioria,
trabalhando com cinema, teatro, dança, música, grafite e esportes variados como
forma de oferecer alternativas que não o tráfico de drogas. Não raro, são os próprios
jovens os responsáveis pela organização desses projetos envolvendo a comunidade
onde vivem. Momentos em que desenvolvem atividades com as quais se identificam
e buscam reconhecimento positivo.
Em relação ao tema da segurança pública, o movimento nesse sentido é recente e
a participação ainda é pequena, mas é um caminho sem volta para o enfrentamento
da violência na busca por segurança e justiça. No pensamento de Dias e Moura
(2014, p. 18), é fundamental que os diferentes segmentos sociais, entre movimentos
sociais, entidades de classes, grupos religiosos, sindicatos, lideranças comunitárias,
enfim, se apropriem dessa questão que envolve a segurança pública e a violência e
tomem a frente na organização do debate em busca das melhores saídas, de forma
que seja efetivado pelo Estado, numa perspectiva democrática, esse bem coletivo
que é o direito à segurança.

4.4 ∙ REESTRUTURAÇÃO DO SISTEMA PRISIONAL,


CAMINHOS PARA A REFORMA
A reestruturação do sistema prisional envolve ações que visam à qualificação de
agentes penitenciários, para que como representantes do Estado cumpram e façam
cumprir a legislação pertinente ao sistema e o respeito aos direitos dos presos,
incluindo aí oportunidade para sua capacitação profissional e posterior reinserção
no meio social.
É de conhecimento público que o Brasil é um dos líderes no ranking das socie-
dades que mais encarceram no mundo, o que criou uma superpopulação carcerária
conforme a colaboração de Lima, Sinhoretto e Bueno (2015, p. 131). Essa super-
população carcerária se encontra na origem imediata de não poucos problemas.
Para Soares (2006, p. 95), a superpopulação carcerária, que cresceu ao ponto atual
por vários motivos, é uma bomba-relógio prestes a explodir. Um dos motivos que
propicia uma massa carcerária desse tamanho é a arquitetura prisional, com peni-
tenciárias muito grandes. Segundo Macaulay (2005, p. 169), em estudo das Nações
Unidas existe recomendação para que as penitenciárias sejam pequenas, com no
máximo 500 detentos, o que facilita o controle sobre os apenados, em todos os sen-
tidos: gestão, vigilância e acompanhamento da situação jurídica do detento.

547
Lajóia (2012, p. 72-73) oferece a via das penas alternativas como uma medida
para diminuir o problema da superlotação no sistema carcerário, mesmo sabendo
que não resolveria todos os problemas. Esse tipo de medida, segundo suas pes-
quisas, favorece a recuperação daquele que infringiu a lei. É bem verdade que tal
medida não poderá ser aplicada irrestritamente, pelo contrário, pois só é possível
para determinados tipos de crimes que não envolvam violência grave, e voltada para
violações de menor potencial ofensivo.
Lajóia (2012, p. 73) continua, ensinando que devemos nos questionar quanto
ao custo do sistema penitenciário atual e que isso deve ser um debate que necessita
ser trazido a público, para que a sociedade defina quais tipos de crimes devem ser
punidos e quais soluções devem ser dadas a esses casos. A saída não parece outra:
é necessário que se envolvam educação e oportunidades de emprego. Conforme
o autor, a situação vivida atualmente é reflexo de escolhas de exclusão social; na
sua visão, a sociedade precisa escolher o social em vez da repressão penal em larga
escala. Afirma ele: “para quem não tem nada a perder, o crime é tudo a ganhar”.
O Brasil necessita decidir sobre qual sistema de justiça penal adotar, ajustar o foco da
justiça criminal para os crimes realmente mais graves, em especial aos praticados contra
a vida e a integridade física das pessoas. Escolhendo o caminho de minimizar o encar-
ceramento, possivelmente num curto período haveria redução da superpopulação, sem
reflexos no aumento do número de crimes. Rolim (2003, p. 21) sintetiza: “As sociedades
podem escolher, por várias razões, se desejam ter um alto ou baixo número de presos”.
Rolim (2003, p. 23-24) segue oferecendo sugestões no sentido de reduzir a super-
lotação nas penitenciárias: uma opção diz respeito a considerar como tempo para
remição o período de estudo. Atualmente, apenas o período trabalhado é contado
para angariar esse benefício. Seria uma forma de estimular os apenados aos estudos,
além do claro sentido ressocializador. Em médio prazo resultariam na diminuição
da população carcerária.
Outra frente a ser trabalhada está relacionada com a profissionalização dos agen-
tes penitenciários, através de um plano de carreira com salários dignos e formação
e capacitação adequadas. Seria uma maneira de aperfeiçoar o trabalho, conforme
sugere Soares (2006, p. 67). Para Adorno (1991, p. 73), a formação ocorre direta-
mente vinculada à violência, num regime de trabalho desgastante, que contribui
para o descontrole emocional, refletindo na perpetuação do ciclo de violência, em
que o agente penitenciário tem posição de destaque.
O objetivo almejado é a ressocialização dos apenados, e a ideia de disciplina deve
estar relacionada a esse serviço, estimulando a responsabilidade e a compreensão
de valores. Valores esses que devem orientar programas de educação prisional, num
ambiente típico de ensino-aprendizagem, no devido processo pedagógico.
Algumas medidas dizem respeito ao cumprimento efetivo da Lei de Execução Penal
e, como um primeiro movimento, Soares (2006, p. 95) refere à atenção que deve ser
dada à separação dos presos de acordo com o tipo de crime praticado, diferentemente
da mistura que ocorre hoje. É visível o descumprimento, por parte dos estados-mem-
bros, da legislação promulgada em 1984, o que reflete em desdobramentos dramáticos.
Caso já houvesse cumprimento, o contexto seria outro: penitenciárias pequenas com
lotação e com condições de salubridade adequadas. Além disso, a situação jurídica
individual seria acompanhada, e trabalho e educação seriam ofertados.

548
Souza (2015, p. 4) reforça a proposta de ensino e qualificação profissional
durante o período de encarceramento, medida que ocuparia o tempo ocioso, além
de preencher a deficiência cultural, uma vez que o contingente de presos é formado
por jovens, em sua maioria, com baixa escolarização.
Nessa linha estão as orientações de Silva (2008, p. 74-75), considerando o preso
como sujeito de direitos humanos, tendo o direito de cumprir sua pena de maneira
digna, assim como é estabelecido na Lei de Execução Penal. A esperada recuperação
do encarcerado apenas será possível quando se pensar em acesso à educação e a
oportunidades de trabalho.
Na inteligência de Aborn (2012, p. 46), programas que desestimulem a reinci-
dência são extremamente importantes, especialmente pelo custo gerado pela rein-
cidência em desfavor da sociedade.
Por fim, a colaboração de Adorno (1991, p. 75) prevê que um passo importante na
direção da mudança seja o conhecimento do problema e de sua grandeza. Esse diag-
nóstico, hoje, é ignorado pelas autoridades competentes, muito em razão dos interes-
ses em jogo que pressionam e influenciam de acordo com a conjuntura do momento.
É um desafio à política brasileira. É uma luta contra ideologias acerca da natu-
reza da massa carcerária, da criminalidade, do papel do Estado como espaço
possível de controle. Trata-se aqui de descortinar à opinião pública os funda-
mentos ideológicos que sustentam, sobretudo, o arcabouço legal. Na medida
em que a questão penitenciária não se encerra nos estreitos limites do sistema
penitenciário, há que se intervir na complexa e problemática divisão do traba-
lho entre agências policiais, os tribunais judiciários e as agências prisionais.
(ADORNO, 1991, p. 77).
Ainda com amparo em Adorno (1991, p. 77), compreendemos que a transforma-
ção necessária no sistema prisional precisa estar baseada em respeito aos direitos, à
integridade física, moral e psicológica e à dignidade daqueles que, embora agressores
da sociedade, estejam sob a guarda e tutela do Poder Público, ao qual cabe zelar pela
vida e não patrocinar o perigo, a insegurança e a morte. Necessita-se de uma política
de recursos humanos que possibilite a seleção, o treinamento e o aperfeiçoamento
dos trabalhadores, aliando competência técnica com compromissos políticos.
Como pensa Soares (2006, p. 96), é preciso encarar esse desafio e enfrentar o
problema do sistema penitenciário brasileiro de uma vez por todas, sem mais adia-
mentos por parte do Estado. Há que se fazer cumprir a Lei de Execução Penal e aos
poucos introduzir as mudanças necessárias para reformatar o sistema.

5 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo procurou ressaltar diversos desafios em relação ao tema da segurança
pública, exercitando reflexões para a compreensão desta temática, pensando nos
desdobramentos e efeitos dos fenômenos envolvidos no que vem sendo chamado de
problema da violência urbana e da segurança pública.
Ressalta-se que não era intenção propor qualquer utópica solução para as com-
plexas questões envolvendo crime e algumas de suas causas sociais, polícia, justiça e
sistema penitenciário, pois o tema é muito abrangente e complexo, podendo ser desen-
volvido por meio de diferentes vertentes e não se soluciona por um único caminho.

549
Foi possível fazer algumas constatações, que após o estudo se tornaram mais
cristalinas e podem ser consideradas como causas impeditivas de avanços na
direção de consertar alguns problemas existentes. Embora o crime nunca deixe
de existir, pois ele é inerente à vida em sociedade, deve-se trabalhar sempre para
diminuí-lo. Isso é possível!
Presumivelmente, o principal entrave à segurança pública seja o fato do desco-
nhecimento de que tantos elementos funcionais estejam fortemente relacionados,
representando interesse para o sistema em seu conjunto. Como exemplos podemos
citar a educação, a família, as drogas, a atuação policial e o sistema prisional, entre
outros, sobre os quais não se verificam projetos consistentes relacionados ao tema
da segurança pública.
A atividade estatal voltada para a prevenção criminal reflete a falência de outras
políticas governamentais. Essa ineficiência decorre do descuido com os órgãos
policiais envolvidos no combate à criminalidade; da inobservância de normas
afetas ao sistema carcerário; do descaso e do ineficiente atendimento à família
carente e à escola pública; do descuido com o atendimento à saúde das populações
mais pobres, a política de emprego e a distribuição de renda e patrimônio; e, talvez
o mais importante, da falta de política educacional no sentido mais amplo.
As instituições governamentais, responsáveis por cada um desses setores, são
criações humanas, fundadas para resolver alguns problemas, de preferência, a favor
de todos. Isso significa dizer o seguinte: se essas instituições deixaram de funcionar,
deixaram de resolver problemas para os quais foram criadas e se tornaram parte dos
problemas, ou se o tipo de solução que oferecem não interessa a todos, não é justa,
então temos que modificá-las, substituí-las por outras que representem os anseios
sociais e estejam de acordo com o arcabouço legal vigente. É o que ocorre hoje com
as polícias, as penitenciárias, as entidades socioeducativas, a política criminal e a
política de drogas. Não funcionam, não dão a resposta esperada pela sociedade.
Dessa forma, temos que mudá-las.
Nesse sentido, a efetivação do direito à segurança pública depende de uma jun-
ção de políticas públicas que satisfaçam vários direitos fundamentais sociais – edu-
cação, saúde, emprego e a igualdade material, por exemplo –, pois estão interligados
com a questão da violência.
Numa realidade tão adversa em relação à segurança do cidadão brasileiro, o
desafio que se coloca aqui é revisar a maneira de pensar e de fazer segurança pública,
pautando-se na garantia das necessidades de segurança do cidadão enquanto bem
coletivo. Defende-se, como prioridade, que os governos instaurem um processo de
mudanças dessa política, reexaminando os princípios, o quadro teórico, como tam-
bém o campo de intervenção e a prática de segurança pública.
Existe uma convicção de que a segurança pública brasileira não pode ser dis-
sociada da questão social, assim como não pode deixar de ser vista como respon-
sabilidade de todos, conforme estabelecido na Carta Magna. Segundo esse enten-
dimento, além do estabelecimento de parcerias entre segurança pública e políticas
sociais, os governos não podem descuidar da integração entre os órgãos do sistema

550
de segurança e justiça, bem como da necessária articulação entre as esferas dos
poderes públicos federal, estadual e municipal.
Na segurança pública, medidas isoladas não funcionam, porque os problemas
são complexos e têm várias conexões envolvendo diversos aspectos da vida social,
econômica e cultural. Além disso, mudar radicalmente as polícias, o sistema
penitenciário e o sistema socioeducativo não é tarefa simples, nem rápida. Não há
soluções mágicas nem resultados imediatos. São indispensáveis reformas das ins-
tituições, políticas sociais novas e uma gestão completamente diferente da atual.
Políticas públicas têm sido uma das maiores pragas nacionais. Especialmente
na área da segurança. É preciso reconstruir as polícias e o sistema penitenciário, de
alto a baixo, o sistema de justiça criminal como um todo. É indispensável e urgente
começar de novo em matéria de segurança pública. É necessário substituir o modelo
institucional que herdamos da ditadura por novos formatos, e as velhas medidas
pontuais e dispersas, por uma política integrada e sistêmica de segurança pública.
Desvincular-se de suas históricas estruturas autoritárias e violentas e deixar que o
cidadão usufrua de amplos direitos, com liberdade, participação e acesso à justiça,
tal como previsto na Constituição Federal de 1988.
Em conformidade com o art. 144 da Carta Constitucional vigente, a necessidade
de segurança de todos os cidadãos deve ser contemplada através de política pública.
A esses cidadãos o Estado também deve garantir que possam viver com dignidade,
liberdade de ir e vir, garantia da integridade física, psíquica e moral através de todos
os mecanismos que estiverem ao alcance.
Prevenção é tão ou mais importante que punição, a segurança pública deve ultra-
passar o modelo repressivo e buscar a efetivação por meio de outras políticas públi-
cas. O Estado não deve insistir em considerar a questão do crime e da criminalidade
pelo ponto de vista da legislação penal e da ampliação de vagas no sistema prisional.
O grande trunfo para o desenvolvimento é o acesso democrático a uma edu-
cação de qualidade. É consenso nos meios empresariais e acadêmicos, do planeta
inteiro, que não é possível haver desenvolvimento sem educação. Também nisso
a segurança pública é fundamental: não se pode educar sob o império do medo.
Pode-se até escolarizar a população, mas não educá-la. Educação pressupõe liber-
dade para criticar, para dizer não, para empreender, para criar, para ousar, para
construir valores solidários, para ser diferente, para questionar outras formas de
pensar. A ditadura do crime não admite nada disso.
Precisamos de reformas profundas. Não temos mais tempo. Possível é. Quem
diz que não é ou tem preguiça de pensar, ou não conhece a realidade do problema,
que não é pequeno, ou está interessado em manter as coisas como estão, por conve-
niências corporativistas.
Em razão de todo o exposto, vale deixar um último questionamento: a omissão
estatal em relação à segurança, fazendo com que as coisas estejam como estão hoje –
e já há um bom tempo – não seria a forma deliberada de o Estado estar na segu-
rança? Ou seja, sua presença é através da omissão deliberada, assim mesmo como
está, tal como ocorre com nosso sistema de educação!

551
REFERÊNCIAS
ABORN, Richard. Redução da reincidência do crime na sociedade americana. Cadernos
FGV Projetos – Segurança Pública em Foco, Rio de Janeiro, ano 6, n. 18, p. 44-53, jan. 2012.
ABREU, Sérgio Roberto de. Policiamento em comunidades de risco social. In: COSTA,
Ivone Freire; BALESTRERI, Ricardo Brisolla (org.). Segurança pública no Brasil: um
campo de desafios. Salvador: Edufba, 2010. p. 109-126.
ADORNO, Sérgio. Sistema penitenciário no Brasil: problemas e desafios. Revista USP,
São Paulo, p. 65-78, mar./abr./maio 1991.
BARREIRA, César. Processo civilizador, democracia e cidadania. In: COSTA, Ivone
Freire; BALESTRERI, Ricardo Brisolla (org.). Segurança pública no Brasil: um campo de
desafios. Salvador: Edufba, 2010. p. 91-108.
BARROSO, Juliana. A questão educacional: formação, capacitação e desenvolvimento
profissional. Cadernos FGV Projetos – Segurança Pública em Foco, Rio de Janeiro, ano 6,
n. 18, p. 74-79, jan. 2012.
BENGOCHEA, Jorge Luiz Paz; GUIMARÃES, Luiz Brenner; GOMES, Martin Luiz;
ABREU, Sérgio Roberto de. A transição de uma polícia de controle para uma polícia
cidadã. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 119-131, 2004.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Levantamento dos presos provisórios do País
e plano de ação dos Tribunais. Portal CNJ, Brasília, 2017. Disponível em: http://www.
cnj.jus.br/noticias/cnj/84371-levantamento-dospresos-provisorios-do-pais-e-plano-de-
acao-dos-tribunais. Acesso em: 5 maio 2019.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 21 maio 2019.
BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em:
14 jul. 2019.
BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm. Acesso em: 10 ago. 2019.
BRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Estatuto das Cidades. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em: 23 jul. 2019.
BRASIL. Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de
Políticas sobre Drogas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: 25 maio 2019.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Plano Nacional de Segurança
Pública 2017. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/plano-nacional-de-
seguranca-preve-integracao-entre-poder-publico-e-sociedade. Acesso em: 31 ago. 2017.
CASTRO, Gustavo A. Paolinelli de. Direito à segurança pública no estado democrático
de direito: uma releitura à luz da teoria discursiva. Revista Direito, Estado e Sociedade,
Rio de Janeiro, n. 33, p. 70-84, jul./dez. 2008.
COSTA, Ivone Freire; BALESTRERI, Ricardo Brisolla (org.). Segurança pública no
Brasil: um campo de desafios. Salvador: Edufba, 2010.

552
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 6. ed. Salvador: Juspodivm, 2012.
DIAS, Lúcia Lemos. A política de segurança pública entre o monopólio legítimo da força
e os direitos humanos: a experiência da Paraíba no pós 1988. L’altro Diritto, Firenze,
anno 2011. Disponível em: http://www.altrodiritto.unifi.it/ricerche/latina/lemos/index.
htm. Acesso em: 19 out. 2018.
DIAS, Lúcia Lemos. A segurança pública sob a ótica dos direitos humanos. In: DIAS,
Lúcia Lemos; MOURA, Paulo Vieira de (org.). Educando para uma segurança pública
democrática. João Pessoa: Editora da UFPB, 2014. p. 35-50.
DIAS, Lúcia Lemos; MOURA, Paulo Vieira de (org.). Educando para uma segurança
pública democrática. João Pessoa: Editora da UFPB, 2014.
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Declaração de direitos do bom povo da Virgínia. 1776.
Disponível em: http://www4.policiamilitar.sp.gov.br/unidades/dpcdh/Normas_Direitos_
Humanos/DECLARA%C3%87%C3%83O%20DE%20DIREITOS%20DO%20BOM%20
POVO%20DA%20VIRG%C3%8DNIA%20-%201776.pdf. Acesso em: 19 out. 2018.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, São Paulo, ano 10, 2016. Disponível em: https://documentos.mpsc.mp.br/portal/
manager/resourcesDB.aspx?path=2229. Acesso em: 31 ago. 2018.
FRANÇA. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. 1789. Disponível em:
http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitoshumanos/
declar_dir_homem_cidadao.pdf. Acesso em: 19 out. 2018.
JANY, Eduardo; ROBINSON, Joseph M. Maximizando a eficácia da segurança pública.
Cadernos FGV Projetos – Segurança Pública em Foco, Rio de Janeiro, ano 6, n. 18, p.
54-61, jan. 2012.
LAJÓIA, Cristiano. A importância da correta execução penal para a segurança pública.
Cadernos FGV Projetos – Segurança Pública em Foco, Rio de Janeiro, ano 6, n. 18, p.
68-73, jan. 2012.
LANFRANCHI, Valdênia A. Paulino. Segurança pública no Brasil e o controle das
atividades policiais In: DIAS, Lúcia Lemos; MOURA, Paulo Vieira de (org.). Educando
para uma segurança pública democrática. João Pessoa: Editora da UFPB, 2014. p. 77-90.
LIMA, Renato Sérgio; SINHORETTO, Jacqueline; BUENO, Samira. A gestão da vida e
da segurança pública no Brasil. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 30, n. 1, p. 123-
144, jan./abr. 2015.
MACAULAY, Fiona. Parcerias entre estado e sociedade civil para promover a segurança
do cidadão no Brasil. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, ano
2, n. 2, p. 146-173, 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1806-
64452005000100007&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 5 maio 2019.
MACHADO, Marcello Lavenère. História de um massacre: Casa de Detenção de
São Paulo. São Paulo: Cortez: Ordem dos Advogados do Brasil; Brasília: Ordem dos
Advogados do Brasil, 1993.
MARCHI, William Ricardo de Almeida. A segurança pública como direito fundamental
e a reorganização da polícia civil paulista. 2010. 144 f. Dissertação (Mestrado em Direito)
–Faculdade de Direito, Centro Universitário FIEO – UNIFIEO, Osasco, 2010. Disponível
em: http://www.unifieo.br/files/William_Ricardo.pdf. Acesso em: 20 ago. 2019.

553
MELO, Antonio Jorge Ferreira. Polícia e policiamento no Reino de Momo: a governança
da segurança no carnaval de Salvador. In: COSTA, Ivone Freire; BALESTRERI, Ricardo
Brisolla (org.). Segurança pública no Brasil: um campo de desafios. Salvador: Edufba,
2010. p. 127-143.
MENDES, Gilmar. Sistema prisional brasileiro e a reintegração do preso na sociedade.
Cadernos FGV Projetos – Segurança Pública em Foco, Rio de Janeiro, ano 6, n. 18, p.
38-43, jan. 2012.
MOURA, Paulo Vieira de. Os planos de segurança pública e a construção de uma política
nacional: anotações. In: DIAS, Lúcia Lemos; MOURA, Paulo Vieira de (org.). Educando
para uma segurança pública democrática. João Pessoa: Editora da UFPB, 2014. p. 51-64.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração universal dos direitos humanos.
1948. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf.
Acesso em: 19 out. 2018.
PORTO, Maria Stela Grossi. Pensando segurança pública no Brasil: desafios para a
pesquisa. Revista Brasileira de Sociologia, Brasília, v. 1, n. 2, p. 275-297, jul./dez. 2013.
RAMOS, Silvia. Direito à segurança, um desafio para o Brasil In: INSTITUTO DE
ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e
perspectivas. Brasília: INESC, 2007. p. 69-85.
ROLIM, Marcos. Prisão e ideologia, limites e possibilidades para a reforma prisional no
Brasil. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, n. 12, p. 1-35, 2003. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/marcosrolim/rolim_prisao_e_ideologia.pdf.
Acesso em: 1º out. 2018.
SILVA, Joacir Avelino. A (in)segurança pública no Brasil. Revista Segurança Pública e
Cidadania, Brasília, v. 1, n. 2, p. 67-77, jul./dez. 2008.
SILVA, Jorge da. Questões atuais em segurança pública. In: COSTA, Ivone Freire;
BALESTRERI, Ricardo Brisolla (org.). Segurança pública no Brasil: um campo de
desafios. Salvador: Edufba, 2010. p. 69-90.
SILVA, Rui Antônio da. A segurança pública à luz da teoria geral dos sistemas. Revista
Segurança Pública e Cidadania, Brasília, v. 5, n. 1, p. 65-89, jan./jun. 2012.
SOARES, Luiz Eduardo. A política nacional de segurança pública: histórico, dilemas e
perspectivas. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 77-97, 2007. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142007000300006&script=sci_abstract
&tlng=pt. Acesso em: 26 jul. 2018.
SOARES, Luiz Eduardo. Segurança tem saída. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.
SOUZA, Adelson Joaquim de. Direito Fundamental à Segurança Pública. Âmbito Jurídico,
Rio Grande, ano XVIII, n. 133, fev. 2015. Disponível em: http://ambito‐juridico.com.br/
site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=15754. Acesso em: 27 maio 2018.

554
HOMESCHOOLING (ENSINO DOMICILIAR) X
DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO
Um direito dos pais?

Mona Lisa Duarte Aziz1

Sumário: 1 Introdução. 2. Jurisprudência. 2.1 Suprema Corte dos Estados Unidos.


2.2 Tribunais Europeus. 2.3 Recurso Extraordinário n. 888.815 do Supremo Tribunal
Federal. 3 Homeschooling: um direito dos pais? (entendimento doutrinário). 4 Titularidade
de direitos fundamentais em caso de menoridade e autonomia do menor. 5 Identificação do
conflito normativo e método de resolução. 5.1 Liberdade religiosa x dever de escolarização.
5.2 Frequência escolar obrigatória e princípio da proporcionalidade. 5.3 A fórmula do
peso de Alexy e a variável da fiabilidade. 6 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
A problemática em foco diz respeito à pretensão dos pais ou responsáveis de
escolher o meio de proporcionar a educação aos filhos e, no caso específico, optar
pelo homeschooling, que nada mais é do que o ensino prestado no ambiente domi-
ciliar, diretamente e/ou através de tutores, professores particulares ou especialistas
contratados. E, consequentemente, a impossibilidade do Estado de obrigá-los a
matricular os filhos na rede regular de ensino, seja pública ou privada, e de impor
sanções em decorrência do não cumprimento dessa obrigação.
Conflitos entre direitos de liberdade e ensino estatal obrigatório não são recentes.
Ainda no início do século passado, a Suprema Corte americana se pronunciou sobre
casos emblemáticos cujos julgamentos foram favoráveis aos direitos de liberdade
dos pais. Todavia, consoante se demonstrará no tópico a seguir, tais decisões não
abordaram a constitucionalidade do homeschooling e trataram de hipóteses especí-
ficas. Em especial, o paradigmático Wisconsin v. Yoder, 406 U.S. 205 (1972), no qual
fora reconhecido o direito de famílias da comunidade Amish de não matricular
os filhos no ensino secundário (high school)2 por motivações religiosas de cunho
comunitário, mostrou-se excepcional e de difícil repetição na prática.
Na Europa, a despeito de o ensino domiciliar ser permitido em vários países, em
alguns inclusive previsto no âmbito de suas Constituições,3 nos casos submetidos

1 Procuradora da República em Pernambuco. Mestranda em Direito e Ciências Jurídico-Políticas


2018/2019, especialidade Direito Constitucional, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
2 No Brasil, atualmente corresponde ao ensino médio (antes chamado de segundo grau).
3 Como, por exemplo, previsto no artigo 76 da Constituição da Dinamarca (disponível em: www.egov.
ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/21412-21413-1-PB.htm; acesso em: 2 fev. 2019) e no artigo 16
da Constituição da Finlândia (disponível em: www.finlex.fi/en/laki/kaannokset/1999/en19990731.pdf;
acesso em: 2 fev. 2019).

555
às Cortes Constitucionais de países onde o ensino domiciliar não é admitido, as
decisões foram no sentido de dar prevalência ao direito fundamental à educação,
enquanto direito subjetivo do menor e dever a ser prestado pelo Estado, para não
autorizar o homeschooling. No final de 2018, foi a vez de o Supremo Tribunal Federal
(STF) brasileiro apreciar a (in)constitucionalidade do ensino domiciliar. Embora a
decisão tenha sido mais tímida e deixado aberta a possibilidade de a matéria vir a
ser regulamentada através de lei, na oportunidade, a maioria dos ministros reco-
nheceu a constitucionalidade da legislação infraconstitucional, que exige a matrí-
cula obrigatória de crianças e adolescentes no ensino básico.4
Em relação à doutrina, tem-se, de um lado, os autores contrários ao homeschooling,
que conferem prioridade ao direito fundamental à educação em suas dimensões
individual e social; e, do outro, os seus defensores, os quais procuram respaldar a
autorização para o ensino domiciliar nos direitos e deveres decorrentes das respon-
sabilidades parentais, para além das liberdades de religião, consciência e credo e de
ensino dos pais. Nesse sentido, far-se-á sucinta análise acerca do exercício de direi-
tos fundamentais enquanto titularizados por menores, com especial atenção para a
autonomia reconhecida às crianças e aos adolescentes pela legislação internacional
nos últimos anos.
Finalmente, serão identificadas as normas em colisão e utilizado o método da
ponderação de Robert Alexy para fins de resolução do conflito normativo com todos
os seus elementos, nomeadamente o princípio da proporcionalidade e a fórmula
do peso. Nessa perspectiva, pretende-se descortinar se há e qual a intensidade da
intervenção nas liberdades religiosa e de ensino dos pais, bem assim em que medida
o direito fundamental à educação dos menores será afetado, caso seja desaplicada a
regra da escolarização obrigatória e autorizado o ensino domiciliar.

2 ∙ JURISPRUDÊNCIA
2.1 ∙ SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS
A matéria que ora se pretende debater já foi apreciada em Tribunais e Cortes
Constitucionais de vários países. Inicia-se a análise pela Suprema Corte dos Estados
Unidos, que possui julgados que versam sobre a liberdade de escolha dos pais na
educação dos filhos desde o início do século passado.5
A despeito do seu pioneirismo em julgar o tema, a Suprema Corte americana nunca
se manifestou especificamente sobre a constitucionalidade do homeschooling, mas sobre

4 De acordo com a Lei n. 9.394/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação no Brasil, a
educação básica é formada pela educação infantil, pelo ensino fundamental e pelo ensino médio
(art. 21). O ensino básico em Portugal, com início aos seis anos, vai do 1º ao 9º ano e não abrange o
ensino secundário (PORTUGAL, 2007, p. 9).
5 De acordo com Cássio Casagrande (2017): “A primeira vez que os juízes constitucionais americanos
se pronunciaram sobre a matéria foi no julgamento Meyer v. State of Nebraska, 262 U.S. 390 (1923)”.
No referido julgado, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de uma lei do Estado do
Nebraska, que proibiu que o ensino em escolas privadas fosse ministrado em outra língua que não
o inglês, por violar o devido processo legal substantivo sob o viés da proteção do direito individual
de contratar, de criar os filhos e de adquirir conhecimento (CASAGRANDE, 2017).

556
hipóteses concretas em que, de fato, prevaleceu a liberdade de escolha dos pais, porém se
atentando às especificidades dos casos para justificar o afastamento das normas estatais.
Com efeito, em um desses casos – Pierce, Governor of Oregon et. al v. Society of
the Sisters of the Holy Names of Jesus and Mary, 286 U.S. 510 (1925) – a Suprema
Corte declarou a inconstitucionalidade de uma lei do Estado do Oregon, que obrigava
a matrícula das crianças naquele estado, entre oito e dezesseis anos, exclusivamente
em escolas públicas.6 A corte entendeu que o ato legislativo impugnado representava
uma interferência irrazoável na liberdade dos pais e responsáveis de dirigir a edu-
cação de suas crianças, além de violar o direito de propriedade e de livre iniciativa
das instituições de ensino privado.7 Todavia, conforme observa Cássio Casagrande
(2017), não foi posta em julgamento a compulsoriedade da matrícula no ensino pri-
mário, uma vez que a lei do Oregon previa expressamente o homeschooling, tanto
o ministrado diretamente pelos pais quanto o por tutores (CASAGRANDE, 2017).
Sem dúvida o caso mais emblemático julgado pela Suprema Corte americana
na matéria foi Wisconsin v. Yoder, 406 U.S. 205 (1972), por meio do qual três famí-
lias da comunidade Amish brigaram pelo direito de não matricular os filhos no
ensino secundário (high school) em razão das crenças religiosas da comunidade. A
Suprema Corte concluiu que o ensino secundário obrigatório estaria em conflito
com o modo de vida simples que é parte integrante daquela específica comunidade.
No voto, formulado pelo justice Warren Burger, a corte consignou que não é qual-
quer crença religiosa que está albergada pela cláusula de liberdade da 1ª Emenda,
mas tão somente aquela que se evidencia em práticas objetivas, sem incluir a mera
elaboração de padrões individuais.8
Sobre a referida decisão, faz-se mister observar os seguintes pontos: (I) a decisão não
adentrou na questão da compulsoriedade do ensino primário ou fundamental;9 (II) o
julgamento aparentemente nega a possibilidade de os pais recusarem o ensino formal
regulado pelo Estado por motivos outros que não religiosos; (III) considerou a Suprema
Corte que mesmo alegações de objeção religiosa devem ser examinadas caso a caso.

2.2 ∙ TRIBUNAIS EUROPEUS


Em 2003, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha realizou a ponde-
ração entre os direitos de liberdade dos pais e a obrigação do Estado na prestação

6 Segundo consta do parecer do então procurador-geral da República Rodrigo Janot, nos autos do
Recurso Extraordinário n. 888.815, julgado pelo STF em 12.9.2018, essa lei objetivava “[...] obrigar
a assimilação dos migrantes na sociedade norte-americana” (BRASIL, 2018, p. 27-28).
7 Resumo da decisão disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/268/510/#534.
Acesso em: 30 jan. 2019.
8 Confira-se: “A way of life, however virtuous and admirable, may not be interposed as a barrier to
reasonable state regulation of education if it is based on purely secular considerations. [...] Beliefs which
are philosophical and personal, rather than religious, do not rise to the demands of the religion clause.
U.S.C.A.Const. Amends. 1, 14.” (Wisconsin v. Yoder, 406 U.S. 205, de 15.5.1972, p. 1526; disponível
em: https://www.law.columbia.edu/sites/default/files/microsites/gender-sexuality/yoder.pdf;
acesso em: 31 jan. 2019).
9 O ensino fundamental no Brasil tem duração de nove anos e inicia-se aos seis anos de idade (art. 32
da Lei n. 9.394/1996). Em Portugal, corresponde ao ensino básico (1º ao 9º ano).

557
do ensino e, como resultado, não autorizou a isenção da frequência escolar obriga-
tória.10 A ação fora ajuizada pela família Konrad, pertencente a uma comunidade
cristã, que pretendia educar os filhos em casa por entender que o ensino escolar
não estava de acordo com suas crenças religiosas. A corte alemã ressaltou que a
prestação da educação não se limita à aquisição do conhecimento, mas também
e sobretudo se destina a educar cidadãos responsáveis para participação de uma
sociedade democrática e plural. Objetivos esses que, conforme a decisão, não
seriam eficazmente atingidos através da educação domiciliar, ainda que sob a
supervisão do Estado.
No julgamento, foi consignado, ademais, que as intervenções nos direitos fun-
damentais dos pais são também proporcionais, uma vez que vão ao encontro do
interesse geral da sociedade em evitar o surgimento de sociedades paralelas, sepa-
radas por convicções religiosas ou filosóficas. Finalmente, considerou o Tribunal
Constitucional que a interferência na liberdade religiosa é razoável, porquanto os
pais mantêm a possibilidade de educar os filhos fora do horário escolar, e o sistema
de ensino é obrigado a respeitar as suas crenças e dissensões religiosas.11
Dessa decisão, os Konrad recorreram ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos
(TEDH), que declarou inadmissível a ação12 e concluiu que o estabelecimento do
ensino primário obrigatório não viola o artigo 2 do Protocolo n. 1 à Convenção
Europeia de Direitos Humanos, segundo o qual a ninguém deve ser negado o
direito à educação, enquanto o Estado, ao assumir o exercício de qualquer dessas
funções, deve assegurar que a prestação do ensino respeite as convicções religiosas
e filosóficas dos pais.13
De acordo com a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, a segunda
parte desse artigo deve ser lida em conformidade com a primeira, de modo que o
direito dos pais de terem respeitadas suas convicções religiosas e filosóficas encontra
limite justamente naquilo que não conflitar com o direito fundamental à educação
dos filhos.14 No caso específico, entendeu a corte que a frequência escolar compulsó-

10 Decisão 1 BvR 436 (2003), de 29.4.2003. Disponível em: https://www.bundesverfassungsgericht.


de/e/rk20030429_1bvr043603.html. Acesso em: 29 jan. 2019.
11 Resumo do caso pela Corte Europeia de Direitos Humanos no julgamento da Application n.
35504/03 by Fritz Konrad and Others against Germany, de 11.9.2006, p. 3-4. Disponível em: https://
hslda.org/content/hs/international/germany/konrad_decision.pdf. Acesso em: 30 jan. 2019.
12 Resumo do caso pela Corte Europeia de Direitos Humanos no julgamento da Application no.
35504/03 by Fritz Konrad and Others against Germany, de 11.9.2006, p. 6 e ss. Disponível em: https://
hslda.org/content/hs/international/germany/konrad_decision.pdf. Acesso em: 30 jan. 2019.
13 Tradução livre: “No person shall be denied the right to education. In the exercise of any functions
which it assumes in relation to education and to teaching, the State shall respect the right of parents
to ensure such education and teaching in conformity with their own religious and philosophical
convictions”. O TEDH possui um guia sobre a aplicação desse artigo, no qual consta um capítulo
específico sobre o respeito aos direitos dos pais. Disponível em: https://www.echr.coe.int/
Documents/Guide_Art_2_Protocol_1_ENG.pdf. Acesso em: 30 jan. 2019.
14 Nos termos da referida decisão: “It is on to this fundamental right that is grafted the right of parents
to respect for their religious and philosophical convictions (see B.N. and S.N. v. Sweden, cited above).
Therefore, respect is only due to convictions on the part of the parents which do not conflict with the
child’s right to education, the whole of Article 2 of Protocol Nº. 1 being dominated by its first sentence

558
ria não viola a liberdade religiosa, tampouco o direito de educar os filhos, uma vez
que tais liberdades restam asseguradas através do direito de escolher a instituição
de ensino na qual essas crianças vão estudar e do direito de recusa a frequentar as
aulas de religião, que não podem ser obrigatórias.
Por outro lado, registrou que os Estados membros da comunidade europeia pos-
suem margem de discricionariedade para organizar seus respectivos sistemas edu-
cacionais, tratando-se, destarte, de matéria afeta ao direito interno de cada país.15
Por fim, o TEDH também afastou a alegação de discriminação formulada pela
família em razão da autorização, na Alemanha, para o homeschooling em hipóteses
específicas, tais como: impossibilidade física de a criança frequentar a escola e pais
que não possuem morada fixa por motivos profissionais. De acordo com a decisão,
trata-se de situações distintas que justificam o tratamento diferenciado, às quais
não se equipara a situação dos requerentes, que pleitearam o direito ao ensino domi-
ciliar por questões religiosas.16
Outro tribunal constitucional europeu que apreciou a matéria foi o espanhol.
De acordo com a Sentencia 113 (2010), o homeschooling é incompatível com a
Constituição espanhola, uma vez que a liberdade de ensino consagrada constitu-
cionalmente permite que os pais ensinem os filhos fora do ambiente escolar, porém,
em hipótese alguma, autoriza a escolarização à margem de instituições oficiais
públicas ou privadas.17 O tribunal também analisou o caso à luz do princípio da
proporcionalidade e chegou à conclusão de que a afetação à liberdade de ensino
e de formação religiosa/moral dos pais é proporcional, porquanto encontra justi-
ficativa na satisfação de outros princípios e direitos constitucionais, quais sejam,

(see Campbell and Cosans v. the United Kingdom, 25 February 1982, § 36, Series A nº. 48). This
means that parents may not refuse a child’s right to education on the basis of their convictions.”
(Application n. 35504/03 by Fritz Konrad and Others against Germany, de 11.9.2006, p. 6;
disponível em: https://hslda.org/content/hs/international/germany/konrad_decision.pdf; acesso
em: 30 jan. 2019).
15 Na comunidade europeia, não há consenso acerca do tratamento conferido à matéria pelos países-
-membros. Em resumo, por María José Valero Estarella (2014, p. 279-280): “No les descubro nada
nuevo si les digo que en Europa, como cabe esperar en un continente en el que conviven muy diversas
sensibilidades en materia de educación, el panorama legislativo en materia de homeschooling es
muy variado. Mientras que en Irlanda, Finlandia o Dinamarca la educación en casa está prevista de
un modo u otro en sus respectivas constituciones, en Alemania no sólo no está permitida sino que se
persigue activamente a los padres que optan por ella. En otros países como Bélgica, Portugal, Francia,
Italia, Austria y Reino Unido, se admite legalmente la educación en casa sometida a ciertos controles,
al contrario de lo que ocurre en Grecia, dos de los Cantones Suizos, Países Bajos, Bulgaria, Rumanía
o Croacia, en los que la ley no reconoce la educación al margen del sistema escolar”.
16 Confira-se: “Such exemptions were granted by the school supervisory authorities because the
limited feasibility of school attendance would have caused undue hardship for those children. Those
exemptions were hence granted for merely practical reasons, whereas the applicants sought to obtain
an exemption for religious purposes. Therefore, the Court finds that the above distinction justifies a
difference of treatment”. (Application n. 35504/03 by Fritz Konrad and Others against Germany,
de 11.9.2006, p. 9; disponível em: https://hslda.org/content/hs/international/germany/konrad_
decision.pdf; acesso em: 30 jan. 2019).
17 Sentencia 133/2010, de 2 de dezembro, Recurso de amparo 7509-2005. Disponível em: http://
hj.tribunalconstitucional.es/es/Resolucion/Show/6772. Acesso em: 30 jan. 2019.

559
“pleno desenvolvimento da pessoa humana, respeito aos princípios democráticos de
convivência e aos direitos e liberdade fundamentais”.18

2.3 ∙ RECURSO EXTRAORDINÁRIO N. 888.815


DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O Supremo Tribunal Federal (STF), em 12 de setembro de 2018, por maio-
ria, ao apreciar o tema 822 da repercussão geral,19 negou provimento ao Recurso
Extraordinário (RE) n. 888.815, vencido o ministro Luís Roberto Barroso (relator)
e, em parte, o ministro Edson Fachin.20
Através do RE, uma família do Estado do Rio Grande do Sul requereu ao STF o
reconhecimento do direito ao ensino domiciliar, que fora negado nas instâncias infe-
riores. O ministro relator entendeu que o homeschooling é constitucional, razão pela
qual, consoante os fundamentos adotados em seu voto, seria permitido aos pais ou
responsáveis escolherem o método pelo qual os filhos receberão a educação formal,
o que não impede a legislação infraconstitucional de regular o seu funcionamento.
Na sequência do voto, registrou que é a regulamentação legal que vai conciliar o
direito dos pais de dirigir a educação dos filhos e o dever do Estado de contribuir
para o desenvolvimento normal e pleno da criança e do adolescente. Enquanto não
sobrevém legislação para regulamentar a matéria, o ministro Roberto Barroso deu
provimento ao RE e fixou as condições pelas quais o ensino domiciliar poderia ser
prestado, que seriam, basicamente, vinculação a uma instituição de ensino oficial,
submissão das crianças a avaliações periódicas e fiscalização por órgãos públicos
como o Ministério Público.21
O ministro Edson Fachin acolheu a tese da constitucionalidade da opção
pelo homeschooling e somente divergiu do relator em relação à possibilidade de

18 Tradução livre do Artigo 27.2 da Constituição espanhola: “La educación tendrá por objeto el pleno
desarrollo de la personalidad humana en el respeto a los principios democráticos de convivencia y a
los derechos y libertades fundamentales”. Disponível em: http://www.lamoncloa.gob.es/documents/
constitucion_es1.pdf. Acesso em: 30 jan. 2019.
19 Previsto na Constituição Federal brasileira (art. 102, § 3º, acrescido pela Emenda Constitucional n.
45/2004), o instituto da repercussão geral foi regulamentado pelo Código de Processo Civil, que,
no § 5º do art. 1.035, dispõe: “Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal
Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais
ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional”.
20 RE n. 888.815-RS. Relator: Min. Roberto Barroso. Redator do acórdão: Min. Alexandre de Moraes,
julgado em 12 de setembro de 2018. Tribunal Pleno, publicação no DJ n. 55, 21 mar. 2019. Disponível
em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340148604&ext=.pdf. Acesso em:
24 maio 2020.
21 Confira-se o trecho extraído do resumo do voto do ministro constante da página eletrônica do
tribunal: “[...] os pais devem notificar as Secretarias Municipais de Educação sobre a opção pelo
ensino domiciliar; as crianças devem ser submetidas a avaliações periódicas; os dados podem ser
compartilhados com outras autoridades, como Ministério Público; e se for comprovada a deficiência
na formação acadêmica, os pais serão notificados e, caso não haja melhoria no rendimento da
criança ou do adolescente, os órgãos públicos competentes determinarem a matrícula nos
estabelecimentos regulares”. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=389073. Acesso em: 30 jan. 2019.

560
implementar o ensino domiciliar antes de editada lei para disciplinar a matéria.
Nesse sentido, deu parcial provimento ao recurso extraordinário para que o legisla-
dor fosse instado a sanar a mora e editar a lei no prazo máximo de um ano.
Contrariamente, a maioria do colegiado entendeu que a legislação infraconsti-
tucional, que obriga a matrícula na rede regular de ensino,22 está condizente com os
mandamentos constitucionais que preveem o direito fundamental à educação. Dois
ministros – Luiz Fux e Ricardo Lewandowski – foram mais além e reconheceram
a inconstitucionalidade do homeschooling, uma vez que, entre outros fundamentos,
não cumpriria eficazmente os objetivos de socialização do indivíduo e preparação
para o exercício da cidadania. Os demais, nos termos do voto do ministro Alexandre
de Moraes (redator do acórdão), julgaram que o ensino domiciliar é uma possibili-
dade e que somente através de lei poderá ser autorizado, caso assim venha a entender
o Parlamento, fórum adequado e exclusivo para debater e decidir sobre a questão.23

3 ∙ HOMESCHOOLING: UM DIREITO DOS PAIS?


(ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO)
A doutrina contrária ao homeschooling confere prevalência ao direito à edu-
cação, enquanto direito subjetivo dos menores, em relação a eventual direito ou
liberdade de escolha dos pais e entende não caber a estes a decisão de afastar os
filhos do ensino regulado pelo Estado. Primeiro porque, em regra, como não se
trata de especialistas no assunto, tão somente o fato de quererem o melhor para
suas crianças não confere aos pais necessariamente aptidão para decidirem sobre o
método de educação mais adequado a ser oferecido a elas.
Nesse sentido, aduz Virgílio Afonso da Silva (2018), em artigo no qual comenta
o voto vencido do ministro do STF Luís Roberto Barroso, relator do RE n. 888.815,
supramencionado:24 “Permitir educação doméstica segue essa mesma lógica: dar
poder total de decisão a quem não tem nenhuma formação para saber o que, em
termos educacionais e pedagógicos, é de fato melhor para crianças”.
Esse mesmo autor rechaça de forma veemente o argumento adotado no voto
do ministro Roberto Barroso de que regulamentar o controle por parte do Estado
seria suficiente para garantir a qualidade da prestação desse método de ensino. Isso
porque, assevera, se até mesmo os pais sem formação específica alguma podem ser
os educadores, nenhum tipo de fiscalização funcionaria. Acrescenta, ademais, que
autorizar o ensino domiciliar significa conferir aos pais autonomia educacional
para decidirem que métodos de ensino e visões de mundo serão transmitidos para

22 Os dispositivos são os seguintes: art. 6º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) – Lei n. 9.394,
de 20 de dezembro de 1996: “É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na
educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade.” (Redação dada pela Lei n. 12.796, de 2013); e
art. 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990: “Os pais
ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”.
23 Resumo do julgamento disponível em http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idCon
teudo=389496. Acesso em: 30 jan. 2019.
24 Inteiro teor do acórdão disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?
id=15340148604&ext=.pdf. Acesso em: 24 maio 2020. Para maior aprofundamento sobre a
jurisprudência, remete-se ao Item 2.

561
essas crianças, sem que seja possível avaliar tais escolhas simplesmente por meio de
provas, enquanto uma das funções da escola é oferecer aos alunos uma educação
com visões alternativas e de bases científicas.25
Em reforço a essa perspectiva, autores contrários ao ensino domiciliar enfati-
zam, na linha do preconizado pelos tribunais, que a questão do convívio da criança
com a diversidade e do contato com o pluralismo de ideias não é algo com que
os pais possam transigir. De acordo com Eliana Pires Rocha (2018), não obstante
detenham primazia em relação a intervenções de terceiros na criação e educação
dos filhos, enquanto por eles responsáveis e seus representantes legais, isso não
autoriza os pais a se isentarem do cumprimento de obrigações e deveres sociais e
legais, em razão do mero fato de não quererem que seus filhos tenham contato com
concepções e ideologias outras que não aquelas que considerem corretas e sigam.26
Finalmente, defendem que a responsabilidade continue a ser compartilhada
pelas famílias e pelo Estado,27 sem que haja alternatividade ou exclusividade na
condução da educação dos filhos, na medida em que ambas as instâncias possuem
interesse no pleno desenvolvimento e na integração social das crianças.28

25 Nas palavras do autor: “De outro lado, o ministro relator parece não atentar para o fato de que essa
proposta de controle é incompatível com seus próprios pontos de partida. Se a educação doméstica
tem como suposta finalidade dar autonomia educacional a mães e pais, para decidirem não apenas
onde suas crianças vão aprender, mas também por quais métodos e a partir de quais visões de
mundo, então não há como avaliar essas escolhas por meio de provas, para então considerar
algumas como certas, outras como erradas. A educação doméstica não é apenas uma escolha pelo
prédio no qual as aulas ocorrerão (casa em vez de escola), ela é uma escolha por conteúdos, por
ideias, por visões de mundo. Assim, quem acredita que a Terra é plana e está no centro do universo
teria que ter a liberdade de ensinar suas crianças dessa forma. Não há outra saída. Que a Terra
não é plana, sabe-se há alguns milênios. Que ela não está no centro do universo, sabe-se há alguns
séculos. Ainda assim, pais e mães sempre poderão defender o terraplanismo ou o geocentrismo em
casa.” (SILVA, 2018).
26 Ao analisar o tema na perspectiva democrática da educação, acentuou a procuradora da República
no Brasil em artigo de sua lavra: “Sem dúvida, as figuras materna e paterna contam com uma forte
discricionariedade para educar seus descendentes. Existe uma obrigação parental que lhe dá essa
primazia, inclusive para que terceiros não interfiram no seu poder familiar. Mas tal preferência
não dispensa o cumprimento de deveres e obrigações sociais e legais, tampouco dá o direito de
isolar as crianças do contato com outras formas de vida ainda que contrárias ao modelo familiar.”
(ROCHA, 2018).
27 Nas Constituições brasileira e portuguesa existem previsões expressas nesse sentido:
Constituição brasileira: “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. [...]
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.”
Constituição portuguesa, alínea c do n. 2 do artigo 67º: “Incumbe, designadamente, ao Estado para
proteção da família: Cooperar com os pais na educação dos filhos; [...]”.
28 Nesse sentido, os comentários da professora brasileira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) Maria Celina Bodin de Moraes: “[...] mais do que instrução, a escola proporciona à criança

562
Do outro lado do conflito, os defensores do ensino domiciliar advogam a auto-
nomia dos pais na escolha da forma de instrução dos filhos com supedâneo, basi-
camente, no poder familiar,29 na liberdade de ensino (art. 206, II, da Constituição
Federal brasileira – CF; artigo 43º da Constituição da República Portuguesa – CRP);
no direito ao livre planejamento familiar (art. 226, § 7º, da CF); e no dever que
têm os pais de “assistir, criar e educar os filhos menores” (art. 229 da CF; artigo
36º, n. 5, da CRP). Para além disso, apoiam-se em diplomas internacionais que dão
prioridade aos pais na condução da educação dos filhos, a exemplo da Declaração
Universal dos Direitos Humanos e do Pacto de São José da Costa Rica.30
Nos Estados Unidos, há ainda quem tenha defendido o homeschooling com base
num suposto “direito de saída” (right to exit) dos pais que não concordem com os
paradigmas do ensino escolar e não desejem submeter suas crianças ao projeto
público educacional.31
Pode-se constatar, destarte, que os autores contrários ao homeschooling priorizam
o direito fundamental à educação em suas dimensões subjetiva e objetiva. Em relação
ao primeiro aspecto, esclareça-se que se trata de um direito de titularidade dos meno-
res e, portanto, sujeitos ativos da relação jurídico-subjetiva estabelecida; na dimen-
são objetiva, para além de deveres de proteção por parte do Estado,32 traz a lume a

e ao adolescente habilidades fundamentais decorrentes do convívio com os coetâneos, bem como


o conhecimento das regras sociais, a formação da cidadania e a imersão em ambientes ventilados,
com problemas e soluções individuais e sociais diferenciados, ao mesmo tempo em que, confia-se,
a educação permanece sendo o objetivo primordial da família. As duas instâncias atuam, portanto,
em conjunto, e não alternativamente.” (MORAES, 2017, p. 2).
29 A expressão “pátrio poder”, que remetia exclusivamente à figura paterna, foi substituída no Código
Civil brasileiro (CCB) de 2002 por “poder familiar”, a fim de deixar claro que a condução da criação
e da manutenção dos filhos compete indistintamente ao pai e à mãe (art. 1.634 do CCB). Em
Portugal, a legislação civil foi alterada (artigo 1878º do Código Civil português) para incorporar a
expressão “responsabilidades parentais”, utilizada pela Convenção sobre os Direitos das Crianças
(promulgada no Brasil pelo Decreto n. 99.710, de 21 de setembro de 1990, também ratificada por
Portugal em 21.9.1990; disponível em: https://www.unicef.pt/media/1206/0-convencao_direitos_
crianca2004.pdf; acesso em: 31 jan. 2019) e pela Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos
das Crianças (aprovada em Portugal pela Resolução da Assembleia da República n. 7/2014).
30 A saber, artigo 26.3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Aos pais pertence a prioridade
do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos”; e artigo 12.4 do Pacto de São José da
Costa Rica: “Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam
a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”.
31 “The homeschooling community, or at least the best organized part of it, seeks quite explicitly to exit
this intergenerational social compact, by which one generation funds the education of the next in the
interest of building a strong civil society. Their legal advocates and the occasional lower court have
articulated the contours of a constitutional right to home schooling, under the First Amendment’s
free exercise clause, or both. Whatever the textual backing, the logic and rhetoric is that of exit:
Parents should have the right to exit this core feature of the social contract and core function of the
state in civil society.” (WEST, 2014, p. 901).
32 Em razão da limitação temática, o presente estudo não se deterá nas implicações decorrentes da
distinção entre direitos de liberdade, os quais funcionam classicamente como direitos de defesa,
ou seja, direito de não sofrer embaraços do Estado e eventualmente de particulares em seu gozo
(ações negativas), e direitos sociais, que conferem direitos a prestações estatais, fáticas e normativas
(ações positivas). Adotar-se-á a concepção segundo a qual as normas de direitos fundamentais

563
íntima ligação entre os direitos fundamentais e os fins e valores preconizados pela
Constituição, que devem ser observados e cumpridos por todos os seus cidadãos.33
Em sentido diametralmente oposto, a doutrina favorável ao ensino domiciliar des-
loca o foco do debate do direito fundamental das crianças para a liberdade de opção
dos pais e se fundamenta em normas referentes aos direitos e deveres parentais, a fim
de respaldar o direito dos pais de promover diretamente a educação dos filhos, para
além do direito de escolher a instituição de ensino na qual esses vão estudar.34

4 ∙ TITULARIDADE DE DIREITOS FUNDAMENTAIS


EM CASO DE MENORIDADE E AUTONOMIA DO MENOR
Inicialmente, deve-se pontuar que, em matéria de direitos fundamentais, não é
possível transpor pura e simplesmente a distinção do direito civil entre capacidade
de gozo e capacidade de exercício. Consoante as lições de Jorge de Miranda e Rui
Medeiros (2010, p. 209), a capacidade de gozo de direitos fundamentais implica
capacidade de exercício, uma vez que, nas palavras dos autores, “[...] os direitos fun-
damentais são estabelecidos em face de certas qualidades prefixadas pelas normas
constitucionais e, portanto, atribuídos a todos que as possuem”.35 Esse entendimento
é corroborado por J.J. Gomes Canotilho (2003, p. 424/425) ao ressaltar que é bas-
tante problemática a disjunção entre titularidade e capacidade de exercício quando
se trata de direitos dessa natureza, porquanto pode ser utilizada sob o pretexto de
incidir tão somente sobre a capacidade de exercício, sem supostamente afetar a titu-
laridade do direito, para o fim de respaldar, na verdade, restrições inconstitucionais
e indevidas de direitos, liberdades ou garantias fundamentais.

compreendem um complexo de posições jurídicas, tanto de natureza negativa como positiva.


Para maior desenvolvimento, ver Alexy (2015, p. 193 a 233 e 433 e ss.). Em sentido semelhante,
José de Melo Alexandrino concorda com a proposição em termos estruturais, porém não para
fins de definição do regime jurídico aplicável: “Em termos da respectiva estrutura jurídica (sem
prejuízo do caráter complexo de algumas dessas dimensões subjectivas), é possível verificar como
é reduzido o número de casos de (posições de) direitos fundamentais de natureza análoga de
estrutura meramente defensiva e menos ainda de liberdades, ou seja, de pretensões cujo objecto
seja a alternativa de acção ou a plena latitude de escolha dos comportamentos (Belibigkeit des
Verhaltenskönnen): diríamos mesmo que, em termos quantitativos, essa possibilidade constitui
excepção e não a regra. Em segundo lugar, confirma-se a existência entre os direitos fundamentais
de natureza análoga de todos os tipos estruturais, mesmo de direitos a acções positivas em sentido
estrito (ou seja, de direitos a prestações materiais).” (ALEXANDRINO, 2006, p. 274, grifo do autor).
33 Nesse sentido: “Já a perspectiva objetiva das normas de direitos sociais reflete o estreito liame
desses direitos com o sistema de fins e valores constitucionais a serem respeitados e concretizados
por toda a sociedade (princípio da dignidade da pessoa humana, superação das desigualdades
sociais e regionais, construção de uma sociedade livre, justa e solidária).” (SARLET, 2014, p. 541).
34 Nesse sentido, a posição do ministro do Superior Tribunal de Justiça brasileiro Franciulli Netto: “Impende
realçar que o importante é o respeito à liberdade de escolha dos pais. Se a eles é dado o direito de
escolher entre escolas públicas e particulares, por que privá-los do direito de educar seus próprios filhos,
submetendo essa educação às avaliações oficiais de suficiência?” (FRANCIULLI NETTO, 2007, p. 236).
35 Em sentido diverso: “Os titulares dos direitos fundamentais, por seu turno, são os seus sujeitos
ativos, ‘os titulares do poder de agir’, os sujeitos das relações jurídicas oriundas das normas dos
direitos fundamentais, e, além disso, entendemos principalmente, que os titulares são os detentores
da possibilidade de exercício dos direitos fundamentais.” (NUNES, 2007, p. 42).

564
Desse modo, não há que se falar, no caso de liberdades e direitos fundamentais titula-
rizados por menores, em qualquer tipo de limite ou restrição em seu exercício por inca-
pacidade de agir, uma vez que a Constituição não estabeleceu, e de acordo com J.J. Gomes
Canotilho e Vital Moreira (2007, p. 331), “nem poderia estabelecer” limites mínimos de
idade para condicionar o seu exercício tal como ocorre no âmbito dos direitos civis.36
Em relação ao reconhecimento da autonomia dos menores para o exercício de
direitos fundamentais, registre-se a guinada que sobreveio com a Convenção sobre
os Direitos das Crianças, aprovada pela Assembleia Geral da ONU de 20 de novem-
bro de 1989. A partir de então, foram reconhecidos direitos de liberdade à crian-
ça,37 que passou a ser tratada como sujeito de direitos com capacidade de exercício,
diversamente do que dispunham os diplomas internacionais anteriores,38 os quais
tradicionalmente atribuíam aos menores tão somente direitos relacionados com
a sua proteção, destinados ao Estado e normalmente dependentes de atuação dos
pais.39 Especificamente sobre o direito à educação, a Convenção de 1989, ao prever a
responsabilidade primordial dos pais em sua condução, determina que os interesses
superiores da criança constituam a preocupação básica.40
Assim, embora não exista definição clara sobre como resolver eventuais confli-
tos de interesses entre pais e filhos no tocante ao exercício de direitos fundamentais,

36 Os autores registram, por outro lado, uma hipótese em que a capacidade de gozo e exercício de
direitos fundamentais poderia fazer sentido para chegarem à conclusão exposta no texto acima
como regra geral. Confira-se: “Poderia, porventura, pensar-se que a distinção teria interesse nos
casos em que certos direitos fundamentais dependem de outros ou nos casos em que exigem
uma certa idade para poderem ser exercidos (cfr. Art. 49º). A Constituição não estabelece nem
poderia estabelecer, de resto, limites rígidos de idade como acontece no campo do direito civil.”
(CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 331).
37 A saber, direito à liberdade de expressão e opinião (art. 13); de pensamento, consciência e religião
(art. 14); liberdade de associação e reunião (art. 15) e liberdade de informação (Convenção sobre
os Direitos da Criança, promulgada no Brasil pelo Decreto n. 99.710, de 21 de setembro de 1990,
também ratificada por Portugal em 21.9.1990; disponível em: https://www.unicef.pt/media/1206/0-
convencao_direitos_crianca2004.pdf; acesso em: 31 jan. 2019).
38 A criança é objeto de proteção especial pela comunidade internacional desde longa data. A primeira
declaração sobre direitos da criança foi aprovada pelas Nações Unidas em 1924 (Declaração dos
Direitos da Criança da Sociedade das Nações Unidas), a qual ficou conhecida posteriormente como
Convenção de Genebra; depois foi aprovada a 1ª Declaração Universal dos Direitos da Criança
da ONU em 20 de novembro de 1959. Embora esses documentos não tenham atribuído o status
de sujeito de direitos à criança, o que somente viria a ocorrer com a Convenção de 1989, ambos
representaram importantes marcos na defesa e proteção de seus direitos.
39 Entendimento compartilhado na tese de Soraia Marlene Leite Gonçalves, segundo a qual: “A
Convenção personificou um importante marco a favor do reconhecimento da autonomia da criança,
uma vez que passou a atribuir-lhe a possibilidade de assumir, por si mesma, o exercício dos seus
direitos subjetivos, contrariamente ao que sucedia até aí, onde lhe eram reconhecidos apenas direitos
de proteção que só ao Estado e aos adultos cabia definir e ativar.” (GONÇALVES, 2016, p. 62).
40 Confira-se o artigo 18 da referida Convenção: “1. Os Estados partes envidarão os maiores esforços
para assegurar o reconhecimento do princípio de que ambos os pais têm responsabilidades comuns
na educação e desenvolvimento da criança. Os pais e, quando for o caso, os representantes legais
têm a responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança. Os interesses
superiores da criança constituirão sua preocupação básica.” (Promulgada no Brasil pelo Decreto n.
99.710, de 21 de setembro de 1990, também ratificada por Portugal em 21.9.1990).

565
resta evidente que o menor possui autonomia para exercer direitos e liberdades
em seu próprio nome e independentemente da vontade de seus pais, desde que,
obviamente, possua capacidade de expressar sua vontade e maturidade para tanto.41
E, quando isso não for possível, deve-se ter em mente que são os interesses dos
menores, e não os dos pais ou responsáveis, que devem guiar a forma e o modo de
exercício desses direitos fundamentais.42
Nessa perspectiva, os direitos e obrigações relacionados à responsabilidade paren-
tal devem ser lidos em consonância com a autonomia reconhecida ao menor, sendo
certo que, como a própria expressão indica, trata-se de um instituto que implica
muito mais deveres em relação aos filhos do que prerrogativas, as quais, ressalte-se,
encontram limites naquilo que for definido como o melhor interesse da criança.43

5 ∙ IDENTIFICAÇÃO DO CONFLITO NORMATIVO


E MÉTODO DE RESOLUÇÃO
5.1 ∙ LIBERDADE RELIGIOSA X DEVER DE ESCOLARIZAÇÃO
Inicialmente, deve-se identificar as normas em eventual colisão, a fim de perqui-
rir se de fato existe um conflito normativo e se esse tipo de conflito enseja resolução
mediante ponderação, uma vez tratar-se de método subsidiário.44 Verifica-se da

41 Sobre o assunto, ponderam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira: “Por outro lado, a ponderação
a efectuar no caso de conflito de direitos pode merecer respostas diversas consoante as idades
(direitos ao exercício de certos direitos como liberdade de aprender e direito de educação dos pais).
Mas é duvidoso que nesses casos se trate apenas de incapacidade de exercício.” (CANOTILHO;
MOREIRA, 2007, p. 331-332). Em relação à prática de atos médicos, da legislação portuguesa
colhem-se vários exemplos de leis que reconhecem a autonomia do menor, tais como: Lei n.
21/2014, de 16 de abril, que dispõe sobre investigação científica, em seu artigo 7º exige que, no caso
de menores de dezesseis anos, o consentimento dos representantes legais para o estudo clínico
“reflita a vontade presumível do menor”; o artigo 8º, n. 4, da Lei n. 12/1993, de 22 de abril, com as
alterações da Lei n. 22/2007, de 19 de junho, dispõe que “[a] dádiva e colheita de órgãos, tecidos
e células de menores com capacidade de entendimento e de manifestação de vontade carecem
também da concordância destes”.
42 Esse é o pensamento dos professores brasileiros da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Maria
Celina Bodin de Moraes e Eduardo Nunes de Souza, que trazem a lume o conceito de poder jurídico,
no qual não se pretende adentrar neste momento: “Dentre o amplo espectro de deveres inseridos
no conteúdo do poder familiar está o dever de prover a devida educação aos filhos, conforme
preveem o art. 229 da Constituição e o art. 1.634 do Código Civil. Causa estranheza, portanto, que
qualquer controvérsia relativa ao tema da educação dos filhos seja abordada prioritariamente pelo
prisma de uma suposta liberdade do titular do poder jurídico – ou, ao menos, de uma liberdade
funcionalmente voltada ao interesse desse titular, em lógica completamente alheia à configuração
da situação jurídica subjetiva denominada poder jurídico.” (MORAES; SOUZA, 2017, p. 6-7).
43 Nessa direção: “En el plano jurídico, como consecuencia de la generalización del criterio del favor
minoris como el más importante principio inspirador y rector de cualquier normativa que afecte a la
juventud y la infancia, el menor ha pasado de ser percibido como un mero sujeto pasivo sometido a
padres, tutores o guardadores, a ser considerado primordialmente como protagonista de su propia vida
y titular de una pluralidad de derechos fundamentales cuyo adecuado desarrollo integral compete a una
pluralidad de sujetos, incluidos los poderes públicos.” (ESTARELLA, 2014, p. 277-278).
44 Sobre a aplicação da ponderação como método subsidiário e a utilização de outras normas de
resolução a depender do tipo de conflito normativo, isto é, lex superior e lex posterior (conflito

566
jurisprudência analisada que a liberdade religiosa (art. 5º, VI, da CF; art. 41º da
CRP) é sempre invocada pelos pais, ademais da liberdade de ensino (art. 206, II, da
CF; artigo 43º.1 da CRP),45 como justificativa para a pretensão do homeschooling e,
assim, tentarem se isentar da obrigação de matricular os filhos menores na escola.
No caso do Direito brasileiro, as normas que preveem a escolarização obrigatória
estão previstas no art. 6º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) – Lei
n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – e no art. 55 do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) – Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990.46
De partida, afasta-se a falsa premissa de que, por se tratar de choque entre prin-
cípios e regras,47 o conflito seria resolvido em favor dos princípios da liberdade de
religião e de ensino, uma vez que esses teriam um peso maior. Com efeito, de acordo
com Pedro Moniz Lopes (2018, p. 276-277), todas as normas são dotadas do atri-
buto da derrotabilidade, que “resulta diretamente da própria estrutura normativa
geral (i.é. regras e princípios)”, ou seja, são aplicáveis prima facie, porquanto, uma
vez verificadas determinadas circunstâncias, que podem ser fáticas ou jurídicas, a
norma poderá ser afastada. Assim, à luz da derrotabilidade, nenhuma norma atri-
bui uma posição jurídica definitiva.48
Ademais, no caso de que se cuida, as regras que estabelecem a matrícula obri-
gatória no ensino formal derivam diretamente das normas constitucionais que pre-
veem o direito fundamental à educação e do correlato dever do Estado de prestação
do ensino.49 Assim, não há que se falar em hierarquia entre as normas porque as

do tipo total-total); lex specialis (conflito total-parcial), ponderação (conflito parcial-parcial),


consulte-se Duarte (2010, p. 51-62).
45 A análise do conflito com a liberdade de ensino será feita no item seguinte.
46 Em Portugal, não se encontram dispositivos semelhantes, uma vez que o homeschooling é autorizado
e regulamentado por uma legislação esparsa (Decreto-Lei n. 553/1980, de 21 de novembro, c/c
Despacho n. 19 944/2002, de 10 de setembro).
47 Sobre a distinção entre regras e princípios, Pedro Moniz Lopes (2017, p. 471-490) discorda do
critério de diferenciação proposto por Alexy, segundo o qual princípios se aplicam por ponderação,
enquanto as regras por subsunção (ALEXY, 2008, p. 15, 2015, p. 86 e ss.). Após análise crítica desse
e de outros critérios, Pedro Lopes (2017, p. 471-490) assume que o critério de distinção mais sólido
é o da (in)determinabilidade da conduta hipotética, ou seja, se a norma apresentar em sua previsão
uma conduta específica, será uma regra, do contrário, tratar-se-á de um princípio.
48 No mesmo raciocínio, o autor continua: “Por outro lado, deve-se entender que as regras gozam
de uma determinada resistência à derrota e, inclusivamente, de uma precedência aplicativa prima
facie em relação a princípios conflitantes, o que significa que não basta afirmar que um princípio,
tem, in casu, mais peso que uma regra conflitante para que a última seja preterida em função do
primeiro.” (LOPES, 2018, p. 276-277).
49 Como, por exemplo, no caso da Constituição brasileira:
“Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada
inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; (Redação
dada pela Emenda Constitucional n.º 59, de 2009); [...]
§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.
§ 2º O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa
responsabilidade da autoridade competente.

567
liberdades religiosa e de ensino estão previstas na Constituição, tampouco em espe-
cialidade, porque a regra que determina a matrícula obrigatória dos menores na
escola regulamenta o dever também constitucional do Estado de prestar a educação.
Esse tipo de conflito normativo somente é resolúvel por ponderação, uma vez que
não existe para essa hipótese regra de prevalência aplicável (lex superior, lex poste-
rior ou lex specialis), por isso é necessário avaliar concretamente qual a norma mais
adequada para regular o caso e que deve prevalecer, portanto.50
Por outro lado, faz-se mister esclarecer que não será qualquer tipo de objeção
religiosa que terá o condão de respaldar a alegação de ofensa à liberdade de reli-
gião, consciência e credo. Constata-se, pois, em muitos casos, que sob a arguição de
defesa da liberdade religiosa, esconde-se na verdade a mera discordância dos pais
quanto a alguns aspectos da educação prestada – educação sexual ou de gênero,
por exemplo – ou de conteúdos ministrados, inclusive de cunho científico, como
comumente a teoria da evolução, no caso de pais que são adeptos do criacionismo.51
Tal circunstância, por óbvio, somente poderá ser avaliada no caso concreto, por
isso é certo que se poderá falar em afetação à liberdade de religião acaso, de fato,
seja demonstrada a contrariedade do ensino escolar em relação a valores essenciais
comungados por determinada comunidade religiosa e não meramente com padrões
individuais ou convicções pessoais, na linha do decidido pela Suprema Corte ame-
ricana no paradigmático e já citado Wisconsin v. Yoder. 52
Imagine-se, por exemplo, a hipótese de crianças ou adolescentes em idade de
escolarização obrigatória pertencentes a uma comunidade religiosa cujos dogmas
e valores estivessem em choque com a educação prestada pelo Estado. Nesse caso,
tratar-se-ia de um conflito do tipo parcial-parcial, que ocorre quando duas normas,
que possuem âmbitos de aplicação distintos e, portanto, não conflitam em regra,

§ 3º Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a


chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola.”
50 Nesse sentido, as lições de David Duarte, segundo o qual se trata de um tipo de conflito verificável
em concreto: “As the former distinction between abstract and concrete normative conflicts already
suggested, normative conflicts that are only solvable by balancing are, in what concerns the legal
hypotheses, those coming from a partial – partial connection. For these conflicts there is no norm of
conflicts available (in fact, no norm of that kind is conceivable): it is a concrete conflict and it is not
possible to define, abstractly in advance, what would be the chosen norm.” (DUARTE, 2010, p. 57).
51 Um exemplo pode ser visto em consulta à p. 4 da petição inicial do Recurso Extraordinário n. 888.815,
do STF. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/
ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=4774632. Acesso em: 24 jan. 2019. Também
no relato das circunstâncias do caso alemão submetido ao TEDH fica evidente a discordância dos
pais em relação ao tipo de educação e conteúdos ministrados (Application n. 35504/03 by Fritz
Konrad and Others against Germany, de 11.9.2006, p. 1; disponível em: https://hslda.org/content/
hs/international/germany/konrad_decision.pdf; acesso em: 30 jan. 2019).
52 Nesse mesmo sentido, o parecer da Procuradoria-Geral da República no RE n. 888.815 (BRASIL,
2018, p. 29), ao comentar o mencionado julgamento da Suprema Corte: “[...] A decisão unânime
foi no sentido de que não é qualquer crença que se favorece da cláusula de liberdade religiosa da
Primeira Emenda, mas aquelas que se evidenciam em práticas religiosas objetivas, sem incluir
a mera elaboração de padrões individuais”. Para maior detalhamento sobre a jurisprudência,
remete-se ao Item 2.

568
em determinadas condições incidem sobre os mesmos sujeitos em idêntica situação
hipotética – são as chamadas interseções – e geram a incompatibilidade normativa.53
A incompatibilidade normativa pode ser entre os operadores deônticos (OD),
que são os comandos de conduta prescritos nas normas, isto é, “permissão,” “proi-
bição” ou “imposição”, ou entre as estatuições, que são os seus efeitos ou conse-
quências, os quais dependem do preenchimento de todas as condições da previsão
normativa para ocorrerem.54 Na hipótese em foco, os operadores deônticos seriam
contraditórios: enquanto a liberdade de religião e crença permitiria às crianças e
aos adolescentes não frequentarem a escola em razão da crença religiosa (OD per-
missivo), a norma derivada do direito fundamental à educação, que prevê o dever
de educação por parte do Estado, proíbe esses mesmos menores em idade escolar de
não frequentarem a escola (OD proibitivo).55
Desse modo, atendidos os pressupostos referidos acima, a única possibilidade de o
conflito ser resolvido em favor da liberdade religiosa seria acaso restasse comprovado
que a frequência escolar atingiria de maneira inconciliável a liberdade religiosa da
família, e não meramente dos pais, porém e sobretudo que os interesses de seus filhos
seriam diretamente afetados enquanto integrantes da comunidade religiosa. Estar-
-se-ia, nesse caso, diante de questões identitárias de cunho mais profundo, em que a ida
dos menores à escola entraria em confronto com o meio e o estilo de vida adotados por
toda a família no seio da comunidade em que vivem e de cujos valores compartilham.
Abstraída essa hipótese de difícil ocorrência na prática,56 entende-se que a fre-
quência obrigatória à escola em regra não atinge o núcleo essencial do direito à
liberdade de religião e crença do menor, titular do direito em causa, a despeito de
eventualmente vir a contrariar convicções e opções pessoais de seus pais, ainda que
baseadas em questões de índole religiosa.57

53 Para maior desenvolvimento sobre os critérios de identificação e tipos de conflitos normativos, ver
Elhag; Breuker; Brouwer (1999, p. 35-46).
54 ELHAG; BREUKER; BROUWER, 1999, p. 36 e ss.
55 A presença do operador deôntico, inclusive, distingue normas constitutivas, que apenas conferem
poderes ou criam competências e não conflitam entre si, das regulativas, aquelas que preveem
condutas, como as que definem direitos fundamentais e são suscetíveis ao conflito. Nesse sentido:
“Quite differently, exercising competence presupposes NC but also instantiates other norms, those
which prescribe if, when, or how a given exercise of competence is permitted, prohibited, or obligatory.
[...] NC are structurally deprived of deontic operators (P, Ph, or O), thus rendering them immune to
violation.” (LOPES, 2017a, p. 2 e 4).
56 Essa excepcionalidade esteve presente no leading case Wisconsin v. Yoder, em que a Suprema Corte,
para reconhecer a famílias da comunidade Amish o direito de não matricular os filhos no ensino
médio ou secundário (high school), levou em consideração o fato de se tratar de uma comunidade
autossuficiente da sociedade americana, cujas crenças religiosas se inter-relacionam com o seu próprio
modo de vida (Wisconsin v. Yoder, 406 U.S. 205, de 15.5.1972, p. 1528; disponível em: https://www.law.
columbia.edu/sites/default/files/microsites/gender-sexuality/yoder.pdf; acesso em: 31 jan. 2019).
57 Ao encontro desse entendimento: “Nessa direção, percebe-se que o reconhecimento é, sim, essencial
à construção da identidade humana, mas que as balizas de tal reconhecimento não podem ser as do
simples convívio familiar. Transposto para a temática do ensino domiciliar, tal raciocínio conduz
à conclusão de que o homeschooling poderia ter como fundamento a pretensão da preservação de
uma identidade comunitária, mas que dificilmente os parâmetros ético-culturais da família do
educando, isoladamente considerados, serviriam a fundamentar essa prática se a educação formal

569
5.2 ∙ FREQUÊNCIA ESCOLAR OBRIGATÓRIA
E PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
5.2.1. ∙ ADEQUAÇÃO E NECESSIDADE
Na sequência, pende analisar o grau de ofensa à liberdade de ensino dos pais ou
responsáveis pelas crianças provocado pelo dever de matricular os filhos na rede
regular de ensino. Prevista, em geral, de forma bastante aberta e genérica nas cons-
tituições,58 a liberdade de ensino é comumente associada à liberdade de cátedra.59
Todavia, além da liberdade de ministrar aulas sem submissão a qualquer tipo de
ideologia ou orientação de cunho filosófico, político etc., dirigida por óbvio aos
docentes, é certo que abrange também a liberdade de escolha dos pais na condução
da educação dos filhos.60
Estabelecido, destarte, no plano deôntico o conflito do tipo parcial-parcial e sem
que haja, por via de consequência, norma de prevalência aplicável, recorre-se ao
método da ponderação de direitos para resolver o conflito normativo. Inicialmente,
há de se verificar se a medida que estabelece a frequência obrigatória à escola é
adequada, necessária e, finalmente, proporcional em sentido estrito.
De acordo com Alexy (2015, p. 116-120 e 588 e ss.), os princípios constituem
mandamentos de otimização e que, portanto, exigem realização na maior medida
possível. Adequação e necessidade, como subprincípios da proporcionalidade,
expressam esse mandamento relativamente às possibilidades fáticas, enquanto
a proporcionalidade em sentido estrito refere-se à otimização das possibilidades
jurídicas e exige ponderação. Assim, antes de partir para essa fase (método da pon-
deração), a medida deve passar pelos crivos da adequação e da necessidade, a fim de
evitar lesões desnecessárias a direitos fundamentais.61

oferecida pelo Estado não contrarie a identidade da comunidade de valores na qual determinada
família esteja inserida.” (MORAES; SOUZA, 2017, p. 25).
58 Por exemplo:
CF: “Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
[...]
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; [...]”
CRP, artigo 43º, nº 1: “É garantida a liberdade de aprender e ensinar.”
Constituição espanhola, artigo 27.1: “Todos tienen el derecho a la educación. Se reconoce la libertad
de enseñanza.” (disponível em: http://www.lamoncloa.gob.es/documents/constitucion_es1.pdf;
acesso em: 30 jan. 2019).
59 Nesse sentido, Uadi Lammêgo Bulos, ao comentar o art. 206 da CF, discorre: “[...] aqui está
a liberdade de cátedra, direito subjetivo do professor ensinar aos seus alunos, sem qualquer
ingerência administrativa, ressalvada, contudo, a possibilidade da fixação do currículo escolar
pelo órgão competente.” (BULOS, 2014, p. 1583).
60 Confira-se: “A liberdade de aprender e de ensinar (nº 1) em conexão com o direito de criação de
escolas particulares e cooperativas (nº 4) aponta para um direito à liberdade de ensino, o qual, por
sua vez, é densificado por uma série de direitos: (1) liberdade dos pais na escolha de educação dos
filhos; [...]”. (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 628, grifos do original).
61 Acerca do princípio da proporcionalidade em todas as suas acepções, consulte-se Alexy (2015, p.
116-120 e 588 e ss.); e de forma resumida, porém não menos completa, Alexy (2014).

570
Para fins de aplicação do princípio da proporcionalidade e em seguida da fór-
mula do peso, considere-se P1 = liberdade dos pais (de ensino e/ou religiosa) e P2 =
direito fundamental à educação. A análise será feita considerando que do primeiro
lado do conflito está igualmente um único princípio. A uma porque, consoante
explicitado no ponto anterior, a violação à liberdade religiosa é bastante rara; a duas
porque, principalmente tendo em vista as finalidades para as quais são invocados
os direitos de liberdade no caso da pretensão do homeschooling, não se identifica
diferença substancial entre liberdade de religião, consciência e credo e liberdade de
ensino que justifique a acumulação de princípios na fórmula.62
Em relação à adequação, entende-se que a medida que obriga a matrícula dos
menores na escola é apta para promover P2, pois tanto assegura o direito individual da
criança à prestação do ensino e à aquisição do conhecimento quanto cumpre os fins
de convívio do indivíduo com a diversidade e o pluralismo de ideias e formação para
o exercício da cidadania, na exata medida em que previstos constitucionalmente.63
A necessidade, por sua vez, implica que, entre dois meios igualmente adequados,
a opção seja pelo menos restritivo ou invasivo (ALEXY, 2015, p. 590). No conflito
em foco, a medida cuja intervenção seria menos intensa em relação a P1 é a alter-
nativa da autorização do homeschooling sob fiscalização do Estado. Para definir se
essa medida seria igualmente adequada para promover P2, deve-se ter em mente, de
partida, que a transmissão do conhecimento não é o único objetivo da prestação do
ensino, que tem por finalidade também a socialização da criança e o pleno desen-
volvimento de sua personalidade para participação de uma sociedade democrática.
Nesse sentido, entende-se que o ensino domiciliar, ainda que sob controle estatal e
submetido a avaliações periódicas, não é suficiente para alcançar esses últimos obje-
tivos, o que somente se atinge eficazmente com o convívio social e heterogêneo de
forma diária e rotineira e não meramente ocasional, como poderia eventualmente

62 Desse modo, entende-se que não será o caso de utilizar a fórmula estendida de Alexy, uma vez
que, de acordo com o autor alemão: “Los principios acumulados no pueden ser substancialmente
redundantes. Sus objetos a optimizar deben ser materialmente diferentes. También tiene validez la
regla según la cual la heterogeneidad es una condición de la acumulación aditiva. Esta regla se aplica
a veces con facilidad. De este modo, por ejemplo, es posible identifica (sic) fácilmente a la libertad
general de acción como un contenido que ya aparece en los derechos fundamentales especiales.”
(ALEXY, 2008, p. 41).
63 A saber:
CF: “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
[...]
III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e
privadas de ensino; [...]”.
CRP, artigo 73º, nº 2: “O Estado promove a democratização da educação e as demais condições
para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a
igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais,
o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de
solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na
vida coletiva.”

571
vir a ocorrer no caso do ensino domiciliar. Conclui-se, destarte, que a frequência
obrigatória à escola é uma medida necessária, consoante entenderam os Tribunais
Constitucionais alemão e espanhol.64

5.3 ∙ A FÓRMULA DO PESO DE ALEXY E A VARIÁVEL DA FIABILIDADE


De acordo com a primeira lei de Alexy (lei da ponderação), “quanto maior o
grau de interferência ou não satisfação de um princípio, tanto maior deve ser o
grau de importância do princípio contrário” (ALEXY, 2008, p. 15, tradução livre).
Significa, em resumo, que o último passo da ponderação é definir se a importância
do princípio contrário justifica a restrição ou não satisfação do princípio colidente,
o que se mede pelos efeitos que a omissão ou não da execução dessa intervenção
produziria no primeiro.
Nesses termos, em sua estrutura original, a fórmula proposta pelo autor alemão
tem por objetivo medir o peso concreto de um princípio em relação ao outro através
de dois elementos, quais sejam, o grau de intensidade da intervenção em cada um
dos princípios e os respectivos pesos abstratos. No plano abstrato, os princípios,
por via de regra, possuem o mesmo peso, salvo algumas exceções, como o direito à
vida, cujo peso é superior aos direitos de liberdade em geral.65 O que não significa,
por outro lado, que seja absoluto, pois qualquer princípio poderá vir a ceder em
determinadas circunstâncias.66

64 O Tribunal Constitucional espanhol foi enfático em relação à necessidade da frequência obrigatória


à escola, à luz do princípio da proporcionalidade: “Sin embargo, según hemos indicado ésta no es la
única finalidad que deben perseguir los poderes públicos a la hora de configurar el sistema educativo
en general y la enseñanza básica en particular, que han de servir también a la garantía del libre
desarrollo de la personalidad individual en el marco de una sociedad democrática y a la formación de
ciudadanos respetuosos con los principios democráticos de convivencia y con los derechos y libertades
fundamentales, una finalidad ésta que se ve satisfecha más eficazmente mediante un modelo de
enseñanza básica en el que el contacto con la sociedad plural y con los diversos y heterogéneos
elementos que la integran, lejos de tener lugar de manera puramente ocasional y fragmentaria,
forma parte de la experiencia cotidiana que facilita la escolarización.” (Sentencia 133/2010, de 2 de
dezembro, Recurso de amparo 7509-2005, p. 122; disponível em: http://hj.tribunalconstitucional.
es/es/Resolucion/Show/6772; acesso em: 30 jan. 2019). Para um maior detalhamento sobre a
jurisprudência internacional, vide Item 2.
65 Para fins de estruturação da fórmula, esclarece Alexy: “Si el peso abstracto de los principios en
colisión es el mismo, entonces esta variable puede eliminarse de la ponderación. Como consecuencia,
la ley de la ponderación toma únicamente como primeros objetos de la ponderación a las intensidades
de las intervenciones.” (ALEXY, 2008, p. 23).
66 Nesse sentido, as lições de José de Melo Alexandrino, ao se referir à legislação portuguesa que
descriminalizou o aborto em condições específicas: “A garantia da vida humana, no artigo
24º, nº 1, está enunciada num princípio e, como tal, esse princípio tem de conviver com outros
princípios constitucionais (a começar pelo do direito ao desenvolvimento da personalidade e o
correspondente princípio da liberdade), razão pela qual, dentro de certos limites, não se pode
excluir que o legislador tenha alguma margem de opção sobre as formas de protecção da vida
humana e de outros valores constitucionais também em causa. Por outro lado, uma vez que a
Constituição não impõe directamente a criminalização de condutas, também a decisão sobre o que
é ou não é crime acabou por ser remetida ao legislador ordinário, na condição de este não deixar
os bens e interesses constitucionais abaixo de um patamar de protecção, pois nesse caso incorreria
em défice de proteção.” (ALEXANDRINO, 2017, p. 272, grifo do original).

572
A segunda lei de Alexy foi chamada de epistêmica, porquanto está relacionada ao
grau de conhecimento ou convicção acerca da realização ou não satisfação das pre-
missas empíricas dos princípios em colisão. De acordo com a lei epistêmica, “[q]uanto
maior o grau de intervenção em um direito fundamental, tanto maior deverá ser a cer-
teza das premissas que fundamentam essa intervenção” (ALEXY, 2008, p. 38, tradução
livre). Em sua versão completa, destarte, a fórmula do peso contém mais um elemento,
qual seja, o grau de segurança ou de fiabilidade das premissas empíricas.67 Enquanto
as intensidades das intervenções (I1/I2) e os pesos abstratos (P1/P2) são medidos pelas
cifras 1 (leve), 2 (médio) e 4 (grave) (escala triádica), ao grau de segurança ou de fiabi-
lidade das premissas empíricas (F1/F2) se aplicam as seguintes variáveis: 1 (certeza), ½
(plausível) e ¼ (não evidentemente falso) (ALEXY, 2008, p. 30 e ss.).
Para fins de resolver o conflito direitos de liberdade dos pais (P1) x regra da
escolarização obrigatória (P2), tem-se a seguinte equação: P1/P2 = I1 x P1 x F1
I2 x P2 x F2
O passo seguinte é atribuir valores a cada uma das variáveis. Quanto aos pesos
em abstrato, considere-se que os princípios em colisão possuem pesos equivalentes,
entendendo-se que não se trata de hipótese que fuja à regra geral referida linhas
acima de que entre direitos fundamentais não há hierarquia.
Em relação ao grau de intensidade da intervenção, não há como se admitir que a
intervenção na liberdade de ensino e/ou religiosa seja grave, pois é mitigada, conforme
reconhecido pelas Cortes Constitucionais europeias que julgaram a matéria, com o res-
paldo do TEDH, em razão de três circunstâncias essenciais: (I) possibilidade de esco-
lha da instituição mais adequada às convicções religiosas, pedagógicas e morais, entre
outras, dos pais, no caso da rede privada de ensino; (II) facultatividade de frequência
às disciplinas de cunho religioso na rede pública, em face da laicidade do Estado;68
(III) possibilidade de transmitir conhecimentos aos filhos fora do horário escolar.69

67 Numa terceira versão, chamada de fórmula do peso refinada, Alexy incluiu, ao lado das premissas
empíricas, as premissas normativas na chamada “equação da fiabilidade”, o que significou a adição
de princípios formais em reforço aos princípios substanciais: “the model that simply adds formal
principles into the weight formula as reinforcements of substantive principles” (ALEXY, 2014). Em
resposta às principais críticas à fórmula do peso, Pedro Lopes discorre sobre a importância da
integração de princípios formais, “nomeadamente o princípio da democracia”, para fins de balizar
a ponderação realizada no âmbito da jurisdição constitucional (LOPES, 2018, p. 280 e ss.).
68 A laicidade do Estado brasileiro foi ratificada no julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República no Brasil, que pretendia fosse reconhecida
a impossibilidade de se ministrar ensino religioso nas escolas públicas com vinculação a uma
religião específica e fosse vedada a contratação pelo Poder Público de professores na condição de
representantes de confissões religiosas. O pedido foi julgado improcedente por maioria, porém
o STF entendeu, nos termos do voto do redator do acórdão, o ministro Alexandre de Moraes,
que a oferta de ensino religioso de conteúdo confessional com frequência facultativa, ainda
que como disciplina dentro do horário normal das aulas, não viola a laicidade do Estado e, ao
mesmo tempo, protege a liberdade de crença (ADI n. 4.439, de 27 de setembro de 2017, processo
n. 9932145-90.2010.1.00.0000; disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.
asp?id=314650271&ext=.pdf; acesso em: 30 jan. 2019).
69 Nesse sentido, o entendimento manifestado pelo TEDH ao apreciar Konrad v. Germany:
“Moreover, the German courts pointed to the fact that the applicant parents were free to educate
their children after school and at weekends. Therefore, the parents’ right to education in conformity

573
Assim, entende-se que o grau de intervenção em P1 seja no máximo moderado (2),
a depender ainda das circunstâncias do caso concreto; enquanto em P2 a intensidade
da intervenção é grave (4), uma vez que, acaso omitida a intervenção no primeiro,
a regra da escolarização obrigatória será totalmente desaplicada e o direito funda-
mental à educação não se realizará em sua plenitude, considerando todas as finali-
dades que visa atingir, em especial, a socialização da criança.
Por último, no tocante ao grau de fiabilidade, o resultado continua a pender desfa-
voravelmente em relação a P1. Com efeito, se o fundamento principal da pretensão do
homeschooling é o primado do respeito às convicções religiosas, filosóficas, morais,
entre outras, dos pais, até que ponto se tem convicção de que atenderá os interes-
ses da criança enquanto titular do direito fundamental à educação e com vontade
e autonomia próprias? Nesse caso, considerando as incertezas do ensino prestado
no ambiente domiciliar e a dificuldade de realização de controles externos, ainda
que regulamentados pelo Estado, estipula-se um grau de fiabilidade, no melhor dos
cenários, igual a ½ (plausível) para P1. Diversamente, P2 representa o modelo vigente
há séculos70 e reconhecidamente a medida eficaz para atingir todos os objetivos da
prestação do ensino, nomeadamente, desenvolvimento pleno da personalidade da
criança, formação para cidadania e contato com o pluralismo de ideias.
E não se diga, por outro lado, que as deficiências do ensino público em países
com problemas sociais crônicos como o Brasil seriam motivo suficiente para con-
ferir um baixo grau de fiabilidade à regra da escolarização obrigatória. Trata-se,
pois, de problemas contingenciais e orçamentários, que não afetam a prestação do
ensino escolar em sua essência e, portanto, podem e devem ser remediados com
investimentos e maior dotação de recursos. Ademais, tal argumento não se aplica
à rede privada de ensino, na qual normalmente estudam os filhos dos pretendentes
ao homeschooling, uma vez que se caracteriza como uma pretensão praticamente
exclusiva de famílias abastadas, pois demanda disponibilidade de tempo e/ou finan-
ceira, seja para ensinar as crianças diretamente, seja para contratar profissionais

with their religious convictions is not restricted in a disproportionate manner. Compulsory primary-
school attendance does not deprive the applicant parents of their right to ‘exercise with regard to
their children natural parental functions as educators, or to guide their children on a path in line
with the parents’ own religious or philosophical convictions’ (see, mutatis mutandis, Kjeldsen, Busk
Madsen and Pedersen, cited above, § 54, and Efstratiou v. Greece, 18 December 1996, § 32, Reports
of Judgments and Decisions 1996-VI).” (Application n. 35504/03 by Fritz Konrad and Others against
Germany, de 11.9.2006, p. 7-8; disponível em: https://hslda.org/content/hs/international/germany/
konrad_decision.pdf; acesso em: 30 jan. 2019). Para maior detalhamento sobre a jurisprudência
internacional, consultar o Item 2.
70 Sobre a história do ensino obrigatório, refere-se Cássio Casagrande: “Embora a educação compulsória
tenha sido filosoficamente defendida por Platão em ‘A República’ – como necessária ao exercício
da virtude cívica – ela somente foi implementada de fato como política pública com a ascensão
do protestantismo, pois para Martinho Lutero a alfabetização era indispensável para que cada um
pudesse ler a Bíblia por conta própria. Por esta razão, a Prússia foi o primeiro estado europeu moderno
a adotar leis neste sentido, durante o Reinado de Frederico o Grande, em 1765. Foi exatamente esta
mesma dimensão curial que os puritanos atribuíam à leitura e à capacidade de interpretação dos
textos que levou às primeiras leis sobre educação compulsória nos EUA, que as adotaram muito antes
de vários estados europeus (inclusive a Inglaterra). Ainda no tempo da colônia, em meados do século
XVII, os colonos de Plymouth, Massachusetts, foram os primeiros a exigir a instituição de escolas
elementares e a frequência escolar obrigatória.” (CASAGRANDE, 2017).

574
especializados para desempenharem essa função. Desse modo, considera-se que o
grau de fiabilidade de P2 equivale a 1 (certeza).
Colocando-se as variáveis numéricas na fórmula, à exceção dos pesos em abs-
trato que se anularam por serem equivalentes, e, ainda, considerando a hipótese de
intervenção moderada em P1, tem-se: P1/P2 = 2(I1) x ½ (F1) = 0,25.
4(I2) x 1(F2)
Como o resultado foi inferior a 1, prevalece P2, fosse superior a 1, o conflito seria
resolvido em favor de P1. Quando é igual a 1, segundo Alexy, há empate, e nesse
caso deve prevalecer a norma estabelecida pelo legislador (ALEXY, 2008, p. 38-40),
critério que ainda assim favoreceria P2.
Observe-se, destarte, o papel determinante dos interesses dos menores para a
resolução do conflito normativo, seja para fins de medir a importância de P2, uma
vez que omitida a intervenção em P1 serão os direitos das crianças diretamente atin-
gidos, enquanto titulares do direito fundamental à educação, seja em relação ao
grau de segurança das premissas empíricas, porquanto a fiabilidade de P1 resta em
grande parte comprometida ao ter como pressuposto a defesa de crenças e convic-
ções que são próprias dos pais e não necessariamente dos filhos.

6 ∙ CONCLUSÃO
O principal argumento dos pretendentes ao homeschooling é o direito de oferecer
aos filhos uma educação de acordo com suas próprias convicções e visões do mundo.
Nesse sentido, de qual maneira restará observado o objetivo de convívio da criança
e do adolescente com a diversidade e o pluralismo de ideias, previsto, em regra, nas
constituições democráticas no capítulo dedicado ao direito fundamental à educação?
Dessa forma, entende-se que o cerne do conflito é a busca do melhor interesse
dos menores, enquanto titulares do direito fundamental à educação e, também, da
liberdade de aprender. Com efeito, é em nome e no interesse deles que são estrutura-
dos todos os direitos e obrigações dos genitores na criação e na assistência aos filhos,
seja pela legislação doméstica, seja pela internacional, razão pela qual o regime jurí-
dico parental não pode respaldar uma pretensão que atende aos interesses dos pais,
porém sem que se saiba até que ponto contempla os interesses das crianças.
Não obstante os pais detenham prioridade em relação a intervenções de tercei-
ros no tocante à criação e à educação de seus filhos, tal prerrogativa não confere
àqueles legitimidade para decidir sobre o ensino a ser prestado a essas crianças à
margem daquele preconizado pelo Estado. A uma porque não são os titulares do
direito fundamental à educação; a duas porque não há um grau plausível de segu-
rança para asseverar que os interesses dos menores restarão suficientemente atendi-
dos através de um método de ensino escolhido com base única e exclusivamente em
perspectiva, crenças e convicções que são próprias dos pais e não dos verdadeiros
titulares do direito fundamental em causa.
Por outro lado, não se está a afirmar que os pais devam ficar alijados a um plano
inferior no tocante à condução da educação de seus filhos, muito pelo contrário! O que
se defende é que essa responsabilidade seja compartilhada pelas famílias em conjunto
com o Estado, tal como previsto de forma tão enfática nas constituições. Isso porque

575
permanecem os pais com a liberdade de transmitir conhecimentos aos filhos fora do
ambiente e horário escolar, para além da possibilidade de escolher uma instituição que
mais se ajuste ou atenda a suas convicções religiosas, pedagógicas, morais etc.
Nesse sentido, foi demonstrada a excepcionalidade da violação à liberdade reli-
giosa, a qual não pode ter como parâmetro exclusivamente os pais, mas a família e,
principalmente, os filhos, tampouco se basear em meras discordâncias em relação
a conteúdos ministrados e métodos de ensino utilizados. Somente quando estive-
rem em jogo questões identitárias de maior profundidade é que a objeção religiosa
poderá ser aceita para o fim de escusar a frequência à escola, desde que seja com-
provado, no caso concreto, que os menores terão acesso à prestação do ensino, de
preferência no ambiente comunitário, e assim serão resguardados os seus interesses.
Excluída essa hipótese de difícil verificação na prática, consoante demonstrado,
o conflito normativo entre os direitos de liberdade dos pais – liberdade religiosa
e de ensino – e a regra da escolarização obrigatória, enquanto dever decorrente
do direito fundamental à educação, é resolvido favoravelmente a esta última com
margem de folga, através da aplicação da fórmula do peso de Alexy. Isso porque
os interesses dos menores tanto têm implicação na gravidade da intervenção no
direito à educação quanto comprometem a segurança das premissas fáticas em que
se baseia o homeschooling, focadas primordialmente nos interesses dos pais.
Os Tribunais Constitucionais alemão e espanhol, mesmo sem utilizar expressa-
mente a fórmula matemática de Alexy, chegaram a resultado semelhante ao ponde-
rarem em favor do direito fundamental à educação e entenderem que o modelo de
educação conduzido pela família em casa não cumpre eficazmente os objetivos de
socialização do indivíduo e formação do cidadão para participação de uma socie-
dade democrática e plural.
Por outro lado, a decisão tomada pela Corte Constitucional brasileira, apesar
de partir de premissas semelhantes para reconhecer a constitucionalidade do
modelo escolar de frequência obrigatória, deixou aberto o caminho para a legisla-
ção infraconstitucional vir a autorizar o homeschooling.71 Essa decisão é bastante
preocupante, porquanto se trata de um país de bases sociais e econômicas extre-
mamente desiguais, em que a adoção de um modelo de ensino exclusivista e com
as deficiências apontadas, especialmente em relação à socialização dos menores
e ao contato com a diversidade e o pluralismo de ideias, pode representar mais
um fator de exclusão e alijamento social. Inquietações dessa natureza, ressalte-se,
constituíram um dos fundamentos adotados pelo Tribunal Federal Constitucional
alemão para manter a proibição do homeschooling no país, consoante visto no
desenvolvimento deste estudo.

71 Antes mesmo da decisão do STF já tramitavam projetos de lei no Congresso Nacional para
regulamentar o ensino domiciliar no Brasil, a exemplo do Projeto de Lei do Senado n. 490/2017,
dentre outros apresentados na Câmara dos Deputados desde o ano de 2012, sem que nenhum deles
tenha sido levado adiante até o momento. A proposição mais recente foi uma emenda à Medida
Provisória n. 934/2020, que estabelece normas excepcionais sobre o ano letivo da educação durante
a pandemia de Covid-19, e também permanece em tramitação. Disponível em: https://www6g.
senado.leg.br/busca/?portal=Atividade+Legislativa&q=ensino+domiciliar&p=1. Acesso em: 10
ago. 2020.

576
REFERÊNCIAS
ALEXANDRINO, José de Melo. A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias
na Constituição Portuguesa. A construção dogmática. Coimbra: Almedina, 2006. v. II.
ALEXANDRINO, José de Melo. Lições de direito constitucional. 3. ed. Lisboa: AAFDL, 2017. v. I.
ALEXY, Robert. Formal principles: some replies to critics. International Journal of
Constitutional Law, Oxford, v. 12, n. 3, p. 511-524, July 2014. Disponível em: https://
academic.oup.com/icon/article/12/3/511/763784. Acesso em: 7 fev. 2019.
ALEXY, Robert. La formula del peso. Tradução de Carlos Bernal Pulido. In: CARBONELL,
Miguel (ed.). El principio de proporcionalidad y la interpretación constitucional. Quito:
Ministerio de Justicia y Derechos Humanos, 2008. p. 13-42. Disponível em: http://www.
biblio.dpp.cl/biblio/DataBank/4271.pdf. Acesso em: 19 fev. 2019.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. reimp. Tradução de Virgílio
Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2015.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 888.815. Constitucional.
Educação. Direito fundamental relacionado à dignidade da pessoa humana e à efetividade
da cidadania. Dever solidário do Estado e da família na prestação do ensino fundamental.
Necessidade de lei formal, editada pelo Congresso Nacional, para regulamentar o ensino
domiciliar. Recurso desprovido. Relator: Min. Roberto Barroso. Redator do acórdão:
Min. Alexandre de Moraes, 12 de setembro de 2018. Disponível em: http://redir.stf.jus.
br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.
jsf?seqobjetoincidente=4774632. Acesso em: 25 jan. 2019.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa
anotada. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. v. I.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. reimp.
Coimbra: Almedina, 2003.
CASAGRANDE, Cássio. Homeschooling no STF e a jurisprudência dos EUA – O
caso Wisconsin v. Yoder e a controvérsia sobre liberdade de educação. Jota Info, São
Paulo, 28 nov. 2017. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/
homeschooling-no-stf-e-a-jurisprudencia-dos-eua-28112017. Acesso em: 30 jan. 2019.
DUARTE, David. Drawing up the boundaries of normative conflicts that lead to balances.
In: SIECKMANN, Jan-Reinard (ed.). Legal reasoning: the methods of balancing.
Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 2010. p. 51-62. Disponível em: https://www.researchgate.
net/publication/326995493_Drawing_Up_the_Boundaries_of_Normative_Conflicts_
that_Lead_to_Balances/download. Acesso em: 5 fev. 2019.
ELHAG, Abdullatif A.O.; BREUKER, Joost A.P.J.; BROUWER, Bob W. On the formal
analysis of normative conflicts. In: HERIK, H. Jaap van den et al. (eds.). Legal knowledge
based systems. JURIX 1999, The Twelfth Conference. Nijmegen: GNI, 1999. p. 35-46.
ESTARELLA, María José Valero. Homeschooling en Europa. In: MARTÍNEZ, Irene
(org.). Educacíon en família: ampliando derechos educativos y de conciencia. Madrid:
Safekat, S.L., 2014. p. 273-295. Disponível em: https://app.vlex.com/#WW/vid/528111682.
Acesso em: 2 fev. 2019.
FRANCIULLI NETTO, Domingos. Aspectos constitucionais e infraconstitucionais do
ensino fundamental em casa pela família. Coletânea de Julgados e Momentos Jurídicos
dos Magistrados no TRF e no STJ, Brasília, n. 49, p. 223-237, 2007. Disponível em: https://

577
ww2.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/coletanea/article/view/1703/1627.
Acesso em: 30 jan. 2019.
GONÇALVES, Soraia Marlene Leite. A autonomia do menor: direitos e desafios. 2016.
Dissertação (Mestrado em Direito das Crianças, Família e Sucessões) – Escola de
Direito, Universidade do Minho, Braga, 2016. Disponível em: https://repositorium.
sdum.uminho.pt/bitstream/1822/47968/1/Soraia%20Marlene%20Leite%20Goncalves.
pdf. Acesso em: 4 fev. 2018.
LOPES, Pedro Moniz. Derrotabilidade normativa e jurisdição constitucional. In: LOPES,
Pedro Moniz. Estudos de teoria do direito. Lisboa: AAFDL, 2018. v. I. p. 275-286.
LOPES, Pedro Moniz. The nature of competence norms. In: SELLERS, M.;
KIRSTE, S. (eds.). Encyclopedia of the philosophy of law and social philosophy.
Dordrecht: Springer, 2017a. p. 1-7. Disponível em: https://link.springer.com/
referenceworkentry/10.1007%2F978-94-007-6730-0_223-1. Acesso em: 5 fev. 2019.
LOPES, Pedro Moniz. The syntax of principles: genericity as a logical distinction between
rules and principles. Ratio Juris, Oxford, v. 30, n. 4, p. 471-490, dez. 2017.
MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui. Constituição Portuguesa anotada. 2. ed. Coimbra:
2010. tomo I.
MORAES, Maria Celina Bodin de. A liberdade segundo o STF e a liberdade constitucional:
o exemplo do ensino domiciliar. civilistica.com – revista eletrônica de direito civil, Rio de
Janeiro, ano 6, n. 2, 2017. Disponível em: http://civilistica.com/a-liberdade-segundo-o-
stf/. Acesso em: 29 jan. 2019.
MORAES, Maria Celina Bodin de; SOUZA, Eduardo Nunes de. Educação e cultura
no Brasil: a questão do ensino domiciliar. civilistica.com – revista eletrônica de direito
civil, Rio de Janeiro, ano 6, n. 2, 2017. Disponível em: http://civilistica.com/wp-content/
uploads/2017/12/Bodin-de-Moraes-e-Souza-civilistica.com-a.6.n.2.2017.pdf. Acesso em:
14 fev. 2019.
NUNES, Anelise Coelho. A titularidade dos direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
PORTUGAL. Ministério da Educação. Educação e formação em Portugal.
Lisboa: Ministério da Educação, 2007. Disponível em: https://www.dgeec.mec.pt/
np4/97/%7B$clientServletPath%7D/?newsId=147&fileName=educacao_formacao_
portugal.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
ROCHA, Eliana Pires. A educação “das famílias” versus a educação “democrática”.
Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 30 ago. 2018. Disponível em: https://www.conjur.
com.br/2018-ago-30/eliana-rocha-educacao-familias-versus-educacao-democratica.
Acesso em: 29 jan. 2019.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dos direitos sociais. In: CANOTILHO, J.J. Gomes et al.
Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva: Almedina, 2014. p. 533-548.
SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e a educação: a Terra é plana. Jota Info, São Paulo,
12 set. 2018. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-stf-e-a-
educacao-a-terra-e-plana-12092018. Acesso em: 29 jan. 2019.
WEST, Robin. A tale of two rights. Boston University Law Review, Boston, v. 94, p. 893-
912, 2014. Disponível em: https://scholarship.law.georgetown.edu/cgi/viewcontent.
cgi?referer=https://www.google.com/&httpsredir=1&article=2378&context=facpub.
Acesso em: 1º fev. 2019.

578
O DISCURSO POR TRÁS DA AUTONOMIA DO UBER
Limites e possibilidades da economia do compartilhamento
sob o olhar da Justiça do Trabalho

Nathália Guimarães Ohofugi1

Sumário: 1 Introdução. 2 A relação de emprego em tempos de uberização. 3 Economia


do compartilhamento: desafios impostos à Justiça do Trabalho e perspectivas para o
futuro. 4 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O mundo do trabalho mudou radicalmente nos últimos quarenta anos, seja pelo
tempo de circulação, seja pela produção de capital. Os contornos das relações de
trabalho estão em constante reconfiguração no contexto das inovações tecnológi-
cas. Diante disso, categorias jurídicas até então funcionais do Direito do Trabalho
entram em um impasse e novas implicações juslaborais surgem.
Este artigo pretende explorar os limites e as possibilidades jurídicas do reco-
nhecimento de vínculo empregatício para trabalhadores submetidos à economia do
compartilhamento, com ênfase nos motoristas da plataforma Uber.
Buscam-se respostas para o seguinte questionamento: como a Justiça do
Trabalho está lidando com as transformações tecnológicas e com o fenômeno da
economia compartilhada? A partir das reflexões trilhadas, procura-se verificar
quais são as direções de tutela trabalhista viáveis para a relação de trabalho entre
motoristas e a Uber.
Cumpre observar que os serviços da economia do compartilhamento se torna-
ram uma das principais possibilidades de fonte de renda para uma parcela da popu-
lação que, por muitas vezes, está em situação de desemprego ou com o orçamento
comprometido, especialmente ao considerar o contexto de crise econômica do País.
Assim, sob uma perspectiva crítica justrabalhista, o presente artigo verifica se
os motoristas de aplicativos devem receber amparo da Justiça do Trabalho. Por con-
seguinte, as novas práticas de flexibilização de direitos e a proteção social e jurídica
dos trabalhadores serão os eixos de deslinde da pesquisa.
Examinam-se o desenvolvimento da economia compartilhada e o desdobra-
mento do modelo de atuação da Uber. Paralelamente, procura-se compreender
como as categorias-chaves do Direito de Trabalho se enquadram na prestação de
trabalho realizada pelos motoristas de aplicativo.

1 Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).

579
A análise problematiza a tendência interpretativa dos Tribunais do Trabalho,
bem como revisa conceitos tradicionais do Direito do Trabalho e questiona sobre a
necessidade de se criar novos arranjos institucionais.
Ademais, pretende-se verificar se os serviços da economia do compartilha-
mento estão de alguma forma desrespeitando, mantendo ou ampliando patamares
civilizatórios para o trabalhador.
Com base nas conclusões obtidas, o estudo caminha para um momento final de
provocações sobre o futuro do trabalho, reforçando o papel decisivo da regulação
judicial trabalhista na garantia de um patamar civilizatório mínimo para os moto-
ristas em relação de trabalho com a empresa Uber.

