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Linguagens e Tecnologia: Arte Ensino e Edição

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Marta Passos Pinheiro

Renato Caixeta da Silva


Rogério Barbosa da Silva
Wagner José Moreira (Orgs.)
Marta Passos Pinheiro
Renato Caixeta da Silva
Rogério Barbosa da Silva
Wagner José Moreira (Orgs.)
Linguagens e tecnologia: arte, ensino e edição
Conselho editorial
Ângela Maria Franco Martins Coelho de Paiva Balça, Diógenes Buenos Aires
de Carvalho, Edgar Roberto Kirchof, Eliane Debus, Elisa Dalla Bona, Fabiane
Verardi Burlamaque, Hércules Toledo Corrêa, Max Butlen, Moisés Selfa Sastre,
Rildo Cosson e Rosa Maria Hessel Silveira
Projeto gráfico e editoração
Luiz Augusto do Nascimento
Revisão e edição
Marta Passos Pinheiro

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Linguagens e tecnologia [livro eletrônico] : arte,


ensino e edição / organização Marta Passos
Pinheiro ... [et al.] . -- 1. ed. -- Presidente
Prudente, SP : CdeA Campos Editora : CNPq
Conte, 2020.
PDF

Outros organizadores : Renato Caixeta da Silva,


Rogério Barbosa da Silva, Wagner José Moreira.
ISBN 978-65-990822-5-2

1. Arte 2. Edição Web 3. Ensino 4. Linguagens 5.


Tecnologia I. Silva, Renato Caixeta da. II. Silva,
Rogério Barbosa da. III. Moreira, Wagner José.

21-56077 CDD-410

Índices para catálogo sistemático:


1. Linguagens : Pesquisa e ensino : Linguística 410
Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129
CEFET-MG
Diretor geral
Prof. Flávio Antônio dos Santos
Vice-diretora
Profa. Maria Celeste Monteiro de Souza Costa
Chefe de gabinete
Profa. Carla Simone Chamon
Diretor de educação profissional e tecnológica
Prof. Sérgio Roberto Gomide Filho
Diretora de graduação
Profa. Danielle Marra de Freitas Silva Azevedo
Diretor de pesquisa e pós-graduação
Prof. Conrado de Souza Rodrigues
Diretor de planejamento e gestão
Prof. Moacir Felizardo de França Filho
Diretor de extensão e desenvolvimento comunitário
Prof. Flávio Luis Cardeal Pádua
SUMÁRIO
Linguagens em diálogo:
Posling e nossa comemoração
Marta Passos Pinheiro e Renato Caixeta da Silva . . . . . . . . . 7
Homenagem a Sepp Gumbrecht:
uma tipologia cronológica
João Cezar de Castro Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13
Em casa longe de casa?
Um olhar sobre as humanidades no Brasil
Hans Ulrich Gumbrecht . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .24
O direito à leitura literária:
notas iniciais
João Cezar de Castro Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . .34
Algumas especulações em torno do fazer análise
Hugo Mari . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .59
Linguagem, ensino e aprendizagem no encontro
design em parceria e design na leitura
Jackeline Lima Farbiarz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Edição, um processo em aberto:
exercícios, projetos e construção de espaços
Rogério Barbosa da Silva e Wagner Moreira . . . . . . . . . . 125
Tenteando a travessia – roteiro de performance
Grupo Movência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
Sobre os movimentos dos tipoemas.
Da origem ao infinito. Do um ao todo. Do chumbo ao pixel.
Cláudio Santos Rodrigues e Sérgio Antônio Silva . . . . . . . . 173
Da “esquizofrenia produtiva” à sobrevivência da
universidade pública no Brasil
Entrevista concedida à Joelma Xavier e à Andréa Santos . . . . 197
Corpo, presença e serenidade:
um diálogo com Hans Ulrich Gumbrecht
Olga Coelho e grupo Comtec . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225
Linguagens em diálogo:
Posling e nossa comemoração
Marta Passos Pinheiro
Renato Caixeta da Silva

Este livro reúne textos de pesquisadores e artistas que


participaram, no ano de 2018, da comemoração dos 10 anos
do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
(Posling)1 do Centro Federal de Educação Tecnológica de
Minas Gerais (CEFET-MG). Nosso Programa, que nasceu em
2008 com o curso de Mestrado e ampliou-se com o doutorado
em 2015, possui Área de Concentração em Processos
Discursivos e Tecnologias e está vinculado à grande área
de Letras, Linguística e Artes. Buscando abrir uma nova
perspectiva nesse campo, o curso enfatiza a formação de
profissionais com perfil mais afinado com a atual conjuntura
dos estudos de linguagem, considerando os processos
discursivos que envolvem as relações culturais e sociais.
O Programa visa a aprofundar os conhecimentos sobre a
relação entre tecnologia, linguagem e discurso, associando
as diversas práticas e produtos do homem às realizações de
produção discursiva. 10 anos do Posling – CEFET-MG

Sob uma perspectiva intersemiótica e interdiscursiva,


os estudos de linguagens possibilitam uma abordagem
comparada de textos verbais, visuais, sonoros, multi e
intermidiáticos oriundos dos vários campos da cultura.

1 Professores do Posling: Ana Elisa Ribeiro, Ana Maria Nápoles Vilella, Andréa Soares Santos,
Carla Barbosa Moreira, Cláudio Humberto Lessa, Cláudia Cristina Maia, Giani David Silva,
James William Goodwin Júnior, João Batista Santiago Sobrinho, Lilian Aparecida Arão, Luiz
Antônio Ribeiro, Luiz Carlos Gonçalves Lopes, Luiz Henrique Silva de Oliveira, Maria Raquel
de Andrade Bambirra, Marta Passos Pinheiro, Mírian Sousa Alves, Olga Valeska Soares Coelho,
Patrícia Rodrigues Tanuri Baptista, Paula Renata Melo Moreira, Renato Caixeta da Silva, Rogério
Barbosa da Silva, Roniere Silva Menezes, Vicente Aguimar Parreiras e Wagner José Moreira.

7
Destaca-se a relevância dos papéis da tecnologia na sociedade
contemporânea e a utilização da linguagem atrelada a esses
papéis em vários contextos de atuação humana: literatura,
comunicação, educação, edição e outros.

O Posling tem se constituído como um espaço de discussão


realmente interdisciplinar, sem perder o foco nos estudos das
linguagens. Conceitos e técnicas emprestados, traduzidos ou
adaptados de várias áreas, a constituição de grupos de formação
não-homogênea e a maneira integradora como vimos dialogando
com esses elementos nos ajudam a constituir um espaço de
pesquisa e discussão em Linguagens, conferindo-lhe um caráter
interdisciplinar e aberto. Nossa área de concentração é composta
por quatro linhas de pesquisa:
Linha I – Literatura, Cultura e Tecnologia:
Estudo do literário e do artístico moderno e contemporâneo
e da crítica correlata. Análise das relações histórico-culturais
inerentes ao campo artístico e literário. Reflexão sobre o
processo de construção de saber filosófico e tecnológico na
dimensão da cultura. Estudo das relações entre literatura,
arte e tecnologia.
Linha II – Discurso, Mídia e Tecnologia:
Análise dos mecanismos de geração de sentido nas interfaces
das diferentes linguagens e suas respectivas constituições em
diversos gêneros e suportes. Reflexão sobre o papel da mídia
e estudo dos dispositivos e dos textos midiáticos. Análise
da interferência de tecnologias na produção e recepção
discursiva.
Linha III – Linguagem, Ensino,
Aprendizagem e Tecnologia:
Estudos das modalidades de ensino e de aprendizagem de
língua e de literatura com fundamentação nas diferentes

8
teorias da linguagem. Reflexão sobre o papel de materiais
didáticos e de tecnologias da informação e comunicação no
ensinar e no aprender línguas e literaturas.

Linha IV - Edição, Linguagem e Tecnologia:


Processos de criação e de edição em imagem, som e palavra.
Estudo das relações entre linguagens, processos de criação,
edição e convergência de mídias. Aspectos históricos,
sociais, educacionais e tecnológicos da invenção e da edição.
Editoração, design, programação visual. Produção artístico-
literária. Produção didática. Redes e cadeias produtivas:
autoria, circulação e recepção. Políticas de formação de
profissionais em edição.

No evento comemorativo realizado em junho de 2018, no


campus II do CEFET-MG, cada uma de nossas linhas de
pesquisa foi contemplada por um palestrante convidado.
Dessa forma, estiveram presentes os professores e as
professoras: João Cezar de Castro Rocha – Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ), representando a linha I;
Hugo Mari – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-Minas), representando a linha II; Jackeline Farbiarz –
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), 10 anos do Posling – CEFET-MG
representando a linha III e Sônia Queiroz – Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), representando a linha IV.
Como o diálogo entre as linhas é intenso, o mesmo ocorreu
com os temas desenvolvidos pelos palestrantes, que tiveram a
liberdade de selecionar, após o evento, um texto para compor
este livro comemorativo. O capítulo referente à linha IV foi
escrito por dois professores da casa, Rogério Barbosa da Silva
e Wagner José Moreira, e sintetiza uma importante reflexão
sobre o conceito de edição que vem sendo realizada em nosso
Programa de Pós-Graduação e curso de Letras.

9
Destacamos ainda os dois grupos que realizaram participação
cultural em nosso evento: o Movência, da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
e o grupo da Escola de Design da Universidade do Estado
de Minas Gerais (UEMG). O grupo Movência apresentou
o espetáculo Histórias de bichos e encantados, fruto de suas
pesquisas sobre as narrativas orais. Ele é formado pelos
pesquisadores e artistas: Amanda Jardim, Cristina Borges,
Guilherme Trielli Ribeiro, Josiley Francisco de Souza, Laís
Penna, Lorena Anastácio, Tropowisk Coelho Carvalho,
Vinícius D’Moreira e Sônia Queiroz. O grupo da Escola
de Design apresentou o espetáculo Tipoema: movimento
três (Performance mecânico/analógico/digital com uso de
prensa tipográfica, música e imagens), fruto das pesquisas
do Núcleo de Tipografia (TipoLAB). O grupo é coordenado
pelos professores Cláudio Santos Rodrigues e Sérgio Antônio
Silva e a apresentação contou com a participação de Fabiano
Fonseca e Leonardo Dutra.

Por fim, e voltando ao começo, nosso evento foi aberto com a


conferência Bliss/Intensidade: proposta para um existencialismo
no século XXI?, do professor alemão radicado nos Estados
Unidos (EUA) Hans Ulrich Gumbrecht, do Departamento
de Literatura Comparada da Stanford University. Conhecido
também como Sepp, nosso palestrante acabava de completar
70 anos e anunciava sua aposentadoria. Sua conferência
foi oriunda do último curso que ministrou em Stanford,
Literature and Bliss.

Reconhecido como um dos intelectuais mais importantes de


nossa contemporaneidade, conhecedor e falante de muitas
línguas, entre elas o Português, Sepp vem ministrando cursos
e dando palestras em várias instituições e universidades

10
brasileiras. A maioria de seus livros está publicada no Brasil,
cujas pesquisas no âmbito dos estudos literários e das
humanidades vêm se beneficiando d as r eflexões de sse gr ande
professor. Entre suas obras, destacamos: Corpo e forma (1998),
Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir
(2010), Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre um potencial
oculto da literatura (2014), Depois de 1945 – Latência como origem
do presente (2014), Nosso amplo presente: o tempo e a cultura
contemporânea (2015) e Serenidade, presença e poesia (2016).

Para apresentar nosso conferencista, convidamos um


pesquisador com quem ele estabeleceu um profícuo diálogo e
por quem tem muita admiração: João Cezar de Castro Rocha,
professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
e ex-orientando de doutorado de Sepp na Universidade de
Stanford.

João Cezar de Castro Rocha fez uma apresentação sintética do


percurso intelectual de Sepp, desde os tempos de doutorando
até hoje, tendo consciência de se tratar de tarefa difícil e
arriscada. Propondo uma tipologia cronológica, Castro Rocha
tem por objetivo destacar alguns pontos que nos ajudarão
a compreender por que estamos diante de um dos
maiores pensadores do século XX, não apenas da área
10 anos do Posling – CEFET-MG
dos estudos literários. Sua trajetória é “uma sequência
impressionante para quem conhece o sistema acadêmico
alemão”, nas palavras de Castro Rocha.

Essa tipologia cronológica foi transcrita e publicada neste


livro, que apresenta ainda: o texto inédito em português
cedido por Hans Ulrich Gumbrecht2 e traduzido por
Guilherme Trielli Ribeiro (UFMG) e Marília Scaff R. Ribeiro
(Emory University, Atlanta, EUA); os textos dos pesquisadores

2 O texto foi publicado na Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.22, n.39, 2020.

11
convidados, incluindo os palestrantes e os pesquisadores
responsáveis pelas duas apresentações culturais; e duas
entrevistas, a realizada com o Professor João Cezar de Castro
Rocha, por Joelma Rezende Xavier (CEFET-MG) e Andréa
Soares Santos (CEFET-MG), e a realizada com Hans Ulrich
Gumbrecht, pelo grupo de pesquisa do Posling Comtec,
liderado por Olga Valeska Coelho, com a participação de
Guilherme Trielli Ribeiro (UFMG) e Marta Passos Pinheiro
(CEFET-MG). Essa entrevista integra as homenagens a
esse importante pesquisador feitas em 2018, ano de sua
aposentadoria.

Em fevereiro, foi realizado, em Stanford, o evento acadêmico:


After 1967: Methods and Moods in Literary Studies in Honor
of Hans Ulrich Gumbrecht. Ainda em 2018, integrando essas
homenagens, a Revista do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP),
Artefilosofia, organizou um dossiê sobre ele. Foi uma honra
para o Posling participar dessas homenagens e trazer para
nossa instituição um dos intelectuais mais importantes de
nossa contemporaneidade: Hans Ulrich Gumbrecht, o querido
Sepp. Nosso homenageado nasceu em 15 de junho de 1948,
tendo feito 70 anos, portanto, três dias antes da palestra
que ministrou no Posling. A ele demos nossos parabéns e
manifestamos nossa honra em recebê-lo no CEFET-MG.

Com este livro, materializamos a comemoração de 10 anos de


nosso Programa de Pós-Graduação, reforçamos nossas parcerias
acadêmicas e redefinimos, mais fortes, nosso caminho, com
o desejo de contribuir para o crescimento das atividades de
pesquisa e extensão da universidade pública brasileira.

12
Homenagem a Sepp Gumbrecht:
uma tipologia cronológica3
João Cezar de Castro Rocha

Em 1971, com 23 anos, Hans Ulrich Gumbrecht apresentou


sua tese de doutorado na Universidade de Konstanz, orientada
por Hans Robert Jauss. Três anos depois, apresentou sua
Habilitationsschrift. No sistema universitário alemão, depois
do doutorado, era obrigatória a defesa de uma nova tese, muito
mais ampla e mais sofisticada, para se tornar efetivamente
um professor “ordinário”, como se diz em alemão, isto é, um
professor com plenos direitos de orientar dissertações e teses,
assim como de assumir uma cátedra. Isso ocorre geralmente,
no sistema alemão, se se tratar de um professor “precoce”, aos
35 anos, usualmente aos 40. Na Alemanha, para que se tenha
uma ideia, a Habilitationsschrift de Walter Benjamin, Origem
do drama barroco alemão, foi recusada, e por isso ele não pôde
fazer carreira universitária.

Em 1975, Gumbrecht tornou-se titular na Universidade de


Bochum – e isso aos 26 anos. Não seria fácil encontrar exemplos
similares na universidade alemã. Ele permaneceu em Bochum
10 anos do Posling – CEFET-MG
até 1982. No ano seguinte, foi convidado pela Universidade de
Siegen para fundar o primeiro programa exclusivamente de pós-
graduação na Alemanha na área das Humanidades, com ênfase
em história literária e teoria da literatura. Posteriormente,
de 1989 até “ontem”, com sua recente aposentadoria, Sepp
ocupou a Cátedra Albert Guérard na Universidade Stanford, no
departamento de Literatura Comparada, mas também atuando
nas áreas de Português, Francês e Espanhol.

3 Transcrição da palestra; manteve-se o tom oral da fala.

13
Eis, portanto, uma trajetória riquíssima. Destaco para cada
um desses momentos dois pontos para dar uma ideia de um
caminho intelectual que completa cinco décadas e que possui
um complexo movimento contínuo e duas ou três ideias-força
que ajudam a compreender o atual trabalho do Gumbrecht
sobre o conceito de bliss.

Em Konstanz, em 1967, ocorreu um dos acontecimentos


decisivos da teoria da literatura no século XX. Refiro-me à
palestra inaugural de Hans Robert Jauss, “A história da literatura
como provocação à teoria da literatura”. No primeiro momento,
tratava-se de criar uma alternativa a uma polêmica, a uma cisão
que havia se tornado efetivamente o que Jean-François Lyotard
chamou de diferendo, isto é, uma situação discursiva na qual as
oposições são tão acentuadas que nenhum diálogo é mais possível.

A ideia inicial da Estética da Recepção era criar uma terceira


via, driblando a oposição entre estrutura e história, entre
estruturalismo e formas de sociologia da literatura, pelo
investimento que ocorre, pela primeira vez na história
literária, sistematicamente na figura do leitor, não do leitor
empírico ou idealizado, mas de atos concretos de recepção.

Para isso, Jauss lançou mão do ensinamento de seu mestre,


Hans-Georg Gadamer. Ou seja, aproveitou a ideia de que a
tradição se compõe da fusão de horizontes de expectativa,
do encontro da convergência e da divergência de pontos de
vistas diversos sobre objetos determinados. Desse modo, o
ato de leitura seria sobretudo um ato de fusão de horizontes,
ainda que o leitor ou a leitora não estivesse consciente de que
o realiza no momento da leitura.

Num primeiro instante, foi certamente uma lufada de ar


fresco nos estudos literários, que permitiu realmente deslocar

14
a questão de discussões teóricas que se haviam tornado
involuntariamente bizantinas, permitindo recuperar algo
que não havia sido ainda considerado seriamente: os níveis
diversos de recepção do “mesmo texto”. Por vezes, os níveis
são tão diversos, que o que se discute é exatamente o que
temos diante dos olhos: é um texto ou é apenas, digamos,
uma partitura, um ponto de partida para a performance de
um ato de leitura?

Se num primeiro momento, a Estética da Recepção da


Escola de Konstanz representou esse movimento, muito
rapidamente, contudo, Jauss tentou transformar o seu
método hermenêutico, muito fecundo como método de
compreensão de como se realizam atos concretos de leitura
em determinados contextos, num quadro teórico com
pretensões hegemônicas, ocupando o vácuo na disputa entre
estruturalismo e sociologia da literatura. Surgiram dois
problemas: um teórico e outro de política acadêmica.

