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Estudos Literarios
Estudos Literarios
Estudos Literarios
Cáceres-MT
2015
UNEMAT Editora
Editor: Maria do Socorro de Souza Araújo
Diagramação: Ricelli Justino dos Reis
Capa: Ketheley Leite Freire Rey
Revisão: Graci Leite Moraes da Luz
Publicação Online
Conselho Editorial:
Maria do Socorro de Souza Araújo (Presidente)
Ariel Lopes torres
Luiz Carlos Chieregatto
Mayra Aparecida Cortes
Neuza Benedita da Silva Zattar
Sandra Mara Alves da Silva Neves
Severino de Paiva Sobrinho
Tales Nereu Bogoni
Roberto Vasconcelos Pinheiro
Fernanda Ap. Domingos Pinheiro
Roberto Tikau Tsukamoto Júnior
Gustavo Laet Rodrigues
ISBN: 978-85-7911-146-4
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Luiz Kenji Umeno Alencar - CRB1 2037.
Unemat Editora
Avenida Tancredo Neves n° 1095
Fone (0xx65) 3221-0023
Cáceres - MT - Brasil - 78200-000
Proibida a reprodução de partes ou do todo desta obra sem autorização expressa dos (as) autores (as). (art.184 do Código Penal e Lei 9.610, de 19
de fevereiro de 1998 do Código Civil Brasileiro de 2002).
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 6
PARTE I
Exame do texto poético
AVE, ANTONIO! 13
Luiz Renato de Souza Pinto
PARTE II
Exame do texto narrativo
PARTE III
Formação do leitor literário
APRESENTAÇÃO
O próprio da literatura é a análise das relações sempre particulares que reúnem as crenças,
as emoções, a imaginação e a ação, o que faz com que ela encerre um saber insubstituível,
circunstanciado e não resumível sobre a natureza humana, um saber de singularidades.
Antoine Compagnon
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências
Literário, obras que mesclam elementos herdados da tradição ocidental, como também
do Oriente. Sua produção traz forte influência da poética clássica e da cultura japone-
sa, com destaque para os tankas e haicais, da poesia de Matsuó Bashô. Nesse percurso
poético, o autor não se limita à análise, trazendo a lembrança constante da família, dos
espaços, dos momentos vividos na companhia do poeta, afirma sua amizade e admira-
ção pelo artista Antonio Sodré.
Do mesmo modo, voltado à literatura produzida no Estado, a autora Marli
Walker, no artigo Palavra de mulher: Literatura feminina em Mato Grosso - século XIX
reflete acerca do silêncio em torno das produções femininas em obras consideradas
fundamentais para o estudo da literatura e da cultura local. Nas obras de Rubens de
Mendonça e Lenine Póvoas, encontramos o corpus de estudo reduzido à literatura pro-
duzida por homens, com poucas menções à literatura de autoria feminina. A condição
da mulher escritora em Mato Grosso não diverge da realidade observada em outras
esferas, seja nacional ou civilizacional. Com base na pesquisa de Yasmin Nadaf, Marli
Walker afirma que a mulher escritora/poetisa articulou sua voz e balbuciou de modo
abafado ou amplificado seu canto lírico no Estado. O estudo do gênero lírico amoroso
é focado a partir da poesia de Elisa Alberto, um dos únicos registros de poesia escrita
em Mato Grosso por mulheres. Condicionado ao contexto sócio-político, o ideário
amoroso feminino, no século XIX, esbarrava em redes de controle firmemente estabe-
lecidas pela herança patriarcal, deitando raízes nas bênçãos da Igreja e no amparo das
normas civis.
A leitura da poesia da resistência vem no exame da produção poética de Pedro
Casaldáliga e Ernesto Cardenal. A pesquisadora Rosana Rodrigues da Silva investiga as
influências políticas e religiosas na criação literária desses poetas espanhóis e sacerdotes
que atuaram na América Latina em tempos de ditadura militar. Seguidores da Teologia
da Libertação, nova vertente da Igreja Católica, que se apropria dos fundamentos das
ciências sociais e na orientação marxista, o que torna a ambos participantes e credo-
res de uma ação transformadora da fé que liberta, usam também da voz poética para
refletirem, denunciarem e revelarem a realidade dos povos oprimidos no Brasil e na
Nicarágua.
No estudo comparativo da literatura produzida em Mato Grosso, Adriana
Lins Precioso, no artigo A arte religiosa da libertação: um diálogo entre os murais de Cere-
zo Barredo e os poemas de Pedro Casaldáliga, analisa a relação convergente dos murais do
pintor Barredo com os poemas de Casaldáliga, sob o viés da transculturação, entendida
como o fenômeno de duplo movimento de assimilação e resistência que constitui uma
criativa resposta do continente latino-americano à modernidade europeia. A pesqui-
sadora esquematiza as relações das três categorias plásticas com as figuras do discurso
figurativizadas nos murais analisados. Este estudo constitui-se como resultado parcial
da investigação do projeto intitulado Transculturação e poéticas contemporâneas: traços
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências
nistas cabo-verdianos a sentir e amar a literatura brasileira, pois viam nela um apoio
para descobrirem o seu próprio caminho”. Nesse sentido, Mantovani constata que es-
critores modernistas brasileiros, como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Manuel
Bandeira, além outros, influenciaram significativamente vários autores cabo-verdianos,
como Baltazar Lopes, Ribeiro Couto e Jorge Barbosa, que procuraram não copiar, mas
buscar “contribuição” e “força estimulante” para achar seus próprios caminhos estéticos
e desenhar os contornos de uma Literatura com voz própria.
Uma análise do conto machadiano Cantiga de esponsais é feita por Santiago
Vilela Marques em seu artigo Uma elegia nupcial: leitura e criação em Cantiga de espon-
sais, de Machado de Assis. Nesse texto, Marques reflete sobre as condições de produção
da própria obra de arte musical, de acordo com os contextos modernos do século XIX
presentes na narrativa, além de reafirmar as características estéticas realistas do conto.
Nesse sentido, Marques afirma que “o autor realista já pratica, portanto, uma estética
antirromântica, procurando extinguir ou diluir todo tipo de arrebatamento passional
ou sentimental, levando o leitor a uma contemplação reflexiva, porém não impassível,
dos móveis do pensamento e da conduta humana.” Ao perscrutar esse caminho, o
autor do artigo detecta as ambiguidades da narrativa, evidenciando o questionamento
de verdades instituídas, principalmente aquelas referentes à estética romântica que pre-
tendem centralizar a paixão em um único ponto nevrálgico.
As relações da mitologia greco-romana com a literatura italiana são a base da
pesquisa desenvolvida por Maria Celeste Tommasello Ramos. Os mitos clássicos são
apresentados por meio dos diferentes processos de intertextualidade em obras de Italo
Svevo e Alessandro Baricco, representantes da literatura italiana do Novecento e da
atualidade. Nos contos Vino generoso e Argo e il suo padrone, Svevo atualiza mitos clás-
sicos por meio do diálogo intertextual no nível temático do motivo. Já Baricco, na obra
Omero, Iliade, (2004), relê o clássico de Homero, a Ilíada e seleciona vinte personagens
da obra homérica em monólogos que revitalizam o mito clássico. Neste artigo, Ramos
evidencia o diálogo intertextual, a atualização e a retomada dos mitos clássicos no texto
literário da contemporaneidade.
A terceira parte, voltada à vertente do letramento literário é contemplada no
estudo de Iara Lopes Maiolini. Em seu artigo intitulado, O conto Buquê de línguas:
uma proposta de letramento literário, a autora aborda a discussão acerca da leitura da
literatura na escola e as práticas e metodologias aplicadas ao “ensino” de literatura. A
pesquisa se vale dos estudos sobre a formação do leitor já desenvolvidos por autores
como Cosson, Soares, Aguiar, Zilberman, Lajolo, a fim de fomentar o debate sobre a
leitura literária e apresentar uma proposta didática - à luz da teoria bakhtiniana – do
conto Buquê de Línguas, da escritora mato-grossense Tereza Albues. A proposta visa
à promoção do letramento literário, a partir do conto que tem como pano de fundo
a temática da diversidade cultural, atravessada por muitas vozes e linguagens. Essa as-
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências
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PARTE I
Exame do texto poético
Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
AVE, ANTONIO!
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
Moraes?
Uma penca de outros poetas que foram enfeitiçados pelo canto que seria en-
canto de sereia, e que seria também ouvido pelo nosso poetinha. Um artífice que tinha
uma verve açucarada para versos pródigos e um diabetes não tratado que levou seu
coração antes do resto do corpo. Mas “todo corpo é porco” nesta “porcaria corpórea”. E
nada seria tão fácil se ele não fosse tão físsil, e se as estátuas de todos os poetas não fos-
sem tão tétricas. Antonio Sodré não era uma pessoa comum, nunca foi. E seus poemas
que vieram a público com a Besta Poética e com o Empório Literário, ambos ilustrados
pelo irmão, Adir Sodré, agora estão engavetados, como seu corpo, emparedo em feve-
reiro de 2011. E para os que ainda o chamam de irmão do Adir, só se pode desejar que
olhem para qualquer árvore (pé de um verso seu) e esperem à sombra pela vinda de
alguém tão nobre quanto esse amigo plebeu!
Existem pessoas que marcam nossa existência de maneira brutal. Invadem a
intimidade que nos cerca, projetam seus pensamentos pelos poros e conquistam para
sempre a amizade ofertada em todas as horas. Não falo de parentes, essas pessoas que
não escolhemos para estar por perto, e sim de amigos, a segunda família que nos acom-
panha e que, de repente, desaparecem tatuando marcas profundas em nossos corações.
Mato Grosso tem sido minha segunda pátria e Cuiabá uma madrasta boa, cidade em
que minha família adquiriu dignidade e respeito, tangida pelo desemprego no sul.
Aqui nasceram meus dois filhos – cuiabaninhos que crescem cheios de saúde e respeito
pelo lugar que nos acolheu. Mas algumas perdas têm se acumulado por força do tem-
po, esse grande escultor.
Sempre que posso, tenho ido ao Pedregal para visitas rotineiras a pessoas que
abracei como segunda família. Dona Joaquina é uma mulher guerreira que resiste às
perdas com um sorriso a nos brindar, com um gole de café amargo (meu preferido) e
um dedo de prosa a reclamar de alguma dor; quisera eu chegar aos oitenta e sete (ou
seria oito?) com um pouco dessas reclamações. Bia está sempre por conta da cozinha
que toma quase todo o tempo. Há, religiosamente, um quitute saboroso para o almo-
ço. Irani, quieta, mas atenta aos movimentos da casa; tem a nobre função de abrir as
portas aos visitantes. José, o homem do espaço, com sua eterna simpatia distribuída
em poucos quilos que permanecem em pé diante dos atribulados acontecimentos que
a vida tem proporcionado.
Em um canto da casa tudo parece congelado no tempo que não volta mais.
Uma presença inquietante repousa no olhar saudoso de cada habitante. O cheiro de
um último poema ainda ocupa as narinas estelares. No quartinho minúsculo em que
dormitava o poeta, repousam seus livros preferidos em meio a peças de roupa que
aguardam novos donos. O guarda-roupas antigo leva consigo histórias de andanças
de outras léguas e a rede agora não mais se estica pelo vazio das paredes que engolem
recordações.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
Antonio não mora mais ali. Mas é como se ainda estivesse andando pela casa,
sentado a ouvir a rádio por longas horas, ou de frente à televisão como se prestasse
atenção no que se vomita mecanicamente. Alguns cadernos de poemas e desenhos
esperam pela observação atenta em busca de novas seleções para outros livros. O autor
da Besta Poética não mais está por lá, mas na verdade está no meio de nós; na biblio-
teca que leva seu nome no bairro Cophema, no espaço em que vendia livros e sonhos,
por quase trinta anos, na UFMT, no repertório do lendário Caximir e nas inúmeras
parcerias com artistas variados com os quais socializou seu talento. Tenho em minha
casa alguns objetos que me lembram do amigo: livros que pedi para sua mãe, uma ja-
queta jeans (que ele adorava) e que Bia me deu; também o rádio que ele ouvia fora de
sintonia e que tanto me incomodava – presente do José. Ainda agora folheei a “Besta”
na busca pelo seu talento nato. Antonio Sodré de Souza Neto: nome extenso, poético,
místico. ASSN – iniciais espelhadas em que se refletem minudências daquele homem
lento, desacelerado, que caminhou devagar por toda a vida, sem pressa de chegar, pois
já sabia que era lugar algum o nosso destino.
Olhando algumas fotos passo em revista ao tempo que nos acusa certa cum-
plicidade. Amigos que têm neve sobre o cabelo, outros com fartas madeixas, hoje rala,
todos sem noção alguma do futuro que viria e já chegou faz tempo. Daqui a pouco
tudo será passado e não mais habitará esta carcaça. Somente a poesia sobreviverá aos
naufrágios da contemporaneidade. Manuscritos em papiros pós-modernos validarão
essa passagem. A poesia sem fronteiras ocupará de maneira etérea os espaços vazios de
corações plastificados pela dor da perda. O dinheiro todo do mundo não valerá pedra
sobre pedra sobre as quais muitas dores sepultarão os últimos sonhos realizáveis. E para
cada poema escrito no além uma nova estrela iluminará outros caminhos. Trilhas sobre
trilhas; o asfalto cederá e do chão brotarão novas sementes encapsuladas, iridescentes, a
dividir o espaço terreno com raios e trovões. Do Ocidente receberemos novas vítimas;
do Oriente virão hai-kakus e mini-tankas; Os epitáfios já começaram a ser escritos.
Em vinte e oito de agosto de 2012 comecei a escanear mais de duas mil pági-
nas de inéditos do Antonio. O objetivo era colher material para se pensar a publicação
de um volume. Aos poucos fui me dando conta do tamanho da empreitada diante dos
inéditos e arrisco-me a dizer que poderíamos editar ao menos quatro bons volumes de
poemas do autor. A ideia era denominar CUIABARATOTAL a coleção, título de uma
de suas inusitadas canções. O Volume I, Na prainha, quase saiu; acabou virando um
espetáculo lítero-musical e depois uma comunicação no encontro do Grupo de Estu-
dos Linguísticos e Literários do Centro Oeste, na cidade de Goiás – GO, em agosto
de 2014.
Ao iniciarmos o estudo da linguagem de qualquer autor, devemos ter em men-
te sua importância em determinado tempo e espaço, o que se pode determinar, entre
outras coisas, pela linguagem utilizada. Em Antonio Sodré, o hibridismo conceitual
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
Nesse aspecto é que se insere uma insurgência com a tradição que encontrará
em Baudelaire seu grande intérprete, aos olhos da crítica canônica. O segundo poema
continua esse diálogo com a tradição. Antonio Sodré era exímio conhecedor da poética
clássica e incorpora em seu poetar alguns desses elementos.
um golpe a cada
palavra
1 M.h. Abrams, The mirror and the lamp. Romantic theory and the critical tradition, New York, Oxford Univ.
Press, 1953, p. 272.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
Nos dois primeiros versos vemos o total de dez sílabas fônicas, sete nos dois
seguintes e doze, nos dois últimos. Há neste poema um equilíbrio entre o uso do
enjambement, típico da poesia francesa do final do século XIX e a divisão silábica uti-
lizada. O corte da métrica simula o golpe do samurai esculpido na palavra escrita. A
própria cesura sugerida funciona como uma lâmina que faz de cada verso um conjunto
de camadas que se superpõem entrecortando significados, ao passo que os multiplica
e ao mesmo tempo retalha o processo de significação. O uso das reticências na estrofe
inicial e final aponta para o encurralamento da palavra entre a caneta (o pensamento
ainda não materializado) e o traço (no papel), destino do significante, para desvendar
os significados.
Todos os poetas, independentemente da qualidades, dedicam parte de seu tra-
balho às reflexões inerentes ao ato da escrita. A metalinguagem, portanto, não é apenas
um meio, pois pode também ser um fim no processo de criação literária. A comparação
da caneta com a espada traz para o centro das discussões a disposição do eu-lírico em
demonstrar a força que a arte tem para exercer algum tipo de transformação. A caneta
é uma arma e golpeia com seu uso o papel na busca de se materializar aspectos oníricos
inerentes à condição de poeta.
Neste poema também observamos a técnica precisa do poeta que mergulha na
tradição para promover um encontro do poema com elementos clássicos da construção
poética. Ao fazermos a escansão dos versos encontramos medidas novas e velhas disfar-
çadas por uma estrofação aparentemente nova, embora estejam embutidas no poema
curiosidades métricas que o colocam em destaque no conjunto da obra do artista. Se
fizermos a contagem das sílabas fônicas por verso, obteremos os seguintes registros: seis
sílabas no primeiro verso, quatro no segundo, quatro no terceiro, duas no quarto, seis
(ou cinco) no quinto, pela possibilidade de haver uma tensão métrica na dicção da pa-
lavra poema2, e cinco no último. Mas a leitura pode ser feita de maneira diferenciada.
Ao invés de lermos verso a verso, respeitando o elemento visual, podemos estabelecer
outra leitura, como se o poema tivesse apenas três versos, e, quem sabe, apenas uma
estância, o que forçaria a uma leitura silábica da seguinte forma:
2 A tensão métrica se caracteriza pela possibilidade de mais de uma leitura. A palavra poema é composta por três
sílabas gráficas, mas pode ser lida com duas, apenas: po/e/ma; poe/ma. A escolha entre um hiato ou ditongo vai
depender do ritmo que o autor/leitor gostaria de dar ao verso.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
Sábado à noite!
Os sinos da catedral
Aceitam o silêncio
É sabido por todos que o verbo é que demonstra qualquer ação em uma
construção linguística. Aqui temos uma frase “Sábado à noite!” e uma oração “Os sinos
da catedral aceitam o silêncio”; o verbo encontra-se no último verso e é propositivo
no sentido que significa um estar de braços abertos para a representação do silêncio.
Aceitar o silêncio constitui-se, portanto, em um estranhamento para com os sinos,
objetos barulhentos que têm por função anunciar a hora das missas, como também o
falecimento de alguma pessoa importante nas cidades cristãs.
O silêncio não é ausência de som, uma vez que produz sons ensurdecedores,
haja vista a tortura chinesa, por exemplo. Aceitá-lo passa a configurar, dessa forma,
uma contradição aos preceitos particularmente católicos no que tange ao desdobrar do
objeto. “Por quem os sinos dobram?”, por exemplo, é uma expressão típica do Cristia-
nismo e que serviu inclusive para dar título a um clássico romance do escritor ameri-
cano Ernest Hemingway. O império do olhar sobre os outros sentidos se faz presente
na materialidade de qualquer imagem. O sino traz em si os sons que se dobram e os
desdobramentos imagéticos são acompanhados pelos sons que dão novos sentidos ao
que se vê, o que se ouve.
Para Santo Agostinho, o olho é o mais espiritual dos sentidos. E, por trás
de Santo Agostinho, todo o platonismo reporta a ideia à visão. Conhecen-
do por mimese, mas de longe, sem a absorção imediata da matéria, o olho
capta o objeto sem tocá-lo, degustá-lo, cheirá-lo, degluti-lo. Intui e com-
preende sinteticamente, constrói a imagem não por assimilação, mas por
similitudes e analogias. Daí, o caráter de hiato, de distância, terrivelmente
presente às vezes, que a imagem detém; daí, o fascínio com que o homem
procura achegar-se à sua enganosa substancialidade (BOSI, 1977, p. 17).
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
Penso que o som dos dobres alça voo na interpretação do poema, mas não
tem sentido em si mesmo, a não ser pela força da imagem de um sino em movimento,
de seus badalos gigantescos no alto de um campanário. A completude da imagem faz
com que vários elementos se situem em um alinhamento sugerido pela ideia do sino
que vem à frente. Leitor voraz da boa literatura por toda uma vida, Antonio Sodré
possibilita ao leitor/pesquisador diversas leituras de seus textos. O mesmo se observa
no seguinte poema, trazendo para o universo da modernidade um pouco do orientalis-
mo poético desvendado no Brasil por outro gigante de nossas letras, o lendário Paulo
Leminski. Tradutor de Matsuó Bashô, contribui sobremaneira para a popularização da
poesia japonesa entre nós. É ainda no rastro dos hay-kais que Sodré navega, dirigindo-
se ao encontro de Baudelaire, que anuncia a modernidade poética:
Uma pétala
Que cai
Do
Flamboyant
Virando
Tapet
Pro
passant
Aqui, o ritmo é forjado pela economia absurda de sílabas poéticas que imitam
o movimento da pétala que cai da árvore, lentamente. A imagem sugere uma deter-
minada estação do ano em que o colorido das árvores vai para o chão e a dispersão de
folhas e flores cria um ambiente magnetizado e matizado por muitas cores, na forma
metafórica de um tapete. A referência a Baudelaire é clara com a imagem do passant,
que reforça a influência francesa. Flamboyant, tapet e passant dão certa sonoridade
rítmica ao poema que aproxima o leitor da língua francesa, bem como de Baudelai-
re, pavimentando uma leitura intertextual, como preconizam os jakobisonianos, ou
dialógica, como prefeririam os bakhtinianos. E são esses sons que contribuem para a
materialização dos signos poéticos. Parece-nos que com o advento da escrita, cada vez
mais o som das palavras perde espaço no campo da interpretação. A ditadura do olhar
coloca os ouvidos em segundo plano, afinal, os olhos nos colocam de frente a qualquer
objeto, enquanto os ouvidos, em número igual, são elementos laterais, estariam ao lado
do que se vê, a leste e oeste, não ao norte.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
Um de seus grandes desejos não foi realizado em vida, construir uma casinha
em terreno comprado com dificuldade, pago em sua totalidade, e que ainda está em
mãos da família. Localizado no bairro Jardim Imperial II, o terreno triangular, de es-
quina, próximo à Avenida das Torres, fez parte do sonho da casa própria, de um espaço
que serviria para reuniões literárias, que comportaria algum tipo de comércio ou casa
de cultura, algo que partilhasse da genialidade e simplicidade desse trovador contem-
porâneo. Nesse local, a desaceleração da vida moderna se configuraria não como um
loccus amoenus, ou loccus horrendus, mas sim como um loccus imaginário que possibi-
litasse um retorno à matéria de poesia que o habitava. O poeta sempre soube que a
poesia não o levaria a lugar algum, além de si mesmo. Em compensação sabia do valor
que esse nada tinha para mantê-lo vivo.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
Pedras
Negociavam com aves.
(BARROS, 1974, p. 32)
Entra o ano de 2015. Quatro anos se passaram e a sua poesia continua vigo-
rosa. A eterna chama de uma vida inteira se colore de significados a cada leitura. A ce-
lebração do verso, frente a essa saudade tamanha palmilha cada passo nesse chão bruto
de sua poesia. Evoé, Antonio Sodré!
Referências bibliográficas
AGUIAR E SILVA, V. M. A criação poética. In: Teoria da Literatura. Coimbra, Almedina, 1968.
BARROS, M. de. Matéria de Poesia. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1974.
BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.
MOISÉS, C. F. Poesia & Utopia. Sobre a função da poesia e do poeta. São Paulo: Escrituras Editora,
2007.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
Marli Walker
A História da literatura mato-grossense, publicada pelo historiador, romancista
e ensaísta Rubens de Mendonça em 1970, apresenta a literatura produzida no Estado
desde o século XVIII. Embora não se questione o valor da obra, o silêncio em torno das
produções femininas é latente, configurando, assim, a história da literatura mato-gros-
sense desse pesquisador como uma história da literatura produzida por homens. Salvo
a referência às prosadoras Maria Dimpina Lobo Duarte, por sua dedicação à revista A
Violeta, e Vera Iolanda Randazzo, e as poetisas Maria de Arruda Müller e Amália Ver-
langieri, a obra refere-se, do início ao fim, a nomes masculinos.
Outro pesquisador e estudioso da cultura local, Lenine Póvoas, publicou em
sua História da cultura matogrossense (1982) um capítulo sobre os primeiros textos
literários registrados no Estado. De um período que abrange desde o século XIX até
a coetaneidade da pesquisa; o autor cita apenas as poetisas Benilde Borba de Moura,
Amália Verlangieri e Guilhermina de Figueiredo, e a prosadora Vera Iolanda Randazzo.
O pesquisador e poeta Carlos Gomes de Carvalho lista, em A poesia em Mato
Grosso (2003), cento e sete poetas que, segundo seus estudos, realizaram dois séculos
de poesia no Estado. Dentre os nomes apresentados por Carvalho, menos de dez por
cento são mulheres. Sabe-se, no entanto, que mesmo não havendo publicado em jor-
nais, revistas ou em livro tanto quanto os homens, as mulheres mato-grossenses, como
as brasileiras, escreveram sempre que puderam e fizeram da escrita um meio de dizer
os seus sentimentos e também de manifestar esteticamente as emoções que inspiravam
o exercício poético.
Nesse contexto, a condição da mulher escritora em Mato Grosso não diverge
da realidade observada em outras esferas, seja nacional ou civilizacional. A literatura
produzida por mulheres em Mato Grosso, em conformidade com o que ocorreu no
país, apresenta uma produção ainda marcada pelo protagonismo masculino no âmbito
da literatura, da cultura, da sociedade e da política. Dentre outros aspectos, este é um
dos fatores que caracteriza as autoras mulheres como um grupo de escritoras colocado
à margem da historiografia literária do Estado de Mato Grosso em determinados pe-
ríodos.
Sobre a produção literária feminina do século XIX, atribui-se ao aperfeiçoa-
mento das máquinas impressoras e à consequente expansão do mercado editorial a
conquista de novos leitores e, principalmente, leitoras, contigenciando a abertura de
um espaço de fácil acesso às mulheres com vocação ao exercício das letras. No entanto,
o universo feminino permanecia sob a censura explícita ou sob o olhar complacente
do mundo masculino, que via o exercício da escritura como apenas mais um capricho
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
feminino e, mais grave, uma ameaça aos bons costumes. É no período entre séculos
(1880-1920), que se torna mais evidente o confronto entre o antigo e o novo devido
à persistência de uma literatura mimética, paralelamente ao surgimento de vozes ino-
vadoras.
Rita Schmidt (1997) problematiza essa questão no âmbito de um discurso
crítico latino-americano que possa se construir como um projeto orgânico e dinâmico
de intervenção nas práticas acadêmico-culturais, de modo a não nos rendermos e repe-
tirmos o discurso hegemônico pautado na ótica da colonização, e nem tampouco nos
apropriarmos, de forma mecânica, do discurso do outro, pois é preciso muita cautela
com esse horizonte exegético da diferença construído pelo olhar etnocêntrico, tradi-
cionalmente investido do poder da representação/poder da significação. Porquanto, é
no horizonte do comprometimento com a desconstrução de valores totalitários hege-
mônicos e seus discursos de legitimação que o investimento no poder de interpretação/
significação perfaz o circuito da teoria e da práxis na configuração de dois grandes eixos
de investigação: resgate e revisionismo.