2 ∙ A RELAÇÃO DE EMPREGO EM TEMPOS DE UBERIZAÇÃO


A era informacional é marcada pela expansão das novas tecnologias e formas de
prestação de serviços, cujas relações de trabalho ganham contornos complexos, o que
pode acarretar eventuais mitigações a direitos consagrados pelo Direito do Trabalho.
Essa conjuntura foi especialmente desencadeada com as mudanças da chamada
terceira revolução tecnológica, a partir dos anos 1990. O período foi marcado pelas
inovações promovidas pela internet, pela robotização, pela microeletrônica e pelos
setores de inteligência artificial.
O contexto de inovações foi acompanhado da ampliação do setor de serviços – sobre-
tudo no campo da informalidade –, da perda do protagonismo sindical, do aumento do
desemprego estrutural e da ampliação da precarização da classe trabalhadora.
Esse conjunto de metamorfoses alterou de forma significativa a relação capital-
-trabalho, desenhando uma nova morfologia do trabalho no século XXI. As dinâ-
micas laborais foram reestruturadas à medida que profissões e postos de trabalho
foram extintos, seguindo uma tendência mundial de eliminar tudo o que fosse
incompatível com as necessidades e expectativas da sociedade moderna.
A volatilidade e a efemeridade da atual “lógica de curto prazo” se aplicaram não só aos
produtos, como também aos trabalhadores. A consequência do novo sistema foi a valori-
zação do capital em detrimento dos direitos trabalhistas. Criou-se uma tendência mundial
de flexibilização e precarização do trabalho devido à internacionalização da economia.
Sob esse panorama, foram desenvolvidas categorias de trabalho até então des-
conhecidas, marcadas por precarização e instabilidade, muitas vezes regidas por
contratos temporários, sem estabilidade, sem registro e com baixos salários.
A onda de flexibilização de direitos trabalhistas, anteriormente adquiridos no
apogeu das lutas sociais, na fase alta do modelo fordista, deflagrou uma desregu-
lamentação em nível global. Como consequência, o setor informal cresceu rapida-
mente, bem como os contratos precarizados e a terceirização.
Assim, o Direito do Trabalho depara com o paradoxo e o desafio de lidar com o
avanço tecnológico, seus riscos e possibilidades, e a intensificação da precarização
que dele decorre.
Sob esse cenário é que surge a economia do compartilhamento, que ganhou maior
visibilidade a partir de 2010 com a ascensão das startups no Vale do Silício. Apesar

580
de controvérsias quanto ao real significado, entende-se a economia do compartilha-
mento como “uma onda de novos negócios que utilizam a internet para conectar con-
sumidores com provedores de serviços para trocas no mundo físico, como aluguéis
imobiliários de curta duração, viagem de carro ou tarefas domésticas” (SLEE, 2017).
No Brasil, o movimento se inaugurou em 2014, inserido em um contexto de
crise econômica nacional, acompanhado do crescimento do movimento por refor-
mas de orientação neoliberal e de desregulamentação do Estado.
Originalmente, o objetivo da economia do compartilhamento era possibilitar
uma lógica de consumo consciente por meio da cooperação de indivíduos autôno-
mos, com a finalidade de relativizar a propriedade privada e assegurar o aproveita-
mento eficiente de bens.
No entanto, atualmente as empresas da economia do compartilhamento se dis-
tanciaram de sua ideia original e constituem um poderoso modelo econômico mul-
timilionário, gigantes corporativos com alguns dos maiores faturamentos mundiais.
A economia do compartilhamento foi a grande propulsora do trabalho sob
demanda via aplicativos, um modelo inédito de gerenciamento de mão de obra que
se baseia na tecnologia de informação e comunicação. Os novos serviços foram
acompanhados de incentivos econômicos e diminuição de preços em comparação
aos mercados tradicionais.
Seu funcionamento é realizado por meio das chamadas “empresas-plataformas”,
que interligam prestadores de serviços (autônomos) aos consumidores (usuários) e
utilizam as plataformas virtuais como suporte. Além do emprego de tecnologia de
última geração e a apresentação de uma plataforma simples, rápida e segura, um
ponto fundamental de êxito das empresas-plataformas é a prática de um empreen-
dedorismo evasivo, capaz de esquivar a sujeição das empresas à regulação dos mer-
cados e aos instrumentos normativos.
O maior expoente da economia do compartilhamento é a empresa Uber, que
representa um paradigma no que tange à reconfiguração produtiva de trabalho sob
demanda. Hoje, a empresa está presente em mais de 600 cidades em 63 países e
conta com cerca de 75 milhões de usuários e 3 milhões de motoristas. No ano de
2018, atingiu a marca de 10 bilhões de viagens realizadas.2
A Uber é uma empresa de sucesso sem precedentes que revolucionou o mercado
privado de mobilidade urbana e é também a plataforma mais conhecida e difundida
da economia do compartilhamento. Em destaque estão sua atuação com estratégia
agressiva de entrada nos mercados locais e a oferta de preços mais baixos e atrativos.
A empresa se autodefine como uma plataforma tecnológica que, utilizando um
aplicativo, promove o encontro de motoristas e usuários interessados em comparti-
lhar o uso de veículos subutilizados por seus proprietários.
Essa lógica, utilizada por outras empresas da economia do compartilhamento,
é conhecida como uberização, um novo padrão de organização do trabalho a partir
da utilização das tecnologias disruptivas.

2 Todos os dados referentes à Uber a partir desse parágrafo foram retirados do site oficial da empresa.
Disponível em: http://twixar.me/jT2n. Acesso em: 19 mar. 2019.

581
O fenômeno da uberização promove a ideia de que o prestador de serviços é um
microempresário e a empresa é uma mera intermediadora. A partir desse discurso,
as empresas se eximem de responsabilização, seja na esfera social, consumerista,
ambiental ou trabalhista.
Ludmila Costhek Abílio (2017) entende que a uberização não surgiu com a
economia digital, mas que suas bases de formação estão no mundo do trabalho há
décadas. Os mecanismos de transferências de riscos e custos para trabalhadores autô-
nomos não são uma novidade das empresas-aplicativos; elas apenas desenvolveram
um sistema de gerenciamento de softwares e plataformas on-line para realizar a tarefa.
A partir desse cenário, seria a Uber mera ferramenta tecnológica ou empresa de
transporte individual que emprega indivíduos? O sistema jurídico vigente apresenta
o suporte normativo capaz de abranger as atuais e futuras inovações gerenciais das
empresas de trabalho sob demanda via aplicativo?
O conflito regulatório é frequente em vários setores da economia do comparti-
lhamento, especialmente no que concerne à concorrência entre seus representantes
e os agentes da economia tradicional (RIBEIRO, 2016).
Na esfera trabalhista, o debate gira em torno da natureza jurídica do vínculo
existente entre os motoristas e a Uber, se correspondente a uma relação empregatí-
cia ou a uma prestação de serviço por um trabalhador autônomo.
A configuração da relação empregatícia, realizada mediante o reconhecimento
dos elementos fático-jurídicos da relação de emprego (pessoa física, pessoalidade,
não eventualidade, onerosidade e subordinação), constantes nos arts. 2° e 3° da
Consolidação das Leis do Trabalho,3 mostra-se sempre de difícil enquadramento
em se tratando da prestação de serviços por trabalhadores de aplicativo.
Isso em razão do próprio funcionamento da plataforma, que atua por meio
de controles por programação, ou seja, sem intervenção humana. Os motoristas
somente têm contato com o aplicativo, tornando a figura do empregado intangível.
Essas formas atípicas de trabalho se estabelecem com “contratos de adesão”, em
que a empresa se apresenta como intermediadora e o trabalhador como um autô-
nomo, ou seja, partes independentes que decidem cooperar. Dessa forma, apesar de
o vínculo guardar diversos elementos caracterizadores de emprego, estão travesti-
dos por meio de institutos tecnológicos que os relativizam.
Sobre o tema, observa José Carlos Baboin:
A caracterização da relação jurídica entre a Uber e os motoristas independe de
qualquer contrato assinado entre eles ou mesmo da autodefinição promovida
pela empresa. O contrato de trabalho é um contrato-realidade, auferível no caso
concreto mediante análise dos elementos existentes no vínculo entre as partes.
(BABOIN, 2017, p. 336).
Assim, são muitos os questionamentos que sondam o cenário da economia do
compartilhamento. Os motoristas de aplicativos se encontram atualmente em um

3 “Art. 2º Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da


atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
Art. 3º Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a
empregador, sob a dependência deste e mediante salário.”

582
limbo, um estado de indefinição no meio jurídico-normativo, uma vez que não pos-
suem um contrato de emprego, apesar de trabalharem como empregados fossem.
Até o presente momento, a jurisprudência não consolidou um entendimento
sobre a matéria, e, por consequência, existem decisões judiciais controvertidas, ora
reconhecendo o vínculo de emprego desses trabalhadores, ora o afastando.
Apesar de diversos Tribunais Regionais do Trabalho do País apresentarem um
impasse, verifica-se que a tendência decisória que está se desenhando na Justiça
do Trabalho é pela não existência do contrato de emprego. Nota-se, especialmente,
uma grande dificuldade para reconhecer o elemento da subordinação.
Os magistrados com frequência sustentam que não é possível verificar o exercício do
poder diretivo da Uber, uma vez que o motorista tem autonomia e flexibilidade em sua
jornada de trabalho e os riscos inerentes à atividade econômica são arcados por ele próprio.
Por outro lado, diversas características da atuação da empresa demonstram o
contrário. O estabelecimento unilateral do preço pelo serviço prestado, o condicio-
namento dos motoristas às avaliações feitas pelos usuários, a aplicação de penalida-
des e mesmo o desligamento da plataforma e os próprios comandos disfarçados de
sugestões para o melhoramento do serviço configuram formas modernas utilizadas
pela Uber de externar subordinação.
Por oportuno, pertinente citar o entendimento de Ana Frazão sobre a decisão
judicial de 2016 do Employment Tribunal do Reino Unido, que reconheceu que os
motoristas da plataforma Uber não são autônomos e constituem vínculo de relação
de emprego subordinado com a empresa:
Para chegar à conclusão pela existência do vínculo de trabalho (dependent work
relationship), o Tribunal, preliminarmente, analisou com cuidado o negócio da
Uber, diante do argumento da empresa de que apenas presta serviços de tec-
nologia. Já no início de sua fundamentação, o Tribunal adverte que qualquer
organização (i) que gerencie uma empresa em cujo “coração” está a função de
transportar pessoas em veículos motorizados, (ii) que opere em parte por meio
de companhia que procura se desviar das responsabilidades “reguladas” apli-
cáveis aos transportadores privados – ou seja, os PHV – Private Hire Vehicle –
operators – mas (iii) que exija dos motoristas e passageiros que concordem, por
meio de contrato, que ela não provê o serviço de transporte e (iv) recorra, em
seus documentos e cláusulas contratuais, a ficções, linguagem torcida (twisted
language) e novas terminologias (brand new terminology) merece certo grau de
ceticismo. (FRAZÃO, 2016, p. 1).
O reconhecimento do vínculo empregatício no contexto da economia do
compartilhamento é um fenômeno jurídico que enfrenta muitos óbices para se
efetivar. Embora a subordinação seja um conceito dinâmico, que admite múltiplas
interpretações e alcances, ainda encontra resistência de aplicação na exploração
de mão de obra humana via aplicativos ligados a plataformas on-line (MUCELIN;
RIEMENSCHNEIDER, 2019).
Como consequência, milhares de trabalhadores submetidos às empresas-plata-
formas de transporte individual encontram-se desprotegidos e sujeitos à flexibili-
zação de seus direitos, uma vez que ainda não foi estabelecida uma tutela jurídica
que os resguarde. Como compatibilizar as inovações tecnológicas com o princípio
protetivo trabalhista sem opor obstáculos à modernização dos mercados?

583
Das engrenagens aos algoritmos, o capitalismo se movimenta de uma forma
cíclica e se reinventa à medida que encontra novas formas de exploração do labor
humano. Assim, pode-se afirmar que o trabalho realizado em plataformas digitais
trata, na realidade, de uma reorganização dos meios de produção.
No entanto, o fenômeno do trabalho via aplicativo vem acompanhado da infor-
malidade e da precariedade. Uma vez que as empresas se apresentaram como meras
intermediadoras entre usuários e clientes, a relação empregatícia é descartada, dando
ensejo a exploração, sobrejornadas e insegurança quanto à continuidade do traba-
lho. Notória, desse modo, a contradição entre o “uso das tecnologias do século XXI
com as condições de trabalho do século XXI” (ANTUNES; BRAGA, 2009, p. 10).
Sobre o tema, Ricardo Antunes explica:
Ao contrário da eliminação completa do trabalho pelo maquinário informa-
cional-digital, estamos presenciando o advento e a expansão monumental do
novo proletariado da era digital, cujos trabalhos, mais ou menos intermitentes,
mais ou menos constantes, ganharam novos impulsos com as TICs (tecnologias
de informação e comunicação), que conectam pelos celulares as mais distintas
modalidades de trabalho. Portanto, em vez do fim do trabalho na era digital,
estamos vivenciando o crescimento exponencial do novo proletariado de ser-
viços, uma variante global que se pode denominar escravidão digital. Em pleno
século XXI. (ANTUNES, 2018, p. 30).
No contexto da uberização, o trabalhador entra com os meios de produção, além de
arcar com os custos e os riscos da atividade. A suposta ausência da jornada de trabalho
é uma ilusão; trabalha-se cada vez mais. A exploração do trabalho na contemporanei-
dade é o encontro produtivo entre a precarização e o desenvolvimento tecnológico.
A Uber não impõe limite de jornada, não assegura a observância de intervalos
de descanso intra e interjornada, tampouco respeita os regramentos específicos do
labor em horário noturno e do repouso semanal remunerado. Não há indicação de
período de férias, décimo terceiro salário ou aviso-prévio. Em outras palavras, não
se verifica qualquer indício de segurança juslaboral aos motoristas.
Percebe-se que classificar erroneamente motoristas como autônomos contrata-
dos de forma independente tem como consequência eximir tais empresas de obri-
gações que estão preconizadas na Constituição Federal de 1988.
É inegável que a inovação digital está resenhando os setores impiedosamente. A
velocidade das mudanças está constantemente testando limites de um paradigma
de um modelo de gestão do trabalho que caminha para se tornar obsoleto.
Nesse sentido, questiona-se: os contratos “uberizados” e “flexíveis” serão pré-requisitos
para o avanço dessas novas formas de trabalho? A empresa moderna será aquela “sem
jornadas pré-determinadas, sem espaço laboral definido, sem remuneração fixa, sem
direitos, nem mesmo organização sindical?” (ANTUNES, 2018, p. 20).
Conjecturar respostas sobre as dimensões do mundo do trabalho e seus desdobra-
mentos é refletir criticamente se a nova classe trabalhadora será a classe dos trabalhado-
res informais assalariados sem registro, à margem da legislação trabalhista, ou se haverá
alguma ruptura promovida pelo Direito do Trabalho capaz de driblar a informalidade, a
terceirização e a flexibilidade que tendem a acompanhar a expansão tecnológica.

584
3 ∙ ECONOMIA DO COMPARTILHAMENTO: DESAFIOS IMPOSTOS
À JUSTIÇA DO TRABALHO E PERSPECTIVAS PARA O FUTURO
Atualmente, os sistemas jurídicos apoiam-se em uma base de pressupostos
necessários para que a tutela protetiva seja conferida, entretanto se limitando a res-
guardar somente aos empregados que se enquadrem nessa delimitação.
Com a evolução do processo produtivo, entende-se que os elementos caracte-
rizadores da relação empregatícia se modificam, mas a lesão aos direitos continua
sendo a mesma. Em um sistema de fluxos e refluxos do Direito do Trabalho, é impe-
rioso o estabelecimento de um parâmetro de proteção que vá além da figura do
trabalhador empregado.
À medida que os avanços tecnológicos se multiplicam, é certo que a demarcação
dos territórios das clássicas instituições e categorias jurídicas se estreita. Existem aspec-
tos controvertidos tanto em um plano de divergências interpretativas como no próprio
estabelecimento de estruturas jurídicas para as novas relações de trabalho emergentes.
Do ponto de vista doutrinário, o conceito do vínculo empregatício e os crité-
rios para sua aferição, da forma como vêm sendo costumeiramente estabelecidos,
mostram-se insuficientes para assegurar tutela jurídica aos trabalhadores de plata-
formas digitais.
Para a doutrina e o ordenamento jurídico vigente, o trabalho exercido pelos
motoristas de aplicativos encontra-se em uma zona grise em que os elementos fático-
-jurídicos da relação de emprego se apresentam de maneira não convencional,
gerando dificuldades para sua configuração.
Além da ausência de uniformidade quanto à natureza do trabalho prestado
pelos motoristas de Uber, verifica-se que é restrita a contribuição doutrinária sobre
o tema. Assim, as teorias construídas pela doutrina necessitam revisitar (e porven-
tura ampliar) as bases que sustentam a fundamentação da existência do vínculo
empregatício, com o objetivo de propor uma definição ao trabalhador e à relação
jurídica existente nas empresas-plataformas da economia do compartilhamento,
bem como as possibilidades de sua tutela e regulação.
A jurisprudência caminha em sentido similar. Ao se basear em categorias jurídi-
cas clássicas para a identificação da relação empregatícia, o processo interpretativo
não se aperfeiçoa. Por consequência, a tendência jurisprudencial se estabelece pelo
não reconhecimento da relação.
Não obstante, vislumbra-se que as decisões que não reconhecem o vínculo
empregatício também não oferecem qualquer alternativa legal que assegure amparo
jurídico à relação de trabalho dos motoristas de aplicativo.
Enquanto as empresas-plataformas diminuem os custos de produção elimi-
nando o pagamento de encargos trabalhistas, os motoristas de aplicativos vivem
um contexto de superexploração e redução sistemática de seus direitos.
Dessa forma, as respostas da jurisprudência e da doutrina quanto ao tema não
se limitam a pacificar conflitos judiciais e trazer segurança jurídica. Atingem dire-
tamente a vida de obreiros, sua renda, sua saúde e sua identidade social no trabalho.

585
O Direito do Trabalho não pode ser visto como um direito fabril. Sua evolução
está atrelada à evolução tecnológica. Em decorrência disso, a realidade deve ser
compreendida como parte constitutiva do próprio Direito.
A prática jurídica precisa reconhecer a dimensão social em que está inserida e
preservar pilares de proteção e garantias mínimas de direitos de ordem material e
imaterial que foram historicamente construídos.
Nesse contexto, José Carlos de Carvalho Baboin entende:
A evolução tecnológica não representa uma impossibilidade de proteção
aos obreiros, mas, ao contrário, um imperativo para a aplicação do Direito
Trabalhista [...] A evolução produtiva e tecnológica não pode ocorrer às custas
da superexploração da mão de obra, sob pena de se tornar apenas mais um ins-
trumento de segregação social. (BABOIN, 2017, p. 359).
Assim, os motoristas de aplicativos estão sujeitos a uma contínua tensão constitutiva
de avanços, em uma perspectiva de modernização, e retrocessos, na seara trabalhista.
Mesmo que não seja possível prever como o Direito do Trabalho será operacio-
nalizado para tratar do novo proletariado de serviços da era digital, vislumbram-se
duas direções possíveis para a doutrina e para a jurisprudência.
O primeiro caminho refere-se ao elastecimento dos elementos fático-jurídicos,
no sentido de expandi-los em termos de conceitos. Ao conceber que suas manifes-
tações podem ocorrer de maneira mais fluida, permite-se uma configuração mais
abrangente do vínculo de emprego, abarcando os motoristas de plataformas.
Trata-se da ressignificação dos elementos da relação de emprego, apresentando os
pressupostos da subordinação, da pessoalidade da onerosidade e da não eventuali-
dade sob um viés compatível com a nova sociedade pós-industrial e hipertecnológica.
Por consequência, a atividade interpretativa dos tribunais se submeterá a um
processo de renovação, viabilizando aos motoristas a tutela jurídica que a relação
empregatícia resguarda, conforme os parâmetros constitucionais.
Contudo, é cediço que mesmo que o Direito do Trabalho não siga por esse rumo,
a ausência da configuração do vínculo empregatício não pode ser um impeditivo
para a instituição de um patamar civilizatório mínimo de direitos em torno dos
motoristas das empresas-plataformas.
Por essa razão, a segunda solução proposta caminha no sentido do desenvolvi-
mento de alternativas legais que assegurem ampla proteção jurídica a esses traba-
lhadores. Desta feita, cabe ao ordenamento normativo criar mecanismos legais que
abranjam a relação de trabalho dos motoristas de aplicativos ou a ajustem às figuras de
trabalho preexistentes e que já são regulamentadas no Direito Trabalhista brasileiro.
Por esse ângulo, vale a reflexão de Guilherme Feliciano:
Não se está afirmando, por óbvio, que todo o arcabouço juslaboral existente –
Constituição, leis, jurisprudência, doutrina, etc. – tenha perdido utilidade. Ao
contrário, esse arcabouço é e continuará sendo o ponto de partida para todas as
construções tuitivas em torno das estruturas jurídicas emergentes da gig economy.
(FELICIANO; PASQUALETO, 2019, p. 13).
No âmbito brasileiro, para garantir a esses trabalhadores uma tutela jurídica,
é preciso assegurar ao menos os direitos constitucionalizados, como o limite de

586
jornada (art. 7°, XIII) e o piso salarial mínimo, mesmo para aqueles que percebem
remuneração variável (art. 7°, IV e VII).
Isso porque esses direitos constituem bases de referências de categorias fundamen-
tais de proteção, que não podem ser mitigadas em nenhuma medida. Por esse motivo,
o Texto Maior dispõe que deve haver igualdade de direitos entre o trabalhador com
vínculo empregatício e o trabalhador avulso (art. 7°, XXIV). Logo, não pode haver
distinção entre as figuras quando se tratar de direitos fundamentais indisponíveis.
Para Gabriela Neves Delgado (2006a, p. 240) “a existência de um patamar
mínimo de direitos trabalhistas é condição para a viabilidade do valor da dignidade
no trabalho e para a afirmação social do sujeito que labora”.
A eficácia dos direitos fundamentais constitucionalizados é pressuposto para
a realização do Estado Democrático de Direito, uma vez que efetivam o acesso do
trabalhador à saúde, ao descanso, ao convívio familiar e a uma vida digna.
O trabalho como instrumento de inclusão e integração social é assegurado pela
instituição de um patamar civilizatório de direitos, proporcionado por meio de sua
constitucionalização e pelas intervenções do Estado e do Poder Judiciário.
Resta claro que a relação de trabalho à qual estão submetidos os motoristas de Uber
constitui uma modalidade de contratação que acarreta grande comprometimento da
subjetividade do trabalho, sentida tanto pela informalidade em que estão inseridos
quanto pela falta de segurança em relação a sua renda ou ao próprio acesso à plataforma.
Gabriela Neves Delgado (2006b, p. 74) prossegue e afirma que a identidade
social do indivíduo somente é assegurada se o seu labor for digno. Assim, depara-se
com uma contradição: ao mesmo tempo que o trabalho possibilita a construção de
identidade social, pode também destruir sua existência caso não existam condições
mínimas para o seu exercício.
Reconhecer o trabalho como suporte no valor da dignidade significa estabelecer
um padrão regulatório aos trabalhadores da economia do compartilhamento que
observe os parâmetros constitucionais de proteção juslaboral.
Do ponto de vista jurídico, a regulação diz respeito a uma proteção trabalhista
que assegure dignidade a um trabalhador que está sujeito a um contexto de fle-
xibilização com a chegada de inovações digitais, que propõe a superação da crise
econômica através do trabalho sob demanda via aplicativos.
Não se negam os inúmeros benefícios que os avanços tecnológicos proporcio-
naram à coletividade, de maneira a otimizar muitos setores da sociedade. Contudo,
o que não pode ocorrer é, sob o véu da tecnologia, o capitalismo negociar direitos
trabalhistas que são base da preservação de direitos fundamentais.
Assim, a Justiça do Trabalho, para além de cumprir com as funções tradicionais
do Poder Judiciário, tem como diferencial a função particularizada de integrar um
sistema institucional amplo de proteção jurídica que vise à desmercantilização da
força do trabalho no contexto econômico social (DELGADO; DELGADO, 2014).
Ao compreender o Direito como disputa interpretativa, a interpretação con-
forme à Constituição precisa ser reforçada, independentemente da relação de
trabalho desenvolvida.

587
Em uma sociedade civil que se baseia na valorização social do trabalho, na digni-
dade da pessoa humana e em outros princípios constitucionais, o Direito do Trabalho,
como segmento especializado e de caráter protetivo, cumpre um papel decisivo ao
assegurar direitos justrabalhistas que não sejam regidos por imperativos econômicos.
Em outras palavras, “somente o trabalho exercido em condições de dignidade constitui
uma possibilidade real de ressaltar o seu caráter emancipatório, mesmo diante da contra-
dição intrínseca da produção realizada nos moldes do sistema capitalista” (LEMOS, 2018).
O estabelecimento de um novo padrão de regulação justrabalhista para a ativi-
dade exercida pelos motoristas de Uber é um processo em construção, que lida com
o contraponto entre o moderno e o tradicional, o avanço e o retrocesso.
Em síntese, empregar a força normativa da Constituição para densificar direitos
e princípios fundamentais, em oposição às práticas abusivas do mercado mascara-
das pela roupagem tecnológica, é essencial para estabelecer limites às relações de
trabalho desenvolvidas na era da economia do compartilhamento.

4 ∙ CONCLUSÃO
A era digital e os avanços tecnológicos ofereceram inegáveis melhorias ao otimi-
zar e modernizar as mais diversas atividades. Em um contexto de crise econômica,
proporcionaram possibilidades de inserção de trabalhadores no mercado de traba-
lho, auxiliando na diminuição dos índices crescentes de desemprego.
A economia do compartilhamento, ao propor um novo modelo de estruturação
das relações socioeconômicas, desenvolveu serviços rápidos, baratos e eficientes.
Em um curto período, as empresas-plataformas dominaram o mercado mundial,
tornando-se verdadeiros gigantes corporativos. Baseadas em plataformas digitais e
no controle via algoritmos, as empresas revolucionaram as relações de trabalho e o
acesso aos clientes.
Entretanto, observa-se que, acompanhando as inovações tecnológicas, um con-
texto de precarização e flexibilização do trabalho também se instaurou. No cenário
da economia do compartilhamento é possível verificar motoristas de aplicativos
trabalhando por dezesseis horas seguidas.
Nesse diapasão, provoca-se o Poder Judiciário Trabalhista para verificar se o
padrão de regulação justrabalhista pode ser aplicado, mesmo com adaptações, às
relações de trabalho com a Uber.
Assim, questiona-se se para esses novos trabalhadores submetidos à economia
do compartilhamento, especialmente os que operam por meio de aplicativos, é pos-
sível o estabelecimento de vínculo de emprego.
Em relação especificamente à relação de trabalho entre o motorista e a plata-
forma Uber, entende-se que a tendência ao manter a interpretação clássica dos pres-
supostos fático-jurídicos é pelo não reconhecimento do referido vínculo.
O elemento de maior dificuldade de ser identificado é o da subordinação, tendo em
vista a ausência física de empregador, de um lugar de trabalho fixo e de comandos diretos.
Verifica-se que as decisões judiciais que negam o reconhecimento do vínculo
empregatício entre os motoristas e a plataforma pelo simples fato de não se enquadrar

588
nos moldes da subordinação clássica também não oferecem nenhuma alternativa
legal de tutela jurídica, ignorando os impactos sociais que isso resulta e deixando à
margem de direitos fundamentais milhares de trabalhadores que dependem da Uber
e de outros aplicativos de transporte para suas sobrevivências e de suas famílias.
A situação dessa nova classe de trabalhadores piora ao considerar as sobrejor-
nadas a que são submetidos para assegurar o pagamento de um valor mínimo para
suprir suas necessidades, que muitas vezes sequer é alcançado. Como consequência,
encontram-se vários trabalhadores desprovidos de direitos cujo único alento é não
compor mais os índices de desempregados do País.
Mesmo diante de um panorama incerto e da falta de sinalização sobre o modo
como o Direito do Trabalho irá definir a relação de labor prestado pelos motoristas
de Uber, é imperioso garantir que o trabalho continue sendo um instrumento apto
a garantir dignidade e identidade ao indivíduo.
Diante desse cenário, conclui-se que a Justiça do Trabalho, como ramo espe-
cializado, tem como objetivo precípuo assegurar uma tutela jurídica que resguarde
uma proteção mínima de direitos sociais e trabalhistas, independentemente do
paradigma ou do contexto histórico em que se vive.

REFERÊNCIAS
ABÍLIO, L. C. A “uberização” e as encruzilhadas do mundo do trabalho. Revista do
Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, ano XVII, n. 503, p. 20-27, 24 abr. 2017.
ABÍLIO, L. C. Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Passa Palavra, Rio
de Janeiro, 19 fev. 2017. Disponível em: http://twixar.me/wL2n. Acesso em: 18 jun. 2019.
ALMEIDA, V.; MARTINS, M. Análise juslaboral da relação de trabalho entre motoristas
por aplicativos e a empresa Uber: aspectos e consequências sociojurídicas. Revista de
Direito do Trabalho e Meio Ambiente do Trabalho, Florianópolis, v. 3, n. 1, p. 55-75, 2017.
ANTUNES, R. Desenhando a nova morfologia do trabalho no Brasil. Estudos Avançados,
São Paulo, v. 28, n. 81, p. 39-53, ago. 2014.
ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital.
São Paulo: Boitempo, 2018.
ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho – ensaio sobre a afirmação e a negação do
trabalho. São Paulo: Boitempo, 2003.
ANTUNES, R. Século XXI: nova era da precarização estrutural do trabalho? In:
ANTUNES, R.; BRAGA, R. Infoproletários: a degradação do trabalho virtual. São Paulo:
Boitempo, 2009. p. 231-238.
ANTUNES, R.; BRAGA, R. Infoproletários: degradação real do trabalho virtual. São
Paulo: Boitempo, 2009.
ANTUNES, R.; DRUCK, G. A terceirização sem limites: a precarização do trabalho
como regra. O Social em Questão, Rio de Janeiro, ano XVIII, n. 34, p. 19-40, 2015.
BABOIN, J. C. C. Trabalhadores sob demanda: o caso “Uber”. Revista do Tribunal
Superior do Trabalho, São Paulo, v. 83, n. 1, p. 330-362, 2017.

589
CARELLI, R. L. O caso Uber e o controle por programação: de carona para o século
XXI. In: LEME, A. C. R. P.; RODRIGUES, B. A.; CHAVES JÚNIOR, J. E. R. (coord.).
Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano: a intermediação de mão de
obra a partir das plataformas eletrônicas e seus efeitos jurídicos e sociais. São Paulo: LTr,
2017. p. 130-146.
CECATO, M. A.; DA SILVA, J. A uberização da relação individual do trabalho na era
digital e o direito do trabalho brasileiro. Cadernos de Dereito Actual, João Pessoa, n. 7,
Extraordinário, p. 257-271, 2017.
CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA. Departamento de
Estudos Econômicos. Efeitos concorrenciais da economia do compartilhamento no Brasil:
a entrada do Uber afetou o mercado de aplicativos de taxis entre 2015 e 2016? Brasília:
CADE, 2018.
COOK, C. et al. The gender earnings gap in the gig economy: evidence from over a million
rideshare drivers. NBER Working Paper, Cambridge, March 8th, 2019. Disponível em:
http://twixar.me/bW2n. Acesso em: 21 maio 2019.
DELGADO, G. N. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006a.
DELGADO, G. N. O trabalho enquanto suporte de valor. Revista da Faculdade de Direito
da UFMG, Belo Horizonte, n. 49, p. 63-80, jul./dez. 2006b.
DELGADO, G. N.; DELGADO. M. G. Introdução: o papel da justiça do trabalho no
brasil. In: RENAULT, Luiz Otávio Linhares et al. (coord.). ABC da execução trabalhista:
teoria e prática. Homenagem ao professor Carlos Augusto Junqueira Henrique. São
Paulo: LTr, 2014. p. 13-20.
DELGADO, M. G. Curso de direito do trabalho. 16. ed. São Paulo: LTr, 2017.
DUTRA, R. Q. Direitos fundamentais sociais à afirmação da identidade e à proteção da
subjetividade no trabalho. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 78, n.
4, p. 256-287, out./dez. 2012.
FATOS e dados sobre a Uber. Uber, [s. l.], 1º maio 2019. Disponível em: http://twixar.me/QZ2n.
FELICIANO, G. G.; PASQUALETO, O. Q. F. (Re)descobrindo o direito do trabalho. Jota,
São Paulo, 6 maio 2019. Disponível em: http://twixar.me/JW2n. Acesso em: 4 jun. 2019.
FRAZÃO, A. A decisão do Reino Unido sobre os motoristas da Uber: o que ela ensina?
Jota, São Paulo, 1º jan. 2016. Disponível em: http://twixar.me/pW2n.
FRAZÃO, A. (org.). Constituição, empresa e mercado. Brasília: Faculdade de Direito,
UnB, 2017.
FRAZÃO, A. Economia do compartilhamento e tecnologias disruptivas. Jota, São Paulo,
14 jun. 2017. Disponível em: http://twixar.me/BW2n. Acesso em: 17 mar. 2019.
FUMAGALLI, A. A nova relação capital-trabalho ainda submersa na subjetividade.
Revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, ano XVII, n. 503, p. 8-15, 24
abr. 2017.
LEMOS, M. C. A. M. Dano existencial nas relações de trabalho intermitentes: reflexões na
perspectiva do direito fundamental ao trabalho digno. Brasília: UnB, 2018.
MACHADO, Leandro. Dormir na rua e pedalar 12 horas por dia: a rotina dos entregadores
dos aplicativos. BBC News, São Paulo, 22 maio 2019. Disponível em: http://twixar.me/rF2n.

590
MAIOR, J. L. S. Do direito à desconexão do trabalho. Revista do Tribunal Regional do
Trabalho da 15ª Região, Campinas, n. 23, p. 296-313, jul./dez. 2003. Disponível em: http://
twixar.me/VW2npdf. Acesso em: 29 maio 2019.
MUCELIN, G.; RIEMENSCHNEIDER, P. Economia do compartilhamento: a lógica
algorítmica das plataformas e a necessidade de proteção da pessoa nas altas relações de
trabalho. Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 7. n. 1, p. 61-93, abr. 2019.
OLIVEIRA, P. O Uber e o mito da panaceia tecnológica. Carta Capital, São Paulo, 19 jul.
2015. Disponível em: http://twixar.me/Th2n.
PACHECO, C. et al. A consolidação do Uber como inovação disruptiva: uma abordagem
sistêmica. Disponível em: https://cin.ufpe.br/~gdsv/archive/anpad/artigo_FINAL.pdf.
POCHMANN, M. Extensão e intensificação do trabalho. Revista Fórum, São Paulo, ano
49, n. 98, p. 16-18, maio 2011.
RIBEIRO, B. S. Princípios e desafios para regulação da economia do compartilhamento,
com substrato da teoria responsiva e enfoque na atuação do aplicativo Uber. Brasília:
UnB, 2016.
RODRIGUES, M. V. A. A “reforma” trabalhista e aplicativos de economia compartilhada:
o retrocesso na compatibilização entre as inovações e o Direito do Trabalho. In:
MENDES, G.; FILHO, I. G. S. M. (coord.). 2º Caderno de Pesquisas Trabalhistas. Porto
Alegre: Paixão, 2017. p. 75-96.
SILVA, A. O motorista de Uber e a configuração da relação de emprego. 2017. Trabalho
de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
SLEE, T. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução por João Peres. In:
BREDA, T.; PERES, J. (ed.). São Paulo: Elefante, 2017. [não paginada].
SUNDARARAJAN, A. The sharing economy: the end of employment and the rise of
crowd-based capitalism. Cambridge, MA: The MIT Press, 2016.
WOODCOCK, J. Contra o eufemismo reducionista, a luta por uma flexibilização justa.
Tradução de Walter O. Schlupp. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo,
ano XVII, n. 503, p. 16-18, 24 abr. 2017.

591
BREVE NOTA SOBRE ATIVISMO JUDICIAL NA
CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Paulo Gustavo Gonet Branco1

Sumário: 1 Introdução. 2 Origem. 3 A marca impregnante da superficialidade. 4 Predo­


mínio da acepção negativa da expressão. 5 Um traço comum entre as visões enaltece­
doras e críticas do ativismo e o que as distingue na prática. 6 Ativismo e separação de
poderes na Constituição de 1988. 7 À guisa de conclusão – O fator restritivo à jurisdição
constitucional da liberdade de conformação do legislador democrático.

1 ∙ INTRODUÇÃO
Ao lidar com a concretização de direitos fundamentais, não raro as jurisdições
constitucionais recebem a qualificação de “ativistas”. O mais frequente é que a
adjetivação se dê num contexto de inconformismo. Mas também entre integran-
tes de altos tribunais e mesmo em trabalhos acadêmicos se ouvem aplausos ao
“ativismo” atribuído a uma deliberação judicial, especialmente quando viabiliza
o exercício e uma mais ampla compreensão de um direito fundamental tido por
negligenciado nos espaços políticos.
Como é dado suspeitar, a expressão “ativismo judicial” é empregada com sentidos
diversos nesses casos. Os termos, entretanto, ingressaram, sobretudo neste milênio,
de modo definitivo na nossa linguagem, tanto leiga como técnica. Observatórios
universitários e grupos de pesquisas de pós-graduação – tanto em faculdades de
Direito como de Ciências Políticas – se dedicam ao exame da sua extensão e dos seus
efeitos para a normalidade do sistema democrático. Analistas de diários e semaná-
rios da imprensa não recuam diante da força retórica que a conjugação das duas
palavras exerce sobre quem as encontra referidas a uma decisão específica ou a uma
tendência de algum tribunal. No parlamento e no Executivo, o ativismo judicial
serve, da mesma forma, para discursos de ocasião ou para designar situações indi-
cadas como dignas de mobilizar forças políticas partidárias. Mesmo no Judiciário,
quem quiser se dedicar a rápida pesquisa, haverá de se deparar com acórdãos que
fustigam decisões recorridas por serem ativistas, como outros tantos que justificam
posições à conta de representarem um ativismo reclamado pela sociedade.
Percebe-se que não há uniformidade na atribuição de sentido a essa locução que
ganhou extraordinário alento retórico no quotidiano jurisdicional, político e acadê-
mico. É sempre conveniente, portanto, buscar um ponto de partida para a análise das
decisões tidas como ativistas numa tentativa de conceituar esse fenômeno. É de pru-
dência recomendável também que quem se lance a essa tarefa não espere facilidades.

1 Doutor em Direito (UnB). Membro do Ministério Público Federal. Diretor-Geral da Escola Superior
do Ministério Público da União à época da publicação deste livro.

593
2 ∙ ORIGEM
É comum apontar que a expressão tem a sua origem nos Estados Unidos. Teria
sido cunhada por um historiador, Arthur Schlesinger Jr., num artigo para leigos,
estampada numa revista de variedades, Fortune, edição de janeiro de 1947, entre
propagandas de whisky e de loção pós-barba, sem intenções científicas nem de
crítica especializada. Não deixa, igualmente, de ser curioso que a expressão, nos
Estados Unidos, irrompa vitoriosa no vocabulário uma década depois de conside-
rável período de intensa e ácida interferência da Suprema Corte sobre escolhas polí-
ticas do Congresso Nacional.2 Até então, não se havia descoberto a fórmula lapidar
que a revista de variedades apresentou, já numa fase muito menos conflituosa entre
os poderes políticos e o Judiciário.
Schlesinger descreveu as antipatias que os juízes da Suprema Corte nutriam
entre eles próprios. O critério básico de animosidade estaria na identificação de
cada um dos Justices no grupo dos campeões da autocontenção ou na turma dos
ativistas judiciais. As denominações empregadas não buscavam embasamento em
pesquisas analíticas requintadas. Não deixa de ser significativo, de toda sorte, que as
características vinculadas ao modo de decidir de um e de outro grupo ainda sejam
atuais – tanto no que se lhes assoma como intuitivo como no que ressentem da falta
de necessário enraizamento metodológico.
Os polos foram estremados por Schlesinger segundo a concepção que os ani-
mava quanto à tarefa do Judiciário numa democracia.3 O grupo dos ativistas acre-
ditava que a Suprema Corte deveria desenvolver “um papel afirmativo na promoção
do bem-estar social”, empregando o poder de julgar “em prol da sua concepção de
bem social”. A Corte seria “um instrumento para alcançar os resultados sociais que
[os juízes] achavam ser os desejados”, até porque, afinal, direito e política seriam
inseparáveis. Além disso, “os artifícios do raciocínio jurídico, a ambiguidade dos
precedentes, a indefinição da doutrina, tudo leva a que, na maior parte dos casos,
a diferença de opiniões dos juízes seja invariavelmente tida como razoável, no con-
texto do tecido lógico do Direito”. Schlesinger arremata o modo de ver dos ativistas,
resumindo que, para eles, “a Corte não pode escapar da política; que use, então, o
seu poder político para propósitos sociais saudáveis”.
O grupo dos partidários da autocontenção abre para os poderes políticos uma
margem ampla para avaliações e deliberações em torno do bem comum e de fins
sociais, que torna legítimas soluções com as quais os juízes, eles próprios, possam
não vir a concordar. O papel da Corte seria o de “permitir que outros ramos do Poder
Público obtenham os resultados que o povo deseja, quer isso leve a uma melhoria
da sua situação ou a uma piora”. O papel do Judiciário seria limitado. Partem do

2 Refiro-me à era Lochner, que se estendeu de 1905 até a superação do precedente, conhecido com
o mesmo nome, no caso West Coast Hotel, de 1937. Basicamente, a Suprema Corte, no período,
abateu sistematicamente a legislação social levada ao seu conhecimento, em nome da autonomia
de contratar, que estaria entrincheirada na cláusula constitucional do devido processo legal
substantivo. A propósito, essa mesma cláusula é tida como entronizada, no Brasil, pelo constituinte
de 1988, no art. 5o, LIV, da Constituição.
3 As citações do artigo são colhidas de Keenan Kmiec. “The Origin and Current Meaning of ‘Judicial
Activism”. California Law Review, 2004, n.5, pp. 1446-1449.

594
pressuposto de que as leis têm um sentido objetivo e que não seria apropriado dele se
apartar para favorecer os interesses de qualquer grupo social. Para eles, as leis “não
são vasos vazios”. Além disso, segundo os defensores da autocontenção, “se o legis-
lativo cometer erros, cabe a ele os remediar; qualquer outra intervenção emascula-
ria a democracia, por encorajar o Legislativo a agir irresponsavelmente, escoltado
numa expectativa de que os tribunais virão podar os seus excessos”. 4
Bastam esses trechos para que identifiquemos prontamente a atualidade das
perspectivas que movem as mesmas posições opostas que hoje se defrontam exa-
tamente sobre o papel da jurisdição constitucional. Continuam a ser vistos como
confrontantes o lado dos que vêm o papel da jurisdição constitucional de agente
impulsionador da História, segundo uma pré-compreensão dos seus integrantes
sobre o que é o melhor para a sociedade (e acaso para a humanidade), e o lado
daqueles que preferem que decisões vitais para a sociedade sejam deixadas à
representação política democrática.
Bastam também esses trechos para que se perceba que a análise está longe de ser
suficiente para um enquadramento preciso de decisões numa ou noutra vertentes.
Afinal, continua a não haver um critério exato de definição dos critérios que podem
ser declinados para apontar uma decisão como ativista ou como democraticamente
deferente aos poderes políticos. Se há algo inequívoco em toda essa descrição é
justamente a ambiguidade dos termos empregados por Schlesinger. Seria, entre-
tanto, excessivo esperar do artigo uma ordem de perquirição dessa altura. O que
surpreende é que tantos anos passados continue a se presenciar tanta discussão
arrancada de conceito mal definido por seus debatedores.

3 ∙ A MARCA IMPREGNANTE DA SUPERFICIALIDADE


Ao que parece, a marca da superficialidade do artigo na revista de variedades
terá impregnado o emprego dos termos ali reunidos pioneiramente com a mesma
essência da equivocidade e trivialidade.
A expressão, porém, pela sua apenas aparente nitidez, ganhou público. Contam-se
na casa das dezenas de milhares os artigos em revistas especializadas americanas e,
em proporção menor, brasileiras, que se valem da expressão “ativismo judicial”, sem,
tantas vezes, contudo, sequer lhe reconhecer o trato consideravelmente escorregadio.
As concepções díspares e desarticuladas do fenômeno levam doutrinadores
americanos a negar tanto seriedade como utilidade às palavras conjugadas displi-
centemente na revista popular de 1947. Adverte-se que os que pretendem entender a
discussão veem-se inclementemente desamparados do ponto de vista metodológico,

4 Kmiec (ob. cit., pp. 1448-1449) transcreve um diálogo que Schlesinger teria imaginado entre um
justice da linha da autocontenção e um juiz ativista: “O juiz da autocontenção diz: o Legislativo
editou a lei; ele que a revogue. A resposta do ativista é: dadas as circunstâncias políticas atuais,
ele não vai rever a lei – pelo menos não vai antes que um dano, possivelmente irreparável, seja
sofrido por pessoas indefesas; por isso, a Corte tem que agir. O juiz da autocontenção replica:
você está fazendo justamente o que nós condenamos no passado do nosso Tribunal, está
praticando usurpação judicial. O ativista torna à carga: nós não podemos confiar num eleitorado
crescentemente conservador para proteger os desvalidos ou para garantir os direitos humanos
básicos; estaríamos traindo o espírito e o propósito da Constituição se não interviéssemos”.

595
numa “babel desconexa”.5 Daí, o conselho para que se evite o emprego da expressão
ativismo judicial, desdenhada por ser “irremissivelmente banal”, “pouco mais do
que uma maneira abreviada de, com forte carga retórica, o interlocutor se referir a
decisões com as quais discorda”.6
Como quer que seja, o fato é que a expressão ganhou adesão geral e, fazendo jus
ao seu polimorfismo, nem mesmo apresenta coloração ideológica firme, por isso
que tanto se cogita de ativismo conservador como liberal, de direita ou de esquerda.
Nos Estados Unidos, a jurisprudência iniciada com o caso Lochner, de 1905, em
que a Suprema Corte impôs aos Poderes Legislativo e Judiciário a sua visão de que
a Constituição americana assumira o modelo político-econômico do laissez-faire, é
vista como exemplo característico de ativismo conservador.7
Por outro lado, o ativismo ganhou feitio liberal, quando a Suprema Corte se
lançou à pauta dos direitos civis, durante as presidências dos Justices Warren
(1953-1969) e Burger (1969-1973).
Voltou, adiante, a ser conservadora, ao arbitrar as eleições de 2000, entre
Bush e Gore.
Os descontentes com essas decisões não hesitam em dizê-las ativistas.

4 ∙ PREDOMÍNIO DA ACEPÇÃO NEGATIVA DA EXPRESSÃO


Se o “ativismo judicial” não tem filiação ideológica no plano da tradicional opo-
sição entre esquerda e direito, não menos verdade é que costuma ser verbalizado em
tom de desaprovação crítica.8
É certo que, logo depois de introduzida no linguajar dos norte-americanos, a
expressão apontava para um significado positivo. Keenan Kmiec relata que teria um
equivalente, hoje, nos termos prestigiosos de “ativista dos direitos humanos”, muito
mais do que, na ideia de “juiz que abusa da sua autoridade”, com a qual passou a ser
predominantemente associada, nos Estados Unidos, já em meados dos anos 1950.9
No Brasil, prevalece o conteúdo depreciador da expressão, embora, com muita
frequência, se encontrem autores e magistrados defendendo altivamente o que
denominam de ativismo judicial. O que se percebe, sem muito esforço, é que, tam-
bém entre nós, falta uma visão unificada do significado que cada participante do
debate público relaciona à expressão.

5 Bradley Canon. “Judicial Activism”. Judicature, vol. 66, 1982-1983, p. 239.


6 Craig Green. “An intelectual history of judicial activism”. Emory Law Journey, vol. 58, 2009, p. 198.
7 Esse momento, que durou até 1937 (caso West Coast Hotel v. Parish), assustou o observador francês,
Édouard Lambert, que o descreveu com linhas estarrecidas, no livro “Le Gouvernement des Juges”,
de 1921, influente para que se assentasse franca repulsa da doutrina e dos órgãos políticos franceses
ao controle jurisdicional das leis.
8 Dworkin, por exemplo, repudia o ativismo, que entende inconciliável com a sua concepção de
direito como integridade, na medida em que traduziria um “pragmatismo virulento”, um meio de
o juiz “impor a outros poderes do Estado seu próprio ponto de vista sobre o que a justiça exige”.
Ronald Dworkin. O Império do Direito. São Paulo, Martins Fontes, 1999, pp. 451-452.
9 Kmiec, ob. cit., p. 1451-1452.

596
No plano dos que rejeitam a legitimidade do ativismo entre nós, ressalta-se
Elival da Silva Ramos, que predica ao fenômeno a qualificação de “insidioso
descaminho”10, expressão da “descaracterização da função típica do Judiciário,
como incursão insidiosa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente
atribuídas a outros poderes”.11
Já o emérito decano do Supremo Tribunal Federal, Ministro Celso de Mello, defen-
deu o ativismo judicial, afirmando que a Corte o exerce por imposição implacável “da
necessidade de fazer prevalecer a primazia da Constituição da República”. Mostra-se
persuadido de que “o chamado ativismo judicial é uma resposta do Supremo a provo-
cações formais da sociedade a partir de mecanismos criados pela Constituição para
neutralizar o caráter lesivo das omissões do Congresso ou do Executivo”.12
O que parece ser uma radical contraposição de juízos, no campo valorativo, do
fenômeno do ativismo judicial, não o é, na realidade. O que se flagra aqui é, antes,
uma ilustração eloquente dos múltiplos usos da expressão nos discursos públicos.
Em ambas as manifestações, à primeira vista discordantes, nota-se uma
característica comum. Nenhuma delas defende que o Judiciário possa desprezar a
Constituição, à guisa de fazer justiça. Nenhuma prega um retorno ao solipsismo
do “bom juiz Magnaud”.
O Ministro Celso de Mello defende, entretanto, que os instrumentos criados
pela Constituição sejam utilizados para suprir omissões inconstitucionais, vendo
nisso função que a Constituição de 1988 tornou própria do Judiciário. Se assim
é, decisões dessa ordem não seriam intrusivas sobre funções típicas dos poderes
políticos. Não expressariam, portanto, conduta censurável.
Eventual divergência, claro, poderá advir da compreensão dos intérpretes da
Constituição sobre o que seria inerente ao poder de decisão da Suprema Corte.

5 ∙ UM TRAÇO COMUM ENTRE AS VISÕES ENALTECEDORAS E


CRÍTICAS DO ATIVISMO E O QUE AS DISTINGUE NA PRÁTICA
Se compararmos as duas vertentes que se referem à expressão ativismo judicial,
será possível observar que a que o censura o faz porque a liga a exercício extra-
vagante da competência do Judiciário. A corrente que o enaltece, por seu turno,
não propugna que o Judiciário atue fora dos seus limites de competência; apenas
entende que a Constituição deve ser interpretada com largueza, na hora de se defi-
nir a competência da jurisdição constitucional.
Ambas as perspectivas, portanto, repelem a atuação dos tribunais discordante
dos limites constitucionais das suas atribuições. Diferenciam-se, na realidade, por-
que a que repudia o ativismo vê o fenômeno caracterizado com base numa com-
preensão mais estrita dos limites de atuação do Tribunal; a outra corrente chama de
ativismo uma atuação dentro dos limites constitucionais de competência, quando
compreendidos segundo interpretação mais elaborada da Constituição.

10 Elival da Silva Ramos. Ativismo Judicial. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 313
11 Elival da Silva Ramos. ob. cit., p. 129.
12 Anuário da Justiça de 2010. Consultor Jurídico, 2010, p. 77.

597
O problema está em demarcar as fronteiras das ações próprias do Judiciário.
Se se pretende criticar o ativismo no plano interno de uma ordem constitucio-
nal, é inevitável que se leve em conta o desenho de separação de poderes que a
ordem particular traçou. Não parece produtivo, nesse plano mais positivo da aná-
lise, tomar como parâmetro crítico uma visão abstrata e a-histórica da separação
dos poderes, muito menos uma perspectiva de relacionamento entre poderes tecida
em outra latitude geográfica ou em outra dimensão cronológica.
A dimensão de separação de poderes que conduzirá a uma análise crítica de
interesse prático do fenômeno do ativismo há de ser aquela ideada pelo constituinte.
Se se quiser usar a expressão ativismo judicial entre nós com alguma consistência,
o exame do desenho de independência dos poderes e de inter-relacionamento entre
eles concebido em 1988 não pode ser negligenciado.

6 ∙ ATIVISMO E SEPARAÇÃO DE PODERES NA CONSTITUIÇÃO DE 1988


O constituinte brasileiro de 1988 certamente não se viu dirigido pela obsessão
de reproduzir, com fidelidade servil, o modelo que Locke ou Montesquieu tinham
em seus espíritos quando dissertaram a respeito da separação de poderes. As atri-
buições de competência ao Judiciário nacional são únicas na história republicana
brasileira, e não pretendem ser o espelho de algum equacionamento engendrado
concretamente em algum outro país.
Assim, se a própria existência do controle jurisdicional de constitucionalidade
é sentida nos EUA, em si mesma, como uma expressão antiga de ativismo – já
que a Constituição de lá não prevê expressamente o mecanismo, nem tampouco
declara a Suprema Corte guardiã da Carta –, no Brasil, o exercício do controle,
em si mesmo, integra textualmente o domínio das atribuições constitucionais do
Supremo Tribunal Federal.
Não se pode deixar de levar em conta, ainda, o caráter dirigente imprimido à
ordem constitucional brasileira, referta de princípios e valores que demandam com-
plementação e concretização legislativa e administrativa. Uma Constituição com essas
características dá ensejo a frequentes instâncias de judicialização da política – que, em
si mesma, não coincide com o fenômeno do ativismo judicial, mas contribui para tor-
ná-lo mais frequente, dando, por vezes, a casos duvidosos a aparência de justificáveis.
Essa materialização da Constituição, somada ainda à expressa competência
conferida à jurisdição constitucional para resolver omissões inconstitucionais,
lança o Tribunal em campo que tradicionalmente estava rigorosamente circuns-
crito à atuação dos Poderes dotados de legitimidade democrática-representativa.
Essa arquitetura particular de pontes e barreiras entre Poderes é direito positivo
e segui-la não pode ser visto como acinte à separação de poderes. Não é dado, em
consequência, enxergar no desempenho dessas novas tarefas confiadas ao Judiciário
fenômeno a ser escarmentado com a designação negativa de ativismo judicial.
De toda forma, não há negar que a definição das competências do Judiciário
pelo próprio Judiciário pode ensejar ímpetos associados ao ativismo. São, por-
tanto, não poucas as armadilhas das aparências contra as quais o observador
deve-se precatar ao se lançar no lodoso terreno das qualificações de ativistas atri-
buídas a julgados da jurisdição constitucional.

598
7 ∙ À GUISA DE CONCLUSÃO – O FATOR RESTRITIVO
À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE
CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR DEMOCRÁTICO
Não se pode, enfim, perder de vista que é inevitável que a jurisdição constitucio-
nal opere no plano legislativo, onde quer que seja instituída. Não mais ocorre seria-
mente a ninguém que se possa esperar do juiz que apenas “aplique” o direito, sem
contribuir para a sua expansão de significado em algum grau. O problema central
é outro; desloca-se para a medida dessa atividade criativa em cada momento e em
cada circunstância. É nesse passo que se lança à vista do observador a problemática
da tensão típica entre constitucionalismo e democracia representativa, com todas as
suas perplexidades, que há décadas desafiam, com a voragem da proverbial Esfinge,
os que acreditam poder esclarecê-las.
Se a solução para o enigma não se mostra no horizonte das ideias assentadas, ao
menos é possível discernir, uma vez melhor compreendida a realidade subjacente ao
fenômeno do ativismo judicial, situações em que, com mais clareza, se possa identificá-lo.
Em termo amplos, cabe a censura de ativismo quando a jurisdição constitu-
cional se substitui, sem competência para tanto, a uma decisão que, no sistema de
separação de poderes, é esperada que seja estabelecida pelos poderes dotados de
representação democrática.
Cabe especialmente ao Legislativo a função precípua de formatar a ordem jurídica
mediante escolhas que se compreendam nos marcos admitidos pela Constituição –
atividade que, evidentemente, pressupõe a legitimidade do Legislativo para interpre-
tar a Constituição. Sendo esse o quadro, haverá atuação desbordante da competência
da jurisdição constitucional nos casos em que as instâncias políticas deliberarem, a
partir de uma interpretação/concretização da Constituição passível de ser conside-
rada pela cidadania informada como razoável, e, mesmo assim, vierem a esbarrar
numa censura judicial.
Sabe-se que da interpretação/aplicação das normas constitucionais pode resul-
tar, conforme as circunstâncias, soluções discursivamente necessárias, discursiva-
mente impossíveis ou discursivamente possíveis.
Cabe, decerto, à jurisdição constitucional criticar as deliberações dos poderes
políticos, especialmente as do legislador, quando se mostra certo o dever de agir ou
de não agir e as instâncias políticas assumirem comportamento oposto.
Naqueles casos, contudo, em que a Constituição franqueia interpretação que
acolhe razoavelmente a deliberação dos órgãos políticos, o princípio formal da
democracia representativa impõe-se como limite à ação corretiva da jurisdição
constitucional. Nessas ocasiões, há que se admitir o que Alexy denomina de “mar-
gem de ação epistêmica” em favor do legislador, “reconhecendo-lhe a competência
para determinar, dentro de um certo contorno, o que está ordenado e proibido e o
que é facultado, de acordo com os direitos fundamentais”.13
Decerto que essas balizas teóricas, traçadas para estremar o ativismo da atua-
ção funcionalmente adequada do juiz constitucional, não compõem um algoritmo

13 A propósito, Paulo G. Gonet Branco. Juízo de ponderação na jurisdição constitucional. São Paulo,
Saraiva, 2009, p. 183.

599
infalível para a crítica precisa de toda e qualquer decisão judicial. Descobrir quando
uma solução é, efetivamente, apenas possível – e não necessária ou terminantemente
proibida –, envolve, de seu turno, dificuldades não menos complexas no plano argu-
mentativo. Ao menos, porém, a compreensão menos imprecisa das realidades jurí-
dicas envolvidas no assunto auxilia a desmitificar certas narrativas epidérmicas ou
mesmo enganadas sobre o ativismo judicial. Precisar-lhe sempre mais os contornos
contribui para que críticas e elogios à atuação específica da jurisdição constitucio-
nal sejam mais consistentes e produtivos.

600
A DEFINIÇÃO DE PESSOA DE BOÉCIO VISTA ATRAVÉS
DA SUMA TEOLÓGICA DE TOMÁS DE AQUINO
Uma raiz a ser resgatada na proteção
contemporânea à dignidade da pessoa

Paulo Vasconcelos Jacobina1

Sumário: 1 Introdução. 2 A Summa Theologiae e seu método dialético. 3 O texto do


artigo. 3.1 Considerações iniciais. 3.2 A hipótese controvertida. 3.3 Os argumentos
objetores. 3.4 A resposta sintetizadora de Santo Tomás. 3.5 As respostas de Santo Tomás
aos argumentos objetores iniciais. 4 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
A Constituição brasileira, no seu art. 1º, III, afirma que a dignidade da pes-
soa humana é um fundamento da República Federativa do Brasil. Essa afirmação é
notável, porque a nossa tendência, como juristas, é imaginar justamente o contrário:
que o Estado brasileiro, a República por seu arcabouço jurídico e administrativo,
seja o fundamento da dignidade da pessoa.
Este é exatamente o modo positivista de pensar: imaginar que é o direito quem
garante a dignidade da pessoa, e não que a dignidade da pessoa é o fundamento do
direito. Se é assim, a consequência inelutável seria a de admitir que o Estado poderia,
licitamente, ampliar ou reduzir, não somente a proteção à dignidade da pessoa, mas a
própria noção de pessoa; esta seria, assim, um construto jurídico a ser aplicado aos indi-
víduos humanos à medida que o direito criasse sua noção e reconhecesse sua extensão.
É sobre este pressuposto que correm as discussões modernas sobre a eutanásia, sobre
o chamado “direito ao suicídio” e, principalmente, sobre o “direito” ao aborto. Nos três
casos, e especialmente neste último, há uma manipulação jurídica da extensão da con-
cepção de pessoa e da proteção à sua dignidade, de modo a aplicá-la com mais ou menos
intensidade a estes ou aqueles indivíduos, fragilizando a proteção à sua pessoalidade. E
essa luta é feita a partir de dentro do ordenamento, como se essa proteção pudesse ser
livremente dimensionada a posteriori pelos operadores e produtores do direito.
O artigo visa, porém, examinar a própria origem da noção de pessoa, na filosofia
ocidental; resgatar a noção clássica de pessoa de Boécio,2 sob o enfoque de Tomás de

1 Procurador Regional da República – PRR 1ª Região. Mestre em Direito Econômico pela Universidade
Federal da Bahia. Especialista em Direito Sanitário pela Universidade de Brasília. Graduado em
Direito pela Universidade Católica de Salvador e em Teologia pela Faculdade Católica de Anápolis.
2 “Liber de Persona et Duabus Naturis”, ch. 3, como citado por Tomás de Aquino na Suma Teológica,
questão 29, artigo 1.

601
Aquino, para demonstrar que essa dignidade não é manipulável pelo direito ou pelo
próprio Estado, porque o antecede e fundamenta. É por isso que podemos discernir,
por examinar pressupostos antecedentes, qual Estado se organiza com respeito às
pessoas e qual se organiza para dominá-las.
Nosso debate passará por breves palavras de apresentação ao método de Santo
Tomás, para enfrentar, em seguida, o artigo primeiro da questão 29 da primeira parte
da Suma Teológica, no qual ele submete essa definição a um exame profundo e a uma
crítica sistemática. Por fim, algumas palavras de conclusão sobre a solidez da noção
de pessoa como fundamento do direito positivo, do próprio ordenamento jurídico e,
por fim, como pressuposto de existência do Estado e sua ordenação ao bem comum.3

2 ∙ A SUMMA THEOLOGIAE E SEU MÉTODO DIALÉTICO


Antes de entrar no texto da Summa, no entanto, é necessário fazer um pequeno
resgate do seu contexto e da sua metodologia.
A Suma Teológica, de Tomás de Aquino, foi escrita por volta dos anos 1270. Tem,
portanto, cerca de 750 anos. É de compreensão dificílima para um leitor de hoje,
ainda mais quando não se tem especialização na área. Tradicionalmente, ela era lida
em latim, nos Seminários católicos, por aqueles que estavam em formação para o
sacerdócio ordenado – para ser padre. Contudo, segundo se sabe, hoje ela é pouco
lida até nesses ambientes; mas facilita muito o fato de existirem atualmente boas
traduções para o português.
A Suma Teológica é composta de três partes: a parte “primeira”, a parte
“segunda” (que, por seu turno, está dividida em “primeira parte da segunda parte”
e “segunda parte da segunda parte”) e a parte “terceira”, que São Tomás de Aquino
deixou incompleta e foi completada por discípulos seus.
Quanto aos seus interlocutores, São Tomás apresenta dois tipos: os iniciados, que
estão buscando ampliar seus conhecimentos, e os iniciantes – exatamente o tipo de
interlocução que faremos aqui. Ele diz, na verdade, no prólogo da Suma, que está se
dirigindo aqui aos principiantes, não aos já avançados.4 O que é surpreendente, porque
qualquer um que já tenha avançado um pouco nas páginas da Suma saberá quão com-
plexas elas são para quem está começando a refletir sobre tais assuntos.
As partes, por seu turno, dividem-se em questões, e estas em artigos. O artigo
tem uma estrutura fundamental: ele parte de uma hipótese controvertida, que
introduz o tema de um modo problemático. Trata-se de buscar chegar aos funda-
mentos racionais daquela matéria, introduzindo exatamente a dúvida sobre a sua
pertinência por meio de uma afirmação que nega esses fundamentos. No nosso
caso, uma vez que a definição de “pessoa” de Boécio era de uso corrente, a hipótese
controvertida tenta exatamente questionar este consenso, colocando em dúvida
essa aceitação irrefletida. No caso deste artigo, a hipótese controvertida é: será
que Boécio, ao definir pessoa como “substância individual de natureza racional”,

3 Art. 3º, IV, da Constituição da República Federativa do Brasil.


4 “[...] por isto, é nossa intenção, na obra presente, ensinar as verdades da religião cristã de modo
conveniente à instrução dos principiantes” (AQUINO, 2016, p. 25).

602
legou-nos uma definição adequada? Esta é a pergunta que Santo Tomás nos propõe
na Primeira parte, questão 29, artigo 1, da sua Suma Teológica.5
A seguir, colecionam-se os argumentos que se posicionam no sentido dessa
hipótese inicial; vale dizer, trata-se de atacar a posição tradicional em todas as suas
fragilidades, trata-se de ouvir com honestidade aqueles que não aceitam o mero cos-
tume, o mero consenso, colecionando, sem medo, seus argumentos mais fortes. Por
fim, para completar a fase de debates, ainda nesta primeira fase de questionamento,
colecionam-se os argumentos sed contra, ou seja, aqueles argumentos normalmente
advindos de uma autoridade como as Escrituras, um Padre da Igreja ou um Doutor
antigo, que fundamentam a posição tradicional atacada pela hipótese controvertida.
Santo Tomás apresenta, então, a sua própria posição sobre o assunto, de maneira
serena e fundamentada, argumentando, raciocinando, expondo honestamente as
razões do seu próprio modo de pensar. Ele quer nos apresentar seus critérios. E,
num último momento, trata-se de revisitar, municiado agora destes sólidos
critérios de pensamento, os argumentos problemáticos iniciais, resgatando neles o
que trazem de verdadeiro, corrigindo aquilo em que se equivocam, integrando-os
com os argumentos sed contra e a resposta pessoal de Tomás, de modo a construir,
solidamente, base de razão para aquilo que, embora verdadeiro, antes era tradicio-
nalismo, costume acrítico, aceitação irrefletida. Uma riqueza de método.6
Esse método é o contrário do dogmatismo; não se trata de um jogo de cartas
marcadas. Não é raro encontrar um artigo em que os argumentos objetores restem
acolhidos, ou que o argumento sed contra seja refutado. Trata-se de buscar funda-
mentar pela razão aquilo que é aceito por costume, enriquecendo o pensar.
Assim, pode-se medir a coragem de introduzir a hipótese de que talvez esta
definição tradicionalíssima e respeitadíssima de pessoa seja inadequada, apesar de
aceita pacificamente na Academia e na Igreja. É a coragem de fragilizar, de questio-
nar os próprios fundamentos daquilo que se tem como mais sólido nos consensos
de então. Muito diferente da postura contemporânea, que pode ser tão dogmática:
poucos professores acadêmicos, hoje, aceitariam promover um debate tão radical
sobre os fundamentos não explícitos do seu próprio modo de pensar. Nesse sentido,
os medievais eram mais honestos: os professores eram convidados a escrever estas
Sumas para tornar explícitos todos os fundamentos do seu modo de pensar.7 Hoje,

5 AQUINO, 2016, p. 224. Ou, no modo clássico de citar a Suma Teológica, STh, Iª, 29, 1. Todos os
trechos a seguir são retirados desse artigo.
6 Villey elogia esse método de Tomás, dizendo: “O jurista vai se sentir em casa. Pois a razão desta
riqueza é o jogo dialético: fazer o exame mais completo possível de todos os pontos de vista sobre a
coisa. Ouvir ambas as partes. Audiatur et Altera Parts!” (2014, p. 179).
7 É ainda Villey que, comentando o método de Santo Tomás, nos diz: “Os artigos da Suma são
instigantes. […] Afora alguns casos excepcionais, ele não tem o objetivo de defender nenhuma
tese anunciada de antemão. Seu ritmo é outro. Em primeiro lugar, introduzir a dúvida, provocada
pela coexistência das ‘objeções’ contraditórias, depois encontrar um caminho que sirva para sair
do labirinto. O rio não para de avolumar-se com opiniões novas e vai desembocar num feixe de
respostas multiformes […] ou num leque de sentidos de uma palavra. Não há conclusão simples.
Uma questão não tolera ser resumida. O estatuto da razão humana é a procura, não a quietude de
uma ciência acabada” (idem, p. 177. Grifos no original).

603
não é que não haja uma filosofia, ou mesmo uma teologia, por trás das grandes
linhas de pensamento nas academias; é que esses fundamentos estão ocultos e,
embora ocultos, são pressupostos. M uitas vezes, o seu questionamento é tomado
como ofensa pessoal e causa de exclusão, de eliminação acadêmica dos eventuais
opositores.8 Aquele que não se examina, que não se expõe nos fundamentos
mais básicos das suas posições, às vezes ainda se sente autorizado a agredir quem
honestamente professa seu credo, escondendo-se no mote “o Estado é laico”. Sim, o
Estado é laico, mas tanto dos deuses declarados quanto dos ocultados.9

3 ∙ O TEXTO DO ARTIGO
3.1 ∙ CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A noção de pessoa, recebida do filósofo Boécio a partir da meditação cristã a
respeito da Santíssima Trindade, continua a ser um valioso instrumento de com-
preensão, não somente teológica, mas filosófica, psicológica e até mesmo política
na contemporaneidade. Nesse artigo, Santo Tomás propõe uma reflexão muito
didática e profunda sobre essa noção.

3.2 ∙ A HIPÓTESE CONTROVERTIDA


A hipótese controvertida, para iniciar o debate, é exatamente a de que esta
definição (pessoa é uma substância individual de natureza racional) é inadequada.
Acompanhar o debate proposto será enriquecedor, porque Santo Tomás esclarece
didaticamente cada elemento da definição, tão rica de sutilezas filosóficas desconhe-
cidas para nós. É interessante notar que não há um argumento sed contra. A defini-
ção deve sustentar-se sozinha, contra os cinco argumentos adversos, ou cair. Deve-se
acompanhar com atenção, porque cada conceito envolvido aqui nos torna um pouco
mais ricos intelectualmente.

8 Falando da inferioridade do método acadêmico contemporâneo sobre o método de Santo Tomás,


Villey diz o seguinte: “Monolitismo, este é o inimigo. Em vez de cantar o progressismo, o ‘criativismo’
em literatura, seria menos trapalhona a política cultural que, por acaso, tivesse em mira livrar-nos
dos ismos, marcas dos excessos e da pobreza de nossos sistemas. E, entre eles, nos pontos dos quais
eu teria de tratar: clericalismo, monarquismo, estatismo, igualitarismo, socialismo – em filosofia,
niilismo e dogmatismo – e ‘tomismo’. Destruir estas ideias ocas é um dos serviços que a leitura de
Tomás de Aquino poderia prestar ao século XX”. (Idem: 180. Itálicos no original).
9 Falando da filosofia grega, Gilson (2002, p. 19) diz o seguinte: “Ao falar de Tales de Mileto,
Aristóteles diz que, de acordo com aquele filósofo, o primeiro princípio, elemento ou substância, de
que nascem todas as coisas, e ao qual todas as coisas devem regressar, é a água. Ao que acrescenta,
noutro texto, que, de acordo com o mesmo Tales, ‘todas as coisas estão cheias de deuses’. Como
podem estas duas afirmações distintas conciliar-se filosoficamente?”, para acrescentar, adiante,
que “a definição de um deus grego deverá ser então: um deus, para qualquer ser vivo, é qualquer
outro ser vivo que ele reconhece como influenciando sua vida” (idem, p. 25). Ora, se aplicássemos
esta noção de que um deus é qualquer força ativa capaz de influenciar decisivamente a vida dos
seres humanos, teríamos que confessar que a pulsão sexual é o deus de Freud, como a evolução por
seleção natural é o deus dos neodarwinistas, ou a economia é o deus de Marx, e assim por diante.
Essas questões foram discutidas em maior extensão no texto “O paradoxo do ateísmo e a palavra
Deus” (v. JACOBINA, 2015, p. 31).

604
3.3 ∙ OS ARGUMENTOS OBJETORES
Chegamos ao momento em que os argumentos mais fortes no sentido da hipó-
tese controvertida serão colecionados; vale dizer, os argumentos, neste caso, que
querem denunciar como inadequada a definição de Boécio para pessoa.
O primeiro argumento objetor visa atingir o elemento da individualidade na
definição boeciana. O argumento afirma que pessoa, como definida por Boécio, é
sempre um ser singular, e não é possível definir um singular;10 toda definição tem
natureza universal. Logo, conclui o argumento, a definição é inadequada.
O segundo argumento centra suas baterias contra a noção de substância pre-
sente na definição boeciana. De fato, filosoficamente, há dois sentidos para o
termo “substância” (compreendida como aquilo que se sustenta em si mesmo);
o sentido ontológico e o sentido lógico. Ontologicamente, o termo substância
designa as coisas, tal como existem no mundo, em sua concretude individual.
Assim, a minha cadelinha “Pipoca” é uma substância, como eu sou uma substân-
cia e aquela maçã é uma substância. Classicamente, as coisas realmente subsistentes
são chamadas de substâncias primeiras, porque a filosofia clássica sempre entendeu
que as coisas existem antes em si mesmas do que em nossas mentes. O conceito que
apreende a essência das coisas, aquilo que as define universalmente, é chamado de
substância segunda. Assim, Pipoca, minha cadelinha, é uma substância primeira,
mas os cães, como animais do gênero canis e da espécie canis lupus familiaris, são
substância segunda. A partir dessa distinção, o argumento questiona a utilização
da noção de substância nesta definição de “pessoa”. Boécio utiliza aqui o termo
substância no sentido de substância primeira ou no sentido de substância segunda?
Se o termo é utilizado no sentido de substância primeira, prossegue o argumento,
seria redundante acrescentar individual, porque a substância primeira é individual
por definição. E se for no sentido de substância segunda, então há contradição, por-
que a substância segunda nunca é individual, mas se constitui sempre numa espécie
ou num gênero. Disso tudo, o argumento conclui que a definição é inadequada.
O terceiro argumento também parte de uma distinção entre aquilo que se
refere à lógica, de um lado, e à realidade extramental, do outro. As espécies, por
exemplo, existem na realidade do mundo; a noção de espécie, porém, existe apenas
no campo da lógica; não se refere diretamente às coisas, senão ao modo pelo qual nós

10 “Não há definição, rigorosamente falando, a não ser do universal. O singular, como tal, não pode ser
definido: omne individuum ineffabile. Isso se deve a que a individualidade depende das condições
materiais, que têm uma indeterminação fundamental” (GARDEIL, 2007, p. 88). Isso adiciona mais
uma dificuldade à questão da definição de pessoa: embora a matéria seja princípio de individuação,
nem todos os seres pessoais são rigorosamente materiais; portanto, a individuação, nos seres
materiais, se dá pela matéria, mas não assim nos anjos, em Deus ou mesmo nas modernas pessoas
jurídicas. No entanto, o ente é sempre uno, e é desse transcendental do ser (o uno, a unidade) que a
definição de Boécio trata, e não da individuação dos seres materiais. No caso dos seres materiais,
“o indivíduo, sendo individual, não pode ser definido, pois sua essência é aquela que compartilha
com outros indivíduos da mesma espécie. Aquilo que faz o indivíduo único e diferente de outros
indivíduos de sua espécie serve mais para designação do que para significação”. (JOSEPH, 2011, p.
108). A objeção, portanto, explora uma ambiguidade da noção de individuação para chegar a uma
conclusão errônea, que Santo Tomás enfrentará logo adiante.

605
as conhecemos. É um nome intencional11 porque não se refere às coisas como reais,
mas ao conhecimento que temos delas, por abstração – às suas formas assimiladas
por nós, intencionalmente, quer dizer, referidas àquilo que existe realmente. Assim,
partindo da ideia de que as definições intencionam o próprio ser das coisas, e não o
modo pelo qual as conhecemos, o argumento afirma que os nomes intencionais não
devem entrar nas definições das coisas. Assim, é correto definir o ser humano como
animal racional, mas não estaria certo defini-lo como uma espécie de animal, porque
o nome espécie não se refere às coisas, mas a noções de classificação, e, portanto, a
modos de conhecer. A partir desse raciocínio, o argumento reafirma que indivíduo
também é um nome intencional; logo, não deveria compor a definição de pessoa,
considerando que a definição de pessoa se refere a um ser – uma substância de
natureza racional – e não a uma mera categoria do conhecimento. Deste arrazoado, o
argumento conclui que a definição de Boécio é inadequada.
O quarto argumento parte da definição aristotélica de natureza. Para o Filósofo,
natureza designa o princípio intrínseco de movimento e repouso, naquilo em que tal
princípio existe essencialmente, e não acidentalmente. Exemplificar pode facilitar nossa
compreensão: é da natureza da água ser molhada e molhar; essencialmente, a água é
molhada e molha. Mas se o meu cãozinho acabou de ser lavado pela chuva, e, sacudin-
do-se, molha minha roupa, isto não significa que seja da natureza do cão molhar os
outros, porque isso tudo ocorreu acidentalmente, por causa da água da chuva, não por
causa de alguma característica úmida presente essencialmente no cão. Latir e morder,
contudo, são indiscutivelmente da natureza do cão. Se é assim, prossegue o argumento,
a noção de natureza envolve a ideia de mudar e ser mudado. Se, portanto, a noção de
natureza está incluída na noção de pessoa (lembrando a definição de Boécio, de pessoa
como “substância individual de natureza racional”), então esta noção não poderia ser
aplicada a seres imutáveis, como Deus e os próprios anjos – que, no entanto, são seres
indiscutivelmente pessoais. Assim, o argumento conclui que esta definição é inade-
quada, e, em vez de trazer a palavra “natureza”, ela devia trazer a palavra “essência”.
O último argumento objetor cita o caso específico da alma humana após a morte. Ela
é, diz o argumento, uma substância, e não um mero acidente. Ademais, é um indivíduo –
é a alma, digamos, de João, e não de Pedro. E indiscutivelmente mantém suas capacida-
des racionais. Logo, atende a todos os requisitos da noção de “pessoa” de Boécio; mas
não é uma pessoa. Assim, o argumento conclui que esta definição é inadequada.
São estes, pois, os argumentos que atacam a definição boeciana.

3.4 ∙ A RESPOSTA SINTETIZADORA DE SANTO TOMÁS


Vimos, ao introduzir o debate deste artigo, a hipótese inicial de que a noção de
“pessoa” que herdamos de Boécio seria inadequada e os cinco argumentos objetores
utilizados para atacá-la, especialmente a partir das definições clássicas dos elementos

11 De acordo com Wuellner (2012, p. 63), o termo intenção, na lógica clássica, tem dois sentidos: “a.
Mental representation or cognitive likeness of something. b. The object or being that is represented
in knowledge; the objective concept, and specially the universal”. Assim, um nome intencional é
uma categoria lógica, aquilo que a lógica clássica chama de segundas intenções lógicas, e, portanto,
serve para descrever o modo de conhecer a realidade por abstração, mas não para descrever
universalmente os próprios seres reais com os quais a inteligência se depara.

606
filosóficos contidos no conceito boeciano. Agora, receberemos de Santo Tomás uma
verdadeira aula de filosofia, como pressuposto para a síntese que ele vai fazer.
Para começar, Santo Tomás fará um percurso através da lógica até a ontologia –
e é bom lembrar que, para ele, estes mundos, da lógica e da ontologia, não são
estanques entre si.12 A lógica guarda as categorias do conhecimento que só adquirem
consistência porque se referem à realidade; esta, por seu turno, guarda em si a estru-
tura do pensamento que lhe dá sentido, que é o pensamento divino. Assim, é
bom lembrar que, ao falar das categorias lógicas, estamos falando da realidade assim
como apreendida pela inteligência, e, ao falar da realidade, falamos daquilo que é
constituído, apreendido e expressado inteligentemente: como projeto, por Deus,
como fonte de conhecimento, por nós. O logos, portanto, não é estranho ao real, nem
se opõe a ele – vive, aliás, no mais profundo do seu íntimo: no princípio era o logos.
Santo Tomás nos explicará agora que em todos os gêneros de coisas que conhe-
cemos existem os universais, ou seja, aquilo que é expresso por nossos conceitos
(o ser humano, os leões, a brancura), e existem as coisas particulares (minha
cadelinha Pipoca, a cor branca desta parede). Vale dizer, há substâncias primeiras,
substâncias segundas e acidentes.
Mas os indivíduos, as coisas individuais em sua concretude existencial, no
entanto, estão propriamente no gênero das substâncias. É que as substâncias têm
a sua subsistência individual em si mesmas, enquanto os acidentes subsistem por
existirem em outra coisa, à qual inerem e na qual individuam-se. É por isto que, de
certo modo, minha cadelinha Pipoca é existencialmente mais perfeita do que a
brancura desta parede : Pipoca é uma substância, a brancura é apenas um acidente
da parede, quer dizer, tem apenas uma existência precária e derivada da existência
da substância (no caso da brancura, é a parede) à qual ela inere e n a q u a l
subsiste. A parede pode ser pintada de amarelo sem deixar de ser parede.
Portanto, diz Santo Tomás, por terem este modo mais perfeito de existência
é que as coisas concretas e individuais são chamadas de substâncias primeiras
ou hipóstases. As substâncias segundas ou conceitos, sendo universais, não têm
existência concreta, mas apenas a existência de seres de razão: subsistem numa
inteligência, seja na divina como arquétipos, seja na inteligência criatural como
conhecimento. Somente as substâncias individuais ou primeiras subsistem em si
mesmas, independentemente de serem conhecidas por alguma mente criatural.
Entre as substâncias primeiras, no entanto, Santo Tomás nos lembra que algumas
têm uma existência passiva, isto é, são conduzidas aos seus próprios fins a partir de fora.
Outras, porém, são senhoras de seus próprios atos, isto é, dirigem-se aos seus fins agindo
por si mesmas. Agir, ou seja, ser dono dos próprios atos, conduzir-se em vez de ser con-
duzido, tudo isso é próprio do indivíduo. Mas não de qualquer tipo de indivíduo: apenas
são capazes de atos, ou seja, de agir efetivamente, os seres individuais racionais. É por isto
que, de todos os seres, apenas as substâncias individuais de natureza racional, que têm
a perfeição adicional de serem autoras dos próprios atos, recebem o nome de pessoa.

12 Veatch dá boas lições sobre a relação entre a lógica intencional clássica e a ontologia, comparando-a
com a lógica matemática e simbólica moderna, abstrata em si mesma, na obra Intentional logic: a
logic based on philosophical realism, em especial no capítulo II (1952, p. 7-27).

607
Aqui está a centralidade deste artigo. Todos os seres encaminham-se aos seus fins.
Mas somente aqueles seres que são pessoas são capazes de conhecer seus fins e enca-
minhar-se a eles livremente. Eis, pois, aqui determinada a dignidade do ser pessoa.
Por isto, diz Santo Tomás, é para expressar de maneira ainda mais perfeita essa
dignidade da pessoa que a definição a descreve como substância individual, ou seja,
como aquilo que há de singular no gênero da substância, isto é, aquilo que existe con-
cretamente do modo mais completo, e acrescenta a natureza racional para enfatizar
a liberdade e a inteligência como notas distintivas dessas substâncias – completando
a perfeição no seu modo de ser. É por isso que a minha cadelinha Pipoca não é uma
pessoa – faltam-lhe a liberdade da inteligência e a autodeterminação da vontade.
Note-se, por fim, que Santo Tomás trabalha, aqui, com uma noção de liber-
dade diferente daquela que conhecemos hoje. Liberdade, para Tomás, não envolve
apenas a capacidade de escolher. Envolve a capacidade de reconhecer seus fins e
alcançá-los por si mesmo, escolhendo os meios adequados para tanto. Portanto, nem
o fim último é algo escolhido arbitrariamente pelo indivíduo, nem a liberdade se
manifesta de modo igual em qualquer escolha pessoal. Tanto deixar de reconhecer
os fins que estão contidos no âmbito da potencialidade humana, escolhendo outros
arbitrários para substituí-los, quanto escolher meios que são inadequados para
alcançar seus fins, não são expressão de liberdade, mas, ao contrário, da falta dela.
Do mesmo modo, alcançar os fins, ainda que verdadeiros, por ter sido conduzido
passivamente a eles por uma força externa, sem chegar a conhecê-los adequada-
mente ou sem ter tido a oportunidade de encaminhar-se a eles por si mesmo, são
igualmente atentados à dignidade de pessoa. Contudo, esta discussão sobre liber-
dade demandaria um alongar-se incompatível com os objetivos aqui estabelecidos.

3.5 ∙ AS RESPOSTAS DE SANTO TOMÁS


AOS ARGUMENTOS OBJETORES INICIAIS
Postos, portanto, todos os elementos para a discussão da conveniência da defini-
ção boeciana, com os respectivos argumentos objetores e a resposta sintetizadora
de Santo Tomás, é hora de enfrentar os argumentos objetores, extraindo deles o que
possam ter de verdade e afastando aquilo que possa configurar pedra de tropeço.
O primeiro argumento objetor parte da ideia de que as definições se referem
sempre ao universal, isto é, elas são sempre abstratas, genéricas, porque aquilo que é
individual, concreto e singular não pode ser objeto de definição. Posso definir os cães
como “animais domésticos que latem”, mas esta definição não é a definição de minha
cadelinha Pipoca, em sua concretude existencial e histórica, mas dos cães em geral.
Santo Tomás vai responder que, de fato, as definições não se referem concre-
tamente às coisas singulares; no entanto, diz ele, aquilo que constitui a essência
comum da singularidade pode ser objeto de definição! É mais fácil entender isto
com um exemplo.
Não há definição possível para a minha esposa; ela é o que é, uma pessoa con-
creta com seu mistério13 e sua dignidade. Mas eu posso definir uma esposa como

13 “Mas a pessoa não é um objeto”, adverte-nos Mounier (1964, p. 18). Ser pessoa é ser mistério,
e como tal, como indivíduo, inesgotável; as pessoas podem ser conhecidas, mas não esgotadas;

608
aquela pessoa única e concreta que entra numa relação de complementaridade,
com abertura à vida, com um marido exclusivo. Isso constitui a essência comum
da singularidade das esposas. Santo Tomás vai lembrar outro exemplo: a definição
de substância primeira como coisa singular, concreta, existente, que examinamos
no texto anterior. É desse tipo, diz Santo Tomás, a definição que Boécio propõe para
pessoa: é uma definição sobre a essência comum da singularidade. Trata-se, pois, de
constatar que a noção de pessoa aplica-se a um ente uno, ou seja, individualizado
em sua unidade transcendental, e não simplesmente singularizado pela matéria.
O segundo argumento objetor parte da ambiguidade da noção de substância e seu
conflito potencial com a noção de individual. Se o conceito fala de substância primeira,
diz o argumento, então a aposição de individual é redundante, porque a substância
primeira é sempre individual. Se fala de substância segunda, então a alusão a indivi-
dual é contraditória, porque as substâncias segundas não podem ser individuais.
Santo Tomás vai responder que alguns interpretam esta passagem como referin-
do-se à substância primeira, que é a hipóstase, ou seja, a própria coisa em sua concre-
tude existencial. Mas não haveria redundância em acrescer a noção de individual ao
conceito de pessoa. De fato, diz Santo Tomás, a ideia de substância primeira exclui
de seu significado as partes das coisas, e, por isso, uma mão, por exemplo, não é uma
hipóstase, porque é apenas uma parte de uma coisa, e não uma coisa inteira. Por outro
lado, a definição de ser humano, referindo-se ao conjunto dos seres humanos, também
não se refere a uma hipóstase, porque não aponta a um ser com concretude existencial
individual. Então, trata-se de descobrir a razão pela qual Boécio quis acrescer expres-
samente a expressão individual à noção de substância nesta definição de pessoa.
Santo Tomás diz que Boécio estava pensando, aqui, no caso concreto de
Jesus Cristo. A humanidade de Jesus é uma substância primeira, mas é assumida
pelo Verbo divino e por isso não é, em si mesma, um indivíduo. Ela se torna um
indivíduo na sua unidade hipostática com o Verbo, que assume e integra em si aquela
substância humana. Assim, diz Santo Tomás, acrescer “individual” torna claro
que a substância humana de Jesus, recebida pelo Verbo, não é, isoladamente, pessoa,
mas o é quando unida ao Verbo numa individualidade superior.
O acréscimo do termo “individual” exclui a possibilidade de que uma subs-
tância primeira assumível (por algum ser ainda mais digno, como no caso do Verbo
de Deus), seja, em si mesma, pessoa. Nesse caso, diz Santo Tomás, a noção de subs-
tância individual assume a função de substância primeira sem permitir nenhuma
ambiguidade quanto à pessoa de Cristo.14

são sempre sujeitos de relações, nunca objetos de dissecação. “Mil fotografias sobrepostas não
nos dão um homem que anda, que pensa e que quer”. Assim, pode-se, como quer Boécio,
definir o status daquele ser que é pessoal; o ser pessoa, no entanto, por ser inesgotável, não é
definível. “Não é que a pessoa seja o mais maravilhoso objeto do mundo, que se dá desde fora ao
nosso conhecimento, como todos os outros. É que esta é a única realidade que conhecemos e que,
simultaneamente, construímos de dentro” (idem, p. 19).
14 Hoje não temos mais a noção de quão agudamente políticas eram as heresias combatidas nos
concílios nos primeiros séculos do cristianismo. Somente o equilíbrio integrado entre as duas
naturezas de Cristo, a humana e a divina, reafirmada ao longo do primeiro milênio, permitiu o
equilíbrio entre a dimensão religiosa, representada pela Igreja, e a dimensão política, configurada
pelo Estado. Solovyev denuncia que as heresias eram sempre favorecidas pelo Estado, porque

609
Poderíamos meditar aqui, numa breve digressão teológica, sobre a relação do
cristão batizado com o Espírito Santo, que não é um invasor da sua pessoalidade,
mas a integra numa síntese superior. O Espírito Santo completa e liberta o cristão
batizado, no sentido de que lhe dá o conhecimento dos seus fins e o discernimento
quanto aos meios para atingi-los, como o Verbo completa a pessoa divina de Jesus.
Esta seria a síntese, por graça, da justificação cristã, que concede ao cristão, ana-
logicamente, por dom divino, aquilo que em Jesus é natural. Nesse sentido, a justifi-
cação cristã estabelece uma síntese pessoal mais alta. Libertadora. Mas este é apenas
um comentário lateral, ligado à origem e à consistência cristã da noção de pessoa.
A terceira objeção critica a suposta mistura entre o lógico e o ontológico15 nesta
definição boeciana, afirmando que palavras intencionais, ou seja, que designam
meras intenções lógicas, não devem compor as definições – por exemplo, não pode-
mos definir o ser humano como uma espécie de animal racional porque a definição
de ser humano não pode conter a palavra intencional “espécie”. Assim, uma vez
que a palavra “indivíduo” designa uma intenção lógica, não deveria compor a defi-
nição de pessoa, tal como proposta por Boécio.
A resposta de Santo Tomás é interessante: ele começa explicando que a inteligên-
cia humana não consegue conhecer diretamente as substâncias e suas características
intrínsecas, capazes de especificá-las. Assim, recorremos muitas vezes aos aciden-
tes para especificar as substâncias. Para distinguir, por exemplo, os gatos dos
cães, dizemos que estes latem e aqueles miam; mas estamos usando, aqui, diferenças

permitiam o cesaropapismo, especialmente no império Bizantino, e sempre encontraram


resistência na Igreja Católica Romana, que, mantendo as posições ortodoxas, permitiu uma
convivência mais equilibrada entre Igreja e Estado. Ele diz: “The fundamental truth and distinctive
idea of Christianity is the perfect union of the divine and the human individually achieved in Christ,
and finding its social realization in Christian humanity, in which the divine is represented by the
Church, centered in the supreme pontiff, and the human by the State. This intimate relation between
Church and State implies the primacy of the former, since the divine is previous in time and superior
in being to the human. Heresy attacked the perfect unity of the divine and the human in Jesus Christ
precisely in order to undermine the living bond between Church and State, and to confer upon the
latter an absolute independence. Hence it is clear why the emperors of the Second Rome, intent on
mantaining within Christendom the absolutism of the Pagan state, were so partial to all the heresies
[…]” (1948, p. 14). Além da noção de “pessoa”, o cristianismo deu à humanidade também a própria
noção de estado laico, já que nasceu e se desenvolveu não como uma religião étnica que envolvia
um povo com pretensões de governar-se a partir de sua própria concepção de Deus, mas como
Igreja, isto é, como um povo multiétnico e multinacional unido pelo batismo. Assim, possivelmente
os textos mais antigos concernentes à laicidade do Estado são o episódio que envolve o dito “A
César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, registrado nos Evangelhos Sinóticos ou, talvez
ainda antes no tempo, o capítulo 13, versículos 1 a 7, da Carta aos Romanos, e o mandato para “orar
pelas autoridades” de 1 Timóteo 2, 2.
15 Após citar uma definição de lógica encontrada no Comentário à Metafísica de Aristóteles, de autoria
de Tomás de Aquino, em que fica claro o caráter intencional da lógica clássica, e comparando-a com
as noções de lógica apresentadas por Frege e Russel, que são lógicas modernas não intencionais,
Veatch (1954, p. 12-13) aduz: “This is a very brief passage, to be sure, and yet it does not leave much
room for equivocation: if the subject matter of logic is the sort of thing wich St. Thomas here suggests
that it is, then it is quite obviously not the sort of things that Lord Russell says it is. Liberating the
imaginations, or drawing up inventories of possibiliteis, or contemplating unsuspected alternatives
as to what in the eyes of God or chance or the devil or Lord Russell the world may be – all this is all
very well, but it simply isn’t the business of logic, at least not accordingly to St. Thomas”.

610
acidentais (embora se trate de acidentes próprios) para distinguir seres que nós sabe-
mos que são substancialmente diferentes. Falta-nos, porém (e falta a todo e qual-
quer ser humano, sendo um limite da própria natureza humana), a habilidade de
conceitualizar a diferença substancial entre a felinidade e a canilidade diretamente.
No caso da definição de pessoa, há uma dificuldade adicional: a noção de pessoa deve
incluir seres tão essencialmente diversos quanto as pessoas divinas, os anjos e os humanos.
As nossas limitações humanas, portanto, nos autorizam a usar até mesmo termos
intencionais para compor a definição de uma realidade que para nós é tão complexa
de descrever. Assim, diz Santo Tomás, a palavra “individual” entra nesta definição
para esclarecer que a subsistência das pessoas, sejam humanas, angélicas ou divinas,
dá-se sempre de modo particular, embora a rigor a realidade da “pessoa” possa
transcender a própria noção de “substância individual” – como no caso de Jesus
Cristo. A pessoalidade pressupõe a individualidade, mas não se esgota nela.16
O quarto argumento objetor parte da ideia de que a noção de natureza, des-
crevendo o princípio intrínseco de mudança, seria inadequada para integrar o
próprio conceito de pessoa – uma vez que esse conceito deve aplicar-se igualmente
às pessoas divinas, nas quais não há mudança.
Santo Tomás reconhece, em sua resposta, que a noção de natureza, em
Aristóteles, designa originalmente a geração dos seres vivos (“natureza” tem a
mesma raiz de “nascer” e “nato”). Assim, uma vez que o nascimento dos seres vivos
implica reconhecer que eles se originam de um princípio intrínseco que os forma e
os leva a ser assim como são (a natureza dos cães leva a que eles tenham cãezinhos
como filhotes, como a natureza dos gatos faz com que gerem gatinhos), a filosofia
estendeu a noção de natureza a todo princípio intrínseco de qualquer mudança. Esta
é a definição aristotélica de natureza, diz Santo Tomás.
E mais, esse princípio pode ser material ou formal – assim é que tanto o
gelo quanto o vapor têm em si, materialmente, a natureza da água, mas sob a
forma de sólido ou gás, respectivamente. E disto a noção de “natureza” estendeu-se
ainda mais, para designar a essência naquilo que especifica o próprio ser. É nesse
sentido que a definição boeciana de pessoa usa a noção de natureza. Usar a noção
de “essência” para falar de uma ideia que se estende a tantos seres essencialmente
tão diferentes entre si como humanos, anjos e pessoas divinas seria inadequado,
mas “natureza”, aqui, pode descrever adequadamente a diferença específica que
existe entre os seres que são pessoas, e que compartilham a característica de serem
naturalmente dotados de inteligência, daqueles seres que, por não terem em si a
inteligência como um atributo natural, jamais poderão ser pessoas.
A quinta objeção afirma que a alma humana separada do corpo atenderia a
todos os elementos da definição boeciana, sem adquirir a qualidade de pessoa, o
que provaria que a definição é inadequada. A alma separada seria uma substância,
e não um mero acidente. Ademais, é um indivíduo – é a alma, digamos, de João, e
não de Pedro. E indiscutivelmente mantém suas capacidades racionais. Assim, o

16 Maritain, após discorrer sobre as noções de pessoa e de simples indivíduo, mostrando a força
que a noção de pessoa tem, tanto frente ao individualismo selvagem quanto frente ao coletivismo
despersonalizante, conclui: “Como indivíduos, estamos sometidos a los astros. Como personas, los
dominamos”. (2006, p. 25).

611
argumento conclui que esta definição seria inadequada, porque há coisas que satis-
fazem a todos os seus requisitos mas não são pessoas.
Santo Tomás vai explicar com muita precisão que, embora a alma seja algo da
espécie humana, e embora tenha uma tendência natural à união com o corpo, ela
não é uma substância primeira ou hipóstase, mas apenas uma parte daquele ser que
só encontra sua inteireza ontológica sendo corpo e alma unidos naturalmente. Uma
alma separada é só uma parte de um ser humano. O ser humano é essencialmente
composto por corpo e alma, e por isso a alma separada não atende aos requisitos da
definição boeciana para ser considerada “pessoa”. Somos pessoas enquanto estamos
caminhando vivos sobre a terra. Seremos pessoas de novo na ressurreição. Mas na
morte, esperando a ressurreição, subsistimos, mas não somos pessoas.

4 ∙ CONCLUSÃO
Numa passagem muito conhecida e citada da Suma Teológica, dessa Primeira
Parte, questão 29, artigo 3, respondeo, Santo Tomás afirma:
Pessoa significa o que há de mais perfeito de toda a natureza, i. é, o que subsiste na
natureza racional. Donde, como se devem atribuir a Deus todas as perfeições, pois
a sua essência as contêm todas, devemos aplicar-lhe o nome de pessoa. Não porém
do mesmo modo pelo qual o aplicamos à criatura, mas de modo mais excelente,
como se dá com os outros nomes impostos à criatura e atribuídos a Deus, conforme
demonstramos quando tratamos dos nomes divinos. (AQUINO, 2016, p. 228).
Nesse sentido, Deus é, em si mesmo, pessoal; não como uma pessoa humana, mas
como três pessoas na mesma substância divina. Em Deus, pois, a individualidade
pessoal se concretiza totalmente na relação interna à própria divindade. Em Deus,
ser pessoa é ser integralmente relação. Esta questão da centralidade da relação, pois,
deve nos alertar para o fato de que a relação não é uma mera categoria acidental para
o ser pessoa: em Deus há a substância e há a relação. A substância determina o ser.
A relação, o modo pessoal de ser. E em Deus, ensina-nos Tomás, não há acidentes.17
Quando se fala de pessoa e não se estabelecem fortemente as conotações em que
a palavra está sendo empregada, existe uma tendência contemporânea a entender
“pessoa” como sinônimo de indivíduo, ou seja, daquele mínimo distinto e autos-
suficiente do humano capaz de ser concebido de modo claro e distinto18 com rela-
ção a todos os outros. Contudo, restringir a noção de pessoa a essa noção rígida
de indivíduo transforma a pessoalidade em individualismo, fechamento e egoísmo.
Trata-se, porém, de equívoco. Ninguém, nenhum ser humano é pensável sem inter-
dependência. O processo vital humano é um contínuo de dependência e autonomia
relacionais, da concepção à morte. Nas palavras de Maritain, “[o] mundo moderno

17 “In a creature it may well be accidental which particular other being it will be related to here and now.
But being related in some way to the world around it, as well as to various sources, will flow from its
very nature both as existent being and as material.” (CLARKE, 2008, p. 15, grifos no original).
18 A verdade como aquilo que pode ser conhecido de modo claro e distinto é uma noção introduzida por
Descartes no seu Discurso sobre o Método, que pode ser consultado em: https://joaocamillopenna.
files.wordpress.com/2014/02/descartes-discurso-do-mc3a9todo-trad-jacc3b3-guinsburg-e-
bento-prado-jr-com-notas-de-gerard-lebrun-publicac3a7c3a3o-autorizada-pelos-detentores-dos
-direitos.pdf. Acesso em: 7 out. 2020.

612
confunde ingenuamente duas coisas que a sabedoria antiga já havia distinguido:
confunde individualidade com personalidade”. Os meros indivíduos, como tais, per-
tenceriam à sociedade, mas esta última pertence (ou deveria pertencer) às pessoas.19
Essa característica do ser pessoal, o ser-em-relação, ficou de certa forma ofus-
cada pela influência cartesiana, mais precisamente, pela definição cartesiana de ver-
dade como a ideia clara e distinta. Logo, para Descartes, a relação diluiria a verdade
do ser porque o tornaria menos distinto, e, portanto, menos verdadeiro. Nada mais
equivocado. Só na relação o ser atinge sua verdade – que, na definição clássica, nada
mais é do que a relação entre um ser e uma inteligência.20
Com isso, o elemento da natureza racional presente na definição de Boécio nos
devolve diretamente ao relacional. Conhecer é fazer com que aquilo que existe no
mundo passe a existir, intencionalmente, na alma; ou vice-versa: também é fazer
com que aquilo que existe criativamente na alma passe a existir realmente no mundo.
Conhecer e ser conhecido, no mundo clássico, é relacionar-se realmente, e não é
por outra coisa que Aristóteles, no começo da sua Metafísica, nos legou aquele
aforisma clássico: a alma é, de certo modo, todas as coisas. Nesse sentido, conhe-
cer, ser racional, não é acumular informações, mas possuir de fato aquilo que se
conhece, de modo imaterial, na própria alma. O querer, nesse sentido, na criatura
racional, é um inclinar-se à coisa conhecida; mais uma vez, o querer é uma
relação. Conhecer é tornar aquilo que é conhecido, de certo modo, seu; querer é
tornar-se, de certo modo, daquilo que se conheceu, inclinando-se em amor até ele.
Nessas duas relações, do tornar-se e do dar-se, encontra-se a pessoalidade mais pro-
funda. Conhecer o seu fim, dirigir-se livremente a ele, por reconhecer nele aquilo a
que a vontade deve inclinar-se,21 eis o ser pessoa. Noção perdida por uma cultura

19 “Na ordem social, a cidade moderna sacrifica a pessoa ao indivíduo; concede ao indivíduo o sufrágio
universal, a igualdade de direitos, a liberdade de opinião; e entrega a pessoa isolada, despojada, sem
nenhuma armadura social que a sustente e proteja, a todas as potências devoradoras que ameaçam
a vida da alma, às ações e reações impiedosas dos interesses e dos apetites conflitantes, às exigências
ilimitadas da matéria de fabricar e utilizar. A todas as gulas e a todas as chagas que cada homem
leva naturalmente em si; adiciona excitações sensuais incessantes e a avalanche interminável de toda
classe de erros deslumbrantes e sutis, aos quais outorga livre circulação no céu da inteligência. E diz
aos pobres filhos dos homens, a partir do centro deste torvelinho: ‘és um indivíduo livre, defende-te,
salva-te sozinho!’. É uma civilização homicida.” (MARITAIN, 2006, p. 25. Tradução livre nossa).
20 Essas questões estão muito bem avaliadas em CLARKE, 2008, passim. Ele expressamente afirma:
“It turns out, then, that relacionality and substanciality go together as two distinct but inseparable
modes of reality. Substance is the primary mode, in that all eles, including relations, depend on it as
their ground. But since ‘every subbstance exists for the sake of its operation’, as St. Thomas has just
told us, being as substance as existing in itself, naturally flows over into being as relational, as turned
toward others by its self-communicating action. To be fully is to be substance-in-relation”.
21 Nesse sentido, a tradição católica, ao reconhecer a pessoalidade do Diabo como aquela criatura
espiritual inteligente que, conhecendo perfeitamente quem é e quem é Deus, opta total e
completamente por renunciar a Deus como seu fim e passa a ver em si próprio, no culto a si mesmo, o
único fim que perseguirá, embora tenha completa e perfeita ciência de que escolhe irrevogavelmente
o egoísmo em si em prejuízo da completude em Deus, descreve-o mais propriamente como o
exemplo consumado da antipessoalidade. “Se perguntarmos se o demônio é uma pessoa, dever-
-se-á responder acertadamente que ele é a antipessoa, a decomposição, o decaimento da pessoa,
sendo por isso característico para ele que se mostre sem face, que o não poder ser conhecido seja
sua força propriamente dita”. (RATZINGER, 2007, p. 200).

613
que, em nome de uma liberdade atomizante, esqueceu todas as relações, exceto as
que são economicamente mensuráveis. As menos preciosas de todas.
É por isso que, embora Locke estabeleça a memória como fonte de identidade
individual da pessoa humana, com todos os problemas que isso traz,22 a verdadeira
identidade da pessoa humana repousa na relação, não na memória. Todos conhecemos
histórias belíssimas de famílias que cuidaram devotamente de parentes atingidos de
demência senil, a ponto de não se lembrarem mais de quem são, ou de quem são os que
lhe circundam. Não perderam sua identidade, porque não perderam suas relações.23
Voltando, agora, ao campo estritamente jurídico, podemos perceber a sabedo-
ria que existe quando se faz a dignidade da pessoa um princípio fundamental da
República Federativa do Brasil. Na verdade, ela é apontada, no seu art. 1º, inciso III,
como um dos “fundamentos” essenciais da nossa República.
A dignidade da pessoa, portanto, decorre de sua constituição ontológica e ante-
cede logicamente o ordenamento jurídico estatal. No entanto, todo autoritarismo
sempre se constituiu com a pretensão de que é o Estado quem constitui a pessoa, e
que está em poder do Estado intervir e cortar um dos braços do polígono relacional,
amputando a dignidade humana. Assim é que, por exemplo, os estados ateus nega-
ram à pessoa a sua relação com Deus, os estados nazistas negaram aos “inferiores
etnicamente” a identidade social e o Estado contemporâneo, eutanásico e abortista,
nega ao bebê a sua relação com a mãe em nome da “independência” desta, ou nega
ao moribundo completar a sua relação consigo mesmo e com seus entes amados,
na completude dos cuidados finais, em nome de um utilitarismo econômico que já
não vê utilidade em quem não produz.
Note-se, como última consideração que mereceria uma reflexão mais profunda,
como a perda das noções de ato e potência, de substância e acidente, colaboraram
para a manipulação arbitrária da proteção jurídica à dignidade da pessoa.
Como diz a nossa Constituição, e neste ponto muito bem fundamentada no pen-
samento tomasiano que examinamos há pouco, não é o Estado que define, a partir da
positividade, o que é a pessoa. É a dimensão relacional poligonal da pessoa, em ato ou
potência, que fundamenta, na sua dimensão social, a organização jurídica da convivência

22 “Locke defines a person as a ‘thinking intelligent Being, that has reason and reflection, and can
consider itself as itself, the same thinking thing in different times and places; which is done only
by that consciousness, which is inseparable from thinking, and, as it seems to me, essencial to it
[...].’” (FESER, 2007, p. 67). Caberia um ensaio para estudar de que maneira a concepção de Locke
sobre pessoa deu origem a toda a dificuldade que a contemporaneidade tem para lidar com os seres
humanos acidentalmente incapazes, em ato, de reflexão e memória, como os idosos, os doentes e os
não nascidos, e como deu justificação para que o Estado pudesse pleitear que sua eliminação não é
irracional. O desafio permanece, mas foge do escopo deste artigo.
23 Ver, a respeito da identidade como relação, o filme turco “A Caixa de Pandora” (Pandora’nin Kutusu,
Turquia, 2008), com a seguinte sinopse: “Os irmãos Nesrin, Güzin e Mehmet moram em Istanbul e
levam vidas distantes, centrados em suas preocupações de classe média alta. Um dia, precisam viajar
ao vilarejo natal para procurar por sua mãe, Nusret, que desapareceu. Eles a encontram, mas ela
apresenta sinais de Alzheimer, e os irmãos decidem levá-la para Istambul. Cuidar da mãe, no entanto,
faz com que antigos conflitos ressurjam. Nusret também não está contente, pois deseja voltar à sua
cidade. O único que parece compreendê-la é Murat, seu neto rebelde e introspectivo”.

614
– que é somente uma das dimensões relacionais pessoais e não esgota a pessoalidade.
Como lembra a Constituição, o Estado existe por causa da pessoa, e não o contrário.

REFERÊNCIAS
AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica. Campinas: Cedet, 4. ed., v. 1, 1ª Parte, 2016.
CLARKE, W. Norris. Person and being. Milwaukee: Marquette University Press, 2008.
DESCARTES, René. Discurso do método, para bem conduzir a própria razão e
procurar verdade nas ciências. In: Obras escolhidas. Tradução de Jacob Guinsburg e
Bento Prado Jr. Notas de Gérard Lebrun. São Paulo: Difusão Europeia do Livro (Difel),
1962. (Coleção Clássicos Garnier). Disponível em: https://joaocamillopenna.files.
wordpress.com/2014/02/descartes-discurso-do-mc3a9todo-trad-jacc3b3-guinsburg-
e-bento-prado-jr-com-notas-de-gerard-lebrun-publicac3a7c3a3o-autorizada-pelos-
detentores-dos-direitos.pdf. Acesso em: 7 out. 2020.
FESER, Edward. Locke. Oneworld Thinkers Series. Oxford: Oneworld Publications, 2007.
GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à filosofia de São Tomás de Aquino: Introdução,
lógica, cosmologia. São Paulo: Paulus, 2013.
GILSON, Étienne. Deus e a Filosofia. Lisboa: Edições 70, 2002.
JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Estado laico, povo religioso. Reflexões sobre liberdade
religiosa e laicidade estatal. São Paulo: Ltr, 2015.
JOSEPH, Miriam. O Trivium. As artes liberais da lógica, da gramática e da retórica. São
Paulo: É Realizações, 2011.
MARITAIN, Jacques. Tres Reformadores: Lutero – Descartes – Rousseau. Madrid:
Ediciones Encuentro, 2006.
MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1964.
RATZINGER, Joseph. Dogma e anúncio. São Paulo: Loyola, 2007.
SOLOVYEV, Vladimir. Russia and the Universal Church. London: Geoffrey Bles; The
Centenary Press, 1948.
VEATCH, Henry B. Realism and nominalism revisited. Milwaukee: Marquette University
Press, 1954.
VEATCH, Henry Babcock. Intentional logic: a logic based on philosophical realism.
London: Oxford University Press, 1952.
VILLEY, Michel. Questões de Tomás de Aquino sobre direito e política. São Paulo: Martins
Fontes, 2014.
WUELLNER, Bernard. Dictionary of scholastic philosophy. Fitzwilliam: Loreto
Publications, 2012.

615
POSSIBILIDADES DE INFLUÊNCIA
DA PAISAGEM URBANA SOBRE A SAÚDE PÚBLICA
Plinio Daniel Lins Brandão Veas1

Sumário: 1 Introdução. 2 Formação e degradação da paisagem urbana no Brasil.


3 Meio ambiente e qualidade de vida. 4 Direito ao meio ambiente equilibrado. 5 Paisagem
natural e urbana. 6 Influência de espaços verdes na saúde da população. 7 Influência de
espaços construídos na saúde da população. 8 Proteção da paisagem urbana no contexto
jurídico. 9 Alguns exemplos de intervenção do Poder Público. 10 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
Nas décadas recentes, a maior parte da humanidade passou a residir nos gran-
des centros urbanos. Devido a essa transição, determinadas circunstâncias que, até
alguns anos atrás, tinham pouca ou nenhuma relevância, começam a ser perce-
bidas, por estarem diretamente ligadas à existência fundamental do ser humano.
Entre essas questões, encontra-se a do direito à paisagem.
Quando se debate a relação meio ambiente versus saúde pública, a perspectiva
da paisagem raramente ocupa posição de destaque – a atenção geral se detém em
pontos como emissão de poluentes e qualidade do ar, saneamento básico, contami-
nação de águas ou, ainda, poluição sonora. Sem dúvida, o cuidado com tais fatores
é imprescindível para a manutenção da qualidade de vida; não obstante, há um
escasso debate acerca do fator ambiental paisagístico, o qual, uma vez posto em
desordem, pode também afetar a saúde humana.
É pontualmente esse aspecto que o presente artigo pretende abordar: se uma
paisagem urbana pouco amigável pode ter impacto na saúde da população; se, espe-
cificamente, a configuração urbanística que é adotada nas grandes cidades brasi-
leiras seria prejudicial à saúde; e se há ferramentas para o poder público promover
melhorias nesse quesito.
Por certo, durante muitas décadas, a preocupação governamental com o desenvol-
vimento deixou em segundo plano tais questões. Entretanto, com a promulgação da
Constituição Federal de 1988, o Brasil colocou a proteção ao meio ambiente como uma
política de Estado, dentro da terceira dimensão de direitos fundamentais, e, como se verá,
essa perspectiva inclui também o meio ambiente urbano. Da leitura comparativa com
outras ordens constitucionais pelas quais o Brasil já atravessou, são notórias, na atual Carta
Magna, as inovações programáticas no tocante à proteção e tutela ao meio ambiente.

1 Servidor público na Justiça Federal de São Paulo. Especialista em Direitos Difusos, Coletivos e
Individuais Homogêneos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

617
Nesse contexto, para o desenvolvimento deste artigo, serão utilizados autores do
direito constitucional e ambiental, bem como artigos da esfera médica e jornalís-
tica, além de outros títulos variados, adotando-se o método dedutivo, com menção
de alguns exemplos paradigmáticos.