A primeira pessoa a dizer com todas as palavras que o projeto


era contraditório foi um aluno de Jauss: Sepp Gumbrecht.
Num texto de 1975, “As consequências da Estética da
Recepção”, ele destacava o paradoxo. Ora, se se pretende 10 anos do Posling – CEFET-MG
não mais reconstruir o horizonte histórico das fusões
de expectativas, porém oferecer um quadro teórico que
esperançosamente tornar-se-á hegemônico nos estudos
literários, então, há uma contradição, pois não é possível
conciliar tão facilmente o nível descritivo da análise específica
de atos concretos de recepção com o nível normativo que
necessariamente é o nível de qualquer formulação teórica.
Entre a abstração do conceito e a reconstrução arqueológica
da experiência histórica, se não há necessariamente um
abismo, certamente não há uma ponte direta.

15
Não é casual que nesse mesmo ano de 1975 Gumbrecht tenha
saído de Konstanz: seu texto não foi muito bem recebido
por seu orientador. Na identificação desse impasse, surge
uma tensão que acompanha toda a obra do Sepp e que será
retomada em Stanford, em 1989. É a tensão entre impulso
descritivo e vocação normativa. É a tensão entre descrição
minuciosa de um ato concreto de enunciação ou de recepção
e tentativa de transformar um conjunto de atos numa teoria
mais geral. É, portanto, a tensão entre norma e descrição,
estrutura e história.

No segundo passo, vamos à primeira experiência de Sepp


Gumbrecht como professor catedrático, em Bochum, de 1975
a 1982. Originalmente, Sepp é medievalista de formação. Em
Bochum, seu projeto intelectual pretendia descobrir traços
meta-históricos na experiência histórica concreta medieval. Aliás,
a concretude é um autêntico imã nas preocupações do autor.

A premissa básica de sua pesquisa partia da valorização de


experiências concretas de enunciação e de recepção, das
condições de produção de um texto e de sua leitura em níveis
diversos, respeitando a particularidade dos atos concretos de
recepção. Nesse sentido, como é possível encontrar elementos
meta-históricos dos textos, dos gêneros, das performances?

Compreenda-se a inteligência teórica da pergunta: se fosse


possível obter uma resposta satisfatória, estaria superada a
aparente oposição entre estrutura e história. Pelo contrário, a
história revelaria a estrutura porque a descrição das diferenças
de atos concretos em momentos históricos determinados
mostraria que, para além das diferenças, haveria um resíduo
sempre idêntico a si mesmo. Tal resíduo seria propriamente
o traço meta-histórico da literatura medieval, da experiência
literária medieval.

16
Na experiência literária medieval o que realmente contava não
podia ser o texto impresso, pois ainda não havia a imprensa!
O meio de comunicação que dominou a literatura medieval
era o corpo. O corpo enquanto meio e mensagem. O corpo é
os dois ao mesmo tempo num circuito comunicativo definido
pela co-presença de corpos. O que estamos fazendo aqui agora,
nesta mesa redonda, é muito característico da experiência
medieval, que inclui estruturalmente a improvisação e a
capacidade de adaptação do emissor à recepção.

Essa capacidade de reagir, de improvisar, parte da palavra


ou do “texto” não com a fixidez do impresso, mas como uma
partitura musical. Na expressão belíssima de Paul Zumthor, é
como se a palavra fosse conduzida da boca ao ouvido. Tal seria
um traço meta-histórico da experiência literária medieval,
caracterizada por uma poética da voz, cujo meio de comunicação
é o corpo. Os gêneros são distintos, há modificações
fundamentais, históricas, mas, se falamos em poética medieval
e não falamos do corpo, estamos simplesmente equivocados.

Em Bochum, nesses sete anos, havia, por parte de Sepp


Gumbrecht, a tentativa de encontrar uma conciliação possível
entre os níveis descritivo e normativo, entre história e teoria, 10 anos do Posling – CEFET-MG
entre atenção esmeradíssima para a reconstrução de atos
concretos e possibilidade de derivar um plano mais geral,
propriamente teórico, uma vez que houve a descrição de um
conjunto de atos concretos.

Eis aí um elemento constante na reflexão de Sepp: a tensão entre


o descritivo e o normativo é constitutivo de seu esforço. Contudo,
Sepp se tornou um pensador sempre mais original quanto mais
ele se afastou do aspecto normativo e reinventou-se a si mesmo
a partir de uma reinvenção da própria ideia de descrição.

17
Venho ao terceiro ponto da tipologia que esboço: Siegeng. Como
disse, entre 1982 e 1989, Sepp Gumbrecht foi convidado para
criar o primeiro programa exclusivamente de pós-graduação,
destinado às Humanidades, mas especialmente aos estudos
literários, num modelo que era muito comum nos EUA.
Por exemplo a Universidade Johns Hopkins principiou apenas
como uma universidade de pós-graduação e posteriormente
adotou a graduação.

Em Siegen, Sepp criou um seminário lendário, que tem


testemunhos realmente comoventes. Como, por exemplo,
Jean-François Lyotard, em um pequeno texto delicioso, que
faz parte das memórias dos seminários organizados pelo
Sepp. Diz Lyotard: “Todos sabíamos a hora que começava,
ninguém nunca descobriu que horas terminava.” Em tese,
os seminários eram infinitos, uma espécie de variação de
Maurice Blanchot, “L’Entretien infini”.

Isso é muito incomum na Alemanha, onde mesmo o atraso


é sempre pontual. Se vocês forem a uma universidade alemã
e virem um cartaz de uma palestra, vocês têm que saber se
está escrito ST (sine tempore, começa rigorosamente na hora
marcada) ou CT (cum tempore, começa impreterivelmente
15 minutos depois da hora anunciada). Eis numa frase a
mentalidade alemã: aquela cujo atraso é pontualmente
rigoroso. A Alemanha é o país da pontualidade do atraso, são
sempre 15 minutos...

A experiência em Siegen é importante para a tipologia


cronológica que proponho. É particularmente importante
para o programa de vocês, aqui no CEFET. Siegen deu origem
à primeira experiência europeia transdisciplinar rigorosamente
compreendida. Um ano antes dessa experiência, Sepp iniciou

18
uma série de colóquios, inicialmente com medievalistas e depois
com teóricos da literatura, na cidade de Dubrovnik. Foram cinco
os famosos colóquios de Dubrovnik, entre 1981 e 1989.

Esses colóquios foram fundamentais para redesenhar o mapa


dos estudos literários na segunda metade do século XX.
O mais importante dos colóquios de Dubrovnik é que eles
eram rigorosamente transdisciplinares. Traziam temas que
eram abordados de formas as mais diversas por especialistas
os mais diversos, sem nenhuma hierarquia que não fosse a
própria intensidade do pensamento. Intensidade, guardem a
palavra, era a chave e eu terminarei retornando a ela.

Nesses colóquios, pela primeira vez, um sociólogo alemão


chamado Niklas Luhmann teve sua teoria dos sistemas, que
já está traduzida para o português, amplamente discutida
e adotada para além do campo restrito da sociologia.
De igual forma, dois biólogos contemporâneos, infelizmente
ambos falecidos, Humberto Maturana e Francisco Varela, se
tornaram fundamentais para a criação de um novo modelo de
estudos, de um novo paradigma que foi fundamental nesse
momento e que possibilitou, eu proponho para a reflexão
do Sepp Gumbrecht, o momento final em que o normativo é 10 anos do Posling – CEFET-MG
deixado de lado e que se abraça o descritivo para reinventar a
própria ideia de descrição. É o paradigma das “materialidades
da comunicação”, um paradigma teórico que valoriza
sobretudo a emergência e o caráter sistêmico das relações
homem-máquina. E do que se trata? Para a teoria biológica do
Humberto Maturana e do Francisco Varela, há um conceito-
chave e que, no fundo, cada leitor realiza inconscientemente
na sua leitura literária. Trata-se do conceito de “emergência”.
Para Humberto Maturana e Francisco Varela é conceito
fundamental para entender o organismo, a vida, porque

19
emergência supõe a acoplagem permanente entre dois
organismos. Pensemos então na interação entre leitor e
texto, entre dois textos, entre dois tipos de discursos, entre
duas formas de disciplinas científicas. A emergência implica
sempre que dois organismos se acoplam e que o resultado
da acoplagem é um terceiro termo, que naturalmente não
existiria sem os dois organismos que se acoplaram, mas que,
no entanto, a acoplagem não se reduz aos dois organismos já
existentes. Pelo contrário, no processo de emergência surge
algo que não estava previsto na simples composição daqueles
dois organismos.

Não é isso o que ocorre com cada leitor, com cada leitora,
no seu enfrentamento com os textos? Essa intuição foi
fundamental para Sepp Gumbrecht, junto com a teoria
sistêmica do Niklas Luhmann. Ele tem, inclusive, um
ensaio chamado “Patologias do sistema da literatura”, que
infelizmente não foi desenvolvido, pois há nele a instigante
proposta de uma nova história da literatura, a partir de duas
intuições notáveis do Luhmann. A primeira delas é que a
função básica de todo sistema, ao contrário do que pensamos,
não é o acréscimo da complexidade, pelo contrário, é a sua
redução. A característica básica dos sistemas é reduzir a
complexidade no relacionamento com o ambiente para
permitir que, no seu interior, a complexidade seja máxima.
Associando o insight ao paradigma das materialidades da
comunicação e à ideia da emergência, Sepp Gumbrecht
principiou a se afastar da associação naturalizada dos estudos
literários ou das ciências humanas com a hermenêutica, vale
dizer, com a obsessão de procurar um sentido profundo, um
sentido oculto à expressão da superfície. Somente então
Sepp começou a pensar não mais na decifração do sentido
como sendo a tarefa básica das ciências humanas, mas

20
na compreensão das condições materiais de produção desse
mesmo sentido. Condições materiais implicam obviamente o
meio através do qual a expressão se realiza. Se é o corpo, é uma
materialidade; se é o impresso, é outra materialidade; se é o
telefone, o smartphone, é outra materialidade; se é um laptop,
não é a mesma materialidade do desktop. A materialidade da
comunicação procura compreender as condições de emergência
dos sentidos a partir de uma complexa relação da materialidade
do suporte e das habilidades de quem maneja esse suporte.

Essa nova constelação de temas e de preocupações permitiu


a Sepp Gumbrecht afastar-se definitivamente da pretensão
normativa, a fim de reinventar o nível descritivo com o qual
ele iniciara sua carreira. Essa passagem ocorre quando Sepp
chegou a Stanford. É a passagem onde ele propôs, em primeiro
lugar, já constituindo um campo próprio de reflexão, o campo
não hermenêutico. O campo não hermenêutico seria o campo
no qual não se reduz o estudo, a leitura, a fruição de um objeto,
seja estético, literário, esportivo, musical, à pura decifração
do sentido, mas a uma outra forma de relacionamento com
o objeto e, por extensão, com o passado. E a pergunta básica
desse novo campo é a seguinte: em lugar de compreender
o passado, em lugar de reduzir uma obra ao seu sentido, é 10 anos do Posling – CEFET-MG
possível tanto vivenciar o passado quanto experimentar
aquela forma específica de produção de sentido?

Tal pergunta conduz ao atual projeto de Sepp, pelo menos


desde o final dos anos 1990. Penso particularmente na
publicação, em 2004, de um livro muito importante, já
traduzido para o português, Produção de presença. Já não se
trata mais da redução da obra, da performance, a um sentido,
que, uma vez conhecido ou atribuído, faz com que no fundo nos
esqueçamos do desafio implícito naquela obra. A ideia básica

21
é que a cultura ocidental oscilou entre culturas de produção de
sentido e culturas de produção de presença. E o trabalho atual
do Sepp é o desenvolvimento pleno dessa ideia. A ideia de
que nas humanidades hoje em dia nós não precisamos mais
decodificar sentidos, decifrar significados ocultos. No google,
no facebook nós já temos milhares de teorias conspiratórias
que têm sentido para tudo! Podemos entender, pelo menos
parcialmente, a decifração de um sentido unívoco a uma tarefa
que já pertence ao passado, ao passado da hermenêutica, ao
passado no qual acreditávamos que havia um texto a ser fixado,
um sentido a ser apreendido, uma verdade a ser revelada.

Na pluralidade contemporânea, mais do que a produção de


sentido, o que mais interessa é a produção de presença. Tal
proposta permitiu o resgate do corpo, aquele corpo com o
qual Sepp iniciara como medievalista, mas agora é um corpo
outro, é o corpo do atleta, mas também é o corpo do professor
universitário, também é o corpo de vocês agora. É o corpo
em geral, como o meio indissociável da produção de sentido
propriamente humana.

Se for assim, compreendemos por que nos últimos anos


Sepp Gumbrecht tem se dedicado a uma tarefa, em princípio,
quase impossível de realizar: uma arqueologia da intensidade.
A tentativa de pensar a latência, não no sentido freudiano,
de um sentido oculto, latente, em oposição a um sentido
manifesto. A tarefa da psicanálise é fazer o paciente, cuja
palavra é reveladora, pacientemente falar, escutar-se, para
que ele, na sua fala, torne o que era latente manifesto e assim
alcance a cura pela palavra que se escuta com todo carinho
hermenêutico. No entanto, não há cura possível – eis um caso
de felix culpa. A questão básica agora, na latência gumbrechtiana,
não é mais explorar um sentido que, ao emergir, faz com que

22
a latência tenha sido apenas uma expressão prévia do sentido.
Pelo contrário, a latência como um presente ampliado é
sempre uma explosão imprevisível: a própria ciência do acaso.

Oswald de Andrade, na Crise da filosofia messiânica, propôs


a errática, a ciência do vestígio errático. Dizia Oswald: para
tentar descobrir aquilo para o qual não havia fontes nem
vestígios, retornemos à intuição do matriarcado. Ora, o
maior antropófago que conheço aqui está conosco: Sepp
Gumbrecht, que não somente fala diversos idiomas, mas
sobretudo faz questão de não se sentir em casa em lugar
algum – e por isso nunca sacia seu apetite intelectual. E
como ele mesmo gosta de dizer, além de ser um ex-alemão,
ele é um cosmopolita, porém às avessas, como vimos.
Oswald de Andrade pensou na ciência do vestígio errático;
Sepp Gumbrecht está prestes a desenvolvê-la. Eu gostaria
de propor que pensássemos nos últimos livros do Sepp
Gumbrecht como o afastamento definitivo de qualquer
pulsão normativa, numa inscrição verticalizada do impulso
descritivo, numa reinvenção desse impulso a partir do que
eu denominaria de arqueologia de intensidades.

Pronto: agora, neste instante, vocês descobrirão o que 10 anos do Posling – CEFET-MG
é a experiência de intensidade: passo a palavra a Sepp
Gumbrecht...

23
EM CASA LONGE DE CASA?
UM OLHAR SOBRE AS
HUMANIDADES NO BRASIL1
Hans Ulrich Gumbrecht2

Chegar à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,


em 1977, com vinte e nove anos de idade, para a minha
primeira experiência como professor visitante, foi um retorno
emocionante. Onze anos antes, tinha viajado pelo Brasil
durante várias semanas, quando ainda cursava o colégio, e
como fiquei completamente fascinado pelo país decidi estudar
Filologia Românica na faculdade. No entanto, também tive
uma ponta de decepção em meio ao meu sentimento de
entusiasmo e gratidão. Quando fui pela primeira vez ao belo
campus no bairro carioca da Gávea, havia uma faixa enorme
e estranha, me dando as boas-vindas. Estranha porque, em
letras maiores que as do meu nome, apresentava o visitante
que chegava como o “ex-assistente” do seu então orientador
de doutorado, reconhecido internacionalmente. Para ser
sincero, nunca superei totalmente a suspeita, nessas últimas
quatro décadas, de que essa faixa indicasse de modo sutil uma

1 O texto foi publicado, em inglês, na Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.22,


n.39, 2020. Esta primeira versão em português foi traduzida por Guilherme Trielli Ribeiro
(UFMG) e Marília Scaff R. Ribeiro (Emory University, Atlanta, EUA).
Guilherme Trielli é poeta, músico e professor de literatura e português na Faculdade de
Educação da UFMG. Dedica-se à pesquisa e ao ensino nas áreas de escrita criativa, didática
da literatura e estudos interartes, atuando também na Educação Indígena e do Campo. É
membro do Grupo Movência, de performance e estudos de tradições orais africanas, afro-
latino-americanas e ameríndias.
Marília Scaff é professora de literatura e português. Tem experiência na área de Letras,
com ênfase em Teorias da Narrativa e Narrativas Contemporâneas, Literatura Brasileira,
Tradução, Culturas Lusófonas e Ensino de Português e Inglês. Publicou Geografias
íntimas: espaço e experiência na ficção brasileira contemporânea (2017). É professora do
Departamento de Espanhol e Português da Emory University, nos EUA.
2 Hans Ulrich Gumbrecht é Professor Emérito de Literatura da Universidade de Stanford.
Mais informações em: https://dlcl.stanford.edu/people/hans-ulrich-gumbrecht.

24
história prévia, nunca revelada, e simples de imaginar: os
colegas brasileiros, cismei, provavelmente haviam convidado
primeiro meu orientador, que rejeitou a possibilidade de uma
visita ao Brasil argumentando que, como socialdemocrata
de esquerda, não estava disposto a viajar para um país sob
uma ditadura militar – hipótese que depois ganhou outra
explicação e sentido com a descoberta de que ele tinha sido
um criminoso comprovado dos tempos de guerra, ligado aos
nazistas alemães. Mas o que me marcou naquele momento foi
a impressão de eu ter sido a segunda opção.

Sem dúvida, essa experiência me motivou a ter que provar,


em meu seminário sobre Fenomenologia alemã, de Edmund
Husserl até meados do século XX, que era digno do convite.
Por um mês inteiro, cinco dias por semana, eu me encontrei
com um grupo de aproximadamente 25 colegas, estudantes
de graduação e pós-graduação (a maioria dos quais pagava
suas mensalidades da universidade trabalhando meio
período) em longas sessões de fim de tarde de grande
intensidade intelectual, como era característico em uma
situação política tensa, em que apenas universidades privadas
tinham autorização para receber acadêmicos estrangeiros
para dar palestras e aulas. Não levou muito tempo para que 10 anos do Posling – CEFET-MG
nossas discussões filosóficas começassem a se expandir
e ganhar outros formatos, como os jantares coletivos no
“A Diagonal”, um restaurante próximo ao campus, e os nossos
finais de semana na praia do Leblon. E isso aconteceu em
grande parte pelo fato de quase não haver eventos acadêmicos
no Rio durante aqueles anos.