O trabalho de resgate está relacionado à recuperação da produção literária de
autoria feminina do passado, relegada por uma tradição crítica incapaz de assumir os
preconceitos inerentes aos seus métodos e que, sistematicamente, a menosprezou sob o
argumento de que foi e continua sendo uma produção deficitária ou inferior em rela-
ção ao perfil de realização de obras modelares, coincidentemente, de autoria masculina.
A representação é o fulcro de toda a prática discursiva. Ela é tão poderosa em criar
realidades e moldar os seus sentidos, que o controle ideológico de seus mecanismos
de organização e significação sempre foi a forma mais eficaz de manutenção do poder.
Entende-se, assim, porque as convenções literárias impunham limitações à experiência
da escrita feminina.
O revisionismo, por seu turno, articula-se a partir da constatação da ausência
da autoria feminina na historiografia literária, o que traz à tona questões relativas à
construção de gênero nos discursos institucionais do campo literário, os quais contro-
lam a produção de significados que irão necessariamente circular também, no campo
social. A revisão do discurso crítico busca produzir e manter certa definição de literatu-
ra que venha garantir a legitimidade de obras merecedoras de integrar o nosso capital
simbólico – o cânone – e, ao mesmo tempo, garantir a invisibilidade daquelas consi-
deradas como destituídas de valor. Revisar as obras canônicas, o discurso crítico que
as legitima como tal, bem como o discurso da nossa historiografia, do ponto de vista
de sujeitos que falam explicitamente do lugar de onde se constituem e se posicionam
como mulheres, referentes concretos e empíricos de tudo o que tem sido dito, presu-
mido ou teorizado sobre sujeitos femininos, significa viabilizar novas interpretações/
significações e, nesse processo, entender e explicar o que sabemos e como o sabemos,
de forma a divisar outros saberes possíveis.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
interior da nação – implica redimensionar o tempo das narrativas modernas que loca-
lizam o povo ou a nação como sujeito e, ao mesmo tempo, objeto de narrativas sociais
e literárias. As fontes simbólicas e afetivas da identidade cultural modificam o espaço
horizontal do povo-nação, pois esse espaço presume um tempo fixo, homogêneo da
representação da nação.
Essa concepção é abordada também por Cíntia Schwantes quando discute
a questão da literatura como representação da sociedade. Segundo a autora, “no que
toca à representação de minorias, aos extratos da sociedade que alcançam, por motivos
variados, pouca representatividade política e, de maneira correlata, habitam as mar-
gens da representação literária, a situação se complica um pouco mais” (2002, p.193).
Schwantes adverte que o princípio do qual parte para pensar a questão é “o de que a
literatura nos fornece sinais indiretos, muito mais do que diretos, sobre a sociedade na
qual circulou, ou circula” (2002, p. 193).
Essa reflexão reporta o olhar novamente ao que diz Schwantes sobre a revisão
do cânone literário que os estudos de gênero propõem. A questão, no caso das obras
de autoria feminina excluídas do cânone, não é justificada pela ausência de qualidade
estética nas obras, mas porque, para dar voz à experiência especificamente feminina, a
mulher precisa trair a instituição literária falologocêntrica para conferir especificidade à
sua voz própria. Schwantes considera que a mulher escritora, desejando ser entendida,
deverá usar a linguagem masculina, sem o que poderá ser renegada ao esquecimento e
perda de sentido. Por isso, afirma, o estreito espaço em que se insere a escrita feminina
é entre o apagamento e a possibilidade de representação.
Conforme reflexão de Schmidt (1996), a polarização cânone/contra-cânone
implica uma afirmação da autoridade do centro na medida em que a negação dos seus
paradigmas de referência, condição de existência da retórica contra-canônica, implica
o reconhecimento do centro como referencial, o que acaba alimentando e reforçando
o seu poder de perpetuar os paradigmas de valor em função dos quais certas obras são
canonizadas e outras relegadas. Então, é essa a lógica que precisa ser desconstruída sob
pena de o discurso crítico construir suas próprias periferias. Para que isso não ocorra
há de se pensar as próprias margens, porque elas são complexas, irredutíveis à categoria
unidimensional do outro.
Problematizando ainda mais a questão, a autora diz que a tradição está pauta-
da no processo de reprodução do mesmo, pois a força homogeneizadora que atua sobre
a seleção reafirma as identidades e afinidades e exclui as diferenças incompatíveis com
um todo uniforme e coerente em termos de padrões estéticos de excelência. Assim, os
valores ditos universais constituem um cânone que é, na base, uma decorrência do po-
der de discursos críticos e das instituições que os abrigam. No entanto, conceitos como
diferença e alteridade colocaram sob suspeita os pressupostos fundacionais, a questão
da representação e os critérios de valor que embasam a sua construção.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
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tanto do século XIX como do XX, cujo período é contado pelos pesquisadores como
uma história da literatura produzida por homens em Mato Grosso.
Desse modo, vale lembrar as observações de Rita Schmidt (1997), que elabora
sua reflexão a partir de indagações sobre o valor estético das obras de escritoras brasi-
leiras esquecidas do século XIX, e o que essas obras podem acrescentar à nossa velha
literatura desse período. Para a autora, a resposta a essas perguntas suscita relações com
gestos institucionais ligados a práticas exclusionárias que funcionam como instrumen-
to de colonização intelectual. Ora, levantar tal questão implica ferir a susceptibilidade
da crítica dominante, na medida em que a crítica local e nacional ignorou e ignora as
obras de autoria feminina por considerá-las do ângulo de uma economia deficitária,
isto é, como obras que não se alinham ao perfil de realização estética das obras mo-
delares – de autoria masculina – deslocando a leitura de identidade nacional posta. A
autora continua a reflexão sobre o valor da obra literária, que contém vestígios de uma
tradição cuja ideia é a da não-contingência da noção de valor literário, como se fosse
possível sustentar uma visão essencialista da literatura, da universalidade e permanên-
cia. Essa postura, entende Schmidt, implicaria em subtrair da questão de valor o seu
caráter fundamental que é justamente a sua mutabilidade e diversidade.
Elisa Alberto
No século XIX, os dois únicos registros de poesia escrita em Mato Grosso por
mulheres são os poemas de Elisa Alberto, publicados na Vila Real do Bom Jesus de
Cuiabá, no jornal O Liberal, nos anos de 1874 e 1875, nas edições número 165 e 174,
respectivamente. Trata-se, pois, do primeiro registro lírico escrito por uma mulher,
falando de amor, de que se tem notícia no Estado. Os poemas de Elisa Alberto figuram
como o marco inicial da lírica feminina produzida em Mato Grosso, constituindo o
critério natural de seleção do corpus referente ao século XIX. Sobre o que Elisa Alberto
viveu e escreveu pouco se sabe além da publicação dos dois poemas no referido jornal.
Conforme afirma Nadaf, no século XIX a contribuição da mulher com a escrita lite-
rária foi escassa, pois quando escreveu limitou-se a redigir “cartas para esclarecimentos
de cunho familiar – herança, agradecimento pelos pêsames recebidos pela morte do
marido, ou agradecimento pelos cuidados médicos dispensados a algum membro da
família” (NADAF, 1996, p. 467).
No poema Malfadada1, o sujeito-de-enunciação lírico2 anuncia logo no título
a desventura trazida pelo sentimento amoroso, pois o breve instante vivido em amores
é interrompido pela separação e pelo tom definitivo da despedida:
1 Publicado no jornal O Liberal. Nº 165, 20/nov/1874, p. s/nº.
2 Esse termo foi cunhado pela teórica alemã Käte Hamburger (1986) para designar o eu lírico. Neste texto, no
decorrer da análise dos enunciados líricos, serão usados também, além de sujeito-de-enunciação lírico, os termos
eu lírico, sujeito lírico, voz lírica, sujeito poético, eu poético e eu enunciador para designar o sujeito artístico do
enunciado lírico.
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[...]
Para longe te foste e me deixaste!
Nem para mim volveste,
Fugindo, um doce olhar de despedida.
[...]
Sem mais lembrar quem só por ti suspira!
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Assim, uma vez casada, a mulher passava a pertencer a seu marido e só a ele. As-
suntos ligados a sexo eram deixados de lado. A mãe apenas instruía à filha nesse espírito
e depois a entregava a um homem. Para a moça, o laço matrimonial por interesse
significava, muitas vezes, a apoteose de sua boa educação e a entrada no mundo adulto.
Por isso, a jovem assim instruída não descuidava dos princípios que ditavam a vida da
mulher em sociedade: discrição, delicadeza e amabilidade. Fecha-se, assim, o século
XIX como fechavam as mulheres o seu corpo, protegendo-o com mantos, laços, nós e
botões. Todo o pudor excessivo, a complicação com as roupas, traduziu-se em final de
século num erotismo difuso que fixava o olhar masculino nos ombros, nas botinas, na
fineza dos pés e nos cabelos longos.
No século XIX, período em que o amor romântico começa a se delinear como
possibilidade aos corações de homens e mulheres - haja vista as transformações ocorri-
das no ideário amoroso em virtude dos deslocamentos sociais e econômicos promovi-
dos pelas revoluções de fins de século - a mulher começou, embora timidamente, dizer
de si e de seus sentimentos. Numa linguagem carregada de comparações e metáforas
associadas à natureza, como era o gosto romântico, Elisa Alberto constrói as imagens
líricas que traduzem as amarguras do amor não correspondido:
As imagens recorrentes do vento somam-se à imagem das asas que são, “antes
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Nesse primeiro poema, a desilusão frente ao amor é traduzida por figuras que reme-
tem, insistentemente, para a morte, tema caro ao Romantismo que associou a impossibilidade
da realização amorosa à morte. Seguindo esse modelo universal, a voz lírica cantou sua des-
ventura como quem fala do lugar derradeiro, a sepultura. Desse lugar, emana o sentimento
do eu lírico que, sem mais esperanças, definha na solidão e desilusão da mais fria de todas as
condições, a amarga desventura de um amor iludido.
O segundo poema de Elisa Alberto, Insensível3 (1875), traz uma linguagem
que denota o tom acusativo do eu lírico frente ao descaso do ser amado. A partir de
expressões como “aspiração fagueira”, “fervoroso voto”, “adoração infinita”, o eu do
poema desfia a mágoa e a dor que a indiferença do ser amado provocam. As imagens
denunciam a acusação que se impõe no título, Insensível, e se avolumam no decorrer
das seis estrofes. O vento, imagem mitológica de zefhiro, símbolo de instabilidade e
inconstância, imprime a transição veloz de um estado desejado, o do fogo e calor amo-
roso, para outro, que se apresenta insensível e imóvel diante do curto instante que se
apaga.
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tal qual um Deus Pai que criou o mundo e nomeou as coisas, torna-se o
progenitor e procriador de seu texto. À mulher é negada a autonomia, a
subjetividade necessária à criação. O que lhe cabe é a encarnação mítica dos
extremos da alteridade, do misterioso e intransigente outro, confrontado
com veneração e temor. O que lhe cabe é uma vida de sacrifícios e servidão,
uma vida sem história própria. Demônio ou bruxa, anjo ou fada, ela é me-
diadora entre o artista e o desconhecido, instruindo-o em degradação ou
exalando pureza (TELLES, 2011, p. 403).
Assim, enveredar por uma leitura a que as imagens do poema escrito no sé-
culo XIX, por Elisa Alberto remetem, seria negar a hegemonia cultural do período,
cuja atuação artística da mulher era ainda limitada aos padrões que o regime patriarcal
lhe impunha. Excluídas do processo de criação cultural, as mulheres tanto estavam
sujeitas à autoridade/autoria masculina, como serviam de espelho mágico para refletir
a figura do homem com o dobro do tamanho natural. Essa concepção do espelho, da
crítica literária inglesa Virgínia Woolf (1985), é reforçada quando a escritora diz que as
glórias de todas as guerras seriam desconhecidas e os super-homens não teriam existido
se as mulheres não tivessem sido tomadas como seus espelhos mágicos durante tantos
séculos.
Com base no aporte teórico sobre criação literária em verso, mesmo conside-
rando o contexto histórico em que o texto foi produzido e, nesse espaço, reconhecendo
os limites expressivos dados à mulher, vale ressaltar que as imagens das estrofes finais
sugerem o desejo do eu lírico pela união íntima com o ser amado. Considerando, no
entanto, o meio cultural no qual a mulher estava inserida e, por conseguinte, a limita-
ção que este meio impunha à expressão artística feminina, o que sobressai na poesia de
Elisa Alberto é o lamento melancólico do sujeito lírico diante do amor não correspon-
dido. Essa postura já pode, por si só, ser considerada ousada para a época, pois o ideal
de mulher consistia numa natureza frágil, agradável, no universo da boa mãe, submissa
e doce. Entrar no domínio do amor sensual ou erotizado seria, então, inconcebível para
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De tempos por esta parte têm se tornado frequente entre nós os casamentos
pelo rapto e acompanhados de tanta imoralidade que espantam e fazem
tremer aqueles que olham para a família como o fundamento da sociedade.
Moças e até moços têm havido que, sendo menores, são raptados das casas
de seus pais e daí a pouco estão casados sem a intervenção do consentimen-
to paterno.
Quando o rapto era consentido pela moça sob promessa de casamento, era
comum fugirem à noite, a cavalo. Ter ou não relação sexual com a escolhida era uma
decisão do raptor. De todo modo, uma vez bem escondida da família, a moça man-
dava avisar aos pais que somente casada sairia do cativeiro. O enlace era realizado no
dia seguinte, por um juiz de paz, sem festas e sem proclamas, sob pena de a honra da
moça e da família serem duramente prejudicadas. Caso o raptor fugisse à obrigação do
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casamento, o pai interpelava o sedutor e o obrigava a casar, pois se a moça não casasse
após a fuga, seria considerada mulher perdida. O fujão, por seu turno, considerado
indigno e roubador da honra, era expulso da região, ou, ainda, podia ser assassinado
ou castrado, acentua Freire. Sobre esse mesmo período e sobre o mesmo aspecto, vale
transcrever os dados apontados por Priore (2011, p. 148):
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
1 Miguel d’Escoto havia iniciado um jejum pela paz em seu país que vivia guerra civil. Esse período inspirou
vários poemas de Casaldáliga dedicados à Nicarágua (Anotações de um diário de emergência. In: CASALDÁLIGA,
P. Nicarágua: combate e profecia, 1986, p. 13).
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uma libertação social, tal como vemos na pintura de Cerezo Barredo2, na poesia de
Casaldáliga e de Cardenal.
O teólogo da libertação propõe a ação transformadora da fé que liberta, agin-
do na consciência do povo, por meio de atividades culturais e simbólicas; veiculando
mensagens de solidariedade e projetando valores de resistência e compromisso. Esse
método sobre a reflexão teológica não parte das doutrinas estabelecidas pelas tradições
cristãs, mas atende às imposições do momento atual e à necessidade de confraternizar
com a pobreza alheia, entendendo-a não como fato natural, mas como resultado de
ações do mundo capitalista. Leonardo Boff, um dos teólogos de destaques no Brasil
e de influência e atuação europeia, reconhece o mérito da racionalidade marxista que
realizou a denúncia do pobre como um sujeito vitimado pelo processo de espoliação,
“de natureza econômica, política, ecológica e cultural” (2000, p. 171). José Tamayo
assinala que a participação de Casaldáliga nessa teologia pode ser comprovada por uma
práxis religiosa consciente e determinada organicamente: “na fidelidade ao evangelho
logra a sínteses entre o que muitos consideram irreconciliável: revolução e canção,
evangelho e subversão” (2009, p. 311).
Elegendo a forma poética e memorialista, Casaldáliga assume a voz dos povos
indígenas, mestiços, sem terras que vivem marginalizados na região amazônica brasileira.
Região essa que o poeta aprendeu a defender como uma terra de origem. Nascido em Bal-
sareni, província próxima de Barcelona- Espanha, em 1928, de família de sitiantes; Casal-
dáliga teve tio padre morto pelos soldados republicanos, durante guerra civil espanhola _
o que determinou sua decisão pelo sacerdócio e pelas missões. Veio para o Brasil em 1968,
atendendo à convocação da congregação claretiana que o chamou para missionar na re-
gião Norte do Mato Grosso, região com uma população marginalizada (sem-terras, índios
e posseiros). Radicado até o momento na cidade mato-grossense, São Félix do Araguaia,
Casaldáliga realizou uma travessia sem retorno para uma região fronteiriça, região com
diferentes tribos indígenas e marcada pela marginalidade na disputa por terra3.
Se a travessia foi sem retorno, a poesia, palavra compromissada com as missões,
também seria caminho sem volta. O bispo missioneiro manteve registradas suas ações e o
percurso de sua trajetória nas memórias: Creio na justiça e na esperança (1978); Em rebelde
fidelidade (1984); Nicarágua: combate e profecia (1986); Quando os dias fazem pensar (2007).
Na produção memorialística, registra a vocação poética prematura, mas já consciente:
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
cadas, desde que fue dos años seminarista en Vich también. (1975, p. 21).
Seu primeiro livro Palabra ungida (1955), anterior à vinda ao Brasil, embora
não contenha os elementos indigenistas do transculturador, já aponta para a palavra
poética da causa libertadora. Com a chamada à missão, consegue conciliar poesia e prá-
tica religiosa, alcançando o “clima heroico para viver heroicamente”, conforme atesta
em suas memórias. No Brasil da década de 70, encontra um regime ditatorial com gra-
ves ocorrências de perseguição a intelectuais engajados, a líderes de grupos de oposição,
incluindo a clérigos acusados de incitar o povo à rebelião.
A pesquisadora da história da literatura de Mato Grosso, Hilda Dutra Ma-
galhães, esclarece que o povoamento da Amazônia brasileira reproduz a história da
violação dos direitos e da cultura de seus habitantes, sobretudo dos indígenas (2001,
p. 277). Em resposta à ameaça da internacionalização, a política de povoamento pri-
vilegiou macroempresários, a fim de garantir a expansão agropecuária e a soberania
sobre a Amazônia Legal. Contudo, esse processo de ocupação sacrificou camponeses e
indígenas, habitantes que foram obrigados a viver de forma clandestina e nômade, vi-
venciando a violência pela garantia de seu território. Em resposta aos conflitos gerados
por essa política, Casaldáliga escreve a Carta pastoral 4, um documento polêmico em
que denuncia a violência e o trabalho escravo no município mato-grossense.
É notável em sua produção a voz que denuncia as injustiças sociais e representa
a voz da minoria, conferindo à literatura a característica do engajamento. Contudo, o
compromisso com a causa da libertação se revela pela palavra sugestiva, pela imagem
simbólica que remete à tradição cultural do qual o poeta é porta voz. Situações do
cotidiano da região, da violência presenciada e os momentos de simples reflexão
espiritual são contemplados nos versos do autor. No poema Aldeia Tapirapé, presente
na obra Antologia retirante (1978), temos revelado o momento de consagração do bispo
emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia:
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
A consagração tradicional (que deve ser feita em forma de missa, com presen-
ça de um bispo ordenante que faz a entrega do anel episcopal, do báculo pastoral, da
mitra e do pálio - insígnias da ordenação) é totalmente modificada. Casaldáliga é or-
denado à beira do Araguaia anoitecido, com um chapéu sertanejo e um remo-borduna
(feito de pau-brasil pelos índios da aldeia); recusa os símbolos do luxo da igreja para
adotar como emblemas episcopais: “a mitra e o báculo daquela dignidade que tinha de
serviço” (1975, p. 45).
Sua transformação está traduzida na imagem do sujeito poético que sente a
ubiquidade do mundo. O pássaro e peixe participam do rito, com o simbolismo de
liberdade, mas também marcando a elevação, enquanto a água do rio une luz e treva,
para a anistia do homem. A forma angular das canoas sugere a uniquidade e a presença
da trindade, nessa hora que se faz sagrada, em que tudo faz remeter à história da con-
sagração do homem em Cristo.
O rito da consagração deve propiciar o retorno a um tempo de união, em que
a promessa do paraíso antigo está na convivência pacífica entre os homens da aldeia,
na aprendizagem com os índios. Neste momento de consagração, o poeta lembrará a
presença do amigo nicaraguense e sua homenagem aos índios, cantada em versos: “Er-
nesto Cardenal me está contando,/ estos días _ las hojas y mis ojos _,/ su “Homenaje a
los indios”. O diálogo vivenciando no período em que esteve na Nicarágua é retomado
pelo sujeito poético, a fim de recordar e reviver a causa indígena que une os dois poetas
seguidores da mesma teologia.
Na imagem da consagração que se forma no poema, o poeta é levado a desejar
a união final com a força mágica da cultura indígena, a aldeia luminosa, primeira e
verdadeira morada do homem:
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Eu
e tu, Araguaia,
somos um tempo só.
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Abraamicamente numerosas,
nos garantem o sonho proibido
as estrelas, lá fora proibidas.
A imagem do rio Araguaia revela o arquétipo da Água, que gera vida e que
fornece o peixe que alimenta. O Araguaia assegura a presença da Natureza primeira, de
um tempo de comunhão do homem com o seu meio. Conforme assinala Santos, acerca
da análise do poema: “a imagem do rio expressa a fusão do olhar do eu lírico com a
importância que este possui na formação do povoado” (2011, p. 31).
O que permanece de um tempo de harmonia vem representado na imagem
das estrelas que segredam os sonhos e do ipê que enfeita o silêncio da paisagem. A paz
que exala da natureza é evocada nesse momento de reconciliação em que o homem
recorda um tempo mítico, intuído pela contemplação do rio.
Eram
Deus
e as aldeias
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
munho das interrogações humanas e das lendas da região. O rio toma parte com a lua
e segreda as lendas indígenas, como a de Aruaná, o peixe que se torna homem valente
e justiceiro, agraciado por Tupã. Os karajás que vivem à margem do rio Araguaia,
realizam o ritual do Aruanã, homenageando através de cantos e danças o guerreiro,
primeiro chefe da tribo.
No tempo de origem, “um tempo só” evocado pelo eu lírico não havia ainda a
ação do homem que busca a ilusão da conquista, incitados pela ambição do lucro e do
capital; há apenas a ação de Deus nas aldeias indígenas.
Em consonância com essas imagens, a obra do poeta e sacerdote nicaraguense
Ernesto Cardenal revela a práxis da filosofia do pensamento teológico libertador, cris-
talizada em uma poética que une ao imaginário indígena a memória coletiva do povo
nicaraguense.
Nascido em 1925, em Granada, na Nicarágua, o poeta apresenta biografia
conturbada, em que nos apresenta desde o estudante boêmio ao intelectual ativo na
revolução sandinista, desde sua consagração ao afastamento do sacerdócio. Influencia-
do inicialmente pela poesia de Dario e Alfonso Cortés, Cardenal escreveu versos desde
muito jovem, ainda frequentando, em Léon, o Colégio de Los Hermanos Cristianos.
Segundo apontamentos Borgeson (1984), nesse período já se percebe algum atrevi-
mento metafórico e a evocação singela, mas também angustiada de Deus.
Cardenal iniciou seus estudos em 1942 na faculdade de Filosofía y Letras na
Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), onde concluiu com tese sobre
a poesia nicaraguense. Nesse momento, o estudante inicia também sua atividade poé-
tica, embora tenha se recusado a publicar os poemas dessa fase, por acreditá-los ainda
muito imaturos. Contudo na visão de Borgeson, “el joven poeta ya poseía la capacida-
de de recrear poeticamente la vida diária, dando lugar a una convivência de realidade
concreta y ultrarrealidad creada” (1984, p. 22).
A poesia madura virá após os estudos sobre a poética anglo-americana na Uni-
versidade de Nova York, onde se especializa nos versos de Ezra Pound e de T. S. Eliot.
É nos versos de Pound que o poeta admite sua maior influência literária. O estudo do
verso anglo-americano o levou a adaptar suas técnicas, modificando a tradição do verso
nicaraguense. Desse modo, o verso de Pound foi inspirador para o desenvolvimento
do chamado exteriorismo, que Cardenal define, em entrevista concedida à Revista de
la Universidad Complutense de Madrid, como uma prática marcada por elementos do
mundo exterior, no que se incluem acontecimentos, pessoas, realidades cotidianas,
com datas e cifras necessárias5.
Importantes fontes inspiradoras na poética de Cardenal foram os salmos bí-
blicos e a cultura indígena. De volta à Nicarágua, em 1949, intensificou sua atividade
5 Poesia hispano-americana actual, “La poesia actual”, vol XXIV, nº95, enero-febrero 1975; págs 311-346.
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literária e política, escreveu nesse período as obras Epigramas (1961) e Hora 0 (1957-
1959), livros que circularam anônimos devido à repressão no período da ditadura do
governo Somoza. Em Epigramas dominam os temas do amor e da política, as paixões
que movimentam o poeta: a mulher e a política revolucionária, ambas se entrecruzan-
do no valor biográfico e ideológico (BORGESON, 1984). Conforme o pesquisador,
Eduardo Bertarelli (1984), a característica central da obra cardeliana é o diálogo entre a
mística e o reflexo imediato nas ações humanas. Diálogo esse que serve para compreen-
der o pensamento político e religioso de Ernesto Cardenal.
Embora produzindo uma poesia de caráter mais social e político, o chamado
para a vida monástica sempre esteve presente. O sentimento de culpa e insatisfação
pela vida mundana foram aos poucos modificando a biografia do poeta que, em agosto
de 1965, em Manágua, decidiu-se pela ordenação. Ao narrar, em obra memorialística,
sua decisão pelo sacerdote, o poeta enfatiza a experiência mística que operou a profun-
da transformação em seu estilo de vida:
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raguense à causa do amigo radicado no Brasil, no episódio em que lhe foi confiscado
o livro de Salmos6:
Monseñor:
Leí que en un saqueo de la Policía Militar
En la Prelatura de São Felix, se llevaron, entre
Otras cosas, la traducción portuguesa (no sabía
que hubiera) de Salmos de Ernesto Cardenal
6Conforme atesta em suas memórias, Casaldáliga teve o livro de Salmos, de Cardenal, confiscado pela polícia de
Mato Grosso, sob a acusação que se tratava de literatura subversiva.