2 ∙ FORMAÇÃO E DEGRADAÇÃO
DA PAISAGEM URBANA NO BRASIL
A despeito da grande quantidade de território disponível, o método urbanístico
que prevaleceu no período colonial brasileiro, tanto nas cidades litorâneas como nas
regiões do interior, foi semelhante ao que havia em Portugal, com moradias construí-
das bastante próximas umas às outras. Esse estilo urbano dava pouca prioridade às
árvores e aos espaços verdes – talvez pelo fato de a vegetação ser tão abundante no
País e por estar, provavelmente, associada à ideia do “mato”, algo que seria antagônico
ao conforto e à vida civilizada. Entretanto, por mais que tal sistema urbano fosse
tendente a aglomerar muitas pessoas em pouco espaço, a maioria das povoações de
então seguia um critério estético aprazível – genericamente conhecido como “estilo
colonial” – e eram dispostas sobre morros, vales ou margens de rios, com uma visão
de entorno quase sempre agradável. Ademais, as cidades não eram tão grandes a
ponto de isolar totalmente os seus habitantes dos elementos de uma vida natural.
No século XIX, o Brasil recebeu a Família Real Portuguesa, ocasião em que o Rio de
Janeiro experimentou diversas melhorias, sem que, entretanto, houvesse modificação
significativa nas outras cidades. Após a Independência, o País tornou-se sede de um
império, e nessa época, devido a questões políticas, houve uma gradual variação da
influência urbanística – quando se deixou de lado o modelo português, mais espontâ-
neo, para dar ênfase à concepção francesa então vigente, tendente ao neoclássico, com
ruas planejadas, de traçado retilíneo, e um maior número de praças e parques.
O mesmo modelo perdurou até o início do século XX, época em que as grandes
cidades brasileiras receberam numerosas edificações nascidas no contexto da Belle
Époque e das quais ainda restam muitos exemplares nas regiões centrais de capitais
como São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Belém, e em diversas cidades do interior.
Na época, a França tornou-se conhecida também por seus paisagistas, que atuavam
mesclando formação científica e base humanística (NOGUÉ, 2010).
Mencione-se também que, à época da Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, houve
tentativa de urbanização adotada como política pública – a qual não foi suficiente para
reorganizar satisfatoriamente a capital e acabou gerando outros tipos de problema:
No Rio de Janeiro, as reformas feitas por Pereira Passos entre os anos de 1902-1906,
seguem o conceito Haussmanniano. Seus sistemas viários passaram a ser compostos
por ruas e avenidas que conduziam o tráfego dos limites da cidade ao centro, e habi-
tações populares foram demolidas dando lugar a grandes avenidas. Assim como em
Paris, o centro, depois de reformado e valorizado, foi entregue à burguesia, e as classes
baixas foram deslocadas para a periferia da cidade ou para bairros distantes; logo,
morros e mangues começaram a se encher de casebres (PORTO et al., 2007).
Também em fins do século XIX e início do século XX, um novo componente
cultural foi acrescido ao País: com a chegada de imigrantes da Alemanha e do Leste
Europeu, sobretudo nos estados do Paraná, Santa Catarina e parte do Rio Grande

618
do Sul, originaram-se povoações e cidades com uma concepção urbanística dotada
de mais espaçamento entre as residências e com maior utilização de jardins e can-
teiros, tanto nas áreas privadas quanto nas calçadas e praças.
Ainda na primeira metade do último século, as grandes cidades brasileiras pas-
saram, novamente, por mudanças acentuadas, dessa vez motivadas por outra série
de fatores, como a industrialização, a popularização do automóvel e a influência
cultural trazida pelo cinema hollywoodiano, que idealizava o modelo de metró-
pole norte-americano. Esses fatores estiveram presentes na raiz de novas remode-
lações urbanas, entre as quais pode-se mencionar como exemplo o desmonte do
Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, a construção de uma via expressa no Vale do
Anhangabaú, em São Paulo, e a abertura da Avenida Dantas Barreto, em Recife –
medidas que acarretaram modificação drástica da paisagem urbana, com o intuito
de abrir novas vias para automóveis.
Por fim, na segunda metade do século XX, a engenharia de grandes edifícios – até
então mais restrita a prédios comerciais – passou a ser amplamente utilizada também
para fins residenciais. Assim, as transformações se estenderam para além das áreas
centrais, abrangendo igualmente áreas residenciais, transformando-as em aglomera-
dos de arranha-céus construídos sobre o exíguo espaço de antigas casas, na maioria
das vezes com preocupação apenas funcional, sem maiores cuidados estéticos.
Concomitantemente, o senso comum passou a manifestar a ideia de que aveni-
das, viadutos, e grandes edifícios seriam fatores indicativos do “progresso” de uma
cidade. Um exemplo disso pode ser visto no seguinte texto do historiador Leonardo
Arroyo, o qual narra a história da pequena e secular igreja de Santo Antônio, na
Praça do Patriarca, em São Paulo, como se se tratasse de um ser vivo:
O templo hoje, ai de nós, tem um aspecto assustado, um aspecto de quem não
se sente bem em meio a tanto ruído e tanto arranha-céu. [...] A igreja de Santo
Antônio, o coronel de tropas, parece sentir todo esse drama de desequilíbrio no
tempo e no espaço. Por isso é triste e vive esperando a sua hora, que será infeliz,
de ser destruída pelas chamadas exigências do progresso (ARROYO, 1954, p. 53).
Muito embora, no caso dessa construção paulistana, não tenha havido a demo-
lição que o referido autor já dava como certa, as “exigências do progresso” não
deixaram de produzir estragos em inúmeros outros locais do entorno, onde regiões
outrora aprazíveis tornaram-se inóspitas e pouco acolhedoras. A esse respeito, não
muito longe dali, há o exemplo do Elevado Presidente João Goulart (conhecido
popularmente como “Minhocão”), uma via expressa que degradou amplamente o seu
entorno e que é objeto de constantes questionamentos acerca de seus reais benefícios.
No tocante à construção de edifícios, um exemplo clássico de “progresso” desor-
denado foi a reurbanização do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, lugar que,
a partir de determinada época, passou a ter grande atratividade para classes abas-
tadas, devido à instalação do hotel Copacabana Palace. Segundo Gilberto Velho
(2000, p. 237 apud CUREAU, 2009),
Copacabana foi super ocupada, construída e desgastada. A muralha de prédios
erguidos sem preocupação e critérios urbanísticos bloqueou em grande parte a pai-
sagem e afetou o clima, fazendo com que a diferença de temperatura entre a Avenida
Atlântica e as ruas situadas no interior do bairro pudesse chegar a mais de 3 graus.

619
Exemplos recentes de situação parecida são o da praia de Boa Viagem, em Recife,
onde, devido aos inúmeros edifícios construídos nos últimos anos, vários trechos
perderam a incidência direta do sol a partir de certa hora do dia (OBSERVATÓRIO
DO RECIFE, 2012), e também o da catarinense Balneário Camboriú, que padece do
mesmo problema e na qual empreiteiras têm disputado entre si o título de responsá-
vel pela construção do maior arranha-céu (BÄCHTOLD, 2015).
De um modo geral, as cidades no País têm crescido verticalmente, fazendo com
que altos edifícios se concentrem em áreas que não foram inicialmente pensadas
para acolhê-los, gerando implicações como aumento de trânsito em ruas estreitas,
bloqueio da ventilação e da luz solar, restrição visual da paisagem e até mesmo do
céu, a ponto de o fator “vista definitiva” ser considerado um privilégio, servindo
para valorizar imóveis no momento da comercialização.
Para além da questão da verticalização e da carência de espaços verdes, pode-
-se acrescentar ainda o fator da degradação, presente em tantas regiões urbanas
brasileiras, desde as comunidades carentes até as zonas mais centrais, as quais
frequentemente possuem prédios antigos, deteriorados ou abandonados, que logo
se tornam alvo de atos de vandalismo, pichações, e outros problemas decorrentes
do descuido. Acrescente-se a isso a instalação desmesurada de antenas de telefonia
móvel, bem como a fiação aérea. Essa última, além do efeito funesto dos fios elétri-
cos, nos tempos recentes tem sido acrescida de verdadeiros emaranhados de cabos
de internet, os quais disputam sem qualquer cuidado os postes acima das calçadas,
mesmo em regiões consideradas nobres. Para resolver a questão da fiação exposta, a
opção do aterramento raramente é considerada pelos gestores públicos; o que se vê
é um frequente corte de árvores para desimpedir os fios.
Um ambiente com essa aparência, entrecortado por rios que recebem esgoto sem
tratamento, com ar poluído, além do ruído de buzinas e sirenes, pode ser conside-
rado propício a uma vida saudável?

3 ∙ MEIO AMBIENTE E QUALIDADE DE VIDA


De todos os direitos fundamentais da pessoa humana, o mais elementar e
sagrado é o direito à vida. Entretanto, apenas “estar vivo” não é sinônimo de bem-
-estar, porquanto alguém pode, por exemplo, estar vivo em condições de miséria, ou
pode estar vivo e padecer das mais diversas doenças.
Sobre essa temática, Paulo Affonso Machado (2014, p. 65) explica que “não basta
viver ou conservar a vida”, devendo-se, antes de tudo, buscar a qualidade de vida, e
ressalta que, para medir a qualidade de vida, a Organização das Nações Unidas leva
em conta três elementos: saúde, educação e produto interno bruto. Ainda segundo
o autor, para saber se há saúde em determinada localidade, não basta não haver
doenças diagnosticadas, sendo necessário também considerar
o estado dos elementos da Natureza – águas, solo, ar, flora, fauna e paisagem –
para se aquilatar se esses elementos estão em estado de sanidade, e de seu uso
advenham saúde ou doenças e incômodos para os seres humanos.
Assim, tem-se um conceito de saúde que engloba também a sanidade do meio ambiente.
No seu Dicionário de direito ambiental, Édis Milaré (2015, p. 542) define a
expressão meio ambiente como sendo um “conjunto de condições, leis, influência

620
e interações de ordem física, química, biológica, social, cultural e urbanística, que
permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. José Afonso da Silva (2001, p.
20), por sua vez, define meio ambiente como “a interação do conjunto de elementos
naturais, artificiais e culturais que propiciam o desenvolvimento equilibrado da
vida em todas as suas formas”.
Essa ideia de um conjunto no qual todos os seus elementos estão interligados e
subsistem de forma harmônica adentra, inclusive, a esfera filosófica: já mencionava
Bento XVI (2009) que “o livro da natureza é uno e indivisível, tanto sobre a vertente
do ambiente como sobre a vertente da vida”. Embora possa apresentar diferenças,
essa concepção se aproxima do conceito de biosfera, que “compreende as intera-
ções recíprocas entre todos os seres vivos, o meio terrestre e a energia cósmica”
(NALINI, 2008, p. 305). O estudo dessas relações é atualmente compreendido pela
expressão “ecologia”,2 a qual se contrapõe a uma noção antropocêntrica, sem deixar
de considerar que o espaço natural é profundamente suscetível à atuação humana:
a) Qualquer entidade natural, cultural e artificial é parte integrante do ecos-
sistema terrestre, em sua totalidade planetária. Por isso, nada é alheio a esse
ecossistema complexo, abrangente de tudo o que existe nesta ínfima porção do
Cosmos, a Terra.
b) Meio ambiente não é sinônimo de natureza. É, sim, o “mundo natural”
transformado pelo homem, que nele imprime a sua marca registrada. Por isso,
as transformações introduzidas pelo homem têm características ambientais
(MILARÉ, 2014, p. 627).
No tocante à definição dada pela legislação, a Lei n. 6.938 de 1981 (Política
Nacional do Meio Ambiente), em seu art. 3º, inciso I, define o meio ambiente como
“o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.

4 ∙ DIREITO AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO


Nos tempos modernos, as constituições dos mais diversos países pretenderam
estabelecer que não somente o direito à vida fosse assegurado, mas também o direito
a uma vida com satisfação e bem-estar.
Um paradigma sobre essa questão foi trazido pela Conferência de Estocolmo,
realizada em 1972, a qual deu origem à Declaração da Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, da qual o Brasil é signatário. No texto
dessa declaração, consta como primeiro princípio o seguinte:
Princípio 1
O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de
condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe
permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação
de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras
(CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1972).

2 Termo formado pelos radicais gregos oikos (casa) e logia (estudo), proposto pelo biólogo e médico
alemão Ernst Heinrich Haeckel para designar o estudo da relação entre os seres vivos e o meio
que os envolve.

621
No Brasil, a Constituição Federal, em seu art. 5º, caput, garante a inviolabilidade
do direito à vida e apresenta uma visão de proteção do meio ambiente harmônica
com os conceitos acima apresentados quando menciona, em seu art. 225, caput:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes
e futuras gerações.
Em decorrência desse mandamento, ao Estado não cabe escolher se deve ou não
proteger o meio ambiente, pois o texto constitucional impõe que o defenda. É norma
cogente, portanto.
Comentando essa constitucionalização da proteção ao meio ambiente, o ministro
do Superior Tribunal de Justiça Antônio Herman Benjamin (apud CANOTILHO,
2007, p. 69) explica algumas das imposições que daí decorrem, quais sejam, “dever
constitucional de não degradar, a proteção ambiental como direito fundamental, a
ecologização da propriedade e da função social e a legitimação constitucional da
função estatal reguladora”.

5 ∙ PAISAGEM NATURAL E URBANA


Dentro do contexto do meio ambiente, veja-se a instância da paisagem. Entre
seus conceitos etimológicos, consta, por exemplo, no Dicionário Michaelis (2019), a
definição de “extensão de território e de seus elementos que se alcança num lance de
olhar; panorama, vista” e, de forma alternativa, como “desenho, quadro, gravura,
foto ou qualquer outra manifestação artística cujo tema principal é a representação
de uma paisagem, geralmente de lugares campestres”. Por esse aspecto, a paisagem
seria um fenômeno a ser notado primordialmente pelo sentido da visão.
Entretanto, a conceituação pode adquirir maior abrangência. A Convenção
Europeia da Paisagem, firmada em Florença no ano 2000, define a paisagem como
“uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo caráter
resulta da ação e da interação de fatores naturais e/ou humanos” (COUNCIL OF
EUROPE, 2000).
No âmbito jurídico, há também entendimento por um enfoque ainda mais amplo:
Paisagem, do ponto de vista do meio ambiente, é o complexo dos elementos que
compõem e configuram um lugar determinado e que tem estreita vinculação
com a vida que nele se desenvolve. A paisagem é uma realidade viva e em muta-
ção, e não é meramente visual (MILARÉ, 2015, p. 614).
Assim, a definição jurídica de paisagem se confunde com o próprio conceito de
meio ambiente, e pode abranger não somente os elementos percebidos pela visão,
mas também outros – por exemplo, ruídos e odores – que possuam relação com a
vida que ali se desenvolve.
Dessa forma, a paisagem é também capaz de influenciar o bem-estar humano,
e por conseguinte deve ser objeto da mesma proteção que se dá ao meio ambiente.
E, por mais que se associe paisagem a algo que envolve unicamente os ambientes
campestres, predominantemente rurais, ela também deve ser considerada dentro
do contexto urbano, pois, como visto, o meio ambiente pode comportar também os
espaços artificiais construídos pela atuação humana:

622
Ao criar seu próprio habitat com a valia dos seus próprios artifícios, o homem
vale-se, evidentemente, de elementos naturais (matéria e energia) e elementos cul-
turais (sua idealização do mundo). São sempre artifícios que compõem um meio
ambiente artificial e este, não obstante a artificialidade, incorpora definitivamente
dons da natureza e construtos da cultura humana. Por isso, a cidade, e o conjunto
das cidades, constitui o meio ambiente artificial (MILARÉ, 2014, p. 627).
Nesse contexto de meio ambiente artificial, insere-se o conceito de paisa-
gem urbana, do qual a legislação do Município de São Paulo, por meio da Lei n.
14.223/2006, apresenta, em seu art. 2º, uma definição que pode servir de referência:
Art. 2º. [...] considera-se paisagem urbana o espaço aéreo e a superfície externa
de qualquer elemento natural ou construído, tais como água, fauna, flora, cons-
truções, edifícios, anteparos, superfícies aparentes de equipamentos de infraes-
trutura, de segurança e de veículos automotores, anúncios de qualquer natureza,
elementos de sinalização urbana, equipamentos de informação e comodidade
pública e logradouros públicos, visíveis por qualquer observador situado em
áreas de uso comum do povo.

6 ∙ INFLUÊNCIA DE ESPAÇOS VERDES NA SAÚDE DA POPULAÇÃO


No contexto urbano, os “espaços verdes” foram assim conceituados por José
Afonso da Silva (1997 apud SIRVINSKAS, 1999, p. 192):
O verde, a vegetação destinada, em regra, à recreação e ao lazer, constitui o
aspecto básico do conceito, o que significa que, onde isso não ocorrer, teremos
arborização, mas não área verde, como é o caso de uma avenida ou uma alameda
arborizada, porque, aqui, a vegetação é acessória, ainda que seja muito impor-
tante, visto que também cumpre aquela finalidade de equilíbrio ambiental, além
de servir de ornamentação da paisagem urbana e de sombreamento à via pública.
Nessa conjuntura, para considerar os benefícios decorrentes do contato com
uma paisagem urbana verde ou arborizada, apresenta-se, inicialmente, trecho de
um estudo da Universidade Federal do Paraná:
O uso da vegetação, por meio de seus benefícios estéticos, sociais e ecológicos,
proporciona melhor condição de vida para o ser humano dentro dos núcleos
urbanos (MARTINI, 2011). Além disso, é essencial na estrutura e na dinâ-
mica da paisagem urbana, pois, em virtude de suas características, melhora a
qualidade de vida da população e a condição ambiental (LIMA NETO, 2011).
O costume de trazer, para as cidades, partes do ambiente natural tem a finali-
dade de satisfazer as necessidades mínimas do ser humano (PEDROSA, 1983).
Desta maneira, as árvores acabam por resgatar a natureza dentro do ecossistema
urbano (MARTINI et al., 2013, p. 460).
Nesse estudo, constatou-se, com base em dados técnicos, que as ruas com mais
arborização “apresentaram menores temperaturas do ar do que a rua sem arborização
durante todo o período de monitoramento”, e, “de maneira inversa, a umidade relativa
nas ruas arborizadas foi maior durante esse período” (MARTINI et al., 2013, p. 460).
Dando um passo além, mencione-se a existência, na literatura da área de saúde,
da Teoria da Salutogênese, formulada em 1979 por Aaron Antonowski (ZUFFEREY,
2015), a qual abriu uma nova perspectiva para estudos médicos – além de analisar
somente os fatores negativos que provocam as doenças, muitos passaram também a
considerar os elementos positivos capazes de gerar saúde e bem-estar.

623
Embora no Brasil o tema ainda não seja frequentemente abordado, no exterior
existem diversos estudos acerca da correlação entre paisagem e saúde da população.
É o caso, por exemplo, do Instituto de Medicina Social e Preventiva da Universidade
de Berna, na Suíça, o qual realizou pesquisas indicativas de que as paisagens pura-
mente naturais, ou ajustadas a elementos naturais – como espaços verdes, parques,
cursos d’água – possuem efeitos benéficos sobre a saúde física, psicológica e social
da população, porquanto a presença desses elementos favoreceria os sentimentos
positivos, reduziria frustrações e o estresse, e induziria a praticar atividades físicas
(PSYCHOMEDIA, 2007).
No mesmo sentido foi a conclusão de um núcleo de pesquisadores do Centro
Europeu para o Desenvolvimento e Saúde Humana, da Universidade de Exeter,
Reino Unido (KINVER, 2014). Utilizando dados da Pesquisa de Residências
Britânicas – feita em cerca de 40 mil residências por outra Universidade, a de Essex –
constatou-se que morar em um local com áreas verdes gera um efeito positivo per-
manente, enquanto outros fatores, como, por exemplo, aumento de salário ou pro-
moções no trabalho, proporcionam efeitos positivos de curto prazo. Mathew White,
um dos coordenadores, afirma haver provas de que as pessoas dentro de uma área
com espaços verdes são menos estressadas, e constata:
As pessoas fazem todo tipo de coisas para ficarem mais felizes, elas lutam por
uma promoção no trabalho, aumento de salário, até se casam. Mas o problema
com todas estas coisas é que, depois de seis meses a um ano, elas voltam aos
níveis originais de bem-estar. Então estas coisas não são sustentáveis, elas não
nos fazem felizes no longo prazo. (KINVER, 2014).
Esses fatores que White indica como capazes de gerar efeito positivo de curto
prazo são apresentados sob um prisma distinto no estudo “Stress, Wellness &
Physiology” (UNIVERSITY OF WASHINGTON, 2018). Em grande parte dos
casos, eles seriam geradores de estresse crônico, e seriam potencializados pelo
ambiente insalubre das grandes cidades. Segundo consta, os motivos de estresse
permanente na sociedade moderna incluem tensão financeira, demandas de traba-
lho, perda de emprego, interações familiares complexas, conflitos conjugais e outras
situações persistentes que, muitas vezes, são estimuladas pelo ruído, movimento
e complexidade visual dos grandes centros urbanos.3 Ressalte-se que aqui se faz
menção expressa ao aspecto visual, que se enquadra perfeitamente no tópico da
paisagem urbana insalubre.
No tocante ao efeito positivo de ambientes naturais, há também fatores que indi-
cam uma influência restaurativa da natureza como fator de recuperação do estresse,
perceptível mediante alteração nos indicadores de níveis de atividade fisiológica.
Acerca dessa questão, cite-se uma experiência realizada em 1991 na qual pesqui-
sadores expuseram filmes estressantes a determinadas pessoas, e depois as fizeram
visualizar imagens de ambientes urbanos e naturais. De acordo com os autores do
estudo, as pessoas que visualizaram as configurações naturais se recuperaram mais

3 “Everyday stress factors in modern society can include financial strain, work demands, job loss,
complex family interactions, marital conflict, and other persistent situations. In urban environments,
people are often overloaded and over-stimulated by noise, movement, and visual complexity. Such
daily interactions can overwhelm people” (UNIVERSITY OF WASHINGTON, 2018).

624
rapidamente do estresse. Os dados a esse respeito foram coletados levando em conta
indicadores fisiológicos como frequência cardíaca, tensão muscular e pressão arte-
rial (ULRICH et al., 1991).
Alguns contestam esse estudo pelo fato de ter mostrado imagens, e não sub-
metido os participantes a paisagens reais. Entretanto, em outros casos, alterações
físicas também foram constatadas na exposição a paisagens reais. É o que consta em
pesquisas relacionadas com o costume japonês chamado Shinrin-yoku (banho de
floresta), que nada mais é que a caminhada semanal em bosques e parques urbanos.
Experiências atestam que a prática foi eficaz para diminuir níveis de glicose em
diabéticos de uma forma mais notável do que a caminhada em esteiras (OHTSUKA
et al., 1998), além de produzir melhoria no sistema imunológico (LI et al., 2010).
Ainda a respeito dessa prática, noticiou-se:
Tais pesquisas, realizadas principalmente na Universidade de Chiba e na Escola
Médica Nippon, em Tóquio, mostraram que esse “mergulho” na natureza é
capaz de diminuir a pressão arterial e a frequência cardíaca, assim como os sin-
tomas do estresse. Outra descoberta é a de que o banho de floresta aumentaria
a atividade das células NK (natural killlers ou exterminadoras naturais). Elas
defendem o organismo de células tumorais e infecções. Ou seja, a prática tam-
bém fortaleceria o sistema imunológico (SALLES, 2017).
Ainda a respeito dos benefícios de frequentar ambientes com elementos naturais,
uma pesquisa realizada pelo Conselho de Saúde da Holanda (HEALTH COUNCIL
OF NETHERLANDS , 2004), utilizando uma metodologia que incluía fatores como
medição de pressão sanguínea e taxas de cortisol, também constatou que os espaços
verdes e com elementos naturais contribuem para a recuperação do estresse e da falta
de atenção, colaborando até mesmo para o melhor desenvolvimento das crianças.
Seguindo essa linha, Joris Zufferey, da Universidade de Genebra, realizou um
apanhado de diversas pesquisas, com destaque para aquelas que considerou pos-
suírem as provas mais robustas. Dentre essas, apresentou estudos indicativos de
que espaços verdes, desde que seguros e atrativos, estimulam a prática de atividade
física e, assim, incrementam o bem-estar e a interação social, inclusive com redu-
ção de taxas de obesidade (CROUCHER, K. et al., 2007 apud ZUFFEREY, 2015).
Sobre o tópico da interação social, o referido autor menciona, também, estudos
realizados no Canadá, Estados Unidos, Austrália, Japão e Europa, no sentido de
que esses ambientes, de fato, promoveriam uma maior coesão social nos habitantes
(HARTIG, 1991 apud ZUFFEREY, 2015).
Zufferey também menciona outro estudo, a sugerir que a mera visualização
de espaços naturais influenciaria a redução de níveis de estresse, atestando que o
mesmo efeito é constatável até mesmo com a observação de fotografias. A mesma
pesquisa apresenta o conceito de “paisagem terapêutica”, indicada para atividades
regeneradoras (VÖLKER; KISTEMANN, 2011 apud ZUFFEREY, 2015).
Na mesma temática, não se pode desprezar o chamado transtorno de déficit
de natureza, mencionado por Richard Louy para definir o afastamento cada vez
maior em relação aos ambientes naturais, em boa parte motivado pelo avanço
da tecnologia, “com toda a sedução e atrativos que fornece a baixo custo e pouco
esforço” (MAGRO, 2017).

625
7 ∙ INFLUÊNCIA DE ESPAÇOS CONSTRUÍDOS
NA SAÚDE DA POPULAÇÃO
Apresentada essa consideração acerca dos benefícios dos espaços verdes, é
necessário ressaltar que uma paisagem urbana é primordialmente composta de
construções – e aí entra também o aspecto estético, que não pode ser desprezado.
Em uma época de grande crescimento da capital paulista, Hely Lopes Meirelles
(1978, p. 54) escreveu que a questão estética
se acha integrada nos objetivos do moderno urbanismo, que não visa apenas às obras
utilitárias, mas cuida também dos aspectos artísticos, panorâmicos, paisagísticos,
monumentais e históricos, de interesse cultural, recreativo e turístico da comunidade.
No dizer de Jacqueline Morand-Deviller (2010, p. 88), “a unanimidade sobre a
questão estética das construções ou dos sítios é uma coisa impossível”, mas é viável
existir “um consenso majoritário contra a feiura, que deverá guiar as condutas dos
responsáveis pelas políticas de urbanismo e meio ambiente”.
Nesse ponto, um cenário de construções em estado de degradação serviu de
base para a célebre Teoria das Janelas Quebradas (Broken Windows), desenvolvida
na Escola de Chicago por James Q. Wilson e George Kelling. Ademais, nos tempos
recentes, o campo da neurociência abriu uma nova perspectiva sobre essa abordagem,
coletando evidências mais palpáveis. Em uma convenção do The American Institute
of Architects¸ realizada em 2003, o neurobiólogo Fred Gage expôs a ideia de que “as
mudanças no ambiente modificam o cérebro e, portanto, modificam nosso compor-
tamento” (BADGER, 2012). Esse entendimento resume o propósito da ainda jovem
“neuroarquitetura”, a qual tem o intuito de pesquisar como o cérebro reage aos estímu-
los decorrentes dos ambientes construídos, tendo como principal ponto de referência
a Academia de Neurociência para a Arquitetura (ANFA, na sigla em inglês).
Dentro desse prisma neurológico, nota-se que os estudos mencionados tratam
da influência direta do ambiente construído na origem de problemas de ordem
psíquica, sobretudo estresse. Nesse sentido, deve-se destacar que a Organização
Mundial da Saúde considera o estresse e a baixa atividade física como grandes con-
tribuintes para a morte prematura em países desenvolvidos (OMS, 2020). Ademais,
outro estudo, também da OMS, constatou ser o Brasil o País mais ansioso e estres-
sado da América Latina (GRACIOLI, 2018), com índices que superam a média
mundial. Para melhor vislumbrar a importância do problema, basta mencionar que
o estresse está associado ao maior risco de infarto (ROSENGREN, 2004), que, por
sua vez, é uma das principais causas de morte no nosso País.
Com base nos elementos até aqui apresentados, pode-se deduzir que o fator
paisagístico – o qual, como visto, compreende espaços verdes, azuis, sons, odores
e até mesmo a estética das construções – tem uma influência direta na geração ou
restauração da saúde dos indivíduos. Por outro lado, a ausência de equilíbrio e a
degradação desse ambiente podem ter relação com diversos problemas de saúde,
causando sobrecarga nos sistemas públicos de saúde e previdência. Um controle
ou manejo consciente desses aspectos, até mesmo considerando a função social da
propriedade, muito provavelmente poderia contribuir para a diminuição de pro-
blemas que são fatores geradores de moléstias. Haveria, então, a possibilidade de,
sob a justificativa sanitária aqui apresentada, impedir ou limitar obras produtoras

626
de desequilíbrio paisagístico, com potencial de prejudicar o bem-estar e a sanidade
daqueles que ali vivem.

8 ∙ PROTEÇÃO DA PAISAGEM URBANA NO CONTEXTO JURÍDICO


Por estar diretamente ligado à saúde humana, e, portanto, à qualidade de vida,
o direito a uma paisagem urbana equilibrada e saudável pode adquirir aspectos de
direito fundamental, visto que, “no qualificativo ‘fundamentais’ acha-se a indicação
de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se rea-
liza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive”, e que, portanto, “devem ser
não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados”
(SILVA, 2001, p. 178).
No dizer de Milaré (2014, p. 606), “o meio ambiente artificial ou construído passa
a integrar o patrimônio ambiental da coletividade, e como tal deve ser administrado”.
No âmbito das políticas públicas, tem-se uma referência na já mencionada
Convenção Europeia da Paisagem, a qual diz, em seu preâmbulo, que “a paisagem
constitui elemento chave do bem-estar individual e social”, e que “a sua proteção,
gestão e ordenamento implicam direitos e responsabilidades para cada cidadão”.
O mesmo texto, após definir o já transcrito conceito de paisagem, define, no seu
artigo primeiro, alguns tópicos que podem servir de orientação para aqueles que se
propuserem a administrar questões referentes à paisagem urbana:
b) “Política da paisagem” designa a formulação pelas autoridades públicas com-
petentes de princípios gerais, estratégias e linhas orientadoras que permitam a
adopção de medidas específicas tendo em vista a proteção, gestão e ordenamento
da paisagem;
c) “Objetivo de qualidade paisagística” designa a formulação pelas autoridades
públicas competentes, para uma paisagem específica, das aspirações das popula-
ções relativamente às características paisagísticas do seu quadro de vida;
d) “Proteção da paisagem” designa as ações de conservação ou manutenção dos
traços significativos ou característicos de uma paisagem, justificadas pelo seu valor
patrimonial resultante da sua configuração natural e/ou da intervenção humana;
e) “Gestão da paisagem” designa a ação visando assegurar a manutenção de
uma paisagem, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável, no sentido de
orientar e harmonizar as alterações resultantes dos processos sociais, económi-
cos e ambientais;
f) “Ordenamento da paisagem” designa as ações com forte carácter prospectivo
visando, a valorização, a recuperação ou a criação de paisagens (COUNCIL OF
EUROPE , 2000).
Quando se estuda a questão na legislação brasileira, vê-se o art. 182 da
Constituição Federal a definir que:
a política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desen-
volvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
O texto constitucional também estabelece, em seu art. 23, que é competência comum
da União, Estados, Distrito Federal e Municípios cuidar da saúde (inciso II), proteger o
meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (inciso VI).

627
Quanto à possibilidade de legislar, no art. 24, a Carta Magna dispõe que é competência
concorrente da União, Estados e Distrito Federal (exclui Municípios) legislar sobre direito
urbanístico (inciso I); conservação da natureza, proteção do meio ambiente e controle da
poluição (inciso VI); proteção ao patrimônio paisagístico (inciso VII); e responsabilidade
por dano ao meio ambiente e a bens de valor estético e paisagístico (inciso VIII).
Especificamente em relação aos municípios, o art. 30 da Constituição confere
competência privativa para legislar sobre assuntos de interesse local (inciso I);
suplementar a legislação federal e estadual no que couber (inciso II); promover ade-
quado ordenamento territorial (inciso VIII); e promover a proteção do patrimônio
histórico-cultural local (inciso IX).
A Política Nacional do Meio Ambiente, positivada na Lei n. 6.938/1981, embora
não mencione a expressão “paisagem”, define, em seu art. 3º, como “poluição” a
“degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que, direta ou indire-
tamente, prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população” (alínea a);
criem “condições adversas às atividades sociais e econômicas” (alínea b); ou “afetem
as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente” (alínea d).
O Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), por sua vez, dispõe em seu art. 2º que “a
política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais
da cidade”, mediante “proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural
e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico”
(inciso XII). O mesmo diploma, em seu art. 37, caput, estabelece que o estudo prévio
de impacto de vizinhança (EIV) deverá ser executado de forma a “contemplar os efei-
tos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida
da população residente na área e suas proximidades”, devendo esse estudo incluir o
aspecto da “paisagem urbana e patrimônio natural e cultural” (inciso VII).
Por fim, deve-se levar em conta também a possibilidade de a proteção da pai-
sagem urbana ser considerada dentro do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos (BARRIOS, 2015).

9 ∙ ALGUNS EXEMPLOS DE INTERVENÇÃO DO PODER PÚBLICO


Apesar do comando constitucional, bem como da legislação pertinente, o
assunto acerca da proteção da paisagem urbana ainda é tratado de forma vaga, e, por
vezes, omissa, havendo pouca transparência no âmbito da Administração Pública,
sobretudo quando estão envolvidas pressões decorrentes de interesses econômicos
do setor de construção civil, o qual, na atualidade, é o principal responsável pela
excessiva e descontrolada verticalização das cidades.
Como já exposto, na realidade brasileira a degradação paisagística atinge todas
as camadas da população, desde as áreas periféricas, com as construções precárias
de comunidades e “favelas”, passando também pelas áreas centrais, desgastadas e
frequentemente depredadas, e até mesmo por áreas elitizadas, que, não raro, pas-
sam por uma espécie de vandalismo paisagístico promovido por grandes “empreen-
dimentos” imobiliários, ou até pela própria Administração Pública, quando realiza
obras de grande porte guiada por políticas equivocadas.
Embora não tenham propriamente fundamento no prisma da saúde pública,
existem exemplos de atuação do Ministério Público no âmbito paisagístico urbano,

628
e, entre esses, um dos mais emblemáticos em tempos recentes foi o da Ação Civil
Pública AC n. 439086 – PE (0004462-77.2005.4.05.8300), movida pelo Ministério
Público Federal contra a Prefeitura de Recife, o IPHAN e a Construtora Moura
Dubex, visando impedir a construção de um condomínio residencial dotado de
duas “torres gêmeas”, de tamanho e gosto estético questionável, nas vizinhanças
do centro histórico daquela cidade. Apesar de obtida decisão favorável na primeira
instância, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região reformou a decisão em grau
recursal, em acórdão de relatoria do então desembargador Luiz Alberto Gurgel de
Faria. Assim, a construção transcorreu sem maiores percalços, impondo ao entorno
um visual agressivo e inclemente, em claro desequilíbrio com exemplares da arqui-
tetura dos séculos XVII e XVIII que ainda se destacam naquela região da cidade.
Não é demais lembrar que a mesma construtora, com aval das autoridades munici-
pais, prossegue com planos de construir mais edifícios de grande porte no Cais José
Estelita, situado na mesma região (MIRANDA, 2019).
Em outro exemplo mais recente, o Ministério Público de Minas Gerais, na Ação
Civil Pública n. 0028466-98.2013.8.13.0393, obteve a condenação de uma empresa ao
pagamento de danos morais coletivos devido à instalação de uma torre com três ante-
nas no Morro dos Jesuítas, sítio histórico localizado na cidade de Matias Cardoso, no
norte do estado. Segundo a promotoria, a situação agredia o “conjunto arquitetônico e
a paisagem do patrimônio público, causando impacto elétrico, paisagístico e visual”, e,
de acordo com a decisão judicial, já transitada em julgado, o dano moral coletivo ficou
configurado, “visto que a descaracterização da paisagem ocasionou lesão na esfera
moral de uma comunidade”, com uma intervenção “agressiva e descaracterizante”.4
No geral, a respeito de problemas paisagísticos, os entendimentos judiciais têm
sido variados, até porque para determinados casos a lei deixa lacunas que muitas
vezes não são preenchidas pelo julgador, talvez pelo receio de incorrer em uma aná-
lise estética de caráter subjetivo – algo que escapa da esfera jurídica. Entretanto,
sobre esse ponto, conforme diz Morand-Deviller (2010, p. 87), nas ações que envol-
vem teor paisagístico urbano, “não se pede ao juiz que ele se pronuncie sobre o
belo”, mas tão somente “demanda-se que ele recuse a feiura”.

10 ∙ CONCLUSÃO
Partindo do pressuposto do direito à vida, o presente artigo apresentou argu-
mentação no sentido de que todo o ambiente que cerca o ser humano constitui um
conjunto indivisível, que se relaciona com ele e o influencia diretamente.
Nesse contexto, indicou-se que não pode haver qualidade de vida, tampouco
vida saudável, sem que haja um ambiente também saudável.
Ora, entre os elementos que compõem o meio ambiente, encontra-se a paisagem,
e, sobretudo, a paisagem urbana, a qual também é passível de desequilíbrio, e, no
Brasil, não tem sido objeto de cuidados, seja por parte de governantes, seja por parte
da população. Com isso, as grandes cidades brasileiras, sobretudo as que passaram

4 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Empresa é condenada por dano moral
coletivo em Matias Cardoso. Maio 2018. Disponível em: http://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/noticias/
empresa-e-condenada-por-dano-moral-coletivo-em-matias-cardoso.htm#!. Acesso em: 20 nov. 2019.

629
por maior desenvolvimento econômico, cresceram de forma desordenada, cau-
sando uma notória deterioração de fatores paisagísticos.
Segundo algumas pesquisas indicadas, as grandes cidades, com sua verticali-
zação desordenada, trânsito, ruídos e poluição, formam um conjunto paisagístico
negativo, que atua como verdadeiro fator gerador – ou potencializador – de estresse,
o qual está na raiz de várias moléstias, muitas delas fatais.
Por outro lado, foram apresentados estudos que comprovam o efeito benéfico
produzido por áreas verdes, com vegetação e paisagem natural, sobretudo como
fator redutor de estresse e estimulador de atividades físicas e interação social.
Também se levantou a questão acerca de uma estética amigável na arquitetura como
fator capaz de contribuir para compor uma paisagem saudável.
Com os exemplos citados e com a menção de alguns casos de atuação do
Ministério Público, pretendeu-se lançar, embora de forma resumida, uma luz sobre
esse tema ainda pouco abordado no Brasil, mas que, sem dúvida, é mais do que
urgente e atual, dada a clareza com que se constata que o equilíbrio da paisagem
urbana influencia a saúde e a qualidade de vida da população.

REFERÊNCIAS
ARROYO, Leonardo. Igrejas de São Paulo: introdução ao estudo dos templos mais
característicos de São Paulo nas suas relações com a crônica da cidade. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio, 1954.
BÄCHTOLD, Felipe. Prédios mais altos do país cobrem o sol em balneário Camboriú
(SC). Folha de São Paulo, São Paulo, 27 dez. 2015. Disponível em: https://www1.folha.
uol.com.br/cotidiano/2015/12/1723364-predios-mais-altos-do-pais-cobrem-o-sol-em-
balneario-camboriu-sc.shtml. Acesso em: 14 nov. 2019.
BADGER, Emily. Corridors of the mind: Could neuroscientists be the next great
architects? Pacific Standard, Seattle, nov. 2012. Disponível em: https://psmag.com/
social-justice/corridors-of-the-mind-49051. Acesso em: 18 nov. 2019.
BARRIOS, Anelise Barboza. A proteção do direito à paisagem urbana pelo sistema
interamericano de direitos humanos. 2015. 127 f. Dissertação (Mestrado em Direito) –
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2015. Disponível em: https://
repositorio.ufsm.br/handle/1/6393. Acesso em: 19 nov. 2019.
BENTO XVI, Papa. Carta encíclica caritas in veritate. Roma, 29 de junho de 2009.
Disponível em: http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/
hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html. Acesso em: 14 nov. 2019.
BULZICO, Bettina Augusta Amorim. O direito fundamental ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado: origens, definições e reflexos na Ordem Constitucional
Brasileira. 2009. 216 f. Dissertação (Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia) –
Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil, Curitiba, 2009.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito
constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 69-80.
CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Estocolmo sobre o ambiente
humano. Estocolmo, 1972. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.

630
php/Meio-Ambiente/declaracao-de-estocolmo-sobre-o-ambiente-humano.html.
Acesso em: 15 nov. 2019.
CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO AMBIENTAL, 9., 2005, São Paulo.
Paisagem, natureza e direito: homenagem ao Prof. Alexandre Kiss. Organizador Antônio
Herman Benjamin. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde. 2 v.
COUNCIL OF EUROPE. Convenção Europeia da Paisagem, 2000. Disponível em:
https://rm.coe.int/16802f3fb7. Acesso em: 10 nov. 2019.
CUREAU, Sandra. Ambiência e entorno de bens culturais. 2009. Disponível em: http://
www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr4/dados-da-atuacao/documentos/trabalhos-
cientificos/ambienciaeentorno.pdf. Acesso em: 14 nov. 2019.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 9. ed. São
Paulo: Saraiva, 2008.
GRACIOLI, Júlia. Brasil vive surto de depressão e ansiedade. Jornal da USP, São Paulo, ago.
2018. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/brasil-vive-surto-de-depressao
-e-ansiedade. Acesso em: 18 nov. 2019.
HEALTH COUNCIL OF NETHERLANDS. Nature and Health. The influence of nature
on social, psychological and physical well-being. Netherlands, jun. 2004. Disponível
em: https://www.healthcouncil.nl/documents/advisory-reports/2004/06/09/nature-and
-health.-the-inf luence-of-nature-on-social-psychological-and-physical-well-being.
Acesso em: 16 nov. 2019.
KINVER, Mark. Viver perto de áreas verdes aumenta sensação de bem-estar, diz
estudo. BBC Brasil, 13 jan. 2014. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/
noticias/2014/01/140113_espaco_verde_bem_estar_fn. Acesso em: 14 nov. 2019.
LI Q.; KOBAYASHI, M., INAGAKI H. et al. A day trip to a forest park increases human
natural killer activity and the expression of anti-cancer proteins in male subjects.
Journal of Biological Regulators and Homeostatic Agents, [s. l.], v. 24, n. 2, p. 157-165,
abr./jun. 2010. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/20487629/. Acesso em:
2 mar. 2020.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 22. ed. São Paulo:
Malheiros, 2014.
MAGRO, Teresa. Distanciamento da natureza: os responsáveis somos nós mesmos.
Centralpress, [s. l.], jan. 2017. Disponível em: https://www.centralpress.com.br/
distanciamento-da-natureza-os-responsaveis-somos-nos-mesmos. Acesso em: 19 out. 2019.
MARTINI, Angeline; BIONDI, Daniela; BATISTA, Antonio Carlos. Variação diária
e estacional do microclima urbano em ruas arborizadas de Curitiba-PR. Floresta e
Ambiente, Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, p. 460-469, out./dez. 2013. Disponível em: http://
dx.doi.org/10.4322/floram.2013.045. Acesso em: 24 out. 2019.
MARTINS, Montserrat; PEDERSEN, Aloizio. Direito à paisagem. EcoDebate, Rio de
Janeiro, set. 2013. Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2013/09/16/direito-a-
paisagem-artigo-de-montserrat-martins-e-aloizio-pedersen. Acesso em: 24 out. 2019.
MEIRELLES, Hely Lopes. Urbanismo e proteção ambiental. Revista de Direito Processual
Geral, Rio de Janeiro, n. 33, p. 14-62, 1978. Disponível em: https://pge.rj.gov.br/comum/
code/MostrarArquivo.php?C=NjE1OA%2C%2C. Acesso em: 15 ago. 2020.

631
MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: http://
michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php. Acesso em: 10 out. 2019.
MILARÉ, Édis. Dicionário de direito ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
MILARÉ, Edis. Direito do ambiente. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
MIRANDA, Amanda. MPF entra com recurso para tentar impedir obras no Cais
José Estelita. Blog de Jamildo. 2019. Disponível em: https://blogs.ne10.uol.com.br/
jamildo/2019/08/02/mpf-entra-com-recurso-para-tentar-impedir-obras-no-cais-jose-
estelita. Acesso em: 23 mar. 2020.
MORAND-DEVILLER, Jacqueline. A cidade, a paisagem e o belo. In: MARQUES,
Claudia Lima; MEDAUAR, Odete; SILVA, Solange Teles da (coords.). O novo direito
administrativo, ambiental e urbanístico: estudos em homenagem a Jacqueline Morand-
-Deviller. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
NALINI, José Renato. Fundamentos ético-filosóficos da proteção ambiental. In:
BENJAMIN, Antonio Herman; LECEY, Eladio; CAPELLI, Sílvia (coords.). Congresso
internacional de direito ambiental: mudanças climáticas, biodiversidade e uso sustentável
de energia. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. p. 305.
NOGUÉ, Joan. El retorno al paisaje. Enrahonar, Barcelona, n. 45, 2010, p. 123-136.
Disponível em: www.raco.cat/index.php/Enrahonar/article/view/210161. Acesso em: 23
out. 2019.
OBSERVATÓRIO DO RECIFE. Boa Viagem, a praia das sombras. 2012. Disponível em:
https://www.observatoriodorecife.org.br/boa-viagem-a-praia-das-sombras/. Acesso em:
14 nov. 2019.
OHTSUKA, Y., YABUNAKA, N.; TAKAYAMA, S. Shinrin-yoku (forest-air bathing
and walking) effectively decreases blood glucose levels in diabetic patients. International
Journal of Biometeorology, [s. l.], n. 41, p. 125-127, fev. 1998. Disponível em: https://doi.
org/10.1007/s004840050064. Acesso em: 2 mar. 2020.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE (UNEP).
Declaração de Estocolmo sobre o ambiente humano. 1972. Disponível em: http://www.
direitoshumanos.usp.br/index.php/Meio-Ambiente/declaracao-de-estocolmo-sobre-o-
ambiente-humano.html. Acesso em: 15 nov. 2019.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Obesity and overweight. Abr. 2020.
Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/obesity-and-
overweight. Acesso em: 16 jul. 2020.
PORTO, Aline; SECCO, Chiara; DELGADO, Gisele; VERBICARO, Camila; DEMARZO,
Mauro. A influência “haussmanniana” nas intervenções urbanísticas em cidades
brasileiras. In: ENCONTRO LATINO AMERICANO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA,
11.; ENCONTRO LATINO AMERICANO DE PÓS-GRADUAÇÃO, 7., 2007, São José
dos Campos, Universidade do Vale do Paraíba, 2007. Disponível em: http://www.
inicepg.univap.br/cd/INIC_2007/trabalhos/sociais/epg/EPG00214_01O. Acesso em: 20
out. 2019.
PSYCHOMÉDIA. Bienfaits de la nature sur la santé, aménagement du paysage en Suisse.
Maio 2007. Disponível em: http://www.psychomedia.qc.ca/sante/2007-05-22/bienfaits-
de-la-nature-sur-la-sante-amenagement-du-paysage-en-suisse. Acesso em: 14 nov. 2019.

632
ROSENGREN, Annika et al. Association of psychosocial risk factors with risk of
acute myocardial infarction in 11.119 cases and 13.648 controls from 52 countries (the
INTERHEART study): case-control study. The Lancet, [s. l.], set. 2004. Disponível em:
https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(04)17019-0/fulltext.
Acesso em: 2 mar. 2020.
SALLES, Carol. Prática no Japão, “banho de floresta” promete reduzir o estresse.
VivaBem. Portal UOL, jan. 2017. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/
noticias/redacao/2017/01/25/pratica-no-japao-banho-de-floresta-promete-reduzir-o-
estresse.htm. Acesso em: 19 out. 2019.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo:
Malheiros, 2001.
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994.
SIRVINSKAS, Luís Paulo. Arborização urbana e meio ambiente: aspectos jurídicos.
Revista de Direito Ambiental, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 16, p. 192-201, out./
dez. 1999.
SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
ULRICH, Roger S.; SIMONS, Robert F.; LOSITO, Barbara D.; FIORITO, Evelyn; MILES,
Mark A.; ZELSON, Michael. Stress recovery during exposure to natural and urban
environments. Journal of Environmental Psychology, [s. l.], v. 11, Issue 3, p. 201-230, set. 1991.
Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0272-4944(05)80184-7. Acesso em: 24 out. 2019.
WOLF, K. L.; KRUEGER, S.; ROZANCE, M. A. Stress, wellness & physiology: a
literature review. Green Cities: good health, Washington, College of the Environment,
University of Washington, 2014. Disponível em: https://depts.washington.edu/hhwb/
Thm_StressPhysiology.html. Acesso em: 15 nov. 2019.
ZUFFEREY, Joris. Relations entre santé et espaces verts et bleus: une synthèse de la
recherche empirique, 2003-2014. Natures Sciences Societés, v. 23, p. 343-355, 2015.
Disponível em: https://www.cairn.info/revue-natures-sciences-societes-2015-4-page
-343.htm. Acesso em: 15 nov. 2019.

633
O DERRAMAMENTO DE ÓLEO NA COSTA NORDESTINA
E A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL PELOS DANOS
EXISTENCIAIS CAUSADOS AOS POVOS DAS ÁGUAS
Ramiro Rockenbach da Silva Matos Teixeira de Almeida1

Sumário: 1 Introdução. 2 Os direitos fundamentais e os direitos humanos: uma


delimitação necessária. 3 O derramamento de óleo no mar, na costa brasileira e
nordestina: contextualização fática sobre impactos, medidas e responsabilidade em
defesa de direitos fundamentais. 3.1 O Plano Nacional de Contingência para Incidentes
de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional: instrumento para gerir crises.
3.2 A atuação do Conselho Nacional dos Direitos Humanos. A Carta dos Povos das Águas
à Sociedade. O posicionamento dos estados do Nordeste. 3.3 A responsabilidade em caso
de manchas (de óleo) órfãs. 4 O petróleo: atividade econômica de alto risco. A instituição
de fundos. 5 A ordem econômica, a dignidade da pessoa humana e o meio ambiente.
6 Os danos existenciais causados aos povos das águas e sua valoração. 7 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O objetivo de efetivar direitos fundamentais, no atuar de órgãos e instituições,
como o Ministério Público Federal (MPF), merece dedicação especial, porquanto
significa possibilitar, a um sem número de pessoas, oportunidade de viverem suas
vidas em condições melhores, com dignidade concreta no mundo real (valor central
da Constituição da República). Há seres humanos, entretanto, que necessitam de
cuidado maior ainda: os vulneráveis, que, no caso em exame, são aqueles que inte-
gram os denominados povos das águas2 (pescadores artesanais, marisqueiras, cata-
dores de caranguejo, ostreiros etc.) malferidos pelos danos existenciais que impac-
taram (e continuam impactando) suas vidas em decorrência do derramamento de
óleo que afetou o litoral brasileiro, notadamente a costa nordestina.3

1 Procurador da República com atuação na área ambiental. Doutor em Ciências Jurídicas e Políticas,
com ênfase em Direitos Humanos e Desenvolvimento, pela Universidade Pablo de Olavide, Sevilha,
Espanha, título validado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
2 A expressão “povos das águas” é utilizada com base em publicação da Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária – Embrapa (SILVA, 2014, p. 14-19).
3 O derramamento de óleo que, em 2019, impactou toda a Região do Nordeste (atingindo também o
Espírito Santo e o Rio de Janeiro) é o maior do Brasil em termos de extensão e, possivelmente, do
mundo. O desastre socioambiental, após cerca de um ano de sua ocorrência, não teve responsável
identificado. Desde o surgimento das primeiras manchas de óleo, que ocorreram em 30.8.2019, no
litoral paraibano, foram mais de mil localidades (praias, rios, ilhas e mangues etc.) atingidas, em
pelo menos 125 municípios brasileiros, a maior parte na Região Nordeste.

635
O desafio é deveras maior em virtude da pandemia do novo coronavírus (causa-
dor da doença denominada de Covid-19), cujos danos à saúde, à economia e ao modo
de vida em geral, para além de significativos, são também de consequências desco-
nhecidas. De fato, o período pós-pandêmico trará um sem número de questões a
serem debatidas, entre elas a importância de se concretizar os direitos fundamentais.
E no âmago do pós-positivismo, “com a centralidade dos direitos fundamentais
e a reaproximação entre Direito e ética” (BARROSO, 2015, p. 4-5), a (re)leitura cons-
titucional da responsabilidade civil traz novos contornos para a atuação (teórica e
prática). Ao se redefinirem institutos como o da responsabilidade civil, emerge à
luz a despatrimonialização de categorias civilistas e sua consequente repersonali-
zação. Há de se fazer prevalecer valores existenciais sobre interesses patrimoniais.
A atividade econômica (petróleo) deve estar conforme com as diretrizes e objetivos
axiológicos constitucionais.
Ademais, no âmbito do cenário constitucional brasileiro, o princípio da dignidade
da pessoa humana (art. 1º, III), eixo central do ordenamento jurídico (SARMENTO,
2006, p. 68), é alicerce da proteção aos vulneráveis, como são os povos das águas:
essas comunidades tradicionais cujos núcleos familiares envolvem homens, mulhe-
res, crianças, jovens e idosos. De igual relevo, tem-se que o princípio da solidariedade
(art. 3º, I), sobretudo ante a força normativa da Constituição, implicou significativos
efeitos no direito privado e que se fazem sentir intensamente no instituto em foco. A
solidariedade social, como leciona Anderson Schreiber (2012, p. 222-223),
promoveu profunda alteração na própria função atribuída à responsabilidade
civil, na medida em que gradativamente se passa de uma concepção que visava
punir e repreender condutas tidas por negligentes para uma ideia de tutela da
vítima e reparação do dano.
E em tempos de pós-pandemia, a solidariedade social deve assumir papel cada vez
mais preponderante.
As vítimas do desastre socioambiental que impactou, impacta e impactará a
costa nordestina por longo tempo devem ser tuteladas de forma adequada. Se isso
era necessário antes da pandemia em curso, mais ainda no novo cenário nacional
e global. Afinal, os primados da dignidade da pessoa humana e da solidariedade
social impõem que se repare o dano existencial que atinge os povos das águas,
rememorando-se que neles estão famílias que vivem de uma das mais antigas prá-
ticas de subsistência da humanidade: a pesca, responsável, como a agricultura, pela
formação das grandes civilizações e pela própria evolução humana.
Nessa trilha, quanto a essas comunidades tradicionais, sabe-se que “suas raízes
são formadas por uma miscigenação de índios, africanos, europeus, formando uma
etnia específica, cujos traços culturais aproximam-se muito daquelas denominadas
mamelucos, caribocas e caiçaras” (ALMEIDA, 2008, p. 8-15). São populações sin-
gulares: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que
possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e
recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa,
ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição.4

4 Nos termos do art. 3º, I, do Decreto n. 6.040/2007.

636
É isso que sedimenta a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais, cujo principal objetivo é lhes promover o desen-
volvimento sustentável, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia
dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com res-
peito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições.5
São, os povos das águas, comunidades tradicionais afetadas de modo avassala-
dor pelo desastre socioambiental do derramamento de óleo que impactou o Brasil.
É a forma de ser deles que está em questão. São famílias e grupos constituídos por
pessoas que “já nascem nas proximidades das praias de rios e de mar, quando
aprendem, por meio da tradição passada pelos ancestrais às próximas gerações, a
lançar os olhos para o mar”, e também para a extensão do rio, vendo, “por meio de
uma habilidade quase inexplicável, um cardume que se aproxima ou mesmo uma
mudança de tempo repentina” (GARCIA, 2015, p. 67).
Vítimas de danos existenciais, essas pessoas estão passando por relevantes
alterações em suas vidas, obrigadas a “ter que agir de outra forma” ou “não poder
fazer como antes” devido às repercussões consistentes, talvez permanentes, sobre
a própria existência individual e coletiva (GARCIA, 2015, p. 84). Deveras, em vir-
tude do alto potencial de contaminação causado pelo óleo no mar, rios e estuários,
a sociedade em geral teve por longo tempo (e algumas pessoas ainda têm) receio,
com razão, de consumir os pescados desses locais. Nesse contexto, as comunidades
tradicionais, se pescam, não vendem; se não pescam, não comem, não sobrevivem.
Suas vidas estão em risco; seus modos de ser e viver, que atravessaram gerações,
estão em perigo. Uma situação gravíssima, que não pode ser ignorada e que foi
agravada com todas as restrições e incertezas da pandemia global.
Desde uma concepção crítica dos direitos humanos e fundamentais, tem-se
como inafastável a necessidade de se repararem os danos existenciais causados aos
povos das águas, com medidas e valores adequados, mediante a responsabilização
do poluidor direto (caso identificado) e/ou do poluidor indireto (o Poder Público).
De igual modo, a atividade econômica do petróleo, de uma forma ou outra, deve
contribuir para a reparação do incidente ocorrido e/ou para a prevenção, com
suporte financeiro, de possíveis incidentes futuros. É uma questão de cunho consti-
tucional, conjugando-se os primados da ordem econômica, da dignidade da pessoa
humana e do próprio meio ambiente.

2 ∙ OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E OS DIREITOS HUMANOS:


UMA DELIMITAÇÃO NECESSÁRIA
O propósito é concretizar direitos fundamentais (plano nacional) ou direitos huma-
nos (plano internacional); mas o que são direitos fundamentais? E direitos humanos? E
qual a relação ou a distinção entre eles? O que almeja a humanidade ao estabelecer essas
categorias? Por que motivo os seres humanos, homens e mulheres de toda e qualquer
idade, vivem, atualmente e em sua maioria, agrupados? Por que estão sob o comando de
regras? Por que, afinal, conduzem as próprias vidas de acordo com diretrizes instituídas
por entes fictícios que, em síntese, são chamados de Estado, País, Nação, Sociedade etc.?

5 Anexo do Decreto n. 6.040/2007, art. 2º.

637
Não são apenas questionamentos filosóficos, jurídicos ou acadêmicos. Mais que
isso, são perguntas sobre a jornada humana em busca de um outro lugar (heteroto-
pia) mais justo, democrático e digno, a ser alcançado de forma plural e com amplo
respeito às diferenças sobre o modo de ser, viver e pensar o mundo. Afinal, na lição
de Joaquín Herrera Flores (2011, p. 14-15), “las plurales y diferenciadas luchas por la
dignidad humana constituyen la razón y la consecuencia de la lucha por la democra-
cia y por la justicia”.
É fato que vivemos no Planeta Terra, e nele nos organizamos como Estado, País,
Nação, Sociedade (ou alguma forma de agrupamento humano) que tem, ou deve
ter,6 sua razão de ser no objetivo principal, embora amplo e complexo, de melhorar
as condições de vida de todos, ou, pelo menos, de garantir a satisfação das necessi-
dades humanas fundamentais, no dizer de Antonio Carlos Wolkmer (2015, p. 283-
291). Ou ainda, promover o reconhecimento das reivindicações de vida7 de homens

6 A razão de ser do Estado implica discussões as mais diversas. Em abordagem sociológica e


psicanalítica, por exemplo, Eugène Enriquez, após discorrer sobre características de várias
espécies de Estado (do Democrático-Liberal ao Totalitário), assevera que todos têm um “projeto
comum” de construir um aparelho estatal cada vez maior, distanciando-se do povo e falando uma
linguagem específica (a da política). O novo modelo de linguagem passa a ser dominante e faz
desaparecer a práxis social. Todavia, como a ameaça de revolta popular continua a ser sempre
possível, é indispensável o Estado (País, Nação, Sociedade etc.) manter o “grupo-povo” em uma
espécie de regressão (“preso a certas verdades”), através da utilização de um sistema de crenças
e pela cristalização do poder. O sociólogo francês, ao final, assevera: “todo mundo se sentirá,
então, em dívida com esse Estado que executa o máximo para realizar, ou para fazer acreditar
que realiza, os desejos explícitos das populações, e o povo pagará essa dívida com o sacrifício de
suas satisfações pessoais e, às vezes, com sua própria vida, guardando no íntimo a ilusão de que
esse objeto criado era mesmo o que ele desejava (o Estado funciona como engodo do desejo), e que
podia amá-lo. Esse aparelho vai ter como papel colocar o povo em vigilância e sob um controle
mais ou menos completo [...] uma garantia para o aparelho da manutenção de seu domínio (através
de várias modalidades de controle)”. (ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado: psicanálise do
vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 283).
7 A expressão é utilizada no âmbito do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), de modo que “o verdadeiro alicerce do desenvolvimento humano” seria “o universalismo
no reconhecimento das ‘reivindicações de vida’ de todos”, porquanto “o universalismo das
reivindicações de vida é o fio condutor que une as necessidades do desenvolvimento humano de
hoje às exigências do desenvolvimento de amanhã, especialmente no que toca à preservação e
regeneração do ambiente”. (Disponível em: http://www.pnud.org.br/HDR/arquivos/RDHglobais/
hdr2015_ptBR.pdf. Acesso em: 28 abr. 2016, p. 145). A expressão “reivindicações de vida”, a
propósito, passa a ser empregada pela Organização das Nações Unidas (ONU), no Relatório do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o PNUD, em 1994 (versão em espanhol
disponível em http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr_1994_es_completo_nostats.pdf, acesso
em 7 maio 2016). O Relatório do PNUD (RDH), de 1994, propõe um conceito de desenvolvimento
sustentável que possibilite às presentes e futuras gerações ampliar plenamente a sua capacidade
humana e aproveitar essa capacidade ao máximo em todas as esferas: econômica, social, cultural,
política etc. Um desenvolvimento humano que favoreça as pessoas, promova o emprego e respeite
a natureza. Destaca-se que todos os seres humanos nascem com certa capacidade de potência e que
o propósito do desenvolvimento humano consiste em criar uma atmosfera em que todos possam
aumentar a sua capacidade e as oportunidades possam ser ampliadas. “O verdadeiro fundamento
do desenvolvimento humano é o universalismo no reconhecimento das reivindicações vitais de
todos” (RDH 1994, p. 4-5, 15 e ss.). Vê-se, portanto, que com o PNUD, a própria ONU começa a
superar aquela ideia universal e abstrata de que os direitos humanos, de todos os povos do mundo,
estariam contidos e garantidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).

638
e mulheres dos mais diversos povos e culturas, de forma sustentável, na expressão
da Organização das Nações Unidas (ONU).
É, pois, algo que envolve o caminhar da humanidade por milênios, na qual o
Direito e a própria Justiça exerceram, e exercem, papel essencial. Desde as con-
cepções ocidentais8 da antiguidade, passando por um direito fruto de “concessão
divina”, depois como “construção humana” e finalmente como “produto da razão”,9
a humanidade vive em grupo para viver melhor. E a respeito, Flávia de Ávila (2014,
p. 234) observa que está gravada na história documentada “a curiosidade humana
em se conhecer, explicar ou controlar padrões de funcionamento da vida em socie-
dade, a fim de que a individualidade de cada homem possa coexistir em harmonia
com as dos demais homens e de outros seres de seu ambiente”.
A definição de direitos humanos, a propósito, admite inúmeras acepções; a sua
origem também. São eles comumente relacionados aos direitos naturais (inerentes
à pessoa humana), no sentido de que a condição de ser homem ou mulher, por si
só, é suficiente para tê-los, porquanto inatos, uma ideia que vem desde os tempos
antigos, passando pela época medieval (quando direitos começam a ser registra-
dos em documentos escritos, a exemplo da Magna Carta) e se consolida no século
XVII, momento em que a temática dos direitos humanos (então direitos do homem)
“se tornou elemento básico da reformulação das instituições políticas”, na lição de
Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2016, p. 25-31). O autor complementa afirmando
que os direitos humanos são definidos, ainda, como direitos positivos (aqueles reco-
nhecidos por determinado ordenamento jurídico), também chamados de direitos
humanos fundamentais, “de que direitos fundamentais são uma abreviação”.
Há, enfim, a distinção que se faz entre os direitos humanos e os direitos funda-
mentais, pontuada por Ingo Sarlet (2007, p. 35-36):

8 A parte oriental do mundo, a seu modo e com seus valores, também tem defendido a busca de uma
vida mais digna a todos. De fato, por exemplo, Mao Tsé-Tung, em sua percepção quanto ao modo
mais adequado de conduzir a grande e populosa China, asseverou a maneira pela qual deveria
atuar o Estado (País, Nação, Sociedade etc.): “[N]ós devemos ser modestos e prudentes, prevenir-
nos contra toda a presunção e precipitação, e servir de todo o coração ao povo chinês” (TSÉ-TUNG,
Mao. O Livro Vermelho. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 124). Vê-se, pois, que Mao Tsé-Tung
valorizava e defendia que os agrupamentos humanos deveriam almejar a concretização de uma
vida boa, ou do bem comum, em benefício da coletividade. Ou, nas suas próprias palavras, é
imprescindível “servir de todo coração ao povo”.
9 A autora faz uma abordagem bastante detalhada e abrangente sobre aspectos históricos e filosóficos
relacionados ao Direito, ao Direito Natural, ao Direito Internacional e aos Direitos Humanos.
São considerações e apontamentos que tratam do pensamento grego antigo (Homero, Pitágoras,
Heráclito, Parmênides, Sócrates, Platão, Aristóteles e muitos outros); apresentam o “direito
como concessão divina”, com o fortalecimento do cristianismo sob o império romano, quando
“o Direito passou não mais a ser fruto da prática, tornando-se identificado com a lei. E esta, teve
sua concepção baseada em mandamentos divinos” (p. 55); explicita o “direito como construção
humana”, com o Renascimento e o Iluminismo, tempo de Maquiavel, Lutero, Calvino, Francisco
de Vitória, Bartolomeu de Las Casas, Padre Antônio Vieira, Hugo Grócio, Francisco Suárez,
Alberico Gentili, Thomas Hobbes, John Locke e outros; e enfatiza o “direito como produto da razão
humana”, com o Idealismo, o Utilitarismo e o Pragmatismo, destacando-se autores (e suas ideias)
como Kant, Hegel, Jeremy Bentham, Stuart Mill, Charles Peirce, Oliver Holmes Jr., William James
e John Dewey (ÁVILA, 2014).

639
[...] em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos funda-
mentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira, e
diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo “direitos funda-
mentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados
na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que
a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito
internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser
humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem
constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e
tempos, de tal sorte que revelam inequívoco caráter supranacional (internacional).
Igualmente podem decorrer, os direitos humanos (e os direitos fundamentais),
de algum sistema moral; ou, ainda, são tidos como direitos históricos (não estão
nem nunca estiveram dados e significam um constante construir e reconstruir,
fruto da invenção humana), nas palavras de Flávia Piovesan (2015, p. 187-189) que,
alinhada com o pensamento de Hannah Arendt, preleciona que eles provêm “de
um espaço simbólico de luta e ação social, na busca por dignidade humana, o que
compõe um construído axiológico emancipatório”.
É com o final da Segunda Guerra Mundial e com a criação da Organização das
Nações Unidades (ONU)10 que os direitos humanos alcançam relevância de cunho
internacional, numa tentativa de se inaugurar um sistema de proteção e um modo
de vida capaz de promover a paz global. Para tanto, importante assinalar, o Direito
Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho (OIT)
“situam-se como os primeiros marcos de processo de internacionalização dos direitos
humanos”, redefinindo-se, com eles, a concepção e o alcance do conceito de sobe-
rania estatal a permitir e consagrar os direitos humanos como tema de interesse
supranacional (PIOVESAN, 2015, p. 189-195).11
O que prevaleceu para o conteúdo dos direitos humanos, porém, parece ser
somente aquilo que os países poderosos definem como possível e realizável, como
alerta Alejandro Muñoz (2009, p. 51-71). Com efeito, cabe lembrar que após as

10 A Organização das Nações Unidas (ONU) foi fundada em 24 de outubro de 1945 (logo após a
Segunda Guerra Mundial). É uma organização internacional formada por países que se reuniram
voluntariamente para trabalhar pela paz e pelo desenvolvimento mundiais. A ONU adota seis idiomas
oficiais: inglês, francês, espanhol, árabe, chinês e russo. A ONU tem representação no Brasil desde
1947. Informações disponíveis em https://nacoesunidas.org/conheca/, acesso em 29 abr. 2016.
11 A autora explica a influência do Direito Humanitário, da Liga das Nações e da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) na internacionalização dos direitos humanos. O Direito
Humanitário estabeleceu a proteção, em caso de guerra, a militares postos fora de combate (feridos,
doentes, náufragos, prisioneiros) e aos civis, fator que criou certas regras internacionais, limitando
a soberania dos países. A Liga das Nações, criada após a Primeira Guerra Mundial, reforçou as
bases do Direito Humanitário e instituiu compromissos pelos quais os Estados se comprometiam
a assegurar, por exemplo, condições justas e dignas de trabalho para homens, mulheres e crianças,
sob pena de sanções econômicas e militares a serem impostas pela Comunidade Internacional.
Por sua vez, a Organização Internacional do Trabalho, também instituída na época, passa a
atuar pela promoção de padrões internacionais de condições de trabalho e bem-estar. Todas elas,
afirma a autora, “cada qual a seu modo, contribuíram para o processo de internacionalização dos
direitos humanos; seja ao assegurar parâmetros globais mínimos para as condições de trabalho
no plano mundial, seja ao fixar como objetivos internacionais a manutenção da paz e segurança
internacional, seja ainda ao proteger direitos fundamentais em situações de conflito armado”.

640
grandes guerras mundiais é apresentada ao mundo a Declaração Universal dos
Direitos Humanos – DUDH (1948). O que está nela previsto, no entanto, não tem
caráter universal nem na elaboração tampouco na aplicação, até porque foi escrita
e aprovada sem a participação da maioria dos povos do mundo e seu conteúdo
retrata, no máximo, a marca ocidental e liberal do discurso dominante sobre o que
se entende por direitos humanos.
Ora pois, atualmente são identificados de modo consensual pelo menos quatro
regimes internacionais de aplicação de direitos humanos: o europeu, o interameri-
cano, o africano e o asiático, no dizer de Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 3-45).
Ademais, culturas como a chinesa e a hindu, formadas por bilhões de pessoas,
“não valorizam direitos mas ‘obrigações’, ‘virtudes’ etc.” e “não possuíam, antes da
influência europeia, concepção equivalente à de direitos (humanos) fundamentais”
(FERREIRA FILHO, 2016, p. 31).
Outros ajustes internacionais, no pós-guerra, foram construídos, como o
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966); o Pacto Internacional
sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); a Convenção Americana de
Direitos Humanos (1969); e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos
dos Povos (1981) etc., que acabam por retratar o esforço de se transformar em nor-
mas supranacionais “direitos reconhecidos mais nos papéis do que nas práticas
estatais e sociais”, pois continuam profundas as desigualdades socioeconômicas nos
países mais pobres, como assinala Carmen Rodríguez Salgado (2001, p. 53-62). Ao
se tratar de direitos humanos e direitos fundamentais, então, é preciso definir com
precisão do que exatamente se fala.
O que são eles? A partir de uma perspectiva crítica são, os direitos humanos (e
fundamentais, no plano interno), meios (entre tantos outros existentes) para que
homens e mulheres possam ter acesso a bens ou serviços, materiais e imateriais, aptos
a satisfazer suas necessidades, como integrantes de um grupo social (ou não) e em
busca de uma vida digna de ser vivida. Ou seja, quando uma norma (escrita ou não),
nacional ou internacional, expressar que o ser humano tem direito à alimentação,
à saúde, à moradia, à educação etc., trata-se de um instrumento para que cada ser
humano, no contexto concreto onde vive e se desenvolve (da floresta à megalópole),
tenha possibilidade de acessar bens e/ou serviços que satisfaçam sua necessidade de
se alimentar, de morar, de ter uma vida saudável e uma educação adequada. Afinal, o
direito (e em seu âmago os direitos humanos) deve ser entendido como “una técnica
de regulación y de garantía que está siempre condicionada por el ambiente y el contexto
del que surge y para el que surge” (HERRERA FLORES, 2011, p. 15).
Os direitos humanos, sendo instrumentos (meios) que vão se formando e se
alterando conforme as condições que os cercam (históricas, sociais, culturais, eco-
nômicas, políticas etc.), constituem o resultado, sempre provisório, dos processos de
luta (reivindicações) que são postos em prática, por homens e mulheres, pela efeti-
vação da dignidade humana. Os resultados obtidos com as práticas sociais (direitos
humanos alcançados) trazem consigo o desafio de serem mantidos, para se evitarem
retrocessos, bem como o alerta de que fixar direitos humanos (ou fundamentais)
em normas não significa que a luta está ganha nem terminada; ao revés, é impres-
cindível que os atores sociais continuem tendo espaço, voz e vez, para que o que
foi reivindicado e transformado em texto normativo (convenções internacionais,

641
constituições, leis etc.) não se encerre em si mesmo, num mundo formal e abstrato,
sobretudo porque o direito – e os direitos humanos e fundamentais – não é algo a
ser apropriado por especialistas (juristas), visto que regulam a vida de todos.
A concepção, que vem de Herrera Flores (2005b, p. 244), é digna de nota:
Los derechos humanos, en su integralidad y desde el universo normativo de resis-
tencia que defendemos en estas páginas, constituyen algo más que el conjunto de
normas formales que los reconocen y los garantizan a un nivel nacional o inter-
nacional. Los derechos humanos como productos culturales forman parte de la
tendencia humana ancestral por construir y asegurar las condiciones sociales,
políticas, económicas y culturales que permiten a los seres humanos perseverar en
la lucha por la dignidad, o lo que es lo mismo, el impulso vital que, en términos
spinozianos, les posibilita mantenerse en la lucha por seguir siendo lo que son:
seres dotados de capacidad y potencia para actuar por sí mismos.
O jurista e filósofo espanhol salienta a importância dos direitos humanos como
resultado de lutas (reivindicações) rumo à construção de espaços sociais, econômi-
cos, políticos e jurídicos que possibilitem o empoderamento de todos e todas para
que, de modo plural e diferenciado, possam viver uma vida digna de ser vivida.
Ademais, nos faz refletir sobre a necessidade de reconhecimento do outro, respeito
às diferentes posições, reciprocidade no sentido de retribuir o que recebemos do
social, responsabilidade a assumir e a exigir, bem como redistribuição de bens, de
renda, de poder etc. E, enfim, clama a todos:
Imaginemos nuevos mundos. Construyamos las condiciones que nos permitan
llegar a ellos. Empoderemónos mutuamente. Luchemos por los derechos huma-
nos como procesos de lucha por la dignidad humana. Claves necesarias para la
implementación efectiva y material de nuestro imaginário social instituyente
(HERRERA FLORES, 2005a, p. 255).
Os desafios pós-pandêmicos estão por vir e, entre eles, a definição do que será
efetuado de concreto em favor dos vulneráveis povos das águas atingidos em sua
existência pelo grave desastre socioambiental de derramamento de óleo no mar
que impactou o Brasil.

3 ∙ O DERRAMAMENTO DE ÓLEO NO MAR, NA COSTA


BRASILEIRA E NORDESTINA: CONTEXTUALIZAÇÃO FÁTICA
SOBRE IMPACTOS, MEDIDAS E RESPONSABILIDADE
EM DEFESA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
O derramamento de óleo que, em 2019, impactou toda a Região Nordeste (atin-
gindo também o Espírito Santo e o Rio de Janeiro) é o maior do Brasil em exten-
são (mais de dois mil quilômetros) e, possivelmente, do mundo. O incidente é tão
significativo que supera em quatro vezes o último grande vazamento ocorrido no
território brasileiro, registrado na Baía de Guanabara (RJ) há mais de duas décadas,
no dia 18 de janeiro de 2000. Na ocasião, foi liberada cerca de 1,1 mil tonelada de
óleo combustível na região. O causador foi identificado rapidamente. O incidente
de 2019, entretanto, após cerca de um ano de sua ocorrência, não teve responsável
determinado, apesar de as investigações seguirem em andamento. Ao todo, dos
locais atingidos, foram retiradas mais de 4,5 mil toneladas de petróleo.

642
Fato é que, desde o surgimento das primeiras manchas de óleo, em 30 de agosto de
2019, no litoral paraibano, foram mais de mil localidades (praias, rios, ilhas e mangues)
atingidas em pelo menos 125 municípios brasileiros, a maior parte na Região Nordeste.12
O Ministério Público Federal, desde o princípio do desastre socioambiental,
acompanhou o caso com o propósito central de atuar em defesa dos direitos fun-
damentais daqueles diretamente atingidos, bem como proteger o meio ambiente.
Nesse toar, após tentativas infrutíferas de soluções negociadas com a União
e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA), foi ajuizada, em Sergipe, a primeira ação civil pública, em 11 de outubro
de 2019, objetivando a implementação das medidas necessárias para a contenção,
o recolhimento e a adequada destinação do material poluente (óleo), com foco na
proteção de áreas sensíveis, utilizando-se do Mapeamento Ambiental para Resposta
à Emergência no Mar (MAREM),13 com o emprego das melhores e mais adequa-
das técnicas. Postulou-se, em específico, o acionamento dos denominados Planos
Estratégicos de Proteção de Áreas Vulneráveis (PPAVs) existentes e aprovados pelo
IBAMA em relação a toda a costa sergipana, observando-se integralmente os pro-
cedimentos e fluxogramas relacionados às regiões de praias, de manguezal, fluvial e
estratégias específicas. Como a ênfase era a imediata realização de medidas proteti-
vas, requereu-se também a colocação de barreiras de contenção, com o consequente
monitoramento dos principais rios. Em sequência, foram reproduzidas demandas
judiciais similares na Bahia, em Alagoas e também em Pernambuco. A finalidade,
vale ressaltar, era garantir o máximo de proteção às áreas sensíveis e assim evitar ou
minorar danos aos povos das águas e ao meio ambiente como um todo.
Deveras, o modo de viver das comunidades tradicionais, considerando a sua
relação com o mar, os rios, os estuários, os manguezais etc., precisava ser protegido
diante do derramamento de óleo. Era fundamental, por conseguinte, a utilização
das melhores e mais adequadas técnicas. Não obstante os esforços do MPF, não foi
possível convencer o Poder Executivo Federal, tampouco a Justiça Federal, sequer
da necessidade de se debater sobre o que e como fazer. Prevaleceu a assertiva gené-
rica do “ineditismo da situação” e da “inutilidade de uso de barreiras” para o “óleo
superficial, mais denso”. Desprotegidas, as áreas sensíveis se tornaram ainda mais
vulneráveis e os danos se avolumaram, dia após dia, mancha após mancha. Era
preciso a adoção de novas e urgentes medidas para proteger direitos fundamentais.

3.1 ∙ O PLANO NACIONAL DE CONTINGÊNCIA PARA INCIDENTES


DE POLUIÇÃO POR ÓLEO EM ÁGUAS SOB JURISDIÇÃO NACIONAL:
INSTRUMENTO PARA GERIR CRISES
O óleo prosseguia em avanço significativo pelos nove estados do Nordeste,
devido às correntes marítimas. De pronto, em plataforma virtual, representantes do

12 Os dados oficiais estão disponíveis nas páginas eletrônicas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA (https://www.ibama.gov.br/manchasdeoleo) e também
da Marinha do Brasil (https://www.marinha.mil.br/manchasdeoleo). Acesso em: 1º dez. 2019.
13 Informações sobre o MAREM disponíveis em: http://www.marem-br.com.br/. Acesso em: 1º dez. 2019.

643
MPF de Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande
do Norte e Sergipe se reuniram e deliberaram pelo ajuizamento de nova ação civil
pública. A demanda judicial, ajuizada em 17 de outubro de 2019, teve por objetivo
compelir a União a acionar o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de
Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional, o PNC, nos termos dos regra-
mentos vigentes,14 para dar início a todas as medidas necessárias, com o objetivo de
permitir a atuação coordenada de órgãos da Administração Pública e de entidades
públicas e privadas, de modo a ampliar a capacidade de resposta em incidentes de
poluição por óleo que possam afetar as águas sob jurisdição nacional e minimizar
danos ambientais, evitando prejuízos para a saúde pública.15
Os pleitos do MPF, entre outros, foram no sentido de que se determinasse à
União o acionamento do PNC (instrumento elaborado para gerir crises dessa enver-
gadura), reconhecendo-se a “significância nacional” do incidente de poluição por
óleo e fazendo-o o funcionar com suas estruturas e composições previstas, notada-
mente o Comitê Executivo e o Comitê de Suporte, empregando-se todos os recursos
humanos, materiais e financeiros necessários para se garantir a melhor capacidade
de resposta possível ao desastre socioambiental. Pugnou-se, também, que o coor-
denador operacional cumprisse integralmente seu papel nos termos da legislação.
Requereu-se, por fim, que o Comitê de Suporte do PNC observasse aspecto essen-
cial, que era convidar a participar do colegiado “um representante do órgão estadual
do Meio Ambiente de cada Estado afetado”, bem como fossem utilizados os instru-
mentos previstos, entre os quais as “cartas de sensibilidade ambiental”, “os planos
de ação dos órgãos ambientais federais, estaduais e municipais em incidentes de
poluição por óleo” e o “Sistema de Comando de Incidentes”.16
E em se tratando de defesa de direitos fundamentais, imprescindível dar voz e
vez às comunidades vulneráveis impactadas. Dentre várias iniciativas, cumpre des-
tacar a atuação do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) e a Carta dos
Povos das Águas à Sociedade sobre o derramamento de óleo no litoral nordestino.
Igualmente importante o posicionamento conjunto firmado pelos nove estados
do Nordeste do Brasil em relação ao desastre socioambiental.

3.2 ∙ A ATUAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS.


A CARTA DOS POVOS DAS ÁGUAS À SOCIEDADE. O POSICIONAMENTO
DOS ESTADOS DO NORDESTE
Os povos e as comunidades tradicionais, que vivem com seu estilo próprio de
vida, sofrem os efeitos mais graves e imediatos do derramamento de óleo no litoral
brasileiro, porquanto é afetada a própria subsistência e o modo de ser dessas famílias

14 A matéria é regulada pela Lei n. 9.966/2000, que “dispõe sobre a prevenção, o controle e a
fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas
em águas sob jurisdição nacional [...]” e, especialmente, pelo Decreto n. 8.127/2013 que “[i]nstitui
o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição
Nacional [...] e dá outras providências”.
15 Ao teor do art. 1º do Decreto n. 8.127/2013.
16 Com detalhamento das disposições do Decreto n. 8.127/2013.

644
(danos existenciais). “Diz-se existencial exatamente porque o impacto gerado pelo
dano provoca um vazio existencial na pessoa que perde a fonte de gratificação vital”
(BEBBER, 2009, p. 28-29). São pescadores artesanais, marisqueiras, catadores de
caranguejo e demais povos da região que dependem dos ecossistemas atingidos pelo
óleo, como rios, estuários e manguezais. A vida dessas pessoas é isso. Apreenderam
com os ascendentes e ensinam aos descendentes. O desastre socioambiental afeta
seus projetos de vida e suas relações.
O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), entre os dias 23 e 25
de outubro de 2019, realizou missão a localidades afetadas pelo derramamento
de óleo na Bahia e em Sergipe. Nela restou visibilizado o drama vivenciado pelas
famílias que integram os povos das águas.17 À ocasião, foi lida a Carta dos Povos e
Comunidades Tradicionais à Sociedade sobre o derramamento de óleo no litoral
nordestino, documento elaborado por quem literalmente sente na pele, no corpo e
na alma os efeitos do desastre socioambiental,18 a saber:
Nós, pescadoras e pescadores artesanais, marisqueiras, catadoras e catadores de
mangaba, quilombolas, camponesas e camponeses e demais povos e comunida-
des tradicionais costeiras, dependentes dos territórios pesqueiros, dependentes
das dinâmicas das águas, marítimas e continentais e seus ecossistemas como
restingas e manguezais, denunciamos ao poder público e à sociedade civil, os
impactos irreversíveis causados pelo gravíssimo crime ambiental decorrente do
derramamento de óleo no litoral nordestino. [...]
O óleo derramado – e a omissão do Estado brasileiro na resolução e contingen-
ciamento do problema – atinge de forma direta o equilíbrio do meio ambiente e,
consequentemente, a pesca, a mariscagem e a cata das frutas nativas e as demais
formas de agroextrativismo nestas áreas. [...]
O cheiro dos rios, dos mangues e do mar é o cheiro de nossos corpos. A política
de desenvolvimento custa a natureza, custa as comunidades tradicionais, custa a
vida. Enquanto o petróleo é derramado sobre nós, o governo se preocupa com o
leilão de novos blocos exploratórios. [...]

17 Disponível em: https://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/participacao-social/conselho-nacional-


de-direitos-humanos-cndh/2019.10.25resultadomissoleononordeste.pdf. Acesso em: 2 nov. 2019.
18 Disponível em: http://pacs.org.br/2019/10/25/povos-e-comunidades-tradicionais-de-sergipe-
promovem-carta-publica-sobre-derramamento-de-oleo-no-nordeste//. Acesso em: 2 nov. 2019. O
documento é assinado por inúmeras associações de pescadores, marisqueiras, agroextrativistas,
catadoras de mangaba, catadores de caranguejo, quilombolas e entidades do Nordeste e de todo
o Brasil, bem como de outros países, inclusive de estudiosos, entre os quais: Conselho Pastoral
dos Pescadores – Regional Nordeste; Coordenação Nacional Quilombola (CONAQ); Rede Latino-
-americana de Ecologia Humana; União Brasileira de Mulheres (UBM-SE), Articulação dos Povos
e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME); Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (APIB); Coordenação Nacional de Comunidades Tradicionais
Caiçara; Fórum de Comunidades Tradicionais de Paraty, Angra dos Reis e Ubatuba; Instituto
Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS); Movimento Nacional dos Pescadores; Plataforma
Brasileira de Direitos Humanos Dhesca Brasil; Marcha Mundial das Mulheres (MMM); Intervozes
– Coletivo Brasil de Comunicação Social; Círculo Argentino de Agroecología CirAA); Grupo
de Trabajo CLACSO Estudios Criticos del Desarrollo Rural; Encuentro Latinoamericano de
Universidades Transformadoras del Medio y de la Realidad Social; Centros Interdisciplinarios de
Salud Comunitaria y Desarrollo Local; Universidad de la Frontera – Chile; Grupo de Investigación:
“Conflicto, Región y Sociedades Rurales”, de la Universidad Javeriana de Bogotá; e Centro de
Innovación y Desarrollo para la Acción Comunitaria (CIDAC).

645
Não é de hoje que denunciamos o nosso extermínio, Povos e Comunidades
Tradicionais que fazemos da natureza o lugar onde nascemos, crescemos e
produzimos a vida. Estamos sendo impedidos e impedidas de praticar a pesca,
a coleta das frutas nativas, a mariscagem, a agricultura. Nosso território está
sendo destruído e cercado. [...]
Nós nos somamos ao coro de toda sociedade pela limpeza imediata das áreas e
contenção do óleo antes que adentrem em locais de difícil remoção, como man-
gues, arrecifes e rios. Em muitos lugares, nós, em mutirões, temos sido respon-
sáveis pela retirada do óleo, muitas vezes sem apoio ou orientação dos poderes
públicos. Mas defender nosso ambiente é necessário e não podemos esperar.
Por sobrevivência, muitos e muitas de nós estamos exercendo nossas atividades
em ambientes contaminados ou não teremos o que comer e como alimentar nos-
sas famílias. Reivindicamos políticas de indenização imediata que assegurem
renda básica e dignidade a nossa gente. O seguro defeso é um direito dos pes-
cadores e pescadoras e não uma política de reparação de crimes ambientais. [...]
Ressaltamos a necessidade de ter uma política que reconheça a existência de
uma cadeia produtiva comunitária diretamente atingida que não se restringe aos
pescadores e pescadoras beneficiárias do seguro defeso. Somos também homens
e mulheres que atuamos no beneficiamento do pescado, no trabalho doméstico,
no turismo de base comunitária, no comércio formal e ambulante, entre outras
atividades que necessitam de uma política pública que viabilize as condições de
vida diante deste crime ambiental. [...]
Não temos uma política de saúde comprometida com as nossas demandas e isto
fica ainda mais evidenciado com o crime ambiental do derramamento do petróleo.
São inúmeros os casos, entre nós e em diversas comunidades, de queimaduras
e coceiras na pele, ardência nos olhos, infecções intestinais. O óleo, quando em
contato com os pelos e cabelos, é impossível de ser retirado, só nos restando a
raspagem. [...]
É necessário que o poder público e o sistema de justiça, nas suas diferentes ins-
tâncias e órgãos, se articulem com ampla participação da sociedade civil e de
nossas entidades representativas para garantir o que é nosso por direito. [...]
O crime ambiental do derramamento do óleo nas praias é mais uma etapa do
avanço dos megaempreendimentos sobre as nossas comunidades. A ação da
indústria petrolífera – e energética de modo geral – impacta diretamente nós,
Povos e Comunidades Tradicionais. Afugentam o pescado com a super sonori-
dade, nos expulsam de nossos territórios, matam os nossos mares com derrama-
mento de óleo, entre outros crimes. Estas indústrias se somam a outras, como a
carcinicultura (carcimorte), que destrói os manguezais, polui as águas e altera
os nichos de todas as espécies costeiras; A pesca predatória, que acaba com as
comunidades de peixes; [...]
Em pouco tempo, nossas comunidades não poderão realizar as atividades
e comercializar o pescado e outros produtos da sociobiodiversidade, fonte de
renda de nossas famílias. Em longo prazo, ficam ameaçadas a segurança hídrica,
econômica e nutricional de nossas comunidades – e da sociedade como um todo.
[...]
A reparação histórica e pelo derramamento do óleo se dará com a garantia de
permanência plena em nossos territórios. Diante disto, ecoamos nosso grito por
demarcação e regularização dos nossos territórios já! Pela regularização dos

646
territórios das comunidades tradicionais pesqueiras! Pela demarcação e titula-
ção dos territórios quilombolas! Pela demarcação das reservas extrativistas das
catadoras de mangaba!
Tire óleo do caminho que eu quero passar
Tire o óleo do caminho que eu quero pescar
Tire o óleo do caminho que eu quero mariscar
Tire o óleo do caminho que eu quero catar
Tire o óleo do caminho, aqui é meu lugar
(Fio, Pacatuba/Sergipe) [...]
A visão dos entes estaduais também revela a extensão da problemática. No dia
6 de novembro de 2019, os nove governadores do Nordeste firmaram a “Carta do
Recife”,19 registrando amplo descontentamento com o modo de proceder da União
no desastre socioambiental:
[…]
1. Os Governadores, assim como já exposto na nota “Manchas de óleo nos convo-
cam à ação: O Brasil não pode esperar mais!”, publicada por este mesmo Consórcio
em 30 de outubro, continuam a manifestar sua preocupação à falta de celeridade
no processo de combate e contenção às manchas de óleo por parte do Governo
Federal, tendo em vista que o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de
Poluição por óleo ainda não foi colocado, na sua concretude, em prática.
2. Os governadores dos Estados, cobram, mais uma vez, a atuação integrada e
obstinada do Governo Federal na resolução desse gravíssimo crime ambiental.
Não obstante a isso, os Estados trabalham de forma conjunta, compartilhando
informações entre si para que haja uma coordenação das ações, efetivo conhe-
cimento dos impactos ambientais e sociais, busca e disponibilidade de auxílios,
além de se articularem com universidades a fim de manter um processo con-
tínuo de avaliação dos efeitos dessas tragédias com investimento e pesquisa e
desenho de estratégias para mitigação. [...].
E, importante pontuar, a ausência de identificação da fonte causadora dos danos
socioambientais em exame faz surgir a indagação: de quem é, afinal, a responsabilidade
civil pelas medidas necessárias de prevenção e reparação ante um causador desconhecido?

3.3 ∙ A RESPONSABILIDADE EM CASO DE MANCHAS (DE ÓLEO) ÓRFÃS


O termo “manchas órfãs”20 é utilizado com referência ao aparecimento de subs-
tâncias oleosas em águas marinhas, estuarinas ou fluviais cuja fonte poluidora não
foi identificada. É o caso do derramamento de óleo em questão, uma vez que, como
frisado, decorrido um ano desde sua ocorrência, não se identificou a origem do
incidente. E quem se responsabiliza pelas medidas necessárias em casos assim?

19 Disponível em: http://www.secom.ba.gov.br/arquivos/File/CARTADORECIFE6nov19.pdf. Acesso


em: 8 nov. 2019.
20 A explicação é da CETESTB (Companhia Ambiental de São Paulo). Disponível em: https://cetesb.
sp.gov.br/emergencias-quimicas/tipos-de-acidentes/vazamentos-de-oleo/manchas-orfas. Acesso
em: 10 ago. 2020.

647
O Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em
Águas sob Jurisdição Nacional, o PNC, é cristalino. Observe-se que o Decreto n.
8.127/2013, que institui o PNC, explicita que os órgãos e instituições integrantes
de sua estrutura organizacional “incluirão na previsão de seus orçamentos recur-
sos financeiros específicos para o cumprimento de suas atribuições previstas neste
Decreto” (art. 25). E, em sequência, sedimenta que os custos referentes à requisição
de bens e serviços disponíveis e necessários às ações de resposta aos incidentes por
óleo “serão ressarcidos integralmente pelo poluidor”, mas, enquanto ele não for
identificado, “os custos relativos às atividades de resposta e mitigação serão cober-
tos pelo Poder Executivo Federal” (art. 27 e §§ 1º e 2º).
A legislação de regência, a propósito, prevê o “Manual do PNC”, definindo-o
como o “documento técnico que contém, de forma detalhada, procedimentos
operacionais, recursos humanos e materiais necessários à execução das ações de
resposta em incidente de poluição por óleo de significância nacional”.21 O Manual
do PNC22 também é esclarecedor, visto que dispõe, entre outras situações, acerca
de incidente de poluição por óleo de origem desconhecida (as chamadas manchas
órfãs). A respeito, o documento oficial consigna:
Mobilização dos Recursos dos Comitês Executivo e de Suporte
Caso existam evidências de que os procedimentos adotados pelo Responsável pelo
Incidente não são adequados, que os equipamentos e materiais necessários para o
combate não são suficientes, que o Responsável pelo Incidente precisa de auxílio
para realizar determinada ação, e, ainda, se os procedimentos e estrutura previstos
nos planos de áreas não se mostraram adequados à resposta de incidente de polui-
ção por óleo de origem desconhecida, o Coordenador Operacional mobiliza as
instâncias, consideradas necessárias, de gestão do PNC, de imediato, para facilitar,
adequar e ampliar a capacidade das ações de resposta ao incidente. [...]
Os recursos humanos e materiais, disponibilizados pelos Comitês Executivo e de
Suporte, devem ser utilizados em ações de facilitação e ampliação da capacidade
de resposta do poluidor. As despesas com o deslocamento e a operacionalização
dos recursos materiais, bem como despesas com deslocamento, hospedagem e
alimentação de recursos humanos disponibilizados pelos órgãos públicos que
compõem os Comitês Executivo e de Suporte, serão custeadas por meio de
recursos financeiros da própria instituição cedente, que serão posteriormente
ressarcidas. [...]
E, por fim:
Ressarcimento de bens e serviços no PNC
Os custos referentes ao uso de recursos providos pelo responsável de qualquer
instalação ou pelos órgãos da Administração Pública serão ressarcidos integral-
mente pelo responsável pelo incidente (poluidor).
Quando o poluidor não é conhecido, o ressarcimento desses custos cabe ao
Poder Executivo Federal. [...]

21 Decreto n. 8.127/2013, art. 2º, inciso VII.


22 O Manual do Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob
Jurisdição Nacional – PNC foi aprovado em ata na terceira reunião do Comitê Executivo do PNC,
em 2018. Versão integral juntada e disponível nos autos da Ação Civil Pública número 0805679-
16.2019.4.05.8500, em trâmite perante a 1ª Vara Federal de Sergipe.

648
E assim é pelo fato de que os danos socioambientais causados devem ser repa-
rados. A regra é que a responsabilidade recaia sobre o poluidor, mas caso ele não
seja identificado, o responsável é o Poder Executivo Federal. Outrossim, apesar de
o Brasil ser um dos maiores produtores de petróleo do mundo, inexplicavelmente
não institui fundos preventivos nem adere aos existentes no cenário internacional.
É algo a ser revisto.

4 ∙ O PETRÓLEO: ATIVIDADE ECONÔMICA DE ALTO RISCO.


A INSTITUIÇÃO DE FUNDOS
A poluição por navios (que parece ser o caso do desastre socioambiental no lito-
ral brasileiro em 2019),23 é válido assinalar, ganhou mais atenção a partir de 1967,
com o incidente envolvendo o navio petroleiro Torrey Canyon, quando 120 mil
toneladas de petróleo foram derramadas no mar, contaminando a costa sudoeste do
Reino Unido e a zona costeira da França.
O caso pôs em evidência a falta de um acordo internacional sobre responsabili-
dade e indenização em situações de desastres dessa grandeza. O mundo começava
a aprender e a comunidade internacional estabeleceu, por meio da Organização
Marítima Internacional (OMI), um regime para indenizar as vítimas de contami-
nação por hidrocarbonetos. A Convenção é firmada no ano de 1969.
Mais tarde, em 1971 é instituído um fundo internacional de indenização por
danos causados pela contaminação de hidrocarbonetos (Convenção de 1971). O
tempo passou e se fez presente a necessidade de serem incrementadas as quantias de
indenização e de ampliar a aplicação do regime, diante do alto grau de poluição por
petróleo (Convenções de 1992).
Em 2003, em razão dos graves incidentes envolvendo os petroleiros Erika (que
em 1999 derramou 19.800 toneladas na costa ocidental da França) e Prestige (que
em 2002 derramou 63.200 toneladas na costa da Espanha, França e Portugal), se
estabeleceu um fundo complementar (Protocolo de 2003 à Convenção de 1992).
Cabe ressaltar que, desde que foi constituído, em 1971 e em 1992, o fundo inter-
nacional já atuou em 150 incidentes de diferentes magnitudes no mundo. Na grande
maioria, todas as reclamações foram resolvidas extrajudicialmente.
Os fundos internacionais em exame (International Oil Pollution Compensation
Funds – IOPC FUNDS),24 além de vários Estados-Partes, têm como observadores
organizações intergovernamentais e não governamentais, entre as quais: Comissão
Europeia, Nações Unidas, Organização Marítima Internacional, Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), Comitê Marítimo Internacional,
Foro Marítimo Internacional de Companhias Petroleiras, Instituto Ibero-
-Americano de Direito Marítimo, Organização Internacional para o Controle de
Derrames (ISCO e ITOPF).

23 A Marinha do Brasil e a Polícia Federal anunciaram oficialmente a suspeita em 1º de novembro


de 2019. Disponível em: https://www.marinha.mil.br/sites/default/files/nota_a_imprensa_-_
inquerito_oleo_1-1.pdf. Acesso em: 1º dez. 2019. A suspeita de que um navio grego teria causado o
derramamento de óleo em curso ainda não se confirmou.
24 Informações em: https://iopcfunds.org/es/acerca-de-los-fidac/observadores/. Acesso em: 2 nov. 2019.

649
Os IOPC FUNDS disponibilizam valores para custear operações de limpeza e
medidas preventivas, ressarcir danos materiais, recompor perdas econômicas de
pescadores e de outras pessoas dedicadas a atividades congêneres, recompor perdas
econômicas no setor do turismo, custear medidas de restauração do meio ambiente.
O Brasil poderia vir a ser indenizado em relação ao grave desastre socioambien-
tal de 2019, gerador de significativos impactos socioambientais, com valores de até
R$ 1,18 bilhão e R$ 3 bilhões. Contudo o País, embora signatário da Convenção
de 1969, por aí parou. Não há adesão brasileira ao fundo internacional (que tem
115 Estados-Partes) nem ao fundo complementar (com 32 Estados-Partes). O Brasil
ficou e está para trás.
A atividade de produção de petróleo é imensa no Brasil. O País totalizou cerca de
três milhões de barris por dia em agosto de 2019, com alta de 18,5% na comparação
anual e novo recorde mensal, como amplamente divulgado pela imprensa nacio-
nal. Os recordes brasileiros “estão baseados na expansão da produção no pré-sal,
oriunda de 110 poços, que atingiu 1,928 milhão de bpd (barris por dia, ou ‘barrels
per day’)”.25 E com o “megaleilão do petróleo do pré-sal”, o País pretende superar a
China e se igualar aos Emirados Árabes (e obter as vantagens econômicas disso, se
tornando o sétimo maior produtor de petróleo do mundo).
É fato que 69,96 bilhões de reais foram arrecadados em 6 de novembro de 2019,
com o megaleilão do petróleo (só no ato), o que corresponde ao maior valor já levan-
tado no mundo em um leilão do setor de petróleo em termos de pagamento de
bônus de assinatura (o valor que os interessados pagam pelo direito de exploração);
e outros bilhões deverão ser aportados aos cofres públicos brasileiros ao longo dos
próximos anos. Entretanto, o Brasil, além de não aderir aos fundos internacionais,
também não institui fundo próprio.
Os Estados Unidos da América, por exemplo, após o gigantesco acidente com o
navio Exxon Valdez (que, em 1989, derramou 41 mil toneladas de óleo no Alasca,
matando mais de 250 mil aves, milhares de baleias, de lontras marinhas e peixes),
há cerca de trinta anos instituiu fundo para custear a recuperação dos danos não
cobertos pelos responsáveis. O fundo era então constituído pela cobrança de cinco
centavos de dólar por barril de petróleo, limitando-se ao valor máximo de um
bilhão de dólares como indenização.
O Brasil precisa rever urgentemente o modo como trata a atividade econômica
do petróleo, potencialmente poluidora em alto grau.

5 ∙ A ORDEM ECONÔMICA,
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O MEIO AMBIENTE
A Carta Maior, em relação à ordem econômica, assevera que, além de estar fun-
dada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.26 E visto que o modo

25 Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/10/02/producao-de-petroleo-do-


brasil-sobe-18percent-e-tem-recorde-em-agosto-diz-anp.ghtml. Acesso em: 3 nov. 2019.
26 Art. 170, caput, da Constituição da República.

650
de ser e viver das comunidades tradicionais em tela está diretamente relacionado ao
meio ambiente como um todo, aplicáveis também os princípios reitores da matéria.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito funda-
mental, reconhecido pelo art. 225 da Constituição. Os direitos fundamentais estão
intimamente relacionados ao próprio objetivo da República Federativa do Brasil de
assegurar a todos uma vida digna, sendo possível reconhecer, a partir de preceitos
constitucionais, uma dimensão ecológica do princípio da dignidade da humana. O
ensinamento, de Ingo Sarlet (2010, p. 14-48), reafirma que a consagração da pro-
teção ambiental como direito fundamental atribui-lhe uma dupla funcionalidade,
qual seja: 1) a identificação de um objetivo e de uma tarefa estatais e 2) a de direito e
correlato dever fundamental do indivíduo e da coletividade. A condição de direito
humano e, portanto, de valor axiológico integrante do conteúdo da dignidade
humana justifica uma interpretação dinâmica da Constituição da República.
A leitura e a práxis do direito consideradas desde essa dinâmica de coerência são
definidas por Dworkin como integridade. Logo, a hermenêutica, em especial a cons-
titucional, deve se orientar pela aceitação de princípios deontológicos (DWORKIN,
2003, p. 255).
A análise do direito como integridade parte da premissa maior de que, do fato
de as pessoas fazerem parte de uma comunidade genuína, decorre a aceitação de
que existem princípios comuns que as governam e que orientam as decisões que
a elas devem ser aplicadas. E do ponto de vista dos princípios deontológicos que
integram a identidade constitucional e, consequentemente, o projeto político em
torno do qual a sociedade brasileira se vê reunida, destacam-se os princípios da
indisponibilidade do interesse público, do poluidor-pagador, da precaução, preven-
ção e reparação integral do dano ambiental.
E, nesse prisma, o dever de defender o meio ambiente é solidário entre o Poder
Público e a coletividade, de acordo com a Constituição da República. Os entes públi-
cos que detêm competências ambientais possuem o dever legal de evitar a ocorrência
de danos ambientais (responsabilidade retrospectiva) e, caso esses venham a ocor-
rer, impõe-se-lhes a obrigação de adotar todas as medidas necessárias à mitigação,
recuperação e compensação do dano ambiental (responsabilidade prospectiva). E
essa responsabilidade prospectiva guarda integral relação com o marco constitucio-
nal de garantia dos processos ecológicos essenciais (em especial os arts. 225; 23, VI e
VII; e 170, VI da Constituição) e da legislação, sobretudo da Lei da Política Nacional
do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/1981, arts. 2º, I e V, e 6º) e da Lei n. 9.605/1998
(Lei dos Crimes e Ilícitos Administrativos contra o Meio Ambiente), na esteira de
importante precedente do Superior Tribunal de Justiça (STJ).27
O dizer de Édis Milaré (2015, p. 444) vem à tona:
[…] o Estado também pode ser solidariamente responsabilizado pelos danos
ambientais provocados por terceiros, já que é seu dever controlar e impedir
que aconteçam. Esta posição mais se reforça com a cláusula constitucional que
impôs ao Poder Público, em todas as suas facetas e níveis, e à coletividade o
dever genérico de defender o meio ambiente e de preservá-lo para as presentes

27 STJ. REsp 1071741/SP. Relator Ministro Herman Benjamin. Órgão Julgador: T2 - SEGUNDA
TURMA. Data do Julgamento: 24/03/2009 - DJe 16/12/2010.

651
e futuras gerações. Assim, afastando-se da obrigação legal de agir, ou agindo
deficientemente, deve o Estado responder por sua incúria, negligência ou defi-
ciência, que traduzem um ilícito ensejador do dano não evitado, que, por direito,
deveria sê-lo. Nesse caso, reparada a lesão, a pessoa jurídica de direito público
em questão poderá demandar regressivamente o direto causador do dano.
Ademais, quanto ao derramamento de óleo no litoral brasileiro em tela, é digna
de menção a Nota Pública dos Servidores Ambientais Federais (integrantes do
Ministério do Meio Ambiente – MMA; do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA; do Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade – ICMBio; e do Serviço Florestal Brasileiro – SFB),28
datada de 14 de novembro de 2019, ao apontar o quanto medidas que deveriam ser
realizadas pelo Poder Executivo Federal não o foram ou ocorreram tardiamente,
fatores que agravaram os impactos sobre os povos das águas.
O documento, entre outros aspectos, salienta:
Especificamente sobre as ações dos órgãos ambientais federais, destaca-se que áreas
técnicas relevantes não foram envolvidas assim que foi enviado o ofício a Marinha
do Brasil, que poderiam apoiar prontamente no assessoramento das ações do
Grupo de Acompanhamento e Avaliação (GAA), a exemplo do INPE (Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais), do Centro Nacional de Monitoramento de Infor-
mação Ambiental (Cenima) e da equipe do Ibama responsável pelo Licenciamento
Ambiental das atividades de petróleo e gás, que tem larga experiência nessa área.
Apenas recentemente parte dessas equipes passaram a contribuir nas ações para
contenção e mitigação do desastre. Desde 2016, o Cenima executa monitoramento
rotineiro de vazamentos de óleo. Com quadro técnico qualificado, poderia ter
apoiado desde o início a investigação da origem do vazamento, de forma articulada
com outras instituições, como o INPE e as universidades, evitando inúmeros aler-
tas falsos publicados pela imprensa que contribuíram negativamente na gestão do
evento e na informação à população. [...]
O monitoramento aéreo ficou restrito a 10 km de distância da costa, enquanto os
indícios do vazamento já indicavam que teria acontecido em alto mar e, portanto,
para uma busca mais efetiva da origem do vazamento, seria recomendado que ela
acontecesse numa faixa de 200 a 800 km da costa. A opção por monitoramento
próximo à costa limitou-se a identificar a chegada do óleo na praia, medida não
eficaz para apoiar as ações locais e para reduzir os danos ambientais. [...]
O MMA ao negligenciar o seu papel articulador com estados e municípios, tam-
bém deixa de acionar outras áreas técnicas do Sisnama, que já desenvolvem ações
cooperadas, a exemplo do Plano Nacional de Prevenção, Preparação e Resposta
Rápida a Emergências Ambientais com Produtos Químicos Perigosos (P2R2) e
do Gerenciamento Costeiro. [....]
Essas questões poderiam ser resolvidas ou minimizadas se o comando de inci-
dente estivesse trabalhando de forma integrada e transparente em relação às
informações que estão sendo produzidas pelas diversas frentes. Ao contrário,
em virtude da condução reativa e centralizadora por parte do MMA, que não
acionou plenamente o PNC, é estarrecedor que só recentemente as áreas técnicas
do governo federal (Ibama, ICMbio e Inpe) estejam contribuindo nas ações para

28 Disponível em: http://www.ascemanacional.org.br/wp-content/uploads/2019/11/ASCEMA-Nota


-derrame-de-oleo_14nov2019-2.pdf. Acesso em: 20 nov. 2019.

652
contenção e mitigação do desastre. Alertamos a sociedade sobre o desmonte das
políticas e das Instituições ambientais, que tem levado à morosidade da resposta
do Estado brasileiro, com alto custo à sociedade. Ainda que as instituições estejam
tentando desempenhar o seu papel, a situação do GAA e do comitê de suporte é de
informalidade perante os órgãos de controle, uma vez que não há ato normativo
restituindo esses colegiados. Relembramos que o Brasil dispõe de arcabouço legal
e de instituições qualificadas que poderiam ter tratado com clareza. [...].
E para além de erros e acertos, ações e omissões, fato é que os danos existenciais
aos povos das águas precisam ser adequadamente valorados e reparados.

6 ∙ OS DANOS EXISTENCIAIS CAUSADOS


AOS POVOS DAS ÁGUAS E SUA VALORAÇÃO
O modo de viver dessas comunidades tradicionais é alvo de impactos sem
dimensão: riscos à saúde, à vida, à subsistência e à própria razão de existir.
A constitucionalização do direito privado, remarque-se, fez com que o patrimô-
nio (então elemento central do direito civil) cedesse espaço à pessoa, em seus mais
variados aspectos, o que ocorre também na responsabilidade civil.29 Por isso, dou-
trinadores pátrios entendem (adequadamente) que restringir a reparação dos danos
somente aos materiais e morais não é suficiente ante o eixo reitor constitucional da
dignidade da pessoa humana, que merece proteção em sua mais ampla abrangência
(ALMEIDA NETO, 2005, p. 19).
O dano existencial, originado no direito italiano, como categoria independente,
decorre do reconhecimento da necessidade de se protegerem atividades realizado-
ras da pessoa, o seu bem-estar, a sua felicidade. É uma formulação de certa forma
assemelhada ao que os franceses denominam de “danos à vida de relação” (préjudice
d’agremént) e ao que o direito inglês, o direito australiano e o direito estadunidense
chamam como loss of amenities of life, loss of enjoyment of life ou hedonic damages
(SOARES, 2009, p. 14). O dano existencial, que diz respeito aos projetos de vida das
pessoas e a suas relações, é uma lesão de natureza extrapatrimonial que atinge dire-
tamente a condição de existência do lesado e a forma com a qual este se comunica
com o mundo, de modo que a vítima tem sua rotina alterada e suas metas de vida
obstaculizadas (SILVA; MODESTO, 2017, p. 341).

29 A respeito da superação da valoração do patrimônio para a pessoa e sua dignidade, vale selar que
a Constituição, no Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, art. 5º, V, sedimentou que “é
assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material,
moral ou à imagem”, bem como dispôs, logo à frente, no inciso X, que: “são invioláveis a intimidade,
a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação”. Estava consagrada a independência da indenização
do dano imaterial. Ato contínuo, foi editada a Súmula 37 do STJ, que dispôs: “São cumuláveis as
indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”, e, finalmente, o atual
Código Civil, em vigor desde o dia 11.1.2003, que consolidou a questão, assim dispondo no art. 186:
“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar
dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, cuja norma foi integrada com
a do art. 927: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado
a repará-lo”. As principais objeções da doutrina contrária à indenização pelos danos morais,
portanto, foram removidas (incerteza do direito violado, dificuldade em descobrir a existência do
dano moral, impossibilidade de rigorosa avaliação em dinheiro etc.).