Nosso intercâmbio acabou sendo particularmente produtivo


e desafiador para mim por causa de uma constelação histórica
nas Humanidades Brasileiras cujos paradigmas pareciam

25
muito diferentes dos que me eram familiares no ambiente
europeu. Por causa do legado das pesquisas de campo de
Claude Lévi-Strauss no norte do país e de sua docência na
Universidade de São Paulo desde meados dos anos 1930, foi a
Antropologia e não a Filosofia – a Antropologia em uma versão
situada entre a concepção anglo-americana de descrição de
culturas diferentes da nossa própria e a concepção alemã de
tentar identificar as estruturas gerais da cultura humana –
que funcionou como referencial teórico básico para todas as
nossas conversas. Consequentemente, o Estruturalismo de
Lévi-Strauss foi firmemente tomado como método principal
e estado de espírito, e a proposta de meu seminário, de nos
concentrarmos na tradição fenomenológica alemã, consistiu
em um dos primeiros movimentos de uma abertura para
outros paradigmas epistemológicos.

Se a iniciativa de se apropriar de um legado alternativo


de pensamento parecia bem-vinda ao contexto carioca,
desencadeou-se uma rivalidade entre nós e os Estudos
Literários da Universidade de São Paulo, onde prevaleciam
e se desenvolviam ramificações do pensamento marxista
ocidental, sobretudo na obra de Antonio Candido, levando
a uma nova reflexão histórica sobre as condições específicas
em que uma tradição literária nacional se formou no Brasil
a partir do século XIX. As interseções e tensões entre tantas
posições diferentes conferiram aos debates em nosso curso
não apenas uma energia contagiante, mas também a convicção
otimista de que novas formas de pensar e escrever com um
impacto potencialmente internacional surgiriam no Brasil
nos próximos anos. À medida que fui conhecendo o trabalho
realizado por meus colegas e alunos, notei como alguns deles
estavam de fato prestes a definir perfis intelectuais próprios,
transcendendo os estudos da Europa e da América do Norte

26
em que até então se baseavam. Luiz Costa Lima, meu anfitrião
oficial, inaugurou uma reflexão que o acompanharia ao longo
da vida sobre o estatuto ontológico da Literatura e da Arte
a partir do potencial semântico complexo do conceito de
“mimese”. Silviano Santiago que, nos anos seguintes, seria
central para a síntese de uma versão especificamente brasileira
da crítica desconstrutivista, estava começando a encontrar
seu próprio lugar discursivo entre os romances da alta tradição
modernista, uma forma de crítica particularmente próxima
às tradições literárias da escrita. Flora Süssekind, que então
já realizava pesquisas de pós-graduação, ficou fascinada pelo
desafio de explorar as bases históricas e o potencial estético
de gêneros especificamente brasileiros de textos populares
e folclóricos. E Roberto Ventura que, após um doutorado na
Alemanha, e antes de sua morte prematura, faria a transição
para a cena intelectual paulistana, e procuraria compreender
e ativar no presente um legado nacional predominantemente
acadêmico de estudos literários e culturais em sua terra natal.

À medida que esses colegas e um grande número de acadêmicos


mais jovens de meu seminário começaram a ter carreiras
universitárias bem-sucedidas, passei a ter o privilégio de
retornar ao Brasil para oportunidades semelhantes. Desde 10 anos do Posling – CEFET-MG
1982, não passei um único ano sem voltar ao Brasil para dar
palestras e ensinar, e, portanto, orgulho-me de haver dedicado
uma parte considerável do meu trabalho a várias gerações do
cenário das Humanidades Brasileiras, o suficiente para afirmar
que me tornei parte dele, mesmo que à distância. Ao tentar
resumir inumeráveis momentos de experiências positivas
que tive, minha impressão mais nítida é a de uma energia
intelectual singular que, hoje, não está mais isolada nos dois
centros metropolitanos de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas
se instalou em todo o país. Mesmo em outros estados e em

27
universidades sem nenhuma tradição intelectual notável,
sempre encontro vários colegas e alunos com um domínio
sofisticado dos debates internacionais em andamento e, acima
de tudo, com uma vivacidade e entusiasmo que continuam a
me lembrar dos meus primeiros encontros em 1977. Ainda
sinto a mesma sede incondicional de aprender; a estrutura
epistemológica e o horizonte evoluíram amplamente, e
continuam a parecer diferentes dos centros intelectuais do
hemisfério norte (e mereceriam uma mente filosófica capaz
de articular as zonas centrais de sua produtividade de uma
forma coerente); especificamente, os gêneros e discursos da
literatura brasileira que costumavam ficar fora do âmbito
institucional acadêmico foram integrados há muito tempo
ao cânone nacional e ao sistema educacional; e a inspiração
mútua entre a cena literária e a acadêmica hoje se mostra
mais forte do que nunca.

Sem dúvida alguma, minhas visitas regulares (mas nunca


oficialmente institucionalizadas) ao Brasil foram decisivas
para meu próprio trabalho na Alemanha e, desde 1989, na
Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Como posso,
então, explicar que o melhor dessa máquina singularmente
produtiva de pensamento inovador e entusiasmo cultural teve
tão pouco impacto nos debates internacionais? A questão é,
obviamente, menos relevante para estudiosos brasileiros do
que para seus colegas em todo o mundo, especialmente em
países cuja história acadêmica se desenvolveu em condições
estruturalmente semelhantes – como acredito ser o caso da
República Popular da China. Minha intuição principal é a de
que, ao lado de uma arrogância básica bastante visível e uma
atitude de condescendência típica dos centros do Hemisfério
Norte, muitos colegas no Brasil, mas sobretudo os seus
discursos institucionais, tiveram que superar uma perspectiva

28
basicamente receptiva. Mesmo em um momento em que a
produção desses centros do Norte pode ter ficado em grande
parte estagnada, o olhar brasileiro ainda está fixo neles, em
vez de levar mais a sério e desenvolver mais ativamente o
que foi produzido em seu próprio território durante o último
meio século.

Existem, no entanto, algumas exceções profundamente


encorajadoras de estudiosos das Humanidades Brasileiras
cujos trabalhos estão disponíveis em outras línguas além
do português e que, assim, começaram a desencadear um
impacto internacional que pode sem dúvida se transformar
no início de um novo parâmetro para o trabalho realizado em
seu contexto nacional. Vou apenas citar dois exemplos, e claro
que os dois são da cena carioca.

O primeiro deles é Luiz Costa Lima, a cuja iniciativa, há mais


de quatro décadas, devo o contato intelectual com o Brasil,
que acabou se tornando tão especial para mim. Desde o
início da década de 1980, Costa Lima tem se envolvido em
um progressivo desdobramento de diferentes problemas
filosóficos relativos às relações entre os textos e seus
ambientes não textuais, a partir de conceitos como “mimese”, 10 anos do Posling – CEFET-MG
“representação”, “ficção” e “imaginação”. Em seus estágios
iniciais e devido às versões principalmente em inglês e alemão,
sua obra encontrou o reconhecimento de especialistas da
Europa e da América do Norte, especialmente o apreço de
Wolfgang Iser, uma das autoridades máximas durante a grande
era da Teoria Literária no final do século XX – que viu em Costa
Lima um dos intelectuais mais originais que se interessava
por alguns campos centrais de suas pesquisas. O fato de tais
reações terem diminuído recentemente, apesar do trabalho
de Costa Lima continuar em um nível notável, talvez possa
ser explicado por duas razões. Em primeiro lugar, tornou-

29
se cada vez mais difícil acompanhar suas reflexões, fruto de
uma linha de pensamento complexa e contínua, sem levar em
conta cada uma de suas etapas iniciais de desenvolvimento.
Em segundo lugar, e sobretudo, os livros de Costa Lima se
beneficiaram tanto do confronto com as discussões atuais dos
centros acadêmicos tradicionais que não é mais óbvio para os
leitores de fora do Brasil reconhecer qual seria seu potencial
específico e sua provocação produtiva.

Nesse sentido, a obra de João Cezar de Castro Rocha, ex-


aluno de Luiz Costa Lima na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ), marca uma diferença decisiva – e pode
ser em parte por essa diferença que esses dois estudiosos
atualmente não dialogam mais. Castro Rocha obteve seu
segundo doutorado na Universidade de Stanford na Califórnia
e, como podemos afirmar de um ângulo atual, aproveitou seu
tempo no exterior para desenvolver, como insider, uma visão
singular de estrangeiro sobre o legado literário e cultural
brasileiro, uma visão que nunca havia surgido na tradição
nacional anteriormente. Acima de tudo, propiciou uma nova
sensibilidade para as potencialidades inerentes aos textos
e autores brasileiros capazes de abrir novas perspectivas
nos debates sobre os problemas filosóficos clássicos das
Humanidades e, acima de tudo, experimentou novas formas
de ler os clássicos europeus e norte-americanos a partir de
diferentes ângulos pertencentes à antiga “periferia”. Portanto,
não é exagero dizer que a obra de Castro Rocha e seus alunos
tem o potencial de operar uma inversão hermenêutica decisiva
no contexto global.

Se a questão tinha sido, por várias gerações, o lugar que os


textos e artefatos da chamada “periferia” (na América do
Sul, Ásia ou África) poderiam ocupar dentro da perspectiva

30
já estabelecida da chamada tradição ocidental, somos
agora convidados – e estamos começando de fato – a reler
Shakespeare a partir do ponto de vista de Machado de Assis,
ou Joyce do ponto de vista de Guimarães Rosa. E se, até
recentemente, interpretávamos a proximidade dos Estudos
Literários no Brasil com a cena contemporânea da produção
literária como um resquício de uma etapa institucional
e intelectual que precisava ser superada, agora estamos
aprendendo como essa proximidade pode injetar uma nova
energia em nosso próprio trabalho intelectual e acadêmico.

Em outras palavras – e apesar de muitos trabalhos


frequentemente feitos nas universidades brasileiras de
hoje ainda assumirem a antiquada missão de documentar a
qualidade estética e a relevância política de textos e artefatos
da “cultura popular” (sob premissas que reproduzem
o “politicamente correto” dos centros clássicos) –, as
Humanidades no Brasil finalmente começaram a transcender
sua condição “marginal” de lugar de alta voltagem em eterna
reação à produção intelectual dos centros tradicionais; elas
começaram a cumprir uma promessa que parecia forte, mas
vaga, há meio século, quando se limitavam a uma visão e atitude
unilateralmente receptivas. Não só para a América do Sul, 10 anos do Posling – CEFET-MG
Ásia e África, mas também para nós dos centros tradicionais,
as Humanidades no Brasil abrem-se como um cenário para
se observar atentamente e aprender, pois parecem antecipar
uma dinâmica cultural e intelectual que pode se tornar, pela
primeira vez, verdadeiramente global. “Global” no sentido
de abandonar hierarquias de influência e autoridade e
substituí-las por meio de uma abundância plural e centrífuga
de leituras mútuas e abordagens de entendimento; “global”
também por uma nova maneira de explorar o que a "literatura
mundial" e a "cultura mundial" podem acabar se tornando.

31
E tudo isso está acontecendo enquanto os humanistas na
Europa e na América do Norte se perguntam seriamente, e
por uma série de boas razões, se sua versão das Humanidades
pode ter alcançado a última etapa de um fim histórico.

REFERÊNCIAS
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Why João Cezar de Castro
Rocha's Writing Matters – Not Only to Me. Revista Brasileira
de Literatura Comparada, v. 21, N. 36 (2019), p. 107-111.

ROCHA, João Cezar de Castro. Shakespearean Cultures. An


Arbor: Michigan State University Press, 2019.

LIMA, Luiz Costa. The Dark Side of Reason: Fictionality and


Power. Palo Alto: Stanford University Press, 1992.

32
O DIREITO À LEITURA LITERÁRIA:
NOTAS INICIAIS
João Cezar de Castro Rocha1

O direito à literatura e
Assembleia Constituinte2
Em texto merecidamente célebre, “O direito à literatura”,
Antonio Candido sublinhou a centralidade do literário na
constituição da pólis.3 É importante atentar à acepção que o
crítico empresta ao conceito de literatura, pois não se trata da
ideia tradicional e estreita do século XIX de “arte verbal escrita”,
pois, como se sabe, no contexto da filologia positivista, e sua
busca pelo texto-matriz perdido, a expressão literatura oral
seria antes um oxímoro. Pelo contrário, a compreensão do
crítico, muito mais generosa, tem ânimo antropológico:

Chamarei de literatura, da maneira mais ampla


possível, todas as criações de toque poético, ficcional
ou dramático em todos os níveis de uma sociedade,
em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos
folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e
difíceis da produção escrita das grandes civilizações.

1 Professor Titular de Literatura Comparada da UERJ. Autor de 13 livros e organizador de


mais de 20 títulos. Artigo escrito graças à bolsa concedida como Pesquisador Visitante/
Xiaoxiang Scholar da Universidade Normal de Hunan (HNU) e do Humboldt Centre for
Interdisciplinary Research at Hunan Normal University. 
2 Neste ensaio, lancei mão de formulações publicadas em textos anteriores. 
3 Recomendo uma leitura aguda e crítica do ensaio: Maria Amélia Dalvi, “Um clássico sobre
educação literária: “O direito à literatura”, de Antonio Candido (Via Atlântica, São Paulo,
Nº 35, 2019, p. 221-234). Na conclusão, a autora sugere quatro perguntas para uma crítica
contemporânea do clássico ensaio. Destaco a primeira: “Se a literatura – entendida nessa
acepção larga, ampla, includente, tal como defendida no ensaio de Candido (1995) – é uma
manifestação quase natural e espontânea de todas as sociedades humanas, por que seria
necessário assegurá-la como direito, defender seu ensino e difusão, viabilizar o acesso e
apropriação dela aos indivíduos?” (Ibidem, p. 233).

34
(...)
Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas
sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a
literatura concebida no sentido amplo a que me referi
parece corresponder a uma necessidade universal,
que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui
um direito.4

Literatura, portanto, não se reduz à tecnologia do alfabeto. Essa


é uma acepção restrita que permanece fiel à etimologia: em latim,
a palavra litteratura é derivada de littera, letra. Daí, literatura
implicar todo e qualquer texto, uma vez que todo e qualquer
texto é composto pela reunião de letras. Numa perspectiva
antropológica, contudo, literatura remete ao ato de conferir
sentido ao caos do dia a dia por meio da fabulação, ou seja,
através da narrativização das coisas. As palavras, aqui, valem
porque pesam em todos os registros – da anedota à epopeia, do
provérbio ao romance, da oralidade à escrita. Nesse sentido, e
sem exagero algum, o “direito à literatura” pode – no fundo, deve
– ser considerado tão básico quanto o direito à existência. Não é
apenas o exame que justifica uma vida, mas também a habilidade
em traduzir o universo em palavras próprias.

“Words, words, words” – respondeu o entediado Príncipe da 10 anos do Posling – CEFET-MG


Dinamarca à pergunta impertinente de Polônio, “What do you
read, my lord?”. Refiro-me à segunda cena do Ato II. Ao final
da aguda troca de palavras, uma autêntica esgrima intelectual,
Polônio chegará a seu famoso veredicto: “Though this be
madness, yet there is method in’t”.5 Para além da irreverência

4 Antonio Candido. “O direito à literatura”. In: Vários escritos. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas
Cidades/Ouro sobre Azul, 2004, p. 174-75.
5 William Shakespeare. Hamlet, Prince of Denmark. Philip Edwards (ed.). Cambridge:
Cambridge University Press, 2004, p. 139. Na brilhante tradução de Lawrence Flores Pereira:
Polônio – (...) “Senhor o que está lendo”. Hamlet – Palavras, palavras, palavras. (...) Polônio
– (...) Embora isso seja loucura, possui certo método”. William Shakespeare. A tragédia de
Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Tradução de Lawrence Flores Pereira. São Paulo: Penguin/

35
estudada da frase, metódica a seu modo, a reiteração é um
sintoma da visão do mundo expressa no ensaio de Antonio
Candido, e que supõe a centralidade da palavra no mundo do
narrador – recorde-se a caracterização de Walter Benjamin
do círculo de narradores e ouvintes, e podemos adicionar
o circuito de escritores e leitores, que, reunidos por uma
tradição comum, formam o sistema literário, como definido
por Antonio Candido.

Você me dirá se me entusiasmo ou se vejo bem.

O crítico alemão circunscreve com precisão o universo do


narrador tradicional: “A experiência que passa de pessoa
a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores.
E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos
se distinguem das histórias orais contadas por inúmeros
narradores anônimos”.6 Isto é, o narrador se alimenta de
uma experiência comum já existente e seu dedo de prosa
nutre-se desse conhecimento prévio, difuso entre todos
como memória cultural coletiva e plasmado pelo talento do
contador de histórias. Daí, a força do anonimato na “não-
criação” de enredos necessariamente “originais”: as histórias,
por assim dizer, pertencem a todos, se não por vivência direta,
certamente como potência a ser vivida: uma possibilidade
ao alcance da mão e dos olhos e dos braços e das pernas e
dos ouvidos (nunca se esqueça da centralidade da escuta
no universo do narrador!) e de corações e mentes. Narrar e
participar do círculo de narrações é uma performance que
envolve todo o corpo.

Companhia das Letras, 2015, p. 94-95.


6 Walter Benjamin. “O narrador”. In: Magia e técnica. Arte e política. Ensaios sobre literatura e
história da cultura. Obras escolhidas. Volume 1. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1987, p. 198.

36
Na célebre definição do crítico brasileiro, a inter-relação de
três elementos configura o sistema literário: “a existência de
um grupo de um conjunto de produtores literários, mais ou
menos conscientes de seu papel; um conjunto de receptores,
formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra
não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma
linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros”.7
Nesse processo, os momentos decisivos são aqueles nos quais
afirma-se a consciência dos três elementos e, sobretudo, de
sua ligação. A leitura literária é o meio mais adequado para
que a fluência entre os vértices desse triângulo crie uma
atmosfera própria, bem definida na agudeza da prosa crítica
de Machado de Assis: “O que se deve exigir do escritor antes
de tudo é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu
tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos
no tempo e no espaço”.8 Vale dizer, e essa diferença é decisiva,
no processo de formação da literatura a experiência comum
ainda não se havia consolidado, era preciso inventá-la. Valia,
pois, para a literatura o desafio que guiava a atividade crítica:

(...) e a literatura alimentada ainda hoje por algum


talento corajoso e bem encaminhado, – veria nascer
para ela um dia de florescimento e prosperidade.
Que ela apareça, convencida e resoluta, – e a sua obra
10 anos do Posling – CEFET-MG
será a melhor obra de nossos dias.9

(Tudo se passa como se o narrador precisasse criar a


experiência comum no instante mesmo da narração!)