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SALMO 5
Castígalos oh Dios
malogra su política
confunde sus memorándums
impide sus programas
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
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A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, ‘esta coleção
de objetos de não amor’ (Drummond). Resiste ao contínuo “harmonioso”
pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo
harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste ima-
ginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia. (BOSI,
2000, p. 169)
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A cultura dos pobres, dos ribeirinhos, das mulheres, dos indígenas, negros e outros
servem como fonte de inspiração e representação para a arte desenvolvida junto à Teologia da
Libertação. “A irrupção dos pobres na sociedade e na Igreja provocou essa revolução.” (BOFF,
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2005, p. 7). O sagrado aqui se manifesta diante da história de um povo marcada por injusti-
ças sociais, miséria, violência, abusos e morte gerando uma nova configuração para a leitura
bíblica, para a exposição da doutrina para os ritos e tradições que entrelaçam a participação da
comunidade nos afezeres da igreja.
O diálogo entre as expressões artísticas voltadas para essa cultura, firmado tan-
to no compromisso social quanto evangélico encontram-se nas pinturas de Maximino
Cerezo Barredo e nos poemas de Dom Pedro Casaldáliga.
Maximino Cerezo Barredo nasceu em Villaviciosa, Astúrias, Espanha, em
1932. Estudou pintura e desenho na Escuela de Bellas Artes de San Carlos, Valência,
e na Escuela de Bellas Artes San Fernando, Madri; tornando-se professor dessa última.
Inicia sua missão na Amazônia peruana, em 1970, ano em que desenvolve uma pintura
particular, compromissada com as causas do pensamento teológico, como deixou regis-
trado no polêmico mural “La opción por lós pobres”, pintado na Colômbia. A partir
dessa época, realiza a pintura de murais em diferentes lugares da América Latina, do
México até à Argentina, dando cores e formas ao Mundo dos Pobres, ao Outro Mundo
Possível e a Boa Notícia dos evangelhos.
Companheiro de caminhada e de ideologia de Barredo, Pedro Casaldáliga
também nasceu na Espanha, em uma aldeia próxima à Barcelona, em 1928. Veio para
o Brasil em 1968 e fixou residência em São Félix do Araguaia, em Mato Grosso, onde
exerceu a função de Bispo emérito na Prelazia. Ao chegar ao país, não ficou imune
às reivindicações do povo que vivenciava o regime militar, comprometendo-se com a
causa pela defesa dos direitos humanos. Seu compromisso com as causas sociais estão
em consonância com as causas da libertação que defende uma revolução espiritual que
culmina em uma participação ativa do povo na sociedade e na Igreja.
A série de murais na prelazia de São Félix do Araguaia é iniciada por Cerezo
Barredo em 1970, quando em solidariedade aos companheiros da causa, esteve na
região mato-grossense. Todas as pinturas estão centradas em narrações do Novo Evan-
gelho, trazendo imagens de profecia, de martírio, de cenas bíblicas em que as perso-
nagens são o povo negro, mestiço, indígena, homens e mulheres, moradores da região
que são ilustrados, não como espectadores ou como componentes de uma paisagem,
mas como sujeitos que atuam para transformar a própria história.
Para a leitura dos painéis em relação aos poemas foi selecionada como base
teórica, a semiótica desenvolvida por Algidar Julien Greimas, uma vez que:
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ticos e topológicos podem ser analisados por meio das relações de contraste em que o
plano da expressão é organizado. As relações semisimbólicas revelam que o lado direito
representado pela morte e o lado esquerdo pela vida; nesses espaços ainda é possível
associar a relação entre horizontal x vertical, uma vez que o lado esquerdo onde está fi-
gurativizada a vida as pessoas estão em pé e o lado direito estão deitadas ou ajoelhadas.
De acordo com a categoria plástica topológica podemos estabelecer o contraste entre
direito x esquerdo, horizontal e vertical.
A categoria plástica eidética que descreve a forma dos elementos, pode ser
definida pela regularidade da projeção das figuras em contraste com a irregularidade,
assim, do lado esquerdo, todos estão em pé, em posição de luta e de frente para o es-
pectador; o lado direito, todavia, traz figuras de lado, deitadas, ajoelhadas, de cabeça
para baixo, estabelecendo a diferenciação entre as formas por meio das oposições ho-
mogêneo e heterogêneo.
Já na categoria cromática, nota-se a oposição entre o claro x o escuro figurati-
zada pela presença ou ausência de luz. O lado direito representado pela morte apresen-
ta cores escuras, com os sujeitos do discurso figurativizados por meio de pessoas ajoe-
lhadas ou deitadas, uma caveira, um saco de dinheiro e um trator passando por cima
das pessoas. O braço da morte é escuro e extenso, seu formato tenta pinçar as pessoas
do lado direito, projetando a ação dos valores capitalistas massacrando os indivíduos.
Já o lado direito, a presença da luz está projetada nas cores claras e brancas de suas rou-
pas e da luz que vem do alto como fonte de iluminação sobre todos. A luz maior está
sobre a figura de Jesus, aquele que está à frente de todos, com a mão esquerda levan-
tada, impondo-se e limitando a ação da morte. A categoria cromática revela também
um Jesus negro, com traços que representam um homem simples, do povo e marcado
pelas chagas provindas da crucificação; as demais pessoas, homens, mulheres e crianças
são todas negras ou com traços de descendência indígena. A composição dos figurinos
aponta para a simplicidade das vestimentas e da existência de objetos que demonstram
a luta e o trabalho como a faca, a enxada e o chapéu de palha.
O fundo do mural do lado esquerdo mostra um degradê de cores quentes e
claros, com um alaranjado, um marrom e um amarelo, já o lado direito carrega no
verde e marrom escuro, mais uma vez referenciando o lado da vida x morte.
Nesta oposição entre o claro e o escuro, temos a figura do Cristo em pé, todo
vestido de branco, à frente das pessoas, um braço estendido ao povo e o outro firme,
representado a vida em luta e o outro imposto diante do seu rival, um rosto roxo, de
boca aberta engolindo uma pessoa, o olho esbugalhado, uma metáfora da Morte.
A diferenciação do sagrado na representação pictórica é expressa pelo arco de
luz na cabeça do Cristo, tal como era marcado pelas pinturas bizantinas. Há, portanto,
uma retomada da era primitiva da arte religiosa. Os traços simples, a pouca utilização
da perspectiva e o uso puro das cores (sem misturas) reafirmam este retorno à arte
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do poder”. A ação da Morte surge tal como na pintura, pelo “braço imenso [que] tenta
capturar-nos”. A queda, o massacre e a captura são as modalidades do fazer da Morte.
O pedido de auxílio conjuga-se com a espacialidade da pintura, pois “as portas do san-
tuário” aberta para “uma consciência ao sol” coincide com o espaço em que o mural
está posicionado simbolizando a passagem de luz para dentro da igreja.
O sol, o mundo e o Araguaia afunilam o fazer e o poder da consciência com o
auxílio de Deus. A luta marca essa conscientização por meio da História de um povo,
os índios e os tori, citados no poema. A missão, a Verdade e a Páscoa encontram-se
sob “as telhas antigas” tal o local onde está pintado o painel, há, ainda, uma espécie de
moldura formada pelas telhas da construção da igreja.
O Reino de Deus é conquistado por meio da ação, são “os passos de Francisco,
do povo e dos romeiros” que promovem a chegada da “graça” e da “conquista” atri-
buídas ao “Deus-conosco”. A vida do Reino opõe-se a morte do Anti-reino através da
luta e da conquista que o Reino de Deus promove. A posição de luta libertária marca
a figura sagrada do Cristo em defesa do povo ali representado pelos habitantes daquela
comunidade.
O segundo mural é intitulado A Ceia Ecológica do Reino, está na igreja de Que-
rência e foi pintada em 2001:
Em seu enunciado, o mural apresenta uma ceia posta na floresta onde estão
sentadas pessoas de diferentes classes sociais, culturas e etnias, o que as une é a figura
centralizada de Jesus Cristo no fundo; à frente temos uma árvore cortada com um
broto nascendo, na categoria semântica fundamental, essas figuras do discurso repre-
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sentam a oposição vida x morte. Desse modo, realiza-se: dentro da ceia, vida; fora da
ceia, morte. Nota-se que mesmo fora e mesmo cortaeda, o broto se revela ereto, o senso
comum atribui cor verde e ao broto com a ideia do senso comum da esperança, de algo
que nasce, que surge em meio as adversidades.
Na categoria topológica, a divisão do mural é composta de uma cena dividida
em duas partes figurativizando a passagem do tempo entre o dia e a noite; no espaço
centralizado e no interior da ceia há a suspensão do tempo como se fosse a eternidade,
o ideal, a comunhão perfeita; fora dela ou em seu entorno o dia é marcado pelo lado
esquerdo com o sol e a lua pelo lado direito representa a noite. Assim, os componentes
expressam por meio do contraste vida – dentro (eternidade) / morte – fora (passagem
secular do tempo) operando os termos contrários e contraditórios da oposição funda-
mental.
A categoria cromática está relacionada com as demais categorias, sendo assim,
do lado esquerdo a cor azul clara reafirma o dia junto ao sol de três cores: branco,
amarelo e azul; o lado direito traz a lua branca em contraste com o céu negro. Nessas
relações, a categoria eidética projeta duas formas: uma moldura em vários tons de verde
que manifesta o espaço da floresta desenhada no formato de uma igreja, e no centro,
o círculo de pessoas marcadas pela heterogeneidade de cor, roupas e expressão envolta
do retângulo branco da toalha. A relação entre essas cores carregam significados estru-
turados em mitologias cromáticas. “Uma dessas mitologias diz respeito ao preto rela-
cionado ao luto e o branco, ao nascimento. No ocidente, o preto é a cor das cerimônias
fúnebres, como velórios, enterros e cremações, enquanto o branco é a cor das festas
de ano novo.” (PIETROFORTE, 2008, p. 44). O branco é a cor da vestimenta do
Cristo em oposição ao tronco morto à sua frente, contudo, dele brota um ramo verde,
símbolo bíblico que reafirma a vida.
Loiros, morenos, brancos, negros, indígena, gaúcho, criança, adulto, todas
essas figuras do discurso manifestam a diversidade formadora da ceia. Suas cores e as
das suas vestimentas reafirmam essa variedade. Na toalha branca, os elementos que
compõem a ceia também se firmam nessa construção de sentido: o vinho e o pão são
componentes da mitologia bíblica simbolizando o corpo e o sangue distribuídos as
pessoas para sua plena comunhão, tal como aparece em no evangelho de João, capítulo
6, versículos de 48 a 56, o qual elege o uso desses elementos e que pode ser resumido
no versículo 54: “Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna,
e eu o ressuscitarei no último dia.” (1994, p. 1329). A banana, o queijo e o chimarrão
também fazem composição nessa ceia, marcando a diversidade social dessa roda em
diálogo unificador com a tradição.
Para a Teologia da Libertação, a questão do Reino ocupa lugar de destaque na
idealização e reflexão da prática dessa nova vertente católica.
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O Reino de Deus é uma obsessão de Jesus, sua única causa, porque é a causa
onicompreensiva. O conceito “Reino de Deus” aparece 122 vezes nos evan-
gelhos, das quais 90 vezes na boca do próprio Jesus. O Reino é o senhorio
efeito (reinado) do Pai sobre todos e sobre tudo. Quando Deus reina, tudo
se modifica. “Justiça, liberdade, fraternidade, amor, misericórdia, reconci-
liação, paz, perdão imediatez com Deus... constituem a causa pela qual Je-
sus lutou, pela qual foi perseguido, preso, torturado e condenado à morte.
E tudo isso é o Reino. O Reino de Deus é a revolução e a transfiguração
absoluta, global e estrutural desta realidade, do homem e do cosmos, puri-
ficados de todos os males e cheios da realidade de Deus. (CASALDÁLIGA,
VIGIL, 1993, p. 111)
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vra a coragem da denúncia e a alegria da transformação pelo viés da ação da luta por
meio de um texto simples que descreve ou narra as diferentes pinturas.
Desse modo, a comunhão de todos esses elementos anunciados como prática
e projeto de renovação contribuem tanto para a atualização do fazer social, quanto
para o estético da arte religiosa contemporânea no Brasil e, de forma mais específica,
no Mato Grosso.
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Como são muitos os sujeitos que passam a narrar a história, e estes sujeitos
procedem de origens distintas, o idioma canônico deixa de ser a única for-
ma de expressão de uma determinada comunidade, passando-se a aceitar
outras linguagens, e rompendo-se, assim, com toda sorte de visão monolí-
tica real (COUTINHO, 2010, p. 35).
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1 A Crítica Porã
A Fronteira-Porã, “o local em que o sol se põe” (NOLASCO, 2013, p.12),
situada ao sul do Mato Grosso do Sul, do Brasil, entre as cidades de Ponta Porã/BR e
Pedro Juan Caballero/PY1, é o lócus de epistêmico na qual erigimos esta reflexão. Na
“fronteira seca” há apenas uma rua que faz a linha divisória entre as duas cidades. Na
própria Rua Internacional não há alfândega, nem qualquer restrição ao livre translado
das pessoas que se deslocam simultaneamente para trabalhar, estudar, fazer compras,
buscar seus interesses.
Há que se inferir que este estudo não caminhará para o desvendamento semió-
tico das fotografias propostas, elas tem caráter modelizador ilustrativo. E neste entorno
há também que se elucidar o conceito de texto como memória não hereditária e cole-
tiva. Esta é a perspectiva humana construída a partir da memória, ou seja, a afirmação
do sujeito se dá na constituição de suas memórias e/ou esquecimentos, afinal “é o texto
1 Ponta Porã está situada a 335 quilômetros de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul e Pedro Juan
Caballero a 546 quilômetros de Assunção, capital do Paraguai.
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De caráter “excêntrico”, uma epistemologia outra que não as dos centros legi-
timadores da cultura letrada, a produção do escritor é marginalizada por ser transposta
em dialetos locais como a linguagem em fluxo se dispõe nos entre-meios da fronteira.
Desta forma, esta crítica é tecida na margem observando com a pertinência de
quem vivencia tradições e cultura marginalizada. É a observação do terrorismo linguís-
tico para o centro como reconhecimento da mestiçagem dos elementos regionais neste
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horizonte ideológico.
2 O Portunhol Selbaje
A cidade de Ponta Porã tem como língua oficial a Língua Portuguesa, que
também é a predominante, mas não única. A partir desta surge o Jopará, dialeto local,
língua não-oficial, constituída da mestiçagem e hibridismo das línguas Portuguesa,
Espanhola, Guarani, entre outras. Reitera-se que a fronteira é um local em grande
parte de imigrantes, de “atravessados”, então há que se inferir que culturas oriundas de
nações, que não a brasileira e paraguaia, também adjazem este cenário.
A esta mestiçagem e hibridismo de línguas Douglas denomina Portunhol Selva-
gem. Ciente do local geo-histórico cultural e dos entrecruzares das línguas das frontei-
ras; esta transposição da oralidade dos dialetos fronteiriços para a sua escrita reproduz
diretamente a linguagem e cultura subalterna do sujeito sem voz que habita a fronteira.
Em Uma flor na solapa da miséria, o escritor transpõe a sua ideia da variante
local, usando o próprio dialeto, como uma poesia prosaica. O Portunhol Selvagem, aqui
é a transposição poética do Jopará. É a língua que fez parte de sua infância, que produz
significado e o coloca em evidência na sua constituição identitária de sujeito de fron-
teira e deixará um legado para a posteridade.
É o caráter selvagem desta língua inventada a todo tempo e o tempo todo que faz
que o texto poético fronteiriço escrito se reflita como uma cena congelada da linguagem local
em fluxo. É o modo como se transcreve a história local a partir do conhecimento vivenciado,
produzido. A “fronteira é realidade e mito, sonho e frustação” (CARVALHAL, 2003, p. 153).
O escritor, então, no anseio de publicar e divulgar seus sonetitos selbagens vê a
impossibilidade quando é barrado pelas renomadas editoras brasileiras por não escrever
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Considerações cartoneiras
A produção cartoneira é única, no entanto, aberta a inúmeras interpretações
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assim como a obra de arte mestiça, que não responde a uma única intenção do artista.
Desta forma, este trabalho é um working-in-progress que estuda a relevância de revogar
os estudos das literaturas fronteiriças com intuito de questionar o lócus de subalterno.
Douglas Diegues, porta-voz da Fronteira Porã, compõe sua poesia utilizando
das variantes orais do multilinguismo local denominado por ele como “Portunhol Sel-
vagem”. Este, assim, deve ser considerado um caráter mestiço no plano da Literatura
sul-mato-grossense.
Já caminhando para o fim desta reflexão em processo cartoneiro reitera-se
que há que se abrigar um novo olhar sobre a produção de cultura fronteiriça, pois esta
mostra todo o significado eminente neste campo da produtividade, evidenciando que,
segundo Schelee (1984) “Aqui há uma terra só, só há uma gente, seja do lado de cá,
seja do lado de lá”.
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Virgílio.4 O topos dos troncos gravados5 se encontra na primeira pastoral em língua vul-
gar da Renascência, a Arcadia de Jacopo Sannazaro6. Os pastores «gravent des écorces,
ou plutôt chantent qu’ils ont inscrit des noms sur les arbres, qu’ils le font ou vont le
faire»:
Giavarini8 explica que «Même sur un ton bucolique, dans un registre bas, le
geste signifie la recherche d’une pérennité, que le nom même d’Amaranthe porte déjà
». Vejamos ainda, na mesma obra, Prol. 2 «sì come io stimo, addiviene che le silvestre
canzoni vergate ne li ruvidi cortecci de’ faggi dilettino non meno a chi le legge che li
colti versi scritti ne le rase carte degli indorati libri»; VI 1:
XIIc 1-3 «Qui cantò Meliseo, qui proprio assisimi, / quand’ei scrisse in quel
faggio: - Vidi io, misero, / vidi Filli morire, e non uccisimi»; et finalement XIc 100-05
(é o canto de Ergaste aluno sobre a tomba de sua mãe Massilia):
4 Em ocorrência, Brocense reenvia a uma passagem de Flaminio, ad Gibertum: «sive sub umbrosa captaret frigora
quercu / qua fugiens liquido murmurat unda pede».
5 Cf. Verg. Ecl. 5,13-14 «Immo haec, in viridi nuper quae cortice fagi/carmina descripsi» ; Prop. 1,18,20-22 ;
Ov. Her. 5,21 ; Calp. Sic. Ecl. 1,20-21 ; G. Benivieni, Bucolica (8 ecloghe), in Bucoliche elegantissimamente com-
poste..., VI, c. 15v.
6 «Une proemio qui loue le style humble de la flûte pastorale, douze proses et douze églogues dont les premières
ont sans doute circulé, avant l’édition pirate de 1501, dans un manuscrit de 1489, tandis que les deux dernières
modifient autant le statut de l’imitation que le paysage arcadien; enfin, un adieu A la Sampogna pour témoigner
du retour de Syncero, le narrateur, dans le monde»: Laurence Giavarini, «Et croy que les lettres seront creues
avec les arbres »: Le lieu des écorces gravées dans la pastorale à la Renaissance, in Michel Gally / Michel Jourde
(éds), L’inscription du regard, Moyen Âge – Renaissance, Fontenay/St-Cloud, E.N.S. Éditions, 1995, p. 271-314
[p. 276].
7 Amaranta é o nome da amada de Galicio (cf. Sannazaro, Epigram. 2,7 In tumulum Amaranthae).
8 Giavarini 1995 :277.
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Se adiciona a evocação irônica feita por Lope de Vega em sua Arcadia, prosas
y versos (1605). «Esta eterna habitación de Faunos, y Amadriades, era tan celebrada de
enamorados pensamientos, que a penas en toda la espessura se hallara tronco sin mote
escrito, en el liso papel de su corteza tierna»11
Já o tema da volubilidade, que fez objeto da inscrição de Liso no soneto ca-
moniano, remonta a Ov. Her. 5,109-10 «Tu levior foliis, tum cum sine pondere suci /
mobilibus ventis arida facta volant». Esta é a mesma Héroïde em que Páris escreveu seu
amor por Énone nas sobe o tronco das árvores (v. 21-30):
A volubilidade dos amantes (neste caso Páris) primeiramente foi definida por
Servius ad Aen. 1,663: «quia amantibus nec levius nec mutabilius invenitur».12 Foi
Boccace quem transformou esta definição em um cliché antifeminista, primeiramente
em Filostr. 8,30 «volubil sempre come foglia al vento», referindo-se à uma «giovane
9 Em III 22 se trata de um Olmo: «Paris, che con la falce avea cominciato a scrivere Enone a la corteccia di un
olmo». Na verdade, se tratava de um choupo, cf. Maurizio Perugi, Des farcitures en forme de gloses : les Héroïdes
vernaculaires entre roman farci et commentaire à citations, in R. Brusegan /A. Zironi, L’antichità nella cultura
europea del Medioevo, Ergebnisse der internationalen Tagung in Padua (27.09-01.10.1997), Greifswald, Reineke
Verlag, 1998, p. 3-20.
10 Cfr. Tasso, Rime 88,12-14.
11 Luis Sánchez, 1599, Libro I, f. 3r : « Esta eterna habitación de Faunos, y Amadriades, era tan celebrada de
enamorados pensamientos, que a penas en toda la espessura se hallara tronco sin mote escrito, en el liso papel de
su corteza tierna ».
12 De onde Isid. Orig. 8,11,80.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
donna» et 1,22,1-4 «Che è a porre in donna alcuno amore? / Ché come al vento si
volge la foglia, / così ’n un dì ben mille volte il core / di lor si volge »;13 em seguida em
Filoc. 3,20,16
«Tu, mobile giovane, ti se’ piegato come fanno le frondi al vento, quando
l’autunno l’ha d’umore private »:
Esta vez a similitude está novamente conforme o modelo ovidiano, onde faz
referência a um homem. Mas, como sabemos, foi o clichê «La donna è mobile» que se
impôs nos séculos seguintes. Por oposição mudável / firmeza, que marca a conclusão
do soneto camoniano, como podemos ver em B. Cappello, Rime 73,37-39 «O misero
colui che s’affatica / giamai credendo in feminil pensero / trovar fermezza sua aversaria
antica! », e ainda em L. de’ Medici, referindo-se ao Amor « e tu mi dài / di tua mobi-
lità ogni fermezza14 »; C. Gonzaga, «Ahi sesso feminil crudo più ch’angue, / quando
vedrassi in te fermezza o fede? 15». Este tema foi inserido em um teatro pastoral por
Girolamo Muzio:16
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
Assí puede ser aquí de ambas maneras, Liso, y Soliso: pero más me inclino
a que dize, só Liso: porque lo pide el modo de hablar; assí todo animal repo-
sava, solamente Liso no.
Ou ainda, esta passagem de A. Botta, Il Rurale: Lamento del pastore 28-30 «La
passion grave che nel cor si serra / fa ch’io sol piango al lume della luna, / allor ch’ogni
animal riposa in terra».
Por outro lado, a paleta das variantes relativas ao v.2 não está ainda completa.
A maioria dos testemunhos básicos, a saber CrB, M, PR + Rh, Ri se leem: Só Liso^o
ardor dela não sentia; se adiciona o manuscrito E, que traz Lis o. Se trata em todo caso
de um verso problemático do ponto de vista da escansão, pois, o primeiro acento prin-
cipal está na 5ª sílaba (ardór): esta precede imediatamente outra sílaba tônica (déla),
formando uma sequência que nos parece bem irregular. Esta sequência não muda se
nos basearmos em LF, que é o único onde se lê Hilario. O nome do protagonista deste
soneto se declina, então em três variantes:
Lis E
Liso CrB, M, PR + Rh, Ri
Hilario LF
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
En los manuscritos de la glosa no dize Liso, sino Ilario : yo puse Liso, porque
este soneto que va glosando, y anda impresso, dize Liso : pero quando el P.
le glosó, también él dezia Ilario; porque assí lo veo en los proprios manus-
critos. Esto es, que el P. se andava poniendo diferentes nombres, y parece
tomó assiento el el de Liso: y aun en este no mucho; porque ya dize Liso,
ya Soliso.
Em outros termos, por mais que ele prefira corrigir o texto seguindo a
base do que ele considera como a última versão autoral, FS conclui de maneira
irreprochável que a obra de Camões apresenta muitas estratificações, das quais
não podemos tomar ato. Quanto à glosa recuperada por FS, é pouco provável que
ela pertença a Camões. LAF não integrou este texto em seu ‘corpus mínimo’ afir-
mando que o «Texto publicado, pela primeira vez, na edição de Faria e Sousa, em
1685. A composição aparece em E – 23, mas sem qualquer indicação de autoria.
Portanto, não pode integrar o corpus irredutível da lírica de Camões»19
Seja qual for nosso pensamento sobre o critério autoral adotado por LAF,
outros indícios nos apoiam a chegar a mesma conclusão que LAF. De acordo com
os estudos que Spaggiari consagrou à glosa na península ibérica, a regra é que se
trata de um autor diferente daquele que compõe o poema glosado, ainda mais que o
gênero da glosa parece ter sido cultivado somente por um curto período, nomeada-
mente ao fim do XVI século. Como veremos ao fim de nossa análise das variantes,
a lição Hilario remonta segundo todas as probabilidades à uma versão autoral mais
antiga, que LF assim como os testemunhos conhecidos por FS tiveram, nese caso,
conservado.
Lembramos finalmente que aos v. 9-10 do soneto precedidamente evo-
cado por FS, os personagens se chamam Liso e Natercia, enquanto que o texto
crítico de Azevedo Filho, n° XXVII, se lê respectivamente Ilário e Camila: é a
edição de CrB, que o editor utiliza como ms. de base, enquanto que os outros
mss. LF, TT, MA, assim como o impresso Ri se acordaram em utilizar Liso. Uma
vez mais, a variante de CrB está bem conhecida de FS. Primeiramente, ele diz:
« En un manuscrito, en vez de Só Liso, dize Ilario ». Em seguida, acrescenta:
« Ultimamente en otra copia hallé el soneto en este título: De Ilario, & Camula
[quer dizer Camila] ».
19 laf, I, 385
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte I Exame do texto poético
Nós estamos inclinados a defender que se trata mais uma vez de uma variante
autoral. Soliso e Ilario remontam provavelmente ao período juvenil da produção ca-
moniana.21 Soliso poderia ser uma adaptação de Salicio, um dos protagonistas das duas
primeiras éclogas de Garcilaso:
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Quanto à Camila, cuja origem virgiliana é bem conhecida, ela também apare-
ceria entre os protagonistas da Écloga II de Garcilaso.23
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23 «Podría ocultar el nombre de un amor de don Bernaldino [de Toledo], posiblemente alguna prima suya que
había preferido la vida conventual a casarse con él, según se desprende de que ella en la égloga descienda de la
‘sangre y abuelos’ de Albanio y sea virgen consagrada a Diana » (Morros 1995 :142).
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Sempre Adorada
Desce comigo ao fundo deste horror
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A Valsa
Aos meus amigos João Henriques de Almeida e Rogério Vasco
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Os Tristes
Quando os tristes sofriam, torturados,
Eu deles me acercava, despertando
A coragem, o bem, suave e brando,
Na alma ferida dos abandonados.