653
E quanto ao aspecto relacional humano, cumpre enfatizar que a importância e
a precedência das relações que mantemos com os outros, conosco mesmos e com
a natureza sedimenta o quanto a cultura não funda nada e como podemos atuar
de forma reguladora ou emancipadora numa interação de idas e vindas de reações
culturais (individuais e coletivas) e das redes relacionais que as provocam, no dizer
de Herrera Flores (2005a, p. 36-37 e 113).
É pertinente compreender e valorar, e aqui vem à luz Serge Moscovici (2007), a
representação social que os povos das águas têm de suas próprias vidas: as relações
que mantêm consigo próprios, com os demais e com a natureza. Como leciona o
psicólogo francês, percebemos o mundo (e as relações que mantemos com ele e nele)
a partir do ambiente em que vivemos. Fazemos isso processando informações (sobre
fenômenos, pessoas, animais, plantas, acontecimentos etc.) e daí resulta a nossa com-
preensão sobre os outros, sobre nós mesmos e sobre tudo que há ou parece haver.
A representação social, no dizer do autor (MOSCOVICI, 2007, p. 30-42),
vê o ser humano enquanto ele tenta conhecer e compreender as coisas que o cir-
cundam e tenta resolver os enigmas centrais de seu próprio nascimento, de sua
existência corporal, suas humilhações, do céu que está acima dele, dos estados da
mente de seus vizinhos e dos poderes que o dominam: enigmas que o ocupam e
preocupam desde o berço e dos quais ele nunca para de falar.
E, quando na citada Carta dos Povos das Águas à Sociedade, essas comunidades
tradicionais gravam expressões como “o cheiro dos rios, dos mangues e do mar é o
cheiro de nossos corpos”, “a política de desenvolvimento custa a natureza, custa as
comunidades tradicionais, custa a vida” e “não é de hoje que denunciamos o nosso
extermínio, Povos e Comunidades Tradicionais que fazemos da natureza o lugar
onde nascemos, crescemos e produzimos a vida”, estão falando de suas próprias
existências, de seus projetos de vida e de suas formas de se relacionar consigo pró-
prias, com os demais e com a natureza.
As comunidades tradicionais precisam ser reparadas adequadamente pelos danos
existenciais que lhes foram causados, e isso, como delineado, há de se dar a partir da
constitucionalização do instituto da responsabilidade civil, com ênfase na dignidade da
pessoa humana e na solidariedade, valores angulares do texto constitucional a irradiar
efeitos por todo o ordenamento jurídico e em busca de resultados concretos e efetivos.
Impende consignar que, para a correta valoração desses danos existenciais,
novos paradigmas jurisprudenciais hão de ser estabelecidos.
É válido rememorar que, antes desse grave desastre socioambiental por derrama-
mento de óleo no litoral nordestino (2019), outros casos emblemáticos ocorreram no
Brasil, fixando-se indenizações em demandas judiciais que chegaram até o Superior
Tribunal de Justiça.30 O leading case (o caso principal), como bem salientado por

30 Como o rompimento do duto que ligava a Refinaria Duque de Caxias e o Terminal Aquaviário na
Baía de Guanabara (janeiro de 2000). O episódio despejou 1,3 milhão de litros de petróleo. Um ano
depois (fevereiro de 2001) foi a vez do rompimento do duto Olapa, entre o Terminal Aquaviário de
Paranaguá e a Refinaria Presidente Getúlio Vargas, em Araucária-PR: despejo de 57 mil litros de
petróleo cru e proibição da pesca por seis meses. Em ambas as ocorrências, “milhares de pescadores
artesanais sentiram-se compelidos a alterar permanentemente seu tradicional modus vivendi,
exercido ao longo de muitas gerações, sendo obrigados a enfrentar as incertezas de mudanças
forçadas e a angústia de adaptações frustrantes”. Em 2007, o rompimento de barragem, nos limites

654
Fernando Garcia (2015, p. 64), porém, se deu em Sergipe – também foi objeto de
decisão do STJ –,31 e refere-se a acidente ambiental ocorrido em 2008 (recurso repre-
sentativo de controvérsia geradora de processo multitudinário). À época, em razão
do vazamento de amônia no rio Sergipe, foi afetado o volume de pescado e a renda
dos pescadores da região, restando fixada a quantia de R$ 3.000,00 (três mil reais) a
título de compensação por danos morais.
O contrassenso reside no fato de que comumente o próprio STJ fixa e/ou man-
tém indenização em R$ 10.000,00 (dez mil reais) por danos morais presumidos,
quando o consumidor tem seu nome inscrito indevidamente em órgãos de proteção
ao crédito (AgRg, no Agravo de Instrumento 1.379.761/SP); de igual modo, dá-se
indenização por danos morais presumidos, na quantia de cerca de R$ 15.000,00
(quinze mil reais) ao consumidor que tem seu voo atrasado e deixa de usufruir
passagem adquirida em razão de overbooking (AgRg no agravo de Instrumento
1.410.645/BA). Isso em observância a parâmetros de razoabilidade e proporcionali-
dade, como explicitado nos arestos respectivos.
A respeito, vale a observação no sentido de que “esta prática jurisdicional representa
inobservância de quaisquer parâmetros de lógica jurisdicional relativa à indenização
por dano extrapatrimonial”, tratando-se “de um modo de justiça que não atende aos
jurisdicionados de forma equânime, no trato com situações que vêm se tornando cada
vez mais presentes na sociedade de risco em que vivemos” (GARCIA, 2015, p. 120).
A dignidade dos povos das águas merece melhor destino.

7 ∙ CONCLUSÃO
É imperioso, por conseguinte, assegurar que os povos das águas sejam repara-
dos, de forma integral, pelos danos existenciais que lhes foram causados pelo desas-
tre socioambiental de derramamento de óleo na costa nordestina, com o devido
reconhecimento das relações singulares e diferenciadas que cada qual mantém
consigo próprio, com os demais integrantes da comunidade e com a natureza. Se
garantir efetividade aos seus direitos fundamentais é algo necessário que vem de
longa data, mais ainda em virtude da pandemia global e dos desafios que surgem e
surgirão no mundo pós-pandêmico.
Mostra-se vital, também, a construção de novo paradigma de quantificação dos
valores a serem objeto de reparação civil por danos existenciais, rumo a quantias mais
condizentes com os primados da dignidade da pessoa humana e da solidariedade
social em situações que envolvam comunidades tradicionais, como os povos das águas.
A despeito do debate sobre a possibilidade de se ter evitado os danos socioam-
bientais, ou os minorado significativamente, caso fossem adotadas medidas

dos municípios de Miraí-MG e Muriaé-MG, espalhou 2 bilhões de litros de lama tóxica pela região,
obrigando milhares de moradores a abandonarem seus lares e a vida que levavam. O Superior
Tribunal de Justiça apreciou este último caso e manteve a indenização em R$ 5 mil reais em favor
de cada uma das pessoas atingidas.
31 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.354.536/SE. Maria Gomes de Oliveira vs.
Petróleo Brasileiro S/A – Petrobras. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. Diário de Justiça da União,
Brasília, DF, 5 maio 2014.

655
protetivas das áreas ecologicamente sensíveis e vulneráveis, com emprego das
melhores e mais avançadas técnicas, bem como de se identificar se o Plano Nacional
de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição
Nacional foi acionado e implementado no tempo e na forma adequados, utilizan-
do-se dos instrumentos técnico-científicos e colegiados nele previstos, fato é que a
reparação aos danos existenciais deve ocorrer, seja a cargo do poluidor direto (caso
identificado), seja com a responsabilização do Poder Público. Afinal, os entes públi-
cos detêm responsabilidade retrospectiva e prospectiva, guardando integral relação
com o marco constitucional de garantia dos processos ecológicos essenciais, que
são, além de essenciais, vitais e existenciais para os povos das águas.
Por fim, surge como algo a ser posto na pauta do dia o debate sobre as razões
pelas quais a nação brasileira, passados 25 anos e apesar de sua intensa atividade de
extração do petróleo, não aderiu aos fundos internacionais instituídos para indeni-
zação por danos causados pela contaminação de hidrocarbonetos. E, igualmente, a
possível (e indispensável) instituição de um fundo nacional, e respectivas fontes de
recursos, que possibilite a adoção de medidas de prevenção e reparação aos povos
das águas em eventuais incidentes futuros envolvendo as atividades petrolíferas,
bem assim a adequada e ágil proteção de áreas sensíveis e do meio ambiente, para
o bem das presentes e futuras gerações.
São temas a serem debatidos e que podem impulsionar reflexões importantes, inclu-
sive numa visão sistêmica da vida, como lecionam Fritjof Capra e Pier Luigi Luisi (2014,
p. 439-440), para um futuro (o mais próximo possível) de alfabetização ecológica:
Nas próximas décadas, a sobrevivência da humanidade dependerá de nossa alfa-
betização ecológica – nossa capacidade para compreender os princípios básicos
da ecologia e de viver em conformidade com eles. Isso significa que a ecoalfabe-
tização precisa se tornar uma habilidade de importância crucial para políticos,
líderes empresariais e profissionais em todas as esferas, e deveria ser a parte
mais importante da educação em todos os níveis – desde as escolas primárias
e secundárias até as faculdades, as universidades, e os cursos de especialização
e treinamentos de profissionais. Precisamos ensinar aos nossos filhos, nossos
alunos e nossos líderes empresariais e políticos fatos fundamentais da vida – por
exemplo, o de que o resíduo de uma espécie é alimento de outra espécie; o de que
a matéria circula continuamente ao longo da teia da vida; o de que a energia que
põe em movimento os ciclos ecológicos provém do Sol; o de que a diversidade
assegura a flexibilidade; o de que a vida, desde o seu início, há mais de 3 bilhões
de anos, não toma conta do planeta pelo combate, mas pelo trabalho em rede.
As atividades econômicas, por mais bens e serviços que produzam, em especial
aquelas de alto potencial poluidor, como a petrolífera, devem ser continuamente
objeto de reflexão de modo a se garantir qualidade de vida para o hoje e o amanhã.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais
livres”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pastos: terras tradicionalmente
ocupadas. 2. ed. Manaus: PGSCA/UFAM, 2008.
ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa
humana. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 6, n. 24, out./dez. 2005.

656
ÁVILA, Flávia de. Direito e direitos humanos: abordagem histórico-filosófica e conceitual.
Curitiba: Appris, 2014.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios
jurídicos. 13. ed., revista e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2012.
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O
triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo,
Rio de Janeiro, v. 240, p. 1-42, jan. 2015. ISSN 2238-5177. Disponível em: http://
bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618. Acesso em: 16 fev. 2016.
doi: http://dx.doi.org/10.12660/rda.v240.2005.43618.
BEBBER, Júlio César. Danos extrapatrimoniais (estético, biológico e existencial): breves
considerações. Revista LTr, São Paulo, v. 73, n. 1, jan. 2009.
BONATTO, Fernanda Muraro. A quantificação da indenização por dano
extrapatrimonial: análise dos critérios jurisprudenciais na determinação do quantum
debeatur. Direito & Justiça (Porto Alegre. Impresso), v. 37, p. 136-154, 2011.
CABALLERO, Francisco Sierra. Ciudadanía y espacio público. Una lectura crítica de
los derechos humanos como cultura del cambio social. In: MARTÍNEZ, Joaquín Recio
(coord.). Reinventemos los derechos humanos. Sevilha: Atrapasueños Editorial, 2008.
CAPRA, Fritjof; LUISI, Pier Luigi. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e
suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. Tradução de Mayra Teruya
Eichemberg e Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2014.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 15. ed. São
Paulo: Saraiva, 2016.
FROTA, Hidemberg Alves da. Noções fundamentais sobre o dano existencial. Revista
Ciência Jurídica, Belo Horizonte, v. 24, 2010.
GARCIA, Fernando Murilo Costa. Dano ambiental existencial: reflexos do dano aos
pescadores artesanais. Curitiba: Juruá, 2015.
HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos
Roberto Diogo Garcia; Antonio Henrique Graciano Suxberger; Jefferson Aparecido
Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009a.
HERRERA FLORES, Joaquín. 16 premissas de uma teoría crítica del derecho. In:
PRONER, Carol; CORREAS, Oscar (coord.). Teoria crítica dos direitos humanos: in
memoriam Joaquín Herrera Flores. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
HERRERA FLORES, Joaquín. El proceso cultural: materiales para la creatividad humana.
Sevilha: Aconcagua, 2005a.
HERRERA FLORES, Joaquín. Hacia una visión compleja de los derechos humanos. In:
HERRERA FLORES, Joaquín (ed.). El vuelo de anteo: derechos humanos y crítica de la
razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000.
HERRERA FLORES, Joaquín. Los derechos humanos como productos culturales: Crítica
del humanismo abstracto. Madrid: Catarata, 2005b.
HERRERA FLORES, Joaquín. O nome do riso: breve tratado sobre arte e dignidade.
Tradução de Nilo Kaway Junior. Porto Alegre: Movimento; Florianópolis: CESUSC;
Florianópolis: Bernúcia, 2007.

657
HERRERA FLORES, Joaquín. Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos humanos
como produtos culturais. Tradução de Luciana Caplan, Carlos Roberto Diogo Garcia,
Antonio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson Aparecido Dias. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009b.
LOPES, Carlos Ferreira; MILANELLI, João Carlos C.; POFFO, Iris Regina F. Ambientes
costeiros contaminados por óleo: procedimentos de limpeza – manual de orientação. São
Paulo: Secretaria de Estado do Meio Ambiente, 2007. 120 p.
MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos
vulneráveis. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
MILANELLI, João Carlos Carvalho. Efeitos do petróleo e da limpeza por jateamento
em um costão rochoso da Praia de Barequeçaba, São Sebastião, SP. 1994. Dissertação
(Mestrado em Oceanografia). 2 volumes. Instituto Oceanográfico da Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1994.
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015.
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Tradução
de Pedrinho A. Guareschi. 5. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2007.
MUÑOZ, Alejandro Anaya. La construcción internacional de los derechos humanos:
el papel de las relaciones internacionales. Revista de Relaciones Internacionales de la
UNAM, México D. F., n. 134, maio-ago. 2019.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 15. ed.,
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015.
RUAS, Celiana Diehl. Constitucionalização do Direito Privado: impactos dogmáticos
e efeitos sobre a responsabilidade civil. Revista Seminário Internacional de Demandas
Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea, Santa Cruz do Sul, UNISC,
2015. Disponível em: https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/
view/13061. Acesso em: 30 nov. 2019.
SALGADO, Carmen M. Rodríguez. Los derechos humanos en América Latina: por qué,
para qué y para quién. Revista de Psicología desde el Caribe, Barranquilla, Colômbia, n.
8, jul./dez. 2001.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção intercultural dos direitos humanos.
In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (coords.). Igualdade,
diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral
dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007.
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental e mínimo
existencial (ecológico?): algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Estado
socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006.
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos
filtros da reparação à diluição dos danos. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2012.

658
SILVA, Adriano Prysthon da. Pesca artesanal brasileira: aspectos conceituais, históricos,
institucionais e prospectivos. Palmas: Embrapa Pesca e Aquicultura, 2014.
SILVA, Ana Carla Oliveira da; MODESTO, Jéssica Andrade. Responsabilidade civil por
dano existencial: uma análise do seu reconhecimento do Brasil. II Enpejud – Encontro
de Pesquisas Judiciárias da Escola Superior da Magistratura do Estado de Alagoas, 2017.
Disponível em: http://enpejud.tjal.jus.br/index.php/exmpteste01/article/view/240/114.
Acesso em: 1º dez. 2019.
SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais
nas relações entre particulares. 1. ed., 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.
SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2009.
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no
direito. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015.

659
A EQUIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Reis Friede1

Sumário: 1 Introdução. 2 Equidade. 3 A natureza jurídica da equidade. 4 A equidade no


ordenamento jurídico brasileiro. 5 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
A palavra equidade, etimologicamente, advém de aequitas, aequitatis, que, por
sua vez, deriva de aequus, que significa justo, sendo correntemente empregada para
denotar igualdade e justiça. Segundo o pensamento de Aristóteles, é o meio através
do qual se pretende corrigir a lei, aplicando-a com justiça ao caso concreto. Com
efeito, para o filósofo grego, equidade seria a justa aplicação da norma jurídica
ao caso a ser decidido, de modo a abrandar o teor normativo. Conforme assevera
Nader (2017, p. 114), Aristóteles “traçou, com precisão, o conceito de equidade,
considerando-a ‘uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua uni-
versalidade’ e comparou-a com a ‘régua de Lesbos’ que, por ser de chumbo, se
ajustava às diferentes superfícies”.
No mesmo sentido, leciona Reale (2002, p. 123) que Aristóteles, em sua Ética a
Nicômaco, concebia a “equidade como uma forma de justiça”, ou melhor, “a justiça mesma
em um de seus momentos, no momento decisivo de sua aplicação ao caso concreto”.
A equidade para Aristóteles é a justiça do caso concreto, enquanto adaptada,
“ajustada” à particularidade de cada fato ocorrente. Enquanto a justiça em si é
medida abstrata, suscetível de aplicação a todas as hipóteses a que se refere, a
equidade já é a justiça no seu dinâmico ajustamento ao caso.
Foi por esse motivo que Aristóteles a comparava à “régua de Lesbos”. Esta
expressão é de grande precisão. A régua de Lesbos era a régua especial de que se
serviam os operários para medir certos blocos de granito, por ser feita de metal
flexível que lhe permitia ajustar-se às irregularidades do objeto. A justiça é uma
proporção genérica e abstrata, ao passo que a equidade é específica e concreta,
como a “régua de Lesbos” flexível, que não mede apenas aquilo que é normal,
mas, também, as variações e curvaturas inevitáveis de experiência humana.
(REALE, 2002, p. 123).
Por sua vez, Mascaro (2015, p. 19) recorda que, à época do Direito Romano, o
Direito era concebido como a “arte do bem e da equidade” (jus est ars boni et aequi),

1 Desembargador Federal. Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/2021).


Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestre e
Doutor em Direito.

661
ou seja, “os romanos entendiam a sua atividade muito mais como arte do que como
técnica, ao contrário da estrutura moderna do direito”.
Dizia-se no passado, por isso, que seria preciso que o bom jurista fosse um artista
do Direito, para bem entender cada situação concreta, sua justeza, a natureza
das coisas ali envolvidas. A norma era importante para alcançar essa justeza,
mas não apenas ela. A equidade, que é a arte de entender cada caso concreto, é
superior, para Aristóteles, à própria lei. (MASCARO, 2015, p. 25).

2 ∙ EQUIDADE
Equidade, na dicção de Venosa (2006, p. 144-146), “é forma de manifestação de
justiça que tem o condão de atenuar, amenizar, dignificar a regra jurídica”, conceito
que se conecta ao do próprio Direito, uma vez que, “enquanto o Direito regula a
sociedade com normas gerais do justo e do equitativo, a equidade procura adap-
tar essas normas a um caso concreto”, consistindo tal figura, em última análise,
“na busca constante e permanente do julgador da melhor interpretação legal e da
melhor decisão para o caso concreto”.
São frequentes as situações com que se defronta o julgador ao ter que aplicar uma
lei, oportunidade em que percebe que, no caso concreto, afasta-se da noção do
que é justo. O trabalho de aplicação do Direito por equidade é de precipuamente
aparar as arestas na aplicação da lei dura e crua, para que uma injustiça não
seja cometida. A equidade é um trabalho de abrandamento da norma jurídica
no caso concreto. A equidade flexibiliza a aplicação da lei. Por vezes, o próprio
legislador, no bojo da norma, a ela se refere.
A equidade não é apenas um abrandamento da norma em caso específico, mas
também deve ser um sentimento que brote do âmago do julgador. Seu con-
ceito é filosófico e, como tal, dá margem, evidentemente, a várias concepções.
(VENOSA, 2006, p. 145).
Silveira, citado por Diniz (2000, p. 464), entende que o termo equidade admite
três significações: a) sentido latíssimo – equidade enquanto “princípio universal
da ordem normativa, a razão prática extensível a toda conduta humana, configu-
rando-se como uma suprema regra de justiça a que os homens devem obedecer”;
b) sentido lato – “equidade confundir-se-ia com a ideia de justiça absoluta ou ideal,
com os princípios de direito, com a ideia do direito, com o direito natural em todas
as suas significações”; c) sentido estrito – equidade efetivamente aplicada na “inter-
pretação, integração, individualização judiciária, adaptação, etc.”.
Quanto às espécies, Gusmão (2000, p. 72-73) classifica a equidade em: a) equi-
dade secundum legem, consistente na justa concretização do preceito legal, espé-
cie dotada de grande valor na aplicação do Direito; b) equidade contra legem, ou
seja, aquela que conflita com o Direito Positivo, cabendo ressaltar que, diante de
tal situação, e consoante os ensinamentos de Gusmão, “o Direito Positivo há de
prevalecer sobre a equidade, por assim exigir um de seus fins, qual seja, a segurança
jurídica”; e c) equidade praeter legem, cuja aplicação ocorre diante da existência
da denominada lacuna, isto é, quando o magistrado, não encontrando nos princí-
pios gerais de Direito o princípio aplicável ao caso novo, socorre-se da espécie de
equidade em questão, correspondente ao ideal histórico de justiça, ainda que não
presente no Direito Positivo.

662
3 ∙ A NATUREZA JURÍDICA DA EQUIDADE
Em relação à natureza jurídica, os estudiosos divergem quanto à posição da
figura em exame no ordenamento jurídico.
Para alguns, a equidade configura inconteste fonte do Direito. No caso, a palavra
fonte, proveniente do latim fontis, quer dizer nascente de água ou manancial de água
que brota do solo. Assim, o vocábulo fonte, semanticamente, significa origem, sur-
gimento, princípio de algo. Por conseguinte, a expressão fontes do Direito, atribuída
à época de Cícero (VENOSA, 2006, p. 119), traduz a origem do Direito, seu nasce-
douro, isto é, os modos de formação e revelação das normas jurídicas. Reale (2002,
p. 140), conceituando o termo fonte, assevera: “Por ‘fonte do direito’ designamos os
processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legí-
tima força obrigatória, isto é, com vigência e eficácia no contexto de uma estrutura
normativa” (REALE, 2002, p. 140).
Diniz adverte que a expressão fonte do Direito, por ser empregada metaforica-
mente, apresenta mais de um sentido, concepção semântica assim explicada pela
ilustre autora:
“Fonte jurídica” seria a origem primária do direito, confundindo-se com o pro-
blema da gênese do direito. Trata-se da fonte real ou material do direito, ou seja,
dos fatores reais que condicionaram o aparecimento de norma jurídica. Kelsen
admite esse sentido do vocábulo, apesar de não o considerar científico-jurí-
dico, quando com esse termo se designam todas as representações que, de fato,
influenciam a função criadora e aplicadora do direito, como: princípios morais
e políticos, teorias jurídicas, pareceres de especialistas. Fontes essas que, no seu
entender, se distinguem das do direito positivo, porque estas são juridicamente
vinculantes e aquelas não o serão enquanto uma norma jurídica positiva não as
tornar vinculantes, caso em que elas assumem o caráter de uma norma jurídica
superior que determina a produção de uma norma jurídica inferior. Emprega-se
também o termo “fonte do direito” como equivalente ao fundamento de vali-
dade da ordem jurídica. A teoria kelseniana, por postular a pureza metódica
da ciência jurídica, libera-a da análise de aspectos fáticos, teleológicos, morais
ou políticos que, porventura, estejam ligados ao direito. Portanto, só as normas
são suscetíveis, segundo Kelsen, de indagação teórico-científica. Com isso essa
doutrina designa como “fonte” o fundamento de validade jurídico-positiva da
norma jurídica, confundindo a problemática das fontes jurídicas com a noção de
validez das normas de direito. (DINIZ, 2000, p. 278).
De acordo com Ramos (2014, p. 600), a expressão “fontes do Direito é, antes de
tudo, polissêmica”, traduzindo, por um lado, “os modos pelos quais as normas jurí-
dicas são produzidas (fontes formais) e, por outro, os eventos sociais que geram as
necessidades a serem reguladas pelas normas jurídicas (fontes materiais)”, afirma-
ção que indica que o tema vertente é objeto de múltiplas classificações doutrinárias,
o que explica as diversas perspectivas apresentadas pelos estudiosos do assunto,
sendo certo afirmar que inexiste uniformidade nos modos de expressá-las.
Reale (2002, p. 139-140, grifo nosso), discordando da distinção levada a efeito
por um segmento doutrinário, entre os quais se encontram Gusmão e Diniz, asse-
vera que a “antiga distinção entre fonte formal e fonte material do Direito tem sido
fonte de grandes equívocos nos domínios da Ciência Jurídica”, razão pela qual,

663
segundo o mestre Reale, a expressão fonte do Direito deveria ser empregada apenas
para designar os “processos de produção de normas jurídicas”, raciocínio que se
fundamenta nos seguintes argumentos:
Tais processos pressupõem sempre uma estrutura de poder, desde o poder capaz
de assegurar por si mesmo o adimplemento das normas por ele emanadas (como
é o caso do poder estatal no processo legislativo) até outras formas subordinadas
de poder que estabelecem, de maneira objetiva, relações que permitem seja pre-
tendida a garantia de execução outorgada pelo Estado.
Vejamos o que se tem designado com a expressão fonte material, para demons-
trarmos a inconveniência desse termo.
Verificando-se, por exemplo, como aparece uma lei, podemos indagar de suas
razões últimas, dos motivos lógicos ou morais que guiaram o legislador em sua
tarefa. Estamos, pois, diante de uma pesquisa de natureza filosófica, que diz res-
peito às condições lógicas e éticas do fenômeno jurídico.
Ao lado dessa questão, que se liga ao próprio problema da justiça, da liberdade,
da segurança e da ordem, encontramos outros problemas que já possuem um
aspecto sociológico. Indagamos das causas não remotas, mas imediatas da lei.
Podemos perguntar, por exemplo, se uma lei é devida a fatores econômicos per-
manentes ou transitórios, ou se ela é decorrência de exigências demográficas,
geográficas, raciais, higiênicas e assim por diante. O problema que gira em torno
das causas imediatas ou próximas do fenômeno jurídico pertence ao âmbito da
Sociologia e, a rigor, da Sociologia Jurídica.
Como se vê, o que se costuma indicar com a expressão “fonte material” não é
outra coisa senão o estudo filosófico ou sociológico dos motivos éticos ou dos
fatos econômicos que condicionam o aparecimento e as transformações das
regras de direito. Fácil é perceber que se trata do problema do fundamento ético
ou do fundamento social das normas jurídicas, situando-se, por conseguinte,
fora do campo da Ciência do Direito. Melhor é, por conseguinte, que se dê ao
termo fonte do direito uma única acepção, circunscrita ao campo do Direito.
(REALE, 2002, p. 139-140, grifo nosso).
Como se vê, as fontes do Direito, na visão realeana, estão relacionadas às formas
de expressão do poder. Assim, diz Reale,
quatro são as fontes de Direito, porque quatro são as formas de poder: o pro-
cesso legislativo, expressão do Poder Legislativo; a jurisdição, que corresponde ao
Poder Judiciário; os usos e costumes jurídicos, que exprimem o poder social, ou
seja, o poder decisório anônimo do povo; e, finalmente, a fonte negocial, expres-
são do poder negocial ou da autonomia da vontade.
[...]
Para que se possa falar, por conseguinte, de “fonte de direito”, isto é, de fonte de
regras obrigatórias, dotadas de vigência e de eficácia, é preciso que haja um poder
capaz de especificar o conteúdo do devido, para exigir o seu cumprimento, não
sendo indispensável que ele mesmo aplique a sanção penal. É por isso que se diz
que o problema das fontes do direito se confunde com o das formas de produção
de regras de direito vigentes e eficazes, podendo ser elas genéricas ou não.
Por ora, podemos fixar esta noção essencial: toda fonte de direito implica uma
estrutura normativa de poder, pois a gênese de qualquer regra de direito (nomo-
gênese jurídica) – tal como pensamos ter demonstrado em nossos estudos de
Filosofia do Direito – só ocorre em virtude da interferência de um centro de poder,

664
o qual, diante de um complexo de fatos e valores, opta por dada solução normativa
com características de objetividade. (REALE, 2002, p. 141, grifos nossos).
Não obstante a mencionada posição de Reale, observa-se, de um modo geral,
uma divisão das fontes do Direito em: a) fontes materiais e b) fontes formais, jus-
tamente o que faz Gusmão (2000, p. 101, grifos nossos), que define as primeiras
como sendo “os dados extraídos da realidade social, das tradições e dos ideais domi-
nantes, com os quais o legislador, resolvendo questões que dele exigem solução, dá
conteúdo ou matéria às regras jurídicas”. Por outro lado, fontes formais, na ótica do
aludido autor, “são os meios ou formas pelos quais o Direito Positivo se apresenta na
História ou pode ser conhecido”.
Venosa (2006, p. 119), no mesmo diapasão classificatório, admite a existência
de fontes materiais (“que têm o Estado como poder emanador”), além das fontes
formais, estas subdivididas em fontes formais primárias/diretas/imediatas (a lei e
o costume jurídico) e fontes formais secundárias/indiretas/mediatas (a doutrina e a
jurisprudência), reconhecendo, porém, outras figuras, tal como a equidade.
Entendem-se por fontes diretas, imediatas ou primárias aquelas que, de per si,
têm potencialidade suficiente para gerar a regra jurídica. As fontes mediatas ou
secundárias são as que, não possuindo o mesmo vigor criativo das primeiras,
esclarecem, contudo, os espíritos dos aplicadores da lei e servem de precioso
substrato, auxílio ou adminículo para a aplicação global do Direito. Desse modo,
estabelecendo-se ao lado da lei e do costume, estes como fontes primárias, a dou-
trina, a jurisprudência, a analogia, os princípios gerais de direito e a equidade
postam-se como fontes secundárias, segundo essa visão, sem que estritamente
todos estes últimos institutos possam considerar-se fontes típicas. Advirta-se,
porém, que não há unanimidade na doutrina quanto a essa classificação.
(VENOSA, 2006, p. 121, grifo nosso).
Não obstante o entendimento anterior – equidade enquanto fonte do Direito –,
há quem conceba a figura em epígrafe apenas como um critério a ser considerado
pelo juiz quando da aplicação da lei, mormente diante do comando inscrito no art.
5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n. 4.657/1942),
segundo o qual, “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se
dirige e às exigências do bem comum”.
Algumas normas há que se ajustam inteiramente ao caso prático, sem a necessi-
dade de qualquer adaptação; outras há, porém, que se revelam rigorosas para o
caso específico. Nesse momento, então, surge o papel da equidade, que é adaptar
a norma jurídica geral e abstrata às condições do caso concreto. Equidade é a
justiça do caso particular. [...]. Não é, via de regra, fonte criadora do Direito,
apenas sábio critério que desenvolve o espírito das normas jurídicas, projetan-
do-o nos casos concretos. Icílio Vanni precisou, com clareza e objetividade, que
a equidade “não é mais do que um modo particular de aplicar a norma jurídica
aos casos concretos; um critério de aplicação, pelo qual se leva em conta o que há
de particular em cada relação”. (NADER, 2017, p. 114).
Ainda no que se refere à natureza jurídica, há quem defenda (Venosa, por
exemplo) que a equidade, embora não prevista expressamente no art. 4º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro, constitui-se – juntamente com a ana-
logia, os costumes e os princípios gerais de Direito – em um autêntico mecanismo
de integração de lacunas.

665
A propósito, cumpre mencionar que o termo lacuna, para Diniz (2002, p. 70),
pode ser conceituado como sendo “faltas ou falhas de conteúdos de regulamentação
jurídico-positiva para determinadas situações fáticas, que admitem sua remoção
por uma decisão judicial jurídico-integradora”. Ainda segundo a mesma autora
(DINIZ, 2001, p. 10), constitui-se a lacuna em um estado incompleto do sistema,
defeito que necessita ser colmatado, do que resulta a importante missão a ser desem-
penhada pelo referido art. 4º, regra que concebe ao “magistrado, impedido de fur-
tar-se a uma decisão, a possibilidade de integrar ou preencher a lacuna, de forma
que possa chegar a uma solução adequada”.
Tal providência, que a doutrina convencionou chamar de integração normativa,
caracteriza, em última análise, o
desenvolvimento aberto do Direito, dirigido metodicamente, em que o aplicador
adquire consciência da modificação que as normas experimentam, continua-
mente, ao serem aplicadas às mais diversas relações da vida, chegando a apresen-
tar, na ordem normativa, omissões concernentes a uma nova exigência da vida.
Com efeito, e diante da proibição do non liquet, encontra-se o magistrado abso-
lutamente obrigado (constitucional e legalmente) a decidir o caso que lhe foi subme-
tido, devendo, para tanto, recorrer aos instrumentos postos à sua disposição, entre
os quais se inclui, segundo uma parcela da doutrina, a equidade.
Como já citado, o art. 4o da nossa Lei de Introdução é princípio norteador ao
intérprete: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analo-
gia, os costumes e os princípios gerais de Direito”. Ao estudarmos as fontes, ficou
acentuado que o costume é fonte subsidiária entre nós e, ao lado da analogia, dos
princípios gerais e também da equidade constituem formas de raciocínio para a
aplicação e integração do Direito. Não se pode afirmar que sempre serão encon-
trados costumes ou será sempre possível a analogia para a aplicação no caso con-
creto. Daí por que, como foi enfatizado, a importância do conceito e da extensão
dos princípios gerais de Direito e da equidade nesse processo. (VENOSA, 2006,
p. 178, grifo nosso).
Comungando do mesmo entendimento, Ferraz Jr. (2015, p. 267) assevera que “o juízo
por equidade, na falta de norma positiva, é o recurso a uma espécie de intuição, no con-
creto, das exigências da justiça enquanto igualdade proporcional”, devendo o intérprete,
portanto, sempre “buscar uma racionalização dessa intuição, mediante uma análise das
considerações práticas dos efeitos presumíveis das soluções encontradas, o que exige juí-
zos empíricos e de valor, os quais aparecem fundidos na expressão juízo por equidade”.
Em todo caso, o juízo equitativo, de um lado, apesar das considerações dos efeitos
presumíveis, é sempre um juízo jungido ao particular, sem preocupações generali-
zantes. Não gera, assim, uma compulsão para que outros casos, semelhantes, sejam
interpretados e decididos do mesmo modo. Por isso, não é, propriamente, fonte
do Direito, mas meio de integração. De outro lado, porém, pela consideração dos
efeitos presumíveis, também não aparece como arbitrário, mas sim representando
o sentido do que seja jurídico no contexto social em que se aplica.
Essa oscilação entre o subjetivo e o objetivo explica os cuidados que tem a doutrina
em circunscrever a equidade e seu uso. Na falta de norma, a equidade integra o
ordenamento sumariamente, assentando-se nas circunstâncias do caso concreto.
Seu contraponto, porém, mesmo quando não parece claramente institucionalizado,
é a existência de algum consenso. (FERRAZ JR., 2015, p. 267-268, grifo nosso).

666
Reale (2002, p. 300-301) também idealiza a equidade como um quarto elemento
de integração, juntamente com a analogia, os costumes e os princípios gerais de
Direito, e através dela “o juiz ou o administrador realizam a integração da lei para
atingir a plenitude da vida”. Mascaro (2015, p. 156), na mesma linha de raciocínio,
arrola a equidade entre os instrumentos de resolução das lacunas, aduzindo que,
“além dos princípios gerais do Direito, os costumes e a equidade costumam ser ins-
trumentos institucionais de resolução de lacunas”. Diniz, adotando a mesma inteli-
gência supletiva, igualmente insere a equidade entre os instrumentos de integração.
Em caso de lacuna, o juiz deverá constatar, na própria legislação, se há seme-
lhança entre fatos diferentes, fazendo juízo de valor de que esta semelhança se
sobrepõe às diferenças. E se não encontrar casos análogos, deve recorrer ao cos-
tume e ao princípio geral de direito; não podendo contar com essas alternativas,
é-lhe permitido, ainda, socorrer-se da equidade. [...].
Do que foi exposto infere-se a inegável função da equidade de suplementar a lei,
ante as possíveis lacunas. No nosso entender, a equidade é elemento de integra-
ção, pois consiste, uma vez esgotados os mecanismos previstos no art. 4º da Lei
de Introdução ao Código Civil [atual Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro], em restituir à norma, a que acaso falte, por imprecisão de seu texto
ou por imprevisão de certa circunstância fática, a exata avaliação da situação a
que esta corresponde, a flexibilidade necessária à sua aplicação, afastando por
imposição do fim social da própria norma o risco de convertê-la num instru-
mento iníquo. (DINIZ, 2000, p. 463 e 467, grifo nosso).
De qualquer forma, consoante os ensinamentos de Diniz (2000, p. 470), cumpre
registrar que o magistrado, quando do emprego da equidade, não poderá se afastar
das balizas estabelecidas pelo legislador, devendo considerar, fundamentalmente,
que a equidade configura uma autorização para “apreciar, segundo a lógica do
razoável, interesses e fatos não determinados a priori pelo legislador”, de modo a
estabelecer “uma norma individual para o caso concreto ou singular, sempre con-
siderando as pautas axiológicas contidas no sistema jurídico, ou seja, relacionando
sempre os subsistemas normativos, valorativos e fáticos”.

4 ∙ A EQUIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO


O ordenamento jurídico pátrio, em diversas passagens, refere-se (direta ou indi-
retamente) à equidade. Por exemplo, o revogado Decreto-Lei n. 1.608/1939 (Código
de Processo Civil de 1939) preceituava que o juiz, quando autorizado a decidir por
equidade, deveria aplicar “a norma que estabeleceria si fosse legislador” (art. 114).
A Lei Processual Civil de 1973 (Lei n. 5.869/1973), igualmente revogada, dispunha
que o juiz só decidiria por equidade nos casos previstos em lei (art. 127); ademais,
no seu art. 20, § 4º, o Codex de 1973 estabelecia que “nas causas de pequeno valor
e nas de valor inestimável, bem como naquelas em que não houver condenação ou
for vencida a Fazenda Pública, os honorários serão fixados consoante apreciarão
equitativa do juiz”, dispositivo legal que teve larga aplicação jurisprudencial.
Agravo regimental em ação rescisória. Recurso interposto pela União em
ação originária por meio de petição assinada isoladamente por Procurador da
Fazenda Nacional. Irregularidade processual sanada com a ratificação do ato
praticado pelo Advogado-Geral da União. Fixação de honorários advocatícios.

667
Com a denegação do mandado de segurança originário em sede de ação resci-
sória, tem-se uma decisão declaratória negativa. Não havendo condenação, os
honorários advocatícios devem ser fixados com base no art. 20, § 4º, do Código
de Processo Civil, que determina ao magistrado apreciar com equidade a fixação
dos referidos honorários. Agravo regimental a que se nega provimento.2
O aludido art. 127 do CPC de 1973 foi praticamente reproduzido pelo art. 140 do
Estatuto Processual Civil de 2015 (Lei n. 13.105/2015), segundo o qual o magistrado
não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento
jurídico (caput), somente podendo decidir por equidade nos casos previstos em lei
(parágrafo único), dispositivo legal que, evidentemente, objetiva impedir que o jul-
gador se transforme em legislador.
Além desses, o revogado Código Civil de 1916 (Lei n. 3.071/1916), no art. 1.040,
inciso IV, permitia que os árbitros, no denominado juízo arbitral, julgassem por
equidade. De sua parte, o Código Civil de 2002 (Lei n. 10.406/2002, grifos nossos)
também trata da equidade em alguns de seus dispositivos, a saber:
a. Art. 413: “A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação
principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for mani-
festamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio”.
b. Art. 478: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de
uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para
a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá
o devedor pedir a resolução do contrato”; e, nos termos do art. 479, “a resolução
poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condi-
ções do contrato”.
c. Art. 738, caput: “A pessoa transportada deve sujeitar-se às normas estabelecidas
pelo transportador, constantes no bilhete ou afixadas à vista dos usuários, abs-
tendo-se de quaisquer atos que causem incômodo ou prejuízo aos passageiros,
danifiquem o veículo, ou dificultem ou impeçam a execução normal do serviço”.
Em seguida, no parágrafo único do mesmo artigo, afirma-se que “se o prejuízo
sofrido pela pessoa transportada for atribuível à transgressão de normas e
instruções regulamentares, o juiz reduzirá equitativamente a indenização, na
medida em que a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano”.
d. Art. 928, caput: “O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas
por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de
meios suficientes”, sendo certo que “a indenização prevista neste artigo, que
deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pes-
soas que dele dependem” (art. 928, parágrafo único).
e. Art. 944, caput: “A indenização mede-se pela extensão do dano”. Havendo “exces-
siva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir,
equitativamente, a indenização” (art. 944, parágrafo único). Nota-se, portanto,
que a Lei Civil autoriza que o magistrado, constatando haver desproporção entre
a gravidade da culpa e a extensão do dano, reduza a indenização, tudo com base

2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Agravo Regimental em Ação Rescisória n.
1.520/PE. Relator: Min. Dias Toffoli, julgamento em 1º de agosto de 2011.

668
em um juízo de equidade. Assim, por exemplo, em caso de culpa leve e dano
grave, pode o juiz aplicar a presente regra, de modo a reduzir a indenização.
f. Art. 953, caput: “A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na
reparação do dano que delas resulte ao ofendido”, afirmando, outrossim, que
“se o ofendido não puder provar prejuízo material, caberá ao juiz fixar, equitati-
vamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso”
(art. 953, parágrafo único).
O Código Tributário Nacional (Lei n. 5.172/1966), no seu art. 108, caput, incisos
I a IV, preceitua que, “na ausência de disposição expressa, a autoridade competente
para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada
[...]”, a analogia, os princípios gerais de direito tributário, os princípios gerais de
direito público e a equidade, sendo que o emprego desta “não poderá resultar na
dispensa do pagamento de tributo devido” (art. 108, § 2º).
Ademais, preceitua o art. 6º da Lei n. 9.099/1995 (Lei dos Juizados Cíveis e
Criminais) que “o juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equâ-
nime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum”. Cite-se, ainda, o
art. 25 da mesma Lei, segundo o qual “o árbitro conduzirá o processo com os mesmos
critérios do juiz, na forma dos arts. 5º e 6º desta Lei, podendo decidir por equidade”.

5 ∙ CONCLUSÃO
Como visto, a doutrina diverge quanto à natureza jurídica da equidade. Para
alguns, trata-se de uma fonte do Direito. Outros autores a concebem apenas como
um critério a ser considerado pelo juiz quando da aplicação da lei, mormente diante
do comando inscrito no art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro,
segundo o qual, “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige
e às exigências do bem comum”. Do mesmo modo, há quem defenda que a equidade,
embora não prevista expressamente no art. 4º da Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro, constitui-se – juntamente com a analogia, os costumes e os princí-
pios gerais de Direito – em um autêntico mecanismo de integração de lacunas.
De qualquer forma, independentemente da natureza jurídica que lhe seja atri-
buída, o magistrado, quando do emprego da equidade, não poderá se afastar das
balizas estabelecidas pelo legislador, devendo considerar, fundamentalmente, que a
equidade configura uma autorização para “apreciar, segundo a lógica do razoável,
interesses e fatos não determinados a priori pelo legislador”, de modo a estabelecer
“uma norma individual para o caso concreto ou singular, sempre considerando as
pautas axiológicas contidas no sistema jurídico, ou seja, relacionando sempre os
subsistemas normativos, valorativos e fáticos” (DINIZ, 2000, p. 470).

REFERÊNCIAS
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2000.
DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. 8. ed.
São Paulo: Saraiva, 2001.

669
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,
dominação. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 27. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2000.
MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao estudo do direito. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 39. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
RAMOS, André de Carvalho. Pluralidade das fontes e o novo direito internacional
privado. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 109,
jan./dez. 2014.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito: primeiras linhas. 2. ed. São
Paulo: Atlas, 2006.

670
LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DO EMPREGADO
EM ACORDOS INDIVIDUAIS RESTRITIVOS A DIREITOS
FUNDAMENTAIS NO AMBIENTE DE TRABALHO
Ricardo José das Mercês Carneiro1

Sumário: 1 Introdução. 2 Sobre a liberdade de exercício de um direito fundamental. 3 A


distinção entre renúncia e não exercício de um direito fundamental. 4 Breve reflexão sobre
a inalienabilidade dos direitos fundamentais. 5 Possibilidade de o particular consentir na
autorrestrição ao exercício de faculdades dos direitos fundamentais. 6 Critérios para a
validade do ato jurídico através do qual se consente na limitação do exercício de faculdades
dos direitos fundamentais. 7 Algumas conclusões sobre o consentimento do empregado
em limitações ao exercício de direitos fundamentais na relação de trabalho.

1 ∙ INTRODUÇÃO
A recente reforma trabalhista e as medidas provisórias, especialmente as que foram
editadas no curso da pandemia de Covid-19, reforçam uma intenção nada disfarçada
de redução do papel dos sindicatos como anteparo de proteção aos trabalhadores.
Para ficar em apenas alguns exemplos, desde então o marco normativo autoriza ao
empregado ajustar individualmente o banco de horas (art. 59, § 5º, da CLT) e a jornada
de doze por trinta e seis (art. 59-A da CLT); ele também poderá firmar sozinho o ajuste
de contas da terminação do trabalho, independentemente do tempo de serviço na
empresa (revogação do § 1º do art. 477 da CLT). E, mais recentemente, já no contexto
do estado de calamidade pública e emergência de saúde pública, a Lei n. 14.020/2020,
resultado da conversão, com alguns acréscimos, da MP n. 936/2020, autoriza que
empregadores e empregados, por acordo individual, possam firmar a redução salarial e
de jornada e (ou) a suspensão do contrato de trabalho, ainda que, quanto a esta última,
seja forçoso salientar que foi inserida na norma disposição sobre a possibilidade de um
acordo coletivo ou uma convenção coletiva serem firmados posteriormente a acordos
individuais já vigentes, prevalecendo as regras resultantes da negociação coletiva, após
a sua celebração, desde que sejam mais favoráveis ao trabalhador.
E tudo isto, vale dizer, em um contexto em que o trabalho paulatinamente tem
o seu ambiente deslocado para o âmbito das residências de cada trabalhador, onde,
na maioria das vezes, é desenvolvido o teletrabalho, construindo um verdadeiro
amálgama entre o espaço pessoal e o de trabalho, entre a zona de retiro e segredo
do direito à intimidade e as facetas que se pretende apresentar ao mundo externo.

1 Procurador do Trabalho. Coordenador de Ensino da Escola Superior do Ministério Público da


União (ESMPU). Professor Assistente I e integrante do NDE da Universidade Tiradentes (UNIT).
Doutor em Direito pela Universidade de Sevilha (revalidado pela UFPE).

671
Esse movimento que tenta emprestar protagonismo aos atores diretamente rela-
cionados à cena trabalhista, empregado e empregador, não raro vem sendo contem-
plado também em demandas deduzidas perante o Poder Judiciário,2 nas quais, até
muito antes da pandemia, não raras vezes, o pactuado no contrato tem prevalecido
sobre o catálogo de direitos fundamentais do trabalhador, específicos e inespecífi-
cos, sob o fundamento de respeito às regras de equilíbrio contratual e de segurança
jurídica, entre outros fundamentos generalizantes.
Nesse contexto, até em razão de um certo esvaziamento conjuntural do papel
dos sindicatos e dos seus instrumentos de autonomia privada coletiva, raros são
os estudos que se dispõem a enfrentar os limites da ação restritiva aos direitos do
trabalhador nessa quadra, em particular no que diz respeito àqueles alçados à con-
dição de direitos fundamentais específicos e inespecíficos, porém exercitáveis no
curso da relação de trabalho, cujo ambiente cada vez mais se confunde com a esfera
privada. E, nesse sentido, é que se torna tão importante aferir qual o limite negocial
do trabalhador para o exercício de sua autonomia privada.

2 ∙ SOBRE A LIBERDADE DE EXERCÍCIO


DE UM DIREITO FUNDAMENTAL
Uma questão preliminar à análise da validade dos limites impostos pelo con-
trato de trabalho aos direitos fundamentais consiste em verificar se a liberdade do
seu titular envolve também a possibilidade de ele renunciar ao seu direito ou se essa
autonomia se limita ao poder do titular de exercer o seu direito conforme as suas
preferências, sem que haja de fato renúncia ao direito fundamental.
E tal se justifica na medida em que, sob o argumento de ampliar a proteção
aos indivíduos nas relações mantidas com os detentores de poder privado, passa-se
muitas vezes ao largo quanto a levar em consideração o seu direito de autodeter-
minação. As principais consequências dessa concepção tendem a ser a assunção de
todos os direitos fundamentais como deveres e a adoção de uma teoria geral que
vise a proteger o indivíduo dele próprio.
Se é certo que há múltiplas situações nas quais o indivíduo não possui autono-
mia real, sujeitando-se aos diversos poderes de fato existentes, também é verdade
que ainda há inúmeras situações em que o indivíduo busca exercer a sua autonomia
de forma consciente, com o objetivo de realizar o seu projeto de vida.
Hesse (1995, p. 61), a respeito do tema, expõe que a proteção aos direitos fun-
damentais nas relações privadas deve-se dar com prudência, já que a função dos
direitos fundamentais é garantir um mínimo de liberdade individual e não redu-
zir as possibilidades de liberdade. Nessa medida, a incidência direta dos direitos

2 Ainda que não seja um perfeito exemplo do que se busca mencionar em matéria de restrição a
direitos dos trabalhadores em razão de acordos individuais chancelada pelo Poder Judiciário,
na medida em que o exame se deu em um contexto que pode ser tido como jurisprudência de
crise, fruto de uma situação de crise de saúde pública e excepcionalidade financeira, a expressão
“segurança jurídica” foi algumas vezes citada na apreciação pelo Pleno no julgamento da medida
cautelar proposta na ADI 6363, em que foi vencedora, por 7 votos a 3, a interpretação de que seria
aparentemente constitucional (tratava-se de uma medida cautelar) o conteúdo dos artigos 11 e 12
da MP 936, que abordam os acordos individuais restritivos de direitos trabalhistas.

672
fundamentais nas relações privadas deverá ser graduada para não sacrificar o prin-
cípio da liberdade contratual, que compreende a liberdade de contratar ou não, a de
eleger o outro contratante e a de determinar o conteúdo do contrato.
O desafio, portanto, reside em determinar quando deve o indivíduo ser prote-
gido e quando deve prevalecer a sua autonomia, inclusive ao se tratar de ato volitivo
unilateral capaz de limitar certos direitos fundamentais.
Ainda que a questão da renúncia a direitos fundamentais exista tanto no âmbito
das relações entre Estado e indivíduo quanto no âmbito das relações entre particula-
res, ao objeto deste estudo interessa particularmente esta última hipótese, em que
há uma gama variada de transações econômicas entre particulares nas quais se pode
negociar em torno dos direitos fundamentais em prol de benefícios (econômicos ou
não), aspecto que se converteu, ao longo do tempo, em um dos principais argumen-
tos de defesa na esfera privada para a admissão do consentimento do obreiro na
restrição ao exercício dos seus direitos fundamentais no seio empresarial.
A maior dificuldade consiste, entretanto, na prática, em equilibrar a maior
proteção aos indivíduos, oriunda da aplicação dos direitos fundamentais, com a
autonomia privada deste, isto é, proporcionar o máximo de proteção e o máximo
de autonomia, já que o respeito a esta é essencial para que a incidência dos direitos
fundamentais nas relações privadas não se torne um instrumento excessivamente
protetor, que imponha uma determinada visão de mundo e suponha serem os par-
ticulares incapazes de agir e contratar autonomamente.

3 ∙ A DISTINÇÃO ENTRE RENÚNCIA


E NÃO EXERCÍCIO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL
No exame a respeito da possibilidade de o titular de um direito fundamental
pactuar a limitação do seu exercício, uma primeira diferença que precisa restar clara
é a que existe entre renúncia e falta de exercício de um direito.
Forçoso reconhecer que ambos os conceitos expressam a ideia de que o indivíduo,
diante de uma posição jurídica subjetiva, tutelada por uma norma de direito funda-
mental, consente em enfraquecer essa posição em face do Estado, de entidades públicas
ou de particulares. Contudo, a despeito deste elemento comum, há diferenças entre os
dois institutos. A renúncia ocorre quando o titular do direito se vincula juridicamente
a não invocar o direito fundamental perante outros. É um compromisso que o titular
assume de não se valer de certa posição jurídica. Por sua vez, o não exercício do direito
fundamental ocorre quando o indivíduo opta por não exercer uma posição jurídica
que o ordenamento lhe permite. Exercer ou não exercer está dentro da esfera mais
ampla considerada como exercício do direito fundamental. Isso quer dizer que o fato
de não agir conforme a posição jurídica lhe assegura não significa que o particular
abdicou desse direito, mas apenas que o está exercendo conforme a sua vontade. A
diferença entre o não exercício e a renúncia é que, nesta última, o particular se obriga a
não exercer, enquanto no não exercício não há qualquer vinculação.3

3 Há casos que são meros exercícios negativos dos direitos fundamentais, mas que são confundidos
com a renúncia, como, por exemplo, quando o policial entra na casa de alguém a seu pedido para
verificar se nela há assaltantes.

673
Sendo pacífica na doutrina e na jurisprudência a aceitação da possibilidade de
não exercício de um direito fundamental, é exatamente sobre a obrigação assu-
mida de não exercer o direito em uma de suas faculdades ou em sua totalidade que
repousa a cizânia que será detalhada no tópico seguinte.

4 ∙ BREVE REFLEXÃO SOBRE A


INALIENABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A ideia da inalienabilidade dos direitos fundamentais se relaciona à própria
origem desses direitos. Na formulação de Locke acerca da origem da sociedade,
os direitos humanos seriam inatos e inalienáveis, o que impediria os indivíduos
de renunciarem a eles em favor do Estado (apud ZIPPELIUS, 1997, p. 436). Afinal,
ninguém poderia transferir para outro um poder maior que aquele que tem sobre si
mesmo. No mesmo sentido, também as clássicas declarações de direitos considera-
ram a indisponibilidade dos direitos fundamentais, sob o argumento de eles serem
pré-estatais e inatos. Há até mesmo Constituições modernas, como a alemã (artigo
1º),4 que se referem ao caráter inalienável desses direitos.
A doutrina mais contemporânea que sustenta a irrenunciabilidade dos direitos
fundamentais não argumenta em termos jusnaturalistas, todavia se apoia na con-
cepção da dupla dimensão dos direitos fundamentais, segundo a qual os direitos
fundamentais constituem, além de direitos subjetivos, também elementos de uma
ordem objetiva, sob uma perspectiva funcional. A partir dessa ideia de que os direi-
tos fundamentais possuem uma dimensão objetiva e desempenham uma função
institucional, há autores que entendem serem eles indisponíveis, pois não estariam
à livre disposição do indivíduo, a exemplo do direito ao voto secreto e dos demais
direitos que envolvam participação política.
A inalienabilidade dos direitos fundamentais também é sustentada por parte da
doutrina sob o argumento da dignidade da pessoa humana. Dentro dessa ótica, a
toda pessoa corresponde uma dignidade, a qual ele não pode renunciar. Não seriam
permitidos atos de renúncia e de disposição de direitos que ferissem a dignidade
humana, sendo o consentimento do titular incapaz de validar o ato.
A impossibilidade de haver renúncia do titular aos direitos fundamentais é defen-
dida, entre outros, por Ferrajoli (2001, p. 32) e reforçada a partir da divisão dogmática
que o autor realiza entre direitos patrimoniais e direitos fundamentais. Para ele, esses
direitos possuem contrastes tão radicais que jamais poderiam ser acolhidos dentro
de uma mesma classificação. Enquanto os direitos fundamentais seriam direitos uni-
versais, reconhecidos a todas as pessoas de forma igualitária, os direitos patrimoniais
seriam direitos singulares, no sentido de que pertencem a cada um de forma diversa.
Além disso, seriam os direitos fundamentais inalienáveis, indisponíveis, invioláveis e

4 “Artigo 1º. Dignidade da pessoa humana – Direitos humanos – Vinculação jurídica dos direitos
fundamentais. (1) A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação
de todo o poder público. (2) O povo alemão reconhece, por isto, os direitos invioláveis e inalienáveis
da pessoa humana como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo.
(3) Os direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem direitos diretamente aplicáveis e
vinculam os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário”. Disponível em: http://www.brasil.diplo.
de/contentblob/3254212/Daten/1330556/ConstituicaoPortugues_PDF.pdf. Acesso em: set. 2020.

674
personalíssimos, enquanto os direitos patrimoniais, como o direito à propriedade e o
direito de crédito, seriam, por sua natureza, passíveis de disposição.
Ferrajoli entende que é a impossibilidade de alienação que transforma os direi-
tos em direitos fundamentais. Isto é, o que caracterizaria os direitos fundamentais
seria exatamente o fato de não serem disponíveis por seus titulares. Textualmente,
registra que
a vida, a liberdade pessoal, o direito de voto são fundamentais não tanto porque
correspondem a valores ou interesses vitais, mas porque são universais e indis-
poníveis. É algo tão sério que ali onde se permitisse a sua disposição – por exem-
plo, admitindo a escravidão ou de qualquer a alienação das liberdades, da vida,
do voto – esses se rebaixariam a direitos patrimoniais. (FERRAJOLI, 2001, p. 32).
Dessa forma, na visão do autor, os direitos fundamentais não constituem limi-
tes apenas aos poderes públicos, mas à própria autonomia privada, uma vez que
o consentimento e a vontade não são suficientes para possibilitar a alienação da
própria vida ou da liberdade. Nessa linha de pensamento, a inalienabilidade dos
direitos fundamentais é um custo que se deve suportar, ainda que se considere esse
limite excessivamente protecionista. Do contrário, se se admitisse essa alienação,
imediatamente cessaria a universalidade desses direitos, predominaria a lei do mais
forte e haveria a regressão ao estado de natureza.
Porém esta visão não é despida de firme crítica, como se vê adiante.

5 ∙ POSSIBILIDADE DE O PARTICULAR CONSENTIR NA


AUTORRESTRIÇÃO AO EXERCÍCIO DE FACULDADES
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Ainda que a absoluta irrenunciabilidade dos direitos fundamentais seja um
“mantra” reiterado em julgados e em diversos estudos, não é uma ideia que possa
ser aceita sem que seja antecedida de alguma reflexão.
Inicialmente, é importante ressaltar que a consideração da dimensão objetiva
dos direitos fundamentais não implica logicamente a conclusão acerca da impos-
sibilidade de sua renúncia. Isso se dá porque, não obstante o seu caráter objetivo,
os direitos fundamentais continuam a ser direitos subjetivos e, portanto, quando
o particular renuncia a um direito, o faz somente em relação a sua concreta con-
formação enquanto garantia subjetiva, não prejudicando o âmbito objetivo do
direito fundamental. Além disso, a liberdade, que está intrinsecamente relacionada
ao sistema de direitos fundamentais, não é liberdade para atingir fins públicos ou
objetivos estatais, mas simplesmente liberdade (para todos os fins).
Também é passível de crítica a noção de indisponibilidade absoluta sob o fun-
damento de proteção à dignidade humana, uma vez que, em relação a esta, pode-se
argumentar também de forma contrária, já que a irrenunciabilidade de todos os
direitos fundamentais significaria a eliminação da capacidade de autodeterminação
do indivíduo e, por conseguinte, ameaçaria a própria dignidade humana.
No Estado Democrático de Direito, o custo da ausência de autonomia do indiví-
duo é muito alto para ser tolerado, sem que haja sequer a busca pela conciliação entre o
máximo de liberdade com o máximo de proteção à pessoa. O não reconhecimento de
que os direitos fundamentais se relacionam de forma estrita com a autodeterminação

675
dos indivíduos poderia sacrificar o ideário democrático, bem como o próprio sis-
tema de direitos fundamentais, cuja função primordial é a de proteger as liberdades,
tanto privadas como públicas. Tem-se, nesse diapasão, como muito criticável a tese
de Ferrajoli, segundo a qual o elemento caracterizador dos direitos fundamentais é
a sua inalienabilidade, pois isso implicaria a conclusão de que não haveria nenhuma
situação em que seria possível a disposição desses direitos ou a renúncia a eles ou
a faculdades que lhes sejam inerentes. No que diz respeito à aplicação dos direitos
fundamentais às relações privadas, é essencial que a proteção propiciada por esses
direitos não elimine a autonomia privada dos indivíduos, sob o risco de o Estado
assumir o papel paternalista de proteger os indivíduos contra eles próprios.
De fato, a nosso juízo, o problema da renúncia a direitos fundamentais é por
demais complexo para ser resolvido a partir das clássicas teorias jusnaturalistas
que sustentam que os direitos fundamentais, por serem inatos, não são passíveis
de disposição por parte de seu titular. Além disso, em razão da grande abrangência
do tema, que envolve desde a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre
Estado e indivíduo e, nas relações privadas, os limites do poder de autodetermi-
nação do indivíduo, até a existência de desigualdades fáticas que impedem a real
manifestação da autonomia dos indivíduos, é fundamental que não se busquem
soluções simplificadas generalizantes, que não levem em consideração distintas
situações fáticas e as peculiaridades dos diferentes direitos fundamentais.
Isso posto, diante da profundidade da questão, entende-se que a saída para a
equação, em que se busca o máximo de proteção jurídica por meio dos direitos
fundamentais e, ao mesmo tempo, o máximo de autodeterminação individual,
pode-se dar a partir da distinção entre a titularidade e a capacidade de exercício
desses direitos. Partindo dessa premissa, seria viável admitir como legítimo o con-
sentimento do particular em negócio jurídico que implicasse restrição ao exercício
de certas faculdades dos direitos fundamentais e considerar-se ilegítima a renúncia
à sua titularidade.
Segundo Novais (1996, p. 282), a maioria dos estudos vai de encontro a essa
distinção, por entender que um direito fundamental, sem a possibilidade de seu
exercício, seria o mesmo que um direito sem conteúdo essencial. Contrariamente a
esse argumento, o autor afirma que, quanto à possibilidade dogmática de distinção
entre titularidade e capacidade de exercício de direitos fundamentais, uma coisa
é ter a titularidade de uma posição jurídica de direito fundamental e outra, abso-
lutamente distinta, é ter a capacidade de concretamente invocar essa posição no
exercício concreto das faculdades ou poderes que a integram.
A consideração acerca da possibilidade de o particular consentir na limitação ao
exercício dos seus direitos fundamentais é essencial para que se retire desses direitos
o seu caráter paternalista-protetor, responsável por tornar todos os direitos funda-
mentais análogos a deveres. Se for verdade que no Estado Democrático de Direito há
direitos obrigatórios, como é o direito e o dever de educar os filhos, por exemplo, seria
inviável e indesejável estender essa obrigatoriedade a todos os direitos fundamentais.
Ademais, um argumento interessante a favor da possibilidade de consentimento
que autorize a limitação ao exercício de faculdades inerentes aos direitos funda-
mentais é o seguinte: se o não exercício dos direitos fundamentais pelo seu titular

676
é admissível, por que não seria legítimo o compromisso assumido pelo titular de
que não exercerá o seu direito ou uma parte das faculdades que lhe são inerentes? 5
A afirmação de que há um âmbito de liberdade relacionado aos direitos fun-
damentais pode ser baseada na ideia de que a titularidade de uma posição jurídica
de direito fundamental envolve o poder de disposição sobre as possibilidades de
ação decorrentes dessa posição, principalmente no que diz respeito à decisão sobre
“se”, “quando” e “como” se dará o exercício fático do direito. Sob essa ótica, resta
claro que o consentimento na restrição ao exercício de uma liberdade é também um
modo de o titular do direito fundamental exercê-la.
A concepção de Novais, segundo a qual é possível renunciar ao exercício de cer-
tos direitos fundamentais, como bem salienta Mendes (2006, p. 130), assemelha-se,
em boa medida, à concepção de outros autores, que refutam a hipótese de renúncia,
mas aceitam a ideia de que o titular de um direito fundamental tem um espaço
de liberdade para exercer o seu direito. É o caso de Canotilho (2003, p. 107), que,
embora rejeite expressamente a noção de renúncia, afirma que, no que concerne
aos direitos, às liberdades e às garantias encontra-se a ideia de que “os mesmos se
caracterizam pela sua densidade subjetiva autônoma, no sentido de que cabe ao seu
titular a tomada de decisões fundamentais nesse domínio”. Deve-se ressaltar que o
reconhecimento de que o titular do direito fundamental tem autonomia para exer-
cê-lo conforme os seus planos de vida e a sua vontade decorre da própria ideia de
dignidade humana e do princípio da autodeterminação, que integram e moldam o
cerne de todos e de cada um dos direitos fundamentais. Ao mesmo tempo, encontra
neste princípio o seu próprio limite.
Nesse sentido, a afirmação sobre a possibilidade de o particular consentir na limi-
tação ao exercício de direitos fundamentais exige que se estabeleça em que situações
este consentimento será possível, bem como os pressupostos para sua validade.

6 ∙ CRITÉRIOS PARA A VALIDADE DO ATO JURÍDICO ATRAVÉS


DO QUAL SE CONSENTE NA LIMITAÇÃO DO EXERCÍCIO DE
FACULDADES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Admitida neste estudo a possibilidade de consentir o obreiro na intromissão do
empregador no exercício de um direito fundamental no marco de uma relação de
trabalho (em relação ao exercício desse direito ou de algumas de suas faculdades
durante o liame laboral), desde que observados certos pressupostos para a validade
do ato restritivo, torna-se necessário analisar a viabilidade concreta de que esta seja
perpetrada em relação a um direito fundamental do trabalhador na empresa.
Inicialmente, é primordial que a declaração de vontade dirigida a produzir o
enfraquecimento de uma posição jurídica seja dada pelo próprio titular do direito

5 Exemplo claro de consentimento na restrição ao exercício de direitos fundamentais se dá quando


um homem ou uma mulher entram para o seminário, renunciando ao direito de constituir família.
Da mesma forma, é pacificamente válido o consentimento não viciado daquele que, aprovado em
concurso público para os cargos de juiz ou de membro do Ministério Público, consente expressamente,
durante o período em que está no cargo, em não exercer uma série de atividades vedadas aos titulares
daqueles cargos, em manifesta restrição ao direito de livre exercício de qualquer trabalho.

677
fundamental, sendo inadmissível que outros o façam pelo titular. Andrade (2001, p.
320), a esse respeito, consigna que
as condições de validade jurídica da disposição limitadora do exercício de direi-
tos, liberdades e garantias respeitam essencialmente à garantia de autenticidade
e da genuinidade da manifestação de vontade do titular que justifica a restrição
ou a ofensa; a renúncia, o acordo, o consentimento autorizante ou aquiescente só
podem admitir-se como fundamento legítimo de uma auto-limitação dos direitos
fundamentais se forem o produto inequívoco de uma vontade livre e esclarecida.
Além disso, e esse talvez seja o pressuposto de existência mais importante, a res-
trição ao direito somente ocorrerá se a declaração tiver um caráter eminentemente
voluntário. Isso significa que não serão considerados existentes os atos de disposi-
ção que decorrerem de declaração feita de forma não consciente, não voluntária ou
sob coerção, pois é necessário que o indivíduo tenha a possibilidade real de escolher
entre diversas situações. Por isso, tornou-se usual na doutrina a consideração de
que dificilmente poder-se-ia considerar legítimo o consentimento em restrições ao
exercício dos direitos fundamentais emitido em situações de desigualdade fática ou
de desigualdade de poder social.
Devem ser consideradas, conforme escólio de Andrade (2001, p. 323), as dife-
rentes situações relacionais em que se pode produzir a autolimitação, visto que a
diferença mais relevante é a que atende à existência, ou não, de uma relação de
sujeição ou de dependência do titular do direito autolimitado perante outrem, que
pretende ou acorda a limitação ou dela se beneficia. Assim, sob esta visão, já não
estarão sujeitos às mesmas condições e limites o acordo ou o consentimento fir-
mado, respectivamente, entre cidadão e autoridade dotada de poder jurídico ou de
fato, ou numa relação entre iguais.
Nessa linha de pensamento, Ubillos (1997, p. 233) aponta como um dos critérios
que podem ajudar na análise da licitude do consentimento na restrição ao exercí-
cio de direitos fundamentais no caso concreto o fato de que a eficácia dos direitos
fundamentais diante de particulares será mais intensa quando se esteja diante de
relações jurídicas assimétricas, não igualitárias, ou seja, o grau de autonomia real
das partes pode ser um critério válido e útil para resolver os conflitos. De modo
que, quanto menor seja a liberdade da parte débil da relação jurídica, maior será a
necessidade de proteção.
Com a menor liberdade real de autodeterminação, maior será a justificativa para
a incidência do direito fundamental. Porém, mesmo nesses casos, não estaríamos
diante de uma incidência absoluta, persistindo a necessidade de ponderar os inte-
resses colidentes. Assim, a título de exemplo, na seara laboral, a operatividade dos
direitos fundamentais implica limitação ao poder de direção do empregador, que
constitui parte inerente da liberdade de empresa com a qual deverá ser ponderado
o direito do trabalhador.
Nesse mesmo diapasão, dando ênfase às assimetrias das relações jurídicas, são
os ensinamentos de Prata (1982, p. 138), que indica que haveria a nulidade dos negó-
cios (jurídicos) contrários aos direitos fundamentais sempre que uma das partes
se encontre em situação de poder relativamente à outra parte, de modo que isso
lhe permita estabelecer unilateralmente os termos do regulamento negocial a que a

678
outra parte tenha de se submeter, visto que neste caso patente restaria a ausência de
igualdade real entre os sujeitos contraentes.
Não é distinta a posição de Canaris (2003, p. 71-73). Para ele, o argumento de que
a proteção aos direitos fundamentais não se compatibiliza com a concepção liberal
dos direitos fundamentais não convence porque a vinculação contratual, embora
tenha o seu fundamento primário na autonomia privada das partes, somente
adquire vigência no plano jurídico-positivo mediante um “reconhecimento” por
parte do Estado e da ordem jurídica, sendo, além disso, garantida por estes com
sanções, que vão até a execução forçada. E, ainda, acrescenta que uma segunda
incumbência de proteção consiste em assegurar, tão amplamente quanto possível,
que o ato de autonomia privada pelo qual se restringe um direito fundamental se
baseia não apenas sob o aspecto formal, mas também materialmente, ou seja, no
plano fático, numa decisão livre da parte contratual afetada. Em seguida, conclui
que a autonomia privada não pode ser entendida apenas em um plano formal, mas
antes também materialmente e que, portanto, uma concreta parte pode necessitar
de proteção diante da vinculação a um contrato que lhe é desvantajoso, na medida
em que, por ocasião da sua conclusão, estivesse consideravelmente afetada a sua
possibilidade fática de autodeterminação no exercício da autonomia privada.
O segundo limite que a doutrina impõe para genericamente tratar do exercício
da autonomia privada (para restrição de direitos fundamentais) se alicerça no argu-
mento de que a eficácia vinculante será mais intensa quando seja a própria digni-
dade da pessoa humana que esteja sendo afetada, por se tratar de valor intangível e
indisponível que deve ser preservado diante de qualquer agressão.
Ademais, devem ser consideradas as diferenças entre os vários tipos de direitos
fundamentais, já que o problema da disponibilidade em geral dos direitos funda-
mentais se põe especialmente no que respeita aos direitos sobre bens pessoais, cujo
conteúdo, âmbito ou grau de proteção constitucional são estabelecidos primor-
dialmente em virtude da vontade do titular (inviolabilidade do domicílio, intimi-
dade, imagem, propriedade). Nesse ponto, seu tratamento há de ser diferenciado
em relação àqueles outros direitos relativos a bens que, ainda que sendo pessoais,
constituem simultaneamente valores comunitários ou a estes estão intimamente
associados, a exemplo dos direitos à vida, à cidadania e ao sigilo de voto.
Por fim, ressalta-se, ainda, que há de se admitir a livre revogabilidade da limi-
tação voluntariamente assumida em relação aos direitos fundamentais, de forma
que, em se tratando de limitação válida, esta há de ser adstrita a um lapso temporal.
Assim, o consentimento na restrição ao exercício do direito fundamental deverá
ser sempre limitado no tempo, uma vez que não se admite que o titular do direito
fundamental renuncie a certa posição jurídica protegida constitucionalmente por
tempo indeterminado. Do contrário, estar-se-ia admitindo a renúncia à própria
titularidade do direito e não apenas a possibilidade de se externar o consentimento
para restrição ao seu exercício durante a relação de trabalho.
O Tribunal Constitucional espanhol, em sua jurisprudência sobre o assunto,
tem admitido a possibilidade de renúncia voluntária ao exercício de um direito
fundamental por um tempo determinado (STC 11/1981, de 8 de abril). Na sentença,
tratando de cláusula de convênio coletivo em que se abria mão, durante seu prazo de

679
vigência, do direito a greve, restou expressamente consignado que a irrenunciabili-
dade dos direitos fundamentais seria algo indiscutível, porque a renúncia é sempre
um ato definitivo e irrevogável, ao passo que aquela que se discutia no processo era
apenas durante a vigência da norma coletiva e não afetava o direito em si mesmo,
mas apenas o seu exercício. Ao final do voto, firmou posição no sentido de que a
renúncia ao exercício seria plausível em especial quando o compromisso de não
exercitar o direito se estabelece obtendo em troca determinadas compensações.
Como se vê, o Tribunal Constitucional da Espanha não admite a renúncia à
titularidade do direito, mas admite limitações ao seu exercício, em especial quanto
se dê a autorrestrição em troca de outras vantagens, com exceção feita pelo próprio
Tribunal Constitucional aos casos em que a limitação ao exercício dos direitos fun-
damentais seja imprescindível ao desenvolvimento da atividade laboral, hipótese
em que esta já estaria implícita no contrato de trabalho, sendo inexigíveis compen-
sações extras além daquelas já incluídas na contraprestação, bem como cláusula que
expressamente indicasse o consentimento do obreiro autorizando a restrição (por
todas, cita-se a STC 99/1994, de 11 de abril).
No Brasil, diante de um histórico de poucos julgados em que se sistematize a
eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, uma controvér-
sia que ajuda a encontrar a verdadeira posição do STF acerca da possibilidade de
renúncia aos direitos fundamentais, ainda que não verse sobre direitos trabalhistas
inseridos na constituição ou sobre direitos da personalidade, ocorreu no julga-
mento da constitucionalidade de alguns artigos da Lei de Arbitragem. À época da
publicação do referido texto legal, muitos sustentaram a sua inconstitucionalidade,
por entenderem que a inafastabilidade do controle jurisdicional e o amplo acesso à
justiça (estatal) constituíam direitos fundamentais, que não poderiam ser afasta-
dos pela vontade das partes, ainda que através de uma renúncia parcial. De pronto,
entendeu-se que a disponibilidade era vista como a possibilidade de abrir mão ou
abdicar de algum direito fundamental mediante o consentimento do titular. E foi
esta a tônica do julgado do STF – seria o princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional passível de disposição em prol do sistema arbitral? Seria válido o con-
sentimento emitido?
Esclarecedoras as considerações de Martel (2010, p. 345) a respeito desse julgado
quando afirma:
Em tema de disponibilidade dos direitos fundamentais, esse longo julgado é ful-
cral. Primeiro, porque a indisponibilidade foi compreendida, de modo uníssono,
como a impossibilidade de abdicação, sob a forma de renúncia parcial, de um
direito fundamental. Segundo, porque a indisponibilidade foi relacionada à limi-
tação de liberdades constitucionalmente protegidas. Terceiro, porque foram dis-
cutidos os limites e o alcance da disposição de um direito fundamental. Quarto,
porque, não obstante uma afirmação de que “[…] a questão da renúncia de
direito fundamental, que, em princípio, são irrenunciáveis por sua própria natu-
reza”, foi admitida a disposição do direito fundamental de acesso à justiça estatal
conforme delineada pela Lei de Arbitragem. Para obter a conclusão, entraram
em jogo a dicção do dispositivo constitucional, que consagra a inafastabilidade
do controle jurisdicional, o histórico do enunciado normativo, além de outros
fatores, como as necessidades sociais.

680
Assim, é possível concluir que a posição do STF não discrepa quanto à acei-
tação do consentimento na restrição aos direitos fundamentais, já que a Corte
Constitucional brasileira expressamente assinala que os direitos fundamentais são
irrenunciáveis por sua natureza; todavia, em certos casos, admite, quando cotejado
com outros valores constitucionais, o consentimento tácito ou expresso na limita-
ção temporal e transitória de um direito fundamental.

7 ∙ ALGUMAS CONCLUSÕES SOBRE O CONSENTIMENTO DO


EMPREGADO EM LIMITAÇÕES AO EXERCÍCIO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS NA RELAÇÃO DE TRABALHO
As mudanças conceituais no mundo do trabalho têm levado o trabalhador a
certo isolamento, o que foi bastante reforçado em tempos de pandemia. Assim, cada
posto de trabalho, cada especialidade, já não são igualmente vistos como parte de
um “todo”, apresentando pesos diferenciados na medida em que as atividades rea-
lizadas em um setor tendem a ser cada vez mais independentes umas das outras.
Nesse contexto de cada vez maior individualização do trabalho, discute-se uma
revalorização do contrato de trabalho como instrumento normativo dos direitos
fundamentais inespecíficos. Em grande medida, entretanto, o que tem justificado o
reforço rumo a uma maior personificação das relações laborais tem sido uma ten-
tativa de recuperação dos espaços de liberdade do próprio trabalhador, ou seja, um
reforço na autonomia privada com a finalidade de enfatizar os direitos fundamentais,
reconhecendo cada trabalhador como um núcleo individualizado em relação aos
demais empregados, motivado pela maior qualificação da classe trabalhadora e pelos
valores individualistas que impregnam as atividades produtivas na atualidade e que
terminaram por minimizar a “consciência de classe” e esvaziar o “pátio da empresa”.
Assim, é comum afirmar-se que o contrato de trabalho servirá para expressar e aten-
der nem tanto a desigualdade e oposição de interesses entre as partes contratantes, mas
principalmente a desigualdade e diferença de interesses entre os distintos trabalhadores,
que perdem sua feição molecular, passando a ser vistos como partes individualizadas.
Se é certo que esse processo transformador está em andamento como decorrência
da maior personalização da relação de trabalho, por outro lado não são poucas as
vozes que vêm considerando que o incremento da autonomia individual nada mais é
que um processo artificial que supõe, em última instância, um incremento das facul-
dades unilaterais das empresas, de forma que, na prática, este reforço das construções
jurisprudenciais à autonomia individual seria um dos motivos da falta de proteção
dos direitos fundamentais, em particular os inespecíficos, no ambiente laboral.
Nesse sentido, como afirma Baylos Grau (2009, p. 126), a revalorização da autono-
mia individual e a maior maleabilidade dos sistemas de determinação das condições de
trabalho são exigências que podem até vir a atender à pretensão de alguns empregados
em determinadas circunstâncias, mas apenas na medida em que estas coincidam com
as necessidades de maior adaptabilidade específicas da empresa, de modo que o deter-
minante não é o indivíduo/trabalhador, tampouco uma lógica de interesses contrapos-
tos como a que simboliza o contrato, mas apenas uma coincidência entre os interesses
dos obreiros com os fins organizativos da empresa e sua estrutura de atuação.

681
O que há de concreto nesta questão é que um dos maiores problemas terminam
sendo as tentativas de apresentá-la como de fácil, generalizante e simplificada solu-
ção. Nesse sentido, tem sido tentador, por um lado, a partir do que é patológico no
contrato de trabalho, rotular como “amaldiçoada” toda a liberdade no negócio jurí-
dico, que deveria para o bem do trabalhador estar colonizado pelas fontes normati-
vas estatais (em especial as leis), ou no máximo pelas normas coletivas, de forma que
os contratantes, empresários e empregados, adeririam a estas cláusulas impostas pelo
Estado; ou, talvez, por outro lado, com apoio no formalismo clássico exacerbado, em
viés diametralmente oposto, haja a tendência de dar verniz de legitimidade a toda
cláusula pactuada, fazendo coro entre os que sustentam ser esta sempre fruto de uma
manifestação de vontade livre, raciocínio que levaria à aceitação de toda cláusula em
que o trabalhador renunciasse ao exercício de um direito fundamental.
É seguro que a percepção da legitimidade da autonomia individual do traba-
lhador, inclusive como instrumental idôneo para a restrição ao exercício de direitos
fundamentais, há de ter como base a força ou a debilidade contratual do indivíduo
trabalhador isoladamente considerado. Assim, essa independência deverá ser vista
como idônea ao seu fim quando se refira a trabalhador que, por suas singulares
características ou outras circunstâncias relevantes para o contrato de trabalho, pos-
sua força negociadora suficiente para pactuar suas condições de emprego da melhor
maneira possível para o atendimento de seus interesses. Entretanto, esta não pode
ser a visão da autonomia individual do trabalhador quando em relação àquele outro
que, pela precariedade de seu emprego ou modalidade do contrato de trabalho,
carece de poder negociador por si mesmo. Neste último caso, a autonomia indivi-
dual servirá de máscara e apenas dará cobertura formal à determinação pejorativa
das condições de exercício dos direitos fundamentais do trabalhador, impostas de
maneira unilateral pelo empregador.
Assim, a análise há de ser feita caso a caso, apreciando se a cláusula figura
expressamente no contrato, com redação clara, sem vícios de consentimento, fixada
com tempo definido, preferencialmente para atos concretos (o que, na prática,
entretanto, causaria graves empecilhos em um contrato de trabalho por prazo inde-
terminado), hipóteses em que, ainda assim, deverá ser interpretada restritivamente.
Por seu turno, as cláusulas devem ser vistas com reticências quando impostas gene-
ricamente nos contratos (para todos os empregados), fixadas em abstrato ou pro
futuro ou, ainda, quando manifestamente não haja uma contrapartida em favor do
trabalhador, situação que equivalerá a uma imposição pelo empregador, quando
será tratada da forma como são vistas as restrições impostas por este, tornando,
neste caso, irrelevante o consentimento específico do obreiro.
De qualquer sorte, vale registrar que, ainda que todos os critérios/requisitos
antes enumerados restem atendidos, sempre será inadmitido na relação de trabalho
o consentimento em limitações impostas aos direitos fundamentais que não tenham
relação direta com a atividade objeto da relação laboral. Assim, há que se verificar o
próprio objeto do contrato e em que medida este, de acordo com parâmetros de boa-
-fé, exige ou pode exigir, implícita ou explicitamente, a limitação de determinado
direito fundamental para a satisfação do interesse que levou as partes a contratar.
Neste caso, o consentimento ou teria efeitos meramente declaratórios – se se trata

682
de uma limitação necessária para o desenvolvimento da atividade laboral, situação
em que, ainda que falte o consentimento expresso, a limitação seria legítima –, ou
poderia ter o efeito de concretizar uma restrição que, sem ser necessária, fosse, con-
tudo, exigível no marco daquela específica atividade.
Ademais, entendemos igualmente que não deve ser admitido o consentimento
nas restrições àqueles outros direitos, relativos a bens que, como já visto, ainda que
pessoais, constituem simultaneamente valores comunitários ou a estes estão inti-
mamente associados, a exemplo dos direitos à vida, cidadania e sigilo de voto, salvo
quando, em relação aos dois primeiros, as restrições sejam inerentes à própria ativi-
dade laboral pactuada, de modo que, entre os limites específicos e adicionais a que
os direitos fundamentais dos trabalhadores estão sujeitos, se encontra a natureza
da relação de trabalho. Assim, está implícita no desempenho de certas atividades a
restrição ao exercício de determinadas faculdades de alguns direitos fundamentais.
É o que se dá com a integridade física de policiais ou a liberdade religiosa dos
padres da Igreja Católica, a liberdade ideológica dos empregados de empresas de
tendência (v.g. ONGs voltadas ao tratamento de questões raciais, escolas religiosas),
empregados contratados para experimentar drogas farmacêuticas em fase de teste,
entre outros que são restritos pela própria natureza da atividade.
Vale ressalvar, entretanto, que, mesmo em se tratando deste tipo de limitação,
inerente à própria natureza da atividade laboral pactuada, temos que a interpreta-
ção restritiva que se exige em relação ao ato de disposição de faculdades próprias ao
exercício de um direito fundamental deve ser mantida, ainda quando, frise-se, estes
limites estejam implícitos na própria relação de emprego.

REFERÊNCIAS
ALEMANHA. Constituição da Alemanha, de 23 de maio de 1949. Disponível em: https://
www.btg-bestellservice.de/pdf/80206000.pdf. Acesso em: 25 ago. 2020.
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa
de 1976. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001.
BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis
do Trabalho. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.
htm. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm. Acesso em: 21 ago. 2020.
BRASIL. Lei n. 14.020, de 6 de julho de 2020. Dispõe sobre o Programa Emergencial
de Manutenção do Emprego e da Renda; dispõe sobre medidas complementares para
enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo
n. 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14020.htm. Acesso em: 21 ago. 2020.
CANARIS, Claus Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Traduzido por Ingo
Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MACHADO, Jónatas. Reality shows e liberdade de
programação. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.

683
CLAPHAM, Andrew. Human rights in the private sphere. Oxford: Clarendon Press/New
York: Oxford University Press, 1993.
FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madri: Editorial
Trotta, 2001.
GRAU, Antonio Baylos. Derecho del trabajo. Contrato individual. Albacete: Editorial
Bomarzo, 2009.
HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho privado. Trad. e introd. de Ignacio
Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Civitas, 1995.
MARTEL, Letícia de Campos Velho. Indisponibilidade de direitos fundamentais:
conceito lacônico, consequências duvidosas. Revista Espaço Jurídico, Joaçaba, v. 11, n.
2, p. 334-373, jul.-dez. 2010.
MENDES, Laura Schertel Ferreira. Um debate acerca da renúncia aos direitos
fundamentais: para um discurso dos direitos fundamentais como um discurso de
liberdade. Direito Público, Porto Alegre, v. 4, n. 13, p. 121-133, jul.-ago.-set. 2006.
NOVAIS, Jorge Reis. Renúncia a direitos fundamentais. In: Perspectivas constitucionais
nos 20 anos da constituição portuguesa de 1976. Organização de Jorge Miranda. v. I.
Coimbra: Coimbra Editora, 1996. p. 263-335.
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982.
UBILLOS, Juan María Bilbao. La eficacia de los derechos fundamentales frente a
particulares. Análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Centro
de Estudios Políticos y Constitucionales, 1997.
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado. 3. ed. Trad. Karin Praefke-Aires Coutinho.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

684
A SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO DOS
PROFISSIONAIS DA SAÚDE DA REDE PÚBLICA
DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19 NO BRASIL
Séfora Graciana Cerqueira Char1

Sumário: 1 Introdução. 2 Da natureza jurídica do direito ao meio ambiente do trabalho


sadio. 2.1 O conflito de interesses entre a garantia da higidez do ambiente do trabalho
dos profissionais da saúde e a assistência à saúde da população. 3 Da responsabilidade
da Administração Pública sobre a saúde e segurança dos profissionais da saúde da
rede pública. 3.1 Da responsabilidade pessoal do agente da Administração Pública.
3.2 Da responsabilidade objetiva da Administração Pública. 3.3 Da responsabilidade
solidária da Administração Pública em unidades de saúde privatizadas. 4 Do controle
administrativo e jurisdicional da gestão do meio ambiente do trabalho dos profissionais
da saúde. 5 Da competência da Justiça do Trabalho.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O presente artigo parte da constatação de que a pandemia da Covid-19 colocou
os holofotes sobre um problema crônico e conhecido no País: os riscos do meio
ambiente do trabalho dos profissionais da saúde.
Partindo das premissas da presunção da identidade valorativa constitucional
entre o direito à proteção dos trabalhadores dos riscos de sua atividade e o direito
da população de receber a necessária assistência, bem como da relação de interde-
pendência entre o interesse menos abrangente com o mais abrangente, extrai-se
a autorização para a utilização do recurso técnico da ponderação, exigindo-se a
harmonização entre os interesses.
Compreende-se que as normas que versam sobre o meio ambiente do trabalho
encontram-se dispostas em todo o ordenamento jurídico pátrio e vinculam o gestor
da unidade de saúde, inclusive as normas mais específicas, desde que derivem de
autoridade pública de saúde ou sanitária e se assentem em paradigmas científicos,
ficando os agentes e o ente público sujeitos ao controle administrativo e jurisdicional.
O artigo conclui com a demonstração técnica da competência material da Justiça
do Trabalho para apreciar as pretensões deduzidas sobre a saúde e segurança do
trabalho dos profissionais da saúde, tanto na qualidade de empregados quanto de
terceirizados e estatutários, revelando o protagonismo atribuído pelo ordenamento

1 Procuradora do Trabalho (BA). Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Escola da


Magistratura Trabalhista (EMATRA). Especialista em Direito Constitucional do Trabalho pela
Escola Judicial/Universidade Federal da Bahia (UFBA).

685
jurídico pátrio à preservação da integridade física dos trabalhadores da saúde, evi-
denciando a natureza coadjuvante do vínculo jurídico mantido entre as partes.

2 ∙ DA NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO


AO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO SADIO
A normatividade inscrita na Constituição Federal de 1988 (arts. 1º, IV; 5º, XXIII;
7º, XXII; 100, VIII; 170, caput, III, VI; 196; e 225, caput) demonstra iniludivelmente
a consciência acerca da necessidade da real proteção da saúde dos trabalhadores,
inclusive dos profissionais da saúde, com a efetiva redução dos riscos no meio
ambiente do trabalho, com vistas ao reconhecimento do valor do trabalho humano.
Merecem destaquem, no plano internacional, as prescrições expressas na
Convenção n. 155 da OIT, que indica “a adoção de medidas necessárias para a
promoção da segurança no trabalho, com o objetivo de prevenir acidentes e danos
para a saúde” (artigos 3º e 4º); e no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, que impõe em seu art. 12 que seja viabilizada “a melhoria de
todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente” e em seu artigo 7º
assegura aos trabalhadores “a segurança e a higiene no trabalho”.
No plano infraconstitucional, frisa-se o art. 157 da CLT, que trata das medi-
das voltadas à garantia da saúde e segurança do trabalho, que se concretizam em
medidas protetivas administrativas, de engenharia, coletivas e individuais, as
quais constituem piso normativo, aplicável aos trabalhadores públicos e privados,
inscrito nas normas regulamentadoras editadas pelo Ministério do Trabalho e
Emprego (atualmente Secretaria de Inspeção do Trabalho, vinculada ao Ministério
da Economia) segundo os arts. 155 e 200 da CLT.
É a Norma Regulamentadora n. 32 que versa especificamente sobre saúde e
segurança do trabalho em serviços de saúde, incidindo tanto sobre os serviços pri-
vados quanto públicos, nos afigurando ainda mais exigível à Administração Pública
o cumprimento das normas de medicina e segurança editadas pelos entes públicos.
No que tange especificamente aos profissionais da saúde que atuam no enfrenta-
mento do coronavírus, é digno de nota o fato de encontrarem-se submetidos a agente
biológico da classe de risco 3 (segundo a Classificação de Risco dos Agentes Biológicos,
publicada em 2017 pelo Ministério da Saúde), com potencial risco à saúde humana, o
que demanda a observância, conforme as orientações do próprio Ministério da Saúde,
de medidas administrativas, de engenharia e de proteção coletiva e individual.
Acrescente-se que também a Lei Orgânica do Serviço Único de Saúde (SUS), Lei
n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, garante a promoção e proteção da saúde dos
trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho,
bem como a recuperação, reabilitação e assistência às vítimas de acidentes doenças
e agravos relacionados ao trabalho.
Com a sedimentação da situação da pandemia da Covid-19 e em harmonia com
as prescrições citadas e que já estavam presentes no ordenamento jurídico antes do
surto, as autoridades de saúde de todos os entes da federação, inclusive como decor-
rência do cuidado com a saúde pública, viram-se premidas a regular as condições de
trabalho dos profissionais da saúde, voltando-se mais especificamente à prevenção

686
do contágio da Covid-19, em claro exercício do federalismo cooperativista, previsto
no art. 23 da Constituição Federal.
Destacam-se, entre as orientações e recomendações referentes às medidas de
prevenção e controle que devem ser adotadas durante a assistência aos casos suspei-
tos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2): a Nota Técnica
GVIMS/GGTES/ANVISA n. 4/2020 (atualizada em 8.5.2020); a Nota Técnica
GVIMS/GGTES/ANVISA n. 7/2020 (atualizada em 5.8.2020); e, principalmente, o
documento publicado pelo Ministério da Saúde em abril de 2020 (elaborado sob
a Coordenação-Geral de Saúde do Trabalhador, com a colaboração técnica do
Ministério Público do Trabalho) intitulado “Recomendações de proteção aos tra-
balhadores dos serviços de saúde no atendimento de Covid-19 e outras síndromes
gripais”, segundo o qual
todos os serviços de saúde devem garantir a adoção de medidas e mecanismos de
proteção e promoção à saúde para todos os trabalhadores que atuam nos servi-
ços, sejam eles empregados, terceirizados ou pertencentes a outras modalidades
de vínculos. (BRASIL, 2020d, p. 10).
Do exposto, as inúmeras prescrições, cada vez mais específicas, sobre as medidas
coletivas e individuais, protetivas ou de organização do trabalho, assentadas nesses
documentos apontam para a necessária vinculação dos gestores das unidades de
saúde, cujo desatendimento pode gerar a responsabilização da gestão de saúde.

2.1 ∙ O CONFLITO DE INTERESSES ENTRE A GARANTIA DA HIGIDEZ


DO AMBIENTE DO TRABALHO DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE E A
ASSISTÊNCIA À SAÚDE DA POPULAÇÃO
Observa-se a idêntica envergadura constitucional entre os interesses ligados à
saúde dos profissionais e os da população, o que não advém apenas da topologia
constitucional mas também do assento de ambos interesses em princípios e valores
nucleares da Norma Mater. É relevante evidenciar que o direito à saúde e, nesse
sentido, à preservação da vida e integridade física dos trabalhadores é, em princípio,
presumidamente indisponível e não se confunde com o interesse particular e dispo-
nível por parte do trabalhador, tão comum nas relações laborais estatutárias e cele-
tistas, evitando-se com esse esclarecimento a confusão que pode ser provocada pela
relação entre conteúdo e continente, pelo fato de o direito à saúde dos trabalhadores
também estar contido no direito à saúde da população de natureza mais abrangente.
Outro ponto que merece destaque é a interligação entre os interesses em questão, de
modo que o adoecimento dos trabalhadores da saúde importa na diminuição da assis-
tência à população, tanto por ocupar a rede de saúde como mais um paciente como
por reduzir a força de trabalho voltada ao atendimento da população, o que vem sendo
salientado pelos próprios entes públicos: “o adoecimento de profissionais de saúde é
especialmente preocupante, pois pode reduzir os recursos humanos e comprometer a
qualidade e potencial de resposta dos serviços de saúde” (BRASIL, 2020d, p. 5).
Sob outro ângulo, o alto grau de contágio e os agravos advindos com a Covid-19,
sobretudo entre os vulneráveis, importam em sobrecarga dos sistemas de saúde,
público e privado, de modo que, por consequência, também incidem no aumento
do risco ocupacional dos trabalhadores da saúde, dado o incremento no volume de

687
trabalho e a maior pressão psíquica a que são submetidos, por terem de lidar com
uma doença ainda pouco estudada, sem cura, sem vacina e com recursos escassos
para tratamento dos pacientes e para a proteção durante o desempenho das ativida-
des dos próprios profissionais.
Nessa senda de ideias, percebe-se que a preservação da saúde dos profissionais
da saúde e a assistência à saúde da sociedade possuem também uma relação de
recíproca causa e efeito, conduzindo à conclusão de que a utilização precipitada da
escusa na adoção das medidas protetivas do meio ambiente do trabalho dos traba-
lhadores por parte dos gestores das unidades de saúde e das autoridades públicas, a
pretexto de evitar o colapso do atendimento público, deve ser encarada com cautela,
sob pena de acelerá-lo.
Partindo das premissas da presunção da identidade valorativa entre os direitos
postos e da relação de interdependência entre o interesse menos abrangente com o
mais abrangente, extrai-se a autorização para a utilização do recurso técnico da ponde-
ração, o que exige a compatibilização entre o direito à proteção dos trabalhadores dos
riscos de sua atividade com o direito da população de receber a necessária assistência.
Nessa esteira de ideias, é imprescindível demonstrar clara e objetivamente que o
cumprimento das medidas de proteção, tal como descritas na norma, implicaria com-
prometimento da assistência à população, a fim de que o conflito em tese seja alçado
à condição de conflito concreto de interesses e desafie a utilização da ponderação.
Importante, nesses casos, atentar-se ao princípio da proporcionalidade como
referência no controle da atuação das autoridades públicas, o qual demanda especial
atenção quando estas atuam no âmbito da fronteira dos direitos fundamentais, assu-
mindo esse princípio papel destacado notadamente quando, diante de dois ou mais
bens jurídicos, tenha-se que procurar o equilíbrio com a concordância prática, o que
se traduz na avaliação das medidas efetivamente adotadas pelas autoridades e gesto-
res das unidades de saúde e da possibilidade de cumprimento das normas protetivas.
Segundo os Códigos de Ética, em geral aos profissionais da área de saúde impõe-se
o dever profissional de prestar socorro aos pacientes, visando à proteção da vida e da
saúde, sob pena de responsabilização pela omissão; todavia, é possível juridicamente
a suspensão das atividades em determinadas circunstâncias e sob certas cautelas.
Ainda há que se considerar a Lei n. 7.783/1989, que, ao dispor sobre o direito de
greve, não excluiu do seu exercício as atividades essenciais, desde que, durante a
movimentação, fique garantida a prestação dos serviços indispensáveis (art. 11 da
Lei n. 7.783/1989) às necessidades da coletividade, entendidos como indispensáveis
aqueles que, se não prestados, coloquem em risco a saúde da população.
Normas internacionais, de igual forma, não descartam a possibilidade de resis-
tência, sem perder de mira os princípios da razoabilidade e da publicidade, recla-
mando a necessária comunicação ao empregador ou tomador dos serviços, a quem
incumbirá o saneamento das irregularidades e a adequação do ambiente laboral,
antes de exigir o retorno da prestação do serviço.
No âmbito penal, para que a prestação de socorro seja percebida como dever
jurídico profissional, basta a omissão de agir do agente, a exemplo do médico ou
enfermeiro, independente do resultado, o qual pode importar em majoração da
pena ou qualificação do crime. Acrescente-se que, se, em virtude de encontrar-se

688
sob estado de necessidade, o profissional não puder prestar socorro, este tem o dever
de informar às autoridades ou ao seu empregador os riscos a que está submetido
e que fundamentam sua recusa ou suspensão do trabalho, inclusive diante da Lei
n. 8.080/1990, que dispõe sobre a promoção, proteção e recuperação da saúde no
Brasil. Consiste, ainda, em obrigação do Estado, segundo o art. 196 da Constituição
Federal, prover as medidas de proteção aos profissionais de saúde.
Os gestores públicos e particulares das unidades de saúde que prestem assis-
tência a sintomáticos de síndrome gripal têm o dever de garantir a salubridade no
meio ambiente do trabalho. Cabe ao gestor da unidade de saúde em conjunto com a
comissão de controle de infecção hospitalar, Serviço Especializado em Engenharia
de Segurança e em Medicina do Trabalho (SESMT) ou órgão congênere de aferição
do meio ambiente do trabalho, segundo os documentos publicados pelo Ministério
da Saúde, avaliar o risco da área de prestação da assistência e a presença de profis-
sionais de saúde considerados vulneráveis, para providenciar o atendimento das
medidas protetivas aplicáveis.

3 ∙ DA RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA SOBRE A SAÚDE E SEGURANÇA DOS
PROFISSIONAIS DA SAÚDE DA REDE PÚBLICA
Com o intuito de evidenciar a consciência jurídica já consagrada pela mais Alta
Corte do País em torno da conclusão de que o ente público se submete às normas
constitucionais e infraconstitucionais acerca da proteção do meio ambiente do tra-
balho, segue a ementa com a tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA – DESCABIMENTO.
1. DESCUMPRIMENTO DE NORMAS TRABALHISTAS RELATIVAS À
SEGURANÇA, HIGIENE E SAÚDE DOS TRABALHADORES. REGIME
JURÍDICO ESTATUTÁRIO. SÚMULA 736/STF. COMPETÊNCIA DA
JUSTIÇA DO TRABALHO. Nos termos da Súmula 736/STF, compete à Justiça
do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento
de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores.
Não se diga que a Súmula 736/STF encontra-se superada, uma vez que, nos autos
da Rcl 3303/PI, a própria Suprema Corte, em composição plenária, já ratificou a
aplicabilidade do referido verbete, mesmo após a decisão proferida na ADI 3.395-
MC. Precedente da SBDI-2/TST. 2. ENTE PÚBLICO. SERVIDORES PÚBLICOS.
HIGIENE E SAÚDE DOS TRABALHADORES. Não há preceito constitucional
ou legal que autorize a Administração Pública a descumprir normas que assegu-
ram a higidez do meio ambiente de trabalho, que tem, inclusive, proteção consti-
tucional (art. 200, VIII, da Constituição Federal). De outro norte, a Carta Magna
expressamente estendeu aos servidores públicos o direito à redução dos riscos
inerentes ao trabalho (arts. 7°, XXII, e 39, § 3°, da Constituição Federal), sendo
certo que esse direito fundamental dos administrados somente pode se materia-
lizar pela observância de normas concernentes à higiene e medicina do trabalho.
O absoluto descumprimento dessas regras resulta no perecimento desse direito
fundamental, o que não se pode admitir, sob pena de se relegar a dignidade
da pessoa humana (art. 1°, III, da Constituição Federal), vértice axiológico da
Constituição Federal e do próprio Estado, a um plano secundário. Agravo de
instrumento conhecido e desprovido. (eDOC 6, p. 1-2, rel. min. Gilmar Mendes).

689
Nessa linha, não obstante o ponto pacífico em torno da existência e do reconheci-
mento da responsabilidade da Administração Pública pela higidez do meio ambiente
do trabalho dos profissionais de saúde da rede pública, importante jogar luzes sobre
a análise da sua natureza nos casos em que a relação entre o ente público for direta
ou indireta com o trabalhador, como se buscará evidenciar a reponsabilidade pessoal
do agente da Administração identificado como responsável por adotar as medidas
voltadas à preservação da saúde e segurança do trabalho dos profissionais.

3.1 ∙ DA RESPONSABILIDADE PESSOAL


DO AGENTE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Em decisão paradigmática, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, cônscio da
importância e urgência requerida pelo contexto pandêmico, decidiu que os atos de
agentes públicos em relação à pandemia da Covid-19 devem observar critérios téc-
nicos e científicos de entidades médicas e sanitárias, sob pena de responsabilização
pelos danos causados.
Por maioria de votos, os Ministros do STF concederam parcialmente medida
cautelar em sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) para conferir essa
interpretação à Medida Provisória (MP) n. 966/2020, que trata sobre a responsabili-
zação pessoal dos agentes públicos durante a crise de saúde pública:
O Tribunal, por maioria, analisou a medida cautelar, vencido, preliminarmente,
o Ministro Marco Aurélio, que entendia pela inadequação da ação direta. Na
sequência, por maioria, deferiu parcialmente a cautelar para: a) conferir inter-
pretação conforme à Constituição ao art. 2º da MP 966/2020, no sentido de esta-
belecer que, na caracterização de erro grosseiro, deve-se levar em consideração
a observância, pelas autoridades: (i) de standards, normas e critérios científicos
e técnicos, com especial destaque para as orientações da Organização Mundial
de Saúde; bem como (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da pre-
venção; e b) conferir, ainda, interpretação conforme à Constituição ao art. 1º da
MP 966/2020, para explicitar que, para os fins de tal dispositivo, a autoridade à
qual compete a decisão deve exigir que a opinião técnica trate expressamente:
(i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como
estabelecidos por organizações e entidades médicas e sanitárias, reconhecidas
nacional e internacionalmente; (ii) da observância dos princípios constitucionais
da precaução e da prevenção. Foram firmadas as seguintes teses: “1. Configura
erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à
saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por
inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos prin-
cípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem
compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão
tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis
à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e
nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucio-
nais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por
eventuais violações a direitos”. Tudo nos termos do voto do Relator. Ficaram
vencidos os Ministros Alexandre de Moraes e Carmen Lúcia, que concediam a
medida cautelar em maior extensão, e o Ministro Marco Aurélio, que a concedia
para suspender a eficácia da Medida Provisória até o julgamento final do feito.
Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Presidência do Ministro

690
Dias Toffoli. Plenário, 21.05.2020 (Sessão realizada inteiramente por videocon-
ferência – Resolução 672/2020/STF – Decisão relacionada às ADIs n. 6421; 6422;
6224; 6425; 6427; 6428; 6431).
A Medida Provisória n. 966, editada em 13 de maio do corrente ano, previa,
entre outros pontos, que os agentes públicos somente poderiam ser responsabili-
zados nas esferas civil e administrativa se agissem ou se omitissem com dolo ou
erro grosseiro relacionados às medidas de enfrentamento à pandemia e aos efeitos
econômicos e sociais dela decorrentes.
É certo que o julgamento trazido reveste-se de relevância no que tange aos atos
dos agentes públicos que importem em prejuízo ao erário, mas nada perto da impor-
tância evidenciada, dada a prevalência na escala de valores da preservação à vida, do
reconhecimento da responsabilidade pessoal do agente que descumpra as medidas
estabelecidas pelas autoridades de saúde e sanitárias, com lastro cientifico, voltadas
a garantir a higidez do meio ambiente do trabalho dos profissionais de saúde.

3.2 ∙ DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


O Supremo Tribunal Federal consolidou entendimento constante do Tema 932 da
Repercussão Geral, consistente na responsabilização objetiva do empregador por danos
derivados de acidente do trabalho em razão da natureza de risco da atividade desenvolvida.
Compreende-se que bem sintetiza o entendimento a ementa do parecer do
procurador-geral da República emitido nos autos da Repercussão Geral no Recurso
Extraordinário n. 828.040/DF:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TEMA 932 DE REPERCUSSÃO GERAL.
POSSIBILIDADE DE IMPUTAÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
OBJETIVA AO EMPREGADOR POR DANO DECORRENTE DE ACIDENTE
DE TRABALHO. ART. 7º-XXVIII DA CR/88. DIREITO FUNDAMENTAL
SOCIAL DO TRABALHADOR A SEGURO SOCIAL CONTRA ACIDENTE
DE TRABALHO, INDEPENDENTE DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO
EMPREGADOR. NORMA DE GARANTIA MÍNIMA, QUE COMPORTA
PROGRESSÃO TUTELAR. ARTS. 200-VIII, E 225-§ 3º, DA CR/88. PROTEÇÃO
INTEGRAL DO MEIO AMBIENTE, INCLUSIVE DO TRABALHO. ART. 927,
PAR. ÚNICO, DO CCB. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. TEORIA DO
RISCO. COMPATIBILIDADE DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO
EMPREGADOR COM A ORDEM CONSTITUCIONAL. 1. Os direitos sociais
fundamentais dos trabalhadores, “além de outros que visem à melhoria de sua
condição social” (CR/88, art. 7º, caput), constituem um arcabouço mínimo prote-
tivo que comporta progressão por meio de outros direitos de fonte legal e negocial
(CR/88, art. 7ºXXVI), além daqueles previstos em tratados e convenções de direitos
humanos ratificados pelo Brasil (CR/88, art. 5º, § 2º). 2. O art. 7º-XXVIII da CR/88
garante ao trabalhador direito ao seguro acidentário, independente da responsa-
bilidade civil do empregador “quando incorrer dolo ou culpa”, condição mínima
passível de elastecimento pelo legislador ordinário, já que o caput do artigo confere
espaço para progressão do direito, objetivando a melhoria da condição social do
trabalhador. Precedente. 3. É amplo o conceito de meio ambiente adotado pela
Constituição, “nele compreendido o do trabalho” (CR/88, arts. 200-VIII), noção
que se articula com o direito social fundamental do trabalhador à “redução dos
riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”

691
(CR/88, art. 7º-XXII). Em decorrência dessa especial proteção, as condutas e
atividades consideradas lesivas ao meio ambiente, nos termos do art. 225-§3º da
Constituição, “sujeitarão os infratores a sanções penais e administrativas, inde-
pendentemente da obrigação de reparar os danos causados”. 4. Em sintonia com
essa normatização constitucional, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente
(Lei 6.938/1981) adotou a responsabilidade objetiva do agente causador de dano
ao meio ambiente, com base no princípio do poluidor-pagador, que considera os
danos provenientes do exercício da atividade econômica como externalidades a
serem suportadas pelo empreendedor (art. 14-§1º). 5. É plenamente compatível
com a norma fundamental do art. 7º-XXVIII da Constituição o reconhecimento
de responsabilidade civil objetiva do empregador por dano decorrente de acidente
de trabalho em atividades de risco, com fundamento no parágrafo único do art.
927 do Código Civil, que consagra a responsabilidade civil independente de culpa
“quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por
sua natureza, risco para os direitos de outrem”. 6. Afronta o princípio isonômico
(CR/88, art. 5º-caput) e o primado hermenêutico da unidade da Constituição
interpretação que exclua do meio ambiente do trabalho a ampla responsabilidade
objetiva destinada à proteção do meio ambiente (CR/88, art. 225-§3º; CCB, art.
927, par. único), em sua compreensão multidimensional, impedindo a legislação
ordinária de imputar idêntica responsabilidade pela reparação de danos causados
à saúde e segurança dos trabalhadores, decorrente acidente de trabalho em ativi-
dade de risco. 7. Proposta de Tese de Repercussão Geral (Tema 932): “não contra-
ria a Constituição o reconhecimento de responsabilidade objetiva do empregador
por danos decorrentes de acidente do trabalho, quando a atividade desenvolvida,
por sua natureza, implicar risco à saúde e segurança do trabalhador. Interpretação
sistemática dos arts. 7º-XXII-XXVIII, 200-VIII e 225-§ 3º da Constituição, arts.
14-§1º da Lei 6.938/81, e 927 – parágrafo único do Código Civil” – Parecer pelo
desprovimento do recurso extraordinário.
Compreende-se que, nos termos da Constituição Federal, em cotejo com a pre-
visão da responsabilidade civil independente de culpa prevista no Código Civil e
com a Lei n. 6.938/1981, além de fixado o dever ativo de promoção do meio ambiente
do trabalho digno, também é reconhecida a responsabilidade objetiva do causador,
inclusive do ente público, dos danos aos profissionais de saúde, em especial consi-
derando atividades de risco que desempenham.
O maior risco de acidentes e adoecimento em decorrência do trabalho, experi-
mentado pelos trabalhadores da saúde, é um problema crônico e antigo, como bem
evidencia o Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho,2 segundo o qual
o setor econômico mais notificado e a profissão com mais notificações de casos de
doenças ocupacionais e acidentes de trabalho foram, respectivamente, o setor
de atendimento hospitalar e a profissão de técnico de enfermagem, seja na esfera
pública, seja na esfera privada.
Já no contexto da pandemia, em documento sobre o qual o Ministério da Saúde
tem se balizado, a Occupational Safety and Health – OSHA graduou o risco do tra-
balho da seguinte forma: “Risco muito alto” – em que estão incluídos os profissionais

2 Desenvolvido pela equipe do SMARTLAB de Trabalho Decente, decorrente da parceria entre


o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e
concebido consoante parâmetros científicos a partir de informações coletadas dos bancos de dados
governamentais disponíveis de 2012 a 2018.

692
com alto potencial de contato com casos confirmados ou suspeitos de contamina-
ção pela Covid-19 durante procedimentos médicos, laboratoriais ou postmortem,
tais como médicos, enfermeiras, dentistas, paramédicos, técnicos de enfermagem,
profissionais que realizam exames ou coletam amostras e aqueles que realizam
autopsias; “Risco alto” – estão incluídos os profissionais que entram em contato
com casos confirmados ou suspeitos de Covid-19 (tais como fornecedores de insu-
mos de saúde e profissionais de apoio que entrem nos quartos ou ambientes onde
estejam ou estiveram presentes pacientes confirmados ou suspeitos), profissionais
que realizam o transporte de pacientes (ambulâncias), profissionais que trabalham
no preparo dos corpos para cremação ou enterro; “Risco mediano” – estão incluí-
dos os profissionais que demandam o contato com menos de 2 metros com pessoas
que podem estar infectadas com o novo coronavírus (Sars-Cov-2), mas que não são
consideradas casos suspeitos ou confirmados; que têm contato com viajantes que
podem ter retornado de regiões de transmissão da doença (em áreas sem transmis-
são comunitária); que têm contato, em áreas com transmissão comunitária, com o
público em geral (escolas, ambientes de grande concentração de pessoas, grandes
lojas de comércio varejista); “Risco baixo” – estão incluídos os profissionais cuja
atividade não requer contato com casos suspeitos, reconhecidos ou com potencial
de vir a contrair o vírus, que não têm contato a menos de 2 metros com o público, ou
que têm contato mínimo com o público em geral e outros trabalhadores.
Quanto à responsabilização, a pioneira Lei n. 6.938/1981 – Lei da Política
Nacional do Meio Ambiente – prescreve, há quase quarenta anos, no art. 3º, IV:
“Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: [...] IV - poluidor, a pessoa física
ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por
atividade causadora de degradação ambiental”; e no art. 14, § 1º:
[...] Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor
obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os
danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O
Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de
responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.
Também no contexto da pandemia da Covid-19, o STF manteve a coerência,
ao examinar a Medida Provisória 927, cujo art. 29 determinava que os casos de
contaminação pelo novo coronavírus não seriam enquadrados como doença ocupa-
cional, salvo se comprovado o nexo causal, decidindo em plenário, nos autos da
Repercussão Geral no Recurso Extraordinário n. 828.040- DF, no dia 12 de março
de 2020, à luz da Constituição, pela responsabilidade objetiva do empregador por
danos decorrentes de doenças ocupacionais nos casos de exposição a riscos ine-
rentes à atividade executada pelo trabalhador. A lógica, nesses casos, é a mesma
estampada no art. 927, parágrafo único, do Código Civil.
Considerando o reconhecimento formal da atividade de risco desenvolvida
pelos profissionais da saúde da rede pública, é inafastável a admissão, com espeque
constitucional, da responsabilidade objetiva da gestão pública e privada pelos danos
causados, respectivamente, aos trabalhadores da saúde estatutários e celetistas.
Nessa linha, observamos que o fato de as decisões do STF versarem sobre a res-
ponsabilidade do empregador, referindo-se diretamente a relações empregatícias,
não afasta a juridicidade do reconhecimento da responsabilidade objetiva do gestor

693
público, em face de a fonte normativa utilizada na decisão autorizar essa ilação facil-
mente, a exemplo do art. 5º, § 2º; art. 200, VIII; e 225, § 3º, da Constituição Federal;
art. 14, § 1º, da Lei n. 6.938/1981; e art. 927, parágrafo único, do Código Civil.