7 Antonio Candido. Formação da literatura brasileira. (Momentos decisivos). Rio de Janeiro:


Ouro sobre Azul, 2007, p. 25.
8 Machado de Assis. “Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade”. In:
Obra completa. Vol. III. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, p. 804.
9 Machado de Assis. “O ideal do crítico”. In: Obra completa. Vol. III. Rio de Janeiro: Editora
Nova Aguilar, 1986, p. 801.

37
Pois bem: a resposta de Hamlet nos dias que correm
provavelmente seria: “images, images, images”. Nem seria
preciso esperar tanto tempo – aliás. Bastaria recordar o
parágrafo de abertura de Alice no país das maravilhas:
a protagonista indaga sem constrangimento aparente:
“‘what is the use of a book, tought Alice, ‘without pictures
or conversations?’”.10 Nesse caso, precisamos repensar o
direito necessário, em boa medida urgente, para enfrentar os
desafios contemporâneos. Trata-se, proponho, do “direito à
leitura literária”.11

Antes, porém, um reconhecimento obrigatório, especialmente


no momento de obscurantismo que nos cabe atualmente
viver. Em novembro de 1986, foi eleito um Congresso
Constituinte, cujos trabalhos resultaram na homologação
em 5 de outubro de 1988 de uma nova Constituição, que
revogava a Constituição de 1969, uma emenda que endurecia
ainda mais a já rígida Carta de 1967. De fato, a assim chamada
“Constituição Cidadã” almejou criar uma democracia sólida
tanto pela interdição de instrumentos autoritários quanto pela
ampliação dos direitos da cidadania. Nesse sentido, Candido
estava alguns passos à frente, já que apostava num direito em
tese abstrato. No entanto, com vistas largas, o crítico pensava
num futuro de cidadãos educados pela experiência literária.

10 Lewis Carroll. Alice’s Adventures in Wonderland. In: Alice in Wonderland Collection – All
Four Books. Los Angeles: Enhanced Media, 2016, p. 8. Na notável tradução de Sebastião
Uchoa Leite: “(...) ‘e de que serve um livro’ – pensou Alice – ‘sem figuras nem diálogos’?”.
Lewis Carroll. Aventuras de Alice. Tradução e organização de Sebastião Uchoa Leite. Rio de
Janeiro: Fontana / Summus, 1977, p. 41.
11 Embora não seja essa a ocasião de desenvolver plenamente o conceito, devo mencionar
dois autores que há muito mais tempo preocupam-se com o tema, oferecendo contribuições
significativas: Graça Paulino (Das leituras ao letramento literário. 1979-1999. Belo Horizonte
/ Pelotas: Faculdade de Educação-UFMG / Universidade Federal de Pelotas) e Rildo Cosson
(Letramento literário. Teoria e prática. São Paulo: Editora Contexto, 2006).

38
A única forma de alcançar esse futuro seria pela prioridade
dada no presente à educação pública. Eis o sentido forte da
exortação que conclui o ensaio:

Portanto, a luta pelos direitos humanos abrange a


luta por um estado de coisas em que todos possam
ter acesso aos diferentes níveis da cultura. (...) Uma
sociedade justa pressupõe o respeito aos direitos
humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas
as modalidades e em todos os níveis é um direito
fundamental.12

Ressalva feita, volto à hipótese que aqui esboço.

Principio por uma breve parada na década de 1970. Ao assumir


a Cátedra de Dramaturgia na Universidade de Cambridge,
Raymond Williams proferiu uma palestra fascinante,
“Drama in a dramatised society”, publicada no ano seguinte.
O crítico, cuja orientação possui muitos pontos em comum
com o trabalho de Antonio Candido, propôs uma questão
que somente se tornou mais e mais atual: como entender o
consumo de ficção numa sociedade que aumentou ao máximo
a oferta de produtos associados ao gênero dramático?

(Não seja tão sensível! Não se choque com os termos consumo, 10 anos do Posling – CEFET-MG
produtos e oferta. Respire fundo e, se puder, continue a leitura
– o texto é breve, de qualquer modo.)

Entenda-se o alcance do problema descortinado:

For drama was originally occasional, in a literal


sense: at the Festival of Dyonisus in Athens or in
medieval England on the day of Corpus Christi.

12 Antonio Candido. “O direito à literatura”. In: Vários escritos. São Paulo / Rio de Janeiro:
Duas Cidades / Ouro sobre Azul, 2004, p. 191.

39
(…) It is in our century, in cinema, in radio, and in
television, that the audience for drama has gone
through a qualitative change.13

Em outras palavras, é no horizonte duma “dramatised society”


que o “drama” parece entrar numa crise de proporções
inéditas, pois, se a sociedade como um todo se torna sempre
mais “dramatised”, precisamente o “drama” perde boa parte
de sua razão de ser, no mínimo sua potência é diluída.
Ora, aproximadamente até a década de 1950 a recepção de
universos ficcionais ou dramáticos demandava um gesto
específico, exigia uma determinada escolha – comprar um
livro, sair de casa para ir ao teatro ou ao cinema, escolher um
programa de rádio. Ou seja, ao gesto correspondia um ritual,
ainda que secularizado ao ponto de sua relativa naturalização.
É verdade que a difusão do rádio – e a correspondente produção
de dramas adaptados e de radionovelas – principiou a tornar o
ritual demasiadamente disponível, prosaico mesmo. Recorde-
se que a British Broadcast Corporation (BBC) foi criada em
1922 precisamente com o propósito de levar “alta cultura”
(high culture) às grandes massas. Eis o sentido do instigante
conceito que somente se tornou mais atual com a irrupção do
universo digital e das redes sociais:

(...) for the first time a majority of the population


has regular and constant access to drama, beyond
occasion or season. But what is really new – so new
I think that it is difficult to see its significance – is
that it is not just a matter of audiences for particular
plays. It is that drama, in quite new ways, is built
into the rhythms of everyday life. (…) This is part of
what I mean by a dramatized society.14

13 Raymond Williams. Drama in a Dramatised Society. An Inaugural Lecture. Cambridge:


Cambridge University Press, 1975, p. 4. 
14 Ibidem, p. 5.

40
Nesse cenário, coube à televisão a mais completa banalização
da experiência. Agora, basta ligar o aparelho e o cotidiano
dos telespectadores é invadido por um tsunami ininterrupto
de telenovelas, séries, episódios especiais, filmes, e, com um
olhar otimista, também peças de teatro e óperas. O que diria
Raymond Williams da onipresença de reality shows e seus
roteiros feitos sob medida e mimetizados em todo o mundo?
Não se pense, porém, uma resposta apocalítica e muito
menos preconceituosa. Pelo contrário: no mesmo ano em que
proferiu sua “Aula Inaugural”, Williams publicou uma análise
fascinante do fenômeno produzido pela televisão; livro que se
beneficiou da coluna que manteve no jornal The Listener, para
o qual escrevia uma resenha mensal de programas produzidos
para a televisão. Pronto! A narrativização e a dramatização
conheceram um alcance de tal modo inédito que Willians não
hesitou ao avaliar seus efeitos: “É muito comum dizer-se que
a televisão transformou nosso mundo”.15

E isso para não mencionar que inclusive as notícias e o


entretenimento ganham enquadramentos propriamente
narrativos. Um exemplo extremo: a obsessão com a estatística
nas transmissões esportivas pouco tem a ver com números!
Trata-se de dispositivo que propicia o milagre da reprodução 10 anos do Posling – CEFET-MG
de narrativas: o recorde será finalmente batido? Se não: corte:
breve história de seu estabelecimento; se sim: corte: breve
reportagem sobre a preparação do atleta – temperada com
uma pitada de superação e um tanto de determinação.

(Brasileiro nunca desiste, não é? Assim promete essa matriz


de previsíveis histórias sentimentais: mote tonto, mas com

15 Raymond Willians. Television. Technology and Cultural Form. Hanover and London:
Wesleyan University Press, 1974, p, 3.

41
uma funcionalidade excepcional na armação de esquemas
narrativos de massa.)

Nesse sentido, como dizia, a voga contemporânea de reality


shows desde sempre esteve anunciada na dinâmica de uma
“dramatised society”, isto é, e vale repisar, de uma sociedade
cuja produção de “drama” se aproxima de uma autêntica
overdose. E veja bem: Raymond Williams nem sequer podia
imaginar a emergência do universo digital e, sobretudo,
a explosão do fenômeno das redes sociais. Emergência e
fenômeno, por sua vez, potencializados pela difusão global
da telefonia celular – indispensável para o dia a dia do
capitalismo financeiro globalizado. Finalmente, chegamos
ao instante da “hiperdramatised society”, na qual a oferta
de “drama” supera em muito a capacidade de recepção,
pois hoje em dia a produção de matéria ficcional tornou-
se a respiração artificial que ameaça sufocar a todos num
aluvião de selfies emolduradas por sugestões narrativas e
numa tempestade perfeita de linhas do tempo que em si já
são construções ficcionais. E ainda não mencionei a questão-
chave do contemporâneo: a inédita simultaneidade entre
ação registrada, sua transmissão imediata e a interpretação
coetânea da ação no instante mesmo de sua ocorrência –
problema ao qual retornarei nas considerações finais.

(Você me segue, tenho certeza: as notícias falsas [fake news],


a pós-verdade e os fatos alternativos se inscrevem nessa
lógica. E se não vejo mal, ou se não sou irresponsavelmente
utópico nos tempos sombrios que vivemos hoje no Brasil, a
disseminação da leitura literária bem pode ser um antídoto
contra esse estado de coisas.)

Em alguma medida, o “direito à literatura”, ou seja, o direito


à capacidade de fabulação e de ideação de mundos próprios,

42
vulgarizou-se a tal ponto com a emergência do universo
digital e a expansão mundial das redes sociais que já passou
da hora de propor uma pausa e repensar conceitos e teorias.
E não vale argumentar que o solipsismo da miríade de
bolhas virtuais – essas mônadas que nunca leram Leibniz
– nada tem a ver com a perspectiva de Antonio Candido,
pois o caráter antropológico de sua abordagem não pode
ser reduzido aos aspectos, digamos, solares da noção de
“direito à literatura”. Vimos o contexto que motivou o ensaio
de Candido, incialmente preparado para um curso aberto
em 1988. Em todo caso, uma brecha pode ser explorada no
primado da produção implícito no ensaio e, a bem dizer, nos
estudos literários como um todo, e na teoria da literatura em
particular, mesmo após o surgimento da Estética da Recepção
na década de 1960. Em outras palavras, tão importante
quanto a habilidade de fabular é a capacidade de dialogar com
as formas alternativas de imaginação.

O direito à leitura literária


Por isso proponho que o desafio presente exige o
desenvolvimento de uma nova ideia: o direito à leitura
literária, a fim de substituir a ênfase na produção para 10 anos do Posling – CEFET-MG
uma consideração nova do ato de leitura e, sobretudo, de
sua recepção. E assim como Candido ampliou ao máximo a
noção de literatura, precisamos, num primeiro momento,
realizar operação semelhante com a leitura para, num
segundo instante, aperfeiçoar o conceito de “leitura literária”.
Contra o ensimesmamento da cultura do selfie, que é
sempre uma cultura (quase exclusivamente) de produção e
automodelagem, a leitura, especialmente a leitura literária,
obriga a um engajamento com algo que nos é necessariamente
exterior. Ou seja, em lugar de uma exteriorização compulsiva,

43
que paradoxalmente sugere um vazio estrutural, por que não
investir tempo e energia num exercício de descentramento e de
abertura ao outro. Eis o que entendo por leitura literária.

Porém, em lugar de oferecer um conceito descarnado, por que


não lermos juntos dois autores-chave na criação de textos que
não apenas favorecem como também exigem que a leitora
reconheça a potência da leitura literária?

A eles – pois.

Machado de Assis – você já sabia! – em Dom Casmurro inventou


a teoria maliciosa dos livros confusos e dos livros omissos.
Os primeiros tudo esclarecem e assim, com sua escassez
deselegante de elipses, terminam por embaralhar a leitora numa
profusão de detalhes. Já os últimos, pelo contrário, convocam a
imaginação propriamente criadora dos leitores.

Eis a passagem decisiva:


Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo
se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio
algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O
que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e
evocar todas as cousas que não achei nele. (...) Assim
preencho as lacunas alheias, assim podes também
preencher as minhas.

Sem dúvida, o “leitor amigo” não recusaria o convite,


inaugurando o traço definidor da prosa machadiana.

Há mais: “cerrar os olhos” para melhor apreciar o jogo de cena


é um conselho que Machado de Assis bebeu na fonte que mais
frequentemente consultou, entre tantas, muitas, inúmeras
outras. Da teoria à prática: hora de uma breve pausa: na

44
próxima coluna, recorrendo à obra de William Shakespeare,
continuarei a formular a noção de “leitura literária”.

E do direito a ela – claro está.

Em Henrique V, William Shakespeare ofereceu uma fascinante


reflexão acerca da centralidade da recepção no ato estético.
Machado de Assis, leitor atento, sintetizou a lição no fecho
emblemático de “A chinela turca”. Nas palavras do narrador:
“o melhor drama está no espectador e não no palco”.16

Escrita em 1599, Henrique V celebra a façanha militar do rei


homônimo, que, em 1415, ao triunfar contra os franceses na
Batalha de Azincourt, embora lutasse em condições muito
adversas, liderando um exército consideravelmente menor do
que as forças do adversário, Henrique V tornou possível supor
o advento do futuro Reino Unido, congregando ingleses,
escoceses, irlandeses e gauleses. Tarefa hercúlea e à época
improvável: basta recordar o jogo de cena com a diversidade
de formas de uso do inglês; aliás, diversidade habilmente
explorada pelo dramaturgo, com efeitos tanto cômicos, a
diferença em si mesma favorece diálogos divertidíssimos,
quanto sérios, a liderança justa e firme do rei propicia a
coordenação dos esforços numa única direção.
10 anos do Posling – CEFET-MG

Portanto, o tema da peça, propriamente um history play


(drama histórico), implicava um desafio. Como colocar em
cena a dimensão épica do conflito, com seus milhares de
soldados? Como dar a ver a disparidade de forças em combate
e o consequente heroísmo das tropas inglesas? O “coro”
encarece a complexidade da tarefa na abertura do prólogo:

16 Machado de Assis. “A chinela turca”. Papéis avulsos. In: Obra completa. Vol. II. Rio de
Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, p. 303.

45
O, for a muse of fire that would ascend
The brightest heaven of invention!
A kingdom for a stage, princes to act,
And monarchs to behold the swelling scene!
Then should the warlike Harry, like himself,
Assume the port of Mars (…).17

Proponho um exercício de imaginação crítica: vale a pena


correr o risco: teria o dramaturgo elisabetano antecipado
em alguns séculos a transmissão, por assim dizer, ao vivo de
acontecimentos históricos? Veríamos, assim, e, num palco
que rivalizaria com a geografia da própria ilha, o rei Henrique
desempenhar uma e outra vez o papel de líder inspirador.
Ou, por que não?, Shakespeare lançou a ideia duma mescla
inesperada do dispositivo imaginado por Adolfo Bioy Casares
em Invención de Morel com o perspectivismo vislumbrado por
Jorge Luis Borges no conto-ensaio “Del rigor en la ciencia”.

Em todo caso, o desafio era ainda maior porque a Batalha de


Azincourt se encontrava solidamente inscrita na memória
coletiva britânica. No famoso discurso do “Dia de São
Crispiniano” (Ato IV, cena III), o Henrique V shakespeariano
plasmou a moderna ideia de nação, e não apenas para a
Inglaterra, mas também, e sobretudo, para futuro o Reino
Unido – ainda inexistente no momento de escrita da peça:

We few, we happy few, we band of brothers;


For he today that sheds his blood with me

17 William Shakespeare. King Henry V. In: The Globe Shakespeare. The Complete Works
Annotated. New York: Greenwich House, 1979, p. 813. Na tradução de Carlos Alberto
Nunes: “Se de musa de fogo eu dispusesse / para escalar o céu mais rutilante / da invenção!
Por teatro, um grande reino, / príncipes como atores, e monarcas / para a cena admirável
contemplarem! / Então viria o belicoso Henrique / tal como é mesmo: qual um novo Marte”.
William Shakespeare. A vida do Rei Henrique V. In: Teatro Completo. Dramas Históricos. Rio
de Janeiro: Agir, 2088. P. 217. Nas próximas ocorrências, somente mencionarei o número
da página citada.

46
Shall be my brother; be he ne’er so vile,
This day shall gentle his condition;(…)18

Como estar à altura do repto? Hábil no emprego de recursos


retóricos, o “coro”, antes de propor uma saída, aumenta o
tamanho da encrenca:

(…) But pardon, gentles all,


The flat unraised spirits that hath dared
On this unworthy scaffold to bring forth
So great an object. Can this cockpit hold
The vasty fields of France? Or may we cram
Within this wooden O the very casques
That did affright the air at Agincourt?19

A dificuldade se torna adequadamente dramática se


recordarmos o principal obstáculo a ser vencido pelo próprio
Henrique, o personagem histórico, não apenas a criação
shakespeariana. Em outras palavras – pois é só delas que aqui
se trata –, a juventude do futuro rei nada prenunciava de bom,
muito menos de espetacular. Boêmio, impulsivo, sempre
distante do estudo, avesso à disciplina, como se não estivesse
destinado a suceder seu pai. Na lembrança do Arcebispo de
Cantuária:
10 anos do Posling – CEFET-MG
Since his addiction was to courses vain,
His companies unlettered, rude, and shallow,
His hours filled up with riots, banquets, sports,
And never noted in him any study,

18 Idem, p. 850. Na tradução: “Nós, poucos; nós, os poucos felizardos; / nós, pugilo de
irmãos! Pois quem o sangue / comigo derramar, ficará sendo / meu irmão. Por mais baixo
que se encontre / confere-lhe nobreza o dia de hoje” (p. 250).
19 Idem, p. 813. Na tradução: “(...) Mas meus amáveis / espectadores, perdoai o espírito /
pouco altanado que a ousadia teve / de evocar tal assunto em tão ridícula / armação. Poderá
esta pequena/rinha de galos abranger os vastos / campos da França? Ou nos será possível /
pôr neste O de madeira os capacetes / que os ares de Azincourt aterroraram?” (p. 217).