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Com “a voz das cotovias”, eco do texto shakespeariano Romeu e Julieta, mode-
lar do discurso amoroso ocidental, “sorriem, de regresso, as alegrias”, o que redundaria
na conclusão: “Não há noite, por mais aterradora,/ Que não finde por uma madru-
gada”. As cotovias seriam, como no texto do mestre inglês, “os arautos da manhã” (as
“mensageiras”, no poema de Eugénio Tavares).
Embora este fosse um raciocínio lógico para a leitura menos atenta do poe-
ma, um adjetivo – “raro” –, associado às cotovias (canto que separava os amantes ao
anunciar, na tragédia de Shakespeare, o raiar do dia), faz soar um alarme: o regresso
das alegrias é “raro” e a “Dor” persiste. Como no texto de Shakespeare, em que o amor
acaba por não se realizar plenamente no mundo do real e o verdadeiro (des?)encontro
dos amantes se dá na morte.
Portanto, a conjunção adversativa (“Mas”), que inicia o último terceto, leva-
nos a entender que, na verdade, o que se afirma é o oposto do aforismo “Não há noite,
por mais aterradora,/ Que não finde por uma madrugada”: a proposta do poema é que
“Neste mundo, quantos corações/ Se mergulham em treva tão pesada/ Que nunca mais
uma alvorada as doura! A expressão em grifo parece a fala do corvo, de Edgar Allan
Poe, em seu poema considerado de “romantismo negro”: Nevermore, nevermore (Nunca
mais, nunca mais!)
O poema Réstea de luz, conjugando-se ao núcleo dos desencontros de amor,
propõe a fugacidade da presença feminina ao lado do amante: ela desperta os seus sen-
timentos e logo se vai.
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“vulcão”, “afogo”) que não poderá ser vivido em plenitude, porque um afastamento é
anunciado (“foge”, “perder sem te beijar”), culminando no estado de solidão: “abandonado”.
O amor, como no texto de Camões, é um estado hiperbólico, “é fogo” (“que
arde sem se ver”), “vulcão dourado pela aurora”, mas que, contraditoriamente, se con-
verte em “males” e “dor” (em Camões “dor que desatina sem doer”).
A amada, quando surge, o faz sempre num contexto luminoso, de aparição
platônica, como podemos observar no poema a seguir.
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O Mal de Amor
(Coroa de espinhos)
Prelúdio
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Podemos observar na quarta quadra do poema o uso dos oximoros para ex-
pressar que o eu poemático sofre com a ausência da amada (talvez por morte?), mas
nela também se fortalece o idealismo amoroso na medida em que o amante tem o
“consolo da saudade”.
Este amor, santificado por um vocabulário religioso cristão (“hóstia”, “santa
cruz”, “braços santos”, “fervor sagrado”, “ungido”, “cruz de sangue que redime”), “eleva
e fortalece [...] aclara e dignifica”, transformando aquele que ama em virtude da nobre-
za do objeto amado.
Por fim, o tema culminante desse núcleo teatralizado que constitui o espírito
de época ultrarromântico é a morte que, como no texto Romeu e Julieta de Wiliam
Shakespeare, acaba por consagrar os amantes:
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PARTE II
Exame do texto narrativo
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para o surgimento da vida - toda a vida vem da água-, daí sua simbologia estar ligada à
matrix - mãe” (ZSCHOMMLER, 2009, p. 2).
Nesse sentido, o sonho e a música brotam da imagem da água na narrativa, é
por meio dela que o sonho se constitui e surge no inconsciente do homem que idea-
liza. Do mesmo modo acontece com a música, pois a imagem do ir e vir das águas se
confunde com as oscilações das ondas do rádio, que transportam seu ouvinte a outros
tempos e lugares, assim como as águas do oceano fazem com o homem que navega.
Precioso (2011, p. 57) destaca que: “A não linearidade e a não cronologia dos fatos nar-
rados balançam como as ondas do mar que vão e vem, se chocam e se desmancham. O
mar dá o tom, o destino, o desejo mais profundo de Beldroaldo. A música e a literatura
confluem para o mesmo mar da arte por meio da memória ficcional”.
Pode-se considerar que o mar, ou a imagem dele, se torna para o homem que
sonha a mais perfeita representação das insígnias da vida, pois a água traz em sua essên-
cia “[...] um dos símbolos do inconsciente, sendo que o ato de entrar na água e dela sair
possui uma analogia com o ato de mergulhar no inconsciente [...]” (ZSCHOMMLER,
2009, p. 3). Logo, o homem que sonha com o mar, busca encontrar nele o seu próprio
Ser. Surgindo no sonho, o mar passa a existir como o sonho, portanto, deixa de ser
imagem para ser essência, constitui-se na própria “coisa”.
Em meio aos desdobramentos do pensamento do protagonista, que oscilam
entre o querer ser e o Ser em relação ao desejo de conhecer o mar, é possível perceber
uma afinidade que se atribui à figura da água com a lembrança materna e paterna,
então, a imagem da água faz recordar a configuração da família; o acalanto da mãe e a
segurança do pai:
O mar tem em suas profundezas uma grande afinidade com a imagem femi-
nina – esposa, mãe, porém, pode ainda ser masculino, por sua força e tamanho. Ora,
essa ambiguidade do mar não deixa de ser impressa no conto A proximidade do mar,
uma vez que é essa ambiguidade o ponto culminante do sonho do personagem que
constantemente se questiona: o que é o mar? Beldroaldo não pode decifrá-lo, enxerga
somente uma fusão de imagens que se guiam para formar um único ser, o mar:
Ele também achava que o mar devia ser feminino, uma espécie de coi-
sa- mulher, imenso, sem fim, se balançando [...] As águas eram femininas:
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criação da água, Beldroaldo sente brotar em si o sonho de estar no mesmo espaço onde
estiveram os grandes heróis mitológicos: “Um mar espumoso e azul, frio no inverno,
mas suave no verão, onde habitavam os deuses da Grécia. Mar Egeu. [...] onde nascera
entre as espumas a deusa do amor, Afrodite, e onde erraram Ulisses e os Argonautas,
Dédalo e Ícaro, onde reinava Netuno com sua corte de tritões e sereias, aureolado de
hipocampos e medusas” (DICKE, 2002, p. 124).
Entende-se que tanto a água quanto a literatura trazem em sua matéria um
significado indizível, porém passível de compreensão, pois a água “[...] traz para si tan-
tas essências! Recebe com igual facilidade as matérias contrárias, o açúcar e o sal. Im-
pregna-se de todas as cores, de todos os sabores, de todos os cheiros” (BACHELARD,
1997, p. 99). Essa definição também poderia ser designada à literatura, visto que ela
carrega tais significados e representações que permitem ao poeta e ao leitor deleitarem-
se no universo das palavras e das imagens – mesclando-as - para deixar seus pensamen-
tos libertos do aprisionamento da realidade.
O devaneio de Beldroaldo proporciona à psique humana a sensação de pleni-
tude e meditação; ele é um sonhador, imagina-se próximo à imensidão do mar e sente
essa proximidade invadir seus sentidos e seu espírito com uma sutil intensidade, que
chega e vai ganhando espaço parecendo não se desprender de si. O sonho o liberta
da realidade mesquinha e condicionada da qual busca se libertar. Bachelard (1993, p.
189), sobre o devaneio e a imensidão, destaca que:
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[...] naquele mar azul e doce que banhava sua terra pululante de ilhas e
arquipélagos, nascera outrora a mulher mais bela entre todas as mulheres,
Anfititre, a rainha do mar [...] nem sabia mais se seu grande desejo de ver
o mar lhe nascera de tanto ouvi-lo contar as coisas marítimas e as lendas
antigas ou se fora naquela noite: tudo já lhe vinha secreto desde há muito
antes de que pensava. (DICKE, 2002, p. 123)
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no mar, imaginou que seus ouvidos o ouviam, que suas narinas respiravam seu alento
de maresia, seu vasto suor de sal e iodo, e seus olhos viam, em vez da noite, o barrir
das ondas, como um rebanho interminável de elefantes – mas o mar estava tão longe”
(DICKE, 2002, p. 126).
Diante dessa imagem do mar, Beldroaldo sente-se impelido a acreditar nas
sensações e vertigens que seus sentidos transmitem, precisa senti-las como realidade (e
não somente fantasia) para realização do tão profundo desejo. Ele sai do plano real para
o ideal, deixa a imaginação levá-lo a um mergulho no mais intenso devaneio para trazer
o objeto de desejo ao seu mundo, pois, segundo Sartre (1964), imaginar é transformar
a realidade em magia. A imaginação faz surgir por meio de pedidos e preces a coisa
pensada e desejada, logo, a imagem se torna então, a própria coisa.
[...] cruzou o canavial que sussurrava o vento. O que tanto dizia esse vento
nas hastes do canavial? Sempre o mesmo, sempre o mesmo. Algum segredo
imemorial seria, senão não falariam sozinhas por tanto tempo, o tempo
que durasse. Mas o que seria? Era uma linguagem, uma voz parecida à das
águas, às marolas de muitas águas passando, que produziam uma música
vegetal, leve às vezes, ás vezes pesada, que parecia um tênue soprar de flauta
no crepúsculo e tomava proporções de orquestra à noite, à medida que tudo
ficava escuro com a chegada das sombras imensas, para de novo, de manhã,
voltar ao cicio das siringes e dos aulos. (DICKE, 2002, p. 130-131)
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Freud (2001, p. 27) lembra que: “[...] alguém que tenha acabado de acordar
presume que seus sonhos, mesmo que não tenham eles próprios vindos de outro mun-
do, ao menos o haviam transportado para outro mundo”. Entende-se, então, o motivo
de Beldroaldo acreditar que realmente estava no cume de uma onde gigantesca. No
entanto, parece que foi Beldroaldo, em estado consciente, quem transportou o “outro
mundo” para junto de si, o mar estava ali (ou a imagem dele), diante de si, no sertão
mato-grossense:
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(2007, p.7), “a ênfase colocada na atualização dos temas míticos universais visa à ar-
ticulação entre esses discursos locais, objetivando estabelecer o mito como o fio que
os liga, numa perspectiva que vai do universalismo dos grandes temas mitológicos da
humanidade às particularidades simbólicas elaboradas no discurso regional”.
Nota-se que o homem está ligado a pensamentos e imagens que saem do âm-
bito pessoal e o elevam à cultura universal, aproximando-o do espaço social/cultural
que mais o representa. Bachelard, ainda lembra que “[...] a imaginação criadora se
apropria do tempo e do espaço conforme um modelo revelador de um “estar no mun-
do” próprio do artista” (BACHELARD apud MIGUEL, 2007, p. 21). Assim, o criador
busca no tempo e no espaço o meio para estar no mundo e ser poeta, ou seja, pela sua
relação com o ambiente é que sua criação se manifesta e se materializa por meio da
linguagem literária.
Dicke, ao tecer a narrativa, não se permite relegar os elementos locais que
darão movimento ao seu texto, porém, os eleva ao campo da universalidade ao lado
da tradição. O contista, então, alinhava os recursos estilísticos, estéticos, linguísticos e
culturais para promover o itinerário entre culturas, o que não permite configurar sua
obra apenas como regional, pois está em comunhão com elementos da esfera universal:
“os autores da transculturação buscam seus recursos na tradição das culturas às quais
pertencem, e só conseguem produzir assim justamente porque também eles são pro-
duto do contato entre as culturas tradicionais e as culturas universalistas” (BARBOSA,
2006, p. 36).
Assim, para compreender a transculturalidade na obra de Dicke, é importante
observar o próprio percurso feito pelo contista. Ele nasce em Raizama, no município
de Chapada dos Guimarães. Anos depois, muda-se para Cuiabá com a família e, por
volta de 1965, parte para o Rio de Janeiro onde inicia sua carreira acadêmica.
Com essa transição geográfica, Dicke permeia espaços e culturas distintas,
contudo, a origem, o sertão de Mato Grosso, é impresso em suas obras em mesmo nível
semântico que as demais culturas contempladas. Essa transição conduz ao hibridismo
cultural, ou seja, o indivíduo que se move entre ambientes e costumes estrangeiros se
torna um novo indivíduo, pois ao deixar sua terra, passa a ser um estrangeiro: dança
outras danças, ouve outras músicas, prova novos sabores e, ao mesclar os seus valores
aos valores do outro, constitui o hibridismo cultural.
O hibridismo faz parte da formação identitária da humanidade, visto que a
relação entre os sujeitos acontece naturalmente. E a literatura é o ambiente que permite
a revelação do hibridismo, pois revela os questionamentos do homem e da realidade,
bem como a relação entre os sujeitos com o espaço em que se situam. Com isso, en-
tende-se que:
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Deitado na cama, ligou o rádio – era o único a fazer aqui-, [...] e procu-
rou uma estação satisfatória no dial, no escuro. [...] depois vieram outras
músicas, mas ela não gostou e mudou: Rádio Nacional de España: música
flamenca de guitarras e castanholas. Paco de Lucia corria os dedos pelas cor-
das da guitarra, transfigurando-a. [...] Ele foi virando o dial até encontrar
La Voz de Alemania e era um programa literário, e ele não se esquecia que
sempre tivera suas veleidades literárias [...]. (DICKE, 2002, p. 141)
Nesse sentido, o dial do rádio permite ao personagem criar e recriar, ir, mas
voltar, deslizar-se pelos pensamentos e, vagarosamente, fluir para o mundo dos sonhos,
assemelhando-se às ondas do mar que vêm e vão, sempre se renovando. A distância
entre os mundos não existe para o sonhador, ela é uma ilusão que se desfaz pela arte,
pela imaginação criadora. O personagem tem no dial do rádio o controle sobre o apri-
sionamento social; é só mover o dial diante do falatório, o que precisava era de música.
Nesse sentido, por meio do dial nos são mostradas as relações interculturais.
Além da música, outro fator determinante para Beldroaldo conhecer além do
mar e navegar na história é o grego Manólios Vesselios, que, às vezes, visitava Beldroal-
do e lhe contava histórias mitológicas. Manólios trouxera, para o sogro de Beldroaldo,
em seu caminhão chamado “Barco da ilusão”, materiais para construção e, nessas visi-
tas, contara ao sonhador como era o mar e sua constante movimentação, nunca imóvel,
indo e vindo.
Manólios conta a Beldroaldo que nasceu no recôndito da Grécia, em Pireu,
um porto próximo de Atenas. O grego viera para o Brasil, porém, sempre retornava à
sua terra. Contava que já fora marinheiro e recordava do movimento do mar. Por meio
dessas características do grego, é possível perceber o entrelaçar das culturas, a ponte
que une a Grécia ao Brasil, mais especificamente ao Mato Grosso. Manólios representa,
por meio de seu ir e vir, a transculturalidade, pois por suas lembranças e viagens pelo
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
mar e pela música, o grego está sempre perto de suas terras, mesmo estando distante
geograficamente.
No excerto que segue, Beldroaldo viaja em seus pensamentos e contempla o
mar ao ouvir música grega em uma estação de rádio de Buenos Aires, a LRA, quando
Manólios chega com seu “Barco da ilusão” para uma visita e, ao perceber o que o amigo
está ouvindo, se sente em estado de nostalgia com a canção:
- Ah, você e o mar... o mar, você sempre pensando no mar... você não
esquece o mar. Que música é essa? Ah... – e um sorriso lhe iluminou a boca,
a cara – é música de minha terra: as buzúquias [...] você escuta essas coisas,
meu filho? [...] e mastigou algumas palavras em grego acompanhando a
música. [...] Ah, deixa-me ouvir... Você pelo que é já devia ter visto o mar
com seus olhos, meu filho... (DICKE, 2002, p. 153)
Não é por acaso que o caminhão do grego Manólios refere-se à ilusão, pois,
para o grego, a distância não existe, ele pode ir e vir, não importa quão distante seja o
seu destino, a proximidade e a distância são somente ilusões. Assim, Manólios provo-
ca Beldroaldo, propondo que ele, homem entendido sobre os assuntos do mar, devia
conhecê-lo, nem que vendesse seu fusca, fruto de muito trabalho: “quem sonha a visão
do mar mais que tudo deve saber que essa imagem vale mais que um fusca velho” (DI-
CKE, 2002, p. 125).
Beldroaldo não vende o fusca e, portanto, não conhece o mar, seu grande de-
sejo. Beldroaldo almejava esse emaranhado de água e, não podendo alcançá-lo, entende
que “talvez fosse melhor apenas o adivinhasse, ficasse assim mesmo como imaginava,
boiasse em sua memória somente como uma coisa ainda não revelada” (DICKE, 2002,
p. 135). Dessa forma, a coisa idealizada permanece imóvel, pois ao realizar um sonho
ele se concretiza e, assim, perde sua magia. Mantendo-se somente sonho, reaviva-se em
cada noite e em cada despertar.
No decorrer deste percurso de leitura, ficou evidenciada a relação entre as
culturas que acontece pelas ações de Beldroaldo, por suas leituras, por meio do dial do
rádio e pela conversa com o grego Manólios. Esses elementos marcam as trocas cultu-
rais e evidenciam o hibridismo presente na narrativa de Dicke que não se limita classi-
ficar como local ou global, pois alcança uma amplitude maior desses conceitos, dada a
dimensão de sua singularidade. Ela demonstra a peculiaridade do escrever de Dicke e
permite um estudo literário guiado pelas perspectivas culturais que são evidenciadas. A
voz dos personagens, os espaços revelados pela linguagem literária, em sua pluralidade
de signos, não permitem que se conclua a análise do tema em questão, mas promovem
outros olhares e interpretações que poderão nortear novas leituras e compreender as
diferentes faces da cultura de Mato Grosso.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
Referências bibliográficas
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
Iouchabel S. de F. Falcão
Ao refletir sobre a configuração do texto literário, Antonio Candido diz que
“a obra depende estritamente do artista e das condições sociais que determinam a sua
posição” (2000, p. 27). Sob o critério “estrito”, que configura vertentes de análise me-
diadas pela tríade obra, autor e público, o estudo da arte literária explora o papel dos
elementos atuantes na tessitura do texto que transportam a realidade observada para o
campo abstrato, considerando a estilização formal vinculada à realidade natural e social
que implica uma gratuidade advinda tanto do criador quanto do receptor (idem, p.
47-48).
A partir da conexão desses pontos é possível remeter a análise para o campo in-
terdisciplinar, em que discursos vários se intercruzam para indagar sobre a relação entre
a reflexão do quadro real, no pensamento do homem contemporâneo, e a importância
da arte como representação construída através do texto literário. Neste aspecto, a lite-
ratura produzida em Mato Grosso sugere um campo fecundo em que se pode refletir
sobre a construção identitária do estado e do homem que constituem o seu panorama
cultural.
A história do estado mostra que o seu progresso, comparado com a região
sul e a costa litorânea do país, aconteceu tardiamente a partir da instauração do pro-
jeto Estado Novo e do Programa de Integração Nacional, propagado pelo então atual
presidente Getúlio Vargas nas décadas de 1930 e 1940, que originou novos núcleos
econômicos e sociais. Dentre as principais transformações no cenário mato-grossense,
destacam-se a inauguração de linhas áreas para o sudeste, a exploração agrária, a im-
plantação de recursos próprios da modernidade, bem como os meios de comunicação
(transmissão de rádio e o cinema), assim como os correios e telégrafos. Em 1950, a
ocupação da região central foi marcada pela migração intensa, o que fortaleceu ainda
mais o plano político, principalmente com a divisão geográfica concretizada em 1970
com a criação do estado de Mato Grosso do Sul (MAGALHÃES, 2001).
Foi nesse cenário que Ricardo Guilherme Dicke (1936-2008) nasceu, natural
de Raizama, uma comunidade em Chapada dos Guimarães, e vivenciou as etapas de
expansão do estado. Sua literatura reproduz o espaço interiorano criado através dos
personagens, cuja leitura – dentre tantas outras - possibilita examinar os aspectos sin-
gulares das identidades que se constroem nas relações entre os homens e o ambiente,
este marcado por traços que evidenciam a presença de um olhar crítico e peculiar às
marcas do processo de globalização que correspondem ao processo histórico de produ-
ção dos textos e que são essenciais para o estudo aqui proposto, que busca conciliar os
aspectos históricos com o fazer artístico, como sugere Candido:
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Impulsionado pelo estudo das diferenças, Ulf Hanners (1997) discute a difu-
são cultural no campo antropológico, explorando os termos fluxos, fronteiras e híbridos
como alguns dos conceitos que se ocupam com a globalização e que melhor abrangem
as descontinuidades que caracterizam as identidades das pessoas e, no presente con-
texto, os aspectos de suas produções. Destaca também a condição metafórica desses
termos, atribuída pela condição simbólica que propõem.
A palavra fluxos é explorada por uma dupla perspectiva: uma referente ao des-
locamento, à redistribuição territorial de algo; outra temporal, sem implicações espa-
ciais (HANNERS, 1997, p. 11). Enfatiza, ainda, que os fluxos são os que mantêm os
movimentos constantes e que a recriação dos significados é o que os tornam duradou-
ros. Outras de suas particularidades são que eles têm direções e o que se ganha numa
cultura, não se perde na origem, reorganizando-se no espaço.
O limite cultural se determina no estacionamento dos fluxos em algum modo
ou lugar onde existam descontinuidades na distribuição dos significados entre os in-
divíduos e as relações sociais, podendo ser visível ou não, adquirindo assim também
a condição de polimorfo, pois a aquisição cultural é um processo constantemente em
curso. Assim, limite e fluxo se associam
à medida que a cultura se move por entre correntes mais específicas, como
o fluxo migratório, o fluxo de mercadorias e o fluxo da mídia, ou combina-
ções entre estes, [e] introduz toda uma gama de modalidades perceptivas e
comunicativas que provavelmente diferem muito na maneira de fixar seus
próprios limites; ou seja, em suas distribuições descontínuas entre pessoas e
pelas relações (HANNERS, 1997, p. 18).
Diante da dimensão que tais termos conquistam, sob sua condição metafórica
portanto intangíveis em sua maioria, as interpretações desses movimentos direcionam
à reflexão sobre os aspectos locais de significação, associados a uma outra imagem ex-
plorada pelo autor que é a ideia de fronteira que, fora da concepção geográfica, assume
o caráter de espaço lúdico de manejo cultural não completamente seguro, dado a agi-
lidade, a situação e as combinações criativas que geram novas maneiras de significar e
que possibilita a análise das manifestações culturais em espaços menores.
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Pelos buracos da viseira vê: é a trilha que segue entre bamburrais sujos e
moitas esturricadas, até agora nada, nenhum lugar para se fazer bom acam-
pamento e fazer bom almoço, terra de diabo, já não sei há quanto tempo
estamos aqui viajando, o tempo se perdeu atrás duma cortina de semanas,
talvez meses, os dias se foram, para onde foram? Ninguém o sabe, e todos
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- É ouro, senhores, esse ouro pelo qual se mata no mundo... Estamos ricos,
mas onde vamos saborear nossa riqueza?
- Europa, Europa, gente... Adeus a estas terras bárbaras e horríveis onde
tudo é sangue, dor e sofrimento (ibidem, p. 40).
Outro elemento que também é muito comum nos textos de R. G. Dicke e que
propicia uma leitura dinâmica dos opostos nesta análise é o rádio. Ele funciona como
condutor dos diálogos e dos pensamentos dos personagens e, com suas multiplicidades
de vozes, também transita por diferentes lugares através do simples movimento do dial:
“tudo passa no amplo dial: gran teatro del Mundo e nunca passam duas vozes iguais e
para sempre para nunca mais voltar, os reflexos de toda vasta Terra” (ibidem, p. 71,
grifos do autor).
É também por efeito do rádio que se inicia a narrativa, desencadeando o tema
da sedução que a permeia e que tão é importante para a compreensão do enredo:
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
Seduzidos pela riqueza e pela imagem de felicidade que ela propicia, os per-
sonagens percorrem o deserto comburido carregando sacos de ouro que roubaram do
garimpo O Esquecido. Por toda narrativa, o ouro aparece como elemento estratégico.
Por exemplo, nos trechos “com todo esse bendito ouro que nos move para adiante,
sempre adiante, para a frente eternamente, que nos carrega e nos move secretamente
como uma bússola” (ibidem, p. 93, grifo meu) e “no centro do pavimento do carro
sobre os sacos de ouro o galo amarrado” (ibidem, p. 96, grifo meu) é possível observar
imagens simbolicamente construídas que, associadas à direção, ao espaço e ao tempo,
respectivamente, indicam o ouro como objeto que desencadeia os eventos que ocorrem
e que impulsionam os personagens à seguirem ao destino.
Ainda em análise do espaço, é possível associá-lo às determinações utópico, tó-
pico e atópico,2 devido a outros cenários construídos no texto. O espaço utópico criado
pelos personagens induzidos pelo ouro é idealizado a partir das imagens de suas vidas
em meio à abundância, como mostra passagens como: “- Eu vou comprar uma man-
são em Miami, com criado francês, três piscinas, vou comprar um banco [...] quero
ser banqueiro” (ibidem, p. 50); ou ainda: “vou viajar pelo mundo, e comprar uma casa
enorme em Sidney, na Austrália [...] adquirir ações na bolsa, comprar cavalos [...] e ter
a maior plantação de marijuana do mundo” (ibidem, p. 51, grifo do autor), imagens
aliadas ao desejo de mudança de vida.
É interessante observar o recurso utilizado pelo autor para imprimir imagens
contrárias entre os espaços atópico e tópico, quando o primeiro se traduz no espaço em
que ocorre a aventura, que é estranho e hostil, e o segundo que corresponde ao lugar
conhecido, próprio e seguro, porém também idealizado:
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
elas. Tomemos os termos discutidos por Ulf Hanners como direcionadores de análise.
O fluxo que determina o deslocamento geográfico dos personagens tem por
partida o garimpo que, conforme já apresentado, foi a principal fonte exploração de
recursos do estado de Mato Grosso até o início do século XX. Sob o aspecto temporal,
é possível identificar nos personagens a condição significativa que ele produz na sua
forma de representação:
Meu pai era garimpeiro, meus tios todos eram garimpeiros de mão cheia,
viviam de catar ouro na bateia, meu pai teve até draga, varejou todo esse
sertão, todos viveram no garimpo, perseverando sempre, meus vizinhos to-
dos se foram na aventura do ouro, todo mundo era garimpeiro, nós tam-
bém nos metemos até o pescoço e agora estamos aqui com todo esse ouro
(DICKE, 2006, p. 57).