3.3 ∙ DA RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA


ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM UNIDADES DE SAÚDE PRIVATIZADAS
No que tange às unidades públicas de saúde privatizadas, pululam modelos de
contratação, muitas vezes de licitude questionável, sendo os mais utilizados o de
cogestão e o de prestação de serviços. A prática da admissão de servidores públicos,
selecionados após concurso público, tem sido substituída pela contratação de pro-
fissionais empregados ou autônomos – não mais diretamente pela Administração,
mas pela empresa ou organização social contatada para prestar os serviços públi-
cos de saúde – ou ainda de trabalhadores quarteirizados, nas hipóteses em que a
empresa terceirizada, por sua vez, subcontrata uma outra.
No Direito do Trabalho, já é pacificado o entendimento da responsabilização
subsidiária do tomador de serviço no tocante às parcelas contratuais inadimpli-
das pela empresa terceirizada, atentando para que a Suprema Corte, no Recurso
Extraordinário n. 760931, em regime de repercussão geral relativo ao tema 246,
consolidou a tese jurídica no sentido de que: 
O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não
transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo
seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do artigo 71,
§ 1º, da Lei nº 8.666/93.
Tal como se dá em relação aos créditos trabalhistas dos terceirizados, o ente
público, quando na posição de contratante, tem o dever de fiscalizar, em todo o
tempo de duração de um contrato administrativo, plenamente e tempestivamente,
o cumprimento pelo contratado da obrigação de manter a higidez do meio ambiente
do trabalho; todavia, visando à promoção do trabalho seguro e da saúde dos tra-
balhadores, o constituinte de 1988 estabeleceu responsabilidades compartilhadas
entre a sociedade e o Poder Público na proteção e tutela do meio ambiente, de sorte
que a responsabilidade pelos danos ao meio ambiente do trabalho e à saúde do tra-
balhador é solidária de todos aqueles que fazem parte da cadeia produtiva, como
ocorre nas relações de consumo.
A jurisprudência dos tribunais vem acolhendo a tese de responsabilidade solidá-
ria entre a tomadora e a terceirizada (empregadora direta do trabalhador), objeto de
discussão na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho que
culminou com a aprovação do Enunciado n. 44, que assim preceitua:
Enunciado 44. Responsabilidade Civil. Acidente do Trabalho. Terceirização.
Solidariedade. “Em caso de terceirização de serviços, o tomador e o prestador respon-
dem solidariamente pelos danos causados à saúde dos trabalhadores”. Inteligência
dos artigos 932, III, 933 e 942, parágrafo único, do Código Civil e da Norma
Regulamentadora 4 (Portaria 3.214/77 do Ministério do Trabalho e Emprego).
Tratando-se de normas que tutelem a proteção da saúde e segurança dos traba-
lhadores, a sujeição da Administração Pública a esses faz-se claramente presente e,
por assim ser, não pode o ente público se eximir da responsabilidade de observância

694
de tais preceitos, na medida que a base constitucional que os ampara está relacio-
nada à proteção da vida do trabalhador e nesse sentido não há qualquer interferên-
cia quanto à natureza do vínculo existente entre o Poder Público, na qualidade de
cogestor ou tomador de serviço, e os trabalhadores que prestam serviço de saúde
pela rede pública contratados por empresa.

4 ∙ DO CONTROLE ADMINISTRATIVO E JURISDICIONAL


DA GESTÃO DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO
DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE
É ínsito ao Regime Democrático de Direito o controle da atividade dos entes
públicos, notadamente, por exemplo, quanto à adoção das medidas pertinentes ao
controle da pandemia da Covid-19. Pululam iniciativas direcionadas aos controles
administrativos e jurisdicionais acerca da aquisição de aparelhos e insumos para
utilização no combate à Covid-19, dos gastos públicos efetuados com essa justifi-
cativa, incluindo a ampliação e concretização da transparência, da abrangência e
eficiência da assistência à saúde da população e, como não poderia ser diferente, das
medidas imprescindíveis para a preservação da saúde e segurança dos profissionais
de saúde da rede pública.
É de se observar, no que se refere ao controle judicial sobre os atos de gestão de
saúde, que, em regra, o controle está restrito ao cumprimento da prescrição nor-
mativa, sendo admissível em relação aos aspectos vinculados do ato, seja ele predo-
minantemente vinculado ou predominantemente discricionário, ou ainda sobre o
conteúdo discricionário, como há muito já se defende.
A jurisprudência tem avançado e ampliado o controle judicial sobre os atos dis-
cricionários com base no princípio da inafastabilidade da jurisdição e em outros
princípios constitucionais aplicáveis à atuação administrativa, como entendeu a
Suprema Corte nos seguintes julgados:
Agravo regimental no recurso extraordinário. Constitucional. Ação civil pública.
Defesa do meio ambiente. Implementação de políticas públicas. Possibilidade.
Violação do princípio da separação dos poderes. Não ocorrência. Insuficiência
orçamentária. Invocação. Impossibilidade. Precedentes. 1. A Corte Suprema já
firmou a orientação de que é dever do Poder Público e da sociedade a defesa de
um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gera-
ções. 2. Assim, pode o Poder Judiciário, em situações excepcionais, determinar
que a Administração pública adote medidas assecuratórias desse direito, reputado
essencial pela Constituição Federal, sem que isso configure violação do princípio
da separação de poderes. 3. A Administração não pode justificar a frustração de
direitos previstos na Constituição da República sob o fundamento da insuficiência
orçamentária. 4. Agravo regimental não provido. (BRASIL, 2014).

TRIBUNAL DE CONTAS. NOMEAÇÃO de seus membros em Estado recém-


-criado. Natureza do ato administrativo. Parâmetros a serem observados. AÇÃO
POPULAR desconstitutiva do ato. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO
DE TOCANTINS. PROVIMENTO DOS CARGOS DE CONSELHEIROS. A
nomeação dos membros do Tribunal de Contas do Estado recém-criado não e
ato discricionário, mas vinculado a determinados critérios, não só estabelecidos

695
pelo art. 235, III, das disposições gerais, mas também, naquilo que couber, pelo
art. 73, par.1, da CF. NOTÓRIO SABER – Incisos III, art. 235 e III, par.1, art.
73, CF. Necessidade de um mínimo de pertinência entre as qualidades inte-
lectuais dos nomeados e o oficio a desempenhar. Precedente histórico: parecer
de Barbalho e a decisão do Senado. AÇÃO POPULAR. A não observância dos
requisitos que vinculam a nomeação enseja a qualquer do povo sujeitá-la a cor-
reção judicial, com a finalidade de desconstituir o ato lesivo a moralidade admi-
nistrativa. Recurso extraordinário conhecido e provido para julgar procedente
a ação. (BRASIL, 1994).
A doutrina contemporânea prevê que duas são as teorias que garantem um
amplo controle jurisdicional dos atos administrativos discricionários: a teoria que
trata do desvio de poder ou de finalidade e a teoria dos motivos determinantes.
Acerca destas teorias, o Ministro do STF Alexandre de Moraes (2006, p. 18) destaca:
Pela primeira, o Poder Judiciário poderá exercer amplo controle sobre os atos
administrativos, quando o administrador utilizar-se de seu poder discricionário
para atingir fim diverso daquele que a lei fixou, ou seja, utilizar-se indevida-
mente dos critérios da conveniência e oportunidade […] Pela teoria dos motivos
determinantes, os motivos expostos pelo administrador como justificativa para
a edição do ato associam-se à validade do ato, vinculando o próprio agente, de
forma que a inexistência ou a falsidade dos pressupostos fáticos ou legais enseja-
dores do ato administrativo acabam por afetar sua própria validade, mesmo que
o agente não estivesse obrigado a motivá-lo.
Admite-se, ainda, o controle pelo Poder Judiciário quando existentes concei-
tos jurídicos indeterminados, ou seja, aqueles que não apresentam noções preci-
sas, cabendo ao judiciário substituir a interpretação realizada pela Administração
Pública quando abusiva ou arbitrária, como também pontua Moraes (2014).
Neste contexto, Di Pietro (2007, p. 3) alerta que, atualmente, o controle pautado
na legalidade não deve estar adstrito tão somente à lei:
Amplia-se a possibilidade de controle judicial porque, por essa via, poderão ser
corrigidos os atos administrativos praticados com inobservância de certos valores
adotados como dogmas em cada ordenamento jurídico. Assim, falar hoje em prin-
cípio da legalidade significa abranger não só a lei, em sentido formal, mas todos os
valores e princípios contidos implícita ou explicitamente no ordenamento jurídico.
Observa-se, destarte, que correntes doutrinárias já têm permitido essa amplia-
ção do controle jurisdicional nos atos discricionários da administração, advertindo
que por vezes, ao praticar o ato, o agente excede no seu poder, desvinculando-se dos
reais motivos que autorizariam a sua conduta.
No mesmo sentido, Bandeira de Mello (2014, p. 979):
Assim como ao judiciário compete fulminar todo comportamento ilegítimo da
administração que apareça como frontal violação da ordem jurídica, compete-lhe,
igualmente, fulminar qualquer comportamento administrativo que, a pretexto de
exercer apreciação ou decisão discricionária, ultrapassar as fronteiras dela, isto é,
desbordar dos limites de liberdade que lhe assistiam, violando, por tal modo, os
ditames normativos que assinalam os confins da liberdade discricionária.
Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade constituem instrumentos
de controle judicial dos atos administrativos discricionários, principalmente para
inibirem abusos de poder sob a aparência de legalidade, sujeitos tanto ao controle

696
administrativo, inclusive pelo Ministério Público do Trabalho, quanto ao jurisdi-
cional, pela Justiça do Trabalho.
No mesmo sentido, conforme já afirmado, no julgamento acerca da constituciona-
lidade da MP n. 966/20, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que os atos de
agentes públicos em relação à pandemia da Covid-19 devem observar critérios técni-
cos e científicos de entidades médicas e sanitárias sob pena de responsabilização pelos
danos causados, demonstrando à saciedade a imprescindibilidade do controle juris-
dicional dos atos do ente público, notadamente, no contexto de combate à pandemia.

5 ∙ DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO


A Justiça do Trabalho, no rol de sua competência prevista no art. 114 da
Constituição Federal, estabeleceu que cabe a esta justiça especializada o processa-
mento e julgamento de ações que envolvam indenização por dano moral ou patri-
monial, bem como outras controvérsias decorrentes da relação de emprego (incisos
VI e XI). Partindo de tal premissa e, considerando que a base do Direito do Trabalho
se pauta na proteção dos trabalhadores, a violação aos direitos positivados no art. 7º
do texto constitucional enseja a competência da Justiça do Trabalho, quando dire-
tamente afetados por comportamento inadequado do empregador.
Nesse sentido, adentrando-se especificamente nas normas constitucionais e
legais que regem a proteção da segurança e saúde do obreiro, é de se considerar que a
disposição contida no art. 225 da CF/88, que trata do direito ao ambiente ecologica-
mente equilibrado, inclui, por essência, o meio ambiente do trabalho. Dessa forma,
a base constitucional a que é atribuída a proteção da ambiência laboral reflete sua
observância em quaisquer atividades que envolvam relações de trabalho, sejam elas
prestadas por pessoas jurídicas de Direito Público, seja pelas de Direito Privado.
Por tais considerações, e tratando-se de normas que tutelam, acima de tudo, a
proteção da vida do trabalhador, é que não se pode admitir tratamento diferenciado
quanto à competência da Justiça do Trabalho para as questões que envolvam meio
ambiente do trabalho quando, no polo passivo da demanda, encontra-se ente da
Administração Pública direta ou indireta.
Nesse sentido já há entendimento fixado pela Suprema Corte, conforme a
Súmula n. 736, que reconhece tal competência quando a questão objeto da lide
envolve descumprimento de normas de saúde e segurança do trabalho, de modo
que a Administração Pública assegure direitos constitucionais sem que haja viola-
ção à separação dos Poderes:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA – DESCABIMENTO.
1. DESCUMPRIMENTO DE NORMAS TRABALHISTAS RELATIVAS À
SEGURANÇA, HIGIENE E SAÚDE DOS TRABALHADORES. REGIME
JURÍDICO ESTATUTÁRIO. SÚMULA 736/STF. COMPETÊNCIA DA
JUSTIÇA DO TRABALHO. Nos termos da Súmula 736/STF, compete à Justiça
do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento
de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores.
Não se diga que a Súmula 736/STF encontra-se superada, uma vez que, nos autos
da Rcl 3303/PI, a própria Suprema Corte, em composição plenária, já ratificou a
aplicabilidade do referido verbete, mesmo após a decisão proferida na ADI 3.395-
MC. Precedente da SBDI-2/TST. 2. ENTE PÚBLICO. SERVIDORES PÚBLICOS.

697
HIGIENE E SAÚDE DOS TRABALHADORES. Não há preceito constitucional
ou legal que autorize a Administração Pública a descumprir normas que assegu-
ram a higidez do meio ambiente de trabalho, que tem, inclusive, proteção consti-
tucional (art. 200, VIII, da Constituição Federal). De outro norte, a Carta Magna
expressamente estendeu aos servidores públicos o direito à redução dos riscos
inerentes ao trabalho (arts. 7°, XXII e 39, §3°, da Constituição Federal), sendo
certo que esse direito fundamental dos administrados somente pode se materia-
lizar pela observância de normas concernentes à higiene e medicina do trabalho.
O absoluto descumprimento dessas regras resulta no perecimento desse direito
fundamental, o que não se pode admitir, sob pena de se relegar a dignidade
da pessoa humana (art. 1°, III, da Constituição Federal), vértice axiológico da
Constituição Federal e do próprio Estado, a um plano secundário. Agravo de
instrumento conhecido e desprovido. (eDOC 6, p. 1-2, rel. min. Gilmar Mendes).
Nesse diapasão, também o Tribunal Superior do Trabalho, a exemplo do jul-
gamento do Recurso de Revista n. 2330-22.2012.5.10.0009 em 12 de fevereiro de
2020, consagrou entendimento acerca da competência dessa justiça especializada
para ações envolvendo a tutela do meio ambiente do trabalho, ainda que sejam os
servidores submetidos a regime estatutário. Veja-se:
RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014 E
ANTERIOR À LEI Nº 13.467/2017. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELO
MINISTÉRIO PÚBLICO EM FACE DO DISTRITO FEDERAL. TUTELA
DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. ABRANGÊNCIA DE TODOS OS
TRABALHADORES, INCLUSIVE DOS SERVIDORES ESTATUTÁRIOS.
MATÉRIA EMINENTEMENTE TRABALHISTA. SÚMULA 736 DO STF.
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Nesta fase processual, encon-
tra-se em discussão qual seria o Órgão jurisdicional competente para julgar ação
civil pública tendo como objeto a tutela do meio ambiente do trabalho, por meio
da qual se busca dar efetividade ao comando do art. 225 da Constituição Federal.
A presente ação tem por objeto exigir o cumprimento, pelo Distrito Federal, das
normas relativas à higiene, saúde e segurança do trabalho – o que configura
direito constitucionalmente assegurado tanto aos trabalhadores regidos pela
CLT quanto àqueles submetidos ao regime estatutário, conforme o disposto nos
arts. 7º, XXII, e 39, § 3º, da CF. Frise-se que a natureza do vínculo empregatício
firmado entre o ente público e o trabalhador, no caso concreto, não tem relevân-
cia para alterar a competência para julgar esta lide, haja vista que a tutela do meio
ambiente do trabalho deve se dar de forma efetiva e adequada quer se trate de
servidor público estatutário, quer envolva empregados celetistas – de modo que
o bem jurídico que se busca proteger se encontra diretamente relacionado à com-
petência da Justiça do Trabalho, subsumindo-se às hipóteses previstas no art.
114, I, da Constituição Federal. Ressalte-se ser comum que, no mesmo ambiente
laboral dos Órgãos públicos, convivam pessoas ligadas à Administração Pública
por diferentes vínculos: servidores públicos estatutários, empregados públicos
regidos pela CLT, servidores contratados por tempo determinado (Lei 8.745/93),
trabalhadores prestadores de serviços terceirizados e estagiários. Nesse contexto,
como as condições de segurança, saúde e higiene de trabalho afetam a todos os
trabalhadores indistintamente, seria inviável definir a competência para apre-
ciar ações como esta, tendo como fundamento determinante a condição jurídica
individual de cada trabalhador dentro da Administração Pública. Cuida-se, des-
tarte, de situação distinta da examinada pelo STF na ADI 3.395-6, para a qual a
definição da competência jurisdicional decorreu da natureza do regime jurídico:

698
se celetista ou estatutário. Destaque-se, inclusive, que o entendimento jurispru-
dencial do STF acerca da matéria em discussão demonstra que a limitação de
competência imposta à Justiça do Trabalho pela decisão daquela Corte na ADI
3395-6 não alcança as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento
de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores.
Nessa linha de raciocínio, tem aplicação à hipótese dos autos a Súmula 736 do
STF, segundo a qual “Compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham
como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à
segurança, higiene e saúde dos trabalhadores”. Portanto, insere-se no âmbito da
competência material da Justiça do Trabalho a apreciação e julgamento de ação
civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho, mediante a qual se
formulam pedidos relativos à adequação do meio ambiente de trabalho, em face
de ente público, para todos os trabalhadores, independente do vínculo jurídico
laboral, inclusive para os servidores estatutários. Julgados desta Corte Superior.
Recurso de revista conhecido e provido. (BRASIL, 2020g, grifo nosso).
Além disso, no julgamento proferido pelo STF quando da apreciação da
Reclamação n. 3.303-PI, proposta em face de ação civil pública ajuizada pelo
MPT contra o Estado do Piauí, firmou-se o entendimento no sentido de ser a
Justiça do Trabalho competente para julgar ação que tenha por objetivo obrigar a
Administração Pública – ainda que se trate de relação submetida ao regime estatu-
tário – a obedecer às normas de saúde, higiene e segurança do trabalho. A decisão,
proferida pelo relator, ministro Carlos Ayres Britto, possui a seguinte ementa:
CONSTITUCIONAL. RECLAMAÇÃO. ADI 3.395-MC. AÇÃO CIVIL
PÚBLICA PROPOSTA NA JUSTIÇA DO TRABALHO, PARA IMPOR AO
PODER PÚBLICO PIAUIENSE A OBSERVÂNCIA DAS NORMAS DE SAÚDE,
HIGIENE E SEGURANÇA DO TRABALHO NO ÂMBITO DO INSTITUTO
MÉDICO LEGAL. IMPROCEDÊNCIA. 1. Alegação de desrespeito ao decidido
na ADI 3.395-MC não verificada, porquanto a ação civil pública em foco tem por
objeto exigir o cumprimento, pelo Poder Público piauiense, das normas traba-
lhistas relativas à higiene, segurança e saúde dos trabalhadores. 2. Reclamação
improcedente. Prejudicado o agravo regimental interposto. (BRASIL, 2007).
Para que dúvidas não restem quanto à competência da Justiça do Trabalho para
ações que envolvam violação as normas de saúde e segurança do trabalho em que
seja parte o ente público, independentemente do tipo de vínculo constituído com os
trabalhadores, destacam-se outros julgados da Corte Trabalhista que reconhecem
pacificamente tal entendimento:
RECURSO DE EMBARGOS. REGÊNCIA DA LEI Nº 11.496/2007. AÇÃO
CIVIL PÚBLICA. ADEQUAÇÃO DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO.
SERVIDORES ESTADUAIS ESTATUTÁRIOS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA
DO TRABALHO. 1. A eg. Quarta Turma não conheceu do recurso de revista, sob
o fundamento de que a Justiça do Trabalho é incompetente para resolver contro-
vérsias envolvendo servidor público estatutário mesmo nos casos que envolvam o
meio ambiente e a segurança do trabalho e as condições de saúde do servidor. 2.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Reclamação nº 3.303/
PI, DJe 16/05/2008, concluiu que a restrição da competência da Justiça do Trabalho
para julgar as causas de interesse de servidores públicos, resultante do decidido na
ADI nº 3.395/DF-MC, não alcança as ações civis públicas propostas pelo Ministério
Público do Trabalho cuja causa de pedir seja o descumprimento de normas de
segurança, saúde e higiene dos trabalhadores. Recurso de embargos conhecido

699
e provido. (E-ED-RR-60000-40.2009.5.09.0659, Subseção I - Especializada em
Dissídios Individuais, rel. min. Walmir Oliveira da Costa, DEJT 29 nov. 2018).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. PROCESSO
SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014 E ANTERIOR À LEI Nº 13.467/2017.
1. PRELIMINAR DE NULIDADE POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO
JURISDICIONAL. ALEGAÇÃO GENÉRICA. NÃO CONFIGURAÇÃO.
2. PRELIMINAR DE NULIDADE POR CERCEAMENTO DE DEFESA.
NÃO CARACTERIZAÇÃO. 3. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELO
MINISTÉRIO PÚBLICO EM FACE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
TUTELA DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. ABRANGÊNCIA
DE TODOS OS TRABALHADORES, INCLUSIVE DOS SERVIDORES
ESTATUTÁRIOS. MATÉRIA EMINENTEMENTE TRABALHISTA. SÚMULA
736 DO STF. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. A presente ação
civil pública tem por objeto exigir o cumprimento, pelo Estado do Rio de Janeiro,
das normas relativas à higiene, segurança e saúde do trabalho – o que constitui
direito constitucionalmente assegurado tanto aos trabalhadores regidos pela
CLT quanto àqueles submetidos ao regime estatutário, conforme o disposto nos
arts. 7º, XXII, e 39, § 3º, da CF. Frise-se que não está em discussão a natureza
do vínculo empregatício, que não tem relevância para o objeto da presente ação.
Situação, portanto, distinta da examinada pelo STF na ADI 3.395-6, para a qual
a definição da competência jurisdicional decorre da natureza do regime jurídico:
se celetista ou estatutário. Nessa linha de raciocínio, tem aplicação à hipótese
dos autos a Súmula 736 do STF. Julgados desta Corte Superior. Portanto, inse-
re-se no âmbito da competência material da Justiça do Trabalho a apreciação e
julgamento de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho,
mediante a qual se formulam pedidos relativos à adequação do meio ambiente
de trabalho em face de ente público para todos os trabalhadores, independente
do vínculo jurídico laboral, inclusive para os servidores estatutários. Agravo de
instrumento desprovido. (BRASIL, 2019b).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO
SOB A ÉGIDE DAS LEIS N. 13.015/2014 E 13.105/2015 – DESCABIMENTO.
[...] 2. DESCUMPRIMENTO DE NORMAS TRABALHISTAS RELATIVAS
À SEGURANÇA, HIGIENE E SAÚDE DOS TRABALHADORES. REGIME
JURÍDICO ESTATUTÁRIO. SÚMULA 736/STF. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA
DO TRABALHO. Nos termos da Súmula 736/STF, “compete à Justiça do Trabalho
julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas
trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores”. Não se diga
que a Súmula 736/STF encontra-se superada, uma vez que, nos autos da Rcl 3303/
PI, a própria Suprema Corte, em composição plenária, já ratificou a aplicabilidade
do verbete, mesmo após a decisão proferida na ADI 3.395-MC. Precedentes. [...]
Agravo de instrumento conhecido e desprovido. (BRASIL, 2017).
É observado que resta sedimentado, inclusive pela mais Alta Corte, o entendi-
mento pela competência da Justiça do Trabalho para dirimir questões que envol-
vam trabalhadores sujeitos a regime estatutários, uma vez que tais questões são
puramente afeitas às normas de proteção à segurança e à saúde do trabalhador,
amparadas, integralmente, pela Constituição Federal na forma já exposta.
O que, por outro lado, verifica-se é que, ou no contexto da pandemia ou mesmo
em outras oportunidades, a aplicação da boa técnica jurídica conduz à constatação
que determinados fatos podem desafiar concomitantemente a apreciação de vários

700
ramos do Judiciário, observadas as regras de divisão de competência, de acordo
com o que seja objeto de apreciação.
O reconhecimento da competência da Justiça do Trabalho para julgar as preten-
sões deduzidas sobre saúde e segurança do trabalho, esfera judicial materialmente
especializada na apreciação do meio ambiente do trabalho, cerne e origem do pró-
prio Direito do Trabalho, é revelador do protagonismo atribuído pelo ordenamento
jurídico brasileiro à preservação da integridade física do trabalhador, independente
da qualidade do seu vínculo jurídico.

REFERÊNCIAS
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais,
democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.
BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nota Técnica GVIMS/GGTES/ANVISA
n. 04/2020. 2020a. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/documents/33852/271858/
Nota+T%C3%A9cnica+n+04-2020+GVIMS-GGTES-ANVISA/ab598660-3de4-4f14-
8e6f-b9341c196b28. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nota Técnica GVIMS/GGTES/ANVISA
n. 07/2020. 2020b. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/documents/33852/271858/
NOTA+T%C3%89CNICA+-GIMS-GGTES-ANVISA+N%C2%BA+07-2020/f487f506-
1eba-451f-bccd-06b8f1b0fed6. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação n. 66, de 13.5.2020. 2020c.
Disponível em: https://www2.oabsp.org.br/asp/clipping_jur/ClippingJurDetalhe.asp?
id_noticias=25453. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452/1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. 1943.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso
em: set. 2020.
BRASIL. Lei n. 7.783/1989. Lei de Greve. Dispõe sobre o exercício do direito de greve,
define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades inadiáveis da
comunidade, e dá outras providências. 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l7783.HTM. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Lei n. 8.019/1974. Dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas, e
dá outras providências. 1974. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l6019.htm. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Lei n. 8.080/1990. Lei Orgânica do SUS. Dispõe sobre as condições para
a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos
serviços correspondentes e dá outras providências. 1990. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Lei n. 8.666/1993. Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública.
Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações
e contratos da Administração Pública e dá outras providências. 1993. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Ministério da Economia – Secretaria do Trabalho. Norma Regulamentadora n.
32: Segurança e saúde no trabalho em serviços de saúde. 2005. Disponível em: https://enit.
trabalho.gov.br/portal/images/Arquivos_SST/SST_NR/NR-32.pdf. Acesso em: set. 2020.

701
BRASIL. Ministério Público do Trabalho. Petição inicial da Ação Civil Pública - MPT n.
0100370-10.2020.5.01.009.
BRASIL. Ministério da Saúde. Recomendações de proteção aos trabalhadores dos
serviços de saúde no atendimento de Covid-19 e outras síndromes gripais. Abr. 2020d.
Disponível em: http://profsaude-abrasco.fiocruz.br/sites/default/files/publicacoes/
cgsat-recomendacoes-de-protecao-aos-trabalhadores-dos-servicos-de-saude-no-
atendimento-de-covid-19.pdf. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIs 6342; 6344; 6346; 6348;6349;6352; 6354
– Ref-MC/DF. Relator ministro Marco Aurélio. Red. p/ o ac. ministro Alexandre de
Moraes. Julgamento: 29 abr. 2020e. Disponível em: http://stf.jus.br/arquivo/informativo/
documento/informativo975.htm. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 658.171 – DF.
Relator Ministro Dias Toffoli. Data do julgamento: 1º abr. 2014. Disponível em: https://
stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/25061175/agreg-no-recurso-extraordinario-re-
658171-df-stf/inteiro-teor-118287716. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE n. 1062324. Relator ministro Gilmar
Mendes. DJ 25 mar. 2019a. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/
visualizarEmenta.asp?s1=000343933&base=baseMonocraticas. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Atos de agentes públicos durante a pandemia devem
observar critérios técnicos e científicos. 2020f. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/
noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443888&ori=1. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 3.303-PI. Relator ministro
Carlos Ayres Brito. DJ: 19 nov. 2007. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/
jurisprudencia/14725140/reclamacao-rcl-3303-pi. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 167.137 – TO. Relator
ministro Paulo Brossard. Data do julgamento: 18 out. 1994. Disponível em: https://stf.
jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14705204/recurso-extraordinario-re-167137-to/inteiro-
teor-103097478?ref=juris-tabs. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. 3. Turma. Agravo de Instrumento em Recurso
de Revista n. 1090-60.2015.5.22.0105. Relator ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan
Pereira. Julgamento: 14 jun. 2017. Publicação: DEJT 23 jun. 2017. Disponível em: https://
jurisprudencia.tst.jus.br/#440da2a1d53d4e48b74a00cdff691ee1. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. 3. Turma. Agravo de Instrumento em Recurso
de Revista n. 10429-57.2013.5.01.0021. Relator ministro Mauricio Godinho Delgado.
Julgamento: 28 ago. 2019. Publicação: DEJT 30 ago. 2019b. Disponível em: https://tst.
jusbrasil.com.br/jurisprudencia/750896150/agravo-de-instrumento-em-recurso-de-
revista-airr-104295720135010021. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Embargos Declaratórios em Recurso de Revista
n. 60000-40.2009.5.09.0659. Relator ministro Walmir Oliveira da Costa. DJ 22 nov.
2018. Disponível em: https://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/653841429/embargos-
declaratorios-recurso-de-revista-e-ed-rr-600004020095090659. Acesso em: set. 2020.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista n. 2330-22.2012.5.10.0009.
Relator ministro Maurício Godinho Delgado. DJ 12 fev. 2020g. Disponível em:
https://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/810387381/recurso-de-revista-rr-
23302220125100009?ref=serp. Acesso em: set. 2020.

702
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27. ed. São
Paulo: Atlas, 2014.
CAVALLI, Cássio. O controle da discricionariedade administrativa e a discricionariedade
técnica. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, FGV, v. 251, p. 61-76, maio/
ago. 2009.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade técnica e discricionariedade
administrativa. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – Redae, n. 9, 2007.
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 27. ed. São Paulo:
Malheiros, 2014.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
MORAES, Alexandre de. Princípio da eficiência e controle jurisdicional dos atos
administrativos discricionários. Revista de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, v.
243, p. 13-28, set./out./nov./dez. 2006.
OIT. Organização Internacional do Trabalho. Convenção n. 155 – Saúde e Segurança
dos Trabalhadores. 1981. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/
WCMS_236163/lang--pt/index.htm. Acesso em: set. 2020.
RODRIGUES; Lucas Amadeu Lucchi; LUCCHI, Renatha Doano Pires. Controle
jurisdicional dos atos administrativos discricionários com base nos princípios da
administração pública e da inafastabilidade da jurisdição. 2019. Disponível em: https://
ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/controle-jurisdicional-dos-
atos-administrativos-discricionarios-com-base-nos-principios-da-administracao-
publica-e-da-inafastabilidade-da-jurisdicao/. Acesso em: 21 maio 2020.
SMARTLAB. Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho. Disponível em:
https://smartlabbr.org/sst. Acesso em: set. 2020.

703
CRIMES CULTURALMENTE MOTIVADOS
O abandono de gemelares Guarani
sob a perspectiva do Direito brasileiro

Tainá Viana1
Marcelo Beckhausen2

“Se quisermos ser capazes de julgar com largueza, como é óbvio que devemos
fazer, precisamos tornar-nos capazes de enxergar com largueza.”
(Clifford Geertz)

Sumário: 1 Introdução. 2 Fundamentação teórica. 2.1 Conceituação da prática: o que


é o abandono de gemelar. 2.2 Definição legal: teoria do delito – excludente de ilicitude.
2.3 Do aspecto antropológico, social e multicultural. 2.4 Do procedimento penal de réu
indígena. 2.5 Do acolhimento do gemelar abandonado. 3 Considerações finais.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O abandono de gemelares entre as comunidades Guarani é um evento relevante
ao direito em suas várias perspectivas. Além de ser um desafio lidar com a questão
da imputação deste abandono de menor dentro de uma esfera cultural e social como
uma prática costumeira e aceitável, tem-se o fato de a criança ficar eventualmente
vulnerável, necessitando de amparo estatal.
Este estudo busca uma classificação a partir da teoria do delito e da esfera consti-
tucional para esse tipo específico de ato na cultura indígena, com reflexos no direito
estatal, e também uma solução social para o gemelar desamparado.
Assim, o presente artigo tem o objetivo de demonstrar que o ato de abandonar
um gemelar pela cultura Guarani, seguindo suas crenças e costumes, pode eviden-
ciar uma excludente de ilicitude no direito penal brasileiro. Conforme será deli-
neado ao longo deste estudo, para punir o índio praticante de tal ato ante sua com-
preensão diversa do ilícito, o que poderá ser enquadrado como erro de proibição,
deve-se assegurar que esse possa ser corretamente defendido, pois em não sendo
assim estaria o Estado agindo com inconstitucionalidade e de forma inadequada.

1 Acadêmica do curso de Direito. Aluna de iniciação científica na Universidade do Vale do Rio dos
Sinos com mobilidade acadêmica na Universidade de Coimbra.
2 Procurador Regional da República (com experiência na área cível e criminal). Ex-Procurador
Regional dos Direitos do Cidadão. Membro do Núcleo de Apoio Operacional à Procuradoria
Federal dos Direitos do Cidadão – PRR4. Professor de Direito Constitucional na Universidade do
Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Mestre em Direito pela UNISINOS. Graduado em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

705
No que tange à questão social e ao desamparo da criança abandonada pelos
Guaranis, sugere-se aqui a figura do acolhimento institucional estatal, dando-lhe
a chance de ser adotada e inserida em um novo núcleo familiar, priorizando as
famílias indígenas da mesma etnia.
Portanto, aqui se partirá de uma perspectiva constitucional para tratar do aban-
dono de gemelares no sistema jurídico brasileiro, buscando alternativas teóricas e
práticas para o enquadramento dessa prática indígena ante o direito estatal.

2 ∙ FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 ∙ CONCEITUAÇÃO DA PRÁTICA: O QUE É O ABANDONO DE GEMELAR
Talvez o Constituinte de 88 tenha caminhado aquém do desejado pelos povos
indígenas: um fechamento da diferenciação funcional no sentido da autonomia
dessas populações através do reconhecimento de uma “judicialização” interna do
comportamento de seus respectivos sistemas sociais, que ocorre em outros países
latino-americanos, como a Bolívia, que estabelece “la jurisdicción indígena originaria
campesina se ejerce por sus propias autoridades”, no artigo 179 da Constituição boli-
viana, ou como a Colômbia, ao estatuir que “Las autoridades de los pueblos indígenas
podrán ejercer funciones jurisdiccionales dentro de su ámbito territorial, de conformi-
dad con sus propias normas y procedimientos”, artigo 246 da Constituição colombiana.
Mesmo que a Carta Constitucional não tenha chegado a essa integração institu-
cional, seu art. 231 permite que se inicie um percurso judicial a partir da diferença
cultural, reconhecida claramente pelo texto, em sua composição com outros direitos
igualmente fundamentais. Assim, em que pese a grande discussão hoje sobre perspec-
tivas interculturais – em que a simetria entre expectativas de comportamento entra
em jogo – e multiculturais, em que o Estado assume uma posição de interlocutor
e gestor de políticas, a ideia presente ao longo do texto é apresentar uma proposta
de atuação para os agentes responsáveis pela proteção dessas Comunidades, ou para
essas próprias, a fim de que possam lidar com situações bastante desafiadoras, cuja
complexidade, aliás, o texto constitucional não conseguiu incorporar em larga medida
a ponto de criar um vínculo mais estreito da Magna Carta com o agir das instituições.
A Constituição de 1988 preencheu diversas lacunas normativas e transformou
outros dispositivos a partir de demandas internacionais do agregado e nacionais, por
pressões sociais dos mais diferentes grupos, diante de um momento que procurava
a democratização das instituições, devidamente integradas ao texto constitucional,
determinando que essas cumprissem tarefas relacionadas aos mais variados temas,
desde o meio ambiente até a diferença cultural. A Constituição agregou instituições
que atuam na ordem constitucional permitindo que da ação coletiva e dinâmica des-
sas “e dos indivíduos, no plano constitucional, possa se desdobrar uma resultante
predominância de efeitos benéficos ao sistema e aos destinatários de sua atividade”
(BOLONHA; RANGEL; ALMEIDA, 2014, p. 13), entre os quais destaco as popu-
lações indígenas, e possibilitando, também, “um eficiente e estável funcionamento
deste agregado”.
Dessa forma, populações indígenas e instituições que devem atuar na prote-
ção destas assumem um compromisso irrevogável de defesa da Constituição, ato

706
fundador do sistema do Direito, na medida em que essa interação pode ser obser-
vada a partir de eventuais paradoxos ocasionados pela hipercomplexidade do
sistema social Guarani e da correlata hipercomplexidade de respostas normativas
e judiciais. As comunidades indígenas devem ser objeto de uma ação conectada
com o texto constitucional, em que ocupam igualmente um espaço de fundamen-
talidade, em face de sua plurivulnerabilidade (política, sociocultural, imunológica),
ensejando ações articuladas entre os entes federados (BRASIL, 2020).
Os aportes antropológicos já existentes permitem iniciar o percurso e evidenciar
o tema de forma bastante abrangente. O livro Diálogos com os Guaranis, das auto-
ras catarinenses Nádia Heusi Silveira, Clarissa Rocha de Melo e Suzana Cavalheiro
de Jesus, traz de forma conceitual o abandono de gemelares na cultura Guarani.
Nele as autoras explicitam que, para a comunidade, tanto entre os grupos Mbya
quanto entre os Nhandeva, os desdobramentos em função de uma gestação de
gêmeos começam desde cedo. E assim, as índias gestantes implementam, inclusive,
dietas alimentares e as restrições envolvidas nos processos de produção de corpos já
visando evitar o nascimento de crianças com deficiência e (ou) gêmeas.
A concepção de deficiência pelo fator gemelar decorre de que “não é bom que
pessoas com essas constituições venham a nascer nesta terra, por diversas razões,
especialmente por, provavelmente, seus corpos serem mais frágeis” (SILVEIRA;
MELO; JESUS, 2016). Assim, existe um entendimento tradicional de que o corpo
alterado é consequência de falta de cuidados por parte dos pais, o que indica que
eles precisam ter um grau de cuidados ainda maior com crianças gêmeas.
No que diz respeito a essas crianças, as autoras trazem algumas explicações da
narrativa sobre Pa’i Rete Kuaray, conhecida como mito dos gêmeos. Nessa senda,
Léon Cadogan escreve sobre relatos Guarani que percebem o nascimento de gêmeos
como resultado de uma união que desagrada os deuses. Explica o antropólogo que
“as crianças gêmeas nasceriam portadoras de espíritos malignos e nenhuma mulher
em idade fértil as poderia tocar, ver ou ouvir o choro dessas crianças” (CADOGAN,
1946). Mas, ainda hoje é comum entre os Guaranis práticas culturais destinadas à
prevenção do nascimento de gêmeos, mostrando ser esse fato um grande desafio à
tribo, pois para eles isso é uma ameaça às gerações futuras.
Para as comunidades Nhandeva, a questão da produção de corpos distintos
engloba tanto o bebê com alguma deficiência quanto gêmeos. As autoras Silveira,
Melo e Jesus explicam (2016) que,
nas narrativas dos mais velhos, quando um casal tem filhos gêmeos, do mesmo
sexo, espera-se que Nhanderú leve um deles. Mas se nascerem de sexos diferen-
tes, um menino e uma menina, ambos sobreviverão e um deles terá um filho com
alguma deficiência.
Resta claro que a semelhança dos corpos é narrada como fato extraordinário.
Assim, no entendimento Guarani, duas pessoas do mesmo sexo, que nascem da
mesma gestação, possuem poucas chances de sobreviver. E, quando são de sexos
diferentes e sobrevivem, o fato de uma delas gerar um filho com deficiência pode
indicar também que a gemelaridade está relacionada às causas de deficiências e,
portanto, deve a criança ser excluída da sociedade indígena.
Nesse sentido, Silveira, Melo e Jesus novamente explicam (2016):

707
Mesmo a categoria deficiência utilizada no cotidiano não corresponde ao significado
dado pela Política Nacional. Por fim, reconhecemos que inclusive a ideia de corpo
distinto, que usamos neste texto, não preenche totalmente o sentido que é explicitado
nas narrativas ouvidas entre essas parcialidades, pois a semelhança acentuada dos
gêmeos idênticos também caracteriza um corpo que pode ser considerado fora do
padrão social. Desse modo, a categoria corpos distintos visa abarcar corpos que se
diferenciem dos demais por um fenômeno que a biomedicina ou a área da educação
especial denominaria de deficiência e corpos que tenham nascido juntos, em uma
mesma gestação, que é o caso das crianças gêmeas (JESUS, 2013). Assim, tanto seme-
lhanças quanto diferenças significativas são critérios para definir e classificar quem
não está dentro daquilo que se percebe como padrão corporal naquela sociedade.
É preciso entender que o nascimento de crianças gêmeas nas aldeias é compreen-
dido como falha na comunicação com os deuses, e essas crianças amaldiçoadas não
devem compor a aldeia, sendo por esse motivo rechaçadas.
No já referido livro, Diálogos com os Guaranis (SILVEIRA; MELO; JESUS, 2016),
as autoras ainda esclarecem:
Para evitar o nascimento de crianças gêmeas, as mulheres grávidas Mbya seguem
alguns preceitos, tais como: evitar deixar objetos iguais próximos um ao outro,
como duas panelas de igual tamanho sobre o fogo de chão, entre outras associações
que possam atrair a gemelaridade na gestação. Nesses casos, os Mbya se furtam de
criar os gêmeos nas mesmas parentelas, por entenderem que tal atitude pode trazer
mau agouro a todos os parentes. Sendo assim, no caso desses nascimentos, os Mbya
logo os separam através da escolha de uma das crianças que será transferida para
outras parentelas, geralmente da parcialidade. Tal decisão, bastante difícil para a
mãe, constitui-se, desse modo, em um sacrifício individual em favor do social.
As mulheres Mbya relatam que, antigamente, ao tomarem conhecimento da
gemelaridade na gestação através das consultas com os pajés, essas mães já não
investiam nos cuidados necessários, desde a gravidez, para a conformação do Ser,
dentro do que seja considerado humano por esse povo. Assim, essas crianças não
eram consideradas humanas desde muito antes do nascimento e, em tempo ante-
riores, não as deixavam para que pudessem viver.
Porém, atualmente, existe um controle estatal por meio dos órgãos de saúde indí-
genas que, ao diagnosticarem a gestação de gêmeos, informam essas mulheres das
implicações a respeito de práticas culturais antigas. Resta clara a complexidade do
caso dessas crianças na sociabilidade Guarani em frente aos desafios do Estado na
compreensão da diferença cultural existente dentro de nosso País. Assim, necessária se
faz a análise das teorias do delito para a compreensão do enquadramento da prática do
abandono dentro do ordenamento jurídico brasileiro, já que é papel da Constituição
“permitir que a relação entre as instituições assuma formas diversas para se adaptar
às circunstâncias internas ou externas ao sistema que poderão comprometer o seu
regular funcionamento” (BOLONHA; RANGEL; ALMEIDA, 2014, p. 25).

2.2 ∙ DEFINIÇÃO LEGAL: TEORIA DO DELITO –


EXCLUDENTE DE ILICITUDE
O exposto neste estudo resulta de uma teia social que regula a vida indígena,
demonstrando que a vida coletiva é priorizada em relação à individual e, assim,
o nascimento de um gemelar é, culturalmente, uma ameaça à saúde de toda uma

708
aldeia Guarani, caracterizando-se como um mal que deve ser banido, algo que lhes
foge do alcance crítico e consciente.
Nas palavras de Van Broeck (2001), quando se refere a cultural offences, os cri-
mes culturalmente motivados são:
Un acto de un miembro de una cultura minoritaria que es considerado un delito
por el sistema jurídico de la cultura dominante. El mismo acto es, sin embargo,
dentro del grupo cultural del delincuente, perdonado, aceptado como un compor-
tamiento normal y aprobado o, incluso, promovido em una situación dada.
Por sua vez, no conceito de Cristina de Maglie (2017, p. 70), os crimes cultural-
mente motivados podem ser identificados como
[u]m comportamento realizado por um sujeito pertencente a um grupo étnico
minoritário, que vem a ser considerado como delito pelas normas do sistema da
cultura dominante. O mesmo comportamento, na cultura do grupo de pertença
do agente, é, por outro lado, aceito como normal ou aprovado ou, em determina-
das situações, é ate mesmo imposto.
Nessa senda, as tradições, usos e práticas culturais têm influência nas decisões e
ações individuais. Se assim é, isso significa que a motivação cultural configura o sen-
tido interno da ação, constituindo um fator explicativo da sua prática e, por isso, um
aspecto relevante na apreciação da responsabilidade criminal do agente (DIAS, 2015).
Conforme dispõe a autora Fátima Cisneros Ávila (2018, p. 226):
Os requisitos exigidos para a configuração de um crime culturalmente motivado
possuem estruturação em forma de níveis. Essa estruturação parte do fator psí-
quico, que se relaciona à ingerência da cultura no arbítrio do indivíduo; passa
pelos fatores objetivos atinentes à identidade de reações entre o autor cultural
e os demais integrantes do grupo; por último, há a verificação da existência de
relação antagônica entre a cultura majoritária e a de pertença.
Assim, o ato de abandonar um gemelar não pode ser tipificado como doloso, uma vez
que falta aos Guaranis a intenção de prejudicar a criança em si, ou seja, não está presente o
dolo direto ou eventual para a ação, pois como explicitado não se trata de um ato discricio-
nário de vontade, mas de algo que é culturalmente aceito e imposto de geração em geração.
Conforme Raul Zaffaroni e Pierangeli sugerem, existe uma categoria autônoma,
o erro de compreensão culturalmente motivado, tendo em conta que a situação de
consciência divergente é capaz de conduzir a um legítimo erro de compreensão
invencível e apta a ensejar a não culpabilidade, pois decorre justamente da hipótese
de que sujeitos instruídos por bases culturais distintas, as quais são internalizadas
desde tenra idade por intermédio de comandos de conduta, entram em conflito com
o sistema jurídico dominante (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2019).
Desta forma, estamos diante do erro de proibição, que é aquele em que o agente
desconhece a ilicitude do ato praticado ou acredita que tal ato é justificável ante
a sua percepção cultural. Esse tipo penal está previsto no art. 20 e seguintes do
Código Penal brasileiro, em especial no tocante ao texto do § 1º deste, bem como o
temos expressamente tipificado no art. 21 do mesmo diploma legal.
Desse modo,
o erro de compreensão culturalmente condicionado será um erro de proibição
invencível, que eliminará a culpabilidade da conduta, por mais que a consciência

709
dissidente, em princípio, por si mesma, não seja uma causa de inculpabilidade.
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2019).
Assim, o erro de proibição inevitável anula a consciência da ilicitude, então,
constatando-se essa hipótese se exclui a culpabilidade que, por sua vez, afasta a
condenação por dolo e (ou) culpa, que é o de que trata o presente estudo. Por sua
vez, quando se tratar de erro de proibição evitável, afasta-se a condenação por dolo,
podendo apenas recair a condenação sobre o fator culpa, mas que se aplica com
atenuante de pena (TOLEDO, 1984), o que se enquadraria em nosso caso apenas no
tocante ao agente que não tenha em seu laudo antropológico atestada sua conduta
como socialmente aceita pelo sistema cultural ao qual pertence.
Isso porque, para a aferição do fato culturalmente motivado, é necessário um pro-
cesso composto por três fases distintas e sobrepostas entre si, quais sejam: fases do motivo
cultural, da coincidência de reação e do confronto entre culturas, ocasião em que se con-
cluirá pela existência ou não de um fato culturalmente motivado (MAGLIE, 2017).
Cabe também deixar claro que a competência para julgar esses ilícitos é da jus-
tiça federal, conforme o texto da Súmula n. 140 do Superior Tribunal de Justiça,
pois “a ‘disputa’, lide, conflito, litígio, eventualmente associada à diversidade cul-
tural indígena ativa a apreciação e decisão de tal demanda pelo judiciário federal”
(BECKHAUSEN, 2009, p. 166). Nesse sentido, o seguinte julgado:
EMENTA: HABEAS CORPUS. DISPUTA SOBRE DIREITOS INDÍGENAS.
COMPETÊNCIA FEDERAL. PRISÃO PREVENTIVA. PRESENÇA DOS
REQUISITOS. EXCESSO DE PRAZO PARA INSTRUÇÃO. INOCORRÊNCIA.
LIBERDADE PROVISÓRIA INDEFERIDA. 1. A jurisprudência consolidou
entendimento no sentido de que os crimes envolvendo a disputa sobre direitos e
culturas indígenas a competência para processar e julgar é da Justiça Federal. 2. O
reconhecimento do excesso de prazo durante a instrução somente é admissível
quando a demora for injustificada, impondo-se a adoção de critério de razoa-
bilidade no exame da sua eventual ocorrência. 3. Os prazos para conclusão de
inquérito policial ou instrução criminal não são peremptórios, podendo ser
dilatados dentro de limites razoáveis, quando a complexidade da investigação
assim exigir. 4. A prisão provisória é medida rigorosa que, no entanto, se justifica
nas hipóteses em que presente a necessidade, real e concreta, para tanto. 5. Para a
decretação da prisão preventiva é imprescindível a presença do fumus commissi
delicti, ou seja, prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, bem
como do periculum libertatis, risco à ordem pública, à instrução ou à aplicação
da lei penal. 6. Verificada a presença dos elementos necessários à aplicação da
prisão preventiva. 7. Denegada a ordem de habeas corpus. (TRF4, HC 5053726-
82.2019.4.04.0000, Oitava Turma, relator João Pedro Gebran Neto, juntado aos
autos em 20.2.2020, grifo nosso).
Ressalta-se, portanto, no que tange à responsabilidade criminal, o entendimento
de que, sem levar em consideração os aspectos socioculturais envolvidos no fato,
não se pode atribuir aos indígenas a responsabilidade prevista no art. 133 do Código
Penal brasileiro, que trata do abandono de incapaz, muito menos a hipótese do art.
249 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispõe sobre o descumprimento
dos deveres de tutela familiar.
Nesse ponto, necessária se faz a análise dos impactos das teorias multicultura-
listas na resolução de conflitos.

710
2.3 ∙ DO ASPECTO ANTROPOLÓGICO, SOCIAL E MULTICULTURAL
A definição de multiculturalidade pode se dar através do que nos diz Costa
e Werle (2000), que seria então a expressão da afirmação e da luta pelo reconhe-
cimento da pluralidade de valores e da diversidade cultural no arcabouço insti-
tucional do Estado Democrático de Direito, mediante o reconhecimento dos
direitos básicos dos indivíduos enquanto seres humanos e o reconhecimento das
necessidades particulares desses como membros de grupos culturais específicos.
E, portanto, como compila Humberto Cunha Filho (2018), a preocupação do mul-
ticulturalismo não é com o conjunto de direitos culturais em si, mas com um deles
em específico em termos de identificação, porém genérico quanto a sua abrangên-
cia: o direito à diversidade.
Assim, essas múltiplas facetas culturais e ideológicas presentes em sociedade
nada mais são do que a coexistência de grupos sociais distintos a conviver entre si
dentro do mesmo espaço geopolítico (ÁVILA, 2018).
A concepção de que existe apenas um grupo homogêneo considerado externamente
como índio já está a ser superada, isso porque, ao possuirmos a visão de que somente
existe um modelo de índio, não percebemos que cada grupo étnico possui um conjunto
de tradições, costumes e linguagem distintos dos demais grupos e é justamente essa
diferença que é protegida pela Constituição Federal (BECKHAUSEN, 2009).
Logo, é através do estudo antropológico que se identificam os costumes, crenças,
hábitos e aspectos físicos dos diferentes povos que habitam o planeta. Portanto, os
antropólogos e etnólogos estudam a diversidade cultural dos povos e das comuni-
dades, investigam as culturas humanas no tempo e no espaço, suas origens e desen-
volvimento, suas semelhanças e diferenças. Partindo desta concepção, são, então,
capazes de qualificar e quantificar atos, costumes e formas de vida dentro desses
sistemas de convivência paralela que são as aldeias indígenas.
No que diz respeito à identificação étnica do acusado por abandono gemelar e
suas garantias no processo penal brasileiro, a Resolução n. 287/2019 do Conselho
Nacional de Justiça traz, de forma inovadora e muito consciente, a figura essencial
da qualificação deste como índio através da autodeclaração e também da neces-
sidade de compreensão por parte desses réus de seus direitos e garantias perante
o sistema judiciário do País. Assim, é de extrema importância a identificação e
qualificação do acusado como membro indígena para lhe assegurar o tratamento
diferenciado necessário durante o rito processual.
A invocação da motivação cultural no processo significa que a particularidade
do agente – a sua condição cultural diversa – pode explicar a prática do fato e ter
por isso relevância no apuramento da sua responsabilidade criminal. Ignorar este
aspecto é negar a garantia constitucional à diferença que ele alberga e, dessa forma,
negar ao agente o tratamento isonômico (DIAS, 2015).
Conforme refere a Convenção n. 169/89, artigo 1º, número 2, indígena é o indi-
víduo que se considera como pertencente a um povo ou comunidade, nos seguintes
termos: “2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser conside-
rada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as
disposições da presente Convenção”.

711
De acordo com a Resolução n. 287 do Conselho Nacional de Justiça, no sistema
judiciário brasileiro, para se obter uma prestação de serviço justa ao índio acusado,
deve haver um cadastro de profissionais especializados nas etnias indígenas aptos
a elaborar o laudo pericial antropológico com base na estrutura social do réu. Tais
profissionais cadastrados devem ter sólido conhecimento sobre a cultura, as tradi-
ções e a forma de organização social da comunidade indígena em questão e podem
ser antropólogos de formação, cientistas sociais, linguistas ou ainda outros profis-
sionais especialistas na temática.
Como já referido no início do tópico em questão, o laudo antropológico é ferra-
menta fundamental para o tratamento judicial dos réus indígenas porque permite
entender a pessoa julgada a partir do contexto da comunidade em que ela se insere.
Compreender esse contexto exige um saber específico e que não pode ser apreendido
automaticamente dentro dos atos processuais ordinários, pois também as narrativas, a
sistematização do conhecimento, os critérios de verdade e a organização das narrativas
são elementos condicionados pelos contextos culturais. Sobre a necessidade de laudo
antropológico, mister se fazem algumas considerações. Um profundo estudo antro-
pológico poderá apontar as questões socioculturais referentes ao abandono e também
projetar eventuais encaminhamentos para solucionar a situação, servindo tais ele-
mentos como guia para a decisão judicial. Nas disputas judiciais que envolvem os
elementos da cultura indígena, deverá, de forma obrigatória, ser utilizada a pesquisa
antropológica para amparar qualquer decisão. Neste sentido encontra-se o posiciona-
mento de Bartolomé Clavero (1994). Para o ilustre jurista, os problemas que envolvem
direitos indígenas, individuais e coletivos, no âmbito de uma cultura constitucionalista,
só podem ser resolvidos através de uma análise antropológica. São suas palavras: “Sigue
siendo la antropología quien nos aclara estas cosas”. E, no mesmo sentido, Aracy Lopes
da Silva afirma que “a antropologia é a única disciplina plenamente capacitada para a
apreensão da realidade dos povos indígenas por havê-los escolhido como seu objeto
por excelência, desde que se constituiu como disciplina” (SILVA, 1994, p. 64).
A necessidade da prova cultural para uma realização da justiça penal em sintonia
com os princípios da igualdade e da culpa obriga a convocação ao processo penal de
intérpretes, antropólogos, etnólogos e etnopsiquiatras com conhecimentos especiali-
zados e (ou) trabalho realizado como o grupo étnico em questão (DIAS, 2015).
Assim, o laudo antropológico, no processo judicial brasileiro, deve esclarecer
a correspondência entre a conduta praticada e os costumes, crenças e tradições da
comunidade indígena a qual o réu pertence. À medida que a Constituição, em seu
capítulo VIII, reconhece e respeita os costumes indígenas, não pode a autoridade
judicial considerar criminosa uma conduta que seja praticada em conformidade
com esses valores, sem que exista a necessária avaliação antropológica do ato.
Importante ressaltar que essa é uma hipótese de exclusão da culpabilidade. Aqui,
por conseguinte, tem-se que a conduta praticada poderá estar em conformidade
com as tradições e costumes indígenas aos quais a pessoa pertence e que são reco-
nhecidos pelo art. 231 da Constituição Federal de 1988.
Ressalta-se que cabe ao laudo antropológico indicar se a conduta imputada é
considerada pela própria comunidade indígena como passível de responsabilização
e, em caso de resposta positiva, se existem e quais são os mecanismos próprios de
justiça interna a serem adotados no processo de ressocialização do índio.

712
É muito importante que a pesquisa às comunidades indígenas sobre a forma
de responsabilização do individuo acusado seja feita de boa-fé, oferecendo de
forma clara e simples informações completas sobre a conduta imputada ao réu e
as possíveis consequências jurídicas na justiça estatal. Por sua vez, em relação ao
resultado, a consulta deve ser efetiva, com seriedade, e os resultados contemplados
adequadamente na decisão proferida pela autoridade judicial. A pesquisa não pode
ser encarada como mera formalidade; caso contrário, não se respeitará sua dupla
dimensão de direito coletivo à participação e de direito individual à ampla defesa.
Cabe ainda trazer ao estudo em tela a Convenção n. 169 da Organização
Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais, que dispõe nessa mesma
linha de proteção:
Artigo 1º 1. A presente convenção aplica-se: a) aos povos tribais em países
independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de
outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcial-
mente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; [...] 2.
A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como
critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposi-
ções da presente Convenção. [...]
Artigo 2º [...] 2. Essa ação deverá incluir medidas: a) que assegurem aos membros
desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades
que a legislação nacional outorga aos demais membros da população; b) que pro-
movam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses
povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradi-
ções, e as suas instituições; [...]
Artigo 5º Ao se aplicarem as disposições da presente Convenção: a) deverão ser
reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais religiosos e
espirituais próprios dos povos mencionados e dever-se-á levar na devida con-
sideração a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva
como individualmente; [...]
Artigo 8º 1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser
levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário.
2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições
próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais
definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos interna-
cionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário, deverão ser estabelecidos
procedimentos para se solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação
deste princípio. 3. A aplicação dos parágrafos I e 2 deste Artigo não deverá impe-
dir que os membros desses povos exerçam os direitos reconhecidos para todos os
cidadãos do país e assumam as obrigações correspondentes.
Artigo 9º 1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacio-
nal e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser res-
peitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente
para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros. 2. As autoridades
e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão
levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
Da mesma forma o acolhimento da pessoa após condenação também se dará na
comunidade originária, conforme dispõe a Resolução n. 287/2019. Assim, conforme
veremos adiante, se o réu for condenado a prestar serviços à comunidade ou se lhe

713
for concedido o regime semiaberto, este deverá retornar à comunidade onde se deu
o fato gerador do processo; portanto, é essencial que ele seja aceito e que sua prática
não seja vista como punível pela aldeia.
Portanto, o fato estudado neste artigo pode, eventualmente, ser considerado
lícito, ou ser reconhecida uma excludente de ilicitude, tendo em vista que a conduta
praticada é reconhecida pelo meio em que vive o acusado. E que, por outro lado, se
este desobedecer ao sistema interno de condutas, poderá ser punido pela comuni-
dade em que vive. O Estado deve reconhecer e estar ciente dessas situações ense-
jadas pela afirmação da diversidade cultural; pois, como Ronald Dworkin (2006)
afirma, “uma sociedade em que a maioria despreza as necessidades e as perspectivas
de uma minoria é não só injusta como ilegítima”.
Com isso, percebe-se que a identificação de um acusado como membro de uma
comunidade indígena e como pessoa de etnia indígena assegura-lhe direitos específi-
cos, como de um julgamento conforme a sua realidade, as suas necessidades, ou seja,
um julgamento diferenciado, voltado à análise de uma série de elementos externos
que vão muito além da materialidade, da autoria e do fato gerador do delito, sendo
capaz de tornar tal conduta justificável culturalmente e não punível pelo Estado.

2.4 ∙ DO PROCEDIMENTO PENAL DE RÉU INDÍGENA


O artigo 10 da Convenção n. 169/2004 da Organização Internacional do
Trabalho, recepcionada pelo ordenamento brasileiro através do Decreto Lei n.
5.051/2004, fixa as normas dos processos criminais que tenham como parte ré um
indígena. Neste artigo tem-se que, como regra, não se encarcera esse agente, isso
porque existe o dever de respeito à organização social própria das comunidades
indígenas e assim o juízo deve considerar a homologação de práticas de resolução
de conflitos e de responsabilização em conformidade com costumes e normas da
própria comunidade indígena do acusado, como bem determina o art. 7º, parágrafo
único, da Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) n. 287/2019.
Nesse sentido, de acordo com o art. 9º dessa mesma Resolução do CNJ, apenas
excepcionalmente (diante, por exemplo, da expressa indicação pela comunidade
de que o tratamento mais adequado é a punição estatal ou da inexistência de uma
comunidade indígena), a autoridade judicial poderá prolatar uma sentença con-
denatória aplicando penas restritivas de direitos, e essas poderão ser adaptadas às
condições e aos costumes indígenas como meio de ressocialização desse indivíduo
no interior de sua aldeia.
Ainda com relação à aplicação da pena, cabe ainda aos profissionais dos órgãos
indigenistas contribuírem para que os procedimentos judiciais sejam culturalmente
adequados e que as necessidades particulares de cada pessoa indígena sejam levadas
em consideração pela autoridade judicial no procedimento de julgamento.
A questão do abandono de gemelares pelos índios Guaranis exige, portanto, a
aferição da correspondência entre a conduta praticada pelo indígena e os valores da
comunidade a que pertence, bem como a identificação da possibilidade de aplicação
de mecanismos indígenas de solução de conflitos; e um instrumento é essencial, o
laudo pericial antropológico com a consulta às comunidades indígenas (que já fora
delineado no tópico anterior) em relação a suas práticas.

714
A Resolução n. 287/2019 do CNJ dita também, em seus primeiros artigos, os
mecanismos a serem utilizados nesses casos para assegurar aos indígenas o direito
constitucional a um processo justo, imparcial e igualitário, tais como:
I. o direito a contar com intérprete em todas as etapas do processo (art. 5º da Res.
n. 287/2019);
II. possibilidade de a autoridade judicial, ao receber denúncia ou queixa em
desfavor de pessoa indígena, determinar, sempre que possível, de ofício ou a
requerimento das partes, a realização de perícia antropológica;3
III. a aplicação preferencial de mecanismos de responsabilização próprios da
comunidade indígena (art. 7º da Res. n. 287/2019);
IV. o respeito aos costumes e tradições na aplicação de medidas cautelares (art.
8º da Res. n. 287/2019);
V. o respeito aos costumes e tradições na aplicação de penas restritivas de dire-
itos (art. 9º, I, da Res. n. 287/2019);
VI. a conversão da multa em prestação de serviços à comunidade (art. 9º, II, da
Res. n. 287/2019);
VII. o cumprimento preferencial da prestação de serviços à comunidade para a
comunidade indígena (art. 9º, III, da Res. n. 287/2019);
VIII. a aplicação do regime especial de semiliberdade previsto no art. 56 do
Estatuto do Índio quando haja condenação a pena de reclusão e de detenção (art.
10 da Res. n. 287/2019); e
IX. a adequação das condições de cumprimento de pena em estabelecimento
penal às especificidades culturais indígenas em matéria de visitas sociais, ali-
mentação, assistência à saúde assistência religiosa, acesso a trabalho e educação
(art. 14 da Res. n. 287/2019).
Tais medidas legais são de extrema importância ao assunto em análise, visto que
podem ser aplicadas ao cenário aqui apresentado, ou seja, ao caso do abandono de
gemelares pelos Guaranis, podendo ser considerada essa uma conduta atípica, sem
ilicitude, ante o fator cultural determinante de a prática analisada ser prevalecente
sobre o conceito externo de crime. Frise-se, como exposto no tópico 2.2, que se
entende que a prática do abandono de menores, eventualmente, não se constitui
como elemento de tipo doloso ou culposo, mas sim, tem-se apenas a aplicação do
conceito da teoria do erro de proibição ou, quando ausente a verificação do fator
cultural dominante da ação, pode-se aferir no máximo uma conduta culposa que
deve ter então sua sanção estatal atenuada.
Tal conclusão, todavia, evidencia a necessidade de estudar formas de acolhi-
mento e readaptação do menor gemelar que é retirado de sua aldeia Guarani, as
quais serão tratadas no tópico subsequente.

3 Nesse sentido: “EMENTA: HABEAS CORPUS. DISPUTA SOBRE DIREITOS INDÍGENAS.


PERÍCIA ANTROPOLÓGICA. NECESSIDADE. 1. A realização da perícia antropológica  faz-
-se necessária a fim de assegurar os direitos dos indígenas no âmbito criminal do Poder Judiciário,
conforme Resolução n. 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça. 2. Concedida parcialmente a
ordem de habeas corpus”. (TRF4, HC 5050230-45.2019.4.04.0000, Oitava Turma, relator Nivaldo
Brunoni, juntado aos autos em 24.1.2020).

715
2.5 ∙ DO ACOLHIMENTO DO GEMELAR ABANDONADO
Em relação à questão de saúde pública, a proteção e a integração da criança
abandonada pela tribo Guarani em sociedade, entende-se que se faz necessário o
processo de acolhimento segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente e o direito
civil brasileiro, para que o menor não fique desamparado ante a não aceitação de sua
tribo, mas sim que consiga então ter um lar adotivo em alguma família, priorizan-
do-se a comunidade indígena disposta a aceitar o acolhimento.
O acolhimento institucional é uma medida de proteção em diferentes tipos de
equipamentos, destinado a famílias e (ou) indivíduos com vínculos familiares rom-
pidos ou fragilizados, a fim de garantir proteção integral do menor desamparado.
A organização do serviço deverá garantir a privacidade, o respeito aos costumes, às
tradições e à diversidade de: ciclos de vida, arranjos, raça/etnia, gênero e orientação
sexual. O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência
Familiar e Comunitária, publicado em 2006, prevê três modalidades de acolhi-
mento: abrigos institucionais, casas-lares e famílias acolhedoras.
Por sua vez, a Lei Nacional da Adoção, Lei n. 12.010, de 3 de agosto de 2009,
incluiu dispositivos específicos para os indígenas no Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, estabelecendo o respeito a sua
identidade cultural, de modo que a colocação familiar ocorra prioritariamente na
sua comunidade, com a intervenção de antropólogos e do órgão federal indigenista:
Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou
adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos
termos desta Lei.
[...]
§ 6º Em se tratando de criança ou adolescente indígena ou proveniente de comu-
nidade remanescente de quilombo, é ainda obrigatório:
I - que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os
seus costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não sejam
incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos por esta Lei e pela
Constituição Federal; 
II - que a colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade
ou junto a membros da mesma etnia;
III - a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável pela
política indigenista, no caso de crianças e adolescentes indígenas, e de antropó-
logos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá acompanhar
o caso.
[...]
Art. 161. [...] § 2º Em sendo os pais oriundos de comunidades indígenas, é ainda
obrigatória a intervenção, junto à equipe profissional ou multidisciplinar refe-
rida no § 1º  deste artigo, de representantes do órgão federal responsável pela
política indigenista, observado o disposto no § 6º do art. 28 desta Lei. 
Com efeito, os tribunais brasileiros vêm adotando esse mesmo entendimento quanto
à readaptação do menor indígena e a sua colocação em família substituta, vejamos:
RECURSO ESPECIAL. CONSTITUCIONAL. CIVIL. DIREITO INDÍGENA.
COLOCAÇÃO DE MENOR INDÍGENA EM FAMÍLIA SUBSTITUTA.

716
PREVISÃO DE INTERVENÇÃO OBRIGATÓRIA DA FUNAI NO PROCESSO.
NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DO PREJUÍZO PARA QUE A
NULIDADE SEJA DECRETADA. NÃO OCORRÊNCIA NO CASO DOS
AUTOS. CRIANÇA INSERIDA HÁ QUATRO ANOS EM FAMÍLIA COMUM.
CONSTITUIÇÃO DE LAÇOS AFETIVOS. RECURSO IMPROVIDO. 1. No
inciso III do § 6º do art. 28 da Lei 8.069/1990 (ECA), introduzido pela Lei
12.010/2009 (Lei Nacional da Adoção), está disciplinada a obrigatoriedade de
participação do órgão federal de proteção ao indígena, a Fundação Nacional do
Índio – FUNAI –, além de antropólogos, em todos os procedimentos que versem
sobre a colocação do menor indígena em família substituta, seja por meio de
guarda, tutela ou adoção. 2. A intervenção da FUNAI nesses tipos de processos é
de extrema relevância, porquanto os povos indígenas possuem identidade social
e cultural, costumes e tradições diferenciados, tendo, inclusive, um conceito de
família mais amplo do que o conhecido pela sociedade comum, de maneira que
o ideal é a manutenção do menor indígena em sua própria comunidade ou junto
a membros da mesma etnia. A atuação do órgão indigenista visa justamente a
garantir a proteção da criança e do jovem índio e de seu direito à cultura e à
manutenção da convivência familiar, comunitária e étnica, tendo em vista que
a colocação do menor indígena em família substituta não indígena deve ser
considerada a última medida a ser adotada pelo Estado. 3. A adoção de crian-
ças indígenas por membros de sua própria comunidade ou etnia é prioritária e
recomendável, visando à proteção de sua identidade social e cultural. Contudo,
não se pode excluir a adoção fora desse contexto, pois o direito fundamental
de pertencer a uma família sobrepõe-se ao de preservar a cultura, de maneira
que, se a criança não conseguir colocação em família indígena, é inconcebível
mantê-la em uma unidade de abrigo até sua maioridade, sobretudo existindo
pessoas não indígenas interessadas em sua adoção. 4. A ausência de intervenção
obrigatória da FUNAI no processo de colocação de menor indígena em famí-
lia substituta é causa de nulidade. A decretação de tal nulidade, contudo, deve
ser avaliada em cada caso concreto, pois se, a despeito da não participação da
FUNAI no processo, a adoção, a guarda ou tutela do menor indígena envolver
tentativas anteriores de colocação em sua comunidade ou não for comprovado
nenhum prejuízo ao menor, mas, ao contrário, forem atendidos seus interesses,
não será recomendável decretar-se a nulidade do processo. 5. No caso concreto,
verificou-se que: (I) tal como a FUNAI em seu agravo de instrumento, o ora
recorrente, representado pela curadoria especial, agora no recurso especial não
indicou concretamente qual seria o prejuízo que teria o menor indígena ou seu
genitor sofrido com o encaminhamento à instituição de acolhimento e a ins-
crição no Cadastro Nacional de Adoção (CNA); (II) não foi interposto recurso
especial particularmente pela FUNAI, o que leva à conclusão que tenha o órgão
indigenista se conformado com o acórdão proferido pelo Tribunal estadual e
entendido por bem deixá-lo transitar em julgado; (III) na prática, conforme
salientado pelas instâncias ordinárias, apesar da não intervenção do órgão indi-
genista no feito, foram realizadas diversas tentativas para que o acolhimento
das crianças fosse efetivado por seus famílias indígenas. Somente quando se
mostraram infrutíferas as diligências é que se deu prosseguimento ao pedido
de destituição do poder familiar, de adoção e de inscrição no CNA. Portanto,
não está demonstrado, na hipótese dos autos, nenhum prejuízo aos menores
indígenas, de maneira que não se mostra recomendável a decretação da nulidade
do processo por ausência de intervenção da FUNAI. 6. A criança indígena ado-
tada foi inserida em família comum com cinco anos de idade, em 15/02/2013, há

717
mais de quatro anos, portanto, a indicar que o decreto de nulidade, na hipótese,
seria prejudicial aos próprios interesses do menor, uma vez já consolidados os
vínculos de afetividade, os quais seriam desfeitos em prestígio de formalidade. 7.
Recurso especial improvido. (STJ – REsp: 1566808 MS 2015/0288539-3, relator:
ministro Marco Aurélio Bellizze, data de julgamento: 19.9.2017, T3 - Terceira
Turma, data de publicação: DJe 2 out. 2017).
Ainda, importante destacar que todos os casos de acolhimento devem se dar
mediante ordem judicial. Entretanto, existem casos excepcionais ou urgentes, tal
como nas hipóteses de crianças e adolescentes abandonados e encontrados nas vias
públicas, que são exceções a essa regra. Nestes casos, deve-se comunicar à autori-
dade judiciária posteriormente, de acordo com o art. 93 do Estatuto da Criança e do
Adolescente4 (OLIVEIRA, 2001).
Assim, conclui-se que, apesar de não ser aceito por sua família Guarani, o
gemelar abandonado tem a possibilidade de ser encaminhado a uma instituição
social de acolhimento, para que, mais tarde, após serem realizados os procedimen-
tos necessários, esse possa encontrar um lar, que preferencialmente será em outra
família indígena da mesma etnia e assim não ficará mais desamparado pelo Estado,
permanecendo em uma nova família. O respaldo normativo-institucional se encon-
tra na Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho, norma com
status supralegal, que estabelece: (I) os serviços de saúde devem ser planejados e
administrados em cooperação com os povos indígenas; e (II) o Estado deve asse-
gurar a existência de instituições e mecanismos apropriados para administrar os
programas que afetam tais povos (BRASIL, 2020).

3 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
A concepção de índio vem sendo modificada conforme a dinâmica das alterações
culturais e sociais ocorridas na comunidade brasileira. Através dessa percepção de
diversidade e pluralismo cultural, constatou-se que o ordenamento jurídico pátrio
possui diversos mecanismos legais para o julgamento de supostos ilícitos praticados
por índios. E, assim, tem capacidade de lidar com as diferentes concepções advindas
das crenças e costumes dos povos indígenas quando se deparar com conflitos entre
as leis e regras internas dessa comunidade e o entendimento jurídico estatal, cujos
sistemas se comunicam via Constituição.
Desta forma, o abandono de gemelares pelos índios Guaranis sob a perspectiva
do direito brasileiro pode ser enquadrado na teoria do delito como erro de proibi-
ção, devendo o réu índio ser amparado e julgado de acordo com suas especificidades
a fim de se garantir o devido processo legal e assegurar a esse a ampla defesa e o
contraditório, preservando assim seus direitos fundamentais.
Portanto, quando verificado, no aspecto antropológico, que a conduta de abandonar
um menor gemelar é um crime culturalmente motivado, o índio acusado pode ser absol-
vido com base na ausência de dolo e culpa quanto ao ato praticado, por ser este motivado
por sua especificidade cultural e amparado por seu direito fundamental à diversidade.

4 “Art. 93. As entidades que mantenham programa de acolhimento institucional poderão, em caráter
excepcional e de urgência, acolher crianças e adolescentes sem prévia determinação da autoridade
competente, fazendo comunicação do fato em até 24 (vinte e quatro) horas ao Juiz da Infância e da
Juventude, sob pena de responsabilidade.”

718
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Fátima Cisneros. Derecho penal y diversidad cultural. Valência: Tirant lo Blanch, 2018.
BECKHAUSEN, Marcelo. Diversidade cultural e processo penal. Revista do
Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 62, p. 145-170, nov. 2008/
abr. 2009. Disponível em: https://www.amprs.com.br/public/arquivos/revista_artigo/
arquivo_1246468185.pdf. Acesso em: 30 jul. 2020.
BOLÍVIA. Constitución Política del Estado. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/
Constitucion_Bolivia.pdf. Acesso em: 25 ago. 2020.
BOLONHA, Carlos; RANGEL, Henrique; ALMEIDA, Maíra. A proposta de uma
Constituição sistêmica. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, v. 34.1, p. 13-38, jan./jun. 2014. Disponível em:
http://periodicos.ufc.br/nomos/article/view/1185/1151. Acesso em: 18 ago. 2020.
BRASIL. Decreto Lei n. 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção n. 169 da
Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. Brasília,
DF: Presidência da República, 2004. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-
tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/legislacao/legislacao-docs/convencoes-
internacionais/convecao169.pdf/view. Acesso em: 30 jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio.
Brasília, DF: Presidência da República, 1973. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Leis/L6001.htm. Acesso em: 30 jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre Adoção. Brasília, DF: Pre-
sidência da República, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm. Acesso em: 30 jul. 2020.
BRASIL. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência
Familiar e Comunitária, de 24 de fevereiro de 2005. Brasília, DF: Presidência da
República, 2005. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/
assistencia_social/Cadernos/Plano_Defesa_CriancasAdolescentes%20.pdf. Acesso em:
30 jul. 2020.
BRASIL. Resolução n. 287, de 25 de julho de 2019. Estabelece procedimentos ao
tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade,
e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder
Judiciário. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça, 2019. Disponível em: https://atos.
cnj.jus.br/files/resolucao_287_25062019_08072019182402.pdf. Acesso em: 30 jul. 2020.
BRASIL. Súmula n. 140. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: http://
www.stj.jus.br/docs_internet/VerbetesSTJ_asc.txt#:~:text=S%C3%BAmula%3A%20
140%20COMPETE%20A%20JUSTI%C3%87A,FIGURE%20COMO%20AUTOR%20
OU%20VITIMA. Acesso em: 30 jul. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida cautelar na Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental n. 709. Brasília, DF, 8 de julho de 2020. Disponível em: https://www.
google.com/search?client=firefox-b-e&q=STF+ADPF+709. Acesso em: 18 ago. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp: 1566808 MS 2015/0288539-3. Disponível em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/505977945/recurso-especial-resp-1566808
-ms-2015-0288539-3/inteiro-teor-505977965. Acesso em: 23 ago. 2020.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região – TRF4. HC 5053726-82.2019.4.04.0000.
Disponível em: https://trf-4.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/813700504/habeas-corpus

719
-hc-50537268220194040000-5053726-8220194040000/inteiro-teor-813700522?ref=feed.
Acesso em: 25 ago. 2020.
BROECK, Jeoren Van. Cultural  defense and  culturally  motivated crimes (cultural
offences). European Journal of Crime, Criminal Law and Criminal Justice, v. 9, p. 1-32, jan.
2001. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/249570103_Cultural_
Defence_and_Culturally_Motivated_Crimes_Cultural_Offences/citation/download.
Acesso em: 30 jul. 2020.
CADOGAN, Léon. Las tradiciones religiosas de los Mbya-guarani del Guaira. Revista de
la Sociedad Científica del Paraguay, Asunción, v. 2, n. 1, 1946.
CLAVERO, Bartolomé. Derecho indígena y cultura constitucional en América. Madrid:
Siglo veintiuno editores, 1994.
COLÔMBIA. Constitución Política de Colombia. Disponível em: https://www.
corteconstitucional.gov.co/inicio/Constitucion%20politica%20de%20Colombia.pdf.
Acesso em: 25 ago. 2020.
COSTA, Sérgio; WERLE, Denílson Luís. Reconhecer as diferenças: liberais, comunitários
e as relações raciais no Brasil. In: SCHERER WARREN, Ilse et al. Cidadania e
multiculturalismo: a teoria social no Brasil contemporâneo. Lisboa: Editora da UFSC e
Socius, 2000. p. 82-116.
CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais: fundamentos e
finalidades. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2018.
DE MAGLIE, Cristina. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
DIAS, Augusto Silva. A responsabilidade criminal do “outro”: os crimes culturalmente
motivados e a necessidade de uma hermenêutica intercultural. Revista Julgar, Lisboa, n.
25, p. 95-108, jan./abr. 2015.
DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade. A leitura moral da Constituição norte-
americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
FONSECA, Cibele Benevides Guedes da; CORREIO, Lia de Souza Siqueira; RIBEIRO,
Diaulas Costa. Ministério Público dos Estados Unidos da América: uma análise
das atuações federal e estadual. RDIET, Brasília, v. 11, n. 2, p. 119-151, jul./dez. 2016.
Disponível em: https://portalrevistas.ucb.br/index.php/RDIET/article/view/7529/4914.
Acesso em: 1º jul. 2019.
OLIVEIRA, Valdeci Mendes de. A.G.T – adoção, guarda e tutela como institutos
jurídicos definidores de família substituta. São Paulo: EDIPRO, 2001.
SILVA, Aracy Lopes da. Há antropologia nos laudos antropológicos? In: A perícia
antropológica em processos judiciais. Florianópolis: ABA, CPI/SP e UFSC, 1994. p. 60-66.
SILVEIRA, Nádia Heusi; MELO, Clarissa Rocha de; JESUS, Suzana Cavalheiro de.
Diálogo com os Guaranis. Florianópolis: UFSC, 2016. [Livro eletrônico].
TOLEDO, Francisco de Assis. Ilicitude penal e causas de sua exclusão. Rio de Janeiro:
Forense, 1984.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro: parte geral. 13. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

720
CONTEXTOS HISTÓRICOS E DIREITOS HUMANOS
Tarcísio Henriques1

Sumário: 1 Considerações iniciais. 2 Economia e sociedade. 3 A institucionalização


dos direitos humanos. 4 Direitos humanos ou direitos fundamentais? 5 A classificação
dos direitos humanos. 6 A Constituição Federal de 1988 e os direitos humanos.
7 Contextualização dos direitos humanos. 8 Considerações finais.

1 ∙ CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os conflitos sociais concretos e o processo de aplicação das normas legais para
a solução desses conflitos levam ao problema da construção de sentido das normas.
A teoria dos direitos humanos, estruturada a partir do processo histórico de
institucionalização e reconhecimento desses direitos e das tentativas de sua classi-
ficação, seja em categorias ou dimensões, seja na busca de um fundamento de sua
validade, não pode desconsiderar o contexto em que tais valores serão aplicados nas
situações sociais concretas.
Nesse sentido, o exemplo da discussão em torno da possibilidade de adoção por
casais homossexuais demonstra de uma forma clara os limites das teorias clássicas.
Dessa forma, a efetividade desejada na aplicação de tais valores só será alcançada se
contextualizarmos os direitos humanos e considerarmos elementos do caso concreto.

2 ∙ ECONOMIA E SOCIEDADE
Ao apresentar uma síntese da República Velha, Winston Fritsch, alinhando o
que classifica como os “focos de instabilidade” que marcaram o processo político
daquele período histórico, aduz que foi
um dos poucos períodos da História republicana em que a sucessão de crises
econômicas esgarça o tecido político além da sua possibilidade de resistência,
ensejando não só um profundo redesenho das políticas econômicas, como das
formas de organização do Estado. (FRITSCH, 1989).2

1 Procurador da República (MG). Professor do Ibmec em Belo Horizonte-MG e da Escola Superior


Dom Helder Câmara (BH). Doutor em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC Minas).
2 Fazendo menção a esta análise, em artigo jornalístico, Miriam Leitão aponta que os “focos de
instabilidade” foram os seguintes: as “divergências entre São Paulo e Minas, [...] nos anos 1920”, a
posição e o interesse dos “‘estados intermediários’ – Rio, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco –,
[que] queriam mais poder” e “o terceiro foco era o descontentamento dos ‘políticos dissidentes’,
intelectuais e setores da imprensa com a natureza antidemocrática e centralizadora do regime”
(LEITÃO, 2020, p. 6).

721
Esta concepção de crises econômicas permanentes e seus resultados políticos pode
ser estendida de maneira a explicar outros períodos da nossa história. Miriam Leitão,
por exemplo, lançando mão desta mesma implicação entre economia e política, sus-
tenta que a mesma observação pode ser feita para o momento atual. Segundo ela,
o parágrafo acima, escrito [para] [...] descrever as primeiras décadas do século
passado, soa perfeito para o atual momento. Aqui chegamos, com uma sucessão
impressionante de crises que esgarçam nosso tecido político, social. (LEITÃO,
2020, p. 6).
Observo que aqui, de maneira mais ampla, a implicação das questões econômi-
cas passa a “esgarçar” também o “tecido social”. É este esgarçamento que dá rele-
vância ao tratamento das questões dos direitos humanos.
Só partindo deste processo, contextualizando-o, é possível compreender, de modo
preciso e adequado, o sentido dos direitos humanos e a inevitável vinculação de todos
eles como sendo consequência e resultado de um “processo de afirmação histórica”.3

3 ∙ A INSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS


Hoje é ideia corrente a centralidade da previsão dos direitos humanos nos
documentos constitucionais. A Declaração institucional destes direitos é um “dos
momentos centrais de desenvolvimento e conquista” do constitucionalismo e “con-
sagra as vitórias do cidadão sobre o poder” (MATTEUCCI, 2004, p. 353).
Esta constitucionalização é decorrência direta da noção de que “os homens
têm direitos naturais anteriores à formação da sociedade, direitos que o Estado
deve reconhecer e garantir” (MATTEUCCI, 2004, p. 353), que acabaram por se
transformar em critérios jurídicos de legitimação de “toda a associação política”
(MATTEUCCI, 2004, p. 353).
Resenhando os antecedentes dessas declarações formais, Nicola Matteucci
assim disserta:
para determinar a origem da declaração no plano histórico, é costume remontar à
Déclaration des droits de l’homme et du citoyen, votada pela Assembleia Nacional
francesa em 1789, na qual se proclamava a liberdade e a igualdade nos direitos
de todos os homens, reivindicavam-se os seus direitos naturais e imprescritíveis

3 Como se pode exemplificar na decisão do processo de Extradição n. 783, em que no voto do ministro
Celso de Mello se encontra a seguinte afirmação: “A comunidade internacional, em 28-7-1951, imbuída
do propósito de consolidar e de valorizar o processo de afirmação histórica dos direitos fundamentais
da pessoa humana, celebrou, no âmbito do direito das gentes, um pacto de alta significação ético-
-jurídica, destinado a conferir proteção real e efetiva àqueles que, arbitrariamente perseguidos por
razões de gênero, de orientação sexual e de ordem étnica, cultural, confessional ou ideológica, buscam,
no Estado de refúgio, acesso ao amparo que lhes é negado, de modo abusivo e excludente, em seu Estado
de origem. Na verdade, a celebração da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados – a que o Brasil
aderiu em 1952 – resultou da necessidade de reafirmar o princípio de que todas as pessoas, sem qualquer
distinção, devem gozar dos direitos básicos reconhecidos na Carta das Nações Unidas e proclamados
na Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana. Esse estatuto internacional representou um
notável esforço dos povos e das nações na busca solidária de soluções consensuais destinadas a superar
antagonismos históricos e a neutralizar realidades opressivas que negavam, muitas vezes, ao refugiado –
vítima de preconceitos, da discriminação, do arbítrio e da intolerância – o acesso a uma prerrogativa
básica, consistente no reconhecimento, em seu favor, do direito a ter direitos”. (Ext. 783 QO-QO, rel. p/
o ac. min. Ellen Gracie, voto do min. Celso de Mello, j. 28.11.2001, p. DJ de 14 nov. 2003).

722
(a liberdade, a propriedade, a segurança, a resistência à opressão), em vista dos
quais se constitui toda a associação política legítima. Na realidade, a Déclaration
tinha dois grandes precedentes: os Bills of rights de muitas colônias americanas
que se rebelaram em 1776 contra o domínio da Inglaterra e o Bill of right inglês,
que consagrava a gloriosa Revolução de 1689. (MATTEUCCI, 2004, p. 353).
O processo histórico de reconhecimento desses direitos em uma perspectiva
integral, desde a sua inserção formal nos textos das constituições, seja como prin-
cípios abstratos, seja como princípios ideológicos, atravessa os séculos seguintes,
direcionando-se no sentido de uma imposição necessária aos poderes instituídos,
de modo a viabilizar, ao final de tudo, condições jurídicas necessárias a que os direi-
tos reconhecidos sejam efetivamente reconhecidos de modo a “se tornarem direitos
juridicamente exigíveis” (MATTEUCCI, 2004, p. 354).
Toda a discussão teórica em torno da natureza desses direitos é assim assinalada
por Nicola Matteucci:
os que defendem que tais direitos são naturais, no que respeita ao homem
enquanto homem, defendem também que o Estado possa e deva reconhecê-los,
admitindo assim um limite preexistente à sua soberania. Para os que não seguem
o jusnaturalismo, trata-se de direitos subjetivos concedidos pelo Estado ao indi-
víduo, com base na soberania do Estado, que desta forma não se autolimita. Uma
via intermediária foi seguida por aqueles que aceitam o contratualismo, os quais
fundam estes direitos sobre o contrato, expresso pela Constituição, entre as
diversas forças políticas e sociais. (MATTEUCCI, 2004, p. 354).
Qualquer que seja a natureza desses direitos, fundamental é o desenho jurídico
de tutela e de efetividade estabelecido pelos diferentes ordenamentos jurídicos.
Nesse sentido, o sistema predominante é o norte-americano. Como sustenta
Nicola Matteucci, “a tradição americana, desconfiada da classe governante, quis
uma Constituição rígida, que não pudesse ser modificada a não ser por um poder
constituinte e um controle de constitucionalidade das leis aprovadas pelo legisla-
tivo” (MATTEUCCI, 2004, p. 354). Ainda em suas considerações, afirma:
Isto garante os direitos do cidadão frente ao despotismo legal da maioria. Os
países que viveram a experiência do totalitarismo, como a Itália e a Alemanha,
inspiraram-se mais na tradição americana do que na francesa para a sua
Constituição. (MATTEUCCI, 2004, p. 354).
A outra “tradição”, a francesa, como sustenta o mesmo autor, “se cingia à separação
dos poderes, e sobretudo à autonomia do poder judiciário, e à participação dos cidadãos
através dos próprios representantes, na formação da lei” (MATTEUCCI, 2004, p. 354).
Nossa constituição segue neste sentido: aproveita-se de aspectos das duas tradi-
ções, como seria inevitável, mas é no sistema do controle de constitucionalidade que
estrutura suas mais adequadas práticas de tutela desses direitos.

4 ∙ DIREITOS HUMANOS OU DIREITOS FUNDAMENTAIS?


Como bem elucida Fernando Aith, os conceitos de direitos humanos e direitos
fundamentais estão “relacionados com os direitos básicos de cada ser humano”
(AITH, 2013, p. 276). A distinção teórica entre os dois conceitos, ainda de acordo
com o mesmo doutrinador, “reside exatamente no grau de reconhecimento que um
determinado direito humano tem no ordenamento jurídico” (AITH, 2013, p. 277).

723
Vale, para uma síntese teórica dessa distinção, continuar citando as considera-
ções de Fernando Aith:
A expressão direitos humanos é do século XX e veio substituir as expressões até
então correntes, como direitos naturais ou direitos do homem. Revela a evolução
destes direitos ao longo da história e insinua o porvir desta evolução. A expres-
são direitos humanos nos revela direitos que estão além daqueles verificados nos
textos legais ou nos livros de direito: ela nos revela direitos morais, direitos que
estão no cerne da existência de uma sociedade, de uma coletividade, ou ainda a
consciência de uma ética coletiva.
Já a expressão direitos fundamentais é usualmente mais utilizada para se referir
aos direitos humanos que já se encontram em fase mais adiantada de reconhe-
cimento, positivados em um dado ordenamento jurídico, inseridos no ordena-
mento jurídico formal de um Estado ou de uma comunidade internacional por
meio de Constituição, leis ou Tratados. (AITH, 2013, p. 276-277). (Grifos nossos).
Toda diferença, desta perspectiva, se encontra na amplitude dos direitos:
“enquanto a expressão direitos humanos possui uma acepção mais ampla, a expressão
direitos fundamentais mostra-se mais restrita”4 (AITH, 2013, p. 277, grifos nossos).
Considerando a própria evolução histórica desses direitos e a necessidade “irre-
cusável de admitir” a ampliação das hipóteses de proteção jurídica e dos sujeitos
protegidos, seria necessária a estruturação de um termo que pudesse designar essas
espécies de direitos.
Sustentar-se-ia, nesse sentido, um retorno aos direitos naturais, abrigando inclu-
sive a hipótese de reconhecimento de proteção jurídica mais efetiva para outros
seres vivos. Contudo, enquanto não se viabiliza esta ampliação, o mais adequado é a
utilização da terminologia mais ampla possível: direitos humanos.

5 ∙ A CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS


Ainda lançando mão das considerações teóricas feitas por Nicola Matteucci, os
direitos humanos podem ser classificados em três grandes grupos: “civis, políticos e
sociais” (MATTEUCCI, 2004, p. 354). Segundo o autor mencionado, e no que interessa,

4 Em acréscimo a tais argumentos, Fernando Aith reproduz passagem de Fábio Konder Comparato:
“[n]ão é difícil entender a razão do aparente pleonasmo da expressão direitos humanos ou direitos
do homem. Trata-se, afinal, de algo que é inerente à própria condição humana, sem ligação com
particularidades determinadas de indivíduos ou grupos. Mas como reconhecer a efetiva vigência
destes direitos no meio social, ou seja, o seu caráter de obrigatoriedade? É aí que se põe a distinção,
elaborada pela doutrina jurídica alemã, entre direitos humanos e direitos fundamentais (Grundrechte).
Estes últimos são direitos humanos reconhecidos como tal tanto pelas autoridades às quais se atribui
o poder político de editar normas, tanto no interior dos Estados quanto no plano internacional;
são direitos humanos positivados nas Constituições, nas leis, nos tratados internacionais.... Por
outro lado, se admite que o Estado nacional pode criar direitos humanos e não apenas reconhecer
sua existência, é irrecusável admitir que o mesmo Estado pode também suprimi-los, ou alterar o
seu conteúdo a ponto de torná-los irreconhecíveis. É irrecusável, por conseguinte, encontrar um
fundamento para a vigência dos direitos humanos além da organização estatal. Esse fundamento,
em última instância, só pode ser a consciência da ética coletiva, a convicção, longa e largamente
estabelecida na comunidade, de que a dignidade da pessoa humana exige o respeito a certos bens
ou valores em qualquer circunstância, ainda que não reconhecidos no ordenamento estatal, ou em
documentos normativos internacionais” (AITH, 2013, p. 277; COMPARATO, 1999, p. 45, 46 e 47).

724
Os [civis] são aqueles que dizem respeito à personalidade do indivíduo (liber-
dade pessoal, de pensamento, de religião e liberdade econômica), através da qual
é garantida a ele uma esfera de arbítrio e de liceidade, desde que seu comporta-
mento não viole o direito de outros.[...] obrigam o Estado a uma atitude de não
impedimento, a uma abstenção. Os direitos políticos (liberdade de associação
nos partidos, direitos eleitorais) estão ligados à formação do Estado democrático
representativo e implicam uma liberdade ativa, uma participação dos cidadãos
na determinação dos objetivos políticos do Estado. Os direitos sociais (direito
ao trabalho, à assistência, ao estudo, à tutela da saúde, liberdade da miséria e do
medo), maturados pelas novas exigências da sociedade industrial, implicam, por
seu lado, um comportamento ativo por parte do Estado ao garantir aos cidadãos
uma situação de certeza. (MATTEUCCI, 2004, p. 354).
Eis um adequado quadro teórico para se desenvolverem considerações sobre
tais direitos.
De um início restrito, voltado para a “garantia” de direitos e interesses indivi-
duais, o reconhecimento histórico posterior dos direitos humanos nos coloca diante
de uma situação social mais complexa, em que se passa a ver o indivíduo não como
um cidadão isolado, mas membro de um grupo social e se constrói um conjunto de
direitos relacionados a essa nova perspectiva. De um Estado que não precisa fazer,
passivo, passa-se à ideia de que ele deve agir, desenvolvendo ações que atendam a
interesses sociais, inevitavelmente mais amplos do que os anteriores.
Nas palavras de Nicola Matteucci,
viu-se que o indivíduo não é tão livre e autônomo como o iluminismo pensava
que fosse, mas é um ser frágil, indefeso e inseguro. Assim, do Estado absenteísta,
passamos ao Estado assistencial, garante ativo de novas liberdades. O indivi-
dualismo [...] foi superado pelo reconhecimento dos direitos dos grupos sociais:
particularmente significativo quando se trata de minorias (étnicas, linguísticas
e religiosas), de marginalizados (doentes, encarcerados, velhos e mulheres).
(MATTEUCCI, 2004, p. 354).
Nesse contexto, são apresentadas as disposições normativas, sobretudo as de
natureza constitucional, que, mais do que reconhecer esses direitos, apontam para
o processo social complexo de sua implementação e garantia. No fim, só a “coexis-
tência” ou “existência solidária” e só o processo conjunto de defesa desses direitos
permitem que a sociedade se desenvolva e atinja seus principais objetivos.
Isso se torna mais relevante hoje, num período histórico em que são atacados os
direitos sociais das minorias em nome de uma pretensa vontade soberana da maio-
ria circunstancial formada pelos movimentos eleitorais distorcidos pelas informa-
ções abundantes e falsas das redes sociais.
É preciso um retorno ao texto constitucional.

6 ∙ A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E OS DIREITOS HUMANOS


Nos artigos iniciais do texto de nossa atual Constituição, encontram-se muitos
dispositivos que apontam para a fundamentalidade dos direitos humanos.
Assim, são indicados no art. 1º e seus incisos os fundamentos da República
brasileira. Vale ressaltar, especificamente, a indicação da cidadania (inciso II) e da
dignidade da pessoa humana (no inciso III) como valores fundamentais, e a própria

725
concepção do Estado como um “Estado Democrático de Direito”, objeto de expressa
menção no caput desse artigo.
No art. 3º da Constituição, o constituinte originário fez inscrever como “objeti-
vos” expressos do Brasil os seguintes:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
[...]
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação.
Nesses dispositivos, pode-se encontrar embasamento para a construção das
políticas públicas necessárias à efetivação dos direitos humanos.
Não fossem tais dispositivos suficientes, o constituinte ainda se dignou, antes de
tratar os direitos humanos no art. 5º, de relacionar os “princípios” que deveriam nor-
tear nossas “relações internacionais”. É o conteúdo do art. 4º, com a seguinte redação:
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais
pelos seguintes princípios:
I - independência nacional;
II - prevalência dos direitos humanos;
III - autodeterminação dos povos;
IV - não-intervenção;
V - igualdade entre os Estados;
VI - defesa da paz;
VII - solução pacífica dos conflitos;
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de asilo político.
Neste conjunto de “princípios”, merece expressa menção a ideia de que em nossas
relações devem “prevalecer” “os direitos humanos” e a defesa de ações de cooperação
para “o progresso da humanidade”, como indicam os incisos II e IX acima transcritos.
Sobre a ideia de prevalência dos direitos humanos, o STF já deixou consignado,
em decisão relatada pelo ministro Maurício Corrêa, que
no Estado de Direito Democrático, devem ser intransigentemente respeitados os
princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. [...] A ausência de
prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações
de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados
conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. (BRASIL, 2004).
Essa prevalência dos direitos humanos pressupõe a ideia de que a sua implemen-
tação não deve sofrer retrocesso, e o próprio Supremo Tribunal Federal faz “uso da
doutrina de não regressividade” (SAMPAIO, 2013, p. 399) dos direitos humanos.
Como sustenta José Adércio Leite Sampaio neste preciso sentido:

726
Com relativa frequência, o Supremo Tribunal Federal tem feito uso da doutrina de
não regressividade dos direitos fundamentais, quase sempre limitados aos de cará-
ter social prestacional. Entende-se que os padrões de efetividade jusfundamental
atingidos não podem retroceder. Vale dizer que dada promoção de direitos passa a
integrar seu conteúdo e objeto como uma barreira que se impõe a práticas estatais
que lhe sejam contrárias. O nível de efetivação de um direito compõe, desde o seu
atingimento, o aspecto ou dimensão negativa desse direito, criando um dever de abs-
tenção de interferência estatal que não seja para ampliá-lo. De acordo com a Segunda
Turma: “o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais [como o direito
à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.], assume o dever
não só de torná-los efetivos, mas também, se obriga, sob pena de transgressão ao
texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão
total ou parcial – os direitos sociais já concretizados”.5 (SAMPAIO, 2013, p. 399).
Não é só no âmbito dessa questão social, mas sobretudo no que se refere à ideia
de que não há “regressividade” possível no nível de efetividade dos direitos huma-
nos, que se deve compreender, a partir de uma contextualização histórica, o sentido
jurídico desses próprios direitos.

7 ∙ CONTEXTUALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS


Os direitos humanos são resultado de um processo histórico social. Só podem,
pois, ser compreendidos com sua contextualização histórica e a avaliação de sua
decorrente evolução. Nessa perspectiva, Robério Nunes dos Anjos Filho aduz:
Como se sabe, os direitos humanos são um objeto histórico-cultural, e, como tal,
estão sujeitos a um contínuo processo de transformação, o que é natural diante
do caráter extremamente dinâmico das nossas sociedades. Embora se espere que
cada conquista obtida não apenas se solidifique, por meio de sua efetiva concre-
tização na vida de todos, como, ainda, se some a outras futuras, a verdade é que
não há qualquer certeza quanto à manutenção desses direitos, pois as mudan-
ças político-sociais nem sempre são positivas: é fato que algumas sociedades
do mundo vivem hoje dias nos quais antigas conquistas em termos de direitos
humanos, especialmente no campo das liberdades e da igualdade de gênero,
foram mitigadas ou mesmo perdidas. Uma prova dessa realidade é a construção
teórica do princípio da vedação ao retrocesso, que tenta pôr a salvo os avanços
alcançados pelas gerações passadas. (ANJOS FILHO, 2013, p. 9).
Tais considerações, antecipando em anos o momento que hoje vivemos, mos-
tram e demonstram a dinâmica do processo de efetivação dos direitos humanos.
O “catálogo de direitos fundamentais” (ANJOS FILHO, 2013, p. 9) extraído do
próprio texto constitucional, assim, é submetido a “ações e discursos que buscam
enfraquecer, desmerecer ou extinguir os direitos humanos protegidos” (ANJOS
FILHO, 2013, p. 9). Exemplos desse processo são dados pelo mesmo autor, como
a frequente tentativa de esvaziar o conteúdo dos direitos humanos em geral sob
a falsa premissa da necessidade de concretizar a qualquer custo um deles. Um
dos pseudo confrontos entre direitos humanos mais recorrentes, no Brasil e no
mundo, diz respeito ao direito à segurança, cuja concretização exigiria abrir mão

5 A afirmação jurisprudencial é extraída da decisão no ARE-AgR n. 639.337/SP.

727
da liberdade. Mas há muitos outros [exemplos] para os quais temos que estar
bem atentos, como, por exemplo, aquele que busca atacar políticas de ações afir-
mativas voltadas à promoção da igualdade material porque as mesmas violariam
a igualdade formal. (ANJOS FILHO, 2013, p. 9 e 10).
Assim, a efetividade e a própria compreensão de sentido dos direitos humanos
pressupõem “atenção” permanente do intérprete e a atribuição de significados que
eles lhe fazem.
Como sustentam Bernardo Gonçalves Fernandes e Renan Sales de Meira, “qual-
quer tentativa de efetivação dessas garantias individuais [e dos próprios direitos
humanos] permeia o âmbito dos discursos, quer sejam os de justificação – [...], quer
sejam os de aplicação [...]” (FERNANDES; MEIRA, 2013, p. 53).
Ainda de acordo com esses autores, tais circunstâncias levam à necessidade de
uma “reconstrução discursiva” desses direitos e ponderam que
falar em, por exemplo, um “direito à igualdade” só possui importância prática
na medida em que, por meio da linguagem, estabelece-se qual o significado,
para aquela comunidade, essa expressão significa: quais as obrigações que dela
derivam, qual a deontologia por trás dessa. “Direito à igualdade”, por si só, não
corresponde a nada se não estiver contextualizado em uma sociedade concreta,
o que quer dizer, portanto, que como palavras “deslocadas” de uma situação que
lhe atribua um significado, representante da exigência jurídica contida nessas,
nenhuma – ou quase nenhuma – utilidade possuirá sua invocação na retórica
judicial. [...] É preciso reconhecer que a interpretação de qualquer coisa perpassa
necessariamente pela noção de uma fusão de horizontes, em que o intérprete,
por meio de suas tradições e pré-conceitos busca compreensão de algo [...] uma
antecipação de sentidos, que irão, posteriormente, ser reconstruídos pelo diálogo
com a coisa a ser interpretada [...] a compreensão da deontologia presente nas
garantias individuais dependem de sua contextualização com o mundo-da-vida
do intérprete, capaz esse não de meramente “ler” o que os direitos fundamentais
lhe impõem, mas de construir conjuntamente com o texto (e dos sujeitos por
detrás dele) e com a comunidade na qual está inserido os significados dessas.
(FERNANDES; MEIRA, 2013, p. 53-54).
Sucintamente, isso quer dizer que o contexto determina o sentido, mas este só
pode ser definido socialmente. Por essa razão, esse processo deve acontecer na mais
ampla discussão social, com o envolvimento efetivo de todos.
Nas palavras dos autores citados, e complementando as considerações acima,
[a] efetivação das garantias individuais não seria fardo a ser deixado “nas mãos”
dos magistrados, como se coubesse unicamente ao Poder Judiciário executar
as “promessas não cumpridas” do poder constituinte; antes, cabe a todos,
permeados pelo diálogo, readequar quais são essas exigências a cada contexto
específico, cooperando para a efetivação dessas. Não se trata, portanto, da busca
pela realização de ideais abstratos, mas de se ter consciência que cada “ideal”
só faz sentido ante a compreensão de sua contrafacticidade com a realidade.
(FERNANDES; MEIRA, 2013, p. 54).
A expressa menção ao “diálogo”, na passagem acima, realizado no âmbito de
“cada contexto específico” assegura e viabiliza uma construção adequada do sentido
e dos efeitos dos “ideais abstratos” (FERNANDES; MEIRA, 2013, p. 54) alinhados
nos textos constitucionais que tratam dos direitos humanos.

728
Essa perspectiva teórica inverte a “tendência clássica” (FERNANDES, 2015, p.
XVI) de compreensão do direito. Como aduz Bernardo Gonçalves Alfredo Fernandes,
as pessoas agem no dia-a-dia sem se perguntarem sobre as condições que lhes
permitem conhecer o mundo, [...] acreditam que o comum é que possam conhe-
cer racionalmente cada coisa devido as suas características singulares (essência)
que às distinguem de outras coisas. [...] No Direito, há como no senso comum,
uma tendência a atuarmos do mesmo modo. Há uma tendência clássica em cate-
gorizar, definir e classificar conceitos assumindo-os como verdadeiros sem se
preocupar em como chegamos aos conceitos e sobre o modo como lidamos com
eles [...]. (FERNANDES, 2015, p. XVI).
É importante, assim, reconhecendo que “não há como chegarmos à essência das
coisas, [porque] conceitos não conseguem esgotar o objeto conceituado e chegar à
essência das coisas” (FERNANDES, 2015, p. XVII), direcionar o trabalho de inter-
pretação das “coisas” jurídicas para o contexto.
Nos argumentos que apresentam para construção desta perspectiva de com-
preensão dos conceitos jurídicos, Álvaro Ricardo de Souza Cruz e Leonardo
Martins Wykrota apontam que “mesmo os positivistas já haviam percebido”
(CRUZ; WYKROTA, 2015, p. 5) que
os conceitos e coerências de que dispomos simplesmente não se encaixam
perfeitamente nas coisas que se apresentam a nós [...] os conceitos não conse-
guem esgotar o objeto conceituado e chegar à essência das coisas [...]. (CRUZ;
WYKROTA, 2015, p. 5).
Isso porque, como sustentam os autores mencionados,
ao menos a partir de Hart, já estava claro que a compreensão de qualquer texto não
pode ser alcançada tão somente com as dimensões sintáticas e semânticas, pois o
contexto de aplicação, como hoje nos parece tão natural, não pode ser olvidado.
Será que, para compreender o sentido de expressões como “boa-fé”, “dignidade
da pessoa humana”, “honra subjetiva”, “esfera íntima”, “abalo moral”, “devido
processo legal” e outras tantas cunhadas sob a perspectiva de uma “cláusula
geral”, basta verificarmos a posição em que elas aparecem na oração (sujeito ou
predicado) e conferidos no dicionário o respectivo significado?
Sabemos que não. Também sabemos que os conceitos mudam. Mas por que
mudam? [...] as pessoas enxergam as mudanças e as intoxicações com proble-
mas de compreensão alocados na linguagem. “Os” termos e expressões é que
seriam ambíguos, “a” linguagem é que seria obscura e, assim, vista como um
ente externo ao homem, uma mera ferramenta para descrição do mundo.
[...] [a] ambiguidade está em nós! Ou seja, ambiguidade, obscuridade e quaisquer
intoxicações não estão na linguagem, e, sim, em nós, porquanto a linguagem nos
constitui! (CRUZ; WYKROTA, 2015, p. 5-7).
Tudo isso para lembrar que a “completa definição de alguma coisa é algo impos-
sível” (CRUZ; WYKROTA, 2015, nota 16, p. 6) e isso nos obriga a reavaliar per-
manentemente nossas concepções e conceitos, contextualizando-os nas situações
concretas a serem decididas.
Um bom exemplo em que tais perspectivas teóricas podem ser demonstradas
está nas adoções por homossexuais.

729
Voltemos à lição de Álvaro Ricardo de Souza Cruz e Fernanda Monteiro Saldanha,
que, a respeito de tais adoções, alegam que, “diante de um conflito pela guarda de um
menor de idade, deve-se [ante o que determina o art. 227 da Constituição Federal]
dar preferência para aquela pessoa ou família que possa proporcionar o melhor bem-
-estar daquele indivíduo em formação” (CRUZ; SALDANHA, 2015, p. 88).
Esta é uma perspectiva utilitarista, como apontam os autores mencionados, em
que se constrói a solução jurídica baseada em “um cálculo utilitarista de atendi-
mento ao melhor interesse da criança” (CRUZ; SALDANHA, 2015, p. 88).
Os mesmos autores questionam acerca de uma situação como essa:
O que está por trás desse entendimento? A simples obediência à legislação e ao
standard do melhor interesse do menor? Ou a repulsa por um modelo de família
que não se encaixa nos moldes da tradição brasileira?
Se a argumentação utilitarista precisa ser afastada, [...] ela deve começar pela des-
mistificação de que seja uma postura neutra e imparcial diante de valores humanos.
A preferência pela realização de adoção de menores por heterossexuais em face da
adoção por homossexuais, ou até mesmo pela recusa da possibilidade de adoção por
homossexuais, tem como fundo a ideia de que uma família formada por um menor
e por um adotante homossexual constitui uma família de segunda categoria. [...]
justificativa [...] imbuída da ideia de que um “desvirtuamento” sexual prejudicará
a formação social do menor, sendo que essas mesmas características não são vistas
nas famílias formadas por laços de consanguinidade e naquelas constituídas por um
adotado e um adotante heterossexual. (CRUZ; SALDANHA, 2015, p. 88).6
Eis uma situação concreta em que a opção teórica por uma interpretação é feita
sem a compreensão de que as relações sociais são mais ricas em contextos do que se
quer admitir. É essa riqueza do contexto que deve levar à posição de reavaliação per-
manente dos fundamentos argumentativos ou normativos dos interesses em conflito.
Não há outro caminho para uma efetiva aplicação dos valores construídos em
torno dos direitos humanos estabelecidos nos textos constitucionais. Sem essa preo-
cupação tais valores permanecerão frases no papel.

8 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vive-se em tempos diferentes hoje. Poucos foram os instantes em que as ações
humanas foram mais importantes do que a própria existência humana. O momento

6 Como sustentam, nesta situação, os mencionados autores: “não se trata simplesmente da escolha entre
um casal homossexual e um orfanato público. Trata-se da necessidade infinita do ser humano de ser
amado por uma família. Não há, portanto, base para comparação, pois não há régua para medir o
amor. Nesse sentido, a defesa de Maria Berenice Dias: ‘As justificativas [para a resistência à adoção
por casais homoafetivos] são muitas: problemas que a criança poderia enfrentar no ambiente escolar;
ausência de referenciais de ambos os sexos para o desenvolvimento do adotando; obstáculos da Lei
de Registros Públicos, entre outros. Mas o motivo é um só: o preconceito. É enorme a dificuldade de
aceitar os pares do mesmo sexo como família. Há a crença de que se trata de relacionamento isento
de perfil de retidão e moralidade. [...] Negar a possibilidade de reconhecimento da filiação, quando os
pais são do mesmo sexo, é uma forma cruel de discriminar e punir. Há uma legião de filhos esperando
alguém para chamar de mãe ou pai. Se forem dois pais, ou duas mães, não importa, mais amor irão
receber’” (CRUZ; SALDANHA, 2015, p. 89 e DIAS, 2011, p. 499-500).

730
pandêmico convida nações a fecharem suas fronteiras, a buscar a proteção de seus
nacionais, ainda que em detrimento do sentimento de solidariedade que deveria guiar
as práticas internacionais para enfrentamento dessa realidade. Essas decisões são equi-
vocadas e não trarão a desejada proteção em meio ao progressivo alastrar-se do vírus.
Exatamente por essa razão é que nunca foi tão oportuna a discussão sobre a
natureza supranacional dos direitos humanos.
Há muito, reconheceu-se o Direito como ciência, e de fato ele o é. E é, pois,
em razão disso que ele cumpre sua função essencial de harmonizar a convivência
humana, promovendo com isso a pacificação social.
Esse escopo, quando se tem em conta a realidade mundial de hoje, só é passível
de ser atingido se a supranacionalidade dos direitos humanos for considerada prin-
cípio fundamental de cada nação, transformando-se no fundamento normativo da
própria ideia de Estado de Direito: Estado de direitos humanos.
As ordens econômica e social mundiais revelam que não é mais suficiente a
centralidade dos direitos humanos nos espaços nacionais ou em seus documentos
constitucionais específicos. Para além, o cenário que se apresenta reclama essa
mesma centralidade não só nos diplomas legais internacionais, mas em toda política
governamental com potencialidade de repercutir na ordem econômica. A centrali-
dade dos direitos humanos há de ser, portanto, transnacional, supranacional, ou,
em um arrastado neologismo, a-nacional, em obsequiosa postura ao objetivo que se
impõe de construção de uma sociedade mundial justa, solidária e, principalmente,
impregnada de humanidade.
Esse é, pois, o único caminho possível de ser seguido, o único objetivo passível
de ser perseguido para que se consolide o processo de reafirmação histórica dos
direitos humanos no cenário mundial.