47
Any retirement, any sequestration
From open haunts and popularity.20

Luís, o Delfim da França, cometeu seu maior erro ao confiar


imprudentemente no êxito militar porque sua imagem
de Henrique V foi moldada no comportamento do jovem
impetuoso, indiferente à condição de herdeiro do trono. Por
isso, em seu juízo, um reino por ele governado não poderia
opor resistência séria ao exército francês; logo, não haveria
motivos para temer a Inglaterra:

For, my good liege, she is so idly kinged,


Her scepter so fantastically borne
By a vain, giddy, shallow, humorous youth,
That fear attends her not.21

Repare na impecável carpintaria: o Delfim emprega duas das


palavras usadas pelo Arcebispo da Cantuária na caracterização
do jovem Henrique: shallow e vain. Cartesiano avant la lettre, o
Delfim montou um silogismo rigoroso: a Inglaterra é governada
por Henrique V; Henrique V foi um tolo em sua juventude;
logo, a Inglaterra será necessariamente derrotada. Faltou ao
príncipe francês compreender que, heraclitianos involuntários,
os homens mudam, para melhor ou para pior, claro está, mas o
ponto é que ninguém pode ser aprisionado ao passado – ainda
que seja um passado para chamar de seu. No diálogo do Bispo
de Ely com o Arcebispo de Cantuária, destaca-se precisamente a
transformação do jovem impetuoso no rei sereno:

20 Idem, p. 815. Na tradução: “(...) as tendências / dispersivas de então, os companheiros /


superficiais, ignaros e grosseiros. / Passava as horas todas em banquetes / orgias e desportos,
sem que nunca / mostrasse aplicação ou procurasse / recolher-se, ou evitar os logradouros /
públicos e o bafejo da gentalha” (p. 218).
21 Idem, p. 829. Na tradução: “(...) Sim, meu soberano / de tal modo ela se acha governada
/ tão fantasticamente empunha o cetro / um moço vão, leviano e extravagante / que em seu
rasto não segue o frio medo” (p. 230).

48
BISHOP OF CANTERBURY 
The King is full of grace and fair regard.

BISHOP OF ELY 
And a true lover of the holy Church.

BISHOP OF CANTERBURY 
The courses of his youth promised it not.
The breath no sooner left his father’s body
But that his wildness, mortified in him,
Seemed to die too. (…)22

As coisas começam a ficar mais claras; não é mesmo?


Vejamos.
(Feche os olhos – adiante esclareço.)

A companhia teatral shakespeariana estava diante de


um impasse, quase uma impossibilidade, qual seja, como
metamorfosear o acanhado palco do The Globe num cenário
crível da mais importante vitória militar da história inglesa?
Como superar os limites intransponíveis da encenação, a fim
de seduzir a plateia?

De igual modo, Henrique V, pelo menos o personagem


10 anos do Posling – CEFET-MG
shakespeariano, deparou-se com dilema similar. Por mais que
tivesse mudado de atitude e finalmente tivesse entendido
a natureza de sua função, ainda assim ainda não havia
enfrentado um adversário da magnitude do reino francês.
Como reagiria na hora decisiva?

22 Idem, p. 815. Na tradução: “CANTUÁRIA: O rei é bem intencionado e cheio / de boas


qualidades. // ELY: E um sincero / admirador da nossa santa Igreja. // CANTUÁRIA: Não
prometiam isso as estroinices / de sua mocidade. Só parece / que ao exalar seu pai o último
alento, / sua selvajaria também nele / viesse a morrer (...)” (p. 218).

49
Você me acompanha: Shakespeare surpreendeu uma
homologia estrutural inesperada entre Henrique V, e seu
exército, e o próprio dramaturgo, e sua companhia teatral.
Num e noutro caso, incerto era o êxito da tarefa, pois as
adversidades eram consideráveis.

Como superá-las?

A resposta foi dada por Hamlet em seu diálogo em aparência


incoerente, mas cheio de método, com Polônio. Ao ser
perguntado sobre o que lia; livro aberto ostensivamente, o
Príncipe da Dinamarca não hesitou: “Words, words, words”.

Na irreverência de Hamlet, encontra-se parte da resposta.

De um lado, a palavra precisa suprir deficiências objetivas,


de outro, é indispensável que ouvidos atentos potencializem
e mesmo completem o sentido. E isso vale para os soldados
no campo de batalha, mas também para os espectadores no
teatro: assim como os soldados deveriam acreditar no discurso
de Henrique V como a imagem de um possível Reino Unido,
os espectadores da peça precisavam aceitar o pacto especial
proposto pelo dramaturgo.

Retornemos ao prólogo e escutemos o apelo do “coro”:

O pardon, since a crooked figure may


Attest in little place a million,
And let us, ciphers to this great account,
On your imaginary forces work.23

Eis o pacto: fechar os olhos para melhor assistir ao espetáculo!

23 Idem, p. 813. Na tradução: “Oh, mil perdões, que uma figura curva / representa milhões em
pouco espaço. / Por isso, permiti que nós, os zeros / desta importância imensa, trabalhemos
/ por excitar a vossa fantasia” (p. 217).

50
O palco do The Globe – this wooden O – é sem dúvida incapaz
de rivalizar com o panorama grandioso da Batalha de
Azincourt. Por isso mesmo, se o espectador mantiver os
olhos bem fechados, então a impossibilidade cênica converte-
se na potência máxima da experiência literária. E, ao mesmo
tempo, permite que se formule o conceito de clássico que
mais importa ao projeto desta nova antologia de contos de
Machado de Assis.

Aceito o pacto, o “coro” explicita a tarefa inédita concedida à


recepção:
Piece out our imperfections with your thoughts.
Into a thousand parts divide one man,
And make imaginary puissance.
Think, when we talk of horses, that you see them
Printing their proud hoofs i’ th’ receiving earth,
For ’tis your thoughts that now must deck our kings,
Carry them here and there, jumping o’er times,
Turning th’ accomplishment of many years
Into an hourglass; (…)24

O pulo do gato shakespeariano leva longe: supri com


o pensamento nossas imperfeições. No vocabulário
machadiano, em diálogo muito provável com o “coro” de 10 anos do Posling – CEFET-MG
Henrique V, trata-se da enorme distância, mais do que
simples diferença, entre livros confusos e livros omissos.
Bento Santiago esclarece a distinção e, fiel ao hábito
machadiano de ler, reler e tresler, amplio um tanto a citação
que já lemos:

24 Idem, p. 813. Na tradução: “(...) Supri com o pensamento / nossas imperfeições. Cortai
cada homem / em mil partes e, assim, formai exércitos / imaginários. Quando vos falarmos
/ em cavalos, pensai que à vista os tendes / e que eles as altivas ferraduras / na terra batida
imprimem, pois são vossos / pensamentos que a nossos reis, agora, / hão de vestir, levando-
os para todos / os lados, dando saltos pelo tempo, / concentrando numa hora de relógio /
fatos que demandaram muitos anos” (p. 217).

51
Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo
se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio
algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que
faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar
todas as cousas que não achei nele. Quantas ideias
finas me acodem então! Que de reflexões profundas!
(...) Assim preencho as lacunas alheias; assim podes
também preencher as minhas.25

A potência desse ato de leitura literária pode ser enfatizada se


recordarmos um traço dominante do mundo contemporâneo.

Coda
Notas iniciais: você encontrou a modesta advertência no
subtítulo deste ensaio e espero que a tenha levado a sério, pois
aqui nada concluirei, antes alinhavarei duas ou três intuições
que ainda preciso desenvolver plenamente.

Pode ser assim?

Então, vamos lá.

A novidade mais relevante trazida pelo universo digital e,


sobretudo, pelas redes sociais, refere-se menos à quantidade
de informação tornada disponível do que à simultaneidade
de três eixos que compõem as mensagens midiáticas. Ora,
quantidade de informação é, por definição, relativa a um
contexto determinado e depende diretamente da densidade
do circuito comunicativo de uma dada época histórica. Não se
trata, assim, de uma novidade, digamos, “absoluta”.

25 Machado de Assis. Dom Casmurro. In: Obra completa. Vol. I. Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar, 1986, p. 870-871.

52
Contudo, a simultaneidade de três eixos é realmente inédita
e tem produzido um efeito devastador tanto no modelo da
democracia representativa quanto na paisagem cultural do
planeta.

(Não exagero.)

Recorde a estrutura triangular do sistema literário de


Antonio Candido. Por que não projetar esse conceito num
sistema de comunicação propriamente midiática? Ora,
há um acontecimento, cuja transmissão ocorre através
de um meio determinado, impactando níveis diversos da
recepção. Historicamente, os três eixos encontravam-se,
necessariamente, em tempos distintos, e essa distinção
alimentava a cadeia narrativa, cujo colapso foi provocado pelo
advento da tecnologia digital.

Confuso?

Avanço passo a passo.

Imagine comigo uma típica notícia jornalística: da ocorrência


do fato à transmissão pelo periódico, uma primeira defasagem
temporal decisiva se impunha: apuração do acontecimento,
10 anos do Posling – CEFET-MG
escrita do texto, sua revisão, edição e, finalmente, a publicação.
Defasagem agravada pelo tempo próprio da leitura do jornal:
no dia seguinte à ocorrência, em horas diversas, por uma
miríade de leitores. O ato mais elementar de narrar, no sentido
benjaminiano, exige a condensação de vivências pela passagem
do tempo. Caso contrário, experiência comum alguma poderia
ser plasmada: como imaginar um narrador eternamente refém
do instantâneo? Ou da notícia da última hora, que, por ser
sempre a última hora, torna-se hora nenhuma!

53
A própria hermenêutica como disciplina demanda a distância
temporal entre o presente do intérprete e o tempo singular
do artefato a ser estudado. Se estivessem encapsulados no
mesmo presente eterno e, por isso, eternamente órfão de
referências, como supor o ato interpretativo? Não se esqueça
que o ready­made de Marcel Duchamp é impensável sem o ato
crítico que depende da defasagem temporal que o participante
precisa imaginar entre o contexto usual do objeto e sua
recontextualização enquanto potência estética, decidida pela
própria descontextualização da função utilitária.

O universo digital e as redes sociais inauguraram uma inédita


simultaneidade de três eixos: a transmissão do evento ocorre
no exato instante de sua ocorrência, que, por sua vez, também
coincide com sua recepção. A verticalidade radical dessa
experiência tende a substituir a interpretação pela resposta
emocional no calor da hora. O dedo, por assim dizer, torna-
se protagonista do circuito comunicativo; afinal, estamos no
universo digital. Em boa medida, a agressividade ostensiva
das redes sociais relaciona-se à simultaneidade, que, como
não poderia deixar de ser, convida a uma resposta igualmente
simultânea, isto é, imediata, à recepção. Nesse círculo infernal,
cuja marca d’água é a indistinção entre tempos e gestos, o
caos é engendrado sem pausa.

(Pausa: tudo o que precisamos!)

Numa arqueologia dessa circunstância, estudarei num futuro


livro dois acontecimentos-chave.

Em primeiro lugar, o princípio da “Guerra do Golfo” foi


anunciada com antecedência26: se Saddam Hussein não

26 O discurso do presidente George W. H. Bush, “President George W. H. Bush announces


the Persian Gulf War, 16 de janeiro de 1991”, aqui se encontra: https://www.youtube.com/
watch?v=KJ6qpFpIFkY.

54
aceitasse o ultimato para deixar o Kuwait até a meia-noite do
dia 15 de janeiro de 1991, um devastador ataque aéreo seria
desferido. Ultimatos similares já tinham ocorrido inúmeras
vezes ao longo da história, claro está; no entanto, agora,
um fato inédito teve lugar: o início dos bombardeios foi
transmitido ao vivo pela CNN!27 E sua cobertura durava as
24 horas do dia – exatamente como o malogrado personagem
Funes, el memorioso, do conto homônimo de Jorge Luis
Borges, que, porque não podia esquecer coisa alguma, também
não pôde mais pensar... A análise dos vídeos da cobertura da
CNN transmite com perfeição a atmosfera de excitação e de
caos que prefiguraram o universo distópico das redes sociais.28   

O segundo evento epocal nos conduz ao 11 de setembro de


2001. Mais uma vez, a CNN transmitiu ao vivo o “acidente” de
um avião que se chocou com a primeira das Torres Gêmeas em
Nova Iorque. Por longos, eternos minutos, os comentaristas
tentavam entender o que se passara, pois parecia impossível
imaginar as razões do desastre. Como um piloto poderia
desorientar-se a tal ponto, de modo a colidir com um arranha-
céu no centro urbano? Teria desmaiado em pleno voo ou uma
falha mecânica teria deixado o avião à deriva? Eis que um
curto-circuito atravessa a todos sem exceção (comentaristas 10 anos do Posling – CEFET-MG
e espectadores): uma segunda aeronave se choca de modo
claramente proposital contra a segunda torre. Vale a pena
assistir ao vídeo com atenção: poucas vezes revelou-se
com tanta eloquência o colapso hermenêutico produzido
pela simultaneidade dos eixos fato-transmissão-recepção.29

27 Um vídeo vale mais do que mil palavras? Veja este, “CNN Gulf War Begins, January 16,
1991”: https://www.youtube.com/watch?v=_kwfYRRCmNw&t=21s.
28 Veja-se, em especial, este vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=BskrpzvVE3Q.
29 Eis o vídeo, “Second Plan hits South Tower”: https://www.youtube.com/
watch?v=sBciZFE8lAw.

55
Martin Amis tudo disse numa frase cortante: “Foi o surgimento
do segundo avião (...): esse foi o momento decisivo”.30 Somente
então a hipótese de um atentado terrorista foi levantada
pelos comentaristas. O espaço de tempo transcorrido entre
o primeiro e o segundo avião inaugurou de fato o século XXI.
(Em alguma medida, seguimos enredados nesse espaço de
tempo.)
Num cenário presenteísta, ou atualista, na teorização inovadora
de Valdei Araújo e Matias Pereira,31 Manuel Bandeira jamais teria
tido oportunidade de elaborar uma simples nota, lida talvez com
olhos descuidados, em versos icônicos da literatura brasileira,
“Poema tirado de uma notícia de jornal”:

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no


morro
da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu
afogado.

Repare como o poema potencializa as omissões da própria


notícia – a teoria machadiana dos livros omissos vêm à mente.
O barracão no morro da Babilônia era sem número, assim
como sua morte permanece sem esclarecimento – sobretudo
sem perguntas. Um “acidente” provocado pela embriaguez ou,
pelo contrário, a embriaguez não deixou de ser um anúncio

30 Martin Amis. “The Second Plane”. In: The Second Plane. London: Jonathan Cape, 2008, p. 3.
31 Valdei Araujo e Mateus Pereira. Atualismo 1.0. Como a ideia de atualização mudou o século
XXI. Ouro Preto: SBTHH, 2018.

56
do “suicídio”? Em outras palavras, o leitor do poema é levado
a ponderar a notícia com uma gravidade que dificilmente teria
ocorrido ao apressado leitor do jornal.

Na distância entre os dois atos de leitura, reside a potência


da leitura literária, pois ela inventa uma pausa que
finalmente pode interromper o fluxo-vertigem de uma
simultaneidade que nos torna cada vez mais prisioneiros de
limites desumanizadores: os 280 caracteres de um tuíte – e
que, no início da plataforma, eram exíguos 140.32 Tal pausa
reintroduz no circuito comunicativo a defasagem temporal
entre ato, transmissão e interpretação. Não nos enganemos:
sem essa defasagem, a desumanização é o próximo passo.
Seremos todos algoritmos capengas, com capacidade limitada,
limitadíssima, de processamentos dos dados, que, no entanto,
serão sempre mais céleres e exigentes.

É por isso que, hoje, a literatura e a leitura literária, são


mais importantes do que em qualquer outro momento da
história da cultura. Talvez seu exercício autorize o resgate da
experiência decisiva. Fiel a meu método, leio o conceito no
poema de Carlos Drummond de Andrade, “Poesia”:
10 anos do Posling – CEFET-MG
Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia desse momento
inunda minha vida inteira.

32 E, acredite se quiser, os “puristas” reclamaram muito quando essa “concessão” foi feita:
“Twitter libera postagens de até 280 caracteres para todos os usuários”, 7 de novembro de
2017. Ver a matéria no link: https://www1.folha.uol.com.br/tec/2017/11/1933591-twitter-
libera-postagens-de-ate-280-caracteres-para-todos-os-usuarios.shtml.

57
Minha aposta: a leitura literária é uma forma que favorece
a experiência epistemológica e afetiva contida no poema
drummondiano.

(E nada é mais importante no mundo contemporâneo.)

58
ALGUMAS ESPECULAÇÕES
EM TORNO DO FAZER ANÁLISE
Hugo Mari1

1. Breve histórico
Em qualquer campo dos estudos da linguagem o desafio de
análise coloca questões e dificuldades de natureza diferente,
quando centralizamos a discussão numa de suas áreas
específicas. A tradição da análise linguística percorreu muitos
séculos: desde Panini na Índia, no século IV A.C., até os dias
atuais encontramos abordagens que diferem em muitas
perspectivas. Análises diacrônicas e sincrônicas perpassaram
as diversas áreas da linguagem, focalizando reconstruções
históricas, padrões estruturais e dimensões funcionais.
Embora marcada por uma extensão temporal significativa,
tais análises foram mais orientadas para alguns objetos
linguísticos do que para outros; daí o reconhecimento de
um volume maior de informações no campo da sintaxe, em
comparação com fonologia ou com a semântica.

Um traço comum nesse conjunto de abordagens costumava ser 10 anos do Posling – CEFET-MG
a ausência sistemática de uma preocupação com os problemas
de significação, a não ser quando pudessem ser vistos como
uma extensão dos fatos decorrentes de uma análise sintática,
morfológica e fonológica. Essa ‘mentalidade’ sobre os fatos
de linguagem apresenta uma repercussão limitadora sobre
as práticas pedagógicas com as atividades de linguagem na
escola. É por razões dessa natureza, mas provavelmente

1 Possui doutorado em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais e


realizou, em 2001, estágio de pós-doutorado na Université Paris XIII. Atualmente é professor
do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas e sua atividade de pesquisa e de
docência está voltada para as áreas de semântica, pragmática, cognição e análise do discurso.

59
não é a única, que a prática escolar com linguagem mostra
(ainda, mas numa proporção menor) uma preocupação
com fatos sistêmicos: numa redação, em geral, corrigem-se
as concordâncias, as regências, as colocações, os erros de
ortografia, com a pretensão suposta de que essa prática possa
conduzir a uma clareza sobre a significação2. Nada disso deve
ser considerado como um desserviço às práticas de linguagem
na escola; o reparo a ser feito, no meu entendimento,
é quando se faz desse ritual a única forma de ver a produção
de linguagem do aluno. É provável que os processos de
letramento estejam apontando numa outra direção.