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
Fica evidente que os personagens que se confundem nas teias das diversas
vocalizações, impossibilitando a identificação exata da enunciação, estão mergulha-
dos na atmosfera estrangeira. A esperança de reconstruir a vida com suas riquezas
em lugares diferentes dos seus, além de ser a única solução por eles encontrada como
proteção contra as punições para seus crimes, é envolvida por uma áurea de encanta-
mento, o que gera uma aparente discrepância quando se encontram passagens como:
“E todas as rádios do mundo emitindo sofregamente milhões de vezes as mesmíssi-
mas notícias, todas ao mesmo tempo: qual a razão desses transvario estomacal, para
que tantas notícias?” (ibidem, p. 71); ou mesmo “lá vem a batida enjoativa marca
registrada da nossa época reconhecível até no Afeganistão... A batidinha enjoativa do
rock” (ibidem, p. 35).
A incongruência apontada é gerada pelas características que envolvem o no-
ticiário e a música, quando aquele tem por objetivo expor fatos da realidade política,
econômica e social e esta uma forma artística de representação, ambos produzidos
dentro de espaços determinados, os mesmos idealizados pelos personagens. Conforme
afirma Stuart Hall, “à medida em que as culturas nacionais tornam-se mais expostas
a influências externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir
que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural”
(2006, p. 74). O mesmo cabe para a análise do conhecimento superficial gerado pela
célere difusão midiática de informações que resultam nessas dualidades – ou mesmo
multiplicidade – de opiniões, também presentes no processo de construção identitária
no processo de modernização.
Partindo para a análise das identidades sugeridas no texto, é possível iden-
tificar as marcas da pluralidade (já inferida pelos processos explorados acima) e da
fragmentação que as constituem. O primeiro aspecto relevante é como os elementos
de representação, na modernidade, se edificam numa esfera menos coletiva e mais in-
dividualizada, gerando o aspecto híbrido da identidade do indivíduo.
Muito embora os vários discursos se misturem durante todo o percurso nar-
rativo, sugerindo uma uniformidade de ideias, a maioria deles é desenvolvida em seus
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Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilo,
lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e
pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identida-
des se tornam desvinculadas – desoladas – de tempos, lugares, histórias e
tradições específicas e parecem “flutuar livremente” (2006, p. 75).
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todo o ouro havia se espalhado pelo caminho, El Diabo é tomado por uma cólera en-
louquecida e bate o carro em alta velocidade em uma árvore de onde já se via as luzes
da cidade e morre.
O ouro, que volta ao espaço natural, passa então a ser intangível, impossibili-
tando a concretização dos desejos expostos durante o caminho, e a imagem da cidade
tão próxima mostra que ela não poderia ser alcançada sem seu objeto intermediário,
construtor da esperança, de que as seduções de nada valem sem ele, além da morte
simbolizar a impossibilidade de se construir como sujeito social dentro de uma demar-
cação tão próxima. Com tudo de volta ao seu espaço primordial, o homem, o ouro e
a natureza finalizam o texto com a imagem fronteiriça entre o rural e o urbano – com
tudo que implica esta margem – que representa a visão do indivíduo mato-grossense
diante do progresso do estado.
Considerações finais
Nesta novela de R. G. Dicke encontram-se várias formas de se abordar a repre-
sentação identitária que atua como forma de pensamento do homem contemporâneo
e que evidenciam a influência dos acontecimentos sociais na produção artística. Assim,
o cenário mato-grossense é o palco de onde vocalizam as várias expressões exploradas
na análise.
A particularização com a qual os temas são abordados exibe a individualidade
do sujeito que carrega os resíduos do período moderno do início do século e que se
sente hesitante diante da multiplicidade gerada pela globalização. A reflexão sobre as
mudanças sofridas conota a crítica à devastação do meio ambiente e à invasão urbana
onde os personagens expressam uma sensação de não-pertencimento ao mesmo tempo
em que vislumbram os espaços internacionais.
O ouro expressa a relação de consumo e a áurea de sedução que propicia a falsa
imagem de alcance de tudo através da riqueza. Essa imagem é construída pela passagem
do momento em os personagens o possuem ao alcance das mãos, mas não podem usu-
fruir de seus privilégios, à perda de tudo, que simbolicamente retrata a desconstrução
do sujeito social contemporâneo ditado pelo capitalismo e intensifica a imagem do
dinheiro como o deus moderno, conforme é venerado na trama.
A plurivocalidade dos personagens e das vozes do rádio demonstra algumas
das consequências da irrupção massiva das tecnologias de comunicação, como a super-
ficialidade dos contatos com outras culturas e principalmente pelo seu poder de ditar
desejos, criando espaços idealizados de felicidade.
O texto apresenta sujeitos em conflito com sua própria identidade que ques-
tionam os fenômenos que influenciam a sua formação e apresentam uma insatisfação
quando os múltiplos traços se confundem, gerando uma visão fragmentada de si mes-
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
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libidinal de seus membros para que ela possa existir. Entretanto, essa “formatação” do
sujeito não aconteceria sem consequências para a economia psíquica, resultando em
agressividade – que deveria ser recalcada –, e insatisfação. O teórico afirma que “não é
fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Não se faz isso
impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de
que sérios distúrbios decorrerão disso.” (FREUD, 1974, p. 118). Segundo o teórico,
esses sérios distúrbios poderiam ser fruto da agressividade e da impossibilidade de con-
quistar felicidade no âmbito da cultura. Uma das explicações para a violência e para a
culpa (neurose) seria essa renúncia em nome da civilização, na medida em que o sujeito
não receberia uma contrapartida satisfatória do meio social, advindo, daí, frustração.
Não é objetivo desse artigo aprofundar nas questões teóricas sobre o complexo
de Édipo e o processo de castração desenvolvidas por Freud; apenas interessa observar
aqui que a função do “pai”, na família patriarcal, seria representar a lei fundamental –
interditos – e que, apesar de repressora, seria ela necessária para a própria constituição
do sujeito – e da civilização -, de acordo com os padrões impostos pela cultura. Essas
questões são importantes para se analisar os contos Hora de dormir, de Santiago Villela
Marques, e A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, tendo em vista as representa-
ções dessa “função paterna” em ambas as narrativas.
No conto de Marques, o personagem do pai apresenta-se como algo amea-
çador para seu próprio filho Danilo. Associado a uma imagem de “bicho-papão” – o
Bicho Tutu – “comedor de crianças”, a figura do pai é apresentada como alguém que,
apesar de representar socialmente a regra, a lei e a ordem estruturantes da família pa-
triarcal, promoveria o contrário, ou seja, a sua desestruturação e instabilidade. A forma
como o pai relaciona-se com os membros da família e da fazenda aparece logo no início
da narrativa:
Do outro lado da parede que engoliu Mãe, é Pai que entra no trote-boi dos
homens brutos. A fazenda faz Pai de capataz e Pai ensina à fazenda as suas
pesadas lideranças, à terra sua tarefa de expressar-se em grãos; às cercas o
mister de geometrizar riquezas; à alimária a vocação de saber-se bicho, e a
mesma lição aos homens (MARQUES, 2012, p. 32).
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tiva. Nesse sentido, o personagem do pai estabelece conduta semelhante tanto dentro
quanto fora do ambiente familiar, já que exerceria a mesma liderança como chefe de
família e capataz da fazenda. Hannah Arendt, entretanto, em sua obra intitulada Da
violência, afirma que:
Mãe aprendia tudo, era boa de escola e queria até ser professora, se não
ganhara marido tanto de sabedorias. Maior de informação, Pai sempre en-
contrava os meios de falha que a boa aluna não via mas deduzia dos cas-
tigos. Pai era providenciado nas clarividências: meia garrafa de aguardente
e os embustes do universo se lhe desmantelavam. Reconhecia as manhas do
Diabo e as de Deus, que não eram menores. Mãe, de ser mulher e santa,
apanhava pelos dois (MARQUES, 2012, p. 32). (Grifos meus).
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Nessa relação, o Pai situa o filho fora de seu campo de ordenação, como se
Danilo fosse um elemento transgressor, não contemplado pela própria ordem. Da-
nilo, mesmo limitando-se em ocupar apenas o espaço a ele concedido – seu quarto
–, apanha por qualquer ação que cometa, mostrando que é agredido, enfim, devido
a sua própria condição de filho e, portanto, de objeto do Pai. Tendo em vista que o
exercício da violência não seria o mesmo que o do poder, segundo Arendt, poder-se-ia
dizer que o pai, não exercendo poder em relação à Mãe e ao filho Danilo, utilizar-se-ia
da violência, supostamente, em nome das regras que defende. Porém, o pai bate não
simplesmente porque acredita estar “educando” o filho (ou a Mãe) em nome de regras
morais que crê serem verdades absolutas e promotoras de um bem maior, em nome da
instituição familiar. O personagem agride muito mais porque não sabe relacionar-se
com a alteridade de outra forma, tornando a violência uma linguagem, ou seja, a única
forma conhecida por ele para lidar e comunicar-se com o “outro”. Não é por acaso que
Danilo associa a imagem do pai à monstruosidade do “Bicho Tutu”, ou seja, a dita
“regra” defendida pelo pai para aplicar castigos não é utilizada em benefício da união e
bem estar familiar, e sim em nome de um “fundamentalismo egóico” que comunica ao
filho (e à Mãe) que ele não teria permissão para existir na condição de diferença. Essa
questão da monstruosidade do pai será retomada mais adiante, após o desenvolvimen-
to de algumas considerações sobre o conto de Rosa.
No conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, o personagem do pai,
sem maiores explicações, abandona sua família e põe-se a navegar no rio:
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a
invenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre
dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verda-
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de deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os
parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente
conselho (ROSA, 2001, p. 80)
O pai age dessa forma, misteriosa, sem dizer uma palavra à família ou ao filho,
narrador do conto. Essa atitude promove uma série de eventos na narrativa: vizinhos e
parentes exigem explicações para o sumiço do pai; o tio vem “para auxiliar na fazenda e
nos negócios” (ROSA, 2001, p. 81); dois soldados, jornalistas e até um padre tentam,
em vão, desvendar o inexplicável ato e trazer o chefe da família de volta. Ocorrem, a
partir de então, o casamento da irmã e o nascimento do neto, mas o pai mostra-se ir-
redutível e não retorna a casa. Com o tempo, a família desagrega-se:
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resol-
veu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa
dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com
minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. (ROSA, 2001,
p. 83).
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pen-
saram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns acha-
vam o entanto de poder ser também pagamento de promessa; ou que, nosso
pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja,
a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família
dele. (ROSA, 2001, p. 80-81).
Porém, esse exercício dos personagens para explicar o acontecido poderia ser
considerado como uma tentativa lograda de preencher com significados e, portanto,
com linguagem, o “silêncio” do pai. Nesse sentido, o que parece mais incomodar os
membros da família e demais representantes de instituições sociais, como o padre (Igre-
ja), os soldados (Estado) e os jornalistas (imprensa), seria o fato de nenhum significado
possível parecer satisfatório para esclarecer a atitude do pai e revertê-la. Chomsky afir-
ma que a razão seria aquilo que diferencia o homem dos outros animais:
Se o homem tivesse o instinto dos animais não poderia ter aquilo que nele
chamamos razão; pois justamente esses instintos arrastariam suas forças tão
obscuramente, a tal ponto que não haveria para ele nenhum círculo de refle-
xão livre. É esta própria fraqueza do instinto que constitui a vantagem natu-
ral do homem, que faz dele um ser racional. (CHOMSKY, 1972, p. 24-25).
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Se para o teórico o diferencial do ser humano em relação aos animais seria a ra-
cionalidade, a linguagem articulada também poderia ser considerada um dos elemen-
tos dessa distinção, pois é através dela que essa dita razão é construída. É claro que esse
conceito de humanidade de Chomsky, de cunho cartesiano, apresenta suas limitações,
pois não leva em consideração as contradições e incongruências do sujeito nos contex-
tos incertos da pós-modernidade, como se ele fosse linear e homogêneo. Mas, para fins
de análise dos contos, esse conceito mostrar-se-ia suficiente para dizer que o ato do pai
estaria além (ou aquém) dos limites da razão e da própria linguagem, já que nenhuma
explicação, na narrativa, mostra-se plausível ou satisfatória. Nesse sentido, o ato do pai
estaria no âmbito do não humano, do irracional, do ininteligível ou do animalesco.
Não é à toa que o pai adquire uma aparência de bicho para o filho:
Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal
e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme
quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em
tempos fornecia (ROSA, 2001, p. 83).
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Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu apenas alva
de pálida, mascou o beiço e bramou: “Cê vai ocê fique, você nunca volte!”
Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de
vir também, por uns passos (ROSA, 2001, p. 80).
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Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, con-
cordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levan-
tado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de tamanhos
anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri,
fugi, me atirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me
pareceu vir: da parte do além (ROSA, 2001, p. 85).
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As lições aprendidas por Danilo com o Iacurutu estão muito próximas daquilo
que seria uma lógica infantil ou até mesmo linguagem poética, pois o lúdico, o prazer
de brincar com a linguagem e com a alteridade estaria presente em uma forma de re-
presentar o mundo ainda não formatada ou engessada pelas normas institucionalmen-
te impostas, ou mesmo pelas veiculadas pelo pai, “que deve de não gostar de tanta lição
sem serventia”. Ou seja, a dimensão do pai, que representa a cultura e a lei, mesmo que
deformada, opor-se-ia ao mundo de Danilo e do Iacurutu, mais ligado ao natural e a
significados regidos por uma lógica mais livre, lúdica e criativa, própria de uma crian-
ça curiosa, aberta ao diverso e afeita ao exercício de alteridade. A ave Iacurutu, nesse
sentido, associa-se à ideia de submundo, de clandestinidade, de noturno, de lunar e de
obscuridade em relação à autoridade “solar” instituída pelo pai. A passagem da narra-
tiva em que as imagens de Danilo e de Iacurutu se sobrepõem na janela é significativa
para ilustrar esse processo de identificação entre os dois:
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maneira, o pai, que deveria exercer uma “função paterna” zeladora da vida de seus
membros familiares, mostra-se como algoz de seu próprio filho e esposa, com poten-
cial de comprometer a integridade física e psicológica deles, principalmente de Danilo.
O filho, que representa a continuidade da família e, metonimicamente, da sociedade
patriarcal, finalmente ensaia um enfrentamento do Pai:
Danilo, portando uma faca, ensaia defender-se do ataque do Bicho Tutu. Nes-
se momento, a narrativa indica que algo mudaria nessa relação familiar, já que o filho
não mais suportaria ser agredido pelo pai sem reagir. Afinal, Danilo agora “é o homem”.
Ou seja, Danilo acredita na possibilidade de conseguir defender-se, mesmo que seja
pela violência. Fica implícito que Danilo não mais permitiria ser agredido por seu pai
– e que talvez até o mate -, já que o espera com uma faca. Porém, a narrativa deixa isso
em aberto. De qualquer maneira, a base familiar patriarcal mostra-se comprometida,
pois o conflito e a violência é que formariam os alicerces dessa estrutura familiar, e não
o diálogo e o consenso.
Já na narrativa do conto de Rosa, a “monstruosidade” do pai estaria relacio-
nada com a questão do esvaziamento da cultura. Esse pai, diferentemente do Bicho
Tutu, não teria partes de seu corpo “(de)composto” por diferentes tipos de animais.
As características corporais do pai do conto roseano seriam “humanas”, mas em estado
primitivo. O fato de apresentar-se barbudo, cabeludo e com unhas grandes, com aspec-
to de bicho, poderia significar que se tornou uma criatura aquém da cultura, próximo
do selvagem e do natural e, portanto, não formatado e controlado pelos padrões éticos
e morais do patriarcalismo. Na cultura patriarcal, a natureza é vista como um “outro”
a ser dominado e subjugado, justamente porque teria um potencial de por em xeque a
dita racionalidade estabelecida como elemento fundamental de humanidade. A meta-
física ocidental, baseada no binarismo logocêntrico, apresenta necessidade de classificar
e explicar todos os fenômenos da natureza. Porém, na narrativa de Rosa, essa cultura
tradicional não consegue desvendar os mistérios do silêncio e do desaparecimento do
pai. Não é à toa que a família se desagrega com seus membros partindo para outras
regiões, deixando somente o filho na fazenda. Na medida em que outras instituições
sociais também não obtém êxito em controlar e reverter o ato do pai, fica a civilização
de cunho patriarcal também questionada. Aliás, mais do que isso. Poder-se-ia dizer
que essa cultura fica “desconstruída”. A respeito desse processo de desconstrução, o
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filósofo Jacques Derrida aponta para a possibilidade de se ler nas fissuras do discurso
de tradição metafísica:
O teórico indica que é possível acessar as frestas da linguagem e ler aquilo que
estaria recalcado, utilizando-se de elementos da própria metafísica ocidental – no caso
do conto, o pai - que rege a cultura patriarcal. Nesse sentido, a narrativa e suas metá-
foras, inclusive a da “terceira margem do rio”, esconderia, em suas fissuras, justamente
isso: o retorno a um momento pré-cultural de existência que guardaria, potencialmen-
te, a possibilidade de outra forma de vida, “humana” talvez, já que o primitivo, em si,
poderia transformar-se em uma infinidade de outras maneiras de existir. Sendo assim,
a civilização ou cultura patriarcal ficaria “nadificada”, esvaziada, “desconstruída” não
só em sua pretensão hegemônica de impor suas significações sobre o mundo, mas tam-
bém devido a sua condição de simulacro, de linguagem dessubstancializada, que não
passaria de arbitrariedades impostas com intuito de dominação do “outro”, seja ele a
mulher, os animais, a natureza, a terra, enfim, a alteridade de uma maneira geral. É isso
que o pai, afinal, abandona, silencia e desconstrói.
O pai, nesse sentido, abandonaria esse projeto falido. Residiria, aí, a diferença
da “monstruosidade” do pai da narrativa roseana do pai do texto de Marques. O pai da
“terceira margem” não se deixa significar pela cultura, desmoronando-a em seu próprio
eixo falocêntrico. O pai de “Hora de dormir” estabelece o conflito e a violência como
forma de lidar com a alteridade, deformando a cultura patriarcal de tal maneira que sua
imagem cria uma “aberração”, pois não se basearia na hierarquia consensual, estabele-
cida por relações de poder, e sim em uma pretensa dominação do “outro” pelo viés da
violência. O resultado seria o embate entre o pai e o filho, comprometendo, assim, a
legitimidade das leis que compõem a cultura. Nesse sentido, não haveria, aí, um “retor-
no” ao um estado natural devido ao fato de o pai ainda representar (e não esvaziar) a lei,
mesmo que absurda e deformada pela violência da metáfora do Bicho Tutu. Residiria
na narrativa, então, uma brutalidade monstruosa que potencializaria o que há de mais
agressivo na cultura patriarcal, mostrando que seu modelo está problemático. A ética
e a moral estariam falidas como elementos que possibilitam a vida em sociedade, já
que se mostraria incapaz de promover convivência respeitosa e resolução dos conflitos
através do diálogo e da compreensão. Aliás, é bem isso que faz o pai e, por metonímia,
a sociedade patriarcal: julga e classifica o “outro” ao invés de compreender, em profun-
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didade, a sua condição de diferença. Interessante dizer que seria em nome dessa moral
mesmo, inclusive religiosa, que o pai utiliza-se da violência física para “corrigir” seus fa-
miliares: “Reconhecia as manhas do Diabo e as de Deus, que não eram menores. Mãe,
de ser mulher e santa, apanhava pelos dois” (MARQUES, 2012, p. 32). Aí residiria
sua monstruosidade: a lei do pai é deformada de tal maneira pela violência que acaba
sendo composta pela mistura de fragmentos de animais ameaçadores e de elementos da
própria cultura: o bicho Tutu, com seus olhos grandes, dentes de canivetes amolados,
dedos de carangueja e asas de morcego. Se o pai da “terceira margem” seria monstruoso
porque provoca a aversão da cultura pelo seu retorno ao primitivo, desconstruindo
também sua “função paterna”, o pai da “hora de dormir” assume feições monstruosas
por exibir as entranhas dessa cultura naquilo que tem de mais horripilante: a domi-
nação simbólica do “outro” transforma-se em violência propriamente dita ao tornar
os membros da própria família um “outro” negativo, um inimigo a ser combatido.
Isso faz dessa instituição e também de sua “função paterna”, estrutura fundamental
da sociedade patriarcal, no mínimo muito problemática, questionando, “violenta” e
metonimicamente, essa civilização e seu modelo de existência.
Pode-se concluir, portanto, que em ambas as narrativas a “função paterna” e,
consequentemente, a família e a sociedade patriarcal estariam comprometidas. Na nar-
rativa de A terceira margem do rio, essa cultura apresenta-se desconstruída, mas com a
potencialidade de recomeçar algo novo. No conto Hora de dormir, a “civilização” esta-
ria irreversivelmente deformada, já que seu desfecho concentra-se no conflito violento
entre pai e filho. Fica evidente, assim, que em ambos os textos a civilização de cunho
patriarcal encontra-se falida em sua capacidade de significar o mundo e gerir as relações
humanas de modo satisfatório.
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Considerações preliminares
Para Candido (1976), a incorporação de temas populares e a constante refe-
rência à tradição oral no século XX são importantes na consolidação da tradição literá-
ria no Brasil. Mario de Andrade ao compor poemas como Descobrimento e Inspiração;
Manuel Bandeira em Vou me embora para Passárgada, Na rua do sabão e Anel de vidro
são exemplos do profícuo diálogo entre tradição oral e erudição na literatura brasileira
no século XX.
A convivência entre elementos populares e erudição é exemplificada na epí-
grafe deste texto, grifada em itálico no corpo do conto Vidas marginais. Nela o recado
de Lindalva, personagem central do conto direciona a Roque, personagem analfabeto
e amante de Lindalva, o convite amoroso. O pequeno texto que não apresenta pontua-
ção e traz em seu bojo problemas de concordância e erros de grafia demonstra a valori-
zação da origem dos personagens e, mais que isso, a incorporação crítica dos diferentes
registros linguísticos na obra de Moreira Campos e, nesse caso, dão um exemplo da
contribuição do Modernismo para a literatura brasileira no século XX.
No bilhete de Lindalva encontramos um registro advindo da rua e de uma
linha discursiva que incorpora criticamente o jargão popular, “não seio”, “oje”, “inchi-
rido”, por exemplo, e delimitam uma formação cultural ligada à periferia social. Este
recurso – uso do jargão popular – para além de uma idiossincrasia estilística, possibi-
litando ao narrador focalizar a complexidade das relações humanas construídas pela
precariedade econômica que adquirem força irônica na narrativa de Moreira Campos,
aqui exemplificada pelo inusitado bilhete de amor escrito por Lindalva.
Pensar a epígrafe deste estudo condiciona, então, a reflexão sobre o papel ino-
vador que a literatura do século XX assume em relação aos diferentes estratos sociais,
agora focalizados pela arte no século XX, sobretudo, após a Semana de arte Moderna.
O termo diversidade literária, neste contexto, é fundamental, pois implica, lembrando
os ideais de Oswald de Andrade em seu Manifesto antropófago, a compreensão da ino-
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vação formal via incorporação do discurso das ruas em um processo de ampliação não
só estética como temática para a literatura brasileira. Pensando esta ampliação temática
e estética selecionamos como corpus, para este estudo, três contos de Moreira Campos:
Irmã Cibele; Profanação, e Vidas marginais. Nossa preocupação é apresentar um autor
pouco conhecido na tradição literária brasileira e, com isso, contribuir para a amplia-
ção do escopo historiográfico no Brasil.
Antes de iniciarmos a discussão de nosso corpus, comentaremos alguns traços
estilísticos e temáticos do Modernismo no Brasil como forma de demonstrar o que
entendemos por heterogeneidade da literatura brasileira no século XX. É preciso lem-
brar, no entanto, que estes comentários apenas situam nosso leitor e não traçam um
panorama mais amplo do Modernismo ou da literatura brasileira no século XX.1
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da primeira fase em uma acepção estética mais definida, entre eles, Manuel Bandeira e
Mário de Andrade; e c) uma terceira fase denominada como Geração de 1945, fase de
reflexão esteticista, muitas vezes, compreendida como neomodernista por apresentar
uma face mais estética do movimento, o que indica uma recuperação de valores tradi-
cionais ligados à expressão artística de fim do século XIX.
No primeiro momento, predominante na década de 1920, encontraríamos
um caráter mais panfletário que na voz de poetas como Oswald de Andrade, Mário de
Andrade e Menotti Del Piccia, para citarmos três nomes representativos, apresenta um
conjunto de manifestos que tem no “Prefácio interessantíssimo” e na “Escrava que não
é Isaura”, de Mário de Andrade ou nos inúmeros manifestos, entre eles, os de Oswald
de Andrade exemplos da busca por reformulação das letras nacionais no primeiro mo-
dernismo.
No segundo momento, ocorre a sistematização das propostas temáticas e esté-
ticas da década de 1920 em caracteres próprios como a utilização sistemática do verso
livre e a adoção de uma temática mais próxima da realidade cotidiana e regional. A
acomodação do sentido reformista da primeira geração em uma estrutura literária que
incorpora temas regionais e traços da cultura popular ao recuperar formas passadistas
em uma nova perspectiva, resgatando, por vezes, elementos do passado caracterizam a
diversidade temática e estilística que marca a década de 1930 na literatura modernista
brasileira.
No terceiro momento, poetas como João Cabral de Melo Neto, Cecília Meire-
les e Carlos Drummond de Andrade acrescentam aos temas e procedimentos estéticos
da década de 1930 uma lírica hermética e irônica que alinhada às inovações estéticas
de autores como Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto contribuem para um
processo gradativo de incorporação de valores populares à tradição modernista, pensa-
da enquanto síntese da tradição precedente a partir de um rebuscamento estético que
em muito apresenta uma face mais estética ao movimento modernista após a década
de 1940.
Este momento modernista, genericamente chamado de Modernismo de 45,
filtra as influências e inovações das décadas anteriores ao propor uma arte que dialoga
com as inovações formais do presente histórico, sobretudo, as tensões do período pós-
guerra e as consequências do insipiente processo de modernização do Brasil. As produ-
ções do Modernismo de 1945 alinham às conquistas das gerações precedentes a uma
diversidade de temas, possibilitando o aparecimento de autores como Cecília Meireles,
Ledo Ivo, João Cabral, Drummond, Murilo Mendes, Cornélio Pena, os nordestinos,
Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, entre tantos outros. Esta diversi-
dade de autores coloca o Modernismo, pensado em suas três fases, concordando com
Bosi (1993), no compasso das novas perspectivas estéticas após a primeira metade do
século XX na América Latina.
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[...] em ambas as fases existe uma acentuada inclinação pela defesa de uma
concepção de arte clássico-realista, defesa armada pelo prestígio da limpidez
e equilíbrio da linguagem e pelo senso de captação do real, sem a profu-
são exacerbada de conteúdos subjetivos ou de sentimentalismo mórbidos.