REFERÊNCIAS
AITH, Fernando. Direito à saúde e suas garantias no Brasil: desafios para efetivação de
um direito social. In: ANJOS FILHO, Robério Nunes (org.). Direitos humanos e direitos
fundamentais, diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 268-305.
ANJOS FILHO, Robério Nunes (org.). Direitos humanos e direitos fundamentais, diálogos
contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). HC n. 82.424. Rel. p/ o ac. min. Maurício
Corrêa, j. 17.9.2003, p. DJ de 19 mar. 2004.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo:
Saraiva, 1999.
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza; SALDANHA, Fernanda Monteiro. Por uma
interpretação não utilitarista do direito. In: CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (coord.).
(O) outro (e) (o) Direito. v. I. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2015. p. 52-113.
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza; WYKROTA, Leonardo Martins. Nos corredores do
direito. In: CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (coord.). (O) outro (e) (o) Direito. vol. I. Belo
Horizonte: Arraes Editores, 2015. p. 1-51.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

731
FERNANDES, Bernardo Gonçalves Alfredo. Prefácio do Volume I. In: CRUZ, Álvaro
Ricardo de Souza (coord.). (O) outro (e) (o) Direito. v. I. Belo Horizonte: Arraes Editores,
2015. p. XV-XXIX.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves; MEIRA, Renan Sales de. A reconstrução discursiva
dos direitos fundamentais no marco do Estado Democrático de Direito. In: ANJOS
FILHO, Robério Nunes (org.). Direitos humanos e direitos fundamentais, diálogos
contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 38-57.
FRITSCH, Winston. Apogeu e crise na Primeira República. In: ABREU, Marcelo de
Paiva (org.). A ordem do progresso: 100 anos de política econômica republicana, 1889-
1989. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1989. p. 6-8.
LEITÃO, Miriam. Um jornal que aprendeu a não ter medo de crise. Jornal O Globo, Rio
de Janeiro, edição do dia 29 de julho de 2020.
MATTEUCCI, Nicola. Verbete Direitos Humanos. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI,
Nicola; PASQUINO, Gianfranco (org.). Dicionário de política. 5. ed. Brasília: Editora
Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.
MEIRA, Renan Sales de; FERNANDES, Bernardo Gonçalves. A reconstrução discursiva
dos direitos fundamentais no marco do Estado Democrático de Direito. In: ANJOS
FILHO, Robério Nunes (org.). Direitos humanos e direitos fundamentais, diálogos
contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 38-57.
SAMPAIO, José Adércio Leite. Da cláusula do não retrocesso social à proibição de
reversibilidade socioambiental. In: ANJOS FILHO, Robério Nunes (org.). Direitos humanos
e direitos fundamentais, diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 391-417.

732
A “DISFORIA DE GÊNERO” INFANTOJUVENIL
E O DIREITO FUNDAMENTAL DA PROTEÇÃO
INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Um debate necessário

Tatiana Almeida de Andrade Dornelles1

Sumário: 1 Introdução. 2 A Constituição Federal e a infância e juventude. 3 Transgeneridade:


um tema polêmico. 4 Aspectos controvertidos da “transição” de crianças e adolescentes.
5 A medicalização de crianças e adolescentes no Brasil. 6 Considerações finais.

1 ∙ INTRODUÇÃO
Em 2020, comemoraram-se os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), completados no último 13 de julho. A Lei n. 8.069 de 1990, conhecida como
ECA, é um conjunto de princípios e regras jurídicas cujo objetivo é concretizar o
mandamento constitucional de proteção à criança e ao adolescente.
A Constituição Federal de 1988 adotou a chamada doutrina da proteção integral
da infância e juventude. A base da doutrina da proteção integral foi elaborada e con-
solidada em documentos e convenções internacionais sobre os direitos infantojuve-
nis, como a Declaração Universal dos Direitos das Crianças (1959) e especialmente a
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, aprovada por unanimidade
pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989.
A doutrina da proteção integral confere à infância e à juventude um conjunto de
direitos de natureza individual, difusa, coletiva, econômica, cultural e social, reco-
nhecendo seus portadores como pessoas em condição ímpar de desenvolvimento,
que necessitam de cuidados e de proteção especiais em razão de sua vulnerabili-
dade. A condição peculiar de pessoa em desenvolvimento é uma constatação consti-
tucional, expressamente prevista no art. 227, § 3º, inciso V, da Constituição Federal.
O reconhecimento desta condição é direito fundamental conferido às crianças e aos
adolescentes, demando a tutela do Estado e dos órgãos de proteção à infância e à
juventude, de modo a não se tornar letra morta.
Não há dúvidas que existem desafios grandes para o efetivo cumprimento do
mandamento constitucional de proteção aos jovens, especialmente aqueles relacio-
nados à pobreza, à baixa educação e à violência. Entretanto, existe um tema que
está cada dia mais recorrente nas grandes mídias, nas famílias e no Direito, mas

1 Procuradora da República. Mestre em Criminologia e Execução Penal (Universitat Pompeu


Fabra – Espanha). Especialista em Segurança Pública e Justiça Criminal (PUC-RS).

733
que não vem recebendo a devida atenção. Trata-se do debate da transição social e
modificação corporal de crianças e de adolescentes ditos como trans.
Neste assunto, existe um discurso pronto, cujo questionamento gera olhos
desconfiados, quando não mesmo censura. A narrativa segue o seguinte roteiro
(4THWAVENOW, 2016):
1. A identidade de gênero é indiscutivelmente legítima. Aqueles que questionam
são fanáticos religiosos, de extrema direita, ignorantes ou sem coração.
2. As crianças conhecem sua própria identidade de gênero. Se a criança afirma
constantemente que é algo diferente de seu corpo biológico, ela deve ter razão.
3. Se o pai ou a mãe não aceitarem e acolherem imediatamente a suposta iden-
tidade de gênero professada, causarão graves danos à criança, o que pode até
mesmo induzir a um comportamento suicida.
4. O melhor e único tratamento para uma menina que diz ser menino ou vice-
-versa, algo diferente da realidade de seu corpo, é uma “transição” – social,
médica ou ambas. O fato de a criança ou o adolescente ter condições de saúde
mental delicadas, como ansiedade, depressão, trauma, autismo, abuso de subs-
tâncias ou transtorno bipolar, não importa.
5. Uma vez que uma criança afirma ser de outro sexo, os adultos ao redor devem
seguir sua manifestação, providenciando o tratamento e as acomodações solici-
tadas por essa criança.
Certamente trata-se de uma situação delicada e dramática. Entretanto, está
longe de ser pacífica e não pode ficar refém da guerra ideológica que se trava em
outros fronts. O Ministério Público Federal não pode omitir-se de sua missão cons-
titucional na seara da infância e juventude. A Constituição Federal prevê especial
proteção às crianças e aos adolescentes e, com base nesse direito fundamental, são
necessárias a transparência, a honestidade intelectual e sobretudo a precaução.

2 ∙ A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A INFÂNCIA E JUVENTUDE


A Constituição Federal, em seu art. 227, preconiza:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à ali-
mentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, cruel-
dade e opressão. (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 65, de 2010).
Além da previsão do caput, o art. 227 da Constituição Federal desenvolve, em seus
parágrafos e incisos, outras facetas da proteção integral. Consolida-se o entendimento que
ao jovem é reconhecida uma proteção especial. Desprendem-se dois cânones principais.
O primeiro, expresso no caput, é o princípio da prioridade absoluta. A segu-
rança e bem-estar da criança e do adolescente devem estar em primeiro lugar nas
considerações de políticas públicas, repercutindo até nas análises orçamentárias. É
o que prevê o ECA no parágrafo único de seu art. 4º.
O segundo é a compreensão de que as crianças e os adolescentes se encontram em
um estágio peculiar de amadurecimento, declarado no inciso V do § 3º do art. 227 da
CF/1988. São reconhecidas como pessoas em desenvolvimento, tributárias de uma

734
salvaguarda especial, em razão do reconhecimento deste fator como uma vulnerabili-
dade. Assim, segundo Norberto Bobbio, os direitos da criança são considerados direi-
tos especiais relativamente ao direito comum, das pessoas adultas (BOBBIO, 2002).
A peculiar condição de pessoa em desenvolvimento é assentida por nossa
Suprema Corte, que consigna que “a liberdade das crianças e adolescentes não é
absoluta, admitindo restrições legalmente estabelecidas e compatíveis com suas
condições de pessoas em desenvolvimento, conforme a parte final do art. 16, I, do
ECA. Nesse sentido, a capacidade de exercício de direitos pode ser limitada, em
razão da imaturidade”.2 Nesse mesmo julgamento, ao tratar da inimputabilidade
penal das crianças, a Corte esclareceu que o tratamento adequado para a criança
infratora é um desafio para a sociedade:
A decisão do legislador de não aplicar medidas mais severas está em harmonia
com a percepção de que a criança é um ser em desenvolvimento que precisa,
acima de tudo, de proteção e educação, ou seja, trata-se de uma distinção compa-
tível com a condição de maior vulnerabilidade e de pessoa em desenvolvimento,
quando comparada a adolescentes e pessoas adultas. O legislador dispõe de
considerável margem de discricionariedade para definir o tratamento adequado
à criança em situação de risco criada por seu próprio comportamento. (ADI n.
3.446, rel. min. Gilmar Mendes, j. 8-8-2019, p. Informativo n. 946, grifo nosso).
Vê-se que o Supremo Tribunal Federal inclui, no reconhecimento constitucional
da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, a proteção às crianças e aos
adolescentes contra riscos e efeitos de suas próprias más escolhas. Mas o que se
entende como “pessoa em desenvolvimento”?
Segundo o pesquisador Assis da Costa Oliveira (OLIVEIRA, 2014), a ideia
de “pessoa em desenvolvimento” é uma concepção científico-cultural ocidental,
desenvolvida ao longo do século XX, que estrutura a vida humana em fases. Com a
demarcação destas biofases, devem também ser elaborados os instrumentos sociais
mais condizentes.
É a ideia da progressão da racionalidade das crianças. Cada estágio de desenvol-
vimento compreende a reunião de certas características e atributos físicos, psíquicos
e sociais e pressupõe uma maturação gradual. Existem algumas classificações, mas a
mais comum é a que divide em primeira infância (até 3 anos), segunda infância (de 3
a 6 anos), terceira infância (6 a 12 anos) e adolescência (12 a 20 anos). Cada estágio
agrega maior maturidade, habilidade, autonomia e racionalidade (OLIVEIRA, 2014).
Esta construção é condizente com estudos neurocientíficos. De fato, a neurociência
fornece dados seguros de que o cérebro do adolescente é diverso do cérebro adulto –
e diverso do cérebro de criança também. Experimentos com utilização de imagens
de ressonância magnética mostram que, por exemplo, ao avaliarem comportamentos
arriscados, o córtex pré-frontal dos adolescentes é menos acionado que o de adultos
(SAPOLSKY, 2018). O córtex pré-frontal é a parte do cérebro relacionada ao plane-
jamento, à tomada de decisões, à avaliação de riscos e à análise das consequências.
Não por outro motivo que o tema da inimputabilidade penal é tão caro aos defenso-
res do ECA. Os menores de idade, embora possam ser responsáveis em vários aspectos
de suas vidas, são resguardados da responsabilização penal adulta. Enquanto as crianças

2 ADI n. 3.446, rel. min. Gilmar Mendes, julgada em 8/8/2019 (Informativo n. 946).

735
são consideradas isentas de responsabilização penal, aos adolescentes é previsto um
sistema substancialmente mais brando, que leva em conta este estágio de maturidade
ainda em formação. De fato, os estudos da neurociência atestam que o cérebro não está
totalmente formado até pelo menos 25 anos de idade (SAPOLSKY, 2018).
Esta condição especial de vulnerabilidade deve ser levada em conta nas políti-
cas públicas voltadas à saúde infantojuvenil, como se verá adiante. Antes, porém, é
imprescindível fazerem-se algumas considerações sobre a transgeneridade e seus
aspectos políticos.

3 ∙ TRANSGENERIDADE: UM TEMA POLÊMICO


A American Psychological Association (APA) define o termo transgênero
como um conceito geral para pessoas cuja identidade, expressão ou comporta-
mento de gênero não correspondam ao que normalmente está associado ao sexo
do nascimento. A identidade de gênero refere-se ao senso interno de uma pessoa
de ser homem, mulher ou de ter outra realidade; já a expressão de gênero refere-se
à maneira pela qual uma pessoa comunica a identidade de gênero a outras pessoas
por meio de comportamento, roupas, penteados, características de voz ou corpo.3
Na realidade, o termo transgênero está atualmente defendido como um conceito
guarda-chuva, para incluir todos aqueles que não pensam ou não se comportam
totalmente como o esperado para pessoas de seu sexo biológico.
Para quem não tem familiaridade com a terminologia, dois alertas são
essenciais. Primeiro, a transgeneridade não pressupõe a homossexualidade, ou seja,
alguém pode não se sentir conforme ao seu sexo biológico, mas ainda sentir atração
sexual por pessoas do sexo oposto. Assim, crianças ou adolescentes que pareçam,
desde a tenra idade, manifestar uma orientação sexual homossexual, não teriam uma
predisposição “natural” a se identificarem como trans. São duas situações distintas.
O segundo alerta refere-se à diferenciação entre o conceito de intersexuali-
dade (antigamente chamado de hermafroditismo) e o conceito de transexualidade.
Enquanto a transexualidade seria uma condição psicológica, social e política, a
intersexualidade é uma condição médica. A intersexualidade é uma condição bio-
lógica, de ocorrência rara, em que algum tipo de má-formação ou alteração cro-
mossômica pode alterar a formação da genitália de bebês, tornando-a ambígua ou
podendo modificar o curso normal de maturação dos caracteres sexuais secundários
em um adolescente. A intersexualidade é um conceito guarda-chuva também, que
abrange uma grande variedade de condições, como as mais conhecidas Síndrome
de Klinefelter (XXY), Síndrome de Turner (X0) e a Síndrome da Insensibilidade
Androgênica (MARINOV, 2020).
Ter clara a distinção entre transexual e intersexual é essencial para o debate,
uma vez que a abordagem terapêutica será completamente distinta a depender do
caso, assim como a abordagem jurídica.
Nas cortes nacionais, acriticamente, a temática da transgeneridade tem conquis-
tado vitórias jurídicas. É o caso, por exemplo, da possibilidade de alteração de nome

3 Disponível em https://www.apa.org/topics/lgbt/transgender.

736
e informação sobre o sexo nos registros públicos das pessoas naturais, definida em
última instância pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no bojo da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 4275 (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018). À unani-
midade, decidiu-se que a pessoa transgênera dispõe do “direito fundamental subjetivo
à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil”, independente-
mente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo
ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. Por maioria, deci-
diu-se também que, para a mudança, basta a mera autodeclaração realizada por via
administrativa e que a condição biológica da pessoa deve ser omitida dos registros.
Este precedente teve como mérito a carregada sensibilidade com os dramas
humanos dos sujeitos a quem se buscou tutelar. Entretanto, este julgamento carac-
terizou-se essencialmente pela ausência de oposição. De fato, foram admitidos
diversos amici curiae,4 que, à unanimidade, puseram-se de acordo com o autor da
ação, postulando mais avanços, como a extensão do benefício aos travestis. Mas não
foram ouvidas posições divergentes.5
A ausência de debate esclarecido também é recorrente quando o assunto é a
“transição” social e modificação corporal de crianças e adolescentes que apresen-
tam sintomas do que seria incongruência de gênero. Sheila Jeffreys, professora
associada de Ciência Política da Universidade de Melbourne (Austrália), é autora de
uma das poucas obras críticas ao fenômeno transgênero, o livro chamado Gender
Hurts (JEFFREYS, 2014). Neste livro, a autora denuncia que a transgenerização de
adultos e crianças se normalizou, mas sem os devidos debates.
Segundo Jeffreys, os críticos são rotulados como transfóbicos, “sujeitos a cam-
panhas de difamação na Internet” e, em alguns casos, sofrem o que hoje estão cha-
mando de campanha de cancelamento (JEFFREYS, 2014, p. 2). Ela dá o exemplo
do psicólogo J. Michael Bailey, que publicou o livro The man who want to be queen
e sofreu uma grande campanha de difamação, que incluiu a colocação de fotos de
seus filhos em um site da internet com legendas insultantes (p. 32). A própria autora
conta episódios nos quais foi impedida de falar em conferências e eventos (p. 55),
além de denunciar o assédio sofrido por aqueles que expõem seus arrependimentos
ao fazer a transição (p. 74).6
A politização da transexualidade está se sobrepondo à ciência. Em países
estrangeiros, são vários os exemplos que comprovam que posições divergentes das
narrativas militantes estão sendo afastadas do debate universitário, em detrimento

4 Entre eles, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), grupos e associações pela causa
LGBT, o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM), o Laboratório
Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos (LIDIS), o Conselho Federal de
Psicologia e a Defensoria Pública da União.
5 A ausência de divergências também parece predominar na ADPF n. 527, pendente de julgamento. O
tema foi objeto de considerações da autora no artigo “Perguntem aos promotores: as transmulheres
em presídios femininos e a ADPF 527” (In: A Visão do Ministério Público sobre o Sistema Prisional
Brasileiro. Brasília, Conselho Nacional do Ministério Público, no prelo).
6 Conferir em “Let us be free to debate transgenderism without being accused of ‘hate speech’” (The
Guardian). Disponível em: www.guardian.co.uk/commentisfree/2012/may/29/transgenderism-
hate-speech. Acesso em: ago. 2020.

737
da busca pela verdade (VIGO, 2018). Há situações de assédio, como a sofrida pela
pesquisadora Rebecca Tuvel depois de escrever um artigo comparando a ideolo-
gia transgênera à ideia de “transracialismo”, e o caso da bioética e historiadora da
Northwestern University, Alice Dreger, que sofreu ameaças pessoais e foi submetida
a procedimentos éticos em sua universidade porque publicou um livro analisando
o mencionado caso de Michael Bailey. O psicoterapeuta James Caspian foi forçado
a retirar sua proposta de pesquisa sobre a reversão da transição de transgêneros na
Universidade de Bath Spa, por “temores de uma reação violenta de ativistas trans-
gêneros”. Lindsay Shepherd,7 professora de letras na Wilfrid Laurier University
(WLU) em Ontario – Canadá, sofreu procedimento disciplinar por promover em
sala de aula um debate sobre uso de pronomes trans. Por fim, a Brown University,
em Providence, Rhode Island, cedeu à pressão da militância trans e cancelou um
comunicado de imprensa sobre um estudo revisado por pares, publicado no PloS
One pela pesquisadora médica Lisa Littman, referente ao chamado Rapid Onset
Gender Dysphoria, que será analisado adiante (VIGO, 2018).
O exemplo mais categórico do ataque à ciência é o caso do pesquisador e psicó-
logo canadense Kenneth Zucker. Este era reconhecido como a maior autoridade em
questões de incongruência de gênero em crianças, possuindo experiência de mais
de 30 anos em tratamento com crianças no Centre for Addiction and Mental Health
(CAMH), em Toronto. Não obstante ser o médico declaradamente defensor do direito
de gays e transgêneros, ele sustentava que a saúde das crianças e dos adolescentes
com disforia é mais beneficiada quando ajudados a aceitarem seus corpos biológicos.
Tal posição, baseada em experiencia clínica e pesquisas científicas, o levou a sofrer
uma longa campanha de desinformação e, no final, perdeu seu posto de trabalho, e a
clínica que tratava as crianças foi fechada8 (CRETELLA, 2018; VIGO, 2018).
No Brasil parece não ser diferente. Em março de 2020, uma comitiva de par-
lamentares estaduais tentou impedir uma palestra da psiquiatra Akemi Shiba, na
Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, sobre o crescimento das autodecla-
rações de transgeneridade. O grupo também representou contra a profissional no
Ministério Público do Estado, e o Conselho Estadual de Promoção dos Direitos
LGBT gaúcho protocolou uma representação contra a médica no Conselho Regional
de Medicina. A porta-voz da campanha No Corpo Certo, Eugênia Rodrigues,
igualmente relata que, em 2018, ativistas LGBTs pressionaram os organizadores
da Semana de Psicologia da Universidade Federal Fluminense para cancelarem
duas palestras suas no evento. A pressão se deu tanto presencialmente como atra-
vés do envio de e-mails por diversas entidades e pelo uso das redes sociais, sempre
tachando a palestrante de transfóbica e fascista.9
Assim, deve ser reconhecida, na temática da transgeneridade, a existência de
um ambiente conflituoso, de disputas ideológicas, onde as incertezas são muito

7 Ver em https://en.wikipedia.org/wiki/Lindsay_Shepherd.
8 Sobre o assunto, é imperdível o documentário da BBC “Transgender kids: who knows best?”,
banido no Canadá e indisponível no YouTube, podendo ser acessado em https://www.dailymotion.
com/video/x58s24i.
9 Conferir em http://www.nocorpocerto.com/10-motivos-para-suspendermos-a-resolucao-no-2265
-19-do-conselho-federal-de-medicina/.

738
mais pungentes que as certezas. Para piorar, o debate é frequentemente dificultado,
quando não efetivamente impedido. Com estas considerações em mente, passa-se à
análise da repercussão desta temática sobre as crianças e os adolescentes.

4 ∙ ASPECTOS CONTROVERTIDOS
DA “TRANSIÇÃO” DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
A coerência se faz necessária. A imaturidade infantojuvenil, atestada cientifica-
mente e reconhecida no ordenamento jurídico brasileiro, suscita reflexões sobre a
validade da autopercepção da criança ou do adolescente como fator preponderante
para iniciar um processo de intervenção médica, que pode trazer consequências
por vezes irreversíveis física e psicologicamente. A psicoterapeuta americana Lisa
Marchiano, que possui um trabalho consolidado com crianças que se identificam
como trans, traz o seguinte alerta sobre a supervalorização da vontade infantil:
Eu não sei se você tem filhos, mas há poucas coisas que uma criança poderia
pedir aos pais e ouvir como resposta um mero: “Sim, tudo bem, querido”. Eu
conheço garotos de 13 anos que insistiam que era literalmente uma questão de
vida ou morte ter ou não um iPhone. Como adultos, sabemos que isso não é
verdade. Nós sabemos que ninguém vai morrer se não tiver um iPhone. Conheço
crianças que viveram como gatos por meses. Mas seria absurdo se deixar levar
por suas palavras e dizer-lhes que sim, que eles são de fato um gato. Então, parte
da parentalidade é empática, com sintonia, sabendo quando dizer não aos filhos,
quando colocá-los em uma estrada diferente e quando ajudá-los a se adaptar a
algo que pode ser desconfortável para eles naquele momento, mas faz parte do
mundo ao qual eles precisam se adaptar.
De onde surgiu essa ideia de aceitar qualquer coisa que a criança nos diz? Nós
não as deixamos comer o que bem entendem, nós as obrigamos a tomar banho,
nós fazemos com que troquem de roupa… Há todo tipo de coisa que fazemos aos
nossos filhos – se chama ser pais.10
A persistência na declaração da criança em dizer-se de sexo oposto, no entanto,
deve ser levada a sério. A insistência, além de um tempo razoável, pode ser sintoma
de uma condição mental chamada incongruência de gênero infantil ou “disforia
de gênero” infantil. É uma condição que possui tratamento, no sentido de auxiliar
o indivíduo a conviver com seu corpo natural e evitar uma vida de insatisfações,
submissão a cirurgias e dependência do consumo por toda a vida de substâncias
não naturais ao seu corpo. Infelizmente, este tipo de tratamento, considerado o
mais eficaz antes da politização da questão, foi proibido no Brasil pelo Conselho
Federal de Psicologia, por meio da Resolução n. 01/2018. Os psicólogos estão impe-
didos de oferecer o melhor tratamento individual aos seus pacientes, sob pena de
sofrerem procedimento ético-disciplinar e perderem a licença para atuarem (CFP,
2018). Não há exceção em relação ao tratamento de crianças, embora, como se
verá abaixo, a maioria das crianças que apresenta incongruência de gênero não se
declare trans na vida adulta.

10 Tradução da entrevista concedida por Lisa Marchiano a Meghan Murphy sobre a tendência das
“crianças trans”. Disponível em: https://medium.com/hormonionaoebrinquedo/lisa-marchiano-
fala-sobre-os-problemas-de-transicionar-crian%C3%A7as-f6f7b1ffde9f. Acesso em: ago. 2020.

739
Existe uma inescrupulosa tentativa de associação do tratamento psicológico
para incongruência de gênero com a funesta “cura gay”. Como foi mencionado,
orientação sexual é diferente de transgeneridade. Ao contrário da transexualidade,
quem se reconhece homossexual não busca por tratamentos químicos e cirúrgicos
irreversíveis, com efeitos de longo prazo ainda incertos, especialmente em relação
ao uso contínuo de hormônios. Quem perde nesta disputa ideológica é a saúde das
crianças e dos adolescentes.
Segundo a American Psychiatric Association,11 até 98% dos meninos confusos
de gênero e 88% das meninas confusas de gênero acabam aceitando seu sexo bio-
lógico depois de passar naturalmente pela puberdade. Em uma meta-análise, feita
em 2011, foram analisados 10 estudos, realizados entre 1968 e 2008, que mostra-
ram que, de um total de 246 crianças, apenas 39 delas mantiveram a disforia. A
taxa geral de persistência foi de 16%, variando entre os diferentes estudos de 2%
a 27% (STEENSMA et al., 2011). Entre 73% e 98% das crianças acompanhadas
não se declararam trans na vida adulta. Ademais, o estudo posicionou-se contra a
chamada “transição social” (mudança de nomes, pronomes, documentos etc.) para
crianças menores de 10 anos, argumentando que, a partir dos dados levantados,
ela diminui as chances de desistência (RODRIGUES; GAYS PELA ABOLIÇÃO DE
GÊNERO, 2020).
Este dado é reconhecido mesmo por grupos ativistas da causa transgênera.
Embora não admitido como amicus curiae na já mencionada ADIN n. 4275 no
STF, a Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul (NUANCES)
contestou o argumento da possibilidade de o transexual, adulto, se arrepender da
alteração. Segundo eles, “cerca de 75% dos meninos” que aparentam “disforia de
gênero” na infância, quando chegam à idade adulta, descrevem-se como bissexuais
ou homossexuais, deixando de apresentar os sintomas da transexualidade. Isto seria
diferente para o indivíduo adulto (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018).
A alta taxa de reorientação natural da identidade de gênero, após a puberdade,
é fato até então não contestado. A grande maioria das crianças que apresentaram
incongruência de gênero acabam por aceitar seus corpos naturais (AMERICAN
COLLEGE OF PEDIATRICIANS, 2016; KORTE et al., 2008; STEENSMA et al., 2011).
O que parece haver é uma confusão comum na infância ou adolescência, em razão da
homossexualidade. De fato, muitos acabam por assumirem depois a homossexuali-
dade ou bissexualidade. Confundem inicialmente a orientação sexual com a identi-
dade de gênero. Isto também leva à reflexão de se, mesmo inconscientemente, há uma
não aceitação da própria homossexualidade, talvez decorrente de um ambiente de
pouca aceitação do diferente. Para algumas famílias de valores mais conservadores,
pode ser menos doloroso diagnosticar o filho com incongruência e transformá-lo em
filha, que aceitar sua homossexualidade e sua personalidade feminizada.12

11 Em seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, na quinta edição (DSM-V),


páginas 451-459 (taxas de persistência de disforia de gênero).
12 Questiona-se: não seria isto a “cura gay”? A Associação de Gays pela Abolição de Gênero
denuncia o que seria uma nova patologização da homossexualidade. Ver em https://medium.
com/@gayantiqueer/incongru%C3%AAncia-de-g%C3%AAnero-na-inf%C3%A2ncia-ou-
repatologiza%C3%A7%C3%A3o-da-homossexualidade-7620024f32ba. Acesso em: 27 ago. 2020.

740
A narrativa born this way para a transexualidade não parece ser a mais acertada
também. Estudo com gêmeos monozigóticos (idênticos) e gêmeos dizigóticos, em
que pelo menos um deles se declarava trans, investigou se haveria diferenças entre
manifestações de incongruência de gênero entre irmãos gêmeos. De fato, houve mais
coincidência, ou seja, ambos se declaravam transgêneros, em irmãos monozigóti-
cos, que carregam o mesmo DNA, sugerindo uma possível predisposição biológica.
Entretanto, a coincidência em gêmeos idênticos só foi manifestada em menos de 30%
dos pares. Em mais de 70% dos gêmeos idênticos, a transexualidade só se manifestou
em um deles (DIAMOND, 2013). Fatores ambientais não compartilhados parecem
exercer uma influência maior.
A psicoterapeuta Lisa Marchiano traz um relato interessante:
Há muito pouca pesquisa sobre isso – é informal, mas é uma informação bastante
interessante. Muita coisa é proveniente de histórias pessoais de pessoas que fize-
ram a transição. E, francamente, encontrei muito do que eu já esperava encon-
trar. Em alguns casos, eram mulheres jovens que estavam tendo dificuldade,
talvez porque sofreram trauma. Muitas delas foram estupradas e apresentavam
sintomas de transtorno de estresse pós-traumático, incluindo desassociação.
Algumas delas foram intimidadas, algumas eram socialmente isoladas, algumas
tinham muita homofobia internalizada – muitas delas identificadas como lésbi-
cas. Fica bastante óbvio que é muito mais legal ser um garoto heterossexual do
que uma lésbica, para muitas das jovens lésbicas de hoje em dia. Elas chegaram
a acreditar que eram transexuais e não tiveram ajuda de terapeutas para des-
vendar o que realmente estava acontecendo. Nenhum terapeuta perguntou se
elas poderiam ou não ser lésbicas. Nenhum terapeuta contou que a maioria das
mulheres jovens passa por um período em que odeiam seus corpos, e que isso
é incrivelmente comum em nossa cultura e não apenas para mulheres jovens.
Parte do perigo do autodiagnóstico é que, se você passar algum tempo na internet
pesquisando os sites para crianças que estão buscando informações sobre elas serem
ou não trans, os sintomas são muito vagos: “Você odeia usar vestido? Bem, talvez
você seja trans. Você odeia seu corpo? Talvez você seja trans”. Então, em muitos
casos, essas jovens mulheres que eu conheci – apesar de também ter conversado
com alguns homens que destransicionaram – estavam lutando contra coisas nor-
mais contra as quais muitas mulheres jovens lutam, especialmente mulheres lésbicas
ou bissexuais. E ninguém as ajudou a interpretar isso dessa maneira. Elas obtiveram
ajuda para interpretar o que estava acontecendo em sites e redes sociais. As pessoas
nos sites garantiram que elas eram transgênero. Quando elas buscavam um tera-
peuta, em muitos casos, os terapeutas não as ajudavam a aprofundar o tema.13
O relato de Lisa Marchiano coincide com os resultados da investigação de Lisa
Littman, sobre o chamado Rapid Onset Gender Dysphoria (ROGD), em português “iní-
cio súbito de ‘disforia de gênero’” (LITTMAN, 2018). O ROGD é o fenômeno pelo qual
as redes sociais e a pressão dos colegas parecem ter alimentado a tendência dos adoles-
centes de se declararem transgêneros. Dois aspectos se sobressaem. O mais importante
é que estes adolescentes, em nenhum momento de suas infâncias, apresentaram sinto-
mas de incongruência de gênero. Entretanto, 62% deles foram diagnosticados com pelo

13 Tradução da entrevista concedida por Lisa Marchiano a Meghan Murphy sobre a tendência das
“crianças trans”. Disponível em: https://medium.com/hormonionaoebrinquedo/lisa-marchiano-
fala-sobre-os-problemas-de-transicionar-crian%C3%A7as-f6f7b1ffde9f. Acesso em: ago. 2020.

741
menos um transtorno de saúde mental ou deficiência no desenvolvimento neurológico
antes do início da declaração de disforia de gênero. O segundo é que o RODG é preva-
lecente em meninas, representando mais de 80% das incidências.
Experiências clínicas de alguns transtornos, em que a prevalência incide em ado-
lescentes do sexo feminino, podem ser úteis na avaliação da RODG. Apontam-se
aqui dois casos em particular: a anorexia e o transtorno dismórfico corporal (TDC).
Na anorexia, a garota, não importa quão magra seja, vê-se como gorda; no TDC,
vê-se como feia. As falsas crenças acima, fruto de perturbações psicológicas, geram
sofrimento emocional para o indivíduo e põem sua vida em risco. Uma lipoescultura
para a adolescente anoréxica, ou uma cirurgia plástica para aquela que se sente feia,
podem aliviar o momentaneamente seu sofrimento emocional, mas não é uma cura
para o problema psicológico subjacente. Certamente, a anorexia e a TDC não são
iguais à incongruência de gênero infantojuvenil, mas é possível estabelecer semelhan-
ças com a finalidade de refletir sobre a efetiva proteção de crianças e adolescentes.
De fato, em ambos os transtornos, é documentada a existência do que é conhecido
como contágio social. O contágio de pares é o processo em que um indivíduo e um par
se influenciam mutuamente de uma forma em que se promovem emoções e compor-
tamentos que podem potencialmente ter efeitos negativos em seu desenvolvimento.
No caso do RODG, como relatou Lisa Marchiano, o excesso de conteúdo on-line pro-
movendo acriticamente transgeneridade pode encorajar indivíduos vulneráveis a se
autodiagnosticarem como transgênero. Na investigação de Lisa Littman, 86,7% dos
pais relataram que, junto com o início súbito da “disforia de gênero”, seu filho isolara-
-se e aumentara o uso de mídia social/internet ou pertencera a um grupo de amigos
em que um ou vários amigos se identificaram como transgênero (LITTMAN, 2018).
A imaturidade natural da parca idade ou a própria fase difícil da adolescência
demandam estritos cuidados em relação às escolhas que podem ter consequências
permanentes na vida de uma pessoa. Vale lembrar o exemplo prosaico da necessi-
dade de autorização dos pais para fazer uma tatuagem em menores de 18 anos.
A transição de gênero pressupõe, minimamente, uma transição social (nome
e vestuário, por exemplo), hormonal (utilização de hormônios bloqueadores ou
cruzados) e cirúrgica (cirurgias plásticas de feminização ou masculinização dos
corpos). Aos menores de idade no Brasil, como será visto adiante, são permitidas e
viabilizadas as transições sociais e hormonais.
Não é necessário esforço argumentativo para se concluir que uma transição social e
hormonal gera consequências físicas e psicológicas ao menor de idade. Considerando,
como já mencionado, que a maturação do córtex pré-frontal no cérebro humano não
está totalmente completa antes dos 25 anos, é válido questionar-se até mesmo a possi-
bilidade de realização de procedimentos cirúrgicos logo após os 18 anos de idade.
Não é por outro motivo que médicos e profissionais da saúde estão expondo o
crescimento dos casos de “destransição de gênero”, que significa o arrependimento
do jovem que realizou uma transição precipitada.14 O relatório da pesquisa sobre

14 Conferir em https://quillette.com/2020/01/02/the-ranks-of-gender-detransitioners-are-growing
-we-need-to-understand-why/; e em https://www.dailymail.co.uk/news/article-7505617/Professor-
John-Whitehall-doctors-want-parliamentary-inquiry-childhood-gender-dysphoria.html?fbclid
=IwAR12QlBh6-Yapflq0t7PhPypKGesKfRjqs_KLvBziLnH_FwNKNJ1tKD9wiw.

742
transgêneros nos Estados Unidos, patrocinado pelo Centro Nacional de Igualdade
Transgênera, mostrou que, em 2015, 11% das mulheres biológicas que fizeram a
transição se arrependeram (JAMES et al., 2016). Esta cifra é contestada por grupos
críticos à forma como estão impostas as questões de identidade de gênero, pois,
segundo eles, esta pesquisa foi conduzida por entidade interessada, cujos partici-
pantes são aqueles que ainda estão filiados a movimentos ativistas LGBT.15 Sugerem
que o número de “destransicionados” seria muito maior porque geralmente os arre-
pendidos se desfiliam deste tipo de entidade e seguem suas vidas.16
A necessidade de proteção especial às crianças e aos adolescentes também foi mote
de um movimento da Suécia. Em 2019, a Sociedade Sueca de Pediatras encaminhou
uma representação ao governo federal, apontando que o amadurecimento psicológico
de crianças e adolescentes envolve naturalmente buscas e experimentações com suas
identidades. Para os médicos que firmaram a representação, “dar às crianças o direito
de fazer autonomamente decisões que mudam suas vidas numa idade na qual elas não
podem compreender as consequências destas decisões carece de evidência científica
e é contrário à prática médica estabelecida”. Segundo matéria da campanha No Corpo
Certo, o governo local, aceitando o pleito, iniciou uma investigação e concluiu pos-
teriormente que a prática de transicionar menores careceria de evidência médica.17
Casos reais de arrependimento levantam os alertas sobre a necessidade de avaliações
mais criteriosas da autopercepção da criança ou do adolescente. Em março de 2020, a
BBC Brasil publicou matéria18 relatando o caso de uma mulher de 23 anos que proces-
sou o sistema de saúde público britânico (NHS) por iniciar, ainda na adolescência, a
masculinização de seu corpo. Segundo a requerente, ela não teria, à época, maturidade
para dar o consentimento informado sobre um tratamento que seria irreversível.
A Constituição Federal e o ECA reconhecem os jovens como pessoas em desen-
volvimento. A proteção integral também prevista nestes diplomas impõe que eles
sejam protegidos até de suas próprias más escolhas. Este cuidado deve ser ainda
mais evidente quando os efeitos sobre as medidas que afetam as crianças e os ado-
lescentes são ainda incertos e de duvidosos benefícios.

5 ∙ A MEDICALIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO BRASIL


No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou, em janeiro de 2020,
a Resolução n. 2.265/2019, que amplia o acesso ao atendimento de pessoas com
incongruência de gênero. Em relação às crianças, permite o bloqueio da puberdade

15 Há outras pesquisas que afirmam que o arrependimento da transição seria um evento raro; contudo,
também padecem da mesma desconfiança mencionada, pois seriam pesquisas patrocinadas por
entidades interessadas em promover a transgeneridade (ver https://www.genderhq.org/trans-youth-
regret-rates-long-term-mental-health;  https://www.stonewall.org.uk/about-us/news/dispelling
-myths-around-detransition; e https://www.gendergp.com/evidenced-research-on-detransition
-regret-newsnight/).
16 Conferir em https://www.hli.org/resources/what-percentage-of-transgenders-regret-surgery/.
17 Conferir em http://www.nocorpocerto.com/10-motivos-para-suspendermos-a-resolucao-no-2265
-19-do-conselho-federal-de-medicina/.
18 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51727313. Acesso em: ago. 2020.

743
por meio de hormônios, a partir dos primeiros sinais de puberdade. Isto pode signi-
ficar a medicalização de crianças de 8 anos de idade, segundo o próprio parâmetro
da resolução, que considera como precoce o início da puberdade na idade de 9 anos
para os nascidos meninos e de 8 anos para as nascidas meninas.19
Em relação aos adolescentes, permite o tratamento hormonal cruzado, ou seja, o
uso de hormônios do sexo oposto para a modificação corporal, a partir dos 16 anos.
Procedimentos cirúrgicos podem ocorrer depois dos 18 anos, após no mínimo um ano
de acompanhamento por uma equipe multiprofissional e multidisciplinar. As normas do
Ministério da Saúde, no entanto, exigem a idade mínima de 21 anos para as cirurgias irre-
versíveis e de 18 anos para o início do tratamento com hormônios cruzados (CFM, 2019).
Embora a resolução em tela tenha sido publicada em 2020, desde o ano 2013 existe
autorização para medicalização e modificação corporal de crianças e adolescentes,
segundo o Parecer CFM n. 8/2013, proveniente de uma consultoria da Defensoria
Pública do Estado de São Paulo. Assim, há 7 anos, existe autorização do CFM para
que médicos prescrevam bloqueadores de puberdade para que, supostamente, as
crianças tenham tempo de firmarem suas convicções antes de desenvolverem os
caracteres sexuais secundários relativos aos seus sexos biológicos (CFM, 2013).
Nesse sentido, há dúvidas e contradições no tratamento dado ao tema. O Parecer
n. 8/2013 do Conselho Federal de Medicina, cujo assunto é “Terapia hormonal para
adolescentes travestis e transexuais”, ao mesmo tempo em que permite a utilização de
bloqueadores de puberdade em crianças, admite que cerca de 80% a 95% dos peque-
nos que apresentam incongruência de gênero não a apresentará na adolescência.
O parecer traz argumentos a favor do retardo da puberdade que, em resumo,
seria evitar as consequências desagradáveis de desenvolver características do sexo
biológico da criança. Por sua vez, os argumentos contra seriam: (a) a impossibilidade
de fazer diagnóstico definitivo da incongruência na adolescência, segundo alguns
pesquisadores; (b) o bloqueio do desenvolvimento das características sexuais secun-
dárias inibiria “a formação espontânea de uma identidade consistente de gênero,
que ocorre em consequência da crise que envolve o momento da identificação de
gênero”; (c) o “risco potencial para o processo de crescimento e do desenvolvimento
cerebral e da massa óssea” (CFM, 2013, p. 4).
Sofia Favero e Paula Machado, psicólogas e pesquisadoras da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), põem em dúvida os benefícios de um tratamento
precoce para incongruência de gênero na infância (FAVERO; MACHADO, 2019).
Primeiramente, elas denunciam a fragilidade do próprio diagnóstico, uma vez que se
amparam em critérios estereotipados e aspectos sexistas como “gostar de brincar de
Barbie”, brincar de carrinho, ter personagens femininos favoritos, ter preferência por
se sentar ao urinar e outros sinalizadores do gênero.20 Segundo as autoras,
se por um lado os diagnósticos de Disforia (DSM-5) ou Incongruência (CID-
11) são articulados de maneira estratégica para adultos, tendo em vista que a

19 A resolução diz que a utilização do bloqueio hormonal deve se dar apenas em caráter experimental,
em hospitais universitários ou de referência.
20 Constantes no já mencionado Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, quinta
edição (DSM-V), da Associação Americana de Psiquiatria.

744
legislação de alguns países só oferece assistência em saúde a partir de um código
nosológico (BENTO; PELÚCIO, 2012), por outro lado não temos os mesmos
ganhos quando pensamos o deslocamento desses diagnósticos para a infância.
(FAVERO; MACHADO, 2019, p. 108).
Em outros termos, é demandada a permanência de um código de adoecimento
no referido manual de saúde, algo que pode ser estigmatizante, para que possam
prevenir futuros estigmas. Um paradoxo. Querem criar o problema, para depois
resolvê-lo. (p. 110).
As autoras seguem criticando a intervenção por inibidores de puberdade nas
crianças. Segundo as pesquisadoras, o adiantamento progressivo da terapia hor-
monal e dos inibidores é uma demanda de cunho estético. Declaram também que
não é papel do profissional de saúde mental corroborar com os desejos estéticos
dos pacientes, mas sim auxiliá-los a desafiar as próprias normas e estereótipos de
gênero, dando-lhes os instrumentos para melhor enfrentar as adversidades da vida:
O que garante satisfação? Por que propor que os resultados devem ser melhores?
Melhores em relação a quê? Distanciar-se o máximo possível de características que
denunciem a transexualidade entraria no quadro de uma percepção satisfatória?
Caso essa hipótese esteja correta, quais são os efeitos terapêuticos de um discurso
que impõe a própria identidade do sujeito como algo a ser disfarçado? Ademais,
desde quando uma disciplina que se importava com o sentir, pensar e agir passou
a se preocupar com a aparência dos pacientes? De fato, a depender do grau de
diretividade da abordagem psicológica, não é que a aparência dos pacientes seja
desimportante, mas se um paciente nos procura porque quer perder peso, e perde
peso durante o processo terapêutico, não caberá a nós, enquanto profissionais,
comemorarmos esse emagrecimento. (FAVERO; MACHADO, 2019, p. 115).
Vale recordar que inibidores de puberdade são, em regra, hormônios artificiais.
A campanha No Corpo Certo informa que estas substâncias foram desenvolvidas
inicialmente para tratar o câncer de próstata e que suspendem a ação dos hormô-
nios produzidos pelo organismo humano. Segundo os organizadores, esta infor-
mação pode ser confirmada na bula dos principais medicamentos usados, como
Lupron Depot (acetato de leuprorrelina), Neo Decapeptyl (triptorrelina), Zoladex
(goserelina) e Supprelin (acetato de histrelina).21 As bulas destas substâncias pre-
veem possíveis efeitos colaterais e reações adversas em adultos e crianças, incluindo
câncer, diabetes, depressão e tentativas de suicídio.
Os perigos dos hormônios cruzados, fornecidos aos adolescentes para simular
as características do outro sexo, também são reconhecidos. Administrar estrogê-
nio em rapazes, entre outras reações adversas, pode causar esterilidade, depressão,
aumento do peso, aumento do risco cardiovascular e câncer de mama. Alguns
questionam o interesse e o financiamento de indústrias farmacêuticas em estudos
que incentivam a reafirmação da transgeneridade e os benefícios dos tratamentos
hormonais (TRANSGENDER TREND, 2018).
Michael Laidlaw, médico endocrinologista, diferencia a administração de hor-
mônios para adultos e para menores de idade, uma vez que os adultos, ao serem

21 Disponível em: http://www.nocorpocerto.com/destransicao/. Acesso em: ago. 2020.

745
informados dos riscos e benefícios, podem decidir o melhor para suas vidas. Além
disso, segundo o especialista, as consequências da administração de hormônios em
crianças e adolescentes são mais nocivas que no tratamento de um corpo adulto.
As substâncias administradas em corpos em desenvolvimento potencializam efei-
tos adversos como esterilidade, disfunção sexual, complicações tromboembólicas,
doença cardiovascular e câncer. Segundo Laidlaw, considerando que a qualidade
das evidências dos benefícios é tão baixa, “como pode uma criança, adolescente ou
até mesmo seus pais consentirem genuinamente para um tratamento dessa natu-
reza?” (apud NAINGGOLAN, 2019, p. 7).
O próprio benefício da transição hormonal e cirúrgica de adultos é questionado
por diversos profissionais. Paul McHugh, por 26 anos, foi chefe de psiquiatria do
Hospital Johns Hopkins, nos EUA. Este hospital, ligado à universidade de mesmo
nome, foi pioneiro no tratamento e transição de gênero. Paul McHugh questiona
os benefícios da transição cirúrgica e hormonal, afirmando que adultos que foram
submetidos à cirurgia de redesignação sexual têm um risco maior do que aqueles na
população em geral de sofrer problemas de saúde mental. Em um trabalho acadêmico,
ele cita um estudo que descobriu que os indivíduos que fizeram essa cirurgia tinham
cerca de 5 vezes mais chances do que o grupo controle de tentar suicídio e cerca de 19
vezes mais chances de efetivamente morrer por suicídio (MCHUGH; MAYER, 2016).
O American Journal of Psychiatry retirou a validação de estudo que dizia que as
cirurgias eram benéficas aos pacientes com “disforia de gênero”, após alguns profis-
sionais apontarem as falhas e omissões deste estudo. Os resultados originais já não
demonstravam benefícios para a transição hormonal, embora este fato tenha sido
omitido da comunicação midiática.
As principais deficiências foram a ausência de grupo de controle, o período de
tempo limitado de 1 ano de acompanhamento e a omissão de dados sobre suicídios
consumados e hospitalizações psiquiátricas (VAN MOL et al., 2020). Em razão de
deficiências e omissões que distorceram os resultados, a conclusão foi que não se
produziu evidência de que cirurgia e tratamento hormonal tragam benefícios aos
pacientes (MALONE; ROMAN, 2020).
Ryan Anderson, PhD e pesquisador sênior da Heritage Foundation (Research
Fellow in American Principles and Public Policy), afirma que pessoas que vivenciam
este conflito devem ser tratadas com respeito e compaixão. E elas merecem saber a ver-
dade: o maior conjunto de dados relevante do mundo revela que hormônios e cirurgias
não trazem o alívio, a plenitude e a felicidade que elas procuram (ANDERSON, 2020).
Essas conclusões já haviam sido confirmadas em um estudo de acompanha-
mento de longo prazo (1973 a 2003) de transexuais submetidos à cirurgia de rede-
senho sexual, realizado na Suécia por Dhejne e outros (2011), com 324 pessoas na
amostra. A conclusão geral da investigação foi que as pessoas com transexualidade,
após a redesignação de sexo, têm um risco consideravelmente maior de mortali-
dade, comportamento suicida e morbidade psiquiátrica do que a população em
geral. Os resultados sugerem que a redesignação de sexo, apesar de poder aliviar a
“disforia de gênero”, não é suficiente como tratamento para o transexualismo e deve
inspirar melhores cuidados psiquiátricos e somáticos após cirurgia para esse grupo
de pacientes (DHEJNE et al., 2011).

746
Outras publicações confirmam a baixa eficiência hormonização e cirurgia. Em
2020, foi publicado um importante estudo holandês, produzido por uma equipe
formada por endocrinologistas, psiquiatras, psicólogos e especialistas em incon-
gruência de gênero. O objetivo foi investigar as taxas de suicídios em relação aos
pacientes do Centro de Especialidade de Disforia de Gênero de Amsterdã. Foram
pesquisados todos os 8.263 indivíduos atendidos ao longo de 45 anos (1972 a 2017),
incluindo adultos, adolescentes e crianças. Ressalta-se que a Holanda inaugurou a
prática de bloquear a puberdade de crianças e adolescentes.
O estudo em questão concluiu que o risco de suicídio em pessoas transgênero é
mais alto que o da população em geral, não importando o estágio da transição. Um
terço dos os suicídios ocorreram em pessoas que não estavam mais em tratamento
ativo no centro, mas os outros dois terços das pessoas que morreram por suicídio
ainda visitaram o centro nos dois anos anteriores, sejam para tratamento ativo, seja
para mero check-up médico pós-transição (WIEPJES et al., 2020). Alerta-se, assim,
para a constante necessidade de cuidado com a saúde mental desta população.

6 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existe um direito fundamental à proteção integral da criança e do adolescente,
devendo ser considerada sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento,
conforme previsão expressa da Constituição Federal. A discussão da transição
social e corporal dos jovens não pode ser omitida, especialmente por meio de per-
seguições ou acusações genéricas de transfobia. É um tema polêmico, controverso
e extremamente sensível, que necessita ser discutido com franqueza, liberdade e
responsabilidade para com os melhores interesses da criança e do adolescente.
Não se desconhece que, de fato, existem condições psicológicas que demandam
atenção médica e psiquiátrica. Os pais de uma criança ou adolescente que sofre de
dúvidas sobre sua sexualidade ou sua identidade de gênero se encontram reféns de
uma disputa médica e ideológica de grande dimensão e complexidade. Se por um
lado existem dúvidas e riscos, do outro lado existe pressão social e midiática. Se por
um lado existe histórico de preconceitos e discriminações com o diferente, do outro
existe desejo de autoafirmação que pode ser, por vezes, inconsequente.
O Conselho Federal de Medicina publicou diretriz que permite em tese inter-
venção hormonal em crianças a partir de 8 anos de idade. Em várias capitais existem
clínicas de gênero, vinculadas a universidades federais, que estão administrando
bloqueadores de puberdade e hormônios cruzados para adolescentes e preparan-
do-os para cirurgias irreversíveis tão logo completem a maioridade. Fiscalizar esses
espaços e diretrizes é atribuição do Ministério Público Federal.
Conscientes de que existe uma disputa de cunho político-ideológico, é impres-
cindível que sejam escutados todos os seguimentos da sociedade médica e psico-
lógica. É preciso estar alerta ao que parece ser o domínio de apenas uma faceta do
discurso, como comprovam os não raros casos de perseguições e de “cancelamento”
com aqueles que se manifestam criticamente à pauta transgênera. Igualmente, deve
ser restaurada a liberdade médica e psicológica para oferecer o melhor tratamento
para saúde mental de cada indivíduo.

747
O debate deve ser livre e racional. É necessário que as pesquisas sobre as con-
sequências de um diagnóstico e transição precoce de crianças e adolescentes sejam
avaliadas em todas suas dimensões, inclusive inquirindo-se sobre os interesses de
seus patrocinadores. Embora seja compreensível, é necessário também que apelos
meramente emotivos relacionados a repulsivos sofrimentos a que foram submeti-
dos alguns grupos de pessoas, sobretudo no passado, não sejam arrolados como
argumentos para embasar decisões que devem pautar-se pela sobriedade científica.
A missão do Ministério Público Federal demanda um posicionamento de cau-
tela. As incertas consequências nos planos social e da saúde das crianças e adoles-
centes, aliadas aos preceitos fundamentais da proteção integral e da observância
da peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, demandam a primazia da
segurança. Enquanto não houver um maior consenso sobre os riscos e benefícios da
transição de gênero de crianças e adolescentes, deve prevalecer a medida que menos
interfira na vida e na saúde de corpos saudáveis.
Como sociedade, talvez, o grande desafio seja reconstruir uma ideia que parece
esquecida: a ideia de que ser diferente também é normal.

REFERÊNCIAS
4THWAVENOW. Do no harm: an interview with the founder of youth trans critical
professionals. 2016. Disponível em: https://4thwavenow.com/2016/04/05/do-no-harm-an-
interview-with-the-founder-of-youth-trans-critical-professionals/. Acesso em: 17 ago. 2020.
AMERICAN COLLEGE OF PEDIATRICIANS. Gender ideology harms children. 2016. p. 1-18.
ANDERSON, R. T. “Transitioning” procedures don’t help mental health, largest dataset
shows. 2020. Disponível em: https://www.heritage.org/gender/commentary/transitioning-
procedures-dont-help-mental-health-largest-dataset-shows. Acesso em: 18 ago. 2020.
BOBBIO, N. A era dos direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Editora Campos, 2002.
CFM, Conselho Federal de Medicina. Processo-Consulta CFM n. 32/2012 – Parecer CFM
n. 8/2013.
CFM, Conselho Federal de Medicina. Resolução n. 2.265, de 20 de setembro de 2019.
Dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero
e revoga a Resolução CFM n. 1.955/2010. Diário Oficial da União. 2019.
CFP, Conselho Federal de Psiquiatria. Resolução n. 1, de 29 de janeiro de 2018. Estabelece
normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e
travestis. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolução-
CFP-01-2018.pdf. Acesso em: 20 ago. 2020.
CRETELLA, M. Gender dysphoria in children. American College of Pediatricians,
November, p. 1-20, 2018.
DHEJNE, C. et al. Long-term follow-up of transsexual persons undergoing sex
reassignment surgery: cohort study in Sweden. PLOS ONE, v. 6, n. 2, 2011.
DIAMOND, M. Transsexuality among twins: identity concordance, transition, rearing,
and orientation. International Journal of Transgenderism, v. 14, n. 1, p. 24-38, 2013.

748
FAVERO, S. R.; MACHADO, P. S. Diagnósticos benevolentes na infância: crianças trans
e a suposta necessidade de um tratamento precoce. Revista Docência e Cibercultura, v. 3,
n. 1, p. 102-126, 2019.
JAMES, Sandy E. et al. The report of the 2015 U.S. Transgender survey. National Center
for Transgender Equality, p. 302, 2016.
JEFFREYS, S. GENDER HURTS. A feminist analysis of the politics of transgenderism. 1.
ed. London; New York: Routledge, 2014.
KORTE, A. et al. Gender identity disorders in childhood and adolescence currently debated
concepts and treatment strategies. Deutsches Arzteblatt, v. 105, n. 48, p. 834-841, 2008.
LITTMAN, L. Parent reports of adolescents and young adults perceived to show signs
of a rapid onset of gender dysphoria. PLOS ONE, v. 13, n. 8, p. e0202330, 16 ago. 2018.
MALONE, W. J.; ROMAN, S. Calling into question whether gender-affirming surgery relieves
psychological distress. The American journal of psychiatry, v. 177, n. 8, p. 766-767, 2020.
MARINOV, G. K. In humans, sex is binary and immutable. Academic Questions, v. 33,
n. 2, p. 279-288, 2020.
MCHUGH, P. R.; MAYER, L. S. Special report: sexuality and gender. Findings from the
biological, psychological, and social sciences. The New Atlantis, n. 50, 2016.
NAINGGOLAN, L. É complicado: médicos dizem que o questionamento de gênero em
crianças precisa de mais embasamento científico. MEDSCAPE, p. 1-23, 2019.
OLIVEIRA, A. D. C. Princípio da pessoa em desenvolvimento: fundamentos, aplicações
e tradução intercultural. Revista Direito e Práxis, v. 5, n. 9, p. 60-84, 2014.
RODRIGUES, E.; GAYS PELA ABOLIÇÃO DE GÊNERO. “Incongruência de gênero
na infância” ou repatologização da homossexualidade? Disponível em: https://medium.
com/@gayantiqueer/incongruência-de-gênero-na-infância-ou-repatologização-da-
homossexualidade-7620024f32ba. Acesso em: 27 ago. 2020.
SAPOLSKY, R. M. BEHAVE. The biology of humans at our best and worst. New York:
Penguin Books, 2018.
STEENSMA, T. D. et al. Desisting and persisting gender dysphoria after childhood: A qualitative
follow-up study. Clinical Child Psychology and Psychiatry, v. 16, n. 4, p. 499-516, 2011.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.275.
2018. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.
asp?base=ADIN&s1=4275&processo=4275. Acesso em: 7 jun. 2020.
TRANSGENDER TREND. “They look normal” – the case for puberty blockers. Disponível
em: https://www.transgendertrend.com/puberty-blockers-safe/. Acesso em: 30 jul. 2020.
VAN MOL, A. et al. Gender-affirmation surgery conclusion lacks evidence. The American
Journal of Psychiatry, v. 177, n. 8, p. 765-766, 2020.
VIGO, J. Trans activists’ campaign against “TERFs” has become an attack on science.
Disponível em: https://quillette.com/2018/10/18/trans-activists-campaign-against-
terfs-has-become-an-attack-on-science/. Acesso em: 17 ago. 2020.
WIEPJES, C. M. et al. Trends in suicide death risk in transgender people: results from
the Amsterdam Cohort of Gender Dysphoria study (1972–2017). Acta Psychiatrica
Scandinavica, v. 141, n. 6, p. 486-491, 2020.

749
TRABALHO INFANTIL NO BRASIL
Um olhar sobre a antítese do trabalho decente e
sua relação com o trabalho escravo contemporâneo

Thalita Santos Lima1

Sumário: 1 Introdução. 2 Evolução normativa. 3 Principais causas do trabalho infantil.


4 Condições degradantes de trabalho. 5 Ciclo da pobreza: uma análise do trabalho escravo
contemporâneo no contexto do trabalho infantil. 6 Trabalho infantil x trabalho decente.
7 Medidas de prevenção do trabalho infantil. 8 Considerações finais.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O trabalho infantil não é um fenômeno novo no Brasil, visto que, desde o início da
nossa colonização, crianças negras e indígenas se submetiam às piores e mais perigosas
formas de trabalho. Elas eram tratadas como mercadorias e, como tais, eram obrigadas
a esgotarem toda sua força física em jornadas excessivas. Ademais, não havia distinção
entre o trabalho desempenhado por elas e por adultos.
Tanto a ordem interna quanto a internacional são fartas ao regulamentar o
direito ao não trabalho de crianças e adolescentes, impondo diversas proibições e
severas restrições, tendo como pressuposto a condição peculiar de pessoa em desen-
volvimento que são.
No entanto, em pleno século XXI, a exploração da força de trabalho infantil
ainda é uma realidade na sociedade brasileira. Apesar de algumas medidas tenden-
tes a sua eliminação terem sido tomadas, verifica-se que ainda há muito a fazer para
a sua concretização.
A presença de crianças e adolescentes no ambiente laboral gera lesões perversas
e irreversíveis no desenvolvimento físico, psíquico, intelectual, moral e social. Tais
efeitos nocivos também se estendem à sala de aula, pois apresentam falta de inte-
resse e dificuldades em aprender, quando não há evasão escolar.
Como se não bastassem os malefícios mencionados, eles também são privados do
direito fundamental de brincar. O tempo destinado a brincadeira dessas crianças inseri-
das precocemente no mercado de trabalho cede espaço para enxada, foice, facões, entre
outros instrumentos de trabalho, comprometendo a formação da sua cultura lúdica.
Estudiosos de várias áreas do conhecimento sustentam a influência da brin-
cadeira no desenvolvimento da aprendizagem, na sociabilidade e na criatividade
infantil, além de outras vantagens. Alertam, ainda, que a sua ausência, no período

1 Advogada. Especialista em Direito Constitucional Aplicado: Empresas, Estado e Indivíduos diante


da Interpretação Constitucional. Especialista em Direito e Processo do Trabalho.

751
de maior vulnerabilidade humana – a infância –, prejudica a construção de uma
vida adulta saudável.
Essas crianças e adolescentes que vendem suas forças de trabalho em troca de subsis-
tência, ao atingirem a idade adulta, em razão da baixa empregabilidade e da falta de qua-
lificação profissional, podem se transformar em trabalhadores adultos superexplorados.
A exploração sem medidas pelo capitalismo contemporâneo atinge todas as
faixas etárias. Por conseguinte, o trabalho precoce, além de subtrair dos pequenos
trabalhadores a oportunidade de brincar, de estudar e de se desenvolver de forma
saudável, leva à perpetuação do ciclo da pobreza. Tanto é que a principal causa do
trabalho infantil é também o seu efeito, a miséria.
Para que esse cenário seja alterado, é preciso um engajamento do Estado e da
sociedade brasileira visando à erradicação do trabalho infantil no País, além de
conscientização, educação, implementação de políticas públicas e oportunidades de
trabalho decente aos que podem laborar.

2 ∙ EVOLUÇÃO NORMATIVA
O universo infantil se diferencia em diversos aspectos do adulto. O direito não
é alheio a esse fato, tanto é que o ordenamento jurídico pátrio vigente tutela, com
absoluta prioridade, interesses e direitos peculiares de crianças e adolescentes. No
entanto, nem sempre foi assim. A Constituição Federal de 1988 teve papel impor-
tantíssimo nessa mudança de paradigma, além de fundamentar a base do combate
ao trabalho infantil nas décadas posteriores a sua promulgação.
A evolução do tratamento jurídico dispensado a crianças e adolescentes brasi-
leiros, conforme ensina Paula (2012, p. 26), atravessou por quatro fases ou sistemas:
a) sistema de absoluta indiferença às questões da infância e juventude, aferível pela
inexistência de normas relacionadas a crianças e adolescentes; b) sistema de mera
imputação criminal, onde as leis seriam inspiradas exclusivamente pelo propósito
de coibir a criminalidade infanto-juvenil, tendo como pressuposto a capacidade em
suportar as consequências do ilícito; c) sistema tutelar, evidenciado por leis obje-
tivando conferir ao mundo adulto poderes tendentes à integração sócio-familiar
da criança ou adolescente em situação de patologia social, compondo forma de
proteção reflexa de seus interesses pessoais; d) sistema de proteção integral, onde as
leis reconhecem direitos e garantias à criança e ao adolescente, tutelando interesses
peculiares e outros comuns ao ser humano, bem como criam instrumentos para a
efetivação dos seus direitos individuais frente à família, à sociedade e ao Estado.
O primeiro Código dedicado à proteção da infância e da adolescência, cuja dou-
trina subjacente era a de manter a ordem social, foi aprovado no dia 12 de outubro
de 1927. O diploma normativo em pauta, que também é conhecido como Código
Mello Mattos, em seu capítulo XXI, regulamentou o trabalho dos menores da
época. Antes de tal Código, as normas de proteção existentes apenas se destinavam
aos menores transgressores da lei penal, além de coibir a prática de ilícitos.
A Constituição de 1934, de forma pioneira, tratou expressamente sobre a proteção
à infância e juventude. Além disso, proibiu a diferença salarial por motivo de idade e o
trabalho dos menores de 14 anos, bem como estabeleceu restrições ao labor desempe-
nhado pelos menores de 16 anos. O mesmo se infere nas Constituições de 1937 e 1946.

752
A Constituição de 1967, elaborada durante o regime militar, diferentemente das
anteriores, estabeleceu a idade mínima de 12 anos para o ingresso no trabalho.
Em 1979, a Lei n. 6.697 instituiu o Código de Menores, que dispunha, em linhas
gerais, sobre assistência, proteção e vigilância dos menores de 18 anos que se encon-
trassem em situação irregular. O conjunto de normas tendentes a proteger os meno-
res tinha sua incidência limitada às seguintes hipóteses:
Art. 2º Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor:
I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obriga-
tória, ainda que eventualmente, em razão de:
a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;
b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;
II - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
III - em perigo moral, devido a:
a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;
b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;
IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou
responsável;
V - com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;
VI - autor de infração penal.
Parágrafo único. Entende-se por responsável aquele que, não sendo pai ou mãe,
exerce, a qualquer título, vigilância, direção ou educação de menor, ou volunta-
riamente o traz em seu poder ou companhia, independentemente de ato judicial.
O Código em apreço é considerado expressão máxima da Teoria da Situação
Irregular. Segundo Paula (2002, p. 28-29), três características podem ser observa-
das nessa teoria:
a) sua incidência limitada às situações reveladoras de patologia social; b) a
ausência de rigor procedimental, com desprezo até mesmo das garantias rela-
cionadas ao princípio do contraditório; e c) o elevado grau de discricionariedade
da autoridade judiciária.
A superação dessa teoria somente ocorreu com a promulgação da Constituição
de 1988, que adotou a Doutrina internacional da Proteção Integral, cuja origem
remonta à Declaração dos Direitos da Criança de 1959. Essa doutrina sustenta a
absoluta prioridade em todos os aspectos que possibilitem a elaboração de diretri-
zes e a concretização dos direitos da criança e do adolescente, com a finalidade de
alcançar o seu pleno desenvolvimento.
Neste sentido, cumpre destacar o seguinte trecho extraído da obra de Oliva
(2006, p. 103-104):
A adjetivação, na hipótese, não é aleatória e nem despropositada. Teve a finalidade
de realçar que essa especial proteção, que tem caráter de absoluta prioridade, deve
ser total, completa, cabal, envolvendo, como agentes de sua efetivação, família,
sociedade e Estado.
Com isso, crianças e adolescentes brasileiros, que até então eram considerados
objetos de direito, passaram a ser sujeitos de direito e, consequentemente, titulares de
todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, bem como dos direitos

753
especiais decorrentes da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento que são. Isso
se expressa no art. 227 da nossa Lei Maior, que prevê o princípio da Proteção Integral.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990 também se insere nessa
fase de proteção integral e disciplina uma série de direitos e garantias destinados às
crianças e aos adolescentes, objetivando atenuar suas vulnerabilidades.
No que tange à proteção destinada aos menores no ambiente de trabalho, verifi-
ca-se que a redação original do art. 7º, XXXIII, da CF/88, previa que a idade mínima
para se iniciar a atividade laboral no País era a de 14 anos, salvo na condição de
aprendiz. Nesta última hipótese, não havia limitação etária.
A Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998, alterou tal dispositivo,
de modo que a idade mínima para o ingresso no mercado de trabalho passou a ser de
16 anos. Assim como na redação originária, foi excepcionada a atividade desempe-
nhada pelo aprendiz, todavia foi estabelecido um limite, qual seja a partir de 14 anos.
As autoras Corrêa e Gomes (2003, p. 40) apresentam quatro principais funda-
mentos da proteção do menor no ambiente laboral:
O fundamento cultural refere-se ao fato de o menor ter direito ao estudo e a
receber instrução. O fundamento moral diz respeito à proibição do trabalho do
menor em locais que contenham apelos eróticos. Com relação ao fundamento
fisiológico, tem por objetivo garantir que o menor não exerça atividades em
locais insalubres, perigosos, penosos, ou à noite, para que possa ter um com-
pleto desenvolvimento físico e psicológico. Quanto ao fundamento de segurança,
implica o direito de o menor ser resguardado com normas de proteção que evi-
tem acidentes de trabalho. [g.n.]
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (2001, p. 13), “o traba-
lho infantil é aquele realizado por crianças e adolescentes que estão abaixo da idade
mínima para a entrada no mercado de trabalho, segundo a legislação em vigor no país”.
Desta feita, no Brasil, considera-se trabalho infantil toda atividade laboral
desempenhada por menores de 16 anos, exceto nos casos de trabalho noturno, peri-
goso ou insalubre, nos quais a idade mínima se dá aos 18 anos. Ademais, nossa Lei
Maior admite, apenas na condição de aprendiz, o trabalho a partir dos 14 anos.
Logo, as crianças são proibidas de trabalhar; por sua vez, ao adolescente, desde
que respeitada a idade mínima e as restrições impostas, é permitido o trabalho. Aos
trabalhadores adolescentes é assegurada a proteção dos trabalhadores em geral e,
em razão de sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, uma proteção
integral e absolutamente prioritária.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) também protege de forma especial
o trabalhador menor, nos seus arts. 402 ao 441. Desta feita, a CLT, a Constituição
Federal de 1988 e o ECA compõem os três diplomas normativos que regulamentam
o trabalho do menor no País.
Na esfera internacional, a proteção da criança e do adolescente é objeto de tratados
de direitos humanos celebrados no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU).
A Convenção sobre os Direitos da Crianças de 1989 é considerada o principal
documento internacional voltado à proteção da dignidade da criança e do adoles-
cente. Conforme a convenção, criança é todo ser humano com menos de 18 anos de
idade, salvo se, em conformidade com a lei, a maioridade for alcançada antes.

754
A convenção em apreço também veda a exploração de crianças no ambiente de
trabalho. Neste sentido, seu artigo 32, item 1, prevê que:
Os Estados-Partes reconhecem o direito da criança de estar protegida contra a
exploração econômica e contra o desempenho de qualquer trabalho que possa
ser perigoso ou interferir em sua educação, ou que seja nocivo para sua saúde ou
para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social.
Ademais, a abolição efetiva do trabalho infantil constitui um dos temas prioritários
com o qual a OIT e seus membros devem se preocupar na atualidade, de acordo com
a Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho (1998).
As Convenções n. 138 e 182 constituem, nos termos da declaração mencionada
acima, convenções fundamentais sobre o combate ao trabalho infantil e ambas
foram ratificadas pelo Brasil.
Em relação à Convenção n. 138, sobre a idade mínima de admissão ao emprego
e ao trabalho, coadjuvada pela Recomendação n. 146, destaca-se o previsto no seu
art. 2º, item 3, segundo o qual a idade mínima a se iniciar a atividade laboral não
será inferior à idade de conclusão da escolaridade compulsória ou, em qualquer
hipótese, não inferior a 15 anos.
A Convenção n. 182 trata da Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil.
A Recomendação n. 190, por sua vez, aborda a Ação Imediata para sua Eliminação.
De acordo com o artigo 4º de tal Convenção, a expressão “as piores formas de tra-
balho infantil” compreende:
I - todas as formas de escravidão ou práticas análogas, tais como venda ou trá-
fico, cativeiro ou sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou obrigatório;
II - a utilização, demanda, oferta, tráfico ou aliciamento para fins de exploração
sexual comercial, produção de pornografia ou atuações pornográficas;
III - a utilização, recrutamento e oferta de adolescente para outras atividades
ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas; e
IV - o recrutamento forçado ou compulsório de adolescente para ser utilizado
em conflitos armados.
Isto posto, verifica-se que a trajetória do tratamento jurídico dispensado a crian-
ças e adolescentes brasileiros foi árdua, tanto é que durante um longo período foram
considerados objeto de direito, assim como bens e valores. Desde a promulgação da
Constituição Federal de 1988, a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento foi
reconhecida, assim como passaram a ser titulares de proteção integral. Entretanto,
após mais de 30 anos de vigência da Constituição Cidadã, muitas crianças e adoles-
centes ainda têm o seu direito fundamental à infância violado, já que, para sobrevi-
verem, vendem sua força de trabalho e, como contraprestação, têm um desenvolvi-
mento mental e físico deficitário, cujos reflexos se difundem ao longo de suas vidas.

3 ∙ PRINCIPAIS CAUSAS DO TRABALHO INFANTIL


A inserção de crianças e adolescentes no mercado de trabalho, seja ilícito, seja
proibido, é expressão da miséria a que milhares de famílias brasileiras são submeti-
das, bem como da ausência de oportunidade de trabalho decente. Por conseguinte,
o trabalho infantil é considerado um instrumento de manutenção da pobreza e,
em contrapartida, vai ao encontro do principal objetivo do explorador de tal força

755
de trabalho, o lucro. Para melhor compreendermos tal mazela social, é de suma
relevância analisarmos as suas principais causas, o que se propõe neste tópico.
Na maioria das vezes, crianças e adolescentes são obrigados a trabalhar para auxiliar
na renda familiar, quando não constituem arrimo de família. Em razão do baixo desen-
volvimento deles, representam mão de obra de zero ou baixo custo e, consequentemente,
geram alta rentabilidade, o que os tornam ainda mais atrativos no mercado de trabalho.
Reitera-se que isso resulta no fato de que a principal causa do trabalho infantil
seja, também, o seu principal efeito, a miséria. Sobre este assunto merecem destaque
as seguintes palavras de Dimenstein (2005, p. 75):
Mais uma vez aparece o círculo vicioso: eles ganham pouco porque têm baixa
instrução. E, como não têm tempo para estudar, por causa do trabalho, conti-
nuam ganhando pouco. Quase metade dos trabalhadores mirins frequentou a
escola por menos de quatro anos.
Além da questão econômica, outro aspecto que contribui para o fomento de
pequenos trabalhadores é o cultural. Ainda persiste entre nós a ideologia de que
quanto mais cedo se inicia a atividade laboral, melhor é para a formação do futuro
adulto. O trabalho de crianças e adolescentes também é visto como uma solução
para a criminalidade e a pobreza.
Todavia, essa assertiva equivocada apenas evidência o problema central da supe-
rexploração infantil, qual seja a má distribuição de renda. Nessa mesma linha, cumpre
destacar o seguinte trecho extraído da obra das autoras Corrêa e Gomes (2003, p. 34-35):
Existe toda uma ideologia de supervalorização do trabalho, que preconiza ser ele
o centro das atividades de um indivíduo. Entretanto, este argumento somente
encontra respaldo entre as famílias mais pobres, pois entre as famílias de
melhores condições financeiras o trabalho encontra-se em segundo plano; em
primeiro, sempre está a educação e a formação cultural. Para as camadas mais
pobres, o trabalho transforma-se num meio de integração social.
Outro fator que também contribui para a perpetuação dessa mazela social é a
perspectiva de impunidade do explorador, que representa um entrave no combate
ao trabalho infantil no Brasil.
Além das já mencionadas, cumpre destacar que existem inúmeras outras causas
que também influenciam, tanto direta quanto indiretamente, no trabalho de crian-
ças e adolescentes, tomando como exemplo o sistema educacional deficiente, cuja
consequência é o desinteresse pela escola e a procura por trabalho.
Por fim, infere-se que são vários os motivos que determinam o ingresso de crian-
ças e adolescentes de forma precoce no mercado de trabalho, sobretudo a miséria.
Como veremos mais adiante, o trabalho infantil representa apenas o início do ciclo
da pobreza, o que nos leva a uma conclusão antecipada de que todas as fases de vida
dessas crianças e adolescentes explorados desde cedo serão marcadas pela ausência
de recursos necessários para uma vida digna.

4 ∙ CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO


As condições de trabalho a que são submetidos crianças e adolescentes são as pio-
res possíveis, além de não serem adaptadas as suas capacidades físicas e mentais. Tais
condições provocam riscos e lesões, que continuam a ser difundidos durante toda a

756
sua existência. Por conta da sua ingenuidade e vulnerabilidade, eles são facilmente
manipulados, o que contribui ainda mais para a exploração de tal força de trabalho.
Ao tratar das más condições de trabalho a que são inseridos crianças e adoles-
centes, Torres (2011, p. 71) assevera que são “atividades realizadas sob o sol escal-
dante, em ambientes quentes, úmidos e empoeirados, repetitivas e monótonas, nas
quais mantêm contatos com produtos agrotóxicos e pesos excessivos”.
Além disso, a jornada de trabalho é extenuante, não gozam de intervalos ade-
quados para descanso e alimentação, muito menos de férias, e têm contato per-
manente com materiais cortantes, tomando como exemplo foice, enxada, facões,
marretas, máquinas obsoletas etc.
Essas condições precárias de labor resultam no fato de que pequenos trabalha-
dores são vítimas constantes de acidentes de trabalho, tais como: queimaduras,
fadiga, cortes, amputação de membros, intoxicação, quando não perdem a vida.
Ainda sobre os efeitos de tais condições aviltantes de trabalho, cumpre transcre-
ver as seguintes palavras de Arruda (2019, p. 13):
Muitos, além de perderem a infância, estão perdendo a vida. Nos últimos 11
anos (de 2007 a 2018), ocorreram 261 mortes, conforme dados do Sistema de
Informação de Agravos de Notificação SINAN/SVS, do Ministério da Saúde.
Sem considerar a subnotificação e/ou casos de ausência de estabelecimento de
conexão com o trabalho de crianças e adolescentes que efetivamente estavam
trabalhando quando se acidentaram, outras 662 crianças perderam pelo menos
uma das mãos no mesmo período no trabalho.
Tendo em vista que o tipo de trabalho oferecido a eles, em regra, é repetitivo
e braçal, outra consequência observada é o abandono dos estudos, já que, ante o
dispêndio excessivo de força física, na maioria das vezes, não conseguem conciliar
a atividade laboral com a educacional. As crianças e adolescentes que continuam
frequentando a escola apresentam falta de interesse na sala de aula e dificuldades
em aprender, tendo como consequência um péssimo desempenho escolar.
Cavalcante (2011, p. 42) observa, com propriedade, que:
A maioria dos educadores alerta para o fato de o trabalho infantil prejudicar o
aproveitamento escolar da criança, porque se ausentam das aulas ou compare-
cem muito cansados física ou psicologicamente. As crianças tornam-se jovens
adultos muito precocemente, sem desenvolver aspectos essenciais para a vida
futura, atingindo diretamente a sua capacidade de criar.
A situação é ainda mais agravada quando nos deparamos com crianças e ado-
lescentes envolvidos no narcotráfico e na prostituição, ambos tipificados pela OIT,
como piores formas de trabalho infantil.
A distribuição e consumo de entorpecentes demanda a participação de milhões
de indivíduos, dentre os quais é grande o número de pessoas que ainda não atin-
giram a maioridade. A presença de crianças e adolescentes no setor ilícito é pres-
tigiada pelos traficantes, os quais se valem de sua inimputabilidade penal para
aquecer ainda mais o comércio ilícito de entorpecentes.
No que tange à prostituição infantil no Brasil, observa-se que o art. 227, § 4º, da
Constituição Federal, veda o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e
do adolescente. Entretanto, são exatamente eles as maiores vítimas dos piores tipos

757
de exploração e violência sexual. Nesse ponto são relevantes as considerações feitas
pelos autores Liberati e Dias (2006, p. 83):
Ao ingressarem na prostituição crianças e adolescentes estão sujeitos às mais
variadas formas de violência física e moral, ficando vulneráveis para contrair
várias doenças (principalmente a AIDS), a praticar abortos e inúmeras vezes,
acabam deparando-se com a morte.
De acordo com Cipola (2001, p. 67), as principais formas de prostituição infan-
til no País se concentram “na área do turismo sexual, nos garimpos, no chamado
turismo fluvial das regiões Norte e Centro-Oeste, nos prostíbulos, ruas e avenidas e
no abuso sexual dentro da própria família”.
Desta feita, é indubitável que qualquer forma de trabalho que afaste crianças e ado-
lescentes da escola, do lazer ou da convivência familiar deve ser banido. O trabalho
desempenhado de forma precoce traz consequências nocivas a eles, tais como prejuízos
à integridade física, psicológica, social, educacional e moral, motivo pelo qual é vedado.

5 ∙ CICLO DA POBREZA: UMA ANÁLISE DO TRABALHO ESCRAVO


CONTEMPORÂNEO NO CONTEXTO DO TRABALHO INFANTIL
A ausência de acesso à educação básica e outros fatores fazem com que o trabalha-
dor infantil reproduza o mesmo perfil de outras gerações de sua família, que também
tiveram sua força de trabalho explorada na infância. Neste tópico, além de examinar-
mos de forma breve o trabalho forçado, objetiva-se explorar o ciclo da pobreza, que se
inicia com o trabalho precoce e continua nas fases posteriores da vida.
A Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho
(1998), deixa certo que tanto a eliminação de todas as formas de trabalho forçado
ou obrigatório quanto a abolição efetiva do trabalho infantil constituem princípios
e direitos fundamentais a serem respeitados, promovidos e realizados por todos os
membros da OIT, ainda que não tenham ratificado as convenções em causa, dada a
relevância de ambos os temas.
O Brasil ratificou duas importantes convenções da OIT sobre o trabalho for-
çado, quais sejam a de n. 29 e a de n. 105. A Convenção n. 29 sobre o Trabalho
Forçado ou Obrigatório o define como sendo “todo trabalho ou serviço exigido de
um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu
de espontânea vontade”. Por sua vez, a Convenção n. 105, que trata da Abolição do
Trabalho Forçado ou Obrigatório, estabelece que todo país-membro da OIT se com-
promete a abolir toda forma de tal trabalho e este não poderá jamais ser utilizado ou
justificado para os seguintes fins:
a) como medida de coerção ou de educação política ou como punição por ter
ou expressar opiniões políticas ou pontos de vista ideologicamente opostos ao
sistema político, social e econômico vigente;
b) como método de mobilização e de utilização da mão de obra para fins de
desenvolvimento econômico;
c) como meio de disciplinar a mão de obra;
d) como punição por participação em greves;
e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa.

758
Importante conclusão sobre as convenções citadas acima é a extraída do livro
Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil, elaborado
pela OIT (2011, p. 26):
De acordo com essas convenções, o trabalho forçado não pode simplesmente ser
equiparado a baixos salários ou más condições de trabalho, mas inclui também
uma situação de cerceamento da liberdade dos trabalhadores. Portanto, toda a
forma de trabalho forçado é trabalho degradante, mas a recíproca não é verda-
deira. O que diferencia um conceito do outro é a questão da restrição da liberdade.
No âmbito interno, a escravidão contemporânea também é reprimida, tanto
é que o Código Penal, em seu art. 149, criminaliza tal conduta. O tipo penal em
apreço caracteriza o trabalho escravo contemporâneo no País e elenca as diferentes
formas pelas quais uma pessoa pode ser reduzida a essa condição:
Redução a condição análoga à de escravo
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a
trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degra-
dantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em
razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o
fim de retê-lo no local de trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documen-
tos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente;
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Segundo a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência, para a tipifica-
ção penal do aludido delito não se exige a combinação de todos os fatores legais,
bastando a presença de um deles para que o crime seja configurado. Embora não
seja pacífico, prevalece o entendimento jurisprudencial2 de que na ordem interna a

2 RECURSO ESPECIAL. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. CONDENAÇÃO


EM 1º GRAU. AFASTAMENTO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM PORQUE NÃO CONFIGURADA
RESTRIÇÃO À LIBERDADE DOS TRABALHADORES OU RETENÇÃO POR VIGILÂNCIA OU
MEDIANTE APOSSAMENTO DE DOCUMENTOS PESSOAIS. CRIME DE AÇÃO MÚLTIPLA
E CONTEÚDO VARIADO. SUBMISSÃO A CONDIÇÕES DE TRABALHO DEGRADANTES.
DELITO CONFIGURADO. CONDENAÇÃO RESTABELECIDA. RECURSO PROVIDO. 1. Nos
termos da jurisprudência desta Corte, o delito de submissão à condição análoga à de escravo se
configura independentemente de restrição à liberdade dos trabalhadores ou retenção no local
de trabalho por vigilância ou apossamento de seus documentos, como crime de ação múltipla e
conteúdo variado, bastando, a teor do art. 149 do CP, a demonstração de submissão a trabalhos
forçados, a jornadas exaustivas ou a condições degradantes. Precedentes. 2. Devidamente
fundamentada a condenação pela prática do referido delito em razão das condições degradantes de
trabalho e de habitação a que as vítimas eram submetidas, consubstanciadas no não fornecimento
de água potável, no não oferecimento, aos trabalhadores, de serviços de privada por meio de fossas
adequadas ou outro processo similar, de habitação adequada, sendo-lhes fornecido alojamento em
barracos cobertos de palha e lona, sustentados por frágeis caibros de madeira branca, no meio
da mata, sem qualquer proteção lateral, com exposição a riscos, não há falar em absolvição. 3.

759
privação da liberdade não é imprescindível para a configuração do delito, diferente-
mente do previsto nas convenções n. 29 e n. 105 da OIT.
O bem jurídico tutelado no tipo penal em apreço é a liberdade individual assegu-
rada pela nossa Constituição Federal. A esse respeito, Bittencourt (2008, p. 387) ensina
que, uma vez praticado o crime, o princípio da dignidade humana também é violado:
Na verdade, protege-se aqui a liberdade sob o aspecto ético-social, a própria
dignidade do indivíduo, também igualmente elevada ao nível de dogma consti-
tucional. Reduzir alguém a condição análoga a de escravo fere, acima de tudo, o
princípio da dignidade humana despojando-o de todos os seus valores ético-so-
cias, transformando-o em res, no sentido concebido pelos romanos.
Desta feita, ao reduzir um trabalhador à condição análoga a de escravo, além de
os princípios fundamentais de liberdade, dignidade e igualdade serem vilipendia-
dos, a própria condição de ser humano é desprezada por quem o escraviza. Na área
rural, o tratamento dispensado aos animais, na maioria das vezes, é melhor do que
o dos escravizados.
Além de serem tratadas como mercadorias, as vítimas desse crime sofrem
constantes agressões, tomando como exemplo as violências verbais e físicas; se sub-
metem a condições desumanas de habitação, alimentação e a jornadas extenuantes
de trabalho; não possuem condições sanitárias básicas; são privadas do seu direito
fundamental de liberdade e a remuneração é insuficiente para garantir o mínimo
existencial próprio e de seus familiares. Para melhores esclarecimentos sobre este
aspecto, cumpre transcrever os ensinamentos de Costa (2010, p. 112):
Os trabalhadores cooptados para o trabalho escravo sofrem sobremaneira com
a ausência de renda suficiente para suprir necessidades individuais e familiares.
A falta de acesso à educação é outra importante privação, pois ceifa suas opor-
tunidades de trabalho gerando a baixa escolaridade e a falta de especialização. A
pobreza ligada à renda e também ao acesso a recursos públicos contribui para a
vulnerabilidade de milhares de brasileiros, que para garantir minimamente sua
sobrevivência, deixam-se enganar por promessas fraudulentas e aceitam qual-
quer condição de trabalho.
Ademais, não há dúvida de que a principal causa da escravidão contemporânea
é a mesma do trabalho infantil, qual seja a condição de miserabilidade de boa parte
das famílias brasileiras.
De acordo com a pesquisa realizada pela OIT sobre o Perfil dos Principais Atores
Envolvidos no Trabalho Escravo Rural no Brasil (2011, p. 81), a maioria das vítimas
de trabalho forçado na infância também tiveram sua força de trabalho explorada:
A escravidão contemporânea no país é precedida pelo trabalho infantil.
Praticamente todos os entrevistados na pesquisa de campo (92,6%) iniciaram
sua vida profissional antes dos 16 anos. A idade média em que começaram a
trabalhar é de 11,4 anos, sendo que aproximadamente 40% iniciaram antes desta
idade. Na maioria dos casos (69,4%), tratava-se de trabalho infantil realizado no

Recurso especial provido para restabelecer a sentença condenatória, determinando que o Tribunal
de origem prossiga no exame do recurso de apelação defensivo.
(STJ – RE: 1.843.150 - PA (2019/0306530-1), Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgamento: 26.5.2020, T6 –
Sexta Turma).

760
âmbito familiar. No entanto, os demais já trabalhavam para um empregador,
juntamente com a família (10%) ou diretamente para um patrão (20,6%). Entre
os que começaram a trabalhar com menos de 11 anos, 83% faziam apenas traba-
lho familiar. Os demais trabalhavam para fora já nesta idade.
Dentro desse contexto, Santos (2010, p. 19) ensina com maestria que o ciclo da
pobreza, que se eterniza de geração em geração, é composto por seis etapas:
1) o sujeito é pobre, porque assim também é seu pai; 2) sendo pobre, a neces-
sidade o impele precocemente ao trabalho; 3) o trabalho precoce prejudica o
rendimento escolar, quando não provoca o abandono do estudo; sem educação,
a pessoa é desqualificada profissionalmente e despreparada intelectualmente; 5)
a sorte do trabalhador despreparado é o desemprego, o subemprego ou, se tanto,
o emprego mal remunerado; 6) com os parcos rendimentos do subemprego, ou se
nenhum do desemprego, o pobre dá a seu filho, como única herança, a pobreza.
Os trabalhadores mirins, em razão de possuírem um péssimo rendimento esco-
lar ou não frequentarem a escola, ao atingirem a idade adulta, não vislumbrarão
outra alternativa a não ser o trabalho indigno. E, na velhice, quando a força de
trabalho já tiver exaurida, sofrerão com a ausência de condições mínimas para uma
sobrevivência digna. É exatamente nesse cenário de penúria que a transformação do
pequeno trabalhador a escravo contemporâneo ocorre de forma natural e o ciclo da
pobreza se retroalimenta.
Outro ponto que também possui conexão com a temática em análise é o de que
os pais dos trabalhadores infantis, vítimas da escravidão contemporânea, valem-se
da força de trabalho deles para aumentar a produção e, consequentemente, a renda.
Neste sentido, Luciana Lotto (2015, p.39) ensina que:
Há entendimento que explica a causa da escravidão infantil, em determinada
circunstância, como consequência do trabalho escravo contemporâneo, prove-
niente da situação de escravidão por dívida imposta a seus pais. Como exemplo,
quando é ofertado ao rurícola trabalho distante, devendo ele levar sua família,
em troca de pagamento por produção, ou seja, quanto maior a sua produção,
melhor o seu salário. Isso induz as crianças trabalharem, junto com seus pais,
no campo. Outra situação, quando o pequeno agricultor coloca seus filhos na
atividade agrícola para assegurarem o sustento e a sobrevivência da família.
Esse quadro se agrava ainda mais quando os resgatados de tal condição retor-
nam à escravidão contemporânea, ante a ausência de oportunidade de trabalhos
com condições melhores e a falha da fiscalização (2011, p. 86):
A presença de reincidentes da escravidão contemporânea no Brasil demonstra
que a fiscalização, apesar de ser essencial, não é suficiente, por si só, para atingir
as causas estruturais do problema. Faltam opções de trabalho decente e alter-
nativas de geração de renda, o que obriga os trabalhadores a se sujeitarem às
mesmas condições precárias de trabalho vividas anteriormente.
Convém observar, ainda, que o Brasil é comprometido com a Agenda 2030 da ONU.
Dentre as metas previstas em tal documento internacional, destaca-se a de n. 8.7:
8.7 Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, aca-
bar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição
e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e
utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em
todas as suas formas.

761
Assim, para que esse ciclo da pobreza seja rompido e o compromisso internacio-
nal assumido pelo país seja efetivado, é preciso um engajamento maior do Estado,
da iniciativa privada e da sociedade brasileira, visando à eliminação de tais formas
de superexploração do trabalho humano. Infere-se, ainda, a necessidade de cons-
cientização das famílias para que possam compreender as desvantagens e perigos
provocados pelo trabalho infantil.

6 ∙ TRABALHO INFANTIL X TRABALHO DECENTE


Propõe-se, no presente tópico, apresentar as principais diferenças entre o tra-
balho infantil e o trabalho decente, bem como discorrer sobre a importância da
concretização em massa desse último no combate ao trabalho infantil.
O trabalho infantil, uma das principais antíteses do trabalho decente, representa
uma grave violação dos direitos humanos e dos direitos e princípios fundamentais
do trabalho. Em situações extremas, crianças e adolescentes são escravizados, sepa-
rados de seus familiares, assim como expostos a sérios riscos e doenças.
O trabalho infantil se refere ao labor que impede o desenvolvimento saudável de
todas as capacidades e habilidades das crianças e adolescentes, além de privá-los da
infância, de frequentar regularmente a escola e de sua dignidade.
Em contrapartida, o trabalho decente, considerado pela OIT como fundamental para
romper o ciclo da pobreza, reduzir as desigualdades sociais, garantir a governabilidade
democrática e o desenvolvimento sustentável, é definido por Filho (2010, p. 52) como:
[...] um conjunto mínimo de direitos do trabalhador que corresponde: à existência
de trabalho; à liberdade de trabalho; à igualdade no trabalho; ao trabalho com
condições justas, incluindo a remuneração, e que preservem sua saúde e segu-
rança, à proibição do trabalho infantil; à liberdade sindical, e à proteção contra os
riscos sociais. Negar o trabalho nessas condições, dessa feita, é negar os Direitos
Humanos do trabalhador e, portanto, atuar em oposição aos princípios básicos
que os regem, principalmente o maior deles, a dignidade da pessoa humana.
A expressão “trabalho decente” resume a missão histórica da OIT de promover
oportunidades para que homens e mulheres obtenham um trabalho produtivo e de qua-
lidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana. Ademais,
reúne os quatro objetivos estratégicos de tal organismo internacional, quais sejam:
1. o respeito aos direitos no trabalho, especialmente aqueles definidos como
fundamentais (liberdade sindical, direito de negociação coletiva, eliminação de
todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação e erradica-
ção de todas as formas de trabalho forçado e trabalho infantil);
2. a promoção do emprego produtivo e de qualidade;
3. a ampliação da proteção social;
4. e o fortalecimento do diálogo social.
Em suma, trata-se de um trabalho de qualidade e remunerado adequadamente,
em que são garantidos direitos, proteção social, voz e representação, ou seja, é capaz
de garantir uma vida digna ao trabalhador.
Diferentemente do trabalho infantil, o trabalho decente vai ao encontro do prin-
cípio da dignidade humana, valor supremo que reconhece o caráter único e insubs-
tituível de cada ser humano, rechaça todo e qualquer ato de cunho degradante

762
e desumano, além de garantir as condições existenciais mínimas para uma vida
saudável. O princípio em apreço é um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil (art. 1º, III, da CF).
Tal princípio, nas palavras de Ingo Sarlet (2019, p. 71), é conceituado como:
A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comuni-
dade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamen-
tais a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano,
como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida
saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável
nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres
que integram a vida em rede.
Também merece destaque o objetivo n. 9, traçado na Agenda 2030 da ONU:
9. Prevemos um mundo em que cada país desfrute de um crescimento econô-
mico sustentado, inclusivo e sustentável e de trabalho decente para todos. Um
mundo em que os padrões de consumo e produção e o uso de todos os recursos
naturais – do ar à terra; dos rios, lagos e aquíferos aos oceanos e mares – são
sustentáveis. Um mundo em que a democracia, a boa governança e o Estado de
Direito, bem como um ambiente propício em níveis nacional e internacional,
são essenciais para o desenvolvimento sustentável, incluindo crescimento eco-
nômico inclusivo e sustentado, desenvolvimento social, proteção ambiental e
erradicação da pobreza e da fome. Um mundo em que o desenvolvimento e a
aplicação da tecnologia são sensíveis ao clima, respeitem a biodiversidade e são
resilientes. Um mundo em que a humanidade viva em harmonia com a natureza
e em que animais selvagens e outras espécies vivas estão protegidos.
Desta feita, levando-se em conta que o trabalho decente é uma condição funda-
mental para a superação da pobreza, bem como para a redução das desigualdades
sociais, tem-se que uma forma de proteger as crianças e os adolescentes vítimas de
superexploração de sua força de trabalho é a garantia de trabalho decente para seus
familiares em idade para o trabalho.

7 ∙ MEDIDAS DE PREVENÇÃO DO TRABALHO INFANTIL


Ao longo do presente estudo ficou claro que crianças e adolescentes de famílias de
baixa renda, embora sejam titulares de diversos direitos com absoluta prioridade, têm
sua força de trabalho explorada desde cedo, o que resulta na negação do direito fun-
damental à infância e a diversos outros prejuízos ao seu desenvolvimento. Entretanto,
é de suma relevância destacar que alguns passos em direção a erradicação do trabalho
infantil já foram dados no Brasil, o que se propõe apresentar no presente tópico.
A OIT enumera alguns fatores que expressam os avanços do país na prevenção
e erradicação do trabalho precoce, quais sejam:
• Os importantes avanços no sentido da universalização da educação básica;
• A ação decidida da fiscalização do trabalho;
• A existência de políticas públicas de transferência de renda condicionada (como
o Bolsa Família e o PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil);
• A incorporação do tema de forma sistemática pelo sistema estatístico nacio-
nal desde 1992, gerando informações confiáveis e detalhadas que permitem o

763
conhecimento e análise do problema, considerando suas dimensões setoriais,
territoriais, de gênero, raça, etnia, entre outras, e que contribui decisivamente
para a visibilidade do tema na sociedade e para a melhoria das estratégias de
prevenção e erradicação;
• A criação de instâncias de diálogo social (compostas por representantes de
governo, organizações de empregadores, trabalhadores e da sociedade civil,
além do Ministério Público do Trabalho), como a Comissão Nacional de
Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (CONAETI);
• O ativo envolvimento do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho;
• Uma intensa participação da sociedade civil, expressa principalmente atra-
vés do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil
(FNPETI) e suas representações estaduais;
Ainda sobre esse aspecto, em 2017, o Escritório da OIT no Brasil e o Ministério
do Desenvolvimento Social concluíram a elaboração de “Diagnósticos Intersetoriais
Municipais de Trabalho Infantil”, com informações e análises de cada município do
País. O objetivo desta sistematização consiste em:
[...] apoiar o planejamento das estratégias de redução do trabalho infantil, inte-
grando as áreas de assistência social, trabalho, educação, saúde, direitos huma-
nos, cultura, esporte e lazer. Ao oferecer um retrato individualizado dos dados
locais sobre serviços, equipamentos, projetos, programas e principais incidências
de trabalho infantil do município, os diagnósticos subsidiam o planejamento e a
execução do redesenho do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI).
Outra medida a ser destacada diz respeito à criação dos Juizados Especiais da
Infância e Adolescência do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região – Campinas-SP,
por meio da Resolução Administrativa n. 14/2014, de 31 de outubro de 2014.
Entre os fundamentos da criação de tais juizados, salienta-se o de que: “a erradi-
cação do trabalho infantil deve estar aliada à educação de qualidade e à adequada pro-
fissionalização do adolescente, como instrumento de alcance de trabalho e vida digno”.
Desta feita, infere-se que um dos pilares dessa iniciativa do TRT da 15ª Região é a
proteção do trabalho do adolescente.
O art. 2º da Resolução em apreço prevê a competência dos juizados,3 que, além da
atuação jurisdicional, possuem importantes ações no âmbito extrajudicial, como,
por exemplo, a realização de audiências públicas para tratar do cumprimento de cotas
de aprendizagem. A este respeito, cumpre transcrever o seguinte trecho extraído da
obra Brasil sem Trabalho Infantil:
Essas audiências são ações articuladas e interinstitucionais e envolvem, além
dos JEIAs, o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Secretaria de Inspeção
do Trabalho. As empresas descumpridoras das cotas legais de aprendizagem
(relação é disponibilizada pela Secretaria da Inspeção do Trabalho) são convo-
cadas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) a comparecer na audiência,
em que são explicadas todas as obrigações contidas na Lei de Aprendizagem e a

3 “Art. 2º Os Juizados Especiais da Infância e Adolescência poderão atuar tanto de forma fixa,
quanto itinerante, e terão competência material para analisar, conciliar e julgar todos os processos
que envolvam trabalhador com idade inferior a 18 (dezoito) anos, nela incluídos os pedidos
de autorização para trabalho de crianças e adolescentes, as ações civis públicas e coletivas e as
autorizações para fiscalização de trabalho infantil doméstico.”

764
importância do cumprimento das cotas para a erradicação do trabalho precoce.
As entidades de aprendizagem também são convidadas para participarem dessas
audiências públicas. Após as audiências públicas as empresas tendem a contratar
aprendizes e regularizar a situação de suas cotas legais.
Assim, a inserção do adolescente no mercado de trabalho ocorre de forma ade-
quada, protegida e com a sua permanência no sistema educacional, visto que um
dos requisitos do contrato de aprendizagem é a frequência escolar. Ademais, tal
relação laboral objetiva o desempenho de um trabalho compatível com o desenvol-
vimento físico, moral e psíquico do adolescente.
Por fim, salienta-se que a erradicação do trabalho infantil representa uma meta
mundial e, para que seja alcançada, exige-se dos Estados a adoção de medidas
urgentes e eficazes. Para tanto, destaca-se a importância da implantação de políticas
públicas; uma fiscalização eficiente; uma atuação mais protetiva por parte do Poder
Judiciário, ao se deparar com lides envolvendo menores de idade; uma atuação con-
junta do Poder Público com a sociedade civil organizada, trabalhadores, que devem
denunciar o trabalho infantil, e empregadores, que além de abster de se beneficiar
deste trabalho, não devem, como forma de represália, contratar com outras empre-
sas que exploram crianças e adolescentes; a adoção de penalidades mais severas aos
infratores da lei; entre outras.

8 ∙ CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde meados da década de 1990, o Brasil reconheceu oficialmente a existência
de exploração de mão de obra infantil no País e, a partir de então, tem empreendido
esforços para prevenir e eliminar tal mazela social.
Apesar de ser notável o avanço no tratamento dessa questão, dados estatísticos
demonstram que o número de crianças ocupadas no país ainda é alarmante, já que repre-
senta quase 25% do total de crianças ocupadas na América Latina, de acordo com a OIT.
O arcabouço normativo rechaçando o trabalho infantil é louvável, porém, é
insuficiente para reverter esse quadro, de tal sorte que não basta apenas reprimir
comportamentos, é preciso um engajamento maior por parte do Estado para que os
direitos assegurados às crianças e aos adolescentes com absoluta prioridade sejam
transformados em realidade objetiva e concreta e, consequentemente, o desenvolvi-
mento infantil ocorra de forma natural, equilibrada e contínua.
Ademais, é imperioso que o País cumpra as metas assumidas internacional-
mente voltadas à erradicação do trabalho infantil, tomando como exemplo a de n.
8.7 prevista na Agenda 2030 da ONU.
É preciso, ainda, que o trabalho dos adolescentes, nas hipóteses autorizadas em
lei, seja protegido, o que demanda uma fiscalização eficiente nos contratos de apren-
dizagem, estágio e trabalho educativo, a fim de se evitar o desvirtuamento dos fins
pedagógicos dessas atividades.
A oportunidade de trabalho decente aos que podem laborar também deve ser asse-
gurada, para que as famílias de baixa renda não dependam do trabalho infantil para
sobreviver ou complementar a renda familiar, pois o trabalho só é considerado dever a
partir do momento que o indivíduo atinge seu pleno desenvolvimento físico e psíquico.

765
Além de tudo isso, infere-se a necessidade de conscientização das famílias, a
fim de que compreendam que vale mais a pena seus filhos, crianças e adolescentes,
estarem na escola do que trabalhando, com a superação da mentalidade de que o
trabalho executado desde cedo combate a ociosidade e evita a criminalização.
Tendo em vista o importante papel da sociedade em denunciar tais práticas, essa
também deve ser conscientizada sobre os malefícios da violação do direito funda-
mental ao não trabalho de crianças e adolescentes.
Por fim, as desvantagens e os perigos da inserção precoce no mercado de traba-
lho não deixam dúvidas de que tais medidas devem ser tomadas de forma urgente.
Enquanto isso não for feito, crianças e adolescentes continuarão a ser explorados
não só na infância, mas também na fase adulta e na velhice. Para que esse ciclo que
reproduz a pobreza, arraigado em nosso País, seja interrompido, reitera-se a impor-
tância da efetivação do direito fundamental à educação, que, embora seja assegu-
rado a todos e constitua um dever do Estado e da família, não alcança crianças e
adolescentes que se encontram na linha da pobreza.

REFERÊNCIAS
ARRUDA, Kátia Magalhães; FARIAS, Magno Araújo, coordenadores. Brasil sem
trabalho infantil. São Paulo: LTr, 2019.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 2: parte especial: dos crimes
contra a pessoa. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
CAVALCANTE, Sandra Regina. Trabalho infantil artístico: do deslumbramento à
ilegalidade. São Paulo: LTr, 2011.
CIPOLA, Ari. O trabalho infantil. São Paulo: Publifolha, 2001.
CORRÊA, Cláudia Peçanha; GOMES, Raquel Salinas. Trabalho infantil: as diversas faces
de uma realidade. Rio de Janeiro: Viana e Mosley, 2003.
COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. Combatendo o trabalho escravo contemporâneo: o
exemplo do Brasil. International Labour Office; ILO Office in Brazil. Brasília: ILO, 2010.
DIMENSTEIN, Gilberto. O cidadão de papel: a infância, a adolescência e os direitos
humanos no Brasil. 21. ed. São Paulo: Ática, 2005.
JUNIOR, Edson Beas Rodrigues (org.). Convenções da OIT e outros instrumentos de
direito internacional público e privado relevantes ao direito do trabalho. 2. ed. São Paulo:
LTr, 2015.
LIBERATI, Wilson Donizeti; DIAS, Fábio Muller Dutra. Trabalho infantil. São Paulo:
Malheiros Editores, 2006.
LOTTO. Luciana Aparecida. Ação civil pública trabalhista contra o trabalho escravo no
Brasil. 2. ed. São Paulo: LTr, 2015.
NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Agenda 2030. Disponível em: https://nacoesunidas.org/
pos2015/agenda2030. Acesso: 26 maio 2020.
OLIVA, José Roberto Dantas Oliva. O princípio da proteção integral e o trabalho da
criança e do adolescente no Brasil. São Paulo: LTr, 2006.

766
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Combatendo o trabalho infan-
til: guia para educadores/IPEC. Brasília: OIT, 2001.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Perfil dos principais atores envol-
vidos no trabalho escravo rural no Brasil /Organização Internacional do Trabalho. Brasília:
OIT, 2011.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. O trabalho infantil no Brasil.
Escritório no Brasil. Disponível em: www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-infantil/WC
MS_565212/lang--pt/index.htm. Acesso em: 14 maio 2020.
PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Direito da criança e do adolescente e tutela jurisdicional
diferenciada. São Paulo: Ed. RT, 2002.
SANTOS, Caio Franco. Contrato de emprego do adolescente aprendiz: a aprendizagem de
acordo com a Lei n. 10.097/2000. Curitiba: Juruá, 2010.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na
Constituição Federal de 1988. 10. ed. rev. atual. e ampl. 3. tir. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2019.
TORRES, Maria Adriana. Trabalho Infantil: trabalho e direitos. Maceió: EDUFAL, 2011.

767
A QUEBRA DE SIGILO DE DADOS
BASEADA EM COORDENADAS GEOGRÁFICAS
E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Tiago Dias Maia1
Galtiênio da Cruz Paulino2

Sumário: 1 Introdução. 2 Visão holística dos direitos fundamentais. 3 Colisão de direitos


fundamentais e interpretação. 4 Compatibilidade com as normas internacionais de
proteção aos direitos humanos. 5 Compatibilidade constitucional e infraconstitucional.
6 Demonstração prévia de indícios de autoria dos alvos. 7 Princípio da presunção de
inocência e inversão do ônus da prova. 8 Utilidade da medida para a investigação
criminal e fishing expedition. 9 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
Com o avanço tecnológico, muito se tem debatido sobre a proporcionalidade
de medidas de investigação inovadoras em que se utilizam dados pessoais armaze-
nados por provedores de serviços de internet com a finalidade de elucidar crimes.
Provedores de serviço de internet coletam dados o tempo todo dos usuários de
seus serviços, inclusive dados de localização. Isso é possível porque os modernos
aparelhos utilizados por boa parte das pessoas, como smartphones, relógios inte-
ligentes (smartwatches) e tablets, são capazes de fornecer sua precisa localização
através de tecnologias como GPS, redes wi-fi e redes de dados móveis.
O Google, atualmente, é o principal usuário deste tipo de ferramenta. A empresa
usa informações de localização coletadas de seus usuários com diversas finalidades,
como fornecer aos seus usuários recomendações personalizadas baseadas em luga-
res já visitados, anúncios direcionados, informações sobre o trânsito ou, até mesmo,
informar em quais horários um restaurante está mais cheio.
Recentemente, a ferramenta tecnológica chamada em inglês de geofencing está
sendo utilizada cada vez mais e de maneira mais difundida. Geofence pode ser con-
ceituada como um perímetro virtualmente definido ao redor de um certo ponto no

1 Promotor de Justiça (MPDFT). Membro-Auxiliar do Procurador-Geral da República na Assessoria


Criminal do Superior Tribunal de Justiça. Ex-Defensor Público. Pós-graduado em Direito Constitu­
cional e em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus.
2 Procurador da República. Ex-Membro Auxiliar do Procurador-Geral da República na Secretaria da
Função Penal Originária no Supremo Tribunal Federal (2018/2019). Membro Auxiliar do Procurador-
-Geral da República na Assessoria Criminal no Superior Tribunal de Justiça. Doutorando em Direito
pela Universidade do Porto (Portugal). Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Pós-
-graduado em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público da União. Pós-graduado em
Ciências Criminais pela UNIDERP. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.

769
globo terrestre, uma espécie de “cerca virtual”. É graças a esse tipo de ferramenta
que o usuário de um dispositivo móvel equipado com sinal de GPS, ao passar pró-
ximo a uma lanchonete, pode receber uma notificação em seu aparelho com algum
voucher para ser usufruído naquele estabelecimento que contratou este tipo de ser-
viço de empresas de tecnologia.
A tecnologia, que ganhou importância em termos comerciais, mostra-se valorosa
em situações nas quais a investigação de crimes graves não avança por falta de elemen-
tos que indiquem algum suspeito. Crimes graves como homicídio e estupro, por vezes,
são cometidos sem que se possa encontrar elementos de prova que levem a algum sus-
peito, como testemunhas, filmagens, resquícios de DNA ou impressões digitais, por
exemplo; sendo necessária, portanto, a adoção de técnicas especiais de investigação.
Nesses contextos, considerando que atualmente existem dois dispositivos digi-
tais por habitante no Brasil, sendo 234 milhões só de smartphones,3 as autoridades
começaram a solicitar de empresas como o Google informações de todos os usuários
de seus serviços que estiveram no perímetro que circunda pontos relevantes para a
investigação, como o local em que tenha sido encontrado o corpo de uma vítima de
homicídio ou o local onde tenham sido achados pertences de uma vítima de roubo.
Em um mandado de quebra de sigilo de dados telemáticos de geolocalização,
conhecido nos Estados Unidos como geofence warrant, questiona-se ao Google se
consta de sua base de dados o registro de algum usuário naqueles locais específicos
em uma determinada janela de tempo, geralmente o momento do crime, o que pode
levar a uma pista sobre o autor do delito e abrir alguma linha de investigação.
A principal polêmica em relação a este tipo de meio de investigação decorre de
serem requisitadas informações de todos os usuários que estiveram no local usando
um dispositivo móvel associado a serviços do Google, independentemente de qual-
quer outra vinculação com o fato criminoso.
Nesse caso, o Estado obteria informações atinentes à privacidade dos indiví-
duos, que muito provavelmente não cederam seus dados ao Google com a finali-
dade de serem vigiados, muito menos para produzir elementos em seu desfavor
em um processo criminal.
Argumenta-se, ainda, que pessoas poderiam ser acusadas em um crime sim-
plesmente por ter passado pelo lugar errado, na hora errada. Muitos teriam que
contratar advogados para explicar às autoridades que, embora estivessem próximos
ao local do crime investigado, nada têm a ver com o fato, gerando uma espécie de
inversão do ônus da prova.
Além disso, o crime pode ter ocorrido em uma região populosa, de modo que
a quebra de sigilo pode atingir dezenas ou até centenas de pessoas que, a princípio,
nada fizeram de errado que justificasse a violação de sua privacidade.
Também causa preocupação a possibilidade de utilização desvirtuada da
medida por Estados totalitários com intenção de vigiar e controlar sua população e,
especialmente, perseguir opositores políticos.

3 De acordo com pesquisa realizada por Fernando de Souza Meirelles, “são 424 milhões de dispositivos
digitais em uso no Brasil em junho de 2020, sendo 190 milhões de computadores e 234 milhões de
smartphones. A densidade (per capita) de dispositivos digitais era de 50% em 2010, e atinge 200% em
2020, ou melhor, dois dispositivos digitais por habitante” (MEIRELLES, 2020, p. 64).