Por outro lado, na interface da linguística com a filosofia,


com a lógica, por exemplo, muitas questões de sentido foram
abordadas, mas raramente foram incorporadas às práticas
pedagógicas nas atividades de linguagem e até mesmo as
práticas analíticas sobre a própria significação. Assim, a
ausência de uma preocupação continua com a questão da
significação que ratificou a prática que acabo de descrever e
consagrou procedimentos que deixaram à margem aquilo que
é essencial a qualquer prática de linguagem, isto é, o sentido a
ser produzido. As razões para esse isolamento das questões de
sentido podem ter muitas explicações e talvez a maior delas
possa estar centralizada no teor de complexidade que se faz
presente numa análise do sentido e das tecnicidades que foram
desenvolvidas nessas análises a partir do Estruturalismo.
Nem por isso, todavia, elas alcançaram uma sistematização
que viesse favorecer sua aplicação, em comparação às demais
áreas de linguística, mesmo para abordagens que se ocuparam
da questão do sentido.

2 Nesse particular, acho que a correção possa ter um valor inverso: corrigimos porque
sabemos qual é o sentido, ou porque precisamos atribuir um sentido. 

60
Contrariamente às dificuldades enfrentadas pelas teorias
em abordar as questões sobre o sentido, é sobre elas que se
concentram o maior interesse sobre a linguagem, sobretudo
quando esse interesse se faz representar por olhares de
outras áreas de conhecimento ou quando assumem um teor
funcional para justificar tantos outros aspectos que envolvem
as atividades de um locutor na sociedade. Por que esse
interesse sobre as questões de sentido? O que dele extraímos
para uma compreensão das práticas político-sociais na
sociedade? Afinal, o que o sentido daquele que o produz pode
revelar sobre sua identidade, sobre sua ideologia, sobre sua
forma de ser e de fazer no mundo das coisas?

Um interesse comum que perpassa essas questões relaciona-se


aos desafios que colocamos para nós mesmos de prover
explicação para muitos fatos sociais, a partir dos sujeitos
que os constroem, que os partilham e que se acham neles
envolvidos de alguma forma. A inserção dos sujeitos sociais
em todos esses processos pode não acontecer dentro de
um único padrão, mas certamente temos na linguagem o
padrão mais disseminado de sua realização. Daí resulta toda
importância que é dada às questões de sentido, pois é através
delas que os fatos, para além de sua materialidade imediata, 10 anos do Posling – CEFET-MG
são revelados, manipulados ou ocultados. Nesse particular, é
preciso reconhecer que a Análise do Discurso tem propiciado
uma compreensão relevante sobre as questões de sentido,
atrelando-as a um fazer social, a uma dinâmica de um contexto
histórico que não pode ser desconsiderado nos processos de
produção do sentido.

Assim, os discursos que emanam dos sujeitos tornam-se o


nosso objeto (e também objetivo) de análise por constituírem
eles o lugar onde se registram as representações que esses

61
sujeitos fazem dos objetos de conhecimento, as formas de
vida que eles constroem na sociedade, as posições ideológicas
que assumem sobre os fatos sociais, enfim o modo pelo
qual erigem a sua visão de mundo. Nesse percurso dos
sujeitos sobre o mundo das coisas, é importante salientar que
os sentidos produzidos não são acidentalmente individuais
e nem necessariamente universais: os sujeitos agem em
função do lugar social que ocupam numa dada correlação de
forças sociais e esse seu agir se mostra espelhado nas formas
discursivas de que se vale. Buscar argumentos e justificativas
para entender o alcance que a diversidade dos sentidos que
se disseminam nos discursos numa sociedade pode ser uma
das dimensões do desafio de análise que colocamos para nós
mesmos, quando nos deparamos com certos eventos sociais
que elegemos como objeto de estudo de um trabalho acadêmico.

Na sequência, vou tentar explicitar um pouco mais algumas


etapas de uma atividade teórico-analítica as quais, de um modo
geral, mas não exclusivamente, envolvem fatos implicados nos
processos de análise da significação linguística, seja ela numa
orientação específica para a semântica, seja para a análise do
discurso, seja para a pragmática. A formulação de um padrão
metodológico que dê conta da análise da significação nessas três
dimensões ainda ressoa para mim como algo distante, o que não
implica a recusa da busca de caminhos cada vez mais estruturados
para o desenvolvimento de análises. Em geral, costumávamos
pautar pretensões metodológicas a partir de padrões das ciências
naturais, com o propósito de que pudéssemos supor para as
humanidades a metodologia como prova empírica do nosso
fazer analítico. Hoje, até mesmo no campo das ciências naturais,
a questão metodológica parece ter se tornado um incômodo,
pelo caráter da complexidade associada aos objetos de pesquisa
desse campo, conforme relata Gutting:

62
Certamente, muitos dos jovens mais talentosos
filósofos da ciência (especialmente filósofos da
física e filósofos da biologia) parecem inquietos com
questões metodológicas e muito mais confortáveis
com esclarecimentos técnicos de conceitos científicos
fundamentais. Não há dúvida de que as explicações
filosóficas da metodologia científica que almejam
relatar aos cientistas de como proceder com seu
trabalho são hoje ociosas.3 (2001, p. 463).

Em resumo, as etapas que discuto abaixo não têm a pretensão


de validar qualquer nuança metodológica de pesquisa, mas
apenas estratégias e lembretes que possam tornar menos
aleatória a condução de um processo de análise e que possa
fazê-lo diferente (como um alvo a ser alcançado) de mera
justaposição de dados a uma abordagem teórica. Ressalto
essa questão porque considero que, cada vez mais, é preciso
destacar os processos de análise; é preciso mostrar como
podemos nos valer de tantas categorias teóricas que se
tornaram disponíveis; de tantas abordagens que mostram
categorias passíveis de uma aplicação empírica sobre fatos
reais. Penso, de forma especial, que a análise do discurso, no
contexto atual das ciências empíricas, enfrenta esse desafio
constante de romper com esse caráter ocioso das categorias, 10 anos do Posling – CEFET-MG
das metodologias, dos construtos teóricos, para trazer clareza
sobre o mundo que cada sujeito experiencia na vida real. Ela
não é um elixir para um mundo cada vez mais conflituoso,
mais dissensual, mais propenso a rupturas, mas é, ao menos,
um caminho que pode nos fazer enxergar uma vela tremulante

3 No texto, Scientific methodology, Gary Gutting ressalta: “Certainly, many of the


most talented young philosophers of science (particularly philosophers of physics and
philosophers of biology) seem uneasy with methodological issues and much more
comfortable with technical clarifications of fundamental scientific concepts. There is no
doubt that philosophical accounts of scientific methodology aimed at telling scientists how
to proceed with their work are today otiose.” In: A companion to the philosophy of science.
Oxford: Blackwell, 2001, p. 463. 

63
no fim do túnel. Precisamos fazer da análise do discurso,
analisando discursos, uma faísca de um ‘aufklerung’ para o
momento que vivemos.

2. Da intuição à análise
Um fato a ser analisado comporta etapas, caminhos e
processos muito diversos para os quais nem sempre temos
aquilo que poderia vir a constituir-se num procedimento
metodológico claro, com passos e etapas pré-estabelecidos,
com tratamento de dados explicitado pelo procedimento, com
objetivos e metas da análise alcançados com transparência.
Embora o objetivo seja a análise, nem tudo que realizamos,
ainda que com validade e com seriedade, seja de fato análise.
Precisamos admitir, todavia, que há abordagens teóricas
que propiciam descrições de dados de forma mais efetiva e
que uma transposição desse nível descritivo pode implicar
o uso de recursos que vão além das categorias que a própria
teoria disponibiliza. Vejamos, então, alguns aspectos que
selecionei para discutir o processo de análise de um fato, de
um acontecimento discursivo.

2.1 Papel da intuição


A intuição apresenta-se como algo absolutamente natural de
um ponto de vista empírico e é provável que sobre qualquer
ação ou evento a ser explicado; sobre qualquer fato ou objeto
a ser avaliado associamos alguma forma de intuição. Apesar
de precursora para os processos de compreensão, ela se
mostra algo controverso quando se pretende atribuir-lhe
um teor conceitual mais rigoroso. De modo geral, podemos
ter intuição para tudo, já que ela representa uma forma
imediata de manifestação de um sujeito que não depende
necessariamente de um sistema estruturado de regras, de

64
um processo inferencial explicitado, de um aporte teórico
organizado, como em geral ela costuma ser lembrada.
Podemos ter intuição sobre o sucesso ou sobre o insucesso de
qualquer ação que pretendemos realizar, porque dispomos de
alguma forma de conhecimento tácito (um sistema de crenças)
que nos possibilita experimentar impressões diversas, ou
imaginar predições (desejo) que nos permitem transitar por
muitos estágios intermediários entre aquilo que incentiva ou
que bloqueia nossas ações. O teor difuso e diversificado da
intuição já foi lembrado por David Lewis:
Nossas ‘intuições’ são simplesmente opiniões; nossas
teorias filosóficas são a mesma coisa. Algumas são
do senso comum; outras são sofisticadas; algumas
são particulares, outras gerais; algumas são mais
firmemente sustentadas, outras menos. Entretanto,
todas elas são opiniões...4 (1983, p.18).

O comentário de Lewis aponta esse teor difuso e diverso


tanto para as teorias filosóficas como para a intuição;
nesse leque de amplitude apontado podemos qualificar, em
momentos específicos, o teor de nossas intuições. Nem todos
os teóricos, todavia, que trataram da intuição consideraram
seu papel apenas de teor opinativo – como destaca Lewis -,
isto é, atribuíram a ela algo de fundamental para os processos 10 anos do Posling – CEFET-MG
de cognição, por se tratar de uma categoria importante para
desencadear o conhecimento humano. Por ver nela um valor
de fundamentação para o conhecimento, alguns autores
apontaram orientações diversas, conforme exposto na
Stanford Encyclopedia of Philosophy.

Um conjunto de explicações sustenta que uma


intuição é uma atitude proposicional recorrente sui

4 “Our ‘intuitions’ are simply opinions; our philosophical theories are the same. Some are
commonsensical, some are sophisticated; some are particular, some general; some are more
firmly held, some less. But they are all opinions…” (1983, p. 18) 

65
generis, caracterizada por variações como aquela
na qual a proposição recorrente parece verdadeira
(BEALER, 1998, 2002; PUST, 2000; HUEMER, 2001,
2005), outra na qual uma proposição é apresentada
ao sujeito como verdadeira (CHUDNOFF, 2011),
ou que empurra o sujeito para acreditar numa
proposição. (KOKSVIK, 2011)5.

Os autores compilados pela Stanford Encyclopedia of Philosophy


destacam outros parâmetros que ratificam ainda mais o teor
difuso da intuição: o primeiro conjunto a associa, de forma
muito apropriada, a atitudes proposicionais que são, por
si mesmas, um espectro amplo e variado (crença, desejo,
expectativa, certeza, possibilidade, impressão, incerteza...); o
segundo parâmetro a apresenta com um teor prescritivo ao se
fazer dela uma proposição verdadeira; o terceiro a coloca como
uma causalidade/condição para a verdade de uma proposição.
Provavelmente, todo esse leque de possibilidades se integra à
intuição e o fato de não a restringirmos a uma das dimensões
talvez seja uma forma de reconhecimento do seu valor e da
sua importância nos processos de descoberta.

Apesar de toda essa fluidez que perpassa a questão da intuição,


nenhuma análise pode desconhecer a sua importância, pois
essa costuma ser a forma inicial para fazer fluir o processo
de análise que iremos construir; em outras palavras, como
quer Lewis, ter opinião sobre o fato que vai ser analisado, ou,
na dimensão da Stanford Encyclopedia of Philosophy, ter uma
atitude proposicional diante desse mesmo fato não é algo que
possa ser desprezado como um instante precursor da análise.
Todavia, nenhuma análise se sustenta apenas pela intuição

5 “A final family of accounts holds that an intuition is a sui generis occurrent propositional


attitude, variously characterized as one in which a proposition occurrently seems true
(Bealer 1998, 2002; Pust 2000; Huemer 2001, 2005), in which a proposition is presented
to  the subject as true (Chudnoff 2011a), or which  pushes  the subject to believe a proposition.” 

66
que temos do fato; ela é importante, mas corresponde apenas
a uma forma de senso comum (mais ou menos depurado)
que somos capazes de expressar sobre um fato. Uma análise
precisa superar o senso comum, a opinião inicial, uma
atitude proposicional espontânea, em duas dimensões mais
comumente verificáveis:

(i) a do achismo – O analista pode achar (talvez


a atitude proposicional mais espontânea) que o
jornal discorreu (ou que os seus entrevistados
manifestaram) sobre a matéria das cotas para
universidades de forma positiva, ambígua,
incoerente, até negativa, ora por reconhecer valor
nas decisões políticas que envolvem a questão, ora
por apontar o seu alcance social, ora por mostrar
dificuldades em sua operacionalização em larga
escala, ora por revelar desconfianças em relação
ao seu sucesso escolar, ou simplesmente por não
aceitar um princípio inovador. Tudo isso pode ser
uma forma inicial de compreensão dos fatos, mas só
terá validade para a análise se for possível mostrar
como esses pontos de vistas diferentes, como as
dificuldades administrativas e materiais, como os
argumentos aventados na matéria em avaliação
possam ser mostrados de forma objetiva. Superar
o achismo, ainda que de forma rudimentar, já é
encaminhar-se para uma justificativa da análise. O 10 anos do Posling – CEFET-MG
comentário aqui poderia ser desenvolvido a partir
de outros parâmetros que foram apontados pelos
autores antes citados. Por exemplo, poderíamos ser
‘empurrados’ pela intuição a julgar que os temas
indicados representassem proposições supostamente
verdadeiras; essa verdade (ou a sua falsidade),
porém, precisaria ser amplamente justificada pelos
argumentos que o analista dispõe a construir, a
partir dos dados fornecidos pelo material empírico.
(ii) a da mera paráfrase – Paráfrases podem ser
formas iniciais de que nos valemos no entendimento
de algum fato, sobretudo quando ainda não nos

67
apropriamos das categorias do quadro teórico para
justificá-lo. A paráfrase pode ser assumida, pois,
como um registro de memória para a intuição inicial
que criamos sobre um tema e que dela podemos nos
valer para avançar em termos da análise. É possível
que as suposições acima possam ser parafraseadas da
seguinte forma: (a) o jornal/entrevistado está sendo
ambíguo porque não está descrevendo objetivamente
a sua posição sobre o fato – implantação de cotas –,
já que, computados os argumentos apresentados,
não podemos assegurar qualquer posicionamento
mais significativo; (b) o jornal/entrevistado está
criticando a adoção do sistema de cotas por julgar
ser ele um fator de difícil administração e por
representar uma ameaça à qualidade do processo
escolar. Todavia, numa dimensão da análise, essas
paráfrase-sínteses precisam ser escrutinadas no
material coletado para avaliação, isto é, torna-se
necessário mostrar como a ambiguidade, a crítica
ou o reconhecimento se apresentam e como foram
(in)diretamente construídos nesse material. Para o
desenvolvimento dessa etapa é recomendável valer-
se das categorias de análise descritas no quadro
teórico selecionado.

2.2 Papel da descrição


Não vou, nesse comentário, destacar a descrição como uma
dimensão teórica detalhada, conforme registrada em muitas
discussões no campo da filosofia do conhecimento sobre a
diferença entre conhecimento por familiaridade (ou direto)
(knowledge by acquaintance) e conhecimento por descrição
(knowledge by description). Mas alguns aspectos dessas duas
formas de conhecimento, consagradas por Russell, mas hoje
revisadas no campo da cognição humana, ainda podem nos
ser úteis em termos da realização de uma pesquisa a partir
de certos dados empíricos. Vejamos uma colocação inicial do
problema, a partir de Gregory

68
Conhecimento direto é “o que derivamos dos
sentidos”, isto é, aquele que não implica o
conhecimento de qualquer proposição relativa ao
objeto com o qual estamos familiarizados. Para Russell
conhecimento é primariamente o “conhecimento
direto das sensações’ – do qual todo conhecimento
depende -; mas quando é expresso na linguagem
e organizado pelo senso comum ou pela ciência,
temos conhecimento por descrição.6 (1987, p. 412).

A primeira dimensão, que fundamenta toda forma de


conhecimento, não me parece relevante para nossa discussão,
até mesmo por, de certa forma, já está recoberta pelo exercício
da intuição, apesar de apoiar na inexistência de uma correlação
direta entre os dois fatos. Interessa-nos, de modo mais imediato,
o conhecimento por descrição, pois é a partir dele que os
nossos processos de análise poderão ser desenvolvidos mais
explicitamente. Aqui nos apropriamos da linguagem como
registro de sua organização e também das categorias teóricas
para saltar, do estágio do senso comum, para uma abordagem
justificada teoricamente. Enfim, a descrição aqui nos interessa
como uma etapa preparatória (mas também decisiva) para a
análise, onde registramos os fatos, extraídos de uma matéria
prima coletada com alguma finalidade analítica. A descrição 10 anos do Posling – CEFET-MG
teria, então, o valor de uma primeira inserção das categorias
teóricas sobre os dados, uma etapa essencial ao desenvolvimento
subsequente de qualquer pesquisa.

Dessa forma, a descrição deve abrir o processo inicial mais


sistemático para análise, porque uma descrição do material

6 “Knowledge by acquaintance is ‘what we derive from sense’, which does not imply
knowledge of any proposition concerning the object with which we are acquainted. For
Russell knowledge is primarily – and all knowledge depends upon – the ‘knowledge by
acquaintance of sensations’; but when this is expressed in language, and organized by
common sense or science, we have knowledge by description.”

69
a ser analisado só faz sentido se for feita com base em
categorias que integram o quadro teórico, escolhido para
o desenvolvimento da pesquisa. A descrição não pode ser
confundida com a análise, mas ela já pode ser concebida como
uma formulação mais sistemática que caminha para a análise,
enfim, como um passo inicial da análise. Esta possiblidade de
confusão é comum e, muitas vezes, difícil de ser isolada, porque
dela participa o quadro teórico de forma intensa. A descrição
torna-se, portanto, uma etapa essencial para a análise: a
consistência de muitas inferências analíticas resulta de uma
descrição sobre aquilo que foi, no corpus, eleito como temas
e subtemas que devem ser destacados no processo de análise.
Uma descrição precisa se valer de alguma forma teórica de
abordagem com o objetivo de ultrapassar meras impressões
que são providas pela intuição. Uma descrição de um fato já
representa, portanto, um princípio de desenvolvimento da
análise que não deve ser confundida com a própria descrição
em toda sua extensão, nem se confinar a ela.