(MONTEIRO, 1980, p. 15).
3 Para nós este tema é polêmico e sua discussão ultrapassa os limites deste estudo. Remetemos, no entanto,
nosso leitor ao estudo de EAGLETON, T. As ilusões do pós-modernismo. Tradução de Elisabeth Barbosa. Rio
de Janeiro: Azhar, 1998.
4 No que se refere aos dados biográficos tomamos como fonte: http://www.revista.agulha.nom.br/mcampos.
html/bio. Acesso em: 22 out. 2007.
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mas é inferido em grande parte dos contos de Campos, como nas “impropriedades”
proferidas por Irmã Cibele ao bolinar a menina.
Em Irmã Cibele e Vidas marginais o traço antropomórfico assume um diálogo
tensivo com o espaço de ambientação dos enredos. No conto Irmã Cibele o convento
com suas lacunas e capelas vazias propicia o contato com o erótico, focalizado de ma-
neira explicita na cena de sexo oral entre Irmã Cibele e a menina. Em Vidas marginais
a relação entre Roque e Lindalva é permeada pelo espaço das docas e das atividades
brutalizadas dos estivadores e prostitutas no cais. O cenário frio e úmido amplia a de-
gradação dos personagens e, analepticamente, antecipa o desfecho trágico da narrativa
na apresentação tardia de Lindalva.
Alvacenta. Filha de pai branco com uma criada. Passara alguns anos em
companhia de uma velha viúva. Nesse tempo, já se punha mocinha. A ve-
lha possuía a casa onde morava e um pequeno montepio. Tinha um filho
único, casado. Vivia lá para as suas bandas, visitando a mãe quando podia,
de longe em longe. Lindalva valeu-lhe como uma ajuda, nos últimos anos
de velhice. D. Ermelinda mandou ensinar-lhe as primeiras letras. Queria
orientá-la na vida. Mas certa manhã, ao entrarem no quarto, encontraram
D. Ermelinda inerte na cama. Morrera sem vexames, sem agonias, na quie-
tude profunda da noite. (CAMPOS, 1996, p. 69).
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uma vez que é marca de comportamentos até certo ponto imutáveis como na descrição
da tragédia que assola Lindalva e Roque em “Vidas marginais”, estendida, de forma
metonímica, aos muitos personagens de Moreira Campos.
A cópula dos animais em Profanação, nesse sentido, cria um efeito desagrega-
dor na normalidade da vila. A cena de sexo entre Irmã Cibele e a menina desorienta as
personagens em um espaço de propensa proteção, o que leva ao caos via erotização e,
em nível profundo, a ironia. A trajetória decadente de Lindalva até a “casa de rameiras”
e a alucinação da beata Inacinha, por exemplo, apresentam a forma ambígua com que
Moreira Campos formata a crítica social em sua narrativa. É pela descrição mimética
do real que o autor chega ao traço impressionista, paradoxalmente, ao descrever o es-
paço de maneira objetiva e reorganizar em impressões sensoriais o sofrimento humano
em direção a um sentido mais amplo de regionalismo.
A crítica social, neste sentido, é resultante do teor contido nas cenas descritas
nos contos aqui apresentados. Em Profanação, por exemplo, advém da sobreposição
alegórica da cena de sexo descrita no enredo. O casal de jumentos, visto como agente
de profanação, só o é por estar em ambiente sagrado e aos olhos de uma plateia hipó-
crita que os julga para além de sua condição animal. O enredo aparentemente simples
desloca o olhar do leitor para a reação dos personagens envolvidos na trama. Padre
Rolim, o sacristão Alexandre, a beata Inacinha e alguns transeuntes que observam a
cena se posicionam de maneira ambígua: ora parecem aceitar a cena como natural, che-
gando a gracejos como bater palmas; ora se apresentam indignadas, indicando a ironia
do narrador diante da profanação da igreja.
A ironia em Moreira Campos é percebida, então, na junção das relações inter-
diegéticas das personagens com o espaço. O dilaceramento interno da beata Inacinha,
a excitação da menina e a impotência de Lindalva e Roque encontram na impotência
da sociedade um espaço de aglutinação e hipocrisia, centrados, ironicamente, nas ba-
lizas institucionais da igreja e na inoperância do estado ao minimizar as desigualdades
socais. A crítica social constrói-se em Moreira Campos na exposição da fragilidade do
puritanismo de uma sociedade corrompida e a qual o narrador de A grande mosca no
copo de leite dirige seu discurso.
Ao encerrarmos a apresentação da obra de Moreira Campos, por meio dos co-
mentários a três de seus contos – Profanação, Irmã Cibele e Vidas marginais – apresenta-
mos ao leitor deste estudo um autor que merece mais atenção por parte da crítica especia-
lizada uma vez que sua linguagem é, antes de tudo, alegórica e, para nós, universal.
Considerações finais
Ao concluirmos este trabalho, retomamos a questão inicial que constituiu nos-
sa proposta: apresentar a obra de Moreira Campos e, com isso, contribuir para a cons-
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tante revisão dos limites do cânone literário no Brasil. A visão analítica direcionada aos
contos selecionados assume uma perspectiva metonímica ao apresentar a relevância da
linguagem de Campos em um contexto da diversidade modernista. Ressaltamos que é
premissa do estudo a presença de um diálogo profícuo com a tradição oral e a presença
de marcas impressionistas na narrativa do autor.
No cerne da visão modernista de Campos a oralidade, lembrando a epígrafe
deste estudo, não é elemento ornamental, antes espaço de dicção que incorpora o
popular à literatura erudita. Nela, a epígrafe, as incorreções gramaticais do bilhete de
amor de Lindalva endereçado a Roque demonstram a incorporação de elementos da
cultura popular à narrativa do século XX, aspecto relevante na compreensão da obra
de Moreira Campos enquanto depositária de uma tradição modernista em processo
contínuo de transformação na segunda metade do século XX.
Antes de concluirmos o texto, agradecemos a Fundação de Apoio ao Desen-
volvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul –
(FUNDECT/MS) que apoiou financeiramente a pesquisa.
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A Semana de Arte Moderna (no Brasil em 1922) foi o evento que assinalou
oficialmente o início do Modernismo brasileiro. Ela buscou uma ruptura radical com
os movimentos literários anteriores, afastou-se estrategicamente da tradição portuguesa
e marcou o início de profundas mudanças no meio literário. Ao mesmo tempo que
colocava a cultura brasileira a par das correntes de vanguarda do pensamento europeu,
pregava a tomada de consciência da realidade e da tradição brasileiras, com o propósito
de libertá-la da tutela lusa. A Semana de Arte Moderna caracterizou-se como um mo-
vimento artístico, político e social.
Conforme entende Salvato Trigo, são inegáveis as relações travadas entre o
Brasil literário e cultural e os países africanos que falam o português. Segundo ele, até
a Semana de Arte Moderna tais relações não tiveram um papel decisivo na consciência
literária desses países, e:
A revista contou com a publicação dos três primeiros números entre 1936 e
1937, e com mais seis restantes entre 1947 e 1960. Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jor-
ge Barbosa estavam entre os principais representantes deste movimento, além de serem
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Constatou também uma similaridade de expressões folclóricas na obra dos dois au-
tores e que, em todos os poemas analisados, são aparentes os “elementos da oralidade, graus
de ironia, traços religiosos, ritos, mitos, resgate por memória, formas de resistências contra
opressão, críticas singelas e imagens, desde a realidade até o aspecto surreal” (Idem, p. 121).
Quanto à obra de Ribeiro Couto, este cultivou vários gêneros como o roman-
ce, o conto e o teatro, mas foi na poesia que atingiu o máximo de seu talento. Diplo-
mata em Portugal, França, Holanda e Bulgária, em muitas de suas viagens transportou
pessoalmente diversas obras de autores brasileiros, que em Cabo Verde circularam de
mão em mão entre os intelectuais contemporâneos de Claridade. O hábito e a neces-
sidade do sistema de empréstimo seriam confirmados por Baltasar Lopes, como já
transcrevemos anteriormente.
Norma Lima (2000) também ressalta o contato que Ribeiro Couto travou com
intelectuais portugueses, cabo-verdianos, angolanos, entre outros. Esses contatos são veri-
ficados em muitos versos de autores africanos, como nos do angolano Maurício Gomes:
Jorge Barbosa,
Em Cabo Verde te imagino
Olhando o céu – triste menino
Da ilha do Sal.
(COUTO, 1960, p. 423).
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Em que pese esta postura radical de Onésimo Silveira, que reduz a primeira
leva claridosa à condição evasionista, Ovídio Martins publica o livro Gritarei Berrarei
Matarei – Não vou para Pasárgada (1973), em que o poema “Antievasão” exorta à luta
de resistência política:
Gritarei
Berrarei
Matarei
Não vou para Pasárgada
(MARTINS, 1975, p. 48).
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partir e ter que ficar” ou “querer ficar e ter que partir”. O apego do cabo-verdiano ao seu
chão faz com que, mesmo na “busca de um espaço utópico de felicidade” (GOMES,
2008, p. 119), em Itinerário de Pasárgada, o poeta não está abandonando o arquipéla-
go. A professora e ensaísta Simone Caputo Gomes afirma que:
2 Nhelas Spencer, morna “Nhá terra scalabróde”. Referência citada por Simone Caputo Gomes (2008, p. 121).
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John
de Birmingham
Alabama
USA
entrou na tabacaria.
Foi insultado
Soqueado
expulso.
(...)
Negro safado!
(BARBOSA, 2002, p. 316).
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3 O diálogo entre essas obras sobre vários aspectos foram apontados pelo professor Rubens Pereira dos Santos
(SANTOS, 1995) em sua tese de doutoramento.
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detrimento de Yaqub, atitude que coloca os irmãos ainda mais em polos opostos.
As obras dialogam com o mito da violência entre os irmãos em dois contextos
diferentes: em Germano (segundo o autor), o romance tem como base uma história
real que aconteceu pelos idos de 1976, numa aldeia tradicional da ilha de Santiago; em
Hatoum, a estória se estrutura num núcleo mítico que se metamorfoseia em romance.
O diálogo entre estes romances mostra que o intercâmbio entre a literatura
brasileira e a cabo-verdiana nascido na década de 30 do século XX não se esgota neste
mesmo contexto e pode ser observado até a atualidade e em outras regiões além do
Nordeste brasileiro.
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inacabada. Romão tenta concluí-la, sem sucesso, mas uma moça recém-casada que o
ouve tocar a composição no cravo continua a cantarolar, emendando o trecho que falta
para acabar a composição. Percebendo que deve se retirar para a chegada dos novos,
Romão desiste da música e morre.
Se Romão começa por ansiar a fama e a eternidade, acaba, por força das con-
trariedades, reduzindo sua ambição ao mínimo. No fim, nem espera uma grande vida,
mas uma vida, completa e acabada, e não interrompida – “alguma cousa, que não fosse
de outro e se ligasse ao pensamento começado” (ASSIS, 1989, p. 45) –, uma vida, en-
fim, que fica, e não uma vida que passa.
O conto se inicia com uma missa cantada, clima de festa, num tom alegre que
vai caindo até a melancolia nostálgica da parte final, tingida de um sentimento elegía-
co, estabelecido pelo contraponto entre o definhamento de mestre Romão e o amor
recém-nascido dos noivos na janela vizinha, os “casadinhos” de novo, diminutivo que
aumenta a carga afetiva dos últimos parágrafos do conto e ajuda a contrastar a juven-
tude do casal com a decadência do velho músico.
A antítese criada entre o segundo parágrafo, que mostra o contentamento de
mestre Romão diante da orquestra – “a vida derramava-se por todo o corpo e todos
os gestos do mestre: o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro” (ASSIS, 1989,
p. 42) –, e o terceiro parágrafo, quando a festa acaba, e “é como se acabasse um clarão
intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária” (ASSIS, 1989, p. 43), dá o
primeiro tom de descida na narrativa. Agora vemos a tristeza de Romão, que é a rotina
de Romão. No mesmo segundo parágrafo, o autor alonga-se na descrição das virtudes
da época em que se passaria a história – “boas festas antigas, que eram todo o recreio
público e toda a arte musical”, “o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos”;
“olhos (...) que já eram bonitos nesse tempo”; “dizer familiar e público era a mesma
cousa (...) naquele tempo” (ASSIS, 1989, p. 42) –, provocando uma visão carregada
de afetividade e saudade. Machado de Assis, com essa insistência na nostalgia, anuncia
de imediato dois dos principais temas do conto: a nostalgia da perda e o sentimento de
passagem do tempo.
A mesma valorização descritiva (e dissertativa) da festa é oportunidade para
evidenciar também o valor da música para Romão – o jantar com os padres, por exem-
plo, já não tem o mesmo brilho: “Ei-lo que desce do coro apoiado na bengala; vai à
sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indife-
rente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a Rua da Mãe dos Homens, onde reside,
com um preto velho, pai José” (ASSIS, 1989, p. 43). Acompanhando a gradação de-
crescente nas emoções do protagonista, o espaço descrito também se encaminha numa
gradação do social ao privado, passando por estágios intermediários: a festa popular,
o público reservado da sacristia, o anônimo e distante da rua e finalmente a reclusão
solitária da casa nua e sombria:
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A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio
de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem
cores vivas ou jucundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo,
onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira,
ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele... (ASSIS, 1989, p. 43)
A paixão domesticada
A história aborda dois momentos da vida de Romão: um episódio entre 1779,
data de seu casamento, e 1781, ano da morte da esposa, período em que ele tenta, de-
balde, compor a cantiga esponsalícia; e cinco dias do ano de 1813, que começa com a
festa do início da trama e termina com a morte do protagonista. A elipse entre os dois
episódios é pressentida como um largo intervalo de aborrecimento e tristeza, cujos
extremos parecem os únicos momentos de real importância na vida do mestre: as duas
tentativas de compor uma obra imortal.
Os episódios narrados não são, no entanto, expostos em ordem linear. O con-
to começa pelo segundo episódio, com a festa litúrgica, a anunciar o único valor na
vida da personagem – a música. Somente após a descida da igreja até a casa e o espírito
da personagem, uma antecipação no enredo vai remeter o leitor ao primeiro episódio,
que vai servir, entre outras coisas, de exposição dos motivos para a melancolia do mes-
tre. A ideia da cantiga de esponsais surge três dias depois do casamento, quando ele a
compõe até um determinado ponto, além do qual não consegue prosseguir; no quarto
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dia o jovem músico tenta continuar a composição, sem sucesso; dez dias depois repete
a tentativa frustrada; continua tentando em vão por dois anos, quando, abalado pela
morte da mulher, abandona a empresa. Então, o tempo, que começa concentrado,
microscópico, amplia-se para os anos iguais uns aos outros na mesma decepção que,
supõe-se, estende-se pela vida da personagem até o momento em que a trama come-
çou: o primeiro de cinco dias em 1813.
O primeiro momento é, assim, inserido no meio do segundo para relacionar a
origem do projeto de composição com a ambição verificada quando o narrador inves-
tiga a alma da personagem. Inserido entre a exposição do caráter melancólico de Ro-
mão e sua doença, a morte da mulher e a consequente decepção do mestre acentuam
o tom melancólico do conto e parecem explicar as duas coisas, relacionando-as entre
si. Assim, a perda, a ausência, aparecem como a grande causa da narrativa: perda da
mulher, perda da esperança, perda da saúde e posteriormente perda da vida. Na origem
do drama aparecem, portanto, conjugados, dois temas: a dor da impotência diante da
inexpressão e a dor da ausência do outro, a impotência de manter-se, vivo ou na obra,
quando falta o estímulo que emanava de fora.
Por outro lado, presentificar o conto na velhice e recuar dentro deste presente
às núpcias desgraçadas do protagonista retarda a exposição do conflito e evita um início
trágico e patético: inserido numa situação de melancólica velhice, a tragédia da viuvez
em juventude não obtém outro efeito emocional senão o de uma melancólica fatali-
dade que agora é pura nostalgia, não mais terror. A paixão é enjaulada e domesticada;
não assalta de surpresa o desavisado: agora serve de objeto de observação, reflexão e
julgamento.
O cuidado, aliás, do autor, parece ser justamente manter a atenção do leitor
à narrativa sem, no entanto, apelar para as emoções. A intenção parece ser sempre
zelar por um equilíbrio que se reproduz no próprio ritmo da efabulação. Para isso, o
narrador constrói um enredo simetricamente pontuado por cenas, sumários e pausas,
o que dá à narrativa um andamento nem muito acelerado nem muito vagaroso. Além
do recurso da analepse retardando a história, a narrativa é também alongada através da
presença de descrições e digressões, como a do sétimo parágrafo, exposta acima; mas
isso ocorre principalmente no início do conto. Da metade para o final, ao contrário, o
conto, que é um dos mais curtos do autor, se acelera, em revezamentos de cenas e su-
mários, a partir da doença de Romão e daí até a sua morte. A velocidade aumenta ainda
na sequência final, através das repetições que indicam o labor do mestre na busca da
nota perdida, até o clímax e desenlace com a intervenção da jovem vizinha. Atente-se
para o fato de que as cenas em discurso direto pontuando a sequência final são sempre
monólogos ou pensamentos do protagonista, o que enfatiza a temática de conflito psi-
cológico. O apressamento do ritmo final também pode ser verificado na mudança dos
tempos verbais:
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Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente. [...]
Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensa-
ção extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos. [...]
Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. (ASSIS,
1989, p. 45-46)
Ambição e ironia
Considerando que os agentes de ação (actantes) não são necessariamente per-
sonagens figurativas, mas também conceitos, sentimentos e valores e que, como já
vimos, estamos diante de um conto psicológico, pode-se ver na inspiração inacessível
de Romão um desses agentes, principalmente se levada em conta a comparação zoo-
morfizante que a concretiza: “Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por
transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a ins-
piração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada”
(ASSIS, 1989, p. 44). No entanto, é importante notar que a inspiração não é propria-
mente o antagonista da história, uma vez que ela “forceja por transpor as paredes” e ir
ao encontro da vontade do protagonista. Ao contrário, este, ou mais apropriadamente
a sua incompetência artística diante da ausência da mulher, é que é seu próprio oposi-
tor. Romão é, dessa forma, ao mesmo tempo o protagonista da história e seu próprio
oponente: a inspiração, “como um pássaro”, debate-se, “encerrada nele sem poder sair”.
O conflito surge, portanto, da desproporção entre, de um lado, a ambição do prota-
gonista e, de outro, sua incapacidade para satisfazê-la. Tal situação só pode ter um
desfecho: a decepção. O autor parece dizer-nos, também, que a ambição obsessiva é o
móvel dos homens e dos conflitos dos homens – pelo menos daqueles que malogram.
E já medimos a grandeza da obsessão de mestre Romão quando constatamos a total su-
bordinação da personagem a seus humores, ora à alegria, ora ao tédio, conforme esteja
ou não diante da música e do público. O drama deste homem é tanto maior quanto
sua incapacidade não vem de um obstáculo exterior ao sujeito, mas de um ocultamento
dentro de sua própria psique, uma ausência interna, a da inspiração; acresce-se que o
objeto em falta é desconhecido – a música, que, ainda não composta, não existe e por
isso torna-se mais difícil de buscar.
A vida autocentrada de mestre Romão é confirmada por seu dedicado criado,
pai José. Esta personagem surge na trama aparentemente apenas para afirmar mais uma
vez a vida solitária do patrão e ao mesmo tempo informar sobre o egocentrismo do
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mestre, ao qual o velho negro dedica-se cegamente, haja vista a preocupação imediata
em largar a conversa com a vizinha e socorrer o mestre, tão logo vê o patrão aproxi-
mar-se. Pai José não é pai; é “a sua verdadeira mãe” (ASSIS, 1989, p. 43), e vemos seu
desdobramento e sofrimento à beira do leito enfermo do velho músico. Ele se mostra
“aterrado” (ASSIS, 1989, p. 44) diante da resistência da moléstia do patrão e permane-
ce em vigília durante a noite de padecimento. É, assim, o cúmplice de mestre Romão
na sua luta pela vida.
Pela observação deste conto de Machado de Assis, é possível inferir que o con-
flito psicológico seja talvez o núcleo dramático mais estável dentre as possíveis situações
dramáticas, uma vez que ambos os lados da contenda são refreados pela mesma força
– o eu, sede das forças inimigas, que luta, com elas, apesar delas e até contra elas, pela
própria sobrevivência. É preciso alertar aqui para que se entenda estabilidade não como
ausência de crise, mas, ao contrário, uma crise aprofundada e intensa, tão intensa que
se apresenta num equilíbrio insolúvel e cuja duração – estabilidade – está justamente
na justa proporção entre as forças que se opõem: é estável porque é instabilidade per-
petuada. Se pensarmos, por exemplo, num conflito em que a personagem luta contra
o ambiente, é de se imaginar que, mais ou menos tempo, um dos dois contendores
deve ceder e a relaxar a tensão. Não no conto de Machado de Assis. Em Cantiga de
esponsais, vemos o conflito ceder apenas com a morte daquele que mantém as forças
em oposição, o que parece peculiar ao conto psicológico, principalmente àquele que
retira à vontade o poder de decidir sobre os conflitos interiores ao homem, como é o
caso da maior parte dos contos de Machado de Assis, cujas personagens sucumbem à
fatalidade trágica de suas ambições desmedidas. A igualdade das forças que atuam no
conto de Machado de Assis parece ser mantida pela reação à ambição humana na mes-
ma proporção aos estímulos do desejo. Assim as tentativas reiteradas e cada vez mais
intensas de compor, no final, quanto mais o talento e o fim da vida lhe resistem; assim
a transgressão de mestre Romão à interdição médica: a proibição de pensar em música
é que faz justamente com que o protagonista a deseje. Lúcia Miguel Pereira (1988, p.
157) já notou, a respeito de Helena (1876) e A mão e a luva (1874), que Machado de
Assis “procurou provar que os cálculos da ambição nem sempre são indícios de maus
sentimentos, que não é impossível conciliarem-se o interesse e a nobreza de caráter”.
Daí, muitas vezes, o conflito e a tragicidade irônica: a ambição é descompasso, e sua
expressão estética, a ironia.
Vítimas do Humanitismo
Esta ironia, descompasso entre a realidade e a expectativa, retira todo o terror
da prosa de Machado de Assis; a ambição das personagens retira toda a sublimidade.
A ambição é o obstáculo para a simpatia total e irrestrita do leitor com o mundo re-
tratado; a ironia, o freio pelo qual o autor contém os excessos. A forma mais frequente
da ironia – entendida como contradição entre o esperado e o exposto – em Cantiga de
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Não lhe chamo atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão,
nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo,
nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sane-
fas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelen-
te; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que
rege a orquestra, com alma e devoção. (ASSIS, 1989, p. 42)
Além de servir para colocar em relevo o que vai interessar ao conto – o velho
Romão, cuja “alma e devoção” vão desencadear o núcleo dramático da narrativa –, a
figura ao mesmo tempo aponta contra seu próprio objetivo, ao colocar em cena tudo
o que supostamente não se quer em evidência. O resultado final é o objeto que se quer
em evidência ao mesmo tempo ressaltado e diluído em meio aos demais elementos da
descrição. Esta diluição impede a concentração das paixões num objeto único: tudo
absorvido, a realidade aparece múltipla e a escolha, mais difícil. Assim, o narrador
consegue para o seu leitmotiv a concentração do leitor, mas essa concentração vem
purificada de qualquer simpatia prévia, vale dizer uma identidade personagem-leitor
de conotação sentimental. Se houver identidade, ela se fará não por compaixão, mas
por autocompaixão. Machado de Assis exige do leitor não sua empatia piedosa pelas
personagens, mas sua autoconsciência; quer mostrar o mundo ao leitor, sem retirar
o leitor de si; não faz publicidade dos sentimentos, como os românticos: mostra, ao
contrário, que a emoção não é um estímulo externo, mas uma descoberta interior.
Não nos emocionamos porque Romão sofre o que não merecia; nossa emoção vem
da intuição de que a sorte do músico é a nossa sorte, o resultado fatal de nossos atos e
desejos desmedidos. Se a sorte de Romão nos comove, não é por ser trágica, mas por
ser óbvia. Ele não é um herói, de história única e sublime; é o retrato, terno e insípido,
de cada um de nós.
A medianidade do protagonista e de sua biografia continua a revelar-se em ou-
tras figuras da mesma natureza, como o litotes. Assim, a casa do músico, descrita após
o recolhimento do mestre, surge de uma descrição que evita as extremidades: “a casa
não era rica naturalmente; nem alegre”. A pobreza e a tristeza são assim suavizadas pela
negação dos seus opostos, e essa imagem de insipidez segue em nova paralipse: “Não
tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem,
nem flores, nem cores vivas ou jucundas. Casa sombria e nua.” De resto, nua como nua
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A cumplicidade na efabulação
Substituir a comoção pela autoconsciência implica provocar no leitor o co-
nhecimento da narrativa como objeto estético exterior às instâncias da narração, isto
é, à vida do leitor e do narrador. A obra tem que surgir como objeto de contemplação
e reflexão, e não como estímulo de emoções e piedade. Um dos recursos de Machado
de Assis para obter essa superconsciência está em fazer o leitor enxergar-se como su-
jeito que contempla, emociona-se, reflete e julga, torná-lo cônscio de que a visão da
realidade é um discurso, o olhar é uma narrativa, e se se quer aproximar do mundo, é
preciso separá-lo de suas paixões de sujeito que vê o mundo. Daí as tantas referências
metalinguísticas e diálogos com um leitor virtual tão bem aprendidos em Fielding e
Sterne, atualizados numa visão moderna do discurso e presentes mesmo num conto
curto como Cantiga de esponsais.
A primeira palavra do conto é um verbo no subjuntivo dirigido a um suposto
gênero de leitor: “Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo
uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musi-
cal. sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada
daqueles anos remotos” (ASSIS, 1989, p. 42). O leitor virtual no feminino parece
indicar o propósito de dirigir-se a um público romântico, cujos valores é intenção do
narrador subverter. O narrador pede à leitora que imagine um tempo e lugar. Lembra
o narrador primordial (“Era uma vez...”), com a diferença de que, aqui, pede auxílio ao
leitor no ato de narrar. Aliás, a fábula tem que desenhar-se, primeiro, na imaginação do
leitor, como se o narrador pretendesse inverter o caminho natural da enunciação para:
receptor → mensagem → narrador. Estabelece de imediato uma proximidade entre
narrador e narratário e uma distância temporal e espacial da fábula, análoga para os
dois. Esta distância é confirmada por outros vocábulos e expressões: “antigas”, “eram”,
“naqueles anos remotos” (próximo + distante). Em seguida, passa do leitor feminino e
individual a um coletivo, que busca incluir todo leitor virtual – nós mesmos, no ato da
leitura. O narrador deixa implícito que fala a um leitor eleito, mas aceita falar a muitos.