770
Há, portanto, evidente colisão entre o direito fundamental da coletividade à
segurança pública e o direito fundamental dos indivíduos de não terem violado seu
direito à privacidade, mormente sem que haja qualquer indício de autoria contra si.
A colisão de direitos fundamentais demanda uma análise cuidadosa não só dos
problemas atuais de relativização mas daqueles que também podem surgir com o
uso indiscriminado de medidas invasivas de investigação.
Faz-se necessário, portanto, analisar de forma holística os direitos fundamentais
envolvidos, bem como a compatibilidade entre a medida e o ordenamento jurídico
brasileiro, para então concluir se a quebra de sigilo de dados telemáticos de localiza-
ção sem indícios de autoria criminal é medida investigativa legítima.

2 ∙ VISÃO HOLÍSTICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


A Constituição Federal forma um sistema aberto, composto por princípios
e regras, os quais devem ser compreendidos holisticamente e em perfeita har-
monia. Os preceitos fundamentais, dotados de maior valoração axiológica,
possuem maior relevância constitucional e servem de paradigma interpretativo
aos demais preceitos, devendo, por conseguinte, incidir de maneira plena, sem-
pre compatibilizando possíveis antinomias. Esses princípios estão presentes na
Constituição de 1988 na parte denominada “Dos Princípios Fundamentais”, os
quais, repita-se, devem sempre ser analisados em conjunto e em harmonia com
o princípio da unidade constitucional.
Nos Estados democráticos, os direitos fundamentais devem se fazer presentes
no topo da hierarquia normativa, ou seja, na Constituição. Eles vinculam todos os
poderes, regulam as situações (conteúdo) mais relevantes na sociedade e se encon-
tram na “medida máxima de necessidade de interpretação” (ALEXY, 2015, p. 48).
Para um direito ser considerado fundamental, deve englobar interesses que
necessitam ser protegidos e promovidos pelo Direito. Além disso, é necessário que
“o interesse ou carência seja tão fundamental que a necessidade de seu respeito, sua
proteção ou seu fomento deixe fundamentar-se pelo Direito” (ALEXY, 2015, p. 50).
A fundamentalidade de um direito está presente, portanto, quando ele se apre-
senta como prioridade no sistema jurídico e, ocorrendo violação ou não, seja pro-
movido, sob pena de se atingir o núcleo existencial do próprio sistema.
Ocorre que a interpretação dos preceitos fundamentais, necessária para uma
verdadeira supremacia da Constituição, depende da efetividade desse diploma nor-
mativo, advinda da sua eficácia social, voltada para o resguardo dos anseios indi-
viduais e coletivos de uma sociedade, mediante uma relação de equilíbrio entre os
direitos e garantias fundamentais de ambos, indivíduo e sociedade.
Nesse cenário, o direito, para ser considerado fundamental, deve receber uma
especial proteção formal e material. Do ponto de vista formal, o direito fundamen-
tal possui sede constitucional, que resulta em barreiras procedimentais mais rígidas
para supressão e alteração, em alguns casos absolutas (como as cláusulas pétreas),
além de possuírem aplicabilidade imediata. Em termos materiais, tais direitos
fazem parte da denominada Constituição Material e estão na base de formação do
Estado. Podem ser encontrados em outros diplomas normativos, fora, portanto, da
literalidade da Constituição, ou podem mesmo não ser expressos.

771
Outrossim, os direitos fundamentais variam de acordo com o contexto constitu-
cional. Porém, alguns deles são considerados universalmente fundamentais, como
a vida, a liberdade, a dignidade da pessoa humana. O conteúdo desses direitos varia
conforme a realidade social em que se encontram, a qual condicionará seu conteúdo.
Esses direitos possuem dupla face, visto que podem ser considerados como
direitos subjetivos individuais ou como elemento objetivo fundamental de uma
sociedade (SARLET, 2007, p. 166). Além de servirem como mecanismos dos indiví-
duos ante o Poder Público, os direitos fundamentais são, também, valores constitu-
cionais de caráter objetivo, com eficácia sobre todo o ordenamento jurídico; servem
como norte para o atuar de todos os poderes constituídos.
Todos os direitos fundamentais transpassam a esfera do indivíduo. Na perspec-
tiva objetiva, podem-se restringir direitos individuais, ainda que fundamentais,
quando o interesse da sociedade prevalecer e desde que respeitado o núcleo essen-
cial. A face objetiva dos direitos fundamentais apresenta-se como um dever imposto
ao Estado de concretizá-los e implementá-los. Há a denominada influência objetiva
e valorativa dos direitos fundamentais. A dimensão objetiva é autônoma e serve de
norte à interpretação e à aplicação do Direito infraconstitucional.
Os direitos fundamentais também se apresentam como dever de proteção do
Estado, que deve agir de maneira preventiva na proteção dos particulares diante dele
próprio (o Estado) e dos demais particulares. A valorização dos direitos fundamentais
na perspectiva objetiva resultou na conscientização da insuficiência de uma concep-
ção dos direitos fundamentais como direitos subjetivos de defesa para a garantia de
uma liberdade efetiva para todos, e não apenas daqueles que garantiram sua indepen-
dência social e o domínio de seu espaço de vida pessoal (SARLET, 2007, p. 177).
Sob o aspecto subjetivo, o indivíduo pode buscar, em juízo, a proteção e obser-
vância dos direitos fundamentais, tutelados em face dos Estados e dos demais
integrantes da sociedade.
Nesse cenário, o estudo da eficácia dos preceitos fundamentais presentes na
Constituição deve focar a diferença entre a eficácia jurídica e a social. Esta última
é enquadrada como efetividade da norma (SILVA, 1982, p. 48), ou seja, sua apli-
cabilidade no plano dos fatos. A “efetividade, em suma, significa a realização do
Direito, o desempenho concreto de sua função social” (BARROSO, 2010, p. 221).
Apresenta-se como “a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e
simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o ‘dever-ser’ normativo
e o ‘ser’ da realidade social” (BARROSO, 2010, p. 221).
Por sua vez, o estudo da eficácia jurídica dos direitos fundamentais deve ser
aferido em consonância com as diversas funções que esses direitos podem assumir.
Eles podem ser classificados como direitos de defesa (caso do direito à intimidade)
e como direitos a prestações (caso do direito à segurança). Quanto aos primeiros,
de caráter subjetivo, não há discussão quanto a sua aplicação (eficácia jurídica) ime-
diata. A discussão sobre a aplicabilidade imediata gira em torno dos direitos funda-
mentais prestacionais, os quais, em regra, também devem ser entendidos como de
aplicabilidade imediata. Essa característica, em verdade, deve ser entendida como
inerente a todos os direitos e garantias fundamentais, independentemente da parte
na qual eles se localizem no texto constitucional (SARLET, 2007, p. 275). Os direitos

772
prestacionais são avalizados sob as perspectivas individual e coletiva, que deverão
ser consideradas no momento que forem interpretados.
Essa interpretação se adequa à previsão normativa do art. 5, § 1º, da Constituição,
contribuindo para evitar o esvaziamento do conteúdo dos direitos fundamentais.
Em razão do referido dispositivo, surge uma presunção, mesmo que relativa,
de aplicabilidade imediata das normas de direitos e garantias fundamentais. Essa
presunção só pode ser afastada em caráter excepcional e desde que devidamente
fundamentada (PAULINO, 2019, p. 35). É obrigação do poder público “extrair das
normas que os consagram (os direitos fundamentais) a maior eficácia possível”
(SARLET, 2007, p. 235).
Sob essa perspectiva, os direitos fundamentais se apresentam como um conjunto
de direitos que norteia e garante a existência dos seres humanos como indivíduos
e seres gregários; constituem, portanto, um sistema de proteção a ser respeitado de
forma holística. Possíveis antinomias, porém, devem ser solucionadas, necessitan-
do-se de um atuar interpretativo que supera a simples subsunção do fato à norma.
Na linguagem do Direito, segundo Alexy, há uma abertura necessária que comporta
a “possibilidade de contradições normativas, a falta de normas, sobre as quais a
decisão apoiar-se, e a possibilidade de, em casos especiais, também decidir contra o
texto de uma norma” (2015, p. 36).
É sob esse enfoque de harmonia dos direitos fundamentais que medidas vol-
tadas ao resguardo da sociedade, como a demonstrada neste artigo, devem ser
interpretadas e aplicadas.

3 ∙ COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E INTERPRETAÇÃO


Ordinariamente, os direitos fundamentais individuais entram em colisão com
os bens coletivos. Esse choque é muito presente no contexto da segurança pública,
quando o Estado, objetivando proteger seus cidadãos, ao garantir uma conjuntura
de segurança, acaba atingindo o direito à liberdade de algumas pessoas.
Ocorre que os possíveis conflitos entre direitos fundamentais individuais, nor-
malmente do acusado, e direitos fundamentais coletivos, atinentes à sociedade,
devem ser solucionados por meio da adoção do entendimento de que nenhum
direito fundamental pode ser suprimido por completo em nenhuma hipótese.
Nesse diapasão, surge a necessidade de definir se os direitos fundamentais são
regras ou princípios – como mandamentos de otimização, podendo incidir em
graus diferentes, a depender dos contextos fático e jurídico. Em sendo princípios,
conforme adotado neste artigo, a solução ocorre por meio da ponderação; em sendo
regras, são mandamentos definitivos, ou seja, devem ou não ser observadas, resul-
tando: a) na declaração de um dos direitos como válido e o outro como inválido;
b) na declaração de um dos direitos como não aplicável; ou c) na fixação de uma
exceção em uma das normas.
Como todo princípio é válido, o conflito entre os princípios envolve a “dimensão
do peso”, ou seja, “aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força
relativa de cada um” dos princípios (DWORKIN, 2012, p. 43). A controvérsia no
julgamento sobre a mensuração exata de um princípio e sobre qual deve prevalecer

773
em caso de colisão “é parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz
sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é” (DWORKIN, 2012,
p. 43). A solução do conflito ocorre com a fixação da precedência de um princípio,
condicionada pelas circunstâncias do caso concreto. Em condições diversas, pode
haver resultado diverso (DWORKIN, 2012, p. 43).
De plano, nenhum princípio prevalece sobre outro em tese. A supremacia de
um dos princípios em choque, repita-se, depende das circunstâncias/condições do
caso concreto, sempre se mensurando os direitos em colisão e buscando-se evitar a
completa exclusão de um deles.
Os princípios não possuem obrigações/consequências de cunho definitivo,
mas apenas prima facie. O âmbito de incidência de seu conteúdo, conforme acima
exposto, não se encontra previamente determinado.
Em razão do caráter de preceito constitucional assumido, os direitos fundamen-
tais podem ser restringidos apenas por normas de envergadura constitucional. Essas
restrições, segundo Alexy, podem ser realizadas por “normas de hierarquia cons-
titucional ou normas infraconstitucionais, cuja criação é autorizada por normas
constitucionais” (2011, p. 286). As restrições infraconstitucionais só são admissíveis
quando autorizadas pela própria Constituição. Surgem as denominadas restrições
indiretamente constitucionais.
Nesse ponto, aflora a necessidade de um juízo de ponderação por meio do prin-
cípio proporcionalidade que, segundo Carlos Pulido (2014), cumpre a função de
estruturar o procedimento interpretativo para a determinação do conteúdo dos
direitos fundamentais. Tal princípio se faz necessário em razão de os direitos fun-
damentais serem normativamente indeterminados.
“Nenhuma disposição jusfundamental, por mais específica que pareça, permite
que se conheça de plano todas e cada uma das normas que estatui direta ou indi-
retamente” (PULIDO, 2014). A atuação do princípio da proporcionalidade se dará
justamente quando se for concretizar um direito fundamental.
Por sua vez, a ponderação se desenvolve em três etapas sequenciais: a) devem-se
comprovar os reflexos do não cumprimento de um dos princípios em conflito, de
acordo com o grau de descumprimento; b) deve-se aferir a importância de se cum-
prir o princípio contrário; c) deve-se comprovar se o cumprimento do princípio
contrário justifica que o outro seja prejudicado (ALEXY, 2011, p. 111).
Haverá atuação desproporcional se, diante de princípios em contraposição, não
se estabelecer uma relação de balanceamento entre os princípios envolvidos, prati-
camente suprimindo-se o papel do princípio relegado.
Na aplicação do princípio da proporcionalidade aos direitos fundamentais,
deve-se considerar a faceta da proibição da proteção deficiente (PULIDO, 2014).
Ao intérprete, caberá aferir se uma atuação estatal, por ação ou omissão, torna
vulnerável um direito fundamental. Por meio da proibição de proteção deficiente,
permite-se a fixação de um padrão mínimo de proteção aos direitos fundamentais
que deve ser observado e promovido pelo Poder Público.
Desse modo, todos os direitos fundamentais devem ser protegidos pelo Poder
Público, tanto no momento da elaboração legislativa quanto no da aplicação.

774
Sempre se deve assegurar o núcleo essencial de todos os direitos fundamen-
tais, que gera um limite às possíveis restrições a que eles podem ser submetidos.
Um direito fundamental, em suma, só pode ser restringido se, no momento da
restrição, em razão da incidência de outro direito fundamental, for observado
seu conteúdo mínimo.
Nessa senda, os sistemas jurídicos de proteção devem se pautar, sempre, pela
proteção dos indivíduos e da sociedade, pois os seres humanos são sociáveis por
natureza. A concepção que se deve ter de direitos humanos, centrada na dignidade
da pessoa humana, só será concebida sob uma perspectiva plena se enfocada sob
um contexto social, pois a natureza existencial de todos os direitos passa por uma
perspectiva comunitária (DA SILVA, 2015, p. 136).
Desse modo, as interpretações jurídicas de proteção devem se sustentar em uma
perspectiva individual e social.
Nesse cenário, ao se aferir o cabimento de uma medida investigativa, voltada
à eficácia da persecução penal, deve-se sempre ter em mente que o cabimento da
medida deverá aferido por meio de uma interpretação que gere uma relação de
equilíbrio entre todos os direitos fundamentais envolvidos, inclusive os que dizem
respeito à sociedade e à vítima.

4 ∙ COMPATIBILIDADE COM AS NORMAS INTERNACIONAIS


DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS
Embora não trate diretamente sobre o tema, a Convenção Americana de Direitos
Humanos protege os indivíduos de ingerência arbitrária ou abusiva em sua vida
privada, conforme se vê:
Artigo 11. Proteção da honra e da dignidade
1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de
sua dignidade.
2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida
privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de
ofensas ilegais à sua honra ou reputação.
3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofen-
sas. (OEA, 1969, grifo nosso).
O dispositivo é pertinente, considerando que a quebra de sigilo de dados de
localização é, sem dúvida, uma ingerência estatal na vida privada da pessoa cujo
histórico de localização se revela.
Existe uma preocupação em âmbito internacional sobre o risco de que instru-
mentos de investigação que se valem de inovações tecnológicas sejam utilizados
para espionar e perseguir por parte do Estado, que poderia explorar interpretações
equivocadas para dar aparência de legalidade à medida investigativa.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos já teve a oportunidade de se
debruçar sobre tema parecido (interceptação e monitoramento telefônicos), quando
analisou a validade da utilização de inovações tecnológicas na investigação de cri-
mes diante do artigo 11 da Convenção Americana. O seguinte trecho da sentença do
caso Escher e outros vs. Brasil ilustra bem esse ponto:

775
115. A fluidez informativa que existe atualmente coloca o direito à vida privada
das pessoas em uma situação de maior risco, devido à maior quantidade de
novas ferramentas tecnológicas e à sua utilização cada vez mais frequente. Esse
progresso, especialmente quando se trata de interceptações e gravações telefô-
nicas, não significa que as pessoas devam estar em uma situação de vulnerabili-
dade frente ao Estado ou aos particulares. Portanto, o Estado deve assumir um
compromisso com o fim adequar aos tempos atuais as fórmulas tradicionais de
proteção do direito à vida privada. (OEA, 2009).
Chamou-se atenção ao papel do Estado de proteger os direitos humanos diante
do avanço da tecnologia, obviamente que de maneira conciliatória, isto é, sem colo-
car empecilhos ao desenvolvimento da ciência.
Neste caso específico, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana por
ter violado o direito à vida privada de seus nacionais. Concluiu-se que este tipo de
medida deve se basear em uma legislação particularmente precisa, com regras cla-
ras e detalhadas, propósito claro, indícios razoáveis de autoria ou de participação,
e ser requerida, concedida e fiscalizada por autoridades previstas na legislação de
forma fundamentada e com prazo máximo fixado (OEA, 2009).
De fato, há diferenças marcantes entre a medida de quebra de sigilo de dados
de geolocalização e a interceptação telefônica, questão debatida no caso Escher.
Todavia, na falta de debate específico e considerando que ambas as medidas carac-
terizam sérias interferências na vida privada, é possível valer-se das conclusões
obtidas no julgamento como parâmetro para aferir a conformidade da medida
em análise com as normas internacionais de proteção aos direitos humanos, pelo
menos no que se refere a esse sistema regional.
Neste contexto, ficou claro que, obedecidos certos requisitos que protejam
as pessoas de uma ingerência indevida, diligências investigativas que implicam
invasão à privacidade são permitidas quando se busca uma relativização do
direito individual em prol de interesses legítimos da coletividade, como no caso
de investigações criminais.
Há, inclusive, dispositivo expresso neste sentido na Convenção Interamericana,
que prevê em seu artigo 32: “Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos
dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, numa
sociedade democrática” (OEA, 1969).
Portanto, a norma internacional, prevendo que certos direitos humanos indivi-
duais entrariam em rota de colisão com direitos da coletividade em certas circuns-
tâncias, abriu expressamente a possibilidade de relativização daqueles.

5 ∙ COMPATIBILIDADE CONSTITUCIONAL
E INFRACONSTITUCIONAL
Assim como a medida de interceptação telefônica encontra regulamentação
constitucional e infraconstitucional, o acesso a dados de localização armazenados
por provedores de serviço de internet também encontra regulamentação especí-
fica. Os dados pessoais armazenados são protegidos pelo disposto no art. 5º, X, da
Constituição Federal, que estabelece como invioláveis a intimidade, a vida privada,
a honra e a imagem das pessoas.

776
Por serem considerados parte da vida privada e da intimidade das pessoas,
dados pessoais armazenados por provedores de serviço de internet como o Google
devem ser protegidos, cabendo à empresa tomar todas as precauções contra o acesso
não permitido a essas informações por terceiros.
Em consonância com o dispositivo constitucional citado, a legislação ordinária
cuidou de explicitar essa preocupação, garantindo aos usuários da internet maior
segurança na utilização de seus serviços. É o que se pode observar no texto da Lei n.
12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet:
Art. 11. Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento
de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e
de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território
nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os
direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunica-
ções privadas e dos registros. (BRASIL, 2014).
Vê-se, portanto, que o Marco Civil da Internet deixou claro que a guarda de dados
pessoais deve atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da
imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas. Isso significa que, ao coletar
dados pessoais e armazená-los, os provedores tornam-se responsáveis pela guarda
daquelas informações e se submetem a todas as consequências desta condição.
O Decreto n. 8.771/2016, que regulamenta o Marco Civil da Internet, traz dispo-
sições ainda mais específicas no que tange às obrigações dos provedores de proteção
dos dados pessoais por eles coletados, como controle estrito sobre o acesso aos dados
e o uso de técnicas que garantam a inviolabilidade dos dados, como encriptação.
Não obstante o cuidado com a manutenção do sigilo, o Marco Civil da Internet
prevê expressamente a possibilidade de violação de sigilo desses dados pessoais
armazenados, entre outros dados, desde que submetida à reserva de jurisdição
(BRASIL, 2014).4
O Marco Civil da Internet deixa claro, portanto, que o acesso aos dados pessoais
armazenados por um terceiro deve passar pelo crivo do judiciário. O magistrado é
quem vai analisar se, naquele caso específico, existe fundamento para que se possa
afastar o sigilo dos dados.
Vale lembrar que a permissão legal para autoridades administrativas dada no
art. 10, § 3º, da Lei 12.695/2014 é somente a de acesso direto a dados cadastrais, que
informem a qualificação pessoal, filiação e endereço.

4 Lei n. 12.965/2014: “art. 7º: O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário
são assegurados os seguintes direitos: [...] II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações
pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; III - inviolabilidade e sigilo de suas
comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial; [...]
Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet
de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem
atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou
indiretamente envolvidas.
§ 1º O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros
mencionados no caput, de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações
que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial, na
forma do disposto na Seção IV deste Capítulo, respeitado o disposto no art. 7º” (BRASIL, 2014).

777
O Decreto n. 8.771/2016 define dado pessoal como “dado relacionado à pessoa
natural identificada ou identificável, inclusive números identificativos, dados loca-
cionais ou identificadores eletrônicos, quando estes estiverem relacionados a uma
pessoa” (BRASIL, 2016).
Aparentemente, o legislador nacional escolheu separar dados de conexão, em
suas diferentes modalidades, de dados pessoais. Assim, um endereço de IP pode
não ser considerado dado pessoal, ainda que se trate de informação relacionada à
pessoa natural identificável (MELCHIOR, 2014).
De qualquer forma, os dados de localização de pessoas armazenados pelo
Google são considerados dados pessoais, seja por se referir a um dado locacional,
conforme previsto expressamente no Decreto n. 8.771/2016, seja porque pode reve-
lar informações íntimas daquele usuário.
Além disso, os dados pessoais são de titularidade da pessoa natural a quem dizem
respeito. Cabe aos agentes de tratamento apenas o direito sobre a organização de
dados pessoais em banco de dados estruturados e sobre a inteligência gerada a partir
do tratamento desses dados (CUNTO; GALIMBERTI; LEONARDI, 2019, p. 87).
Sendo assim, fica claro que a legislação infraconstitucional permite o acesso aos
dados pessoais de localização armazenados pelo Google, desde que haja prévia autori-
zação judicial, após demonstração do preenchimento dos requisitos a seguir estudados.

6 ∙ DEMONSTRAÇÃO PRÉVIA DE INDÍCIOS


DE AUTORIA DOS ALVOS
A principal crítica feita à ordem de quebra de sigilo com base em coordenadas
geográficas, ou geofence warrant, é a ausência de identificação prévia dos suspeitos
cujos dados serão quebrados. Argumenta-se que esse tipo de medida seria uma ver-
dadeira quebra de sigilo exploratória, sem alvos individualizados, não albergada
pela ordem jurídica brasileira.
No Brasil, o Google tem manifestado resistência em obedecer às requisições
judiciais de dados de localização de seus usuários em investigações criminais e tem
ajuizado mandados de segurança contra decisões que o compelem a informar dados
à polícia ou ao Ministério Público.
O caso mais célebre é a investigação sobre o homicídio da vereadora Marielle
Franco e seu motorista, Anderson Gomes, no Rio de Janeiro. A Justiça do Rio de
Janeiro determinou ao Google que fornecesse todas as “Google accounts” ou “Device
IDs” identificadas entre os pontos das coordenadas especificadas, em uma janela de
tempo de 15 minutos da data do fato investigado. A partir dos resultados encontra-
dos, o Google deveria encaminhar o histórico de localização (locations history) dos
dispositivos identificados.
O Google defende que a Constituição e a legislação nacional são incompatíveis
com a medida. Sustenta que a Lei n. 9.296/1996 dispõe expressamente em seu art. 2º
que o afastamento da privacidade não é admitido sem a demonstração de indícios
razoáveis de autoria ou participação.
Todavia, a empresa faz clara confusão com os dispositivos aplicáveis à matéria.
Antes de tudo, é preciso esclarecer que a quebra de sigilo de dados com base em

778
coordenadas geográficas não trata de interceptação de fluxo de dados, mas sim de
acesso a dados armazenados.
De forma objetiva, o art. 5º, XII, da Constituição Federal se dirige à comunica-
ção dos dados e não aos dados armazenados em decorrência de uma comunicação
anterior. Nesse sentido, o referido dispositivo constitucional é regulamentado
pela Lei n. 9.296/1996, que faz referência expressa ao “fluxo de comunicações”
(BRASIL, 1996). Portanto, a exigência de demonstração de indícios razoáveis da
autoria ou participação do alvo na infração penal apurada é aplicável à técnica de
interceptação de comunicações.
De outro lado, na quebra de sigilo com base em coordenadas geográficas não se
busca acesso a comunicações em andamento, mas informações coletadas em um
certo período de tempo e armazenadas no servidor de um provedor de serviços de
internet, isto é, nem mesmo se trata de acesso a dados de comunicação.
A questão foi claramente regulamentada pela Lei n. 12.965/2014. O Marco Civil
da Internet, ao regulamentar a possibilidade de acesso aos dados sigilosos mantidos
por provedores, define requisitos a serem observados no requerimento e aferidos
pela autoridade judicial:
Art. 22. A parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto pro-
batório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo,
requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de regis-
tros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet.
Parágrafo único. Sem prejuízo dos demais requisitos legais, o requerimento
deverá conter, sob pena de inadmissibilidade:
I - fundados indícios da ocorrência do ilícito;
II - justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de
investigação ou instrução probatória; e
III - período ao qual se referem os registros. (BRASIL, 2014)
Verifica-se que não há entre os requisitos a necessidade de apontar indícios de
autoria. Isso ocorre porque a principal utilidade dessa medida é revelar a identidade
de pessoas que utilizam a internet como meio para a prática de crimes.
A inexigência de demonstração de indícios de autoria tem razão de ser. É que,
comumente, os autores de ilícitos cibernéticos não revelam sua real identidade
justamente para evitar uma posterior responsabilização. Por esse motivo, a lei
prevê a possibilidade de se requisitarem aos provedores de internet dados de cone-
xão, como o IP (Internet Protocol), a fim de permitir a identificação dos usuários
(JESUS; MILAGRE, 2016).
O principal propósito do geofence warrant é justamente encontrar suspeitos em
processos nos quais não se tem nenhuma pista sobre a autoria. De fato, seria inviável
o cumprimento da medida de interceptação telefônica sem se identificarem os alvos
a ser interceptados, razão pela qual, em relação a esse tipo de ferramenta investiga-
tiva, é razoável que se exijam indicativos de autoria.
Aliás, o Marco Civil da Internet autoriza o acesso aos dados não só para ins-
trução de processo criminal, mas torna possível que os dados sejam utilizados
para instruir processo judicial cível, diferenciando-se mais uma vez da Lei de
Interceptações Telefônicas.

779
No recente julgamento do mandado de segurança interposto pelo Google refe-
rente ao caso Marielle, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu pela
legitimidade da quebra de sigilo de dados com base em coordenadas geográficas.
Entendeu-se que o Marco Civil da Internet não exige a individualização das pessoas
atingidas pela quebra. Segundo o relator Rogério Schietti, “tal exigência, por certo,
revelar-se-ia verdadeiro contrassenso, na medida em que o objetivo da lei é possibi-
litar essa identificação” (BRASIL, 2020).
Um dos fundamentos utilizados para permitir a quebra de sigilo foi justamente
o fato de os dados serem anonimizados inicialmente. As informações pessoais dos
proprietários daqueles dados seriam acessadas posteriormente, com o avanço das
investigações e a realização de pedidos específicos.
Para que fique mais claro, é importante conhecer o método utilizado na análise
dos dados obtidos por meio desse tipo de quebra. Em linhas gerais, o Google recebe
uma requisição de dados sobre uma área próxima ao crime e em uma janela de
tempo. Após analisar sua base de dados, o Google identifica os dispositivos encon-
trados de acordo com os parâmetros definidos no mandado e os envia à autoridade
requisitante. Antes desse envio, o Google identifica cada um desses dispositivos
com números de identificação anônimos (números ID).
Os investigadores recebem, portanto, apenas dados anônimos e, a partir de
então, precisam fazer uma análise de localizações e padrões de movimento, cote-
jando com outras informações anteriormente colhidas, até que se identifique(m)
algum(ns) entre aqueles dispositivos que pareçam relevantes para a investigação.
É possível, ainda, que, entre os dispositivos anonimamente identificados forne-
cidos inicialmente, os investigadores façam uma filtragem e apontem uma menor
quantidade de dispositivos de interesse. Com esses números, solicita-se ao Google a
apresentação de dados ainda anônimos, mais abrangentes, podendo abarcar infor-
mações de localização fora da área inicialmente delimitada ou até mesmo fora da
janela de tempo em análise.
O retorno desses dados permitirá uma segunda filtragem, possibilitando a
exclusão de falsos positivos ou de números irrelevantes para a investigação, estrei-
tando ainda mais o número de dispositivos suspeitos. Até este momento, todos os
dados ainda são anônimos, isto é, os investigadores desconhecem dados pessoais
dos proprietários daqueles dispositivos.
Identificados dispositivos que se mostraram relevantes para investigação, a
autoridade investigadora deverá expor ao Poder Judiciário os motivos pelos quais
aqueles dispositivos são relevantes para elucidar o crime e, ao final, pedirá a quebra
do sigilo dos dados pessoais somente daqueles IDs específicos.
Por vezes, nessa segunda etapa ainda são requisitados mais dados anônimos e,
após mais uma filtragem, só em uma terceira etapa será pedido o levantamento do
sigilo e o envio dos dados pessoais dos proprietários daquelas contas.
Acatadas as razões apresentadas, a autoridade judicial requisitará ao Google
informações pessoais dos proprietários daqueles dispositivos, tais como nome,
número de telefone e endereços de e-mail.
É possível que, ao final da primeira análise, nenhum dispositivo se mostre rele-
vante para investigação, de modo que, a rigor, nenhum sigilo terá sido quebrado, e a
diligência se encerra naquela etapa.
780
Nos Estados Unidos, onde esse tipo de ferramenta investigativa já vem sendo
usado há mais tempo, o Poder Judiciário enfrentará o pedido de reconhecimento
(United States vs. Chatrie) de que o geofence warrant viola a Constituição estaduni-
dense, sob o argumento de se tratar de um mandado genérico, já que os alvos não
são particularizados e, consequentemente, não há demonstração de causa provável
(probable cause) para que seja autorizada a busca (ESTADOS UNIDOS, 2019).
Okello Chatrie foi acusado de ter praticado um assalto com arma em um
banco em 2019 no estado americano da Virgínia, fugindo com U$ 195.000,00.
Uma câmera de segurança mostrou que o assaltante segurava um telefone celular
antes de entrar no banco.
A polícia então solicitou um mandado judicial que compelisse o Google a for-
necer dados anonimizados de localização de qualquer conta Google associada a
dispositivos que estivessem em um raio de 150 metros do banco em uma janela de
uma hora (trinta minutos antes e trinta minutos após o assalto).
O Google informou em resposta dezenove contas que estiveram dentro do raio
de 150 metros durante o intervalo de tempo específico. Entre estas, uma conta cha-
mou a atenção da polícia, pois os dados de localização a posicionavam dentro do
banco no momento do assalto e corroboravam a informação de uma testemunha
que disse ter visto o suspeito fora do banco antes do crime e a filmagem da câmera
que mostrava a fuga após o assalto.
A polícia então requisitou ao Google informações complementares ainda anô-
nimas de nove dentre as dezenove contas informadas anteriormente, ampliando a
janela de tempo para uma hora antes e uma hora depois do crime. Identificou-se
que a conta suspeita identificada na primeira análise se deslocou depois do crime
até uma residência.
Pesquisando em outras bases de dados sobre aquele endereço, a polícia o vincu-
lou a um nome individual e buscou mais informações sobre o suspeito. Por fim, foi
solicitado ao Google que revelasse os dados pessoais daquela conta suspeita, cuja
identidade combinou com o nome vinculado ao endereço investigado.
O caso ilustra bem a prática no tratamento dos dados obtidos pela ordem de quebra
de sigilo com base em coordenadas geográficas. Ao contrário do que pode parecer, por-
tanto, não há uma devassa na vida privada de um grande número de pessoas inocentes.
Em verdade, na maior parte do tempo, trabalha-se apenas com números e códigos;
somente com o avanço das investigações, é que se tem acesso a dados pessoais.

7 ∙ PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E INVERSÃO


DO ÔNUS DA PROVA
Existe ainda preocupação de que a quebra de sigilo de dados de pessoas vincu-
ladas pela localização onere inocentes com o dever de provar que “apenas estavam
no local errado e no momento errado”. Tratar-se-ia, em outras palavras, de uma
inversão do ônus da prova que, em princípio, seria da acusação.
De fato, se essa afirmativa fosse verdade, estaria sendo violado o princípio da pre-
sunção de inocência, em uma de suas vertentes, “entendido como princípio que impede
a outorga de consequências jurídicas sobre o investigado ou denunciado antes do trân-
sito em julgado da sentença criminal” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 678).

781
De acordo com a visão moderna da doutrina, a prova tem por objeto uma hipó-
tese sobre fatos. “O elemento e o objeto de provas não são fatos, mas crenças (aspecto
doxástico) ou proposições sobre fatos (aspecto proposicional)” (DALLAGNOL,
2019, p. 122). A investigação trabalha com uma hipótese, que será confirmada ou
não, a depender dos resultados das diligências que forem realizadas.
A princípio, a quebra de sigilo de dados com base em localização geográfica não
tem por objeto uma hipótese que envolva algum suspeito específico. Concluindo-se
pela materialidade do crime, a hipótese é de que alguém praticou uma conduta que
gerou aquele resultado naturalístico. Em caso de sucesso da diligência, o resultado é
a descoberta de pelo menos um suspeito. Daí começa-se a trabalhar com a hipótese
investigativa propriamente dita.
O fato de apenas um indivíduo ter sido detectado na cena do crime não conduz
à conclusão de que aquele é o culpado do crime, já que é possível que diversas
outras pessoas também estivessem no local, embora não dispusessem de um dis-
positivo vinculado ao Google.
Na maioria dos crimes, o executor do fato típico está no local onde ocorreu o
resultado naturalístico. Por exemplo, no caso de um homicídio a facadas, é natural
que o assassino tenha estado próximo de onde o cadáver foi encontrado, seja no
momento do crime, seja para deixar o cadáver no local onde se encontra.
Todavia, é evidente que nem todas as pessoas que também estiveram no mesmo
local terão necessariamente alguma vinculação com o fato. Pode ser que tenham,
pode ser que sejam testemunhas ou pode ser que nem sequer tenham conhecimento
de que naquele local ocorreu um crime.
De início, devido ao princípio da presunção da inocência, presume-se que aquela
pessoa identificada no local e horário do crime seja apenas um transeunte.
De todo modo, cabe ao órgão acusador o esforço de demonstrar as razões pelas
quais entende que o(s) proprietário(s) daquele(s) dispositivo(s) pode(m) estar de
alguma maneira vinculado(s) ao crime.
Concluindo-se pela vinculação, há ainda um longo caminho para que se impute
a essa mesma pessoa a autoria ou participação no crime. A relevância para inves-
tigação é nada mais que a possibilidade de que o portador daquele dispositivo seja
uma fonte de informação para a elucidação dos fatos e permita descobrir ou confir-
mar alguma linha de investigação.
É possível que se considere a comprovação da presença do suspeito no local do
crime como um indício, no sentido de indício de prova, isto é, “um começo ou
início de prova suficiente para formar um juízo de probabilidade do fato exigido
para pronunciamentos judiciais menos gravosos do que uma condenação criminal”
(DALLAGNOL, 2019, p. 128).
Nesse sentido, corrobora-se a premissa de que a quebra de sigilo servirá somente
para dar início a uma linha de investigação, na qual serão empregadas medidas inves-
tigativas específicas para que se produza prova sobre a hipótese criminal aventada.
Portanto, fica claro que não há inversão do ônus da prova, já que cabe ao Estado
provar que o indivíduo que estava próximo ao local e no momento dos fatos tem
alguma vinculação com o crime.

782
Outrossim, o aspecto celeridade da persecução penal, inerente ao princípio da
presunção de inocência, também deve ser considerado. A rápida solução investigativa
e processual, proporcionada pelas modernas técnicas de investigação, como a exposta
neste trabalho, contribui para o respeito ao princípio da presunção de inocência, visto
que possibilita um desfecho rápido para o caso, afastando todo e qualquer questiona-
mento sobre a presunção de inocência do acusado (PAULINO, 2019).

8 ∙ UTILIDADE DA MEDIDA PARA A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL


E FISHING EXPEDITION
Ao se questionar sobre a utilidade de quebrar o sigilo de diversas pessoas vincula-
das a um local e horário, muitos passaram a associar a quebra de sigilo telemático com
base em coordenadas geográficas (geofence warrant) à técnica de fishing expedition.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Melo classificou as fishing
expeditions como “investigações meramente especulativas ou randômicas, de caráter
exploratório, também conhecidas como diligências de prospecção” (BRASIL, 2020).
Utilizam-se ordens judiciais de busca genéricas para “jogar a rede” como expe-
diente de pesca ou fishing expedition numa busca por provas, geralmente nas casas
dos excluídos socialmente (LOPES JR.; ROSA, 2017).
Nesse sentido, citam-se os mandados genéricos, sem especificação subjetiva ou
objetiva da medida de invasão à privacidade, a exemplo dos mandados de busca e
apreensão concedidos para entrada em casas situadas em comunidades dominadas
por organizações criminosas, sem que se especifiquem as casas no mandado, com
base na presunção de que serão encontrados naquelas residências objetos ilícitos
como drogas e (ou) armas.
Observa-se que, nesta situação, há presunção, baseada na experiência de que
moradores são obrigados a esconder em suas casas armas e drogas para traficantes,
de que um crime foi ou está sendo praticado naqueles imóveis.
O Google tem argumentado nas demandas judiciais sobre o assunto que a medida
consiste em uma ordem exploratória, por ser baseada em meras coordenadas geo-
gráficas e atingir um sem-número de pessoas, sem qualquer individualização prévia.
Todavia, a quebra de sigilo telemático aqui estudada pressupõe uma certa indi-
vidualização. Inicialmente, deve haver a definição clara do fato criminoso investi-
gado, do local em que ocorreu – definido pelas coordenadas geográficas –, da data e
do horário provável. É o que determina o art. 22, I e III, do Marco Civil da Internet
quando fala de “fundados indícios da ocorrência do ilícito” e do “período ao qual se
referem os registros” (BRASIL, 2014).
Geralmente, além desses dados, serão prestadas todas as informações até
então conhecidas. No caso da investigação da morte da vereadora Marielle
Franco, pelo que se pode depreender do que foi amplamente noticiado na mídia,
a polícia tinha conhecimento de que um veículo fora utilizado na prática do
crime pelos assassinos e, também, de uma filmagem em que esse veículo aparece,
embora não mostre o rosto dos ocupantes. Na filmagem, era possível ver uma
luz sendo emitida de um aparelho de dentro do veículo, o que indicava que o
ocupante fazia uso de um dispositivo smartphone.

783
A pretensão, naquele caso, era de fazer um cruzamento de dados entre os números
ID identificados no local onde se sabe que o veículo suspeito esteve antes do crime e os
identificados no local em que o veículo passou após o crime. Caso a polícia identifique
números ID que estiveram nos dois pontos de interesse e na janela de tempo definida,
então serão solicitados dados pessoais dos usuários daquelas contas.
Portanto, no momento em que a polícia solicitou efetivamente quebra de sigilo de
dados pessoais, acrescentou-se o indício de que aquelas pessoas a serem atingidas esti-
veram em pontos de interesse da investigação, justamente nos horários investigados.
Observa-se que, ao argumentar que a medida é desproporcional porque não oferece
a mínima garantia de que levará a possíveis suspeitos do delito investigado, o Google faz
um juízo de valor que caberia ao investigador, que conhece os detalhes da investigação e
tem melhores condições de julgar sua utilidade para a elucidação dos fatos.
Certamente que, se a medida fosse tão inefetiva como afirma o Google, e os
dados fornecidos não tivessem confiabilidade suficiente, nenhuma autoridade teria
interesse em solicitar tais informações, o que não se observa na prática.
Nos Estados Unidos esse tipo de ordem judicial aumentou 1500% entre 2017 e
2018 e, de 2018 a 2019, mais de 500%. Os resultados da análise dos dados forneci-
dos pelo Google foram úteis na solução de um crime de homicídio em Cobb County,
Georgia, de outro homicídio em Raleigh, North Carolina, de um arrombamento em
Eden Prairie, Minnesota, e de um atentado a bomba em Austin, Texas (BRODY, 2020).
Parece claro que há proporcionalidade na medida, no sentido de adequação,
já que, mesmo diante da possibilidade de imprecisão das localizações aferidas, as
informações têm sido úteis na investigação de crimes.
Aliás, em regra, em nenhuma medida investigativa, existe garantia de que os
resultados levarão aos suspeitos dos crimes. Quando se determina a busca e apreen-
são em algum endereço investigado, é possível que nada seja apreendido no local, o
que não retira a utilidade da diligência.
Certamente que, se os requisitos de individualização do objeto de investigação
não forem atendidos, a medida deverá ser indeferida pelo Poder Judiciário. Nesse
sentido, a região objeto do mandado deverá ser a menor possível e demandará uma
justificativa acerca das razões que levam à conclusão de que o autor do crime possa
ter transitado naquela área específica. Assim, diminui-se ao máximo a possibili-
dade de que pessoas sem vinculação com o fato tenham seus dados de localização
alcançados, ainda que de maneira anônima.
Quanto à delimitação temporal, o mandado deverá restringir a obtenção de
dados de pessoas que passaram por determinado local em um determinado período
de tempo. Quanto maior for o período, maior a responsabilidade de fundamentação
acerca da necessidade da ampliação, tanto por parte da autoridade requerente como
da autoridade que o expede.
Pode acontecer que das diligências resulte a descoberta de prática de algum outro
crime diferente daquele investigado originalmente, o chamado encontro fortuito de
provas. Haverá flagrante nulidade se a quebra de sigilo de dados for usada como
subterfúgio para se investigar crime diverso daquele que fundamentou a medida,
assim como ocorre em outros tipos de técnicas investigativas (interceptação tele-
fônica, p. ex.). Todavia, presume-se a boa-fé dos investigadores, de modo que será
necessária a demonstração do desvio de finalidade a fim de afastar esta presunção.
784
Em resumo, não há confusão com a técnica de fishing expedition, tendo em vista
que, no mandado de quebra de sigilo com base em coordenadas geográficas, há cer-
teza da ocorrência de um crime, e o fato a ser investigado é de antemão explicitado.
O local do crime ou de interesse para a investigação também deverá ser precisa-
mente definido, o que é possível atualmente graças aos modernos dispositivos que
utilizam tecnologias de ponta.

9 ∙ CONCLUSÃO
A colisão entre o direito fundamental individual à privacidade e o direito funda-
mental coletivo à segurança pública demanda uma solução que garanta equilíbrio e
preserve o núcleo fundamental desses direitos.
Sob a perspectiva da proteção internacional dos direitos humanos, há previsão
expressa de que os direitos individuais podem ceder em prol de direitos coletivos.
Além disso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já teve a oportunidade
de analisar situação parecida com a exposta neste estudo e concluiu que, embora o
Estado deva proteger o direito à intimidade de seus cidadãos em frente às inovações
tecnológicas, também pode usar a tecnologia em favor do direito à segurança pública.
A tecnologia tem sido usada cada vez mais para a prática de atividades crimi-
nosas. Aqueles que vivem à margem da lei se utilizam de todos as ferramentas à
disposição para driblar o aparato repressivo estatal.
É contraditório cobrar do Estado postura proativa na garantia da segurança
pública de seus cidadãos e, ao mesmo tempo, impedi-lo de se valer de ferramentas
tecnológicas que permitam superar as inovações do mundo do crime. Sendo assim,
a quebra de sigilo de dados telemáticos baseada em coordenadas geográficas de
pessoas que estiveram em locais de interesse para apuração de crimes se apresenta
como medida amparada pelas normas internacionais e nacionais e efetiva no com-
bate a crimes de difícil solução.
O fato de não haver prévia delimitação dos alvos da quebra, com demonstração
de indícios de autoria ou participação criminosa, não faz da medida uma ordem
exploratória, já que a individualização é feita com base em outros parâmetros.
Igualmente, o simples fato de uma pessoa ter sido identificada dentro da delimi-
tação geográfica e no período de tempo investigados não a torna automaticamente
suspeita da prática do crime. Permanece sendo ônus dos órgãos de persecução penal
comprovar por outros meios de prova a vinculação pessoa-fato.
Não se discorda de que a vigilância constante sobre a forma como serão utili-
zadas medidas investigativas invasivas é de extrema importância, a fim de se evitar
o abuso estatal em detrimento de seus cidadãos, o que acontece não raramente.
Todavia, não se pode engessar os órgãos persecutórios criminais no exercício de seu
mister com o argumento baseado na presunção de má-fé dos investigadores.

REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Minha filosofia do direito. In: ALEXY, Robert. Constitucionalismo dis­cur­
sivo. Org. e trad. Luís Afonso Heck. 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2. ed.
São Paulo: Saraiva, 2011.
785
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
BRASIL. Decreto n. 8.771, de 11 de maio de 2016. Brasília, DF: 2016. Regulamenta a Lei
n. 12.965, de 23 de abril de 2014, para tratar das hipóteses admitidas de discriminação
de pacotes de dados na internet e de degradação de tráfego, indicar procedimentos para
guarda e proteção de dados por provedores de conexão e de aplicações, apontar medidas de
transparência na requisição de dados cadastrais pela administração pública e estabelecer
parâmetros para fiscalização e apuração de infrações. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/d8771.htm. Acesso em: 2 jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 9.296, de 24 de julho de 1996. Brasília, DF: 1996. Regulamenta o inciso XII,
parte final, do art. 5° da Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br
/ccivil_03/Leis/L9296.htm#:~:text=Constitui%20crime%20realizar%20intercepta%C3
%A7%C3%A3o%20de,a%20quatro%20anos%2C%20e%20multa. Acesso em: 2 jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014. Brasília, DF: 2014. Estabelece princípios,
garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 2 jul. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito n. 4.831/DF. Disponível em: http://www.stf.jus.
br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Inq4831decisao5mai.pdf. Acesso em: 31 ago. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Seção rejeita recurso da Google contra
fornecimento de dados no caso Marielle Franco. 26 ago. 2020. Disponível em: http://www.
stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/26082020-Terceira-Secao-rejeita-
recurso-da-Google-contra-fornecimento-de-dados-no-caso-Marielle-Franco.aspx.
Acesso em: 27 ago. 2020.
BRODY, Liz. Google’s Geofence Warrants face a major legal challenge. OneZero, 2020.
Disponível em: https://onezero.medium.com/googles-geofence-warrants-face-a-major-
legal-challenge-ac6da1408fba. Acesso em: 31 ago. 2020.
CUNTO, Raphael de; GALIMBERTI, Larissa; LEONARDI, Marcel. Direitos dos titulares de
dados pessoais. In: BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues; BEPPU, Ana Claudia (Coord.).
Proteção de dados pessoais no Brasil: uma nova visão a partir da Lei n. 13.709/2018. Belo
Horizonte: Fórum, 2019. p. 87-100.
DA SILVA, André Luiz Olivie. Os direitos humanos e o Estado “natural” de funda­mentação
dos direitos. Revista Sequência, n. 71, 2015, p. 133-154.
DALLAGNOL, Deltan Martinazzo. A visão moderna da prova indício. In: SALGADO,
Daniel de Resende; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de (Coord.). A prova no enfrentamento à
macrocriminalidade. 3. ed. rev. atual. ampl. Salvador: JusPodivm, 2019. p. 117-140.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson 7-Boeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
ESTADOS UNIDOS. United States District Court for the Eastern District of Virginia. US
v. Chatrie - Defendant’s reply to motion to suppress (Geofence Warrant). 2019. Disponível
em: https://www.eff.org/ja/document/us-v-chatrie-defendants-reply-motion-suppress-
geofence-warrant. Acesso em: 2 jul. 2020.
JESUS, Damásio de; MILAGRE, José Antônio. Manual de crimes informáticos. São Paulo:
Saraiva, 2016.
LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da. A ilegalidade de fishing expedition via
mandados genéricos em “favelas”. Consultor Jurídico, 2017. Disponível em: https://www.

786
conjur.com.br/2017-fev-24/limite-penal-fishing-expedition-via-mandados-genericos-
favelas#_ftnref7. Acesso em: 31 ago. 2020.
MEIRELLES, Fernando de Souza. Pesquisa anual do uso de TI nas empresas. 31. ed. Centro
de Tecnologia de Informação Aplicada (FGVcia). 2020. Disponível em: https://eaesp.fgv.br/
sites/eaesp.fgv.br/files/u68/fgvcia2020pesti-resultados_0.pdf. Acesso em: 2 de ago. 2020.
MELCHIOR, Silvia Regina Barbuy. Neutralidade no direito brasileiro. In: DEL MASSO,
Fabiano Dolenc; ABRUSIO, Juliana; FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coord.). Marco
civil da Internet: Lei 12.965/2014. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 99-138.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
OEA. Organização dos Estados Americanos. Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
de 22 de novembro de 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.
convencao_americana.htm. Acesso em: 31 ago. de 2020.
OEA. Organização dos Estados Americanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Caso Escher e outros vs. Brasil. Sentença de 6 de jul. de 2009.
PAULINO, Galtiênio da Cruz. A execução provisória da pena e o princípio da presunção
de inocência. Uma análise à luz da efetividade dos direitos penal e processual penal. 2.
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales.
4. ed. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2014.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2007.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2 ed. São Paulo: RT, 1982.

787
A RECOMENDAÇÃO (2000)19 DO CONSELHO
DA EUROPA E O INQUÉRITO N. 4.781 DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Túlio Fávaro Beggiato1

Sumário: 1 Introdução. 2 O Conselho da Europa. 2.1 A função de harmonização jurídica


do Conselho da Europa. 2.2 O Comitê de Ministros e suas recomendações. 2.3 O Brasil e a
potencial influência dos standards cristalizados nas recomendações do Conselho da Europa.
3 A Recomendação (2000)19 do Conselho da Europa e o papel do Ministério Público no
processo penal. 4 O Inquérito n. 4.781 do Supremo Tribunal Federal. 5 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
A circulação e a hibridação de diferentes modelos processuais pelo mundo
decorrem da dinâmica própria do Direito.
Notadamente, a tradição jurídica, o condicionamento cultural, a técnica jurí-
dica utilizada para se afrontar desafios específicos de cada país, bem como a men-
talidade – para não dizer metodologia – na interpretação judicial, fazem com que a
trajetória de cada ordenamento jurídico seja única.2
Em que pese a evolução natural e convergente em diversos ramos do Direito,
a exemplo do Direito dos Contratos e do Direito Empresarial, em se tratando de
Direito Processual Penal, o percurso é permeado por maiores desafios.3
A grande dificuldade da doutrina em unificar as características específicas de
duas construções abstratas (modelo acusatório e modelo inquisitório) agrava esse
fenômeno. Assim, a depender da característica que parece fundamental a determi-
nado estudioso, mostra-se possível classificar o mesmo modelo processual penal de
maneira diversa.4

1 Procurador da República. Visiting scholar na University of Cambridge. Visiting researcher no King’s


College London. Mestrando em Diritto Romano e Sistemi Giuridici Contemporanei na Università
degli Studi di Roma Tor Vergata.
2 A construção de um modelo processual penal é convencional e depende da compatibilidade lógica com
a respectiva tradição histórica de determinado ordenamento jurídico (FERRAJOLI, 2009, p. 575).
3 A doutrina italiana faz alusão a qualquer coisa parecida com as velhas disputas medievais tratadas
no livro O nome da rosa, de Umberto Eco, ao se referir ao embate ideológico realizado na disputa
entre professores universitários, magistrados e advogados durante o estabelecimento das diretrizes
do processo penal italiano (TONINI, 2010, p. XXIV).
4 Para a maioria dos estudiosos do Direito Romano, o critério fundamental para se considerar um
modelo como acusatório diz respeito à necessidade de que tanto o ato inicial de acusação quanto
o seu prosseguimento (impulso) sejam realizados por um cidadão (privado). Assim, sempre que

789
Por tais motivos, mais importante do que a etiqueta é a forma como o Direito se
orienta concretamente.
É certo que o Direito Processual Penal, ao tempo que instrumentaliza o monopó-
lio estatal do direito de punir, também é garantidor de direitos e liberdades fundamen-
tais. Não é possível, por conseguinte, dissociá-lo do Direito Internacional dos Direitos
Humanos, que, por sua vez, é propenso à convergência e à harmonização jurídica.
O conceito de direitos humanos diz respeito ao conjunto de valores, direitos e
garantias indisponíveis considerados universais e que possuem como escopo pro-
teger o ser humano diante de ações ou de omissões que possam colocar em risco
a dignidade humana. Entre as suas diversas características (indisponibilidade,
inalienabilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, indivisibilidade, inter-
dependência, complementaridade), a historicidade revela que os direitos humanos
não surgiram todos ao mesmo tempo, sendo frutos de conquistas históricas. Por
conseguinte, eles são reconhecidos gradualmente e tendem a se expandir à medida
que a cultura de respeito ao ser humano evolui com o passar dos tempos.
É nessa lógica que se consolida5 a noção de que o enfrentamento à criminalidade
resguarda o Estado de Direito, garantidor de direitos e liberdades fundamentais, ao
tempo que o ser humano investigado ou processado possui, em seu favor, garantias
capazes de evitar o abuso no exercício da atividade estatal.
Nesse contexto, reconhece-se a maturação de standards internacionais relaciona-
dos às funções típicas do órgão de acusação e do órgão julgador, bem como os seus
limites. A Europa tem experimentado uma rica aproximação de diferentes modelos
de processo penal em seus países (DELMAS-MARTY; SPENCER, 2005, p. 51), inclu-
sive com a criação de novos paradigmas de proteção (JACKSON, 2005, p. 738).
Nessa esteira, o presente estudo cinge-se à contextualização do prestígio e da
autoridade dos referidos standards internacionais, bem como à análise de caso con-
creto de extrema relevância à luz dos mencionados parâmetros.

existisse iniciativa processual ou participação no julgamento por órgãos públicos, os estudiosos,


quase por unanimidade, compreendem se tratar de procedimento inquisitoria (ZANON, 1998, p.
12). No que diz respeito aos autores italianos de Direito Processual Penal, a maioria aponta como
critério fundamental a existência efetiva de debates orais (princípio da oralidade) em contraditório,
em oposição ao segredo e à escrita (TONINI, 2010, p. 4). Para os autores norte-americanos, não é
o fato de se permitir a um advogado realizar a acusação o traço marcante, mas a predominância
absoluta das partes (condução do julgamento por elas) perante um júri, presidido por um juiz, sem
qualquer iniciativa, absolutamente passivo (LANGBEIN, 2005, p. 1). Na Inglaterra, a doutrina aduz
que o traço originário é o júri, sendo os seus consectários os aspectos fundamentais do referido
modelo, a exemplo da passividade da corte na função de apenas ouvir a acusação e a defesa, sem
qualquer tipo de conduta ativa nas tarefas de investigação ou instrução (SPENCER, 2016, p. 602).
5 Nesse sentido, seguem os considerandos da Recomendação (2000)19 do Conselho da Europa:
“Considerando che l’ordinamento penale ha un ruolo predominante per la salvaguardia dello Stato di
diritto; Consapevole della necessità comune a tutti gli Stati membri di meglio combattere la criminalità
a livello nazionale ed internazionale; Considerando che a tal fine conviene accrescere l’efficacia sia degli
ordinamenti penali nazionali sia della cooperazione penale internazionale, nel rispetto dei principi
definiti nella Convenzione di salvaguardia dei diritti dell’uomo e delle libertà fondamentali”. Registre-se
que a versão em italiano desse trecho foi preferida, tendo em vista se mostrar mais fidedigna em
relação à tradução realizada em português. Disponível em: https://www.csm.it/documents/46647/0/
REC%282000%2919+it.pdf/8b7421a2-6f41-474a-bac8-e087167326f7. Acesso em: 18 jul. 2019.

790
2 ∙ O CONSELHO DA EUROPA
Em 1949, pelo Tratado de Londres, constituiu-se o Conselho da Europa, com
sede em Estrasburgo, na França, especificamente no Palácio da Europa.
O Conselho da Europa nasceu no cenário pós-Segunda Guerra Mundial, com o
intento de consolidação da paz pela unificação lastreada no Direito. Nesse contexto,
a sua criação constituiu um compromisso razoável entre países que almejavam uma
unificação integral e países que não toleravam uma excessiva ingerência em suas
soberanias nacionais.
O objetivo do Conselho da Europa é promover a democracia, os direitos huma-
nos, o primado do Direito, a identidade cultural europeia e a pesquisa de soluções
para problemas sociais na Europa.
É importante destacar que o Conselho da Europa não se confunde com a União
Europeia ou com os seus respectivos órgãos (Conselho da União Europeia e Conselho
Europeu). Possui, por conseguinte, personalidade jurídica própria reconhecida pelo
Direito Internacional e natureza jurídica de organização internacional.
Não se desconhece, entretanto, que atualmente6 o Conselho da Europa conta
com 47 países-membros, dentre eles todos os 28 países da União Europeia.
Participam, também, com status de observador, EUA, Japão, Canadá, México,
Israel e a Santa Sé.
O democrático sistema de votação interna em cotejo com o elevado número de
países-membros é fator de notável legitimação dos atos advindos da referida orga-
nização internacional, conforme será melhor detalhado adiante.

2.1 ∙ A FUNÇÃO DE HARMONIZAÇÃO JURÍDICA


DO CONSELHO DA EUROPA
Conforme mencionado, o Conselho da Europa tem por objetivo estreitar os laços
entre seus países-membros a partir da promoção de ideais e princípios comuns,
mediante a tutela e o desenvolvimento dos direitos humanos e das liberdades fun-
damentais. Seguem, textualmente,7 os objetivos traçados pelo Tratado de Londres:
Artigo 1º
a) O objectivo do Conselho da Europa é o de realizar uma união mais estreita
entre os seus Membros, a fim de salvaguardar e de promover os ideais e os prin-
cípios que são o seu património comum e de favorecer o seu progresso econó-
mico e social.
b) Este objectivo será prosseguido, por meio dos órgãos do Conselho, através do
exame de questões de interesse comum, pela conclusão de acordos e pela adop-
ção de uma acção comum nos domínios económico, social, cultural, científico,
jurídico e administrativo, bem como pela salvaguarda e desenvolvimento dos
direitos do homem e das liberdades fundamentais.

6 Disponível em: https://www.coe.int/it/web/about-us/our-member-states. Acesso em: 17 jul. 2019.


7 Disponível em: http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/
estatuto_do_conselho_da_europa.pdf. Acesso em: 17 jul. 2019.

791
A promoção de princípios comuns por intermédio do Direito cristaliza a sua
função de harmonização (ou de aproximação) jurídica, inclusive em colaboração
com outras organizações internacionais.8
Registre-se que, desde a sua criação, o Conselho da Europa envida esforços
para a harmonização (ou a aproximação) de leis, instituições e usos em seus países-
-membros, inclusive em matéria processual penal, na defesa de direitos humanos
(AMODIO, 2003, p. 76).
Nesse sentido, a doutrina comparatista (JACKSON, 2005, p. 743) reconhece a
elevada importância do Conselho da Europa como veículo de convergência no que
diz respeito a direitos e garantias processuais:
The thrust towards convergence would seem to be at its strongest within Europe
where supranational institutions such as the Council of Europe and the European
Union provide a vehicle for strengthening cooperation within a framework of com-
mon procedural rights and guarantees laid down by the European Convention on
Human Rights and, more recently, the EU Charter of Rights.
Notadamente, a função de harmonização realiza-se por intermédio da celebra-
ção de tratados internacionais e, também, pelo estabelecimento de políticas comuns
sobre determinados assuntos, com a utilização de outros instrumentos jurídicos.
Para fins de mensurar a relevância dessa função desenvolvida pelo Conselho da
Europa, registre-se que foi o seu Comitê de Ministros o responsável por instituir o órgão
redator da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Também foi o referido Comitê
que a adotou antes da celebração do tratado internacional que lhe deu vida em Roma.9
Atualmente, a Convenção Europeia de Direitos Humanos é considerada texto
central em matéria de proteção aos direitos humanos na Europa e conta com o
mecanismo jurisdicional permanente da Corte Europeia de Direitos Humanos em
Estrasburgo (que também é instrumento de harmonização mínima do Direito).
Trata-se de paradigma de interpretação para cortes de direitos humanos e cortes
constitucionais de todo o mundo, tendo em vista a sofisticação do patamar de pro-
teção de direitos humanos por ela atingido.
Registre-se, ainda, que o Conselho da Europa possui um mecanismo complexo
de funcionamento e forte interação com a Corte Europeia dos Direitos Humanos
na consolidação do Estado de Direito em seus países-membros, por intermédio do
robustecimento de garantias formais e substanciais.
Passadas tais premissas, é oportuno destacar que o Conselho da Europa possui
ferramenta jurídica de especial relevo para fins de harmonização jurídica. Trata-se

8 Assim descreve publicação oficial do Conselho da Europa (CONSIGLIO D’EUROPA, 1959, p. 45):
“L’attività del Consiglio d’Europa che si estende a campi molto vari, ha spesso incrociato la strada di altre
organizzazioni più specializzate nella ricerca di soluzioni europee o internazionali ai problemi di settori
ben definiti. In questi casi, il Consiglio d’Europa ha stabilito con tali organizzazioni relazione proficue che
hanno sempre permesso di armonizzare le iniziative e gli sforzi verso una stessa mèta”.
9 Nesse sentido: “L’assemblea consultiva, fin dalla prima riunione, presentava al Comitato dei Ministri
tre diverse proposte relative ai diritti dell’uomo. In seguito ulteriori iniziative, spesso concorrenti,
indussero il Comitato dei Ministri ad istituire un Comitato di alti funzionari incaricato di redigere
un progetto di Convenzione. L’organo intergovernativo riunì le diverse proposte, utilizzando altresì
i lavori condotti dalla Commissione delle Nazione Unite ed elaborò un progetto che, approvato dal
Comitato dei Ministri, venne firmato a Roma il 4 novembre 1950” (ZANGHÌ, 2006, p. 175).

792
do instituto da recomendação, que, após ser adotada pelo Comitê de Ministros,
direciona-se aos governos dos Estados Nacionais membros.
O referido instrumento tem-se mostrado eficiente na alteração de ordenamentos
jurídicos nacionais considerados divergentes, bem como na adequação de interpre-
tação jurídica nacional a respeito de temas relevantes:
Anche se una risoluzione del Comitato dei Ministri può trovare una spontanea
attuazione da parte di uno Stato mediante la modificazione della legge interna,
il suo modo d’incidere più tipico non è quello immediato ma quello mediato che
si manifesta nella maturazione di prospettive e nella fissazione di traguardi che
potranno essere raggiunti dagli Stati nel lungo periodo. E analogamente opera
tutta quella fascia di proposte e indicazioni contenute nei rapporti del C.E.P.C.:
esse favoriscono una crescita culturale focalizzando l’attenzione su certi temi o
facendo progredire il contesto europeo verso la soluzione di problemi già emersi
alla ribalta dei singoli Stati. Oltre che d’una misurazione giuridica, il lavoro del
Consiglio d’Europa è dunque suscettibile di una misurazione sociologica, intesa
come rilevazione degli effetti che le iniziative inidonee a tradursi immediatamente
in norme determinano sul piano lato sensu culturale. (AMODIO, 2003, p. 78).
Ademais, esse mecanismo tem-se revelado fundamental na proteção de direitos
humanos, sendo campo fértil para a expansão e a universalização de elevados pata-
mares de proteção à dignidade da pessoa humana.

2.2 ∙ O COMITÊ DE MINISTROS E SUAS RECOMENDAÇÕES


O Comitê de Ministros possui status de órgão com papel preponderante no
Conselho da Europa, tendo em vista que apenas ele age em seu nome, sendo seu
órgão de decisão10 (RAIMONDI, 2005, p. 13; BECO, 2012, p. 6).
A sua importância decorre de ser o mencionado Comitê o único órgão capaz
de representar o Conselho da Europa perante Estados Nacionais,11 em exclusão aos
demais órgãos.
No que diz respeito à sua composição, conta com estrutura colegiada, e cada
país possui um representante com direito ao voto. Como regra, trata-se do ministro
das Relações Exteriores ou de representante do respectivo governo.12

10 Nesse sentido dispõe o Tratado de Londres, in verbis: “Artigo 13º O Comité de Ministros é o órgão
competente para agir em nome do Conselho da Europa, em conformidade com os artigos 15º e 16º”.
Disponível em: http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/esta
tuto_do_conselho_da_europa.pdf. Acesso em: 17 jul. 2019.
11 Segue interessante trecho de um manual publicado pela imprensa oficial italiana e escrito sob os
cuidados do Secretariado-Geral do Conselho da Europa em colaboração com a Società Italiana per
L’organizzazione Internazionale: “Il Comitato dei Ministri è organo d’importanza preponderante di
fronte a quella degli altri organi. Come l’art. 13 pone in rilevo, esso è l’organo competente ad agire in
nome del Consiglio d’Europa. Da ciò si deduce che gli altri organi, e in special modo l’Assemblea, non
hanno la capacità di rappresentare l’ente nei confronti degli stati membri e degli stati terzi, giacché le loro
dichiarazioni di volontà hanno efficacia soltanto nell’ambito dell’Organizzazione” (ITÁLIA, 1971, p. 47).
12 Nesse sentido dispõe o Tratado de Londres, in verbis: “Artigo 14º Cada Membro tem um
representante no Comité de Ministros e cada representante dispõe de um voto. Os representantes
no Comité são os Ministros dos Negócios Estrangeiros. Quando um Ministro dos Negócios
Estrangeiros não puder estar presente, ou se outras circunstâncias o recomendarem, pode ser

793
Com essas premissas, calha destacar que é atribuição do Comitê de Ministros
adotar medidas idôneas para o atendimento das finalidades do Conselho da Europa.
Entre tais medidas está a adoção de recomendação aos países-membros do
Conselho da Europa. A recomendação é um dos instrumentos jurídicos aptos a
serem utilizados para a promoção de ideais e princípios comuns, bem como para a
salvaguarda de direitos humanos.
Notadamente, o instrumento da recomendação possui algumas vantagens em
relação ao tratado internacional, em especial o seu caráter de universalidade:
Recommendations have some advantages which may make them more attractive for
the CM than conventions. To begin with, recommendations are acts of the CoE and
as such, they are addressed automatically to all CoE Member States. Conventions, by
contrast, depend on their being ratified by each individual State. Although in general,
the acceptance rate of CoE conventions is amazingly high, only a few conventions
(such as the ECHR) have been ratified by all CoE Member States. Secondly, recom-
mendations are - in spite of the unanimity requirement for their adoption (Article
20 (a) (i) CoE Statute)-easier to establish than conventions. This elaboration process
conventions usually takes much longer, States having regard to their binding char-
acter. […] So, the advantage of conventions, to have a legally binding character, is
partly compensated by the advantage of the Recommendations to enter into force
more rapidly and to be more universal. (BREUER; SCHMAHL, 2017, p. 658-659).
A adoção de uma recomendação, como mencionado alhures, objetiva a mudança
de postura de determinado país-membro sobre assunto de especial relevância. A
almejada mudança de postura pode se restringir a alterações administrativas, adequa-
ções no que diz respeito a parâmetros internos de interpretação jurídica, e, inclusive,
demandar a modificação do ordenamento jurídico nacional pela via da alteração
legislativa. Entretanto, o que importa, para fins de monitoramento, é se o resultado foi
atingido e não o meio pelo qual ele foi atingido (BREUER; SCHMAHL, 2017, p. 803).
Diante da importância do tema, veja-se a sua previsão convencional:13
Artigo 15º
a) O Comité de Ministros examinará, por recomendação da Assembleia
Consultiva ou por sua própria iniciativa, as medidas convenientes para a rea-
lização do objectivo do Conselho da Europa, nomeadamente a conclusão de
convenções e de acordos, e a adopção pelos Governos de uma política comum
em relação a questões determinadas. As suas conclusões serão comunicadas pelo
Secretário-Geral aos Membros.
b) As conclusões do Comité de Ministros podem, nos casos em que tal se justifique,
revestir a forma de recomendações aos Governos, podendo o Comité convidá-los
a prestar informações acerca do seguimento por eles dado àquelas recomendações.
Conforme se depreende do excerto acima, subsiste a necessidade de o governo de
um país-membro justificar o inadimplemento ou a inobservância de determinada
recomendação. Registre-se, todavia, que, ao contrário de um tratado internacional

designado um suplente para tomar o seu lugar. Este suplente será, na medida do possível, um
membro do Governo do seu país”. Disponível em: http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/
files/documentos/instrumentos/estatuto_do_conselho_da_europa.pdf. Acesso em: 17 jul. 2019.
13 Disponível em: http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/esta
tuto_do_conselho_da_europa.pdf. Acesso em: 17 jul. 2019.

794
que vincula juridicamente as partes (hard law), as recomendações do Conselho da
Europa, adotadas pelo Comitê de Ministros, não são vinculantes (non-binding) sob
o ponto de vista jurídico (soft law).14
Entretanto, a adoção de uma recomendação por ato colegiado traduz elevado
consenso sobre matéria de reconhecida importância, com grande peso político
e moral, decorrente desse prestígio (BREUER; SCHMAHL, 2017, p. 656-657).
Ademais, o controle (monitoramento) sobre a prestação de informações fornecidas
pelos países-membros a respeito da observância de uma recomendação implica o
reconhecimento indubitável de uma função política (BECO, 2012, p. 6) exercida
pelo Comitê de Ministros.15 Por tais motivos, a doutrina reconhece a elevada capa-
cidade das recomendações de influenciar as escolhas processuais penais realizadas
pelos países europeus (AMODIO, 2003, p. 76).

2.3 ∙ O BRASIL E A POTENCIAL INFLUÊNCIA DOS STANDARDS


CRISTALIZADOS NAS RECOMENDAÇÕES DO CONSELHO DA EUROPA
Conforme mencionado, o Conselho da Europa possui um mecanismo complexo
e de forte interação com a Corte Europeia dos Direitos Humanos na consolidação
do Estado de Direito em seus países-membros, por intermédio do robustecimento
de garantias formais e substanciais.
Especificamente, o Conselho da Europa faz parte do Sistema Regional Europeu de
Proteção aos Direitos Humanos, assim como a Corte Europeia de Direitos Humanos
(KARASEK, 1983, p. 26), mesmo após a significativa alteração introduzida pelo
Protocolo n. 11.16 Assim, no que diz respeito à Corte Europeia de Direitos Humanos,

14 Não se desconhece que parte da doutrina entende ser irrelevante tal distinção, tendo em vista que
o enforcement em se tratando de Direito Internacional possui sérias limitações em decorrência da
soberania nacional, de maneira que, na prática, por vezes, uma recomendação possui maior nível
de implementação do que um tratado internacional.
15 Nesse sentido: “La funzione del Comitato, così chiaramente definita dall’art. 15 dello Statuto, incontra
però un limite sostanziale nel fatto che le decisioni del Comitato non hanno efficacia vincolante per i
governi geli stati membri: quindi, le raccomandazioni che il Comitato indirizzati governi possono da
questi venire applicate o meno. Come si vede, i governi non hanno dato al Comitato dei Ministri alcuna
delega di potere in senso proprio: nondimeno, il fatto di dovere in un certo senso giustificare la mancata
applicazione delle decisioni collegiali negli ordinamenti interni degli stati membri implica da parte dei
governi un indubbio riconoscimento della funzione politica del Comitato” (ITÁLIA, 1971, p. 48).
16 “Quanto às funções do Comitê de Ministros, não obstante as críticas a ele dirigidas pela doutrina, apenas
parte de suas originais funções se alterou na sistemática do Protocolo nº 11. De fato, no que tange à função
de supervisão das sentenças da Corte nada se alterou. Seguiu-se o entendimento de que a supervisão das
sentenças da Corte deve estar afeta a um órgão com composição política capaz de convencer os Estados
a dar melhor cumprimento a tais decisões, e não a ela própria, já que a supervisão de suas sentenças
é matéria que ultrapassa as funções precípuas do Tribunal. A alteração significativa, introduzida pelo
Protocolo nº 11, no que tange ao Comitê de Ministros, diz respeito à extinção da função que tinha o
Comitê de decidir se houve ou não violação da Convenção nos casos cujos relatórios o haviam sido
submetidos pela Comissão, mas que não haviam sido submetidos à Corte (art. 32). Em outras palavras,
manteve-se a função de supervisão do Comitê, mas aboliu-se a competência contenciosa que ele detinha
no regime anterior. Essa abolição da função decisória do Comitê foi aplaudida pela melhor doutrina.
Assim, do Protocolo nº 11 em diante a função de decidir se houve ou não violação da Convenção
Europeia passou a ser uma função exclusiva da Corte” (MAZZUOLI, 2010, p. 38).

795
cabe ao Comitê de Ministros do Conselho da Europa fiscalizar o cumprimento de suas
sentenças. Por conseguinte, na condição de órgão de composição política, cabe a ele con-
vencer os países-membros a cumprir as referidas sentenças da melhor maneira possível.
As decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos possuem efeitos vinculan-
tes apenas em face do Estado-Membro sujeito à respectiva decisão (ausência do stare
decisis). Todavia, não se desconsideram seus efeitos persuasivos em distintos casos
concretos, bem como na atuação autônoma do Conselho da Europa. Noutro giro,
determinada decisão da referida corte pode ser superada por um novo standard
(por exemplo, por uma recomendação do Conselho da Europa em determinada
matéria) que atinja patamar mais elevado de proteção à pessoa humana.
Nesse contexto, para além dessa relação, é oportuno e interessante destacar,
também, que a Corte Europeia de Direitos Humanos, por vezes, embasa e motiva as
suas decisões nas recomendações expedidas pelo Comitê de Ministros do Conselho
da Europa (BREUER; SCHMAHL, 2017, p. 658).
Essa dinâmica é enriquecida, ainda, pela tendência de os sistemas de proteção
(global e regionais), bem como as respectivas cortes, dialogarem entre si, a exemplo
do que ocorre entre o sistema interamericano e o sistema europeu.17 Do mesmo
modo, as cortes constitucionais tendem a dialogar com cortes de direitos huma-
nos.18 Tal fenômeno é justificado pelo fato de que o entrelaçamento entre a esfera
internacional e a doméstica traduz, atualmente, a expansão material dos padrões de
proteção dos direitos humanos, de sorte a reduzir o decisionismo judicial interno.
Registre-se, entretanto, que a interação entre os atos do Conselho da Europa e os
atos da Corte Europeia de Direitos Humanos, bem como o diálogo entre os diversos
sistemas de proteção dos direitos humanos e as cortes constitucionais, é tema de
elevada complexidade e extensão que escapa ao objeto do presente estudo.
De qualquer modo, é intuitivo que o reconhecimento de que standards advindos
do Conselho da Europa devem ser devidamente valorados e, na maior medida do
possível, também observados no Brasil. É que a realização de substanciosos estudos
científicos,19 técnicos20 e comparatistas na elaboração de tais referenciais – como

17 Cf. BURGORGUE-LARSEN, Laurence; MONTOYA CÉSPEDES, Nicolás. O diálogo judicial


entre a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Europeia dos Direitos Humanos.
In: BANDEIRA GALINDO, George Rodrigo; URUEÑA, René; TORRES PÉREZ, Aida (coord.).
Proteção multinível dos direitos humanos. Manual. Barcelona: Rede Direitos Humanos e Educação
Superior, 2014. p. 205-231. Disponível em: https://www.upf.edu/dhes-alfa/_pdf/PMDH_Manual_
portugues.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.
18 Cf. NEVES, Marcelo. Do diálogo entre as cortes supremas e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos ao transconstitucionalismo na América Latina. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, ano 51, n. 201, p. 193-214, jan./mar. 2014. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/
edicoes/51/201/ril_v51_n201_p193.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.
19 “Su un piano diverso, non va infine dimenticata l’attività del Comitato degli esperti del Consiglio
d’Europa sui problemi penali (C.E.P.C.), organo che non solo elabora i progetti di convenzione e di
risoluzione da sottoporre al Comitato dei Ministri, ma promuove anche studi e ricerche di diritto
penale, processuale penale, e di criminologia, la cui eco, attraverso i rapporti e le conferenze, non
tarda a riverberarsi nei diversi Paesi d’Europa” (AMODIO, 2003, p. 77).
20 Nesse sentido descreve o Piccolo manuale del Consiglio D’Europa: “Secondo la prassi vigente nelle
organizzazioni internazionali e nei governi nazionali, il lavoro del Comitato dei Ministri viene

796
é o caso da Recomendação (2000)19 –, bem como o consenso advindo de elevado
número de nações que possuem alto patamar de respeito aos direitos humanos,
aponta para o prestígio e a autoridade da sua conclusão, que se traduz em tendência
de harmonização jurídica no referido sentido.
Acrescente-se que, anteriormente à tendência corporificada na mencionada
recomendação, a Constituição de 1988 promoveu uma revolução no processo penal
brasileiro, com nítida assimilação de diversos valores garantistas advindos do
modelo acusatório, apesar da permanência da mentalidade e da legislação inqui-
sitória na praxe brasileira. Outros países europeus passaram por semelhante fenô-
meno,21 com resultados profícuos, a exemplo da Itália, que é ordenamento leader
para o Brasil em matéria de Direito Processual Penal. Evidentemente, não se mostra
adequado desprezar a experiência desses países nem o seu consenso a respeito de
tema tão importante.
Ademais, o Brasil, que possui tradição jurídica romanista (civil law) e grande
proximidade jurídica com países como Itália, França, Portugal, Espanha e Alemanha,
deve levar em conta interpretação pautada no consenso dessas nações, no que diz
respeito aos mencionados valores garantistas. Notadamente, por qualquer ângulo
que se observe, em matéria de direitos humanos, os standards advindos do Conselho
da Europa possuem enorme relevo e não devem ser descartados pelo Brasil.

3 ∙ A RECOMENDAÇÃO (2000)19 DO CONSELHO DA EUROPA


E O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO PENAL
De início, é importante ressaltar que o Tratado de Londres, ao instituir o
Conselho da Europa, estipulou22 que toda pessoa sujeita à jurisdição de seus
Estados-Membros deve gozar de direitos humanos e liberdades fundamentais.
Notadamente, o referido tratado internacional traz o compromisso (dever jurídico)
de que cada Estado-Membro colabore envidando todos os esforços para a imple-
mentação do processo justo (giusto processo) como garantia fundamental de uma
sociedade democrática. A doutrina reconhece a referida disposição normativa como

preparato in precedenza da esperti […] Tavolta il Comitato dei Ministri ha sentito il bisogno di
conoscere il parere di tecnici su determinate questioni. Di conseguenza esso ha ritenuto opportuno
convocare speciali comitati di esperti governativi, composti in genere di funzionari appartenenti i
competenti ministeri. Questi comitati si sono riuniti per discutere soprattutto questioni inerenti a: i
diritti dell’uomo […]. Un secondo sistema con cui il Comitato dei Ministri può ottenere il parere di
esperti, è quello di consultare altre organizzazione internazionali specializzate […] Un terzo sistema
è stato stavolta utilizzato. Esso consiste nel convocare delle conferenze specializzate” (CONSIGLIO
D’EUROPA, 1954, p. 20-21).
21 “La storia contemporanea vede molti Stati che sostengono di essere garantisti e poi, di fatto, utilizzano
ordinamenti processuali nei quali prevalgono le caratteristiche del sistema inquisitorio.” (TONINI,
2010, p. 12).
22 “Artigo 3º Todos os Membros do Conselho da Europa reconhecem o princípio do primado do
Direito e o princípio em virtude do qual qualquer pessoa colocada sob a sua jurisdição deve gozar
dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, comprometendo-se a colaborar sincera e
activamente na prossecução do objectivo definido no capítulo I. [...]”. Disponível em: http://gddc.
ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/estatuto_do_conselho_da_
europa.pdf. Acesso em: 18 jul. 2019.

797
standard de rule of law, a ser esclarecido e preenchido com o passar do tempo pelo
Conselho da Europa (BREUER; SCHMAHL, 2017, p. 642).
Nessa tarefa, dentre diversos outros atos, a Recomendação (2000)19 coloca
em relevo, como matéria pertinente à temática dos direitos humanos, o papel do
Ministério Público no processo penal, tendo em vista a sua imediata repercussão na
eficiência do enfrentamento à criminalidade (salvaguarda do Estado de Direito) e
na proteção de direitos e garantias individuais, em especial do réu e do investigado.
É com base nessas premissas que a mencionada recomendação foi adotada formal-
mente pelo Comitê de Ministros do Conselho da Europa. Destarte, tornou-se impor-
tante instrumento de harmonização (ou aproximação) jurídica no estabelecimento de
standards internacionais a serem observados por todos os países-membros na conver-
gência de suas práticas e nas alterações dos seus respectivos ordenamentos jurídicos.
A referida recomendação, em sua exposição de motivos,23 destaca que as dis-
tinções entre os modelos acusatório e inquisitório tendem a se reduzir em razão
de recorrentes modificações em ordenamentos jurídicos nacionais alavancadas por
princípios comuns europeus e pela Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Em que pese a referida recomendação não reconhecer textualmente que per-
segue a aproximação do “modelo acusatório” ou “sistema adversarial”, vários de
seus aspectos se reportam a elementos e garantias desse modelo processual penal:
notadamente, a separação entre as funções de acusar e de julgar.
É certo que o modelo acusatório é um modelo ideal e abstrato, construído a
partir da contraposição ao modelo inquisitório. Uma das características marcantes
inquisitoriais (talvez a principal) é o agrupamento (ou a confusão) das funções de
acusar e de julgar com a decorrente compressão da defesa e do direito ao contraditó-
rio. Tal fisiologia jurídica restou bem conhecida com a ascensão do império romano
(cognitio extra ordinem) e, também, durante o período medieval:
Già nel periodo medioevale era denominato inquisitorio quel sistema processuale
che attribuiva al giudice il potere di attivarsi d’ufficio per ricercare i reati ed acqui-
sirne le prove. Tale nomenclatura derivava dall’organo che prendeva l’iniziativa in
quel tipo di processo, e cioè il giudice inquisitore. Sempre nello stesso periodo storico
era denominato accusatorio quel tipo di processo nel quale il giudice non esercitava
alcun potere d’ufficio, poiché erano le parti ad avere l’iniziativa. L’avvio del processo,
il suo svolgimento e la ricerca delle prove erano lasciati ad una parte, e cioè all’accu-
satore (ad es., la persona offesa o un suo parente). Al potere di iniziativa e di richiesta
dell’accusatore corrispondevano analoghi poteri esercitabili dall’accusato personal-
mente o mediante un difensore. Oggi con i termini accusatorio e inquisitorio ci si rife-
risce a “tipi” di processo penale, ai quali sono attribuite determinate caratteristiche.
[…] Quanto abbiamo appena osservato serve a sottolineare che la contrapposizione
ha un valore meramente astratto, mentre in concreto nella storia sono stati adottati

23 Nesse caso específico, optou-se por colacionar a versão em italiano, tendo em vista que esta abarca
as exposições de motivos: “Se l’Europa giudiziaria è sempre divisa fra due culture sia che si tratti
dell’organizzazione della procedura penale (accusatoria o inquisitoria) o d’intentare procedimenti (il
cosiddetto sistema di « legalità » odi « opportunità ») – tale divisione storica tuttavia tende a ridursi,
in considerazione delle modifiche normative apportate dai vari Stati membri a ben noti principi
europei, in particolare quelli della Convenzione di salvaguardia dei diritti dell’uomo”. Disponível
em: http://www.procuracassazione.it/procuragenerale-resources/resources/cms/documents/COE
_CM_20001006_Recommendation_2000_19_it.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.

798
ordinamenti che presentavano caratteristiche tipiche, di volta in volta, sia del sistema
inquisitorio, sia di quello accusatorio. (TONINI, 2010, p. 4).
O modelo inquisitorial, que agrupava funções em um mesmo órgão, era reco-
nhecido como mais eficiente no combate à criminalidade. Entretanto, não garantia
direitos individuais nem o devido processo legal, acarretando julgamentos parciais
e injustos, com meios de provas e penas cruéis, em violação aos direitos humanos.
Após a Revolução Francesa, a França importou o modelo inglês (inspirado nos
valores garantistas do modelo processual da antiga República Romana) (MEREU,
1988, p. 98-99). Naquela ocasião, o modelo acusatório colidiu com a mentalidade
dos operadores do Direito habituados a outro esquema cultural. O novo procedi-
mento também se mostrou ineficiente para lidar com a onda de crimes e desordens
que varreram a França completamente após o colapso da ordem social existente
(SPENCER, 2016, p. 603). Ocorreram, então, frenéticas alterações normativas por
quase vinte anos, que tentaram conciliar os dois diferentes modelos (inquisitório
e acusatório), até o advento da codificação napoleônica em 1808 (TONINI, 2010,
p. XXII) – code d’instruction criminelle de 1808 (AMODIO, 2003, p. 5) –, quando
foi elaborado o sistema misto, também conhecido como continental, com a divisão
de fases processuais e os ganhos na divisão das funções. O referido modelo, a um
só tempo, almejava a eficiência no combate ao crime e a salvaguarda de direitos
individuais em garantia ao contraditório. Entretanto, possuía graves deficiências:
Por trás de todos estava o Code Napoleón, de 17.11.1808 (em vigor desde
01.01.1811), pilotado por Jean-Jacques-Regis de Cambacérès, homem de habilida-
des políticas conhecidas mas, sobretudo, conhecedor das maneiras de como dobrar
o Imperador. Foi dele (depois arquichanceler do Império) a ideia de mesclar a
investigação preliminar colhida nos mecanismos inquisitoriais das Ordonnance
Criminelle de 1760, de Luís XIV, com uma fase processual no melhor estilo do
Júri inglês, então adotado pelos franceses, mutatis mutandis, por um Decreto de
16-29.09.1791 e combatido desde a adoção. Salvava-se, retoricamente, pela fase
processual, a democracia dos julgamentos, dando-lhes uma aparência acusatória
e, assim, um espetáculo com partes, acusação e defesa, debates orais e, de certa
forma, tão só a intervenção do juiz para o controle da sessão. Tudo era, contudo, só
retórica de um chamado processo misto. (COUTINHO, 2009, p. 110).
No referido contexto, o modelo misto passou a ser denominado modelo conti-
nental e se disseminou pela Europa, sendo certo que foi, inclusive, adotado pela Itália.
O traço marcante do referido modelo é a figura do juiz instrutor, com postura
ativa e poderes investigatórios na fase pré-processual. Ao evidenciar o declínio do
modelo inquisitório na Itália, que se utilizava do paradigma francês, a doutrina
comparatista destaca que, nos casos em que o juiz instrutor realizava atos de inves-
tigação mesmo quando o Ministério Público havia promovido o arquivamento,
ficava evidente a oposição ao princípio da presunção de inocência. A utilização da
polícia pelo juiz para realizar a investigação caracterizava, também, perfil bastante
semelhante ao do Ministério Público, cujos poderes foram indubitavelmente redu-
zidos. A redução desses poderes do Ministério Público e a exaltação e o predomínio
dos poderes do juiz investigador, que concentrou em si poderes investigativos, coer-
citivos e de escolha de procedimentos, repercutiram em evidente insuficiência no
plano das garantias processuais do réu, conforme a história recente demonstrou:

799
Nei casi poi in cui il giudice istruttore abbia dato avvio agli atti di istruzione dis-
sentendo dal pubblico ministero che abbia chiesto l’archiviazione, diventa chiaris-
simo come l’iniziativa si diriga in un senso decisamente accusatorio, all’opposto
cioè della convalida della presunzione di non colpevolezza. A ciò si aggiunga che
il giudice istruttore può servirsi della polizia giudiziaria per il compimento delle
indagini, in una posizione del tutto analoga a quella del pubblico ministero, i cui
poteri vengono indubbiamente ridotti. Si può ben dire, pur tenendo conto della
mutata struttura della fase degli atti di istruzione e del ridimensionamento dei
poteri del magistrato cui è affidato il compito di espletarli, che la perdita del pri-
mato del pubblico ministero comporta una esaltazione del ruolo e del predominio
del giudice istruttore che vede concentrarsi nelle sue mani i poteri investigativi,
coercitivi e di scelta del rito […] Questa concentrazione di potere non prelude ad
esiti soddisfacenti sul piano delle garanzie dell’imputato. (AMODIO, 2003, p. 114).
Notadamente, com o passar dos anos, o modelo continental também não se
mostrou suficientemente garantidor de direitos e liberdades individuais. As funções
de acusar e de julgar não se encontravam verdadeiramente separadas, com reper-
cussão evidente no direito ao contraditório e na imparcialidade24 do julgamento.
Tem-se como exemplo o Código Processual Penal Italiano de 1930 (Codice Rocco),
matriz ideológica do Código de Processo Penal Brasileiro de 1941.
Atenta a todos esses fundamentos, e com a chegada de novos horizontes culturais
em tema de direitos humanos, a Recomendação (2000)19 adotou como parâmetro
a ser perseguido a radical e intransponível separação dessas funções, estabelecendo
limites ao seu exercício. Segue importante excerto da mencionada recomendação:25
Relação entre o Ministério Público e os Juízes
17. Os Estados devem tomar todas as medidas necessárias para assegurar que o
estatuto legal, as competências e as funções do MP sejam consagrados na lei, para
que não possa haver qualquer dúvida legítima quanto à independência e impar-
cialidade dos juízes. Os Estados devem, em particular, garantir que uma pessoa
não possa desempenhar, ao mesmo tempo, as funções de membro do MP e de juiz.
Observa-se que a Recomendação (2000)19 almeja que os Estados-Membros esta-
beleçam por lei, de maneira clara e específica, o status jurídico, a competência e o
papel processual do Ministério Público, de maneira a não deixar dúvida sobre a efetiva
divisão de funções e, consequentemente, sobre a imparcialidade do órgão julgador.
Registre-se que tal parâmetro não se restringe à Europa. Em Congresso das
Nações Unidas26 para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes,
foram adotados princípios orientadores “relativos à função dos magistrados do
Ministério Público”:

24 “L’abolizione del giudice istruttore e della fase degli atti di istruzione riflette anzitutto un’esigenza
di semplificazione del processo, ma si rende al tempo stesso interprete della necessità di attuare
l’imparzialità operativa del magistrato investigatore, richiesta dalla presunzione di innocenza ed
oggi non garantita dal ruolo inquisitorio attribuito al giudice istruttore.” (AMODIO, 2003, p. 91).
25 Disponível em: https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent
?documentId=09000016804b9659. Acesso em: 19 jul. 2019.
26 Disponível em: http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/princorientadores-mp.pdf.
Acesso em: 18 jul. 2019.

800
10. As funções dos magistrados do Ministério Público deverão ser rigorosamente
separadas das funções de juiz. 11. Os magistrados do Ministério Público desempe-
nham um papel ativo no processo penal, nomeadamente na dedução de acusação e,
quando a lei ou a prática nacionais o autorizam, nos inquéritos penais, no controlo
da legalidade destes inquéritos, no controlo da execução das decisões judiciais e no
exercício de outras funções enquanto representantes do interesse público.
A justificativa para a adoção da intransponível separação de funções, em âmbito
global ou regional, guarda relação com o consenso sobre a necessidade de que o órgão
julgador seja, de fato, um órgão terceiro, garantindo um processo justo ao cidadão.27
É oportuno destacar que, pela Recomendação (2000)19, o Ministério Público tem
o dever de respeitar, rigorosamente, a independência e a imparcialidade do órgão
julgador. E, por seu turno, o órgão julgador também tem o dever de respeitar a inde-
pendência e a imparcialidade do Ministério Público, deixando de se imiscuir nas
suas funções em atenção ao status de representante da sociedade por ele encarnado.28
A Declaração de Bordéus29 sobre o Papel dos Juízes e dos Procuradores numa
Sociedade Democrática, da mesma forma, destaca a importância de juízes respeitarem
a independência dos procuradores no exercício de suas funções. Trata-se de um dever
recíproco, que decorre do necessário papel distinto e complementar entre juízes e pro-
curadores, como garantia de uma justiça imparcial e eficaz. Nesses termos, in litteris:
3. O papel distinto mas complementar dos juízes e dos procuradores é uma
garantia necessária para uma justiça equitativa, imparcial e eficaz. Se os juízes e
os procuradores devem ser independentes no exercício das suas funções, devem
igualmente sê-lo e aparecer assim igualmente uns frente aos outros.
O Ministério Público possui, ainda, deveres jurídicos de imparcialidade, de proteção
dos direitos humanos e das liberdades individuais, bem como de fazer aplicar a lei:30

27 Nesse sentido, segue interessante análise desenvolvida no bojo do disegno di legge costituzionale
n. 4275: “Il ruolo del pubblico ministero, anche in relazione all’esercizio dell’azione penale, è
stato ridisegnato con l’introduzione del processo accusatorio, sicché dovrebbe (tendenzialmente)
presentarsi come organo di ricerca (non di istruzione), di richiesta (non di decisione), di azione (e
non di giudizio).” […] “Soltanto tale separazione consente, in fatti, di realizzare un’effettiva terzietà
dell’organo giudicante – vale a dire, la sua equidistanza dalle parti e la parità sul piano processuale
dell’accusa e della difesa – offrendo al cittadino un processo effettivamente giusto”. Disponível em:
https://www.camera.it/_dati/leg16/lavori/stampati/pdf/16PDL0047600.pdf. Acesso em: 17 jul. 2019.
28 Nesse caso específico, optou-se por colacionar a versão em italiano, tendo em vista que ela
abarca as exposições de motivos: “19. I membri dell’ufficio del Pubblico ministero devono
rispettare rigorosamente l’indipendenza e l’imparzialità dei giudici […] E’ ovvio che esiste anche
una reciprocità ed i giudici devono rispettare i rappresentanti della società che sono i membri
del Pubblico ministero, e non immischiarsi nell’esercizio delle loro funzioni”. Disponível em:
http://www.procuracassazione.it/procuragenerale-resources/resources/cms/documents/COE_
CM_20001006_Recommendation_2000_19_it.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.
29 A referida declaração foi preparada em Bordéus (França), conjuntamente para os grupos de
trabalho do CCJE e do CCPE, e oficialmente adotada pelo CCJE e pelo CCPE em Brdo (Eslovénia)
em 18 de novembro de 2009. Disponível em: https://rm.coe.int/16807476ae. Acesso em: 19 jul. 2019.
30 O dever de imparcialidade, inclusive, com a obrigação de fornecimento de informações que sejam
favoráveis à defesa no bojo da relação processual, já é uma realidade até em países de common law. Assim,
mesmo no modelo adversarial inglês, o Crown Prosecution Service deve, necessariamente, disponibilizar,
antes do julgamento, todas as informações relativas à investigação, inclusive as que beneficiarão o acusado.

801
24. O Ministério Público deve, em especial, no exercício das suas funções: a.
Actuar de um modo justo, imparcial e objectivo; b. Respeitar e proteger os direi-
tos humanos, segundo a Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e
Liberdades Fundamentais; c. Zelar para que o sistema de justiça penal funcione
tão expeditamente quanto possível. [...] 27. O MP não deve iniciar ou prosse-
guir um procedimento criminal quando em instrução imparcial se revelar que a
acusação é infundada. [...] 29. O MP deve procurar salvaguardar o princípio da
igualdade de armas, em particular, revelando às outras partes – salvo quando
a lei estipular o contrário – qualquer informação que possua e possa afectar o
desenrolar de um processo equitativo.
Evidentemente, a consolidação de dois sujeitos processuais com deveres de
imparcialidade, de respeito aos direitos humanos e de aplicação da lei redunda no
controle recíproco com a elevação do patamar de proteção de direitos e garantias
do investigado e, também, do acusado. Em outros termos, a separação de funções
e o decorrente controle recíproco, consolidado na noção de complementaridade,
exigem o consenso de, no mínimo, duas autoridades públicas (requerimento e defe-
rimento) para que medidas que, excessivamente, interfiram ou comprimam direitos
fundamentais sejam adotadas. Registre-se que tal noção é justamente a ratio das
cláusulas constitucionais de reserva de jurisdição. Nessa lógica seguem os funda-
mentos da Recomendação (2000)19:31
Alla stregua dei giudici, i membri del Pubblico ministero hanno come mandato
quello di applicare e di fare applicare la legge: i primi in modo reattivo nelle
questioni di cui sono investiti; i secondi in maniera pro-attiva « vigilando » su
tale applicazione i giudici siedono e statuiscono. I membri dell’ufficio del Pubblico
ministero osservano, agiscono e investono il giudice.
Assim, verifica-se que o órgão judicial deve possuir um caráter reativo, enquanto
o órgão ministerial deve possuir um caráter pró-ativo. Em outros termos, a deter-
minação ex officio de medidas cautelares e de diligências investigativas pelo juízo, a
fortiori antes do oferecimento da ação penal, suprime o papel da acusação e retira,
em absoluto, qualquer hipótese de controle recíproco ou de complementaridade.
Evidentemente, ao invés de se concentrar atribuições em um único órgão, a
exemplo do que ocorria no modelo continental, o paradigma a ser seguido é o de
desconcentração. É oportuno destacar que, para a doutrina especializada, a noção
de separação de funções possui idêntica finalidade da separação dos poderes teori-
zada por Montesquieu, tendo em vista a premissa de que quando qualquer homem
detém poder, ele tende a abusar desse poder. Por conseguinte, para evitar o abuso,
faz-se mister que um poder freie outro poder:
Il sistema delineato, che può essere definito “separazione delle funzioni proces-
suali”, adempie alla medesima finalità che è svolta dal principio della separazione
dei poteri dello Stato; si tende ad evitare che l’uso di un potere degeneri in abuso.
Sul punto è sempre attuale l’insegnamento di Montesquieu: “è una esperienza
eterna che qualunque uomo, che ha un determinato potere, è portato ad abusarne
[…]. Perché non si possa abusare di un potere, bisogna che, per la disposizione delle
cose, il potere arresti il potere”. (TONINI, 2010, p. 8).

31 Nesse caso específico, optou-se por se colacionar a versão em italiano, tendo em vista que ela abarca
comentários. Disponível em: http://www.procuracassazione.it/procuragenerale-resources/resources/
cms/documents/COE_CM_20001006_Recommendation_2000_19_it.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.

802
Notadamente, a Recomendação (2000)19 acolhe a intransponível separação das
funções no item 17 acima transcrito ao estabelecer, ipsis litteris, a necessidade de garan-
tir que ninguém possa exercer funções de acusador e julgador ao mesmo tempo, ou
seja, requerer e deferir em um só ato atividade consubstanciada em atuação ex officio.
Veda-se, portanto, o denominado modelo aparentemente acusatório, que esta-
belece papéis processuais distintos (por vezes até em carreiras distintas, a exemplo
do que ocorre no Brasil), mas, na prática judicial e na legislação processual, concen-
tra (e confunde) funções em um desses papéis.
É interessante destacar que a Recomendação (2000)19 trata da separação de
funções com rigor, ao passo que permite que o órgão de acusação e o órgão julgador
pertençam a uma mesma carreira, in verbis:
18. Se o sistema legal assim o permitir, os Estados devem tomar medidas para
que a mesma pessoa desempenhe sucessivamente as funções de membro do MP e
de juiz, ou vice-versa. Tal alteração de funções só será possível a pedido expresso
da pessoa em causa e respeitando as garantias referidas.
Verifica-se, assim, a inexistência de óbice para que um juiz, posteriormente,
assuma a função de procurador ou que um membro do Ministério Público assuma
a função de órgão judicante no decorrer de sua carreira profissional, dentro de uma
mesma estrutura administrativa.32
O que se mostra absolutamente vedado é a mistura de papéis, com concentração de
funções, dentro de uma mesma relação processual. Do mesmo modo, a troca formal de
funções dentro de uma mesma relação processual também se mostra vedada, conforme
já decidiu a Corte Europeia de Direitos Humanos no caso Piersack contra a Bélgica.33
A mencionada inexistência de vedação para que a carreira de juízes e de pro-
curadores seja única reforça a conclusão de que a proteção dos direitos e garantias
individuais se faz com a divisão radical de funções dentro de um mesmo procedi-
mento ou de uma mesma relação processual, não sendo relevante para tal finalidade
a separação de eventual estrutura administrativa única da magistratura.
Notadamente, países como França, Bélgica, Itália e Portugal possuem estatuto
jurídico único de magistratura, que abrange juízes e procuradores. Por vezes,
a realização de um mesmo concurso público com mesmo curso de formação e a
existência de um conselho superior único justificam-se pela semelhança de qua-
lificação jurídica, responsabilidades, obrigações e vedações legais. O dever de
fazer cumprir a lei com imparcialidade e de fiscalização do respeito a direitos e
garantias individuais também estabelece uma cultura jurídica muito próxima. Os

32 Nesse caso específico, optou-se por colacionar a versão em italiano, tendo em vista que ela abarca
comentários: “La possibilità di « passerelle » fra le funzioni di giudice e quelle di Pubblico ministero
si basa sulla constatazione della complementarità dei mandati degli uni e degli altri, ma anche
sulla similitudine delle garanzie che devono essere offerte in termini di qualifica, di competenza e
di statuto”. Disponível em: http://www.procuracassazione.it/procuragenerale-resources/resources/
cms/documents/COE_CM_20001006_Recommendation_2000_19_it.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.
33 O referido julgado fixa a impossibilidade de um membro do Ministério Público que dirigiu a
investigação posteriormente atuar como julgador em Tribunal de Apelação. Disponível em: http://
www.cienciaspenales.net/files/2016/10/6caso-piersack-contra-belgica-derecho-a-un-proceso-
independiente-e-imparcial.pdf. Acesso em: 18 jul. 2019.

803
supramencionados fatores redundam em semelhantes remuneração, prerrogativas
e garantias constitucionais.
De qualquer modo, independentemente da divisão, ou não, em duas car-
reiras, a radical separação de funções entre o órgão acusador e o órgão julgador
também repercute em ganhos sob o ponto de vista da efetividade da justiça penal,
resguardando o Estado de Direito e, também, recrudescendo a proteção a direitos
humanos. Não se desconhece que o modelo inquisitório era reconhecido por seu
altíssimo grau de eficiência durante o período medieval. Entretanto, diante da atual
complexidade no tratamento de crimes financeiros, econômicos e de corrupção, a
atividade de investigação, e o seu enlace jurídico com a acusação, especialmente
em se tratando de organizações criminosas, tornou-se infinitamente mais complexa
e sofisticada. Assim, os ganhos com a especialização da acusação no desenvolvi-
mento de suas atividades típicas são evidentes e reconhecidos pela Recomendação
do Conselho da Europa ora analisada como medida apta a tornar a justiça criminal
mais eficiente.34 Tal paradigma, por óbvio, também repercute na maior eficiência
da prestação jurisdicional, liberando o órgão judicante para atender as demandas
sociais de maneira mais célere.
Ademais, para além do fato de a indevida concentração e mistura de funções se
mostrar ineficiente no panorama atual, ela pode, inclusive, ser prejudicial à estratégia
investigativa e acusatória. É que a existência de um órgão voltado especificamente
para a acusação garante maior expertise também na presidência ou na supervisão de
investigações durante a colheita de elementos probatórios, com ganhos em excelên-
cia na posterior atuação processual (constructing the case for the Prosecution).
No que diz respeito à relação do Ministério Público com a polícia, a
Recomendação (2000)19 não unifica um standard de subordinação, nem de

34 Nesse caso específico, optou-se por colacionar a versão em italiano, tendo em vista que ela abarca
comentários: “8. Per far fronte in modo ottimale alle forme di sviluppo della criminalità, in particolare quella
organizzata, la specializzazione dovrebbe essere considerata prioritaria, nell’ambito dell’organizzazione degli
uffici del Pubblico ministero, come pure in termini di formazione e di carriera. […] Tuttavia, per ragioni
di efficacia, la specializzazione è indispensabile nei settori altamente tecnici (ad esempio la delinquenza
economica e finanziaria) come pure nei settori attinenti alla grande criminalità organizzata. Si auspicano
quindi due tipi di specializzazione: – una, di tipo classico, che consiste nel prevedere in seno all’organizzazione
dell’ufficio del Pubblico ministero (nelle grandi Procure o a livello regionale, ovvero nazionale) squadre
di procuratori specializzati in determinati settori. A tal fine, la dissociazione dal grado e dalla funzione
può essere di natura tale da incoraggiare la specializzazione, come lo enuncia la Raccomandazione (95)
12, al punto 13, così formulato: “in particolare agevolando la specializzazione e dissociando, se del caso,
il grado e la funzione, « Occorre adoperarsi attivamente per pianificare lo svolgimento delle carriere, in
particolare fornendo al personale altre possibilità di acquisire nuove conoscenze teoriche e pratiche [...]
»; – l’altra, che andrebbe favorita, consiste nel creare, sotto l’egida di procuratori già specializzati, vere e
proprie squadre pluridisciplinari composte da persone con svariate competenze (ad esempio, per la lotta
contro la delinquenza finanziaria ed il riciclaggio: esperti contabili, doganieri, specialisti bancari...); tale
raggruppamento di competenze in un unico polo essendo uno dei requisiti per l’efficace intervento del
sistema. 9. L’organizzazione ed il funzionamento interno dell’ufficio del Pubblico Ministero, in particolare per
quanto riguarda la distribuzione delle cause e l’assegnazione dei fascicoli, devono corrispondere a condizioni
d’imparzialità ed essere guidate dal solo fine di una corretta applicazione dell’ordinamento penale, vigilando
sul livello di qualifica giuridica e di specializzazione da consacrare a ciascun caso”. Disponível em: http://
www.procuracassazione.it/procuragenerale-resources/resources/cms/documents/COE_CM_20001006_
Recommendation_2000_19_it.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.

804
autonomia, pela inexistência de consenso atual. O seu texto abraça ambos os
modelos, indicando medidas que elevariam a eficiência investigativa na hipótese de
subordinação (GIORDANO, 2006, p. 184) ou de controle da polícia pelo Ministério
Público, in verbis:
22. Nos países onde a polícia está subordinada ao Ministério Público, ou onde
as investigações policiais são conduzidas ou controladas por este, devem ser
tomadas todas as medidas para garantir que o mesmo possa: a. Dar instruções
adequadas à polícia com vista a uma eficaz aplicação de prioridades relativas à
política criminal, particularmente quanto a decidir sobre quais as categorias de
processos a serem tratados em primeiro lugar, os meios usados para a obtenção
de provas, o pessoal utilizado, a duração das investigações, a informação a for-
necer ao Ministério Público, etc. b. Em caso de pluralidade de órgãos de polícia
criminal, atribuir a investigação do inquérito ao órgão de polícia que considere
adequado; c. Efectuar avaliações e controlos na medida em que se tornem neces-
sários para assegurar o cumprimento das suas instruções e da lei; d. Sancionar
ou fazer sancionar, conforme o caso, as eventuais infracções.
Em que pese a inexistência de um modelo consensual, é certo que, mesmo nos
países em que não haja subordinação e controle da polícia pelo Ministério Público,
deve existir cooperação entre as referidas instituições:
22. Os Estados onde a Polícia é independente do Ministério Público devem tomar
todas as medidas para garantir que haja uma cooperação adequada e eficaz entre
o Ministério Público e a Polícia.
Em geral, é papel do Ministério Público examinar a legalidade das investigações poli-
ciais, sendo sua função controlar a forma como a polícia respeita os direitos humanos:35
21. Relação entre o Ministério Público e a Polícia: Em geral, o MP deve examinar a
legalidade das investigações policiais, o mais tardar, até ao momento de decidir se
um determinado procedimento criminal deve ter início ou ser prosseguido. A este
respeito, o MP deve controlar a forma como a polícia respeita os direitos humanos.
Conclui-se, de maneira evidente, pelo teor da Recomendação (2000)19, que
subordinação, controle ou colaboração com a polícia é tarefa típica do Ministério
Público, não sendo função do órgão julgador “conduzir” ou “supervisionar” qual-
quer espécie de investigação, devendo, pelo contrário, afastar-se dela. Notadamente,
a condução ou supervisão de investigação por órgão julgador remete à figura do juiz
instrutor, sendo fonte de potencial comprometimento de imparcialidade e de nítida
desvantagem em relação à defesa, o que está em absoluta desconformidade com os
parâmetros da Recomendação 2000(19).

4 ∙ O INQUÉRITO N. 4.781 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL


Colocados os standards da Recomendação 2000(19) do Conselho da Europa,
passa-se a contextualizar o caso concreto objeto de análise.
No dia 14 de março de 2019, o então presidente do Supremo Tribunal Federal,
ministro Dias Toffoli, por intermédio da Portaria GP n. 69, determinou a abertura

35 Disponível em: https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?


documentId=09000016804b9659. Acesso em: 19 jul. 2019.

805
do referido inquérito, com fulcro no art. 4336 e seguintes do Regimento Interno,
designando a “condução do feito” pelo ministro Alexandre de Moraes.
A referida instauração foi justificada pela necessidade de “velar pela intangibilidade
das prerrogativas do Supremo Tribunal Federal e dos seus membros”, bem como pela
“existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e
infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a hono-
rabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”.
Diante da referida instauração, a Rede Sustentabilidade, partido político, proto-
colizou em 23 de março de 2019 arguição de preceito fundamental (ADPF n. 572),
tendo em vista que “a amplitude do objeto da apuração, que sequer menciona arti-
gos do Código Penal, e a ausência de identificação dos fatos (delimitação objetiva) e
das pessoas a serem investigadas (delimitação subjetiva)”, entre diversas outras irre-
gularidades, caracterizariam a instauração do inquérito como ato inconstitucional.
Na petição inicial,37 foram apresentadas notícias da mídia no sentido de que “[a]
motivação é que ministros entendem que é preciso ter medidas concretas e rápidas em
relação ao que consideram ser conteúdo criminoso contra integrantes do Supremo,
algo que ultrapassa o limite da expressão de opinião”, que “[e]ntre possíveis alvos da
apuração estão procuradores da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba que teriam, no
entendimento de alguns ministros, incentivado a população a ficar contra decisões do
Supremo” e que “[o] inquérito não cita nomes, mas entre os alvos estão os procurado-
res Deltan Dallagnol e Diogo Castor, além de auditores da Receita Federal”.
O ato que instaurou o referido inquérito é visto pelo partido como ferramenta
para intimidar “como juiz e parte a um só tempo” todo aquele que ousar questionar
a adequação moral dos atos dos ministros. A petição faz, ainda, uma alusão ao AI-5,
em pleno regime democrático, tendo em vista a utilização do referido instrumento
para “escapar à censura da Opinião Pública”.
A arguição de descumprimento de preceito fundamental elenca diversos pontos
tidos por ilegais e inconstitucionais, dentre eles: 1) o fato de que o inquérito tra-
mita em sigilo absoluto, restando indisponível qualquer informação sobre crimes e
investigados, em violação à súmula vinculante do próprio STF;38 2) que o referido
inquérito apenas poderia ser instaurado – de maneira excepcional – para garantir
a ordem nas dependências do STF no caso de crime perpetrado no referido espaço
físico, a exemplo do que ocorre no Poder Legislativo; 3) que a referida investigação
não envolve autoridade ou pessoa sujeita à jurisdição criminal do STF, extrapolando
sua competência delimitada constitucionalmente; 4) que a investigação é lacunosa,

36 “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependências do Tribunal, o Presidente instaurará


inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a
outro Ministro”. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/
anexo/RISTF_ER_51_web.old.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.
37 Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/rede-adpf-inquerito-ameacas-ministros.pdf. Acesso
em: 16 jul. 2019.
38 Súmula Vinculante n. 14: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos
elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com
competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1230. Acesso em: 17 jul. 2019.