2.3 Papel da análise


Em qualquer pesquisa, o processo de análise é o maior
desafio que o pesquisador enfrenta: analisar é uma tarefa
complexa que expõe o pesquisador diante de riscos que ele
precisa correr em nome de possíveis descobertas. A análise
deve refletir o seu posicionamento diante dos fatos, mas esse
posicionamento precisa ser sustentado, ao menos, por duas
dimensões: (i) os dados que foram extraídos do corpus; (ii)  a
descrição que foi feita, a partir da abordagem teórica usada.
Isso representa a base da análise que precisa ser implementada
por outros aspectos, tais como: uma visão relacional dos
dados que compõem o fato, isto é, uma ruptura com a
linearidade das informações capturadas pelo processo da
descrição – que tende a ser linear. Essa ruptura deve favorecer

70
uma forma de ver esses dados dinamicamente, integrando e
confrontando agentes, integrando e confrontando temas e
subtemas, criando e justificando novas relações inferenciais.
É difícil supor um roteiro pré-estabelecido para a análise que
tenha uma precisão a priori: o processamento inferencial é
circunstancial e depende dos dados reunidos pelo analista
na fase de descrição, possibilitando evidenciar informações
não explicitadas nessa descrição. A dimensão da análise é o
momento em que o sujeito-analista se vale das informações,
mas também da sua experienciação, para construir um
arcabouço de relações que possa assumir um valor de
singularidade, de revelação de fatos que a superfície dos
dados pode não revelar de forma imediata. Essa revelação é
realizada pelo desempenho inferencial do analista.

A análise é, portanto, uma forma inicial de explicitar o que


se pode, embrionariamente, construir a partir das teorias
de modo estruturado e justificado e que possibilite ir além
da mera percepção geral, provida pela intuição e pelo senso
comum e até mesmo pela descrição dos fatos. Uma abordagem
que estiver apenas circunscrita àquilo que o quadro teórico
for capaz de descrever pode ser importante, enquanto um
exercício para ilustrar a forma pela qual operam certas 10 anos do Posling – CEFET-MG
categorias conceituais, mas pouco avança para além daquilo
que o senso comum ou a intuição, em estado selvagem, podem
revelar. Num quadro geral das abordagens teóricas que estão
disponíveis para algum campo de conhecimento, nem todas
exibem uma face amigável de projeção de análise: há quadros
teóricos construídos com vistas apenas a descrever certos
fenômenos; há outros que podem propiciar uma condução da
análise. Não há mal nenhum que façamos uso desses quadros,
mas o esforço interpretativo do pesquisador deverá ser ainda
mais exigente, já que ele precisa romper com essa frieza
descritiva que decorre de muitas abordagens teóricas.

71
Uma análise precisa acionar um processo inferencial qualquer,
pois é ele que possibilita suplantar os dados imediatos que
foram dispostos na fase descritiva. É esse processo que opera
‘o salto qualitativo’ que a indução nos possibilita: da avaliação
de alguns, podemos concluir para muitos, ou da avaliação de
muitos, podemos concluir para todos. Ou ainda de forma mais
radical, como advoga Peirce em favor da abdução, único estágio
que o autor considera propiciador da novidade num processo
de inferenciação, isto é, da análise de um caso a probabilidade
de sua inclusão numa regra geral. Esses processos costumam,
formalmente, estar associados a esquemas rígidos de
inferência, mas não há nada que impeça a sua utilização em
sistemas pré-formais – alguns autores trataram essa questão
como uma lógica informal –, como parece ser os padrões de
uma grande extensão do nosso raciocínio.

Outro aspecto importante que deve ser associado ao processo


de análise é o fato de ele servir como um instrumento propulsor
para um avanço da própria teoria. Podemos até mesmo dizer
que a fase da descrição já constitui um primeiro desafio para
as teorias: eventos e fatos idealizados para ilustrar a sua
construção e o seu funcionamento nem sempre servem de
modelos eficazes, quando precisamos descrever fenômenos
reais. Aqui muitos ajustes teóricos começam a ser feitos: os
eventos discursivos experienciados pelos sujeitos oferecem
uma riqueza de detalhes tão extensa, que nem sempre se
acham contemplados nas formas idealizadas das teorias.
Entretanto, é provavelmente o processo de análise que nos
conduzirá aos maiores ajustes da teoria, pois é a partir dela
que vemos a sua importância para o processo de descoberta,
como também suas dificuldades, suas limitações. Sem análise,
e mesmo com os dados organizados a partir das estratégias
que uma teoria propicia, a sua (da teoria) importância torna-
se muito relativa como um instrumento revelador.

72
2.4 Intuição → descrição → análise
Nos itens anteriores, fizemos um percurso por essas três
dimensões, assinalando, em cada momento, alguns aspectos
que poderiam ajudar num traçado de orientação para uma
análise. Optamos por uma formulação, quando conveniente,
menos apegada a confrontações teóricas que poderiam ser
discutidas em cada uma das dimensões. Por exemplo, em
relação à intuição, optamos por não avançar na sua discussão
a partir de contrastes com categorias como introspecção,
sensação, percepção e tantas outras, bem como a sua
inserção em processos conscientes ou não. Na sequência,
apresentamos algumas observações gerais sobre a discussão
até aqui desenvolvida.

(i) Todas as etapas representam momentos importantes no


processo analítico e nem sempre podem ser vistas como um
estágio independente: uma análise se vale das paráfrases,
das descrições que foram feitas de um fato; uma paráfrase já
antecipa aspectos daquilo que pode vir a ser a própria análise;
muitas dimensões da descrição já podem ser elas próprias
aspectos da análise. Enfim, enquanto construímos o processo
da análise, não existe uma trajetória única a ser seguida:
o alcance dos objetivos da análise nem sempre se fazem 10 anos do Posling – CEFET-MG
em linha reta. Devemos estar sempre prontos a retomar, a
recompor fatos, insights de todas as etapas da análise.

(ii) O processo que contém as três dimensões não deve ter a


preocupação de realizar cada uma das etapas ao seu tempo, já
que elas não são, a princípio, indiferentes uma à outra. Não
existe a necessidade de uma demarcação rigorosa daquilo
que se faz em um e outro momento. Nesse comentário, com
fins explicativos, estamos buscando isolar as etapas por uma
necessidade operacional de mostrar fatos importantes que

73
precisam ser contemplados no desenvolvimento de todo
o processo de análise, mas não necessariamente fixar um
roteiro de procedimentos.

(iii) Por fim, o processo contém também redundâncias: a


análise não é indiferente, em termos de sua formulação,
daquilo que já foi expresso tanto na etapa da intuição quanto
na etapa da descrição. A recuperação de informações de
etapas anteriores pode ser até mesmo importante para a
clareza de etapas derradeiras. O produto final daquilo que
pudermos denominar a análise de um fato pode conter
aspectos de todas essas etapas que aqui enumeramos, sem
que se torne necessária sua explicitação. Se a sua presença é
quase inevitável em todo o processo, é importante, porém, ter
clareza da dimensão de análise que está sendo proposta.

3. Exercitando a análise: um breve comentário


Como podemos entender as diversas as etapas que descrevemos
anteriormente, quando o desafio é algum material a ser
analisado? Proponho aqui um exercício ilustrativo sintético,
procurando demarcar as etapas que foram descritas, com o
objetivo maior de fazer jus aos procedimentos metodológicos
e menos por uma necessidade analítica, embora a relativização
desse segundo ponto não implique um afrouxamento na
importância de se reconhecer o que pode estar presente em
cada momento da pesquisa. Avaliemos a proposta, partindo
da chargue seguinte:

74
Texto 1: charge

Charges Online – 27 de junho de 2000

3.1 Intuição e senso comum


Inicialmente, temos a intuição de que se trata de uma charge
que se vale de um episódio político, representando desavenças
entre dois políticos em atividade, naquele momento, sendo
um Itamar Franco (Governador de Minas Gerais) e o outro 10 anos do Posling – CEFET-MG
Fernando Henrique Cardoso (Presidente da República). Como
a troca de animosidades entre os dois políticos foi expressa
através de um vocabulário pouco comum, o chargista se
vale da possibilidade de acionar uma instância institucional,
Academia Brasileira de Letras, para dirimir as dúvidas
semânticas geradas pelo uso dos dois termos, proferidos
pelos interlocutores. Por fim, o chargista se vale também de
uma instância midiática que transmite ao vivo a desavença
entre os políticos.

75
Podemos nos valer de alguns quadros teóricos para descrever
essa intuição inicial que temos da charge; inicialmente,
destacaremos o quadro enunciativo da charge e depois os
atos de fala nela envolvidos. Comecemos pela descrição do
processo enunciativo da charge:

3.2 Descrição: quadro enunciativo

Conforme esquema acima descrito, a charge compõe-se


de três cenas enunciativas, que se entrelaçam na produção
do seu sentido. Partindo da origem da informação, a cena
inicial, que se faz representar por duas enunciações, é
responsável por desencadear todo o processo de significação.
Nela temos os dois interlocutores (Itamar e FHC) que
intercalam proferimentos – anfótero e nefelibata –, usados
para desqualificar um e outro. A estranheza dos termos leva
o chargista a recorrer a uma cena suporte, cujo locutor é
denominado Prof. Austragésilo, ‘metonimia’ representativa
da Academia Brasileira de Letras, cuja função é definir o

76
significado dos termos em questão. Finalmente, a cena global,
valendo-se dessas cenas locais, coloca um repórter como o
locutor responsável para narrar o evento aos leitores. Essa
organização propicia, numa dimensão mais analítica, uma
percepção mais clara dos valores que ela pretende circular,
enquanto uma crítica humorada ao episódio, vivido pelos
interlocutores da cena inicial.

3.3 Análise do processo enunciativo


Na análise do processo enunciativo da charge, conforme a
descrição proposta, é fundamental destacar a identidade
dos interlocutores que protagonizam a cena inicial, pois eles
são interlocutores reais, investidos de papéis institucionais
importantes e os enunciados que produzem conflitam, em
alguma extensão, com esse papel social. Considerando o teor
convencional dos proferimentos, segundo os dados fornecidos
pela cena suporte, e o papel institucional dos interlocutores
(Governador de Minas Gerais e Presidente da República,
respectivamente), esses atos estariam comprometidos em
qualificar um e outro, pois captariam o real valor que cada um
atribui ao seu enunciado na qualificação do seu interlocutor.
Portanto, no campo da identidade, não caberia apenas o 10 anos do Posling – CEFET-MG
papel institucional, pois ele apenas apontaria para o teor
convencional dos proferimentos e isso seria muito pouco
representativo para um valor que esses enunciados devem
assumir na interação conflituosa entre os integrantes do
processo: precisamos resgatar aqui sua dimensão intencional.
Como podemos justificar essa intenção?

Podemos passar a ver essa identidade a partir de formações


discursivas diferentes: Itamar vincula-se a uma FD-
nacionalista, enquanto FHC vincula-se a uma FD- (neo)liberal.

77
Há outro fator também a ser considerado: a identidade desses
interlocutores precisa ser vista pelo teor da animosidade que
caracterizou a relação entre eles, em certo período da vida
pública brasileira. Somente a partir desses fatos podemos
admitir um teor intencional para os proferimentos, o que
reorienta o valor das qualificações. O fato, portanto, de
eles de se fazerem representar por desqualificações dos
interlocutores, decorre de um valor intencional que podemos
atribuir a cada um dos proferimentos.

Além do mais, é importante considerar, do ponto de vista


linguístico, a dimensão semântica que os enunciados
assumem nas duas cenas: na suporte, estamos diante de
algo que podemos chamar do significado de cada um dos
enunciados, isto é, das suas condições iniciais para se referir;
na inicial, defrontamos com o sentido desses enunciados, isto
é, valores que decorrem do seu uso efetivo e que apresenta um
uso referencial (qualitativo) emergente naquela circunstância
de interlocução.7

7 Significado e sentido são dois objetos discursivos diferentes, mas não são objetos
indiferentes entre si; resumidamente, pode-se dizer que o significado especifica condições
gerais para referenciação, enquanto o sentido determina uma referenciação, em seu uso
específico. Essa contraposição consagra a formulação de Wittgenstein de que sentido (mas
não significado) é o uso.

78
3.4 Descrição: atos de fala
Podemos nos valer também da teoria dos atos de fala, para
descrever o comportamento dos diversos interlocutores que
estão integrados em cada uma das cenas.

Ponto: expressivo/Modo: xingamento


Anfótero! (cena inicial)
Efeito perlocucional: entreguista, fingido

Ponto: expressivo/Modo: xingamento


Nefelibata! (cena inicial)
Efeito perlocucional: aloprado, alienado

Anfótero. Adj. 1. Que


reúne em si duas Ponto: declarativo/Modo: definição
qualidades opostas ....

Nefelibata. Adj. 1. Quem


ou que vive ou anda nas Ponto: declarativo/Modo: definição
nuvens...

Estamos transmitindo
Ponto: declarativo/Modo: existência ou
ao vivo a briga do
Ponto: assertivo/M: relato
excelentíssimo ....

A descrição desses atos evidencia o teor simétrico e estrutural 10 anos do Posling – CEFET-MG
que perpassa as duas cenas enunciativas locais: a cena inicial
alterna dois atos expressivos com conteúdos proposicionais
distintos, permitindo caracterizar, de forma diferenciada,
como cada locutor percebe o seu interlocutor; a cena suporte,
formada por dois atos simétricos, responde pelo conteúdo
proposicional, de teor convencional e se mostrará também
como fonte dos efeitos perlocucionais que podemos derivar
desses atos. Por fim, a cena global, com duas alternativas de
análise, sendo cada uma propícia a criar certo tipo de ação
específica que pode ser atribuído ao seu locutor.

79
3.5 Análise dos atos de fala
Seguindo a descrição proposta para os atos na charge
em questão, a cena inicial mostra dois atos com uma
descrição idêntica – Ponto: expressivo/Modo: xingamento.
A importância dessa descrição inicial já mostra um processo
de interlocução dominado pelas emoções dos sujeitos pelo
fato de ambos os atos serem expressivos e que têm como
modo de realização o xingamento, isto é, ações discursivas
dominantemente representadas pelo estado mental de raiva,
que domina as condições preparatórias a que esses sujeitos
se acham submetidos. Esse estado, por sua vez, enseja um
processo de crença, onde cada um dos locutores manifesta
desavenças profundas com o seu interlocutor.

A relação da cena inicial com a suporte possibilita engendrar


um efeito perlocucional, proporcionado pelo teor locucional
dos termos anfótero e nefelibata. No primeiro caso, anfótero
reporta o efeito de entreguista, fingido – efeito pensado a
partir de uma qualificação do interlocutor como aquele que
comandou a privatização de empresas públicas brasileiras –;
por seu lado nefelibata reporta o efeito de aloprado, alienado,
pensado a partir da atitude do governador de Minas Gerais
de que o presidente havia reunido tropas federais no Vale da
Ribeira-SP com vistas a invadir Minas Gerais e se apropriar
da Represa de Furnas, dentre outras ações. Nesse sentido, por
exemplo, podemos dizer que o locucional é uma condição para
o ilocucional e o uso dos termos em questão é de relevância
para a percepção dos efeitos apontados.

Por fim, devemos destacar a descrição feita da cena global


que comprime a força e os efeitos produzidos nas cenas
anteriores. Valendo-se da força ilocucional (ponto e modo)

80
dos atos da cena inicial, associada às condições preparatórias
dos locutores – sujeitos integrados a formações discursivas
contrapostas e marcados por muitas desavenças no campo
político – o repórter declara online a existência de uma
briga, em função da força ilocucional dos atos em questão.
Aqui temos, certamente, duas alternativas de análise, como
proposto no esquema anterior: ao ato de declarar a existência
de uma briga – ato que representa uma leitura do repórter
sobre os fatos da cena inicial - podemos contrapor o ato de
asserção do relato desse mesmo efeito de briga. A primeira
análise coloca o locutor como corresponsável pelo efeito
– é ele que vê o fato como briga, ao instituí-lo, enquanto a
segunda centraliza essa responsabilidade nos protagonistas
da cena inicial.

4. Objetivismo, subjetivismo
e intersubjetivismo
No desenvolvimento de uma pesquisa, os procedimentos
de análise estão sempre sujeitos a flutuações em termos da
natureza da abordagem pretendida: escorregamos entre as
fragilidades de uma suposta objetividade dos dados (embora
ela exista em alguma extensão), de sua imposição sobre
condutas do pesquisador, de seu teor rigoroso testemunhado
10 anos do Posling – CEFET-MG

pelo metro, pela balança ou por algoritmos de precisão formal;


mas também escorregamos sobre uma não menos pretensão
às subjetividades na montagem de argumentos, na validação
de hipóteses, na busca de inferências partilháveis.

Muitas abordagens, em alguns campos, conferem um valor


quase irrefutável à confecção de algoritmos, ao tabulamento
de dados, à expressão numérica das estatísticas. Nada disso
é desabonador em termos de uma instrumentalização da
pesquisa: muitos campos de conhecimento se ergueram

81
e se desenvolveram a partir de padrões desse teor. Nada
disso, todavia, nos garante uma certeza sem escoriações na
objetividade, uma certeza sem as marcas subjetivas daquele
que realiza a pesquisa. Tornamo-nos cada vez mais arredios à
velha apologia de que os dados falam por si só; sempre há um
sujeito que fala por eles ou com eles, que os decanta ou que
se encanta com eles. O pesquisador é um sujeito falível como
outro qualquer, mesmo quando ciceroneado por grandezas
numéricas, por algoritmos robustos. Supor realismo em que
um objeto, um fato impõe-se ao sujeito, anulando-o de forma
irrefutável, é quase uma utopia, sobretudo numa era em que
as incertezas, a relatividade, o ponto de vista, a fluidez dos
conceitos deixaram de ser um objeto de luxo das humanidades.

O desconforto metodológico do lado do subjetivismo não é


menos diluído: vivemos os impasses de transpor o testemunho
experiencial para uma sociabilidade imparcial. Queremos
que aquilo que experenciamos seja assegurado em sua forma
plena aos nossos interlocutores. Para isso nos valemos de
uma grande arma que é a sustentação de hipóteses por
meio de processos argumentativos: precisamos não apenas
mostrar o que é um fato qualquer, mas, sobretudo, como
ele se apresenta, como funciona, como se tornou possível.
Não validamos nossa atividade de leitura, de interpretação,
nossa capacidade de análise apenas dizendo o que um texto
nos revela; precisamos mostrar como esse ato de revelar algo
é construído, de que elementos ele se vale, que estratégias
foram disponibilizadas para isso.