Esta oscilação entre individual e coletivo faz-se duas vezes alternativamente no primei-
ro parágrafo, através dos seguintes dêiticos: leitora → sabem; lhe → lhes. Ao apelar
para o possível repertório de informações do narratário (“sabem”, “podem imaginar”),
o narrador parece mostrar à leitora/leitores que a fábula é inventada, e inventada com
a ajuda dela/deles.
Nem por isso, no entanto, o narrador deixa de conduzir as impressões do
leitor. Intruso, ele vai carregando as imagens objetivas com seus próprios juízos e senti-
mentos. Isso é perceptível, por exemplo, através do “excelente”, atribuído à orquestra, e
de outros adjetivos e comentários: “olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse
tempo”, “é bom músico e bom homem” (ASSIS, 1989, p. 42)), “parece que há duas
sortes de vocação, etc.” (ASSIS, 1989, p. 43)). Com isso, nota-se que o narrador não
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em suas histórias. Se Quincas Borba enlouqueceu, foi por obsessão na filosofia; como
Rubião entrou pelo mesmo caminho na obsessão de Sofia. A moral de Machado parece
ser o ascetismo de Schopenhauer, mas mesmo o ascetismo é exagero, e mestre Romão
descobre que mais forte que ele é a vida – e a arte.
A prosa de Machado de Assis aparece, assim, tingida de um profundo huma-
nismo. Se a vida parece insípida, é porque foi este o sentido que o homem lhe atribuiu,
ele, origem de todos os sentidos. Para oferecer-nos esta visão, Machado de Assis dilui
a fábula trágica num enredo melancólico, nostálgico, elegíaco, como se a tragédia,
quando psicológica, só pudesse produzir uma tênue autocompaixão, nunca o terror: ou
mais, como se a tragédia fosse apenas sempre psicológica: tudo se reduz ao homem, que
tudo exagera quando o quer. Aos sentidos humanos tudo pode se transformar. Romão,
que viveu para a música, a nossos olhos morreu por ela. A lição do mestre: a vida vivida
é uma canção cujo sentido não se revela: observada, porém, de fora e à distância, aos
olhos de uma “leitora desapaixonada”, é apenas fluxo e saudade. O que deveria ser um
canto ao amor e à vida pode transformar-se, pela mão de um narrador e pela visão de
um leitor, numa canção de perda e morte.
Poética da leitura
Não obstante a posição canônica de Machado de Assis na literatura brasileira
e ocidental, resultando na quantidade impressionante de material crítico produzido so-
bre a obra do bruxo do Cosme Velho, dentro e fora do país, algumas abordagens ainda
conseguem se fazer originais. É o caso de Machado de Assis: por uma poética da emula-
ção, publicado há pouco mais de um ano por João Cezar de Castro Rocha, professor da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador da criação machadiana.
Rocha propõe uma abordagem da obra de Machado de Assis a partir de uma
poética da emulação, pela qual, numa atitude antropofágica, o escritor faz da leitura de
seus antecessores o combustível para elaborar sua própria arte. “Esse expediente torna
produtivo, no plano formal, a precedência história da leitura sobre a escrita, da tradução
sobre o original”, explica Rocha (2013, p. 344), concluindo daí a presença visível do
narratário nos contos, crônicas e romances de Machado de Assis, com suas interpe-
lações diretas ao leitor no corpo das narrativas. Isso indicaria, no principal autor do
Realismo brasileiro, uma consciência refinada da importância do leitor na construção
do sentido do texto estético.
Nesse sentido, minha leitura de Cantiga de esponsais confirmaria a visão do
crítico da UERJ. O narrador do conto informa sobre mestre Romão, seu protagonista:
“Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As pri-
meiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso
interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas”
(ASSIS, 1989, p. 43, grifos meus). O que incomoda o maestro, portanto, é a dificulda-
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
os autores também são históricos; e é justamente por isso que alguns deles
almejam escapar à história por um salto na eternidade. Entre esses homens
mergulhados na mesma história e que contribuem do mesmo modo para
fazê-la, um contato histórico se estabelece por intermédio do livro. Escritu-
ra e leitura são as duas faces de um mesmo fato histórico. (SARTRE, 1989, p.
57, grifo meu).
John Gledson repara na assiduidade do tema das relações entre artista, público
e obra na prosa de Machado de Assis e de seus pares contemporâneos: “Esse tipo de dile-
ma, de artistas divididos entre a arte como expressão do eu e as demandas de seu público,
dos jornais e revistas, das vendas, é um tema frequente na literatura do fim do século
XIX” (GLEDSON, 2006, p. 65). A presença de um público de massas anunciava-se,
para alguns artistas, como ameaça à liberdade criativa, tensão apontada por Gledson em
diversos contos machadianos, como “Um homem célebre”, “Terpsícore”, “Um erradio”
e “O anel de Polícrates”. O crítico inglês observa, contudo, que Machado de Assis “não
subestimava formas de entretenimento menos sofisticadas” (GLEDSON, 2006, p. 65) e
aborda, portanto, o tema sem perder de vista a complexidade da relação entre os polos do
processo artístico. Roberto Schwarz (2007, p. 25) já assinalou a consciência machadiana
sobre a falsidade do mito da independência cultural brasileira. Em Cantiga de esponsais,
a quebra desse mito anuncia-se na falsa autonomia e solidão do artista. Assim, o conto
encerra com o retorno do Outro elidido, para completar a obra do artista:
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
O princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lha caía bem no
lugar, era a nota derradeiramente escrita. [...] Impossível, nenhuma inspi-
ração. [...[ Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o.
Nesse momento, a moça, embebida no olhar do marido, começou a canta-
rolar à toa, inconscientemente, uma cousa nunca antes cantada nem sabida,
na qual cousa um certo lá trazia após si uma frase musical, justamente a que
mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a
com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou. (ASSIS, 1989, p. 46)
A frase musical, a qual mestre Romão procurou embalde por toda a vida, é
singelamente concluída pela moça enamorada, porque esta vem “embebida” do olhar
do parceiro. E a morte do herói figura a saída do artista, já prenunciada em palavras do
próprio Romão, ao sentar-se no cravo: “Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei
ao menos este canto que eles poderão tocar” (ASSIS, 1989, p. 45). Toda obra artística
é o início de uma comunicação, após o qual o artista pode se retirar. Ironia da arte: a
maior obra é a que faz esquecer o autor. Essa ironia é vista por Rocha (2013, p. 230)
como o principal traço estilístico da emulação, a melhor expressão do diálogo tenso e
paradoxal entre tradição e invenção, que precisa parecer algo e ser ao mesmo tempo
diferente do seu modelo, afirmar o mesmo sendo um outro.
O objeto artístico, portanto, não é, mas acontece, naquele espaço de media-
ção entre os sujeitos, caracterizando-se, antes que uma autonomia material, como um
evento social e orgânico, cuja concretude apenas se revela quando atualizada na leitura,
fora da qual goza somente do estatuto de uma abstração conceitual. Antes de ser uma
instituição, a Arte é História e sua irrupção é sempre dialética: as esponsais entre um
que sai e outro que chega – artista e artista; artista e leitor; leitor e leitor.
Referências bibliográficas
ASSIS, M de. Cantiga de esponsais. In: ______. Histórias sem data. Rio de Janeiro, Belo Horizonte:
Garnier, 1989, p. 42-46.
CANDIDO, A. Esquema de Machado de Assis. In: ______. Vários escritos. 5. ed. Rio de Janeiro:
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GLEDSON, J. Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PEREIRA, L. M. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. 6.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, São
Paulo: Edusp, 1988.
ROCHA, J. C. de C. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013.
SARTRE, J-P. Que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 1989.
SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance bra-
sileiro. ed. 34, São Paulo: Duas Cidades, 2007.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
construir uma criação continuada. Ela afirma que Flaubert, àquele que lhe perguntasse
de onde veio aquilo que escreveu, responderia: “imaginei, lembrei-me e continuei”
(SAMOYAULT, 2008, p. 78). As atividades de leitura e de escrita se interpenetram
então como em reflexos sem fim, que lembra que “cada livro (...) é o eco daqueles que
o anteciparam ou o presságio daqueles que o repetirão” (SAMOYAULT, 2008, p. 78).
No século XX e início do século XXI, período que enfocamos em pesquisa
realizada recentemente, muitos autores italianos imaginaram, lembraram e continua-
ram mitos, entre eles Gabrielle D’Annunzio (em Maia, Laudi e Alcione, por exemplo),
Giovanni Pascoli (em Il commiato ou em Poemi conviviali, entre outros), Alberto Sa-
vinio (em Hermaphrodito, Achille innamorato e Capitano Ulisse), Marino Moretti (em
Poesie scritte col lapis), Luigi Pirandello (em Novelle per un anno ou Maschere nude),
Massimo Bontempelli (Racconti e romanzi), Italo Svevo (Commedie, Racconti, Saggi
e Pagine sparse), Federigo Tozzi (Le novelle), Tommaso Landolfi (Opere), Dino Cam-
pana (Canti orfici e altre poesie), Umberto Saba (Tutte le poesie), Giuseppe Ungaretti
(Vita d’un uomo. Tutte le poesie, Sentimento del tempo e Porto sepolto), Eugenio Montale
(Prose e racconti), Salvatore Quasimodo (Poesie e discorsi sulla poesia), Cesare Pavese (Il
mestiere di vivere e Dialoghi con Leucò), Giorgio Caproni (L’opera in versi), Pier Paolo
Pasolini (Romanzi e racconti), Italo Calvino (Romanzi e racconti), Luigi Santucci (Orfeo
in Paradiso), Primo Levi (La ricerca delle radici), Alberto Moravia (Racconti surrealisti
e satirici), Dino Buzzatti (Poema a fumetti), L. Romano (Il centauro e Le metamorfosi),
Giorgio Manganelli (Hilarotragoedia), R. La Capria (La colpa di Edipo), Luciano De
Crescenzo (Nessuno: l’Odissea raccontata ai lettori d’oggi), Alessandro Baricco (Omero,
Iliade), Roberto Piumini (Elena le armi e gli eroi), G. Mascioni (La notte di Apollo),
entre outros autores e obras.
Dentre tantos autores e obras, elegemos dois para nos determos um pouco
mais, no presente ensaio, e comentarmos relembranças e releituras que fizeram de mi-
tos clássicos: Italo Svevo (1861-1928) e Alessandro Baricco (nascido em 1958). O
primeiro, que viveu entre o século XIX e XX, famoso no mundo todo por ter escrito
uma obra que trata da relação entre Psicanálise e Literatura, seu terceiro romance inti-
tulado La coscienza di Zeno. Além de três romances, Svevo escreveu também comédias
e contos, entre estes últimos estão “Vino generoso” (“Vinho generoso”, sem tradução
ainda no Brasil) e “Argo e il suo padrone” (traduzido no Brasil como “Argo e seu dono”).
No primeiro conto, “Vino generoso”, publicado em 1926, é narrada a história
de um velho inapto que estava se submetendo a uma dieta especial com um médico
chamado Dr. Paoli. No entanto, o velho aproveita-se de uma liberação do médico para
exagerar em tudo:
Era una sera memoranda anche per me. Mia moglie aveva ottenuto dal dot-
tor Paoli che per quella sera mi fosse concesso di mangiare e bere come tutti
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
gli altri. Era la libertà resa più preziosa dal momento che subito dopo mi
sarebbe stata tolta. Ed io mi comportai proprio come quei giovincelli cui si
concedono per la prima volta le chiavi di casa. Mangiavo e bevevo, non per
sete o fame, ma avido di libertà. Ogni boccone, ogni sorso doveva essere
l’asserzione della mia indipendenza. (SVEVO, 1991, p. 838. Era uma noite
memorável também para mim. Minha mulher havia obtido junto ao Dr.
Paoli que me fosse concedido comer e beber como todos os outros. Era a li-
berdade tornada mais preciosa até que me fosse retirada. E eu me comportei
mesmo como aqueles jovenzinhos aos quais se concede, pela primeira vez,
a chave de casa. Comia e bebia, não por ter sede ou fome, mas com avidez
de liberdade. Cada mordida, cada gole era como que a afirmação de minha
independência. Tradução nossa.)
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
não morra. Admeto acreditava estar muito novo e não queria morrer, passa então a
procurar alguém disposto a morrer em seu lugar. Recebe muitas negativas, depois de
consultar todos seus súditos e seus pais, no entanto, sua esposa Alceste, num ato de
completo altruísmo, se dispõe a trocar de lugar com ele e acaba morrendo ela em lugar
do marido, que, no exato momento da morte dela começa a se arrepender e percebe
como será difícil viver sem ela. A salvação para o estado de desespero de Admeto se
personifica na figura do herói Hércules, seu amigo, que passava pelo seu reino, em
meio às suas andanças, naquela noite, e, sabedor do estado das coisas, combate a morte
e recupera Alceste, deixando-a viva ao lado de seu esposo.
Outro diálogo intertextual com a Mitologia é travado por Svevo no conto
publicado póstumo, em 1934, já no título podemos notar a referência, de certa forma
indireta, a uma narrativa mitológica que está entre as mais conhecidas no mundo oci-
dental, o mito de Ulisses, chamado ao diálogo intertextual pela presença do mitema
(entendido como parte mínima do mito) “Argo”, no mito, nome do fiel cão de Ulisses,
que o aguarda voltar para Ítaca por vinte anos e somente morre depois de reconhecer
seu dono que volta disfarçado. Também no conto sveviano o cão se chama Argo, e é
o cão de um exilado que, como Ulisses fica fora de seu lugar de origem. Porém, dife-
rentemente de Ulisses, aí temos o viés irônico do diálogo intertextual, o dono de Argo
não está afastado de Argo também, está com Argo no odiado exílio a ele imposto pelo
médico, e, na falta de algo para fazer, acaba se interessando em “traduzir” a linguagem
de seu fiel cão.
Trata-se de uma simples referência, mas basta para despertar a percepção do
leitor mais perspicaz que reconhece a inversão irônica na situação do dono de Argo em
relação ao Ulisses mitológico, mostrado na angústia de seu exílio involuntário, e um
nível mais profundo no processo de interpretação do conto é acessado.
No motivo do homem egoísta que provoca ou pede o sacrifício da mulher su-
balterna para seu benefício, Svevo relê aspectos de Ifigênia em Áulis e Alceste; no nome
do cão e no exílio do dono, relê trechos da Odisséia. Ao imaginar, Svevo se lembra dos
mitos e os continua, reatualizando-os, e seus leitores fazem o mesmo ao se darem conta
do diálogo intertextual no plano narrativo das tramas travado entre seus textos e aque-
les de Eurípedes e Homero.
Outro mito também enfocado por Eurípedes, o de Medéia, mais especifi-
camente na relação da feiticeira mitológica com o Rei Pélias, é chamado ao diálogo
intertextual no plano narrativo pela trama da comédia sveviana La rigenerazione. Nela
o protagonista Giovanni busca fugir da morte ao almejar o rejuvenescimento com uma
cirurgia, pois se assusta com a ideia de que a morte lhe trará o fim de seus prazeres, dos
desejos e sonhos, que já eram pouco realizados por conta de sua idade, mas que com
a vinda dela, terminariam completamente. A família para ele é tida como uma espécie
de prisão e a morte como a finalização total de todos os prazeres.
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diretor de cinema italiano, também relê Homero, e deixa esta releitura evidente desde
o título de sua obra Omero, Iliade. Ele reescreveu para o Teatro a obra homérica, mas
também publicou sua versão como texto literário, em 2004. A obra reúne vinte e um
monólogos protagonizados por importantes personagens da Ilíada (vinte personagens
da obra homérica são os narradores dos monólogos de Baricco: Criseide, Térsite, Hele-
na, Pândaro, Enéas, Ama de leite, Nestor, Aquiles, Diomedes, Ulisses, Pátroclo, Sarpe-
donte, Aiace de Telamone, Heitor, Fenice, Antíloco, Agamémnon, Rio, Andromaca e
Príamo) e também da Odisséia (pois no último monólogo, Demódoco conta a queda
de Tróia por obra do ardil do Cavalo engendrado por Ulisses).
Como já dissemos em outro ensaio (RAMOS, 2013, p. 79-80), Baricco revi-
taliza, “em um modo híbrido e inusitado, a arte de narrar, apresentando uma postura
atualíssima ao vê-la como componente essencial do ato construtor da obra artística, ato
que revela as visões multifacetadas do homem pós-moderno”, tal homem é capaz de se
compreender melhor ao se identificar nas representações nas diversas artes interligadas
(tradição cultural + teatro + literatura). O autor repropõe temas complexos e busca
continuar refletindo e fazendo refletir a partir deles também por meio das metáforas
contidas nos mitos. Heitor sabe do peso que deve levar sobre os ombros, da honra de
Tróia que deve defender, e o quanto lutar lhe custará caro. Andrômaca, sua esposa,
acompanhada de outras mulheres, lhe pede para parar de lutar, para pensar nela e no
filho, para ficar com a família. Mas ele entende que a luta e a honra estão em primeiro
lugar, e morre lutando na defesa de Tróia.
Prefaciando sua obra, Baricco declara haver planejado executar uma leitura
pública da Ilíada homérica, tendo conseguido, inclusive, patrocinadores para tal em-
preitada, mas percebeu queda. No entanto, tendo em vista que seria necessário realizar
um espetáculo de mais de quarenta horas para dar cabo de toda a obra, seria exigir
demais do público e dos profissionais envolvidos na representação teatral. Desta forma,
tendo a epopeia de Homero já adaptada numa tradução para o italiano em prosa feita
por Maria Grazia Ciani (editada pela Marsílio) como texto-fonte, buscou “addatarlo
a una lettura pubblica” (BARICCO, 2004, p. 7. “Adaptá-lo a uma leitura pública”,
tradução nossa). Declara ter cortado muitos trechos, suprimido personagens e algu-
mas ações periféricas, a fim de diminuir a duração da leitura da obra e disse, a respeito
da adaptação que realizou que “I mattoni sono quelli omerici, ma il muro risulta più
essenziale” (BARICCO, 2004, p. 7. “Os tijolos são aqueles homéricos, mas a parede
resultante é mais essencial”, tradução nossa). Suprimiu todas as aparições diretas dos
deuses, no entanto, os personagens fazem referências aos deuses, que são, assim, inseri-
dos na narrativa e são considerados indiretamente.
Um exemplo da presença indireta dos deuses pagãos está em trechos como: “I
Troiani dovranno credere che ce ne siamo andati davvero. Vedranno il cavallo: lo pren-
deranno per un omaggio al loro valore, o per un dono alla dea Atena” (BARICCO,
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
2009, p. 151, “Os Troianos deverão crer que fomos embora realmente. Verão o cavalo:
o considerarão como homenagem ao valor deles, ou como um presente à deusa Ate-
na”, tradução nossa). Ou, então, “Il cavallo lo portarono davanti al tempio di Atena”
(BARICCO, 2009, p. 153, “Levaram o cavalo diante do templo de Atena”, tradução
nossa).
O Aquiles retratado por Baricco se preocupa também com a paz, e, durante
todo o período em que transcorre recolhido em sua tenda, negando-se a lutar, desen-
volve questionamentos a respeito da guerra e, de sua maneira, seu coração busca a
paz. No entanto, quando seu companheiro Pátroclo é morto em combate por Heitor,
Aquiles volta a sentir sua ira e comunica: “[...] è ora di dominare il cuore nel petto, e
dimenticare il passato. Oggi io abandono la mia ira e torno a combattere.” (BARIC-
CO, 2004, p. 122. “[...] é hora de dominar o coração no peito, e esquecer o passado.
Hoje eu abandono minha ira e volto a combater”, tradução nossa).
Depois de todos os monólogos, na publicação como texto literário, Baricco
insere um Posfácio intitulado “Un’altra bellezza. Postilla sulla guerra”, para falar da
atualidade da Ilíada, de Homero, nos dias atuais, considerando-se que ela foi escrita
entre o século XII e VIII a.C., que narra uma história de guerra, e que permanece atual,
pois os homens ainda fazem guerra, como afirmamos em publicação em coautoria
(GRAZIANO et al, 2013, p. 545-557). A formação em Filosofia (curso no qual Ales-
sandro Baricco se graduou) fala mais alto, e no Posfácio o filósofo Baricco declara que
retomou a obra homérica por desejar continuar a “cantare la solenne bellezza, e l’irri-
mediabile emozione, che era stata un tempo la guerra, e che sempre sarà” (BARICCO,
2004, p. 157, “cantar a solene beleza, a irremediável emoção, que teve um tempo a
guerra, e que sempre terá”, tradução nossa), pois os homens vivendo em sociedade con-
tinuam a combater entre si. Para ele, “[...] dire e insegnare che la guerra è un inferno e
basta è una danosa menzogna. Per quanto suoni atroce, è necessario riccordarsi che la
guerra è un inferno: ma bello” (BARICCO, 2004, p. 162. “[...] dizer e ensinar que a
guerra é um inferno e pronto é uma mentira danosa. Por mais que soe atroz, é preciso
lembrar-se que a guerra é um inferno: mas é bela”, tradução nossa). Assim, a seu ver,
a guerra possui também um lado belo, por exteriorizar um certo instinto de luta e so-
brevivência por parte do gênero masculino, enquanto a maioria das mulheres mantém
uma memória de amor pela paz, e clama por ela. Eis aí mais uma combinação realizada
por Baricco (além de texto dramático e texto literário num só), ele recombina, nova-
mente, texto mitológico e texto filosófico. Desde o surgimento da Filosofia, por volta
do século V a.C., as considerações registradas estão pontuadas de histórias mitológicas
que servem como exemplos ou contrapontos para fazer refletir a respeito dos desejos,
dos comportamentos, das ações dos homens e deuses representados nos mitos. Desde
o surgimento da Filosofia, a Mitologia (entendida conjunto de mitos) foi aproveitada
pelo seu alto teor simbólico.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
Graziani (1988, p. 488) nos faz ver que o mito liga-se à metáfora ao construir
em si uma imagem simbólica que possui uma “função transformadora no domínio
literário”, no exato momento em que o novo texto “reelabora o material mítico”. Ao
estudar as novas combinações paradigmáticas propostas por Baricco, verificamos que
engendram, no texto produzido, um sentido similar ao texto-fonte; trabalhando no
eixo parafrásico, ou seja, não há inversão de sentidos, existem sim diversas supressões e
vários deslocamentos, para que a nova versão seja condizente com a linguagem e a du-
ração temporal da leitura da obra, no novo contexto artístico contemporâneo no qual
ela se insere, isto é, trata-se de uma epopeia reescrita em prosa para o teatro, tendo sido
alterado o gênero, como conjunto de monólogos, o que significa que houve alteração
do narrador em relação ao texto-fonte, que não é mais extradiegético e onisciente, mas
é formado por um conjunto de personagens que, cada um a sua vez, narra partes que
viveu da trama, de forma a contemplar a leveza, a agilidade e a rapidez que o texto
artístico contemporâneo exige, realizando, assim, a permanência do clássico homérico
nesse início de século XXI que estamos vivendo.
Para Baricco, trabalhar pela paz, como Aquiles trabalhou, é também ir à guer-
ra, e ele mesmo, enquanto autor, trabalha pela paz indo à luta pela criação artística
(que, no caso de Omero, Iliade, é muito mais recriação artística), e propõe temas im-
portantes para se refletir, e assim, melhorar a consciência dos leitores na qualidade de
homens do e no mundo, vivendo em sociedade e resolvendo seus conflitos externos
(com os outros) e internos (consigo mesmos).
Em uma outra publicação sua de 2012, intitulada Una certa idea di mondo,
Baricco reúne ensaios de sua autoria publicados no Jornal La Reppublica naquele ano.
Tais ensaios comentam leituras que fez de livros diversos. Trata-se de um livro que fala
de livros, pois Baricco enfoca os últimos dez anos de sua vida de leitor e escolhe cin-
quenta livros que mais lhe tocaram, a cada um deles dedica um comentário ensaístico
especial. Num deles, que trata de sua leitura de Le api e i ragni. La disputa degli antichi
e dei moderni (As abelhas e as aranhas. A disputa dos antigos e dos modernos, tradução
do título nossa), de Marc Fumaroli, Baricco volta à ideia já declarada em obra ante-
rior (Ensaios de I barbari e le mutazioni, publicado em 2006), ou seja, a ideia de que
os novos autores devem voltar aos textos da tradição modificando-os, devem voltar à
tradição cultural realizando nela mutações, como autores bárbaros diante da cultura
tradicional já estabelecida, que a invadem para torná-la mais adequada para os dias
atuais. Ele declara que:
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte II Exame do texto narrativo
mais facilmente, por ter lido este livro, que na partida que estamos dispu-
tando agora vencerão os bárbaros, e o farão não tendo razão, mas o farão,
pela força incomparável da juventude, do talento e da loucura”, tradução
nossa).
Baricco, desde 2006, demonstra sua preocupação com a disputa entre anti-
gos e contemporâneos, reconhece que os contemporâneos nem sempre têm razão nas
mutações que realizam, mas que eles (e Baricco está no grupo dos bárbaros) o fazem e
continuarão a fazer pela força do vigor, do talento e, muitas vezes, da insensatez. Mas,
para um leitor crítico que pode acompanhar as considerações tecidas pelo escritor, en-
saísta, filósofo, cineasta, etc., italiano, o que pode ser apreendido no final do processo
de leitura e interpretação das obras de Baricco (assim como das obras de Svevo e vários
outros autores italianos do Século XX – século chamado pelos italianos de Novecento
– aos dias atuais), principalmente quando se trata de retomadas de material da fonte
dos clássicos da Mitologia, a imaginação, a lembrança e a continuação das narrativas
mitológicas pelas mãos dos novos criadores intertextuais é fecunda, e opera mutações
condizentes com nossos dias. Graças ao diálogo intertextual, os mitos permanecem, e
continuam auxiliando os homens na grande empreitada de se entenderem e se coloca-
rem melhor diante do mundo e diante de si mesmos.
Referências bibliográficas
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ELIADE, M. Mito e realidade. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
GRAZIANI, F. Imagem e mito. In: BRUNEL, P. (Org.). Dicionário de Mitos Literários.
Tradução de Carlos Sussekind et al. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olymnpio, 1998. p. 482-489.
GRAZIANO, P. H. P.; OLIVEIRA, B. O. de; PEREIRA, T. M.; RAMOS, M. C. T. A rees-
critura da Ilíada, de Homero, no século XXI e as reflexões sobre a Guerra por Alessandro
Baricco, em Omero, Iliade. Anais do III Colóquio Vertentes do Fantástico na Literatura.