806
não estabelecendo sequer a territorialidade das infrações; 5) que foi criado um tri-
bunal de exceção pela criação de um “órgão de investigação criminal nacional”;
6) que em crimes contra a honra há necessidade de representação do ofendido,
sendo inviável ser sujeito passivo uma pessoa jurídica e, por conseguinte, uma corte
constitucional; 7) a inexistência de justa causa mínima para o início da investigação
(ausência de referência a fatos concretos), nos termos da jurisprudência do STF;
8) que ocorreu instauração de investigação ex officio por órgão julgador; 9) a ine-
xistência de livre distribuição, tendo em vista a designação de ministro específico
para a presidência da investigação em violação ao princípio do juiz natural; 10) que
ocorreu violação à separação dos poderes e do modelo acusatório, tendo em vista
que “o Ministério Público condiciona o direito de punir do Estado” e que o “Poder
Judiciário atua como órgão julgador do Estado”; 11) que ocorreu violação do modelo
acusatório, uma vez que o STF não pode atuar como órgão investigador; e 12) que o
STF não poderia criar regras – em seu Regimento Interno – para a própria atuação,
o que violaria a separação de poderes em relação ao Poder Legislativo, competente
para legislar em matéria processual penal.
Calha registrar que não se objetiva analisar todos os fundamentos da impugna-
ção, mas somente aqueles que tocam à separação das funções de acusar e de julgar,
como requisito de proteção de direitos humanos, sob a ótica dos standards europeus.
Sem qualquer juízo de valor sobre o caso concreto, cabe relembrar, a título histórico,
característica marcadamente presente na Santa Inquisição, que perseguia aqueles que
minavam a autoridade do papa e da igreja ao expressar seus pensamentos e opiniões:
“l’inquisizione ha il compito di perseguitare coloro che si distaccano dalla comunità
degli altri e minano l’autorità del papa e della chiesa” (CECCOLI, 1999, p. 16).
A referida perseguição estabelecia-se pela via da jurisdição universal, com
ausência de limites territoriais: “[g]iudice permanente, l’inquisitor si occupa solo
della haeretica pravitas (malvagità eretica) e ha giurisdizione universale (esercita
cioè il suo mandato al di là dei limiti ristretti della diocesi)” (CECCOLI, 1999, p. 15).
Em que pese não se pretender distinguir características do modelo inquisitó-
rio e do modelo acusatório, nem analisar os outros fundamentos da impugnação,
não se pode olvidar que a radical separação de funções, pelo respeito à noção de
complementaridade, para além de salvaguardar o devido processo legal, objetiva
evitar potenciais violações a outros direitos e garantias individuais, a exemplo do
direito à liberdade de expressão, à inviolabilidade do domicílio etc. Trata-se de regra
matriz, adotada pela Recomendação 19, que independe do modelo processual de
pertencimento, tendo em vista o reconhecimento de maior padrão de garantias
nessa configuração pelo seu viés não autoritário.39-40-41

39 A história não desconhece a propensão de regimes autoritários flertarem com a concentração das
funções de acusar e de julgar.
40 “Il processo penale europeo riflette l’ideologia del garantismo e nasce quindi dal proposito di arginare
e delimitare l’espandersi del principio di autorità negli eccessi motivati da un esasperato culto della
ricerca della verità.” (AMODIO, 2003, p. 82).
41 “L’uso della coercizione e della forza deve restare monopolio dello Stato. Il compito di accertare se un
imputato è responsabile di un reato è demandato al giudice. Le modalità di svolgimento del processo

807
No caso concreto, após o início do procedimento e sem a participação do Ministério
Público, restou noticiado42-43 que, no bojo do referido inquérito, foram implementa-
das “medidas cautelares de busca e apreensão (de computadores, ‘tablets’, celulares e
outros dispositivos eletrônicos) e de bloqueio de contas em redes sociais em face de
sete pessoas”, bem como medida cautelar, que determinou que “o site O Antagonista
e a revista Cruzoé retirem, imediatamente, dos respectivos ambientes virtuais a maté-
ria intitulada ‘O amigo do amigo de meu pai’ e todas as postagens subsequentes que
tratem sobre o assunto, sob pena de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais)”.
A respeito do ponto, remete-se ao que foi ressaltado em tópico anterior, no sen-
tido de que a determinação de medida cautelar pelo órgão julgador, sem o requeri-
mento do titular da ação penal, por si só, fere a separação das funções na lógica da
Recomendação (2000)19 do Conselho da Europa. Registre-se que nesse exato sen-
tido seguiu a Procuradoria-Geral da República,44 em petição datada de 16 de abril
de 2019, com fundamento no devido processo legal e no sistema acusatório estabele-
cido pela Constituição de 1988, ao promover o arquivamento do referido inquérito.
Na referida promoção, destacou-se que o órgão de acusação apenas obteve ciência
por veículos de comunicação a respeito do
[...] cumprimento de medidas cautelares penais sujeitas a reserva de jurisdição, sem
prévio requerimento nem manifestação determinada por lei desta titular constitu-
cional da ação penal, seja em relação aos parâmetros legais e objetivos que condi-
cionam o deferimento da medida cautelar, seja em relação ao controle externo da
atividade policial, que são atribuições constitucionais do Ministério Público.

penale non devono essere lasciate alla discrezione di quest’ultimo, bensì devono essere regolate dalla
legge […] Il diritto processuale penale regola l’accertamento di una responsabilità penale e, quindi,
prescrive i comportamenti processuali da tenere; i suoi precetti si rivolgono specificamente al giudice,
al pubblico ministero e agli altri soggetti del procedimento.” (TONINI, 2010, p. 1-2).
42 Em manifestação da Procuradoria-Geral da República nos autos da ADPF. Disponível em: http://
portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340066163&ext=.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.
43 Por intermédio do despacho de 16.4.2019, pelo qual o ministro Edson Fachin, relator da referida
ADPF, solicitou informações ao “relator do Inquérito Policial” a respeito de decisão que teria
determinado a retirada de matérias publicadas por veículos de imprensa, inclusive com imposição
de multa, tudo no bojo do referido inquérito. Segue excerto do despacho: “Sobreveio, além disso,
notícia de que, por decisão do relator do IP 4781, Min. Alexandre de Moraes, foi determinada a
retirada de matéria publicada no site ‘O Antagonista’ e na revista ‘Cruzoé’. O requerente sustenta
que essa decisão representa violação à liberdade de expressão e de informação, ofendendo, pois, o
art. 5º, V, X, XIV e art. 220, § 1º, da CFRB. Assim, eventuais notícias falaciosas não poderiam ser
objeto de censura prévia, mas deveriam ensejar o direito de resposta e à indenização. Reitera o
seu pedido de concessão de tutela de urgência para a suspensão da Portaria e, agora, do despacho
noticiado (eDOC 23), o qual teria, inclusive, imposto multa à revista (eDOC 25). Mare Clausum
Publicações Ltda noticia a propositura de Reclamação (eDOC 27) contra essa decisão por violação
ao decidido na ADPF n. 130 (e DOC 30)”. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.
asp?incidente=5658808. Acesso em: 16 jul. 2019.
44 Registre-se que, no Brasil, além de órgão de acusação, o Ministério Público possui a função de
custos iuris (fiscal do ordenamento jurídico), tendo a Constituição da República – em seu art.
127 – o incumbido da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis, o que reforça a necessidade de observância da complementaridade nas
medidas cautelares penais que interfiram em direitos fundamentais.

808
Ademais, a Procuradoria-Geral da República destacou que: 1) é função do
Ministério Público promover, privativamente, a ação penal, exercer o controle
externo da atividade policial e requisitar diligências investigatórias e instauração
de inquérito policial, e que essas funções só podem ser exercidas por integrantes
da carreira do Ministério Público (art. 129, incisos I, II, VII e § 2º, da Constituição
da República);45 2) o perfil da Constituição de 1988 é integrado por regras e princí-
pios que visam garantir segurança jurídica, assegurando credibilidade, confiança e
prevenindo arbitrariedade e excesso de concentração de poder, com um sistema de
distribuição constitucional de atribuições e de freios e contrapesos; 3) o devido pro-
cesso legal e o regime de leis adotados pela Constituição integram este sistema de
justiça, assegurando que a justiça será feita de acordo com o princípio da legalidade,
do contraditório, da ampla defesa e da imparcialidade do juízo; 4):
[e]m 1988, a Constituição brasileira substituiu o sistema penal inquisitorial pelo
sistema penal acusatório, alterando substantivamente a persecução penal no
Brasil. A legislação processual penal ainda não foi atualizada pelo Congresso
Nacional de modo a compatibilizar-se integralmente com este novo sistema,
embora algumas mudanças pontuais tenham sido feitas na lei ordinária. O sis-
tema anterior, de natureza inquisitorial, permitia que o juiz acumulasse funções
de acusação, interferindo no curso da investigação e na instrução penal durante
a ação penal [...];
5) o modelo acusatório não autoriza a condução de investigação penal pelo
Judiciário; 6) a competência criminal originária do STF é estabelecida em função dos
investigados e não das vítimas; 7) o arquivamento promovido pela Procuradoria-
-Geral da República é irrecusável pelo STF; 8) os elementos probatórios produzidos
por investigação com a concentração de funções da acusação na figura do juiz pos-
suem vícios insanáveis e serão desconsiderados na formação da opinio delicti.
Verifica-se que a fundamentação da Procuradoria-Geral da República se ajusta
perfeitamente às balizas da Recomendação do Conselho da Europa detalhadas no
tópico anterior.
Na arguição de descumprimento de preceito fundamental, a Procuradoria-
-Geral da República se manifestou no mesmo sentido, tendo acrescentado que o
ministro Alexandre de Moraes não aceitou a promoção de arquivamento sob a ale-
gação de que a Constituição de 1988 não estendeu a privatividade da investigação
criminal ao Ministério Público, tendo mantido a situação excepcional do art. 43 do
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF). Na referida manifestação
ministerial, registrou-se também que, na prática, tal posicionamento permite que
uma investigação “flua sem observância dos critérios constitucionais e legais e sem
utilidade, pois a PGR já promoveu seu arquivamento por vícios constitucionais”.
Sobre o ponto, é oportuno asseverar que as diretrizes europeias sobre a ética
e a conduta dos membros do Ministério Público (Diretrizes de Budapeste), que
levam em consideração, expressamente, a Recomendação (2000)19 do Conselho da
Europa e a Convenção Europeia de Direitos Humanos, demonstram a legitimidade

45 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:


17 jul. 2019.

809
e a correção da postura da Procuradoria-Geral da República ao desconsiderar os
elementos de prova colhidos no referido inquérito:
Inciso III. Quando os membros do Ministério Público tenham de agir no qua-
dro do exercício da acção penal, devem em todas as circunstâncias: […] Item
j. Recusar utilizar e valorizar um elemento de prova contra alguém, se houver
motivos razoáveis para crer que eles foram obtidos por meios ilegais que consti-
tuam uma grave violação dos direitos fundamentais do suspeito ou de terceiro,
salvo contra a pessoa que recorreu a esses métodos para os obter.46
Ademais, a Recomendação 2000(19) é expressa no sentido de ser reservado
apenas ao Ministério Público o controle da oportunidade sobre o arquivamento de
procedimento investigatório:47
Occorre quindi riservare al Pubblico ministero ed a lui solo, di valutare l’oppor-
tunità dell’archiviazione. Per gli ordinamenti che ammettono tale possibilità, il
rafforzamento delle garanzie esistenti è come minimo raccomandato mediante
l’istituzione di un controllo specifico a posteriori delle istruzioni date, al fine di
garantire la trasparenza.
Assim, não caberia ao Judiciário recusar um arquivamento promovido pelo
Ministério Público por não se tratar do exercício de jurisdição, em sentido técnico.
É oportuno destacar que estudo realizado pela Comissão Europeia para a
eficiência da justiça constatou que, em 45 dos 48 países comparados, se encontra
dentro das atribuições do Ministério Público (role and powers of public prosecutors)
a decisão sobre descontinuar um caso sem a necessidade de qualquer intervenção
judicial para tanto – “to descontinue a case without requiring a judicial decision”
(COUNCIL OF EUROPE, 2012, p. 237) –, o que evidentemente torna a justiça mais
eficiente, economizando tempo e recursos públicos em benefício de outros cidadãos
que dependem da prestação jurisdicional e aguardam longos períodos para tanto.
Ademais, é interessante anotar que legislações processuais penais que possuem
previsão da promoção de arquivamento do Ministério Público perante o Poder
Judiciário receberam, em verdade, herança de uma época em que o Ministério
Público fazia parte do Poder Executivo e não possuía independência.48 Tal instru-
mento era utilizado para evitar determinação advinda do governo no sentido de
bloquear investigações e processos em favor de detentores de poder político (gli
amici del partito al potere). Atualmente, contudo, tal prática se mostra anacrônica
(pela independência externa e interna do Ministério Público brasileiro), sendo
certo que no Brasil existe a possibilidade de arquivar procedimento investigatório
diretamente em instância superior do Ministério Público, o que também garante o

46 Disponível em: http://www.smmp.pt/wp-content/linhas_europeias1.pdf. Acesso em: 18 jul. 2019.


47 Nesse caso específico, optou-se por colacionar a versão em italiano, tendo em vista que ela
abarca exposições de motivos e comentários. Disponível em: http://www.procuracassazione.
i t / p r o c u r a g e n e r a l e - r e s o u r c e s /r e s o u r c e s /c m s /d o c u m e n t s /C O E _ C M _ 2 0 0 010 0 6 _
Recommendation_2000_19_it.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.
48 “Il pubblico ministero, dipendente dal ministro della Giustizia, poteva archiviare direttamente le
denunce senza chiedere più l’autorizzazione al giudice (a differenza di quanto avveniva col codice
del 1913). Tale novità, unita al monopolio dell’azione penale in favore del pubblico ministero,
permetteva al governo di bloccare fin dall’inizio il processo penale nei confronti degli “amici” del
partito al potere.” (TONINI, 2010, p. 26).

810
duplo controle sobre o referido ato. Da mesma forma, é possível recorrer adminis-
trativamente da decisão de arquivamento realizada em primeira instância, para sua
eventual revisão. Entretanto, no caso da Procuradoria-Geral da República, não há
possibilidade de revisão do ato diante da inexistência de órgão hierarquicamente
superior. Deve, de qualquer modo, o eixo decisório se manter no Ministério Público,
uma vez que não se trata de matéria afeta ao exercício da jurisdição. Irretocável,
por conseguinte, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de ser
irrecusável a promoção de arquivamento realizado pela Procuradoria-Geral da
República. Tal jurisprudência há de ser mantida e deve ser aplicada na espécie, uma
vez que atende à Recomendação (2000)19 do Conselho da Europa.
A respeito do ponto, é oportuno registrar que houve remessa de fração da
investigação contida no Inquérito n. 4.781 à primeira instância. O respectivo órgão
ministerial encampou a posição da PGR, promovendo o arquivamento perante o
juízo federal, que, por sua vez, não o homologou sob a justificativa de “subordina-
ção funcional deste juízo de primeiro grau às determinações do Supremo Tribunal
Federal”. Tal posicionamento judicial acarretou a remessa dos autos à 2ª Câmara de
Coordenação e Revisão do MPF, que, em sessão de revisão colegiada em outubro de
2019, sepultou os elementos probatórios tidos por viciados.49
Reitere-se que o controle do arquivamento pelo Ministério Público é paradigma
da Recomendação (2000)19 do Conselho da Europa, como visto acima, sendo meca-
nismo de garantia da separação das funções e, por via de consequência, de proteção
de direitos humanos, exatamente pela desconcentração do poder.
Essa separação de papéis, como objeto central da referida recomendação, é tida
por violada diante da abertura ex officio de investigação criminal, bem como sua
condução ou supervisão por órgão judicante, nos termos dos paradigmas estabele-
cidos pelo Conselho da Europa:50
Funções do Ministério Público 1. O “Ministério Público” é uma autoridade
pública encarregada de zelar, em nome da sociedade e no interesse público, pela
aplicação da lei, quando o incumprimento da mesma implicar sanção penal,
tendo em consideração direitos individuais e a necessária eficácia do sistema de
justiça penal. 2. Em todos os sistemas de justiça penal, o Ministério Público:
-decide se deve iniciar ou prosseguir um procedimento criminal; -exerce a acção
penal; -pode recorrer de todas ou algumas decisões. 3. Em determinados siste-
mas de justiça penal, o Ministério Público também: -aplica a política criminal
nacional, adaptando-a, quando for o caso disso, às realidades regionais e locais;
-conduz, dirige ou fiscaliza o inquérito; -zela para que as vítimas recebam ajuda
e assistência efectivas; -decide sobre alternativas ao procedimento criminal; fis-
caliza a execução das decisões dos tribunais; -etc [...].
Verifica-se, pela leitura do trecho acima, que é o Ministério Público o órgão
encarregado de decidir sobre o início ou o prosseguimento de um procedimento
criminal, cabendo ao referido órgão conduzir, dirigir ou fiscalizar a investigação.

49 Disponível em: https://www.oantagonista.com/brasil/camara-de-revisao-do-mpf-impoe-nova-


derrota-a-toffoli/. Acesso em: 23 nov. 2019.
50 Disponível em: https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?
documentId=09000016804b9659. Acesso em: 19 jul. 2019.

811
Dessa maneira, mostra-se imprópria a interferência de órgão julgador nessas ativi-
dades, que são típicas da acusação. É que a referida interferência configura exercício
contextual das funções de acusador e de julgador em um mesmo procedimento, em
violação ao item 17 (transcrito acima) da multicitada recomendação.
Ademais, o exercício contextual de ambas as funções não se ajusta aos deveres do
órgão julgador de respeito às funções ministeriais, bem como à imparcialidade e à
independência do órgão acusador. Tais deveres também são balizas da multicitada reco-
mendação, como descrito em tópico anterior, e possuem idêntico propósito de descon-
centração do poder estatal em benefício dos direitos humanos e de um processo justo.
Por fim, a Procuradoria-Geral da República51 acrescentou, ainda, o fato de a
situação ser inusitada com “[...] um agravante: além de investigador e julgador, o
Ministro Relator do Inquérito 4.781 é vítima dos fatos investigados”, e que “[n]ão há
como imaginar uma situação mais comprometedora da imparcialidade e neutrali-
dade dos julgadores”.
Evidentemente, o referido inquérito sob nenhum aspecto se ajusta aos standards
da Recomendação (2000)19 do Conselho da Europa.

5 ∙ CONCLUSÃO
Diante do que foi exposto, pode-se concluir que a Recomendação (2000)19 do
Conselho da Europa elucida o espectro de atribuições do Ministério Público no
processo penal e delineia standards internacionais que cristalizam a intransponível
separação das funções de acusar e de julgar como elemento estruturante do con-
ceito de rule of law previsto no Tratado de Londres. Tem-se como premissa o fato
de que o respeito às funções do Ministério Público garante um patamar superior de
proteção aos direitos humanos e liberdades individuais, em detrimento da vetusta
figura do juiz instrutor.
A Recomendação 2000(19) encontra-se absolutamente alinhada com a
Constituição Cidadã de 1988, concebida em um processo de redemocratização,
que corporificou valores democráticos e de respeito aos direitos e liberdades indivi-
duais. A Constituição de 1988 fez o seu papel e, por excesso de zelo, estabeleceu duas
estruturas administrativas distintas, com o nítido objetivo de garantir um processo
justo, por intermédio da separação das funções.
Entretanto, em que pese a assimilação pela nossa Lei Maior desses valores
garantistas advindos do modelo acusatório, muitos aspectos inquisitórios perma-
necem vivos em nossa praxe forense, como demonstrou o caso concreto analisado.
Notadamente, a confusão de funções em direção à concentração de poderes não se
ajusta aos parâmetros constitucionais nem internacionais de due process of law, que
inspiraram a noção de giusto processo em países de tradição romanística.
Assim, passados mais de trinta anos da Constituição da República, faz-se neces-
sário atentar para a maturação de standards internacionais relacionados às fun-
ções típicas do órgão de acusação e do órgão julgador, bem como aos seus limites,

51 Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340066163&ext=.pdf.


Acesso em: 19 jul. 2019.

812
como forma de evitar um retrocesso no sistema de freios e contrapesos (checks and
balances) estabelecidos pelo constituinte.
Notadamente, a radical separação de funções está presente em sociedades demo-
cráticas e em códigos processuais penais que observam o Direito Internacional dos
Direitos Humanos, justamente em decorrência de maiores garantias conferidas aos
cidadãos diante do arbítrio estatal. Trata-se de tendência de harmonização jurídica
nos ordenamentos nacionais e nos sistemas de proteção internacional de direitos
humanos, como demonstrado.
Desse modo, o Inquérito n. 4.781 traz consigo uma oportunidade de refle-
xão a respeito da legitimação do processo penal brasileiro, sendo certo que a
Recomendação (2000)19 do Conselho da Europa, por intermédio de seu elevado
consenso, prestígio e autoridade científica, pode enriquecer a interpretação domés-
tica, especialmente no que diz respeito às suas balizas de complementaridade entre
acusação (papel pró-ativo) e órgão julgador (papel reativo). Não se trata de algo
completamente novo, mas apenas de reafirmar a inércia da jurisdição, característica
imprescindível para se garantir a dialética, o contraditório e a ampla defesa na fase
processual, o que, a fortiori, se aplica no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

REFERÊNCIAS
ABADE, Denise Neves. A consagração do sistema acusatório com o afastamento do juiz
do inquérito policial. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 55, p. 12, jun. 1997.
ALSCHULER, Albert W. The prosecutor’s role in plea bargaining. The University of Chicago
Law Review, Chicago, v. 36, n. 1, p. 50-112, 1968. Disponível em: https://www.jstor.org/
journal/univchiclawrevi?refreqid=excelsior%3A1a28ad723d89e39160c2d04b88cfd21f.
Acesso em: 18 out. 2019.
AMODIO, Ennio. O modelo acusatório no novo Código de Proces­so Penal italiano.
Revista de Processo, São Paulo, n. 59, ano 15, p. 125­-155, jul./­set. 1990.
AMODIO, Ennio. Processo penale, diritto europeo e common law: dal rito inquisitorio al
giusto processo. Milano: Giuffrè, 2003.
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003.
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2016.
BECO, Gauthier de. Human rights monitoring mechanisms of the Council of Europe.
Oxon: Routledge, 2012.
BEGGIATO, Túlio Fávaro. O contemporâneo sistema acusatório e a velha sobreposição
de funções. In: TINÔCO, Lívia et al. (org.). Desafios contemporâneos do sistema
acusatório. Brasília: ANPR, 2018. p. 253-285.
BEGGIATO, Túlio Fávaro. Prosecutorial discretion: o anacronismo do mito da
obrigatoriedade da ação penal. In: VITORELLI, Edilson (org.). Temas atuais do
Ministério Público Federal. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2016. v. 1. p. 1027-1046.
BODART, Bruno Vinícius Da Rós. Inquérito policial, democracia e Constituição: modificando
paradigmas. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro, v. 3, p. 125-136, 2009.

813
BRAMBILLA, Elena. La giustizia intollerante: Inquisizione e tribunali confessionali in
Europa (secoli IV-XVIII). Roma: Carocci, 2006.
BREUER, Marten; SCHMAHL, Stefanie. The Council of Europe: its law and policies.
Oxford: Oxford University Press, 2017.
CALAMANDREI, Piero. Garanzie e limiti del potere giudiziario: relazioni e interventi
all’Assemblea costituente. Con i contributi di Paolo Grossi, Enzo Cheli, Guido Alpha.
Genova: Marietti 1820, 2016.
CARNELUTTI, Francesco. Lezioni sul processo penale. Roma: Dell’Ateneo, 1946. v. I.
CECCOLI, Paolo (org.). L’inquisizione Santa: dal medioevo all’età moderna. Cologna ai
Colli: Demetra, 1999.
CERQUA, Federico et al. Manuale teorico-pratico di diritto processuale penale. Milano:
Wolters Kluwer, 2018.
CHIAVARIO, Mario. Diritto processuale penale. 7. ed. Milano: UTET; Wolters Kluwer, 2017.
CHIAVARIO, Mario. La Convenzione Europea dei diritti dell’uomo nel sistema delle fonti
normative in materia penale. Milano: Giuffrè, 1969.
CHIAVARIO, Mario. O processo penal na Itália. In: DELMAS­­M ARTY, Mireille (org.).
Processo penal e direitos do homem: rumo à consciência europeia. Tradução de Fernando
de Freitas Franco. Barueri: Manole, 2004. p. 43-57.
CHIOVENDA, Giuseppe. La acción en el sistema de los derechos. Bogotá: Editorial
Temis, 1986.
COLACCI, Marino Aldo. Il sistema inquisitorio, accusatorio, misto e il processo penale
italiano. In: OPINIONS sur les thémes de XIII Corso di Studi del Centro Internazionale
Magistrati Luigi Severini. Perugia: Accademia Giuridica Umbra, 1966.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 9. ed. São
Paulo: Saraiva, 2015.
CONSIGLIO D’EUROPA. Il Consiglio d’Europa: 1949-1959. Strasburgo: Direzione dell’
informazione del Consiglio d’ Europa, 1959.
CONSIGLIO D’EUROPA. Ordinamento del Consiglio d’Europa: statuto e regolamenti.
Padova: Cedam, 1954.
CONSIGLIO D’EUROPA. Piccolo manuale del Consiglio d’Europa. 2. ed. Strasburgo:
Direzione dell’informazione del Consiglio d’Europa, 1954.
COUNCIL OF EUROPE. European judicial systems: efficiency and quality of justice. The
European Commission for the Efficiency of Justice. 4th Report. Strasbourg: Council of
Europe, 2012.
COUNCIL OF EUROPE. The role of public prosecution in the criminal justice system:
Recommendation Rec (2000) 19 and explanatory memorandum. Strasbourg: Council
of Europe, 2001.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os sistemas processuais
penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar
constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 46, n.
183, p. 103-115, jul./set. 2009.

814
DAVIGO, Piercamillo. Il pubblico ministero (Italian Edition). Bari: Editori Laterza, 2015.
Edição do Kindle.
DELLA VENERIA, Carlo. L’inquisizione medioevale: ed il processo inquisitorio. Milano:
Bocca, 1939.
DELMAS-MARTY, Meireille; SPENCER, John. European criminal procedures.
Cambridge studies in international and comparative law. Cambridge: Cambridge
University Press, 2005.
DEU, Teresa Armenta. Juicio de acusación, imparcialidad del acusador y derecho de
defensa. Ius et Praxis, Talca, v. 13, n. 2, p. 81-103, 2007. Disponível em: https://scielo.
conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-00122007000200005. Acesso em:
19 jul. 2019.
DEU, Teresa Armenta. Sistemas procesales penales: la justicia penal en Europa y América.
Madrid: Marcial Pons, 2012.
FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione: teoria del garantismo penale. Prefazione di
Norberto Bobbio. 11. ed. Roma-Bari: Laterza, 2009.
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Apontamentos sobre a prova produzida ou colhida
pelo Ministério Público em procedimentos in­vestigatórios criminais e no curso do processo
penal. In: SALGADO, Daniel de Resende; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de (org.). A prova
no enfrentamento à macrocriminalidade. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 53-­63.
GARLATI, Loredana (org.). L’inconscio inquisitorio: l’eredità del codice rocco nella
cultura processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010.
GERACI, Luigi. Il processo inquisitorio e il processo accusatorio: scelta di un sistema. In:
OPINIONS sur les thémes de XIII Corso di Studi del Centro Internazionale Magistrati
Luigi Severini. Perugia: Accademia Giuridica Umbra, 1966.
GERLI, Simonetta. Compendio di diritto dell’Unione Europea: aspetti istituzionali e
politiche dell’Unione. 18. ed. Napoli: Simone, 2018.
GIORDANO, Paolo Francesco. Le indagini preliminari: poteri e limiti del Pubblico
Ministero e della Polizia giudiziaria. 2. ed. Padova: CEDAM, 2006.
GREER, Steven et al. Human rights in the Council of Europe and the European Union:
achievements, trends and challenges. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.
HERRING, Jonathan. Criminal law. 7. ed. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2011.
HOSTETTLER, John. Fighting for justice: the history and origins of adversary trial.
Winchester: Waterside Press, 2006.
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Tradu­ção de Rosaura
Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ILLUMINATI, Giulio. The frustrated turn to adversarial procedure in italy (italian
criminal procedure code of 1988). Washington University Global Studies Law
Review, St. Louis, v. 4, p. 567-581, 2005. Disponível em: https://heinonline.org/
HOL/Page?lname=&public=false&collection=journals&handle=hein.journals/
wasglo4&men_hide=false&men_tab=toc&kind=&page=567. Acesso em: 14 out. 2019.
ITÁLIA. Il Consiglio d’Europa. Roma: Instituto Poligrafico dello Stato, 1971.

815
JACKSON, John. The effect of human rights on criminal evidentiary processes: towards
convergence, divergence or realignment? The Modern Law Review, London, v. 68, p. 737-
764, 2005.
KAFKA, Franz. O processo. Tradução e posfácio de Modesto Carone. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
KARASEK, Franz. Il Consiglio d’Europa: breve guida. Strasburgo: Consiglio d’Europa, 1983.
KUNKEL, Wolfgang. Linee di storia giuridica romana. Trad. Tullio e Bianca Spagnuolo
Vigorita. Napoli: E.S.I., 1973.
LACCHÈ, L. et al. Penale giustizia potere: metodi, ricerche, storiografie per ricordare
Mario Sbriccoli. Macerata: EUM, 2007.
LANGBEIN, John Harriss. The origins of adversary criminal trial. Oxford: Oxford
University Press, 2005.
LINDQUIST, Kim R. Lo inquisitivo hacia lo acusatorio: una odisea (manual práctico del
derecho comparado). Bogotá: Ediciones Jurídicas Andrés Morales, 2015.
LOPES JR., Aury. Por que o juiz não pode condenar quando o Ministério Público
pedir a absolvição? Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 5 dez. 2014. Disponível em:
http:www.conjur.com.br/2014-dez-05/limite-penal-juiz-nao-condenar-quando-mp-
pedir-absolvicao. Acesso em: 18 jul. 2019.
LUZZATTO, Giuseppe Ignazio. Il problema d’origine del processo extra ordinem.
Premesse di metodo: i cosiddetti rimedi pretori. Bologna: Pàtron, 2004.
MANZINI, Vicenzo. Trattato di diritto processuale penale italiano secondo il nuovo
codice: storia; principi fondamentali; la legge processuale penale; l’oggetto del processo
penale (connessione, azione civile, spese, ecc.). Torino: UTET, 1931. v. I.
MASSA, Carlo. Il principio dispositivo nel processo penale. Milano: Giuffrè, 1961.
MAZZA, Oliviero. L’illusione accusatoria: carnelutti e il modello dell’inchiesta
preliminare di parte. In: GARLATI, Loredana (org.). L’inconscio inquisitorio: l’eredità
del codice rocco nella cultura processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O sistema regional europeu de proteção dos direitos
humanos. Cadernos da Escola de Direito, Curitiba, v. 2, n. 13, p. 33-58, 2010. Disponível em:
https://portaldeperiodicos.unibrasil.com.br/index.php/cadernosdireito/article/view/
2684. Acesso em: 19 jul. 2019.
MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão preventiva na Lei 12.403/2011: análise de
acordo com modelos estrangeiros e com a Conven­ção Americana de Direitos Humanos.
Salvador: JusPodivm, 2016.
MEREU, Italo. Il metodo inquisitorio tra ideologia ed effettività nella dialettica del
potere dell’Europa continentale. In: Quarto Congresso internazionale della Società
italiana di storia del diritto: diritto e potere nella storia europea – atti in onore di Bruno
Paradisi. Firenze: Olschki, 1982. p. 1127-1147.
MEREU, Italo. Storia dell’intolleranza in Europa. Sospettare e punire: l’inquisizione
come modello di violenza legale. Milano: Bompiani, 1988.
MICHELE, Pifferi. Diritto comune e inquisitio ex officio. In: DIZIONARIO storico
dell’inquisizione. A cura di: Adriano Prosperi, John Tedeschi, Vincenzo Lavenia. Pisa:
Scuola Normale Superiore, 2010. v. I. p. 492-495.

816
MODONA, Guido Neppi. Diritto e giustizia penale nel periodo fascista. In: LACCHÈ, L.
et al. Penale giustizia potere: metodi, ricerche, storiografie per ricordare Mario Sbriccoli.
Macerata: EUM, 2007.
MODONA, Guido Neppi. Quali giudici per quale giustizia nel ventennio fascista. In:
GARLATI, Loredana (org.). L’inconscio inquisitorio: l’eredità del codice rocco nella
cultura processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010.
MOHR, Lawrence B. Organizations, decisions, and courts. Law and Society Review, Amherst,
v. 10, n. 4, p. 621-642, 1976. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/3053299?read-
now=1&seq=1#metadata_info_tab_contents. Acesso em: 18 out. 2019.
MORENO, Juan Damián. La decisión de acusar: un estudio a luz del sistema acusatório
inglês. Madri: Editorial Dykinson, 2014.
NESPRAL, Bernardo. El derecho romano en el siglo XXI: historia e instituciones – su
vigencia en las legislaciones modernas. Mendoza: Ediciones Jurídicas Cuyo, 2002.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 18. ed. rev. e ampl. São Paulo:
Atlas, 2014.
PERCHINUNNO, Vicenzo (org.). Percorsi di procedura penale: dal garantismo
inquisitorio a un accusatorio non garantito. Milano: Giuffrè, 1996. v. I.
PIETRINI, Stefania. Sull’iniziativa del processo criminale romano (IV-V secolo). Milano:
Giuffrè, 1996.
PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais
penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
RAIMONDI, Guido. Il Consiglio d’Europa e la Convenzione europea dei diritti dell’uomo.
Napoli: Editoriale Scientifica, 2005.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014.
SACCUCCI, Andrea. Profili di tutela dei diritti umani: tra Nazioni Unite e Consiglio
d’Europa. Padova: Cedam, 2002.
SANTALUCIA, Bernardo. Diritto e processo penale nell’antica Roma. 2. ed. Milano:
Giuffrè, 1998.
SANTIN, Valter Foleto. O Ministério Público na investigação criminal. 2. ed., rev. e ampl.
Bauru: Edipro, 2007.
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria,
história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
SPENCER, John. Adversarial vs inquisitorial systems: is there still such a difference? The
International Journal of Human Rights, London, v. 20, n. 5, p. 601-616, 2016. Disponível
em: https://www.doi.org/10.1080/13642987.2016.1162408. Acesso em: 27 out. 2019.
SPRACK, John. A practical approach to criminal procedure. 12. ed. Oxford: Oxford
University Press, 2008.
TAORMINA, Carlo. Diritto processuale penale: teorie generali. Torino: Giappichelli, 2014.
TAORMINA, Carlo. Procedura penale. Torino: Giappichelli, 2015.
TONINI, Paolo. Manuale di procedura penale. 11. ed. Milano: Giuffrè, 2010.

817
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado. 10. ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v. I.
UBERTIS, Giulio. Principi di procedura penal europea: le regole del giusto processo. 2.
ed. Milão: Raffaello Cortina, 2009.
WEDY, Miguel Tedesco; LINHARES, Raul Marques. Processo penal e história: a origem
dos sistemas processuais­penais acusatório e inquisitivo. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo, ano 23, n. 114, p. 379­-412, maio/jun. 2015.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro: parte geral. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
ZANGHÌ, Claudio. La protezione internazionale dei diritti dell’uomo. 2. ed. Torino:
Giappichelli, 2006.
ZANON, Giorgia. Le strutture accusatorie della cognitio extra ordinem nel principato.
Padova: CEDAM, 1998.
ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

818
O BRASIL DIANTE DO SISTEMA INTERAMERICANO
DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Vladimir Aras1

Sumário: 1 Introdução. 2 O sistema interamericano de direitos humanos. 3 A Organização


dos Estados Americanos. 4 Direitos humanos no plano regional: o sistema interamericano.
5 Os principais tratados do sistema interamericano. 6 Direitos humanos: órgãos e agências
do sistema OEA. 7 A jurisprudência interamericana. 8 O procedimento interamericano.
8.1 O procedimento perante a Comissão. 8.2 O procedimento perante a Corte.
9 Responsabilidade internacional do Estado brasileiro no sistema interamericano.
9.1 Dois casos relatados pela Comissão Interamericana em relação ao Brasil. 9.2 Oito casos
julgados pela Corte Interamericana contra o Brasil. 10 Conclusão.

1 ∙ INTRODUÇÃO
O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos desenvolveu-se
paralelamente ao regime protetivo universal e inspirou-se também no sistema
regional europeu de tutela dos direitos da pessoa humana.
Mais de meio século depois da conclusão da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, o continente ainda enfrenta velhos problemas atinentes a vio-
lações reiteradas de direitos da pessoa humana e se defronta com novos desafios do
direito internacional dos direitos humanos.
Neste artigo, examinaremos a estrutura desse sistema hemisférico, seus prin-
cipais tratados, o procedimento perante seus órgãos e os casos já julgados contra
o Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), além
de dois casos muito significativos apreciados pela Comissão Interamericana de
Direitos Humanos.
O Brasil tornou-se parte da Convenção Americana em 25 de setembro de 1992,
data do depósito do instrumento de adesão,2 e reconheceu a competência obriga-
tória da Corte Interamericana em 2002, retroagindo seus efeitos a dezembro de
1998.3 Nessas duas décadas, o Estado brasileiro foi levado diversas vezes às barras

1 Membro do Ministério Público desde 1993. Mestre e Doutorando em Direito. MBA em Gestão
Pública pela FGV. Professor de Direitos Humanos e de Direito Internacional da Pós-Graduação em
Direito Público da Escola Paulista de Direito. Professor de Processo Penal da UFBA. Professor da
LLM em Direito Penal Econômico do Instituto de Direito Público.
2 Em agosto de 2020, 24 Estados eram partes da Convenção Americana. Vide Organização dos
Estados Americanos. Informação Geral do Tratado B-32. Disponível em: https://www.oas.org/dil/
treaties_B-32_American_Convention_on_Human_Rights_sign.htm. Acesso em: 10 ago. 2020.
3 Vide o Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, que promulga a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, e o Decreto n. 4.463, de 8 de novembro de 2002, que promulga a Declaração de
Reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

819
do sistema interamericano, perante a Comissão Interamericana, em Washington,
ou perante a Corte IDH, em San José. Não temos nos saído bem como país nem
como sociedade. O exame dos relatórios e das sentenças relativos ao Brasil traz um
diagnóstico de um país racista, desigual, que ainda escraviza, violenta e mata seus
cidadãos ou que não provê justiça para que as vítimas de violações obtenham a
devida reparação.

2 ∙ O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS


O conjunto de documentos interamericanos de direitos humanos é complexo. Foi
inaugurado pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948;
pela Carta da Organização dos Estados Americanos, também de 1948; robustecido
em 1969 pela Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida igualmente
como Pacto de São José da Costa Rica, que entrou em vigor em 18 de julho de 1978;
e complementado pelo Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San
Salvador), de 1988, e pelo Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte (Protocolo de Assunção), de 1990.
Esses são os textos basilares (gerais) do sistema, que se completa com tratados e
declarações temáticas, voltados a direitos específicos ou a grupos determinados. A tal
conjunto convencional, juntam-se os precedentes da Corte Interamericana, suas opi-
niões consultivas, as recomendações da Comissão e os relatórios dos relatores especiais.

3 ∙ A ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS


Antes de prosseguir no exame do sistema interamericano de proteção da pessoa
humana, é preciso entender a estrutura e o funcionamento da Organização dos Estados
Americanos (OEA), pessoa jurídica de direito internacional público constituída na IX
Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá em abril de 1948.
A OEA conta com 35 Estados-Partes e tem sua sede em Washington, D.C. Seus
principais órgãos são a Assembleia Geral e a Secretaria Geral. Seu principal órgão
de direitos humanos é a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH),
criada em Santiago em 1959, aperfeiçoada pelo Protocolo de Buenos Aires de 1967,
com sede na capital norte-americana. A Corte Interamericana de Direitos Humanos
(Corte IDH), com sede na capital costarriquenha, não é um órgão da OEA. Foi
criada pela Convenção Americana de 1969 e tem sua competência nela descrita.

4 ∙ DIREITOS HUMANOS NO PLANO REGIONAL:


O SISTEMA INTERAMERICANO
O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos foi consolidado
pela Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, que entrou em vigor
internacional em 1978. Para o Brasil, esse tratado passou a vigorar em 1992, por
força do Decreto n. 678, de 6 de novembro daquele ano.
Firmada em abril de 1948, meses antes da Declaração Universal (DUDH), a
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (DADDH) não é um

820
tratado. Ramos (2019) a considera interpretação autêntica dos dispositivos genéri-
cos da Carta da OEA.
Na Opinião Consultiva OC-10/89, de 14 de julho, solicitada pela República
da Colômbia, a Corte interpretou a DADDH à luz do artigo 64 da Convenção
Americana. “O fato de a Declaração não ser um tratado não significa necessaria-
mente que se deva concluir que a Corte não pode emitir uma opinião consultiva
que contenha interpretações da Declaração Americana”.4 A Convenção Americana
menciona a Declaração no seu preâmbulo:
Considerando que esses princípios foram consagrados na Carta da Organização
dos Estados Americanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem e na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que foram reafir-
mados e desenvolvidos em outros instrumentos internacionais, tanto de âmbito
mundial como regional; [...].
Para a Corte, o artigo 29.d da Convenção, atinente a normas de interpretação,
autoriza a utilização da Declaração em sua atividade. De fato, nenhuma disposi-
ção da Convenção pode ser interpretada no sentido de “excluir ou limitar o efeito
que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e
outros atos internacionais da mesma natureza”. Assim, ao interpretar a Convenção
Americana, a Corte pode interpretar a Declaração.
No parecer consultivo OC-5/85, de 13 de novembro de 1985, a Corte
Interamericana registrou:
Deve-se enfatizar, também, que o artigo 29.d da Convenção Americana proíbe
toda interpretação que conduza a “excluir ou limitar o efeito que possam produ-
zir a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem...”, reconhecida
como parte do sistema normativo pelos Estados-Membros da OEA no artigo 1.2
do Estatuto da Comissão.5
Conforme a intepretação dos Estados-Membros, a Declaração Americana con-
tém e define os direitos humanos essenciais a que se refere a Carta da OEA, de
modo que “não se pode interpretar e aplicar a Carta da Organização em matéria de
direitos humanos, sem integrar suas normas pertinentes com as disposições corres-
pondentes da Declaração, como resulta da prática dos órgãos da OEA”.6
Para os Estados-Membros da Organização dos Estados Americanos, a
Declaração é o documento que determina “quais são os direitos humanos a que se
refere a Carta da OEA”. Além disso, os artigos. 1.2.b e 20 do Estatuto da Comissão
Interamericana determinam sua competência em relação aos direitos humanos
enunciados na Declaração. Ou seja, para tais Estados, “a Declaração Americana

4 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva OC-10/89.


Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2002/1263.pdf. Acesso em:
16 fev. 2020.
5 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva OC-5/85. Disponível
em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_05_esp.pdf. Acesso em: 10 fev. 2020.
6 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva OC-10/89.
Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2002/1263.pdf. Acesso em:
16 fev. 2020.

821
constitui, naquilo que é pertinente e em relação à Carta da Organização, uma fonte
de obrigações internacionais”.7
Segundo a OC-10/89, para os Estados-Partes da Convenção, a fonte concreta
de suas obrigações de proteger os direitos humanos é, em princípio, a própria
Convenção. Contudo, à luz artigo 29.d, o fato de os Estados estarem submetidos
principalmente à Convenção não os dispensa dos deveres previstos na Declaração,
tendo em conta o fato de serem membros da OEA.8
Aprovada em Bogotá em 1948, a DADDH tem 28 artigos, que se distribuem em
dois capítulos, um sobre os direitos, inclusive sociais e culturais, e outro sobre os
deveres humanos. Nela, os Estados americanos reconhecem que “os direitos essen-
ciais do homem não derivam do fato de ser ele cidadão de determinado Estado, mas
sim do fato dos direitos terem como base os atributos da pessoa humana”.
Por sua vez, a Carta da OEA lista como um dos princípios da organização os
“direitos fundamentais dos indivíduos”, mas não os define. Tais direitos foram
enunciados na DADDH e depois na CADH. Na Declaração são proclamados os
direitos à vida, à liberdade, à segurança e à integridade física; o direito à igualdade;
à liberdade religiosa e de culto; à liberdade de opinião, expressão e de difusão do
pensamento; o direito à honra e à vida privada; o direito à proteção da família; à
proteção da gestante, da maternidade e da infância; o direito de residência e trân-
sito; à inviolabilidade do domicílio; à inviolabilidade da correspondência; o direito à
saúde e ao bem-estar; o direito à educação; o direito à cultura; o direito ao trabalho;
o direito à previdência social; o direito de reconhecimento da personalidade jurí-
dica; o direito de acesso à justiça; o direito à nacionalidade; o direito de sufrágio e
participação; o direito de reunião e de associação; o direito de propriedade; o direito
de petição; de proteção contra prisão arbitrária; o direito ao devido processo. O
artigo XXVIII da Declaração pontua que “os direitos do homem estão limitados
pelos direitos do próximo, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem-
-estar geral e do desenvolvimento democrático”.
Considerando as disposições da Carta da OEA, da Declaração Americana de 1948 e
da Convenção Americana de 1969, podemos então divisar dois subsistemas interamerica-
nos, um mais abrangente, com 35 Estados-Partes, e outro mais restrito, com 24 membros.9
No seu preâmbulo, a Carta da OEA, promulgada no Brasil pelo Decreto n.
30.544/1952, declara que
o verdadeiro sentido da solidariedade americana e da boa vizinhança não
pode ser outro senão o de consolidar neste Continente, dentro do quadro das

7 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva OC-10/89. Disponível


em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2002/1263.pdf. Acesso em: 16 fev. 2020.
8 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva OC-10/89.
Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2002/1263.pdf. Acesso em:
16 fev. 2020.
9 A Venezuela denunciou a CADH em 10 de setembro de 2012, mas sua denúncia foi tornada sem
efeito em 15 de maio de 2019, com eficácia a partir de 31 de julho de 2019. Trinidad e Tobago
apresentou denúncia em 26 de maio de 1998. A denúncia é ato unilateral pelo qual um Estado se
desliga de uma convenção internacional.

822
instituições democráticas, um regime de liberdade individual e de justiça social,
fundado no respeito dos direitos essenciais do Homem.
No seu artigo 3.1, lê-se que os Estados americanos proclamaram os direitos funda-
mentais da pessoa humana, sem fazer distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo.
Também no artigo 106 da Carta da OEA, há regras relativas aos direitos huma-
nos, com referência à CIDH e à CADH:
Haverá uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos que terá por prin-
cipal função promover o respeito e a defesa dos direitos humanos e servir como
órgão consultivo da Organização em tal matéria.
Uma convenção interamericana sobre direitos humanos estabelecerá a estru-
tura, a competência e as normas de funcionamento da referida Comissão, bem
como as dos outros órgãos encarregados de tal matéria.
Portanto, pode-se dizer que os Estados-Partes da CADH também estão sujeitos ao
subsistema criado pela Carta da OEA e pela Declaração Americana, ao passo que haverá
países que somente se sujeitam a este último regime, por não serem partes da CADH.

5 ∙ OS PRINCIPAIS TRATADOS DO SISTEMA INTERAMERICANO


O principal tratado interamericano para a proteção da pessoa humana é a
CADH. Promulgado pelo Decreto n. 678/1992, o Pacto de São José da Costa Rica
pode ser assim analisado:

Capítulo Artigos Conteúdo


I 1º e 2º Deveres dos Estados-Partes
II 3º a 25 Direitos civis e políticos
III 26 Direitos econômicos, sociais e culturais
Suspensão de garantias. Regras de interpretação
IV 27 a 31
e aplicação do tratado.
V 32 Deveres das pessoas
VI a IX 33 a 73 Órgãos de proteção (o Comitê e a Corte)
Disposições finais sobre adesão, vigência,
X e XI 74 a 82 aplicação territorial, emendas, órgão
depositário e idiomas. Disposições transitórias.

No entanto, o conjunto convencional da região não se esgota na CADH e nos


seus dois protocolos adicionais. Como já vimos, a Carta da OEA e a DADDH têm
seu papel no sistema, assim como a Declaração Americana sobre os Direitos dos
Povos Indígenas, de 2016, aprovada pela Resolução AG 2888.
São três os tratados gerais e sete os tratados temáticos em matéria de direitos
humanos adotados no âmbito da Organização dos Estados Americanos, confor-
mando o regime regional de proteção. Sete dessas dez convenções estão em vigor
para o Brasil.

823
O atual bloco interamericano de convenções de direitos humanos começou a
ser ampliado em meados dos anos 1980, com a Convenção Interamericana para
Prevenir e Punir a Tortura, de 1985. O mais recente dos atos internacionais nessa
região é a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos das
Pessoas Idosas, de 2015, ainda não vigente.

Tratado Decreto
Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969 Decreto n.
678/1992
Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos
Decreto n.
em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de
3.321/1999
San Salvador), de 1988
Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos Decreto n.
Referente à Abolição da Pena de Morte, de 1990 2.754/1998
Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 1985 Decreto n.
98.386/1989
Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Decreto n.
Pessoas, de 1994 8.766/2016
Convenção Americana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Decreto n.
contra a Mulher (Convenção of Belém do Pará), de 1994 1.973/1996
Convenção Americana para a Eliminação de Todas as Formas de Decreto n.
Discriminação contra Pessoas com Deficiência, de 1999 3.956/2001
Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Assinada, mas
Intolerância, de 2013 não ratificada
pelo Brasil
Convenção Interamericana contra o Racismo, Discriminação Racial Assinada, mas
e Formas Conexas de Intolerância, de 2013 não ratificada
pelo Brasil
Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos Assinada, mas
das Pessoas Idosas, de 2015 não ratificada
pelo Brasil

6 ∙ DIREITOS HUMANOS: ÓRGÃOS E AGÊNCIAS DO SISTEMA OEA


Na temática dos direitos humanos, o sistema regional da OEA prevê a exis-
tência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e da Corte
Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
Criada em 1959, a CIDH tem sete membros eleitos pela Assembleia Geral, para
mandatos de quatro anos. Os comissários (ou comissionados) podem ser recondu-
zidos uma vez.
A Corte IDH foi estabelecida em 1979. É um órgão judicial autônomo do sistema
interamericano, exercendo competência contenciosa, por meio de sentenças, em
casos iniciados por Estados-Partes ou pela Comissão (CIDH). A Corte tem também

824
competência consultiva, mediante pareceres ou opiniões consultivas, expedidas por
solicitação dos Estados-Partes. Tem sete juízes, com mandatos de seis anos.
O sistema opera, ainda, em prol dos direitos humanos por meio de relatorias
especiais para vários temas (thematic rapporteurships). Atualmente há dez
rapporteurships, a saber: as relatorias sobre defensores de direitos humanos,
liberdade de expressão, direitos da mulher, direitos de afrodescendentes, direitos
da criança, direitos de povos autóctones, direitos de pessoas LGBTI, direitos de
migrantes, direitos de pessoas privadas de liberdade, e a relatoria sobre direitos
econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA).
Essas relatorias exercem o poder de constranger (power to embarass) os Estados
que violam direitos humanos. Esse método é também conhecido como naming and
shaming e tem larga utilização no direito internacional.
Segundo Piovesan (2018b, p. 107),
O sistema regional interamericano simboliza a consolidação de um “consti-
tucionalismo regional”, que objetiva salvaguardar direitos humanos no plano
interamericano. A Convenção Americana, como um verdadeiro “código intera-
mericano de direitos humanos”, [...] traduz a força de um consenso a respeito do
piso protetivo mínimo e não do teto máximo de proteção.
Neste contexto, explica a autora, os Estados-Partes do sistema aceitam o monitora-
mento internacional no tocante ao cumprimento dessa carta de direitos em seus territórios:
O Estado tem sempre a responsabilidade primária relativamente à proteção dos
direitos humanos, constituindo a ação internacional uma ação suplementar, adi-
cional e subsidiária. É sob esta perspectiva que se destaca a atuação da Comissão
e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. (PIOVESAN, 2018b, p. 107).

7 ∙ A JURISPRUDÊNCIA INTERAMERICANA
Já vimos que a Corte IDH profere sentenças (artigos 61-63 da CADH) e expede
opiniões consultivas (artigo 64). Nesse labor, influencia a ordem jurídica dos Estados-
-Partes da CADH. Segundo Mazzuoli (2019, p. 3), as sentenças da Corte “irradiam
efeitos para além dos Estados condenados, atingindo também terceiros Estados”. Disso
decorre a necessidade de os juízes nacionais observarem, nas suas decisões, as interpre-
tações conferidas pela Corte aos tratados de direitos humanos vigentes no continente.
A respeito da efetividade do sistema, Mazzuoli pontua que a jurisprudência da
Corte IDH favorece o fortalecimento do conceito de ordem pública internacional
relativa a direitos humanos e acrescenta que os Estados-Partes da Convenção não
podem deixar de cumpri-la. Diz também que, além das sentenças internacionais,
devem ser observadas as opiniões consultivas emanadas de tais cortes:
No âmbito interamericano, as opiniões consultivas da Corte Interamericana têm
aclarado sobremaneira como os Estados devem proceder em matéria de proteção
dos direitos humanos, de modo, inclusive, mais amplo que em outros contextos
regionais (MAZZUOLI, 2019, p. 2).
Portela (2019) lembra que as sentenças da Corte IDH provêm de um tribunal
internacional, e não de uma corte estrangeira. Por isso, dispensam homologação do
STJ. Assim, não é necessário seguir o procedimento previsto nos arts. 105, inciso
I, alínea ‘i’, e 109, inciso X, da Constituição, no Código de Processo Civil e no

825
Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça. As sentenças interamericanas
são automaticamente reconhecidas e imediatamente exequíveis na ordem jurídica
interna, à luz do art. 5º, § 1º, da Constituição, analogicamente.

8 ∙ O PROCEDIMENTO INTERAMERICANO
Já vimos que os dois principais órgãos do sistema interamericano de proteção da
pessoa humana são a Comissão (CIDH) e a Corte IDH.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) tem sede em San
José, na Costa Rica, e é o órgão máximo do sistema interamericano de proteção aos
direitos humanos. Tem competência jurisdicional. A Comissão Interamericana, por
sua vez, funciona em Washington, D.C. e é um órgão quase judicial.
A Comissão está vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA); a
Corte não é um órgão da entidade. Contudo, ambas cuidam de violações de direi-
tos fundamentais internacionalmente reconhecidos e interpretam e aplicam a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de
São José da Costa Rica de 1969. Como visto, esse tratado foi ratificado pelo Brasil e
entrou em vigor interno por força do Decreto n. 678, de 1992.
Cabe à Comissão receber notícias de violações a direitos humanos no continente
e examinar a admissibilidade dos casos que serão submetidos a julgamento pela Cor-
te. Pessoas naturais não podem processar diretamente Estados nacionais perante a Corte
Interamericana. No entanto, indivíduos podem dirigir-se diretamente à Comissão.
Já a Corte IDH tem competências contenciosa e consultiva, pois julga os casos
que lhe são apresentados pela Comissão ou por Estados e também profere opiniões
ou pareceres consultivos.

8.1 ∙ O PROCEDIMENTO PERANTE A COMISSÃO


A Comissão Interamericana (CIDH) tem competência para velar pelo cum-
primento dos direitos humanos previstos na Convenção Americana por todos os
Estados-Partes da Convenção de 1969, e também cumpre esse papel em relação a
todos os Estados-Membros da OEA no que tange ao respeito aos direitos previstos
na Declaração Americana de 1948.
Os Estados-Partes da Convenção aceitam automaticamente a competência da
Comissão para analisar comunicações, inclusive individuais.
Os sete membros da Comissão são eleitos pela Assembleia Geral da OEA para um
mandato de quatro anos, renovável. Cabe à CIDH fazer recomendações aos gover-
nos dos Estados-Partes; verificar o cumprimento da Convenção e da Declaração;
preparar estudos e relatórios sobre a situação dos direitos humanos no hemisfério;
apresentar seu relatório anual à Assembleia Geral da OEA etc.
A CIDH pode examinar comunicações de indivíduos, grupos de indivíduos
ou de entidades não governamentais (cláusula obrigatória) ou de Estados (cláusula
facultativa). O procedimento tem duas fases: I) a admissibilidade; II) o julgamento
após o contraditório. Pode haver solução consensual.
Há requisitos de admissibilidade a observar:

826
a. O prévio esgotamento dos recursos internos (eficazes), salvo em caso de exces-
siva e injustificada demora ou insuficiência do devido processo legal. Este requi-
sito dá a nota de subsidiariedade dos sistemas internacionais de proteção dos
direitos humanos. Só após a passagem da causa pelo regime nacional pode-se
pretender a responsabilização internacional do Estado; e
b. A inexistência de litispendência internacional, isto é, o tema objeto da comuni-
cação não pode estar pendente de decisão noutro foro internacional.
Uma vez admitida a comunicação, a Comissão analisará os fatos, podendo rea-
lizar uma investigação. Daí se dizer que a Comissão tem papel semelhante ao do
Ministério Público. Procede-se então à tentativa de conciliação, que, uma vez alcan-
çada, encerra o procedimento. Não havendo solução amistosa num caso concreto,
a CIDH emite um relatório, que pode conter recomendações ao Estado infrator, o
qual deverá cumpri-las no prazo de três meses. O relatório é enviado à Secretaria
Geral da OEA. Não havendo resolução, a Comissão enviará o caso à Corte IDH para
julgamento, salvo posição contrária da maioria absoluta dos membros da própria
CIDH (RAMOS, 2016).
O procedimento das comunicações estatais é facultativo e só pode ocorrer se
ambos os Estados reconhecerem a competência da Comissão para examiná-las. Ou
seja, há dependência da reciprocidade.
Em situações de gravidade e urgência, a Comissão pode solicitar, de ofício, ao
Estado infrator a adoção de medidas cautelares. A Comissão pode também requerer
à Corte a aplicação de medidas provisórias em casos ainda não submetidos à apre-
ciação da Corte (RAMOS, 2016).
No sistema interamericano, há dois tipos de relatores: os relatores por país, que se
ocupam do conjunto de situações de cada um dos Estados-Membros, genericamente,
e os relatores temáticos, que atualmente são dez, como já visto. Os casos concretos na
CIDH normalmente não têm relatores porque as decisões, mesmo as cautelares, são
tomadas de forma colegiada (per curiam). Já os debates são in camera e normalmente
é divulgada a vontade conjunta, e não a posição deste ou daquele comissionado. O
Regulamento da CIDH disciplina o procedimento, e várias tarefas preparatórias são
exercidas pela secretaria executiva. Eventualmente, algumas tarefas podem ser des-
tacadas para grupos, como a admissibilidade, conforme artigo 35 (RAMOS, 2016).

8.2 ∙ O PROCEDIMENTO PERANTE A CORTE


Diferentemente do sistema europeu, no regime interamericano não há jus
standi. Somente a Comissão e os Estados-Partes da Convenção podem apresentar
casos à Corte IDH, em San José (artigo 61 da Convenção).
Ensina Piovesan (2018b, p. 107) que, em 2001, a Corte revisou suas Regras
de Procedimento para assegurar a representação das vítimas perante a Corte de
forma mais efetiva:
Ainda que indivíduos e ONGs não tenham acesso direto à Corte, se a Comissão
Interamericana submeter o caso a esta, as vítimas, seus parentes ou representan-
tes podem submeter de forma autônoma seus argumentos, arrazoados e provas
perante a Corte.

827
Os artigos 25 e 44 do Regulamento da Corte (2009) admitem a participação de
vítimas, seus familiares ou representantes e de amici curiae no procedimento.
Como visto, a Corte tem competência consultiva e contenciosa. Seus sete juízes,
eleitos pelos Estados-Partes do Pacto de San José, julgam Estados por violação à
Convenção Americana de Direitos Humanos, desde que estes tenham aceitado sua
competência contenciosa.
Na competência consultiva, a Corte interpreta a Convenção Americana e os
tratados de direitos humanos vigentes para os Estados interamericanos. Segundo
Piovesan (2018a, p. 162), “[a] Corte pode ainda opinar sobre a compatibilidade de
preceitos da legislação doméstica em face dos instrumentos internacionais, efe-
tuando, assim, o ‘controle de convencionalidade das leis’”. Esta jurisdição pode ser
provocada por qualquer Estado-Membro da OEA ou pela Comissão Interamericana
ou por outro órgão da OEA.
Há importantes opiniões consultivas da Corte sobre os mais variados temas.
Algumas são listadas a seguir, todas mencionadas por Piovesan (2018a, p. 161-164).
Na OC-18/02, a pedido do México, a Corte discutiu os direitos de migrantes indo-
cumentados. Já na OC-03/83 tratou-se da aplicação da pena de morte na Guatemala.
Na OC-08/87, com base no artigo 27 da Convenção, a Corte considerou o habeas
corpus uma garantia processual insuscetível de suspensão pelos Estados-Partes. Na
OC-16/99, a Corte firmou o entendimento de que ofende o devido processo legal a
não notificação de preso estrangeiro do seu direito a assistência consular, previsto
na Convenção de Viena de 1963.
Na competência contenciosa, a Corte resolve controvérsias relativas à inter-
pretação ou à aplicação da Convenção, ou seja, decide casos concretos, nos limi-
tes do artigo 62, que prevê a convenção de aceitação da competência da Corte.
Doutrinadores como Piovesan e Cançado Trindade sustentam que esse dispositivo
é um anacronismo e que a jurisdição contenciosa deveria ser automática para todos
os Estados-Partes da Convenção (PIOVESAN, 2018a).
Se julgar procedente uma demanda, a Corte determinará medidas reparatórias
e compensação à vítima, caso em que a sentença deve valer como título executivo
judicial no plano interno do Estado sentenciado. As decisões da Corte IDH são vin-
culantes e devem ser cumpridas de boa-fé.
O órgão judiciário interamericano não funciona como instância de revisão de
decisões judiciais dos Estados-Partes. No entanto, a Corte IDH examina sua compati-
bilidade com os tratados que lhe cumpre interpretar e com sua própria jurisprudência.
Pode assim declarar a inconvencionalidade de decisões judiciais domésticas e de leis
nacionais. Pode também declarar a obrigação de legislar para cumprimento de obriga-
ções internacionais. Assim, as condenações não se limitam ao pagamento de indeni-
zações, podendo haver condenação ao cumprimento do dever de investigar, processar
e julgar em seus próprios tribunais os autores de violações aos direitos humanos.
A supervisão da execução das sentenças da Corte cabe a ela própria e à
Assembleia Geral da OEA. Contudo, não existe um mecanismo específico.
Internamente, tampouco há no Brasil uma lei que discipline o cumprimento de
recomendações, medidas provisórias e sentenças do sistema interamericano ou do

828
sistema onusiano. Em geral, dá-se cumprimento administrativamente ou mediante
a aprovação de decretos ou leis casuísticas.

9 ∙ RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL
DO ESTADO BRASILEIRO NO SISTEMA INTERAMERICANO
A responsabilidade internacional dos Estados é regulada pelo direito internacio-
nal. Haverá o dever de reparar sempre que o Estado incorra em ato ilícito interna-
cional que lhe possa ser imputado e do qual decorra um dano a outrem, que pode
ser outro Estado, uma organização internacional, uma pessoa física ou jurídica.
Os diferendos internacionais devem ser resolvidos por fins pacíficos, tal como
preconiza a Carta das Nações Unidas, de 1945. Um desses meios é o mecanismo
jurisdicional, de que são exemplos a Corte Internacional de Justiça, em Haia, e a
Corte Interamericana, em San José.
O Estado pode ser responsabilizado por atos de seus agentes ou funcionários,
ainda que temporários. Mas um Estado também pode ser responsabilizado por atos
de terceiros, particulares.
41. [...] É pois claro que, em princípio, é imputável ao Estado toda violação aos
direitos reconhecidos pela Convenção realizada por um ato do poder público ou
de pessoas que atuam se beneficiando dos poderes que ostentam por seu caráter
oficial. Não obstante, não se esgotam ali as situações nas quais um Estado está
obrigado a prevenir, investigar e sancionar as violações aos direitos humanos,
nem as hipóteses em que sua responsabilidade pode ver-se comprometida pelo
efeito de uma lesão a esses direitos. Com efeito, um fato ilícito, violatório dos
direitos humanos que inicialmente não resulte imputável diretamente a um
Estado, por exemplo, por ser obra de um particular ou por não se haver identi-
ficado o autor da transgressão, pode acarretar a responsabilidade internacional
do Estado, não por esse fato em si mesmo, mas sim pela falta da devida diligência
para prevenir a violação ou para tratá-la nos termos requeridos pela Convenção.10

9.1 ∙ DOIS CASOS RELATADOS PELA COMISSÃO INTERAMERICANA


EM RELAÇÃO AO BRASIL
O Brasil foi responsabilizado internacionalmente diversas vezes pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos. Devem ser mencionados o Caso Carandiru
vs. Brasil, de 1992, que mereceu decisão da Comissão no ano 2000;11 o Caso Maria
da Penha Fernandes, de 1983, decidido pela CIDH em 2001; o Caso Jailton Neri da
Fonseca, de 1992, decidido pela Comissão em 2004; o Caso dos Meninos Emasculados
do Maranhão, que ocorreu entre 1991 e 2003, e foi decidido por solução amistosa
em 2005; e o Caso das Comunidades Indígenas da Bacia do Rio Xingu (Caso Belo
Monte), no qual houve a concessão de medida cautelar contra o Brasil em 2011.

10 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Velásquez Rodriguez vs.


Honduras. Sentença de 29 de julho de 1988. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_04_por.pdf. Acesso em: 10 jul. 2020.
11 Quase trinta anos depois do evento no qual 111 presos foram executados, a impunidade continua.

829
No entanto, dois casos merecem ser destacados entre os que tramitaram na
Comissão Interamericana, em Washington, relacionados ao Brasil: um sobre
racismo e outro sobre trabalho escravo, analisados a seguir.

9.1.1 ∙ O CASO JOSÉ PEREIRA VS. BRASIL (2003)


O ano de 2003 foi proveitoso para a luta contra a escravidão contemporânea.
Foi quando o governo federal lançou o Primeiro Plano Nacional de Enfrentamento
ao Trabalho Escravo e quando se modificou a redação do art. 149 do Código Penal,
para aperfeiçoar a descrição típica. Foi também em 2003 que o Caso José Pereira
foi apreciado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Naquele ano,
ocorreu a formalização do Acordo de Solução Amistosa entre o Estado brasileiro
e as organizações não governamentais peticionárias no Caso 11.289 (José Pereira
Ferreira vs. Brasil), perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.12
Em 1989, aos dezessete anos, José Pereira foi escravizado na Fazenda Espírito
Santo no interior do Pará, onde outros sessenta brasileiros também eram mantidos
em condições análogas à de escravos. Ao tentar fugir com um companheiro ape-
lidado de “Paraná”, os dois jovens foram fuzilados por funcionários da fazenda.
Somente José Pereira sobreviveu, e seu caso foi levado ao sistema interamericano
pelo Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL) e pela Human Rights Watch.
Alegou-se que o Brasil violou os artigos 1 (obrigação de respeitar os direitos), 6
(proibição da escravidão e da servidão); 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judi-
cial) da Convenção Americana de Direitos Humanos, assim como a Declaração
Americana sobre Direitos e Deveres do Homem, de 1948.
Para encerrar o caso, o Estado brasileiro firmou um acordo em Brasília, em 18
de setembro de 2003, no qual reconheceu sua responsabilidade internacional e se
comprometeu a cumprir várias obrigações, como proceder ao julgamento e à puni-
ção dos responsáveis, adotar medidas pecuniárias de reparação,13 de prevenção e de
fiscalização e punição ao trabalho escravo, assim como se obrigou a implementar
campanhas de conscientização contra o trabalho escravo. Do Acordo de Solução
Amistosa, aprovado pela CIDH em 24 de outubro de 2003, constou, quanto ao reco-
nhecimento da responsabilidade pelo Brasil, que:
4. O Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade internacional em relação ao
caso 11.289, embora a autoria das violações não seja atribuída a agentes estatais, visto
que os órgãos estatais não foram capazes de prevenir a ocorrência da grave prática
de trabalho escravo, nem de punir os atores individuais das violações denunciadas.
5. O reconhecimento público da responsabilidade do Estado brasileiro com relação à
violação de direitos humanos terá lugar durante a solenidade de criação da Comissão

12 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório 95/93, de 24 de outubro


de 2003, Caso 11.289. Solução Amistosa. José Pereira vs. Brasil. Disponível em: https://cidh.oas.org/
annualrep/2003port/Brasil.11289.htm. Acesso em: 10 jul. 2020.
13 Para isto, foi aprovada a Lei n. 10.706, de 30 de julho de 2003. Com base no seu art. 1º, ficou a
União autorizada a conceder indenização de R$ 52.000,00 (cinquenta e dois mil reais) a José Pereira
Ferreira, “por haver sido submetido à condição análoga à de escravo e haver sofrido lesões corporais,
na fazenda denominada Espírito Santo, localizada no Sul do Estado do Pará, em setembro de 1989”.

830
Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo-CONATRAE (criada pelo Decreto
Presidencial de 31 de julho de 2003), que será realizada no dia 18 de setembro de 2003.
6. As partes assumem o compromisso de manter sigilo sobre a identidade da
vítima no momento da solenidade de reconhecimento de responsabilidade do
Estado e em declarações públicas sobre o caso.14
O Brasil também se obrigou a aperfeiçoar a legislação nacional contra o trabalho
escravo, o que se alcançou mediante a sanção da Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de
2003. Esse diploma adveio do PLS 161/2002, que, uma vez sancionado, modificou a
redação do art. 149 do Código Penal.15 No item IV do acordo se lê:
10. A fim de melhorar a Legislação Nacional, que tem como objetivo proibir
a prática do trabalho escravo no país, o Estado brasileiro compromete-se a
implementar as ações e as propostas de mudanças legislativas contidas no Plano
Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, elaborado pela Comissão
Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, e iniciado pelo
Governo brasileiro em 11 de março de 2003.
11. O Estado brasileiro compromete-se a efetuar todos os esforços para a aprovação
legislativa (i) do Projeto de Lei nº 2130-A, de 1996, que inclui, entre as infrações
contra a ordem econômica, a utilização de mecanismos “ilegítimos da redução dos
custos de produção como o não pagamento dos impostos trabalhistas e sociais,
exploração do trabalho infantil, escravo o semiescravo”; e (ii) o Substitutivo apre-
sentado pela Deputada Zulaiê Cobra ao Projeto de Lei nº 5.69316 do Deputado
Nelson Pellegrino, que modifica o artigo 149 do Código Penal Brasileiro.
12. Por último, o Estado brasileiro compromete-se a defender a determinação
da competência federal para o julgamento do crime de redução análoga à de
escravo, com o objetivo de evitar a impunidade. [...]
16. O Estado brasileiro compromete-se a diligenciar junto ao Ministério Público
Federal, com o objetivo de ressaltar a importância da participação e acompanhamento
das ações de fiscalização de trabalho escravo pelos Procuradores da República.17
A obrigação assumida pelo Brasil de sustentar a competência federal para o jul-
gamento do crime do art. 149 do Código Penal acentua o ônus do Ministério Público
Federal, da Polícia Federal, da Justiça Federal e dos Tribunais Regionais Federais
no tocante à implementação da legislação contra o tráfico humano e o trabalho
escravo. Como exemplo, no RHC 58.160/SP, a 5ª Turma do Superior Tribunal de
Justiça decidiu que a competência era federal, desde o advento da Lei n. 10.803/2003,
que alterou o art. 149 do Código Penal, quando se começou a entender que “o bem

14 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório 95/93, de 24 de outubro


de 2003, Caso 11.289. Solução Amistosa. José Pereira vs. Brasil. Disponível em: https://cidh.oas.org/
annualrep/2003port/Brasil.11289.htm. Acesso em: 10 jul. 2020.
15 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório 95/93, de 24 de outubro
de 2003, Caso 11.289. Solução Amistosa. José Pereira vs. Brasil. Disponível em: https://cidh.oas.org/
annualrep/2003port/Brasil.11289.htm. Acesso em: 10 jul. 2020.
16 Esse projeto foi apensado ao PL n. 7492/2002, que, na origem, era o PLS n. 161/2002, do então senador
Waldeck Ornelas. O PL n. 7492/2002 resultou na Lei n. 10.803/2003, que alterou o art. 149 do CP.
17 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório 95/93, de 24 de outubro
de 2003, Caso 11.289. Solução Amistosa. José Pereira vs. Brasil. Disponível em: https://cidh.oas.org/
annualrep/2003port/Brasil.11289.htm. Acesso em: 10 jul. 2020.

831
jurídico por ele tutelado deixou de ser apenas a liberdade individual, passando a
abranger também a organização do trabalho, motivo pelo qual a competência para
processá-lo e julgá-lo é, via de regra, da Justiça Federal”.18
O Caso José Pereira é considerado um marco regional porque foi a primeira vez
que o Brasil reconheceu voluntariamente sua responsabilidade internacional perante
o sistema interamericano. Também foi a primeira vez na qual um Estado da OEA
foi considerado responsável por racismo institucional. O caso não foi encaminhado
à Corte Interamericana para decisão porque, tendo ocorrido em 1997, não estava
sujeito à jurisdição obrigatória da Corte, válida para o Brasil apenas a partir de 1998.
Digno de nota que, desde 2003, não só por vontade política autônoma do Estado
brasileiro mas também em função de sua responsabilização internacional no Caso
José Pereira, o marco institucional e normativo do País para o enfrentamento ao
trabalho escravo e ao tráfico humano foi sensivelmente aperfeiçoado. Exemplos
disto são a criação da Lista Suja de Trabalho Escravo, em 2004; a apresentação do II
Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, em 2008; a promulgação da
Emenda Constitucional n. 81/2014, sobre expropriação de propriedades usadas em
trabalho escravo; e a sanção da Lei n. 13.344/2016 do tráfico humano.
É preciso, todavia, enfrentar o tema também do ponto de vista processual, já que
rotineiramente a prescrição tem sido invocada para impedir a tramitação de ações
penais como a proposta no Caso José Pereira.19 Como se viu no Caso Trabalhadores
da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, de 2016, o crime de escravidão contemporânea é
imprescritível, segundo o direito internacional.
412. A Corte já indicou que a prescrição em matéria penal determina a extinção da
pretensão punitiva em virtude do transcurso do tempo e, geralmente, limita o poder
punitivo do Estado para perseguir a conduta ilícita e sancionar seus autores. Esta é uma
garantia que deve ser devidamente observada pelo julgador para todo acusado de um
delito. Sem prejuízo do anterior, a prescrição da ação penal é inadmissível quando assim
o dispõe o Direito Internacional. Neste caso, a escravidão é considerada um delito de
Direito Internacional, cuja proibição tem status de jus cogens (par. 249 supra). Além
disso, a Corte indicou que não é admissível a invocação de figuras processuais como a
prescrição, para evadir a obrigação de investigar e punir estes delitos. Para que o Estado
satisfaça o dever de garantir adequadamente diversos direitos protegidos na Convenção,
entre eles o direito de acesso à justiça, é necessário que cumpra seu dever de investigar,
julgar e, se for o caso, punir estes fatos e reparar os danos causados. Para alcançar esse
fim, o Estado deve observar o devido processo e garantir, entre outros, o princípio de
prazo razoável, os recursos efetivos e o cumprimento da sentença.20
De fato, a escravidão e suas formas análogas são consideradas delitos conforme o
direito internacional, e sua proscrição é uma norma de jus cogens. Por isso, a Corte
IDH considera que a prescrição dos delitos de sujeição a condição de escravo e espécies

18 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma), RHC 58.160/SP. Relator: Min. Leopoldo de
Arruda Raposo (convocado do TJPE), j. em 6 ago. 2015.
19 A Ação Penal n. 0005216-83.2015.4.01.3901 foi proposta perante a 1ª Vara Federal de Marabá-PA.
Em manifestação de 23 de março de 2018, o MPF se opôs ao pedido de decretação da prescrição.
20 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda
Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf. Acesso em: 9 ago. 2020.

832
equiparadas é incompatível “com a obrigação do Estado brasileiro de adaptar sua nor-
mativa interna de acordo aos padrões internacionais”. Desse modo, para a Corte, “a
aplicação da prescrição constituiu um obstáculo para a investigação dos fatos, para a
determinação e punição dos responsáveis e para a reparação das vítimas, apesar do
caráter de delito de direito internacional que os fatos denunciados representavam”.21

9.1.2 ∙ O CASO SIMONE ANDRÉ DINIZ (2006)


No Caso Simone André Diniz, apreciado pela Comissão Interamericana de
Direitos Humanos em 2006, o Brasil foi responsabilizado internacionalmente por
violação aos direitos humanos da vítima num contexto de racismo institucional.
A decisão diz respeito à limitação de acesso de uma mulher negra ao mercado de
trabalho por motivo racial.22
Em 1997, Aparecida Gisele Mota da Silva publicou na página de classificados
do jornal Folha de São Paulo um anúncio de emprego.23 Oferecia vaga de trabalho
doméstico para pessoa “de preferência branca”. A pretendente à vaga, Simone Diniz,
era uma mulher negra. O emprego lhe foi negado, o que configura discriminação
racial, já àquela época vedada pela Lei n. 7.716/1989.
Infelizmente, o inquérito que apurou esse crime foi arquivado pelo Ministério
Público de São Paulo. A Promotoria alegou que não houvera “qualquer ato de
racismo” nem “base para oferecimento de denúncia”.
A Comissão Interamericana entendeu terem ocorrido violações à Convenção
Americana de 1969 em detrimento da trabalhadora Simone André Diniz, e que o
Brasil era internacionalmente responsável pelo ato. A Corte recordou que o dever
de respeitar e garantir os direitos humanos contra agressões de terceiros também
resulta do fato de que os Estados têm competência para instituir sua legislação, para
regular as relações entre particulares. Portanto, os Estados “devem também velar
para que nessas relações privadas entre terceiros se respeitem os direitos humanos”,
do contrário, “o Estado pode resultar responsável pela violação dos direitos”.24
Assim, embora o ato de discriminação racial tenha ocorrido numa relação havida
entre particulares, o Estado brasileiro tinha duas obrigações internacionais inafastáveis.
A primeira era a de “velar para que nessa relação fossem respeitados os direitos huma-
nos das partes a fim de prevenir a ocorrência de uma violação”; e a segunda era a de,

21 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda


Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf. Acesso em: 9 ago. 2020. Vide § 413.
22 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório n. 66/06, de 21 de
outubro de 2006, Caso 12.001. Simone André Diniz vs. Brasil. Disponível em: http://www.cidh.
org/annualrep/2006port/brasil.12001port.htm. Acesso em: 10 jul. 2020.
23 CLASSIFICADOS. “Doméstica. Lar. P/ morar no empr. C/ exp. Toda rotina, cuidar de crianças, c/
docum. E ref.; Pref. Branca, s/filhos, solteira, maior de 21a. Gisele”. Folha de São Paulo, São Paulo,
2 mar. 1997.
24 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório n. 66/06, de 21 de
outubro de 2006, Caso 12.001. Simone André Diniz vs. Brasil. Disponível em: http://www.cidh.
org/annualrep/2006port/brasil.12001port.htm. Acesso em: 10 jul. 2020. Vide § 41.

833
“na eventualidade de haver a violação, buscar, diligentemente, investigar, processar e
sancionar o autor da violação, nos termos requeridos pela Convenção Americana”.25
A Comissão também se manifestou sobre o racismo institucional que marca a
sociedade brasileira, atestando que se trata de um “obstáculo à aplicabilidade da
lei antirracismo no Brasil”, tendo levado em conta declaração do então Secretário
Executivo do Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População
Negra, Carlos Moura, segundo o qual “[d]a prova testemunhal, passando pelo
inquérito na polícia até a decisão do Judiciário, há preconceito contra o negro. Os
três níveis são incapazes de reconhecer o racismo contra o negro”. Tal tratamento
desigual por motivos raciais funda-se na alegada dificuldade de policiais, membros
do Ministério Público e juízes de provar o dolo de discriminar, sempre que o autor
do crime nega tal intenção. Muitas autoridades dessas instituições costumam acei-
tar facilmente a tese de “mal entendido” ou “brincadeira”, o que faz com que poucos
casos de racismo e discriminação cheguem a julgamento.26
Do racismo institucional, que minimiza as violações e naturaliza a situação de
desigualdade, resulta uma discriminação indireta, muito mais perniciosa que os
insultos raciais em si, pois é uma prática estatal que “impede o reconhecimento do
direito de um cidadão negro de não ser discriminado e o gozo e o exercício do direito
desse mesmo cidadão de aceder à justiça para ver reparada a violação”, causando um
impacto negativo, de natureza dissuasória e duradoura, na população negra.27
O dever internacional de investigar, processar e punir foi mais uma vez assen-
tado pelos órgãos do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, no
qual aparece como direito das vítimas. Segundo a Comissão,
toda vítima de violação de direitos humanos deve ter assegurada uma investi-
gação diligente e imparcial e, em havendo indícios de autoria do delito, deve ser
iniciada a ação pertinente para que juiz competente, no marco de um processo
justo, determine ou não ocorrência do crime.28
Quando este dever não é cumprido pela Polícia ou pelo Ministério Público,
inclusive em relação à discriminação racial, o Estado Brasileiro “viola flagrante-
mente o princípio da igualdade insculpido na Declaração e Convenção Americanas,
as quais se obrigou a respeitar”.29
No caso concreto, a Comissão asseverou que “excluir uma pessoa do acesso
ao mercado de trabalho por sua raça constitui um ato de discriminação racial”,
com base na Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial.30 Segundo o artigo 1º da Convenção,
“discriminação racial” compreende qualquer distinção, exclusão restrição ou prefe-
rência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha

25 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06; vide § 43.


26 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06; vide §§ 84 a 86.
27 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06; vide §§ 87 e 88.
28 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06; vide § 97.
29 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06; vide § 98.
30 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06, vide § 99.

834
por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em
igualdade de condição, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos domínios
político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública.31
Assim, se o Estado se omite e, com isso, permite que a discriminação racial,
como violação de direitos humanos, permaneça impune, descumpre o artigo 24
da Convenção Americana,32 combinado com o artigo 1.1 do mesmo tratado,33 por
ofensa ao princípio da igualdade e do correlato direito a igual proteção perante a lei.34
Tal omissão das autoridades brasileiras em dar curso à persecução penal de forma
“diligente e adequada” cria o risco de reproduzir o racismo institucional, no qual
“o Poder Judiciário é visto pela comunidade afrodescendente como um poder racista,
como também resulta grave pelo impacto que tem sobre a sociedade na medida em
que a impunidade estimula a prática do racismo”.35 Tal quadro não deve perdurar, o que
reclama, na visão da CIDH, a conscientização institucional do Poder Judiciário para
“tornar efetivo o combate à discriminação racial e ao racismo”.36
Pelo fato de a vítima ter sido submetida a tratamento desigual pelas autoridades bra-
sileiras de persecução criminal, em um ambiente de racismo institucional, a Comissão
concluiu que “o Estado brasileiro violou o artigo 24 da Convenção Americana, em face
de Simone André Diniz”37 e que o Estado “falhou no cumprimento de sua obrigação
de administrar a justiça” à vítima, que fora discriminada em razão de sua cor. Em
suma, o Brasil “não cumpriu sua obrigação convencional de, eficaz e adequadamente
investigar, processar, sancionar e buscar o restabelecimento do direito violado”.38
A omissão do Ministério Público e do Poder Judiciário é retratada no exame
do procedimento adotado pela Promotoria de Justiça e pelo Juízo de Direito, na
comarca de São Paulo, à luz do art. 28 do CPP:
122. A Comissão tem conhecimento que a lei processual penal brasileira esta-
belece que o Ministério Publico poderá pedir o arquivamento de uma denúncia
penal quando não encontrar elementos que possam indicar a ocorrência de crime
e o juiz, apesar de não estar obrigado, poderá determinar esse arquivamento.
Entretanto, tal decisão não pode ser incongruente com o comando constitucio-
nal brasileiro que garante a apreciação do Judiciário para toda lesão ou ameaça
de direito. Como também não pode ferir o comando convencional que garante a

31 Promulgada no Brasil pelo Decreto n. 65.810/1969.


32 O artigo 24 da Convenção trata da “igualdade perante a lei”, determinando: “Todas as pessoas são
iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei”.
33 Diz este dispositivo da Convenção Americana: “Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se
a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda
pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo,
idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição
econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”.
34 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06; vide § 100.
35 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06; vide § 107.
36 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06; vide § 108.
37 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06; vide § 109.
38 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06; vide § 113.

835
toda pessoa não somente o direito a um recurso efetivo mas também o direito ao
desenvolvimento da possibilidade de recurso judicial.39
Embora se tratasse inicialmente de uma questão entre particulares, em suas
relações privadas, a responsabilidade internacional do Brasil apresentou-se “em
razão de seu compromisso internacional de prevenir e combater a discriminação
racial”, incumbindo-lhe “a obrigação adicional de tomar todas as medidas necessá-
rias para estabelecer se nos fatos denunciados por Simone André Diniz, houve ou
não a prática de racismo e discriminação racial”. Para a Comissão, a instauração do
inquérito policial não eximiu o Estado brasileiro de sua responsabilidade por negar
acesso à justiça a Simone André Diniz, pois o inquérito “não era remédio jurídico
adequado e eficaz para processar, sancionar e reparar uma denúncia de violação de
direitos humanos, de acordo com os padrões convencionais”. Afirmou a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos que
o meio jurídico idôneo seria a ação penal pública, instaurada pelo Ministério
Público, que conferiria ao juiz o poder de, havendo indícios da ocorrência do
crime, julgar o autor da violação e eventualmente condená-lo, o que não ocorreu
no particular.40
Por tais razões, a Comissão entendeu que o Estado brasileiro também violou
os artigos 8.1 e 25, combinados com o artigo 1.1, da Convenção Americana,41 em
face de Simone André Diniz, “por não haver iniciado a ação penal pertinente para
apurar denúncia de discriminação racial sofrida por esta”.42
Em função das violações estatais ao direito à igualdade perante a lei, à proteção judi-
cial e às garantias judiciais, a Comissão expediu doze recomendações ao Estado brasileiro:
1. Reparar plenamente a vítima Simone André Diniz, considerando tanto o
aspecto moral como o material, pelas violações de direitos humanos determina-
das no relatório de mérito e, em especial;
2. Reconhecer publicamente a responsabilidade internacional por violação dos
direitos humanos de Simone André Diniz;
3. Conceder apoio financeiro à vítima para que esta possa iniciar e concluir curso superior;
4. Estabelecer um valor pecuniário a ser pago à vítima à título de indenização
por danos morais;

39 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06; vide §§ 128 e 130.


40 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06; vide § 122.
41 O artigo 8.1 da Convenção regula as garantias judiciais: “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as
devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente
e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada
contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal
ou de qualquer outra natureza”. Já o artigo 25 da Convenção trata da “proteção judicial”, asseverando
que “[t]oda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo,
perante os juízos ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos
fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando
tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais”.
42 Os comissionados José Zalaquett e Evelio Fernández Arévalos divergiram: “Nossa opinião a respeito é
que, no marco das circunstâncias fáticas e jurídicas especificas do presente caso, as atuações policiais,
do Ministério Público e do Poder Judicial brasileiros constituíram em seu conjunto uma resposta que
não chega a configurar violação aos artigos 8, 25 e 1(1) da Convenção Americana”.

836
5. Realizar as modificações legislativas e administrativas necessárias para que a
legislação antirracismo seja efetiva, com o fim de sanar os obstáculos demons-
trados nos parágrafos 78 e 94 do presente relatório;
6. Realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos, com o obje-
tivo de estabelecer e sancionar a responsabilidade a respeito dos fatos relaciona-
dos com a discriminação racial sofrida por Simone André Diniz;43
7. Adotar e instrumentalizar medidas de educação dos funcionários de justiça e
da polícia a fim de evitar ações que impliquem discriminação nas investigações,
no processo ou na condenação civil ou penal das denúncias de discriminação
racial e racismo;
8. Promover um encontro com organismos representantes da imprensa brasi-
leira, com a participação dos peticionários, com o fim de elaborar um compro-
misso para evitar a publicidade de denúncias de cunho racista, tudo de acordo
com a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão;
9. Organizar Seminários estaduais com representantes do Poder Judiciário,
Ministério Público e Secretarias de Segurança Pública locais com o objetivo de
fortalecer a proteção contra a discriminação racial e o racismo;
10. Solicitar aos governos estaduais a criação de delegacias especializadas na
investigação de crimes de racismo e discriminação racial;
11. Solicitar aos Ministérios Públicos Estaduais a criação de Promotorias Públicas
Estaduais Especializadas no combate ao racismo e à discriminação racial;
12. Promover campanhas publicitárias contra a discriminação racial e o racismo.44

9.2 ∙ OITO CASOS JULGADOS PELA CORTE INTERAMERICANA


CONTRA O BRASIL
Em 2002, com base no Decreto n. 4.463/2002 e no artigo 62.1 da CADH, o Brasil
passou a reconhecer a jurisdição obrigatória da CIDH, o que significa que o País
deve cumprir as decisões da Corte IDH, inclusive as obrigações de fazer que resul-
tem de suas sentenças:
Art. 1º. É reconhecida como obrigatória, de pleno direito e por prazo indetermi-
nado, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os
casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de São José), de 22 de novembro de 1969, de acordo com art. 62
da citada Convenção, sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a 10
de dezembro de 1998. (Decreto n. 4.463/2002).
A data de 10 de dezembro de 1998 não é aleatória. Foi naquele dia que ocorreu
o depósito da declaração unilateral brasileira de reconhecimento da jurisdição da
Corte, evento que passou a servir como marco inicial da incidência dessa regra em

43 Essa recomendação deveria ter levado o Brasil a rever o disposto no art. 18 do CPP, que só permite
o desarquivamento de inquéritos policiais em surgindo novas provas. É necessário estabelecer
previsão legal para que o Ministério Público possa retomar apurações criminais em cumprimento
a deliberações dos órgãos do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos. Óbice
semelhante viu-se no Caso Sétimo Garibaldi, julgado pela Corte Interamericana. É preciso também
rever a Súmula 524 do STF, segundo a qual “[a]rquivado o inquérito policial, por despacho do juiz,
a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas”.
44 Caso Simone André Diniz, Relatório 66/06; vide § 146.

837
relação ao Brasil. Os fatos anteriores a dezembro de 1998 não podem ser julgados
pela CIDH quanto ao Brasil, salvo se as violações se protraírem no tempo.
Até agora o Brasil sofreu oito condenações pela Corte IDH, que se deram nos
seguintes casos:

9.2.1 ∙ O CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL (2006)


O Caso Damião Ximenes Lopes (Caso Ximenes Lopes vs. Brasil) é o primeiro
processo que resultou em condenação do Brasil. Ali estava em discussão o direito
à integridade física e psíquica de pessoa humana com deficiência. Em novembro de
1999, o paciente psiquiátrico Damião Ximenes Lopes foi torturado e morto na Casa
de Repouso Guararapes, clínica conveniada ao SUS, localizada na cidade de Sobral/
CE. Na sentença de julho de 2006, a Corte Interamericana condenou o Brasil a inde-
nizar os familiares da vítima e a levar a julgamento os responsáveis pelo crime.45
De fato, na sentença interamericana, a Corte decidiu que o Estado brasileiro violou,
em detrimento de Damião Ximenes Lopes, os direitos à vida e à integridade pessoal con-
sagrados na Convenção Americana. Violou também, em prejuízo de Albertina Viana
Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda, familiares de Damião Ximenes Lopes, as garan-
tias judiciais e o direito à proteção judicial previstos nos artigos 8 e 25 da Convenção.46
Mediante o Decreto n. 6.185/2007, a União cumpriu a obrigação de indenizar e
autorizou o pagamento de R$ 280.532,85 a familiares da vítima, isto é, dois irmãos
e seus pais. Em 2009, a Justiça estadual cearense condenou os seis responsáveis pelo

45 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil.


Sentença de 4 de julho de 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_149_por.pdf. Acesso em: 9 ago. 2020.
46 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil.
Sentença de 4 de julho de 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_149_por.pdf. Acesso em: 9 ago. 2020.

838
crime de maus-tratos (art. 136, § 2º, do CP), entre eles médicos e enfermeiros, a
penas de seis anos de reclusão.

9.2.2 ∙ O CASO ESCHER E OUTROS VS. BRASIL (2009)


O Caso Escher e outros vs. Brasil foi julgado pela Corte IDH em julho de 2009. A
sentença teve como objeto o direito à intimidade e ao devido processo legal e resultou
na segunda condenação do País pela Corte Interamericana. Um major da Polícia
Militar do Paraná solicitou à juíza Elizabeth Kather, da comarca de Loanda, a inter-
ceptação de terminais telefônicos utilizados por uma cooperativa de trabalhadores
rurais ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). As escutas,
que duraram 49 dias, teriam sido realizadas sem o cumprimento dos requisitos do
art. 5º, inciso XII, da Constituição e da Lei n. 9.296/1996. Em 2000, o MST, a Justiça
Global, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a ONG Terra de Direitos e a Rede
Nacional de Advogados Populares (RENAP) levaram o fato ao conhecimento da
Comissão Interamericana, que, por sua vez, submeteu o caso à Corte. A Corte IDH
considerou o Estado brasileiro culpado pela instalação dos grampos, pela divulgação
ilegal das gravações e pela impunidade dos responsáveis pela sua implantação.47
Realmente, na parte dispositiva, a Corte assentou que o Estado violou o direito
à vida privada e o direito à honra e à reputação reconhecidos no artigo 11 da
Convenção Americana, tendo como vítimas Arlei José Escher, Dalton Luciano de
Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni, pela intercepta-
ção, gravação e divulgação das suas conversas telefônicas.
146. A Corte conclui que as interceptações e gravações das conversas telefônicas
objeto deste caso não observaram os artigos 1o, 2o, 3o, 4o, 5o, 6o e 8o da Lei No.
9.296/96 e, por isso, não estavam fundadas em lei. Em consequência, ao descum-
prir o requisito de legalidade, não resulta necessário continuar com a análise
quanto à finalidade e à necessidade da interceptação. Com base no anterior,
a Corte conclui que o Estado violou o direito à vida privada, reconhecido no
artigo 11 da Convenção Americana, em relação com a obrigação consagrada no
artigo 1.1 do mesmo tratado em prejuízo de Arlei José Escher, Dalton Luciano de
Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni.48
Ademais, segundo a Corte, as escutas clandestinas representaram uma inter-
venção indevida nas associações de que as vítimas eram integrantes, razão pela qual
o Estado brasileiro violou a liberdade de associação reconhecida no artigo 16 da
Convenção Americana.49

47 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Escher e Outros vs. Brasil.


Sentença de 6 de julho de 2009. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_200_por.pdf. Acesso em: 9 ago. 2020.
48 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Escher e Outros vs. Brasil.
Sentença de 6 de julho de 2009. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_200_por.pdf. Acesso em: 9 ago. 2020.
49 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Escher e Outros vs. Brasil.
Sentença de 6 de julho de 2009. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_200_por.pdf. Acesso em: 9 ago. 2020.

839
Mediante o Decreto n. 7.158/2010, a União indenizou as cinco vítimas em US$ 22
mil dólares para cada uma, em cumprimento ao § 261 da sentença interamericana.

9.2.3 ∙ O CASO SÉTIMO GARIBALDI (2009)


Em setembro de 2009, veio a terceira condenação do País pela Corte IDH. Deu-se
no Caso Garibaldi vs. Brasil. Estavam em questão o direito à vida e os deveres esta-
tais de persecução criminal e de prestação jurisdicional em tempo razoável. Em
novembro de 1998, o trabalhador rural Sétimo Garibaldi foi morto por pistoleiros
encapuzados num acampamento do MST na Fazenda São Francisco, município de
Querência do Norte, na comarca de Loanda-PR.
Em 2003, as ONGs Terra de Direitos e Justiça Global, a Comissão Pastoral da
Terra (CPT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e a Rede
Nacional de Advogados Populares (RENAP) denunciaram o caso à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Após a condenação, o Decreto n.
7.307/2010 determinou que a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência pro-
videnciasse o pagamento de indenização à família de Garibaldi, em cumprimento
ao § 201 da sentença.50 Pelo Decreto, a União pagou indenizações à esposa e aos seis
filhos de Sétimo Garibaldi, no total de US$ 179.000,02.
A Corte IDH também ordenou a conclusão do inquérito e a responsabilização dos
servidores públicos que conduziram a apuração inicial. O suposto mandante e os alega-
dos executores do crime não foram processados pelo Ministério Público do Estado do
Paraná, que promoveu o arquivamento do inquérito policial em 2004, o que foi aceito
pela juíza de Direito Elisabeth Khater. Infelizmente, os recursos interpostos não logra-
ram êxito, e o STJ manteve o arquivamento ao julgar o REsp 1.351.177/PR em 2016.51

9.2.4 ∙ O CASO GOMES LUND E OUTROS VS. BRASIL (2010)


O caso da Guerrilha do Araguaia (Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil), jul-
gado por sentença em novembro de 2010, representa a quarta condenação do Brasil.
A Corte IDH considerou o Estado brasileiro culpado pelas mortes e desapareci-
mentos ocorridos na região do Bico do Papagaio, nas divisas do Maranhão, Pará e
Tocantins nos anos 1970, tendo como vítimas militantes do PCdoB. O Brasil tam-
bém foi punido por denegação de Justiça. O processo na Comissão Interamericana
originou-se em 1995 por iniciativa do Centro pela Justiça e o Direito Internacional
(CEJIL) e pela Human Rights Watch/Americas e foi submetido à Corte em 2009.
Após assentar que as disposições da Lei de Anistia brasileira que impeçam a inves-
tigação e a punição de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com
a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir repre-
sentando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para
a identificação e punição dos responsáveis a Corte concluiu que o Estado brasileiro é

50 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Garibaldi vs. Brasil. Sentença


de 23 de setembro de 2009. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_203_por.pdf. Acesso em: 9 ago. 2020.
51 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma) REsp 1.351.177/PR. Relator: Min. Sebastião Reis
Junior, j. em 15 jun. 2016.

840
responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reco-
nhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal,
previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em prejuízo das pessoas
indicadas no processo.52

9.2.5 ∙ O CASO TRABALHADORES DA FAZENDA BRASIL VERDE VS. BRASIL (2016)


No Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, julgado em 2016, a
Corte IDH entendeu que nosso País violou o direito de liberdade (especificamente
o direito de não ser submetido a qualquer forma de escravidão ou servidão), o
direito de acesso à justiça e a garantias judiciais e o direito à razoável duração
do processo das 85 vítimas escravizadas no ano 2000 na Fazenda Brasil Verde,
situada no Município de Sapucaia, no Estado do Pará, e também os direitos de
outros 43 trabalhadores que foram resgatados na mesma propriedade em 1997, e
que tampouco receberam proteção judicial adequada, o que equivaleu a negar-lhes
acesso à Justiça.
A fazenda pertencia a João Luiz Quagliato Neto, um dos maiores criadores de
gado do Norte do País. Tem-se notícia de que as violações aos direitos dos trabalha-
dores naquela propriedade rural remontam aos anos 1980.
A Sentença, proferida pela Corte Interamericana em 20 de outubro de 2016,
resulta de petição apresentada em 1998 pelo Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL) e pela Comissão Pastoral da Terra à Comissão Interamericana
de Direitos Humanos em Washington (Caso 12.066). Ao encerrar sua investigação,
a Comissão submeteu a questão à Corte em março de 2015, tendo advindo a quinta
condenação do Brasil no sistema interamericano.53

9.2.6 ∙ O CASO FAVELA NOVA BRASÍLIA VS. BRASIL (2017)


Em 2017, foi julgado o Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Duas chacinas
ocorreram naquela comunidade carente, situada no complexo do Alemão, em 18 de
outubro de 1994 e em 8 de maio de 1995. Os fatos são atribuídos a policiais do Rio
de Janeiro, e poderiam ser classificados como homicídio de 26 pessoas, tortura (mas
nossa lei é de 1997), estupros de três adolescentes e abuso de autoridade.
A Corte determinou as reparações devidas, ordenou a reabertura das investi-
gações e recomendou à PGR que examinasse o cabimento de incidente de desloca-
mento de competência (IDC) para a federalização da causa.54

52 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e Outros


(“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso em: 9 ago. 2020.
53 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda
Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf. Acesso em: 9 ago. 2020.
54 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil.
Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_333_por.pdf. Acesso em: 9 ago. 2020.

841
9.2.7 ∙ O CASO DO POVO INDÍGENA XUCURU E SEUS MEMBROS VS. BRASIL (2018).
Em 2018, ao sentenciar o Caso do Povo Indígena Xucuru e seus Membros vs.
Brasil, a Corte IDH tratou do direito à propriedade coletiva da terra. A comunidade
indígena Xucuru, perto de Pesqueira, em Pernambuco, aguardava havia mais de
uma década a demarcação de suas terras. O governo demorou 16 anos para reconhe-
cer a titularidade da terra e demarcá-la, e para retirar invasores dali (desintrusão).
O Brasil também foi condenado por negar-lhes proteção judicial. Em razão da
sentença, o Estado brasileiro foi condenado a complementar o procedimento para
assegurar os direitos dos indígenas e a pagar as indenizações devidas aos posseiros.55

9.2.8 ∙ O CASO HERZOG E OUTROS VS. BRASIL (2018)


Em sua sentença de 2018, no Caso Herzog, a Corte determinou que os fatos ocor-
ridos contra o jornalista Vladimir Herzog na sede do DOI-Codi, em São Paulo,
devem ser considerados crime contra a humanidade, de acordo com a definição do
direito internacional.
Para a Corte IDH, o Brasil não pode invocar a prescrição ou aplicar o princípio
ne bis in idem, a Lei de Anistia ou qualquer outra disposição similar do direito
interno para escusar-se de seu dever de investigar e punir os responsáveis pelos
crimes de que foi vítima Vladimir Herzog. Esses delitos foram “cometidos em um
contexto sistemático e generalizado de ataques à população civil”.
Na sentença, a Corte ordenou, por unanimidade, várias medidas de reparação,
entre elas o dever do Estado brasileiro de retomar a investigação criminal e de dar
início a ação penal sobre os fatos ocorridos em 25 de outubro de 1975, com o fim de
identificar, processar e, em sendo o caso, punir as pessoas responsáveis pela tortura
e pelo homicídio do jornalista Vladimir Herzog.
O Estado brasileiro também foi condenado a adotar medidas idôneas “para que
se reconheça, sem exceção, a imprescritibilidade das ações emergentes de crimes
contra a humanidade e internacionais”. Isso inclui, evidentemente, a aprovação de
legislação específica que altere, no ponto, o art. 109 do Código Penal.56

9.2.9 ∙ O CASO DOS EMPEGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS


EM SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES VS. BRASIL (2020)
Na sentença proferida em 15 de julho de 2020, no caso Empregados da Fábrica de
Fogos em Santo Antônio de Jesus e seus Familiares vs. Brasil, a Corte Interamericana tratou
da explosão de uma fábrica de produtos pirotécnicos que resultou na morte de 60 pes-
soas, sendo 22 crianças, e causou lesões em 6 vítimas sobreviventes. O fato ocorreu em
Santo Antônio de Jesus, uma cidade do Recôncavo baiano, em 11 de dezembro de 1998.

55 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Povo Indígena Xucuru e seus


Membros vs. Brasil. Sentença de 5 de fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/
docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf. Acesso em: 9 ago. 2020.
56 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Herzog e Outros vs. Brasil.
Sentença de 15 de março de 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_353_por.pdf. Acesso em: 10 jul. 2020.

842
A Corte IDH lidou com os direitos à vida, à integridade pessoal, à proteção inte-
gral de crianças e adolescentes, assim como com o direito a adequadas condições de
trabalho (meio ambiente do trabalho) e com a proibição do trabalho infantil. Além
de determinar a apuração das violações diretamente causadas pelos proprietários da
fábrica de fogos, a Corte reputou haver responsabilidade internacional do Brasil por
omissão da fiscalização das condições de funcionamento da fábrica, por violação
das garantias de acesso à justiça e por falta de diligência devida em prazo razoável
em relação a processos penais, trabalhistas e cíveis relacionados à explosão.57
Seguem trechos relevantes da sentença interamericana contra o Brasil:
216. Este Tribunal ha reiterado que las garantías judiciales comprendidas en el
artículo 8.1 de la Convención están íntimamente vinculadas al debido proceso
legal, el cual “abarca las condiciones que deben cumplirse para asegurar la ade-
cuada defensa de aquellos cuyos derechos u obligaciones están bajo consideración
judicial”. El artículo 25 de la Convención, a su vez, se refiere a “la obligación de los
Estados Partes de garantizar, a todas las personas bajo su jurisdicción, un recurso
judicial sencillo, rápido y efectivo ante juez o tribunal competente”.
217. Los artículos 8, 25 y 1.1 se encuentran interrelacionados en la medida que “[l]
os […] recursos judiciales efectivos […] deben ser sustanciados de conformidad con
las reglas del debido proceso legal, […] dentro de la obligación general a cargo de
los […] Estados, de garantizar el libre y pleno ejercicio de los derechos reconoci-
dos por la Convención a toda persona que se encuentre bajo su jurisdicción (art.
1)”. La efectividad de los recursos debe evaluarse en el caso particular teniendo
en cuenta si “existieron vías internas que garantizaran un verdadero acceso a la
justicia para reclamar la reparación de la violación”. El acceso a la justicia puede
ser verificado cuando el Estado garantiza, en un tiempo razonable, el derecho de
las presuntas víctimas o sus familiares a que se lleven a cabo todas las medidas
necesarias para conocer la verdad de lo sucedido y, en su caso, sancionar a los
eventuales responsables.
218. En este sentido, la Corte recuerda que los artículos 8 y 25 de la Convención
también consagran el derecho de obtener respuesta a las demandas y solicitudes
planteadas a las autoridades judiciales, ya que la eficacia del recurso implica una
obligación positiva de proporcionar una respuesta en un plazo razonable. [...]
220. La Corte ha indicado, haciendo referencia a la debida diligencia en procesos
penales, que la investigación debe ser realizada por todos los medios legales dis-
ponibles y orientada a la determinación de la verdad y la persecución, captura,
enjuiciamiento y eventual castigo de todos los responsables intelectuales y mate-
riales de los hechos. Igualmente, que la impunidad debe ser erradicada mediante
la determinación de las responsabilidades tanto generales del Estado, como indi-
viduales – penales y de otra índole – de sus agentes o de particulares, de modo que
para cumplir esta obligación, el Estado debe remover todos los obstáculos, de facto
y de jure, que mantengan la impunidad.
221. Como resulta de los hechos probados en el presente caso, la explosión de la
fábrica de fuegos artificiales en Santo Antônio de Jesus, sucedida el 11 de diciembre
de 1998, generó la apertura de procesos en las instancias administrativa, penal,

57 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos


em Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil. Sentença de 15 de julho de 2020. Disponível
em: https://www.corteidh.or.cr/docs/tramite/empleados_de_la_fabrica_de_fuegos.pdf. Acesso
em: 27 out. 2020.

843
civil, y laboral. La Corte entiende que la debida diligencia estará demostrada en el
proceso penal si el Estado logra demostrar que ha emprendido todos los esfuerzos,
en un tiempo razonable, para permitir la determinación de la verdad, la identi-
ficación y sanción de todos los responsables, sean particulares o funcionarios del
Estado. En cuanto a los procesos civiles por daños, la debida diligencia se verifica
por medio del análisis de las actuaciones de las autoridades estatales (jueces y
miembros de la Fiscalía) en el sentido de conducir los procedimientos de forma
sencilla y célere con el fin de identificar los agentes que causaron los daños y, en su
caso, reparar adecuadamente a las víctimas. El examen de la debida diligencia en
los procesos laborales debe tomar en consideración las medidas adoptadas por las
autoridades judiciales para establecer el vínculo laboral entre los trabajadores y
trabajadoras de la fábrica de fuegos con los dueños, identificar los montos debidos
y determinar y ejecutar el pago de dichos valores.58
Na sentença, ao tratar das vítimas da explosão, a Corte IDH ressaltou que “a
demora excessiva e a impunidade agravaram sua situação, especialmente em razão
da condição de extrema vulnerabilidade pela situação de pobreza e discriminação
estrutural em que se encontravam”.59
Para a Corte, a
falta de devida diligência se identifica especialmente nos atrasos injustificados das
autoridades judiciais em processar os diversos recursos interpostos pelos acusados,
nos problemas com as movimentações equivocadas dos autos e nos erros quanto
à intimação da decisão de segunda instância aos defensores dos acusados, o que
levou à anulação daquela sentença.60
Por fim, neste ponto, a Corte IDH afirmou que o Estado brasileiro não deu uma
justificativa aceitável para os longos períodos de tempo nos quais não houve movi-
mentação processual por parte das autoridades judiciais e para a “demora prolongada
do processo penal”. Tendo isso em conta, a Corte IDH afirmou que “a demora de
quase 22 anos sem uma decisão definitiva configurou falta de razoabilidade no prazo
por parte do Estado para levar a termo o processo penal”, revelando a falta de diligên-
cia das autoridades judiciais baianas quanto ao encerramento da persecução penal.61
A falta de diligência devida e a mora processual também foram reconhecidas
pela Corte nos processos civis e trabalhistas, o que levou o tribunal a asseverar que o
Brasil “é responsável pela violação do direito à proteção judicial, previsto no art. 25
da Convenção Americana”, assim como pela violação à garantia judicial da razoável
duração do processo, prevista no artigo 8.1 da Convenção, em prejuízo de seis víti-
mas sobreviventes e de cem familiares das vítimas falecidas.62

58 Caso Empregados da Fábrica de Fogos em Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil (2020).
59 Caso Empregados da Fábrica de Fogos em Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil
(2020), vide § 229.
60 Caso Empregados da Fábrica de Fogos em Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil
(2020), vide § 230.
61 Caso Empregados da Fábrica de Fogos em Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil
(2020), vide § 231.
62 Caso Empregados da Fábrica de Fogos em Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil
(2020), vide § 247.

844
Por isso, a Corte IDH ressaltou que “as vítimas ou seus familiares têm direito
a que se faça todo o necessário para conhecer-se a verdade do ocorrido e a que se
investigue, julgue e, se for o caso, puna os eventuais responsáveis”.63
Noutro ponto importante, tendo em conta que o caso por ela julgado diz res-
peito à temática de empresas e direitos humanos, a Corte IDH estimou pertinente
determinar ao Brasil que
no prazo de um ano apresente um informe sobre a implementação e aplicação
das Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, especialmente
no que tange à promoção e o apoio a medidas de inclusão e não discriminação
mediante a criação de programas de incentivos para a contratação de grupos
vulneráveis; a implementação por parte das empresas de atividades educativas
em direitos humanos, com a difusão da legislação nacional e os parâmetros
internacionais e um enfoque nas normas relevantes para a prática das pessoas e
os riscos para os direitos humanos.64

9.2.10 ∙ O CASO NOGUEIRA DE CARVALHO VS. BRASIL (2006)


Se foram oito as condenações pela Corte IDH, houve também um processo jul-
gado improcedente, por sentença proferida em 28 de novembro de 2006. Trata-se
do Caso Nogueira de Carvalho vs. Brasil. Alegava-se que o homicídio do advogado
Francisco Gilson Nogueira de Carvalho não fora devidamente apurado, violando-se
o direito de acesso à justiça. A Corte não acolheu os argumentos dos peticionários:
2. Em virtude do limitado suporte fático de que dispõe a Corte, não ficou
demonstrado que o Estado tenha violado no presente caso os direitos às Garantias
Judiciais e à Proteção Judicial consagrados nos artigos 8 e 25 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, pelas razões expostas nos parágrafos 74 a
81 da presente Sentença.65

10 ∙ CONCLUSÃO
Mais de meio século depois da conclusão da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, a situação dos direitos fundamentais neste hemisfério continua
preocupante. Apesar dos grandes avanços legislativos e institucionais na região,
inclusive no Brasil, especialmente a partir dos anos 1990, ainda há reiteradas viola-
ções da Carta da OEA, da Declaração Americana e do Pacto de São José nos países
do continente. Há também severa instabilidade política em vários dos países ame-
ricanos, o que é outro fator que catalisa violações aos direitos da pessoa humana.
O conjunto de casos decididos pela Comissão ou julgados pela Corte
Interamericana em relação ao Brasil mostra uma variada gama de violações, desde a

63 Caso Empregados da Fábrica de Fogos em Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil
(2020), vide § 266.
64 Caso Empregados da Fábrica de Fogos em Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil
(2020), vide § 291.
65 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Nogueira de Carvalho e Outros
vs. Brasil. Sentença de 28 de novembro de 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_161_por.pdf. Acesso em: 10 jul. 2020.

845
violência contra a mulher até o trabalho escravo, passando por ofensas à intimidade,
pelo racismo e por execuções extrajudiciais praticadas por grupos de extermínio.
Desde 1998, o País sofreu oito condenações da Corte Interamericana, seja por
fatos atribuídos à Polícia, ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário, mas tam-
bém por ações ou omissões ou mora atribuíveis a órgãos ou entidades específicas do
Poder Executivo, como forças de segurança e a Funai. O cumprimento das sentenças
interamericanas tem sido um problema à parte, havendo notória falta de compliance
por parte do Estado brasileiro.
Isoladamente o sistema interamericano não tem condições de resolver ou adju-
dicar todas as violações que ocorrem continuamente nos Estados-Partes da Carta
e da Convenção. Cabe precipuamente às instituições estatais, sobretudo aos órgãos
do sistema de justiça, velar pelo respeito aos direitos humanos nos países da região,
mediante a aplicação do direito interno, mas sempre tendo em conta o marco nor-
mativo regional e os precedentes da Corte e da Comissão.

REFERÊNCIAS
MAZZUOLI, Valério de O. Direitos humanos na jurisprudência internacional: sentenças,
opiniões consultivas, decisões e relatórios internacionais. São Paulo: Método, 2019.
PAIVA, Caio; HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência internacional de direitos
humanos. 2. ed. Belo Horizonte: CEI, 2017.
PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virgínia Prado (coords.). Direitos humanos atual. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2014.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos
sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2018a.
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2018b.
PORTELA, Paulo Henrique G. Direito internacional público e privado: incluindo noções
de direitos humanos e de direito comunitário. 11. ed. Salvador: JusPodivm, 2019.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. 5. ed. São
Paulo: Saraiva, 2016.

846
Obra composta em Myriad Pro e Minion Pro
e impressa em papel Pólen Soft 70 g/m2
pela Gráfica e Editora Qualytá Ltda. ∙ Brasília-DF
qualyta@qualytadf.com.br
Tiragem: 900 exemplares
Distribuição gratuita. Venda proibida.

Você também pode gostar