Como alternativa de superação desse impasse entre


objetividade e subjetividade, a intersubjetividade tem sido
alçada como uma categoria que procura imunizar os dois
lados perversos desse dilema humano de ver os fatos. Seus

82
defensores parecem refutar uma pretensa imposição do
objeto, como uma difusa interpelação do sujeito. Cria-se um
nível de solução para esses dois ‘defeitos’ metodológicos,
um nível arbitral em que o outro é, ao mesmo tempo,
nosso parceiro – falamos numa voz plural que não é minha,
nem sua (mas antes nossa) –, mas também nosso juízo –
avaliamos sob a pressão do outro, sob os ecos da voz do outro.
É possível que essa socialização dos pontos-de-vista seja,
de fato, uma alternativa para a aporia gerada pela incerteza
entre o subjetivo e o objetivo, mas certamente ela precisa
se mostrar com uma clareza maior em termos operacionais
a serem incorporados nos processos de análise. Categorias
como intersubjetividade, compartilhamento intersubjetivo,
co-construção, interpretação conjunta, entendimento
mútuo (e variações possíveis) podem ter um aproveitamento
produtivo para justificar muitas das nossas experienciações,
muitos dos nossos processos de análise e, por isso mesmo,
devem ser acolhidas em nossas reflexões, mas não estou
convencido da extensão, quase sem limites (sem pudor
seria um tanto deselegante) em que são evocadas (às vezes
até intimadas) para, supostamente, resolver problemas de
análise. Em geral, nos processos de análise precisamos mais
do que truísmos e declarações de boas intenções: quaisquer 10 anos do Posling – CEFET-MG
categorias de análise precisam ser submetidas a provas duras,
ou, nos termos atuais e mais amenizados que retomo abaixo,
elas precisam ser naturalizadas.

5. Novas confrontações epistemológicas


O amplo desenvolvimento de teorias e de abordagens em
certos campos do conhecimento tem passado por certo tipo
de avaliação que já não se enquadra mais naquilo que pensava
Kuhn quando formulou o conceito de paradigma, isto é,

83
“... realizações científicas universalmente reconhecidas que,
por um período, proveem problemas e soluções modelares
para uma comunidade de praticantes” (1975, p. 67). Kuhn
atribuiu ao paradigma uma posição importante no cenário
cientifico seja enquanto uma avaliação de manifestações
no campo da ciência, seja enquanto um diagnóstico de
formatação de novos projetos de conhecimento. Consenso e
convergência de pensamento em termos de modelos globais
de fazer ciência, estabilidade de formulações e concepções
num determinado período de desenvolvimento das atividades
científicas tornaram-se dois parâmetros importantes para a
discussão da ciência a partir do conceito de paradigma.

Embora não possamos descartar a existência local de


paradigmas em muitas práticas científicas, é evidente
que hoje estamos convivendo com uma dispersão de
modelos que atendem, de forma mais adequada, ao próprio
desenvolvimento do conhecimento e que os ideais traçados
por Kuhn precisariam ser repensados em alguma extensão.
Em muitos campos do saber a ideia de um modelo hegemônico,
aquele que atenderia às exigências de um paradigma, deixou
de ser o critério essencial para o fazer científico, até mesmo
pela presença constante das abordagens transdisciplinares.
Grande parte das categorias que implementa a descoberta e a
revisão de muitas formas de conhecimento, nos mais diversos
campos, são nômades, transitam de um lugar para outros;
mantêm traços em comum, mas também absorvem traços
locais nos lugares onde se alojam.

Nesse momento, todavia, isolo as reflexões sobre novos


paradigmas – nome atribuído a modelos multidisciplinares
– para realçar duas questões que me parecem se ajustar
melhor a esse novo devir do fazer ciência e que evidenciam

84
uma sequência mais natural com os problemas discutidos até
aqui. Trata-se da naturalização de uma categoria conceitual
e da necessidade de uma convivência com orientações
disjuntivistas. Não farei uma discussão detalhada e muito
documentada das duas questões, já que possuem uma
extensão que extrapola em muito os objetivos desse texto.
Uma reflexão em detalhes implicaria até mesmo uma avaliação
sob que condições devemos conceber uma e outra orientação
e até mesmo decidir se são elas compatíveis num mesmo
processo de análise. De modo ainda resumido, gostaria de
ressaltar apenas a sua importância para os problemas que
discutimos ao longo dessa reflexão.

5.1 Naturalização
Começo por uma citação de Grammont:

O que é naturalizar? Literalmente, naturalizar


um objeto epistêmico é fazê-lo natural no sentido
de fazê-lo concreto e apreensível para as ciências
empíricas.8 (2010).

Nessa formulação de Grammont, é importante destacar dois


aspectos fundamentais. O primeiro diz respeito ao conceito 10 anos do Posling – CEFET-MG
de ‘objeto epistêmico’, certamente diferente de um objeto
natural, excluído do campo dessa discussão. Por exemplo,
objetos epistêmicos como significado, representação, ação,
atenção, estados mentais, consciência, ação, intenção
ocupam, de forma central, discussões sobre o processo de
naturalização. Os três últimos dessa lista servem hoje de
base para uma ampla avaliação das condições sob as quais
devemos concebê-los como passíveis de uma análise empírica.
Em muitas circunstâncias essa avaliação é feita a partir de uma

8 “What is it to naturalize? Literally, naturalizing an epistemic object is to make it ‘natural’


in the sense of making it concrete and graspable by empirical sciences.” 

85
estreita correlação entre eles: quando uma ação é intencional
ou não? A intenção é um processo consciente ou não? Toda
ação intencional é consciente? Em torno de questões dessa
natureza circunda a naturalização, que comporta sua extensão
para outras categorias.

O segundo aspecto aponta para uma dimensão de análise: ‘fazê-


lo concreto e apreensível para as ciências empíricas’ é torná-lo
analisável, justificável através de um processo metalinguístico,
a partir do momento que passamos a vê-lo como um
objeto do mundo natural e não mais a partir de condições
transcendentais. Objetos dessa dimensão deixam de ser
explicados, portanto, por meio de condições de possibilidade
e se tornam objetos apreensíveis do mundo material. No
caso específico dos objetos acima citados, eles se tornam
objetos corporificados. É nessa dimensão que se justificam
muitas formulações sobre a natureza corporificada da
intencionalidade, da consciência, do significado, por exemplo.

De modo mais específico, essa formulação de Grammont


tem orientado muitas reflexões sobre a questão da
intencionalidade, ponto de partida dessa discussão e que tem
procurado fazer dela um objeto do mundo natural. Embora
não esteja em questão descartar toda tradição de que os
processos intencionais estejam vinculados a estados mentais,
a proposta de sua naturalização é fazer dela um fenômeno
corpóreo. Em outros termos, os conceitos são importantes
para o processo de construção do conhecimento, mas eles
precisam tornar-se operacionais do ponto de vista de uma
análise a ser desenvolvida. É preciso fazer deles algo funcional
em termos de procedimentos analíticos, mostrar como
operam enquanto instrumentos capazes de revelar algum
tipo de fato de ordem empírica.

86
Não são estas, entretanto, as únicas perspectivas apontadas
para a naturalização: Legrand (2010, p. 323), por exemplo,
cita três dimensões de importância para a sua compreensão
e aqui destacamos uma delas: a necessidade de superação do
dualismo cartesiano. De fato, a naturalização destaca também
o processo de integração do conhecimento, mostrando que
certas dicotomias deixam de ter importância nessa nova
perspectiva que se abre para o conhecimento.

Podemos tornar válida toda essa discussão para grande parte


dos conceitos que perpassam nossos campos teóricos, embora
não se possa desconhecer o fato de que alguns conceitos
se prestam mais ao posicionamento, à fundamentação
dos objetos. Ainda com essa restrição, deve-se assegurar,
na medida do possível, o seu valor funcional enquanto
uma categoria que se presta à análise de fatos empíricos.
Por exemplo, podemos pensar o conceito de enunciação
– um objeto epistêmico, na perspectiva de Grammont –
validando-o empiricamente como um fundamento essencial
da linguagem e, por isso, devemos reconhecer nele valores
operacionais que ele pode assumir enquanto um instrumento
de análise empírica. Se não podemos conceber a linguagem
fora dos processos da enunciação, então não podemos 10 anos do Posling – CEFET-MG
conceber também uma análise da linguagem que desconheça
esse processo. Naturalizar a enunciação, um desafio que foi
fomentado e concretizado pela Análise do Discurso, numa de
suas dimensões, significa atribuir a ela um papel operacional,
a partir de alguma categoria que faz dela um sistema natural,
como expressa Roy ao caracterizar as condições para um
sistema natural, uma das quais especifico abaixo em função
dos nossos propósitos.

87
1. Propriedade Natural de um sistema S – Uma
propriedade de um sistema S é natural se for incluída
em um conjunto de propriedades naturais primitivas
Pn1 ou se ela puder ser cientificamente explicada
pelas propriedades Pn1, possuídas por S. Neste caso,
ela é chamada de propriedade natural não primitiva,
que reunidas formam o conjunto de propriedades
Pn2.(...)9 (2010, p. 294).

A caracterização em (1) pode ser usada para mostrar como


a enunciação é um sistema natural: pela primeira parte da
disjunção (se for incluída em um conjunto de propriedades
naturais primitivas Pn1) proposta pelo autor pode-se
dizer que a enunciação se inclui no conjunto de categorias
naturais de locutor, voz, entonação, pessoa, tempo etc. que
são propriedades primitivas naturais para qualquer sistema
linguístico: assim, todo objeto discursivo se submete a elas.
Como condições primitivas para a enunciação, podemos
admitir outras categoriais que a compõem como também
naturais, considerando a segunda disjunção (ou se ela puder
ser cientificamente explicada pelas propriedades Pn1). Como
um acontecimento (discursivo) que se realiza aqui e agora
e que deixa de existir no instante seguinte, a enunciação se
explica por sua dependência inexorável do tempo e do espaço.
De fato, não podemos conceber qualquer evento enunciativo
fora das condições espácio-temporais de sua realização, pois
são elas que asseguram o seu valor experiencial histórico.

Há certamente muitos outros detalhes a serem avaliados


a partir da naturalização por representar ela mesma um
amplo programa de reavaliação dos nossos processos de
conhecimento, conforme podemos apurar em diversos títulos
apontados nas referências desse texto.

9 Natural property of a system S – A property of a system S is a natural one either if it is


included in a set of primitive natural properties Pn1 or if it can be scientifically accounted
for by the properties Pn1, possessed by S. In this case, it is called a nonprimitive natural
property, all of which form the set of properties Pn2. 

88
5.2 Disjuntivismo
O disjuntivismo representa uma postura mais alternativa
do que a naturalização: enquanto esta se fixa cada vez mais
como uma necessidade de que as categorias teóricas tenham
um reflexo sobre o mundo empírico, o disjuntivismo ainda é
algo mais controverso, por ter se tornado uma estratégia mais
afeita para uns processos perceptivos e de forma especial para
a percepção visual, campo em que sua discussão tem sido mais
intensa, mas não exclusivamente. Assim, o que representa
o disjuntivismo no contexto de análise em que estamos aqui
discutindo? Destaco um comentário de Ruben, de teor ainda
muito genérico sobre o tema:

(1) Parece para S que p, se e somente se ou (a) S vê


ou percebe que p ou (b) apenas parece para S como se
fosse p.10 (2007, p.227).

As formulações básicas do disjuntivismo seguem, em grande


parte, um padrão semelhante a esse, a partir das quais se
podem antever duas posições distintas: ou o sujeito mantém
uma experiência direta com o objeto/fato – percebe que p –,
como em (a), ou ele mantém uma relação indireta, ou até
mesmo imaginária com o objeto/fato – como se fosse p –, 10 anos do Posling – CEFET-MG
conforme (b). Por essa hipótese, muitos autores admitem que
ambas as percepções sejam válidas, já que integram a maioria
dos nossos atos perceptivos, o que muitas vezes, entretanto,
pode depender de circunstâncias sensoriais muito especiais.
Do ponto de vista da experiência visual, por exemplo, o olho
opera simultaneamente com as duas alternativas: operamos
percepções diretas sobre formas, tamanho, cores dos
objetos, mas operamos com ilusões (e até com alucinações)

10 “It looks to S that p iff either (a) S sees or perceives that p or (b) it merely looks to S as
if that p.”

89
na percepção desses mesmos objetos, quando os completamos,
ou os qualificamos de modo singular.

Um dos aspectos mais determinantes desse funcionamento


do aparelho visual é a nossa capacidade de (re)compor objetos/
cenas, mesmo que sejamos expostos diretamente apenas a
uma parcela de sua existência. Uma pessoa vista de costas
é percebida não apenas pelos traços que são diretamente
revelados – percebe que p –, mas também como tendo olhos,
nariz, boca e todos os outros traços que a visão frontal do seu
corpo revelaria – como se fosse p –. Um objeto que é visível
apenas pela metade, quando a outra parte estaria encoberta
por um obstáculo opaco, é percebido em sua totalidade. Em
algumas circunstâncias, pode ser que a nossa imaginação venha
falhar, mas isso seria uma exceção e não uma regra; logo, diante
da metade de uma bola, de uma mesa, de um livro percebido,
completamos cada um desses objetos com nossa imaginação,
correndo um risco muito pequeno de um equívoco. Para muitos
pesquisadores do campo da atividade sensório-visual, aquilo
que computamos como percepção visual é a média extraída
desses dois movimentos, ou seja, o que é dado à percepção direta
associado àquilo que é imaginado.

Se o disjuntivismo já se mostra justificável para algumas


atividades sensório-perceptivas, a sua meta, mesmo com as
polêmicas existentes em relação à sua posição frente a uma
teoria do conhecimento, é a de integrar essas duas formas de
percepção, admitindo a presença de ambas nos nossos atos
perceptivos. Com isso o disjuntivismo pretende superar as
dicotomias como res extensa (corpo) e res cogitans (mente),
como percepção direta e percepção indireta, como injunção
do sujeito e imposição de categorias do objeto. Além do
mais, podemos constatar o seu valor operacional diante de

90
narrativas para as quais os limites entre ser e parecer ser, entre
que-p e achar que-p, entre o factivo e o fictivo nem sempre
são passíveis de um reconhecimento explícito pelos processos
de análise. O disjuntivismo não opera com a necessidade de
impor um ponto de vista, recusando o outro ou de afirmar
uma divisão essencial entre mundos diversos, mas antes de
assumir o processo em sua totalidade reconhecendo duas
dimensões para a atividade perceptiva.

No caso específico da intencionalidade, o disjuntivismo


mostraria a necessidade de reconhecimento da
convencionalidade, mas sem se fixar em nenhuma delas, mas
antes mostrando a importância de uma passagem entre o
convencional e o intencional. O mesmo podemos subscrever
para tantas outras dicotomias: consciente/inconsciente,
mente/cérebro. Para quaisquer desses casos e de tantos
outros, o sistema perceptivo humano se vale de cada uma
das dimensões, sem muitas vezes ser possível a fixação de
um rigor territorial entre elas. Isso não implica assumir que
essas dimensões não possam ter abordagens específicas de
um ponto de vista teórico ou funcional. Talvez possamos
reescrever a fórmula de Ruben, citada acima, inserindo nela
um pendor para uma parcela dominante do convencional e 10 anos do Posling – CEFET-MG
outra dominante do intencional:

Parece para S que p, se e somente se ou (a) S vê ou


percebe, convencionalmente, que p ou (b) apenas
parece para S como se fosse, intencionalmente, p.
(RUBEN, 2007, p. 227).

No caso presente, a primeira parte da condicional


permanece intacta e passa a admitir que a disjunção (não-
exclusiva) absorva, na primeira alternativa, uma orientação
convencional e, na segunda, uma orientação intencional.

91
A fórmula, se já não era simples, agora se torna ainda mais
complexa não somente pela presença desses novos operadores
como também pela presença destacada da restrição feita
por disjunção. Isso poderia assinalar a existência de algum
fato que pudesse ter unicamente uma compreensão apenas
convencional como outro que fosse apenas intencional, o
que seria, em alguma extensão, reconciliar dicotomias que
estariam sendo exatamente contestadas.

REFERÊNCIAS
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integrative view in: GRAMMONT, F., LEGRAND, D. & LIVET,
P. Naturalizing intention in action. Cambridge, MA: The MIT
Press, 2010.
GREGORY, R. L.(Eds). The Oxford Companion to the Mind.
Oxford: Oxford University Press, 1987, p. 412.
GUTTING, G. Scientific methodology in: A companion to the
philosophy of science. Oxford: Blackwell, 2010, p. 463.
KOKSVIK, Ole. Intuition. In: Stanford Encyclopedia of
Philosophy, 2011. Disponível em: http://plato.stanford.edu/
entries/intuition/. Acessado em 12/09/2014.
KUHN, T. S. A prioridade dos paradigmas. In: A estrutura das
revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 67-76.
LEGRAND, D. Externalist naturalization of intention in
action. In: GRAMMONT, F., LEGRAND, D. & LIVET, P.
Naturalizing intention in action. Cambridge, MA: The MIT
Press, 2010, p. 323-336.
LEWIS, D. Philosophical Papers. Oxford: Oxford University
Press, 1983, p. 183.

92
ROY, Jean-Michel. Cognitive neuroscience of action. In:
GRAMMONT, F., LEGRAND, D. & LIVET, P. Naturalizing
intention in action. Cambridge, MA: The MIT Press, 2010, p. 294.
RUBEN, David-Hillel. Disjunctive theories of perception
and action. In: HADDOCK, A. & MACPHERSON, F. (Eds.)
Disjunctivism. Perception, action, knowledge. New York: Oxford
University Press, 2007, p. 227-243.
SANTIAGO. Charges Online – 27 de junho de 2000. Acesso
em: 30 de junho de 2000.

10 anos do Posling – CEFET-MG

93
LINGUAGEM, ENSINO E APRENDIZAGEM
NO ENCONTRO DESIGN EM
PARCERIA E DESIGN NA LEITURA
Jackeline Lima Farbiarz1

A socialidade do homem funda-lhe a moral: não


na piedade, nem na abstração da universalidade,
mas no reconhecimento do caráter constitutivo
do inter-humano. Não só o indivíduo não é
redutível ao conceito, mas também o social é
irredutível aos indivíduos, ainda que numerosos.
E pode-se imaginar uma transgrediência que não
se confunda com a superioridade pura e simples,
que não me conduz a transformar o outro em
objeto: é aquela que se vive nos atos de amor, de
confissões, de perdão, de escuta ativa.
Mikhail Bakhtin2

Preâmbulo
O presente texto resulta de participação na Mesa-redonda
Interdisciplinaridade nos estudos de Linguagens, Ensino,
Aprendizagem e Tecnologia durante o Colóquio Estudos de
Linguagens, em comemoração aos dez anos do Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Linguagens (Posling) do CEFET- 10 anos do Posling – CEFET-MG
MG. Na apresentação do