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departamentos/letras-modernas/eventos/iii-coloquio-vertentes-do-fantastico-na-literatura/
RAMOS, M. C. T. A Permanência do Clássico Mitológico em Omero, Ilíade, de Alessandro
Baricco. Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários. Vol. 26 (dez. 2013).
Curitiba, 2013, p. 73-81. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/
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SAMOYAULT, T. A intertextualidade. Tradução de Sandra Nitrini. São Paulo: Hucitec,
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SVEVO, I. Tutti i romanzi e i racconti. Roma: Newton, 1991.
______. Comedie. Org. e prefácio de Umbro Apollonio. Milão: Mondadori, s/d.
189
PARTE III
Formação do leitor literário
Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte III Formação do leitor literário
Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos.
(Mikhail Bakhtin)
Considerações iniciais
Tem havido, nas últimas décadas, uma discussão bastante relevante e intensa
acerca da leitura da literatura na escola, atrelada a uma crítica consistente sobre as “ve-
lhas” práticas e metodologias aplicadas ao “ensino” de literatura. Desta forma, o pro-
fessor tem enfrentado muitos desafios para se desvencilhar de práticas metodológicas
retrógradas e, em boa medida, sem resultados profícuos no que tange à promoção e ao
desenvolvimento do letramento literário.
A formação do leitor literário na escola e o letramento literário têm objetos de
muitas pesquisas em nosso país, a saber: Cosson (2007; 2013); Paulino (2008); Soares
(2001; 2008); Aguiar (2007); Martins e Versiani (2008); Zilberman (2001; 2009); La-
jolo (2009) etc., demonstrando, assim, que tais temáticas têm proporcionado reflexões
e debates em nossa sociedade.
Assim, este trabalho objetiva fomentar o debate sobre a leitura literária e apre-
sentar uma proposta didática - à luz da teoria bakhtiniana - de um conto “Buquê de
Línguas”, da escritora mato-grossense Tereza Albues. A referida proposta visa a promo-
ção do letramento literário a partir do conto supracitado que tem como pano de fundo
a temática da diversidade cultural, atravessada por muitas vozes e linguagens.
O trabalho com o referido conto é relevante na medida em que ele trata de
hábitos e costumes culturais diferentes e, sendo a escola um espaço social onde tais
questões, nem sempre, não discutidas, pensamos que, certamente, tal proposta terá
uma boa aceitação por parte dos alunos e que, possivelmente, surtirá efeitos produtivos
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte III Formação do leitor literário
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte III Formação do leitor literário
[...] um processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos es-
senciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição
2 Antonio Candido se fundamenta na distinção do sociólogo francês Louis Joseph Lebret entre bens compressí-
veis (essenciais) e bens incompressíveis. Segundo o qual, “são bens incompressíveis não apenas os que asseguram
sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompressíveis certa-
mente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde (...); e também o direito à crença, à opinião, ao
lazer e, por que não, a arte e a literatura?” (CANDIDO, 1995, s/p).
3 Antonio Candido discutiu tal questão no ano de 1988 e vemos que só agora surge um programa (PNLL)
governamental em caráter de lei que abarque a democratização do acesso ao livro literário.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte III Formação do leitor literário
Isso só é possível porque, como toda arte, a literatura tem o poder de falar
em nós, no mais profundo do nosso ser, de maneira tal que nos identificamos com as
personagens; envolvemo-nos com as estórias, as brigas, as intrigas; fazemos inter-rela-
ções com outros textos ou contos que ouvimos no quotidiano; refletimos acerca dos
atos complexos da existência humana; faz-nos ficar horas e horas vidrados no livro;
possibilita um mundo diferente daquele no qual estamos inseridos; leva-nos a imagi-
nar lugares, cidades, ruas; faz-nos sentir dor, alegria, compaixão, revolta por alguma
personagem ou situação; promove ascensão intelectual e social, entre outros. Talvez,
por isso, Petrilli (2010, p.41 ênfase adicionada) tenha asseverado que “[...] a linguagem
literária é o lugar em que mais se destacam e se manifestam as características vivas do
comunicar-se, a plurivocidade da ‘palavra’, seu ‘plurilinguismo dialogizado’ [...]”. O
texto literário, portanto, desnuda a (des)humanidade do ser , de maneira tal que, nos
constituímos e nos confrontamos nas relações dialógicas entre o eu (leitor) e tu/outros
(personagens/obra) (BAKHTIN, 1952/1953).
Entendemos, a partir disso, que a literatura pode ser um instrumento cons-
ciente de desmascaramento, uma vez que pode focalizar as situações de restrição dos
direitos, a miséria, a mutilação espiritual de determinada comunidade etc.
Portanto, compreendemos o texto literário como um espaço sócio-historica-
mente constituído através dos elementos culturais e ideológicos de uma determinada
sociedade. Partiremos, assim, da concepção de que o texto literário é um lugar de con-
fronto de vozes, de emancipação e humanização do ser humano porque concebemos
a linguagem como um signo ideológico (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929) que
promove a interação verbal entre os sujeitos duma determinada comunidade; uma
realidade pluridiscursiva constituída de várias linguagens cuja natureza é dialógica. A
este respeito, Ponzio; Calefato; Petrilli (2007, p.35), asseveram que:
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Motivação
Esse primeiro passo consiste, segundo Cosson (2007), em preparar e instigar o
aluno para “entrar” no texto, isto é, envolver-se com o texto literário. Portanto, iremos
apresentar para os alunos um curta metragem (A Ilha) e uma imagem que tratam de
questões atinentes à cidade urbanizada, ao quotidiano de determinados sujeitos...
4 Nesse artigo usaremos apenas um conto como objeto de ensino, porém o professor pode trabalhar com mais
outros contos da autora. A ideia é que o professor, antes de começar um trabalho com os gêneros do discurso,
faça um banco de textos, uma seleção de textos, a fim de que o alunado perceba, por meio da leitura de diversos
contos, o estilo do gênero e da autora, a forma composicional e o conteúdo temático do gênero estudado. Para
maiores informações conferir (MAIOLINI, 2013).
5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7C3Ug43Xzaw
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6 Disponível em http://www.wallsus.com/a/Art/2014/0309/7887.html
7 Aqui esse momento de produção escrita figura apenas como título de exemplificação, visto que nosso objetivo,
para essa primeira proposta, é trabalhar com leitura e compreensão.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências / Parte III Formação do leitor literário
Introdução
Esse segundo momento é destinado para que o professor faça uma breve ex-
planação acerca do autor e da obra que será estudada com os alunos. Nesse momento,
o professor pode levar os alunos à biblioteca da escola para a retirada do livro. Caso a
escola não tenha a obra “Buquê de línguas”, da Tereza Albues, o docente pode levar os
alunos à biblioteca municipal8 onde encontrarão a obra supracitada.
Assim, é imprescindível que a obra seja apresentada fisicamente para a turma,
pois é nesse momento que o professor chama a atenção dos alunos para a leitura da
capa, da contracapa, da orelha e de outros elementos que somam para a compreensão
e análise da obra.
Inicialmente, o professor pode instigar o aluno a levantar hipóteses a partir
da análise dos elementos paratextuais (COSSON, 2007) que introduzem a obra, por
exemplo:
a) Alguém já ouviu falar na escritora Tereza Albues? Vocês sabiam que ela é
mato-grossense?
b) Observem a capa, a contracapa, a orelha, o título do livro e digam sobre
qual assunto irá tratar o conto que iremos ler? Anotem em seus cadernos.
Leitura
Nesse terceiro passo, Cosson (2007) sugere que o professor faça um acompa-
8 Nesse caso será a Biblioteca Municipal de Sinop, MT. Ademais, o professor pode sugerir que os alunos façam
a “carteirinha” da referida biblioteca, a fim de emprestarem outros livros, caso desejem.
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nhamento da leitura do aluno – isso quando for trabalhar com obras extensas. Desta
forma, “cabe ao professor convidar os alunos a apresentar os resultados de sua leitura
no que chamamos de intervalos” (COSSON, 2007, p. 62). Os intervalos são ativida-
des específicas e podem ser variadas em suas modalidades. Por exemplo, fazer leitura de
outros textos menores (minicontos, poemas, imagens etc.) que tenham relação com o
texto principal.
Para a nossa proposta não será necessário o uso de intervalos, uma vez que se
trata de um texto curto. Porém, a leitura pode ser dividida em dois momentos: a lei-
tura silenciosa, a título de reconhecimento do texto, e a leitura oral ou expressiva que
pode ser feita pelo professor. Antes da leitura silenciosa, é bom que o professor peça
aos alunos que sublinhem as palavras desconhecidas, expressões que não entenderam,
assim como partes que lhes chamaram a atenção, que gostaram. Nesse momento, o
docente pode pedir aos alunos que retomem a atividade anterior (“Observem a capa,
a contracapa, a orelha, o título do livro e digam sobre qual assunto irá tratar o conto
que iremos ler? Anotem em seus cadernos.”), verificando se as hipóteses levantadas se
comprovaram ou não após a leitura do conto.
Interpretação
Após a leitura, passaremos para a interpretação. Para o Cosson (2007), essa
etapa pode ser pensada em dois momentos, quais sejam: um interior e outro exterior.
O momento interior é compreendido como aquele que acompanha a decodi-
ficação, é um momento mais técnico (palavra por palavra, página por página, capítulo
por capítulo etc.) em que o leitor tem uma visão global da obra, é um encontro indivi-
dual do leitor com a obra/leitor. Segundo Cosson, esse encontro é imprescindível para
a formação do leitor literário, pois “esse encontro é de caráter individual e compõem o
núcleo da experiência da leitura literária [...]” (COSSON, 2007, p. 65).
Ao passo que, o momento externo consiste na concretização e materialização
da interpretação como ato de construção de sentido num determinado espaço de in-
teração social. É, portanto, o ato de compartilhar e ampliar os sentidos apreendidos
da palavra literária, por assim dizer, os construtos adquiridos individual e socialmente.
Nesse viés, a escola assume um papel de agenciadora do letramento literário, ou seja,
quando os leitores ganham “consciência de que são membros de uma coletividade e de
que essa coletividade fortalece e amplia seus horizontes de leitura” (COSSON, 2007,
p. 66).
Assim sendo, é imprescindível que as atividades de interpretação tenham
como objetivo principal a externalização da leitura, isto é, o registro. Conforme Cos-
son (idem) “Esse registro vai variar de acordo com o tipo de texto, a idade do aluno e
a série escolar, entre outros aspectos” (idem).
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Considerações Finais
9 Como já dissemos em outro momento, o objetivo desse artigo é apresentar uma proposta de leitura e com-
preensão do conto Buquê de Línguas, por isso não nos ateremos à produção textual escrita. No entanto, consi-
deramos ser importante sugerir possíveis atividades para o professor.
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Referências bibliográficas
ALBUES, T. Buquê de Línguas. Cuiabá, MT: Carlini & Caniato, 2008.
BAKHTIN, M. M.; VOLOCHINOV, V. N. [1926]. Discurso na vida e discurso na arte (sobre
poética sociológica). Trad. de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. (mimeo).
BAKHTIN, M. M. [1934-1935/1975]. O discurso no romance. In:______. Questões de Literatura
e Estética (A Teoria do Romance). São Paulo: Editora da UNESP, 1993.
______. [1952-53/1979]. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da Criação Verbal. BAKH-
TIN, M. M.; VOLOCHINOV, V. N. [1926].
______. [1929]. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi Viei-
ra. São Paulo: Hucitec, 2009. Trad. de Paulo Bezerra, São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CÂNDIDO, A. O direito à literatura. In: ______. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
2011.
COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2007.
PETRILLI, S. Uma leitura inclassificável de uma escritura inclassificável: a aproximação bakhtiniana
da literatura. In: PAULA, L.; STAFUZZA,G. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010.
PONZIO, A.; CALEFATO, P.; PETRILLI, S. Fundamentos de filosofia da linguagem. Trad. de
Ephraim F. Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
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Vemos, portanto, que o editor não tem sobre o destino dos seus “recém-
nascidos” uma maior influência positiva do que o médico-parteiro, ao qual
o comparámos. Mas, pelo contrário, é considerável a sua influência negati-
va, porque os seres que ele ajuda a vir ao mundo têm apenas uma liberdade
fictícia, estritamente limitada ao circuito social para o qual foram concebi-
dos (ESCARPIT, 1969, p. 120).
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sobre os textos (artigos de revistas, artigos críticos, resenhas e até mesmo listas de mais
vendidos) tem papel fundamental sobre o seu público. Assim, são instâncias importan-
tes para o aspecto da recepção literária.
Contudo, o que “alguém” resolve ler passa, inevitavelmente, pela avaliação e
critérios de valores de uma sociedade, que classifica e escolhe quais obras possuem qua-
lidade artística para serem consideradas literárias e dignas de leitura. Mas as preferên-
cias que determinam o literário e o não-literário são determinadas por alguns membros
da sociedade, aqueles que conquistaram, de algum modo, o respeito por suas opiniões,
por exemplo, os críticos literários, os pesquisadores, os professores, entre outros, e que,
por isso, agregam a força da autoridade para os discursos que proferem sobre os textos.
O poder exercido por alguns grupos sociais sobre as preferências e as escolhas
dos leitores pode ser reconhecido, na contemporaneidade, pela indústria cultural que
necessita do consumo de seus produtos, no caso específico dos livros, para adquirir o
lucro e continuar no mercado. A consequência é imprimir todos os tipos de leituras,
para todos os tipos de leitores, almejando o lucro certo e não a qualidade. Para isso,
desenvolvem estratégias variadas para envolver o público-alvo: preços baixos, edições
de bolso, exposição da imagem do escritor em palestras e meios de comunicação, co-
leções etc.
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Ao lado do crítico, indivíduo que pronuncia sua opinião sobre o texto, va-
lidando-o ou não, deve-se lembrar também de outros mecanismos que atuam com
força prescritiva sobre os textos, embora não sejam vistos como tais. É o caso das listas
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de mais vendidos veiculadas por jornais e revistas de grande circulação. Tais listas são
apresentadas ao público, normalmente, na sessão “livros mais vendidos”, e as fontes da
pesquisa para a classificação são livrarias de algumas cidades, principalmente capitais.
Além da classificação por venda, alguns meios de comunicação classificam os livros
em ficção, não ficção e autoajuda/esoterismo, indicando a posição do livro na última
semana e há quantas semanas consecutivas o livro aparece na lista.
A lista dos livros mais vendidos é um bom exemplo de legitimidade para um
grupo social, já que existe uma grande quantidade de títulos a serem escolhidos e isso se
torna uma tarefa difícil e até cansativa. O melhor, então, é escolher o texto a ser lido a
partir de um critério bastante objetivo: o número de leitores que por ele se interessam.
O difícil é saber se os livros que estão nas listas são realmente os mais procurados pelos
leitores ou são mais vendidos porque estão nas listas, ou seja, o que mais influência a
venda dos livros nas livrarias é o fato de se apresentarem na classificação das revistas,
jornais e internet ou é o interesse do leitor independente dessa exposição nas listas dos
mais vendidos. Na atualidade, essas listas podem influenciar e mediar sobremaneira a
escolha para a leitura de determinados livros, pois imprimem um selo de qualidade ao
livro.
Portanto, o papel mediador do crítico e de elementos que atuam como ava-
liadores da qualidade de obras de ficção são de suma importância, pois são capazes de
orientar o leitor na produção de sua leitura. O caso do crítico literário da mídia de
massa ou da cultura popular, como propõe Escarpit (1969), exemplifica de forma con-
tundente uma prática de leitura alinhada ao modelo de letramento ideológico (abarca
as práticas de leitura que acontecem fora da escola), pois destaca essa instância de poder
que tem o crítico, enquanto mediador, e seu modo de determinar a leitura dos sujeitos
em um espaço que não o da escola.
Existem vários modos que marcam a prática de leitura dos sujeitos, uma delas
é compreender o livro enquanto objeto de consumo, que circula e está exposto em es-
paços como supermercados, livrarias, bancas de jornal, quiosques entre outros, sempre
a mão em lugares de grande circulação e acompanhado de estratégias de marketing. As
qualidades estéticas, nessa realidade, nem sempre são prioridade para a indústria cultu-
ral e tampouco para os leitores. O que mais chama a atenção dos leitores é a qualidade
material do livro (tipo de papel, encadernação, tamanho de letra etc.), o que a crítica
está dizendo sobre ele, se está na lista dos mais vendidos etc.
De tudo isso, fica a necessidade de a instituição escolar conhecer ou reconhe-
cer as práticas de leitura que acontecem fora do seu espaço, para então organizar e
encaminhar ações em que a teoria literária e a didática formem leitores literários, que
possuam o conhecimento necessário para interpretar e compreender textos de ficção
de natureza diversa, presentes em suportes que a cada dia se multiplicam mais e mais.
Além disso, fazer com que os novos leitores percebam que suas escolhas e produções de
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sentido são alvo da indústria cultural, que publica, distribui e orienta as leituras, com o
intuito muito mais direcionado ao capital do que ao valor artístico das obras.
Referências bibliográficas
ESCARPIT, R. Sociologia da leitura. Tradução de Anabela Monteiro e Carlos A. Nunes. Lisboa:
Arcádia, 1969.
HAUSER, A. Sociología del público. In: ______. Sociololgía del arte. Tradução de Vicente Romano
Villalba: Labor, 1977. p. 549-686.
WELLERSHOFF, D. Literatura, mercado e indústria cultural. Humboldt, Hamburgo, v. 22, p. 44-
48, 1970.
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências
SOBRE OS AUTORES
Adriana Lins Precioso – Professora Adjunta da Universidade do Estado de Mato Grosso – Campus
de Sinop-MT. Doutora pela Unesp - Ibilce - Campus de São José do Rio Preto-SP, na área de Teoria da
Literatura, com o título obtido em 2009 e Mestre pela mesma instituição em 2003. Atua na Teoria da
Literatura com ênfase na Literatura Comparada. Tem experiência no campo de Letras, desenvolvendo
pesquisas principalmente nos seguintes temas: literatura brasileira, literatura italiana, literatura com-
parada, mitologia, tradição, reinvenção, pós-modernismo e análise semiótica. Atualmente, pesquisa a
produção literária produzida em Mato Grosso, as questões de identidade e diferença, bem como as
vertentes fantástica da literatura. Professora do Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS,
nas disciplinas Texto e Ensino e Literatura Infantil e Juvenil. Coordenadora do Grupo de Pesquisa
– Estudos comparativos de Literatura: tendências identitárias, diálogos regionais e vias discursivas,
cadastrado no CNPq.
E-mail: adrianaprecioso@unemat.br
Danglei de Castro Pereira - Professor do Ensino Superior Adjunto I da Universidade de Brasília. Pos-
sui graduação em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1999), mestrado
em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2003), doutorado em Letras
pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2006) e pós-doutorado pela Universidade
de São Paulo (2012). Desde 2015 é professor da Universidade Nacional de Brasília (UnB). É líder do
Grupo de pesquisa "Historiografia, cânone e ensino" , conjuntamente com a Profa. Dra.
Rosana Cristina Zanelatto Santos. Membro do comitê do PROLER/Campo Grande até 2014. Profes-
sor no Mestrado Profissional em Letras. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas
em Língua Portuguesa, dedicando-se principalmente aos seguintes temas: tradição, modernidade, ro-
mantismo, literatura brasileira e ensino de literaturas em língua portuguesa.
E-mail: danglei@terra.com.br
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências
Henrique Roriz Aarestrup Alves - Professor Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso
– Campus de Sinop-MT. Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais
(1995); Mestrado (2001) e Doutorado (2008) em Literaturas de Língua Portuguesa pelo Programa de
Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Atualmente é professor
adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso. Tem experiência na área de Letras, com ênfase
em Literaturas de Língua Portuguesa, atuando principalmente nos seguintes temas: nação e identi-
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências
dade, intelectuais e minorias; corpo, cidade, sexualidade e erotismo. Membro do Grupo de Pesquisa
– Estudos comparativos de Literatura: tendências identitárias, diálogos regionais e vias discursivas,
cadastrado no CNPq.
E-mail: henriqueroriz@unemat.br
Iara Lopes Maiolini – Professora interina da Universidade do Estado de Mato Grosso – Campus
de Sinop-MT.Mestre em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso - MeEL/
UFMT. Membro do Grupo de Pesquisa – Estudos comparativos de Literatura: tendências identitárias,
diálogos regionais e vias discursivas, cadastrado no CNPq.
E-mail: iaracl84@hotmail.com
Luiz Renato de Souza Pinto - Doutor em Letras pela UNESP, Campus de São José do Rio Preto – SP,
professor de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT), Campus de Barra do
Garças – MT. Luiz Renato de Souza Pinto - Doutor em Letras pela UNESP, Campus de São José do
Rio Preto – SP, professor de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT), Campus
de Barra do Garças – MT. Membro do Grupo de Pesquisa – Estudos comparativos de Literatura: ten-
dências identitárias, diálogos regionais e vias discursivas, cadastrado no CNPq.
E-mail: lrenatopinto@bol.com.br.
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Marcela Dias Pinto Perez - Possui graduação em Letras Português Francês pela Universidade Estadual
de Maringá (2002). É mestre pela Universidade Estadual de Maringá (2010). Atualmente, trabalha
como professora efetiva da área de linguagem (língua portuguesa) na rede estadual de ensino de Mato
Grosso e como professora contratada na Faculdade de Linguagem – Letras - UNEMAT/Sinop/MT.
Foi professora titular da Prefeitura do Município de Maringá/Pr durante dezesseis anos e do PROJO-
VEM, projeto que trabalha com adultos e foi organizado pela Secretaria de Estado da Criança e da Ju-
ventude do Paraná (SECJ). Além disso, foi diretora de uma escola municipal da cidade de Maringá no
Paraná e coordenadora do Projeto Educomunicação (Sinop/MT). Tem experiência na área de Letras,
com ênfase em literatura e formação do leitor literário, atuando, principalmente, nos seguintes temas:
literatura, leitor, recepção e letramento literário. Membro do Grupo de Pesquisa – Estudos compara-
tivos de Literatura: tendências identitárias, diálogos regionais e vias discursivas, cadastrado no CNPq.
E-mail: marcelaunemat@gmail.com
Maria Celeste Tommasello Ramos: É Livre-Docente pela UNESP Universidade Estadual Paulista
desde 2009. Realizou Pós-Doutorado na FFLCH USP (2007), Doutorado (2001) e Mestrado (1994)
em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP. Possui graduação em
Letras com Habilitações em Português e Francês (1989) e em Italiano (1993) pela UNESP. Desde 1994,
é professora da Área de Italiano do Departamento de Letras Modernas do IBILCE/UNESP, em regime
de dedicação integral. Além de atuar como docente nos cursos de graduação de Letras e Tradutor, é
docente e orientadora no Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto. Tem experiência na área
de Letras Estudos Literários e atua nas linhas: Intertextualidade; Literatura Comparada; Literatura e Ci-
nema; Machado de Assis; Mito e Literatura; Mitologia; e Teoria e análise do texto. Já publicou dezenas
de artigos científicos e capítulos de livros sobre os estudos acadêmicos desenvolvidos, além de organizar
os livros Mitos: perspectivas e representações (2005) e de co-organizar os livros À roda de Memórias
póstumas de Brás Cubas (2006) e Pelas veredas do fantástico, do mítico e do maravilhoso (2013). É pes-
quisadora do Grupo de Pesquisa Vertentes do Fantástico na Literatura, líder e pesquisadora do Grupo
de Pesquisa Literatura Italiana e Outras Artes (todos certificados pelo CNPq) e Presidente da Comissão
Permanente de Pesquisa da UNESP - Campus de São José do Rio Preto - SP (biênio 2014-15).
E-mail: mceleste@ibilce.unesp.br
Marimilda Rosa Vitali - Possui graduação em Licenciatura plena em Letras pela Universidade do Estado
de Mato Grosso (2004) e está fazendo doutorado em Literatura e linguas românicas pela Universidade
de Genebra. Tem experiência na área de Filologia, Lingüística e Crítica textual com ênfase em Diacronia.
E-mail: marimildavitali@yahoo.com.br
Marli Walker - Possui graduação em Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso (2000),
mestrado em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso (2008) e doutorada
em Literatura e Práticas Sociais pela UnB (2013). Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia de Mato Grosso, Campus Cuiabá e da UAB, Universidade Aberta do Brasil, UFMT. Tem
experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: poesia, identidades, lite-
ratura mato-grossense, literatura e gênero. Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Comparativos
de Literatura: Tendências Identitárias, Diálogos Regionais e Vias Discursivas e do Grupo de Pesquisa
Vozes Femininas (CNPq). Pesquisa de tese e publicações nas áreas de literatura mato-grossense, litera-
tura e identidade, literatura e gênero com ênfase na autoria feminina.
E-mail: marliterezinhawalker@yahoo.com.br
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Estudos de Literatura: diálogos, perspectivas e tendências
Paulo Sérgio Marques: Possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela Faculdade de
Comunicação Social Casper Líbero (1989) e em Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso
(Unemat). Mestre e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara
da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FCLAR/Unesp, 2007), tem experiência
nas áreas de Letras e Jornalismo, com ênfase em Literatura Moderna e Teoria da Comunicação e da
Literatura, atuando principalmente nas linhas de estética e semiótica, crítica e história da arte, da lite-
ratura e do cinema, teorias do imaginário e do mito, antropologia cultural e narrativas mágicas, com
especificidades em indigenismo, literatura brasileira e hispano-americana, além de experiência em lite-
ratura comparada e ensino de literaturas clássicas ocidentais. Como autor de poesia e narrativa, utiliza
o pseudônimo ficcional de Santiago Villela Marques.
E-mail: santiagovillelamarques@gmail.com
Rosana Rodrigues da Silva - Professora doutora na Universidade do Estado de Mato Grosso, campus
de Sinop. Graduada em Letras pela UNESP 1992), Mestre em Letras pela UFRGS (1997) e Doutora
em Letras pela UNESP de São José do Rio Preto (2003). Professora do curso de Letras, da UNEMAT
(Universidade do Estado do Mato Grosso), Campus de Sinop. Tem experiência na área de Literatura,
com ênfase em teoria do texto poético, literatura moderna e contemporânea, crítica literária, ensino e
pesquisa sobre a literatura produzida em Mato Grosso. Integra o grupo Estudos comparativos de Lite-
ratura: tendências identitárias, diálogos regionais e vias discursivas e o grupo Vertentes do fantástico na
literatura. Membro do grupo de pesquisa Estudos comparativos de literatura: tendências identitárias,
diálogos regionais e vias discursivas (CNPq).
E-mail: rosana.rodrigues@unemat-net.br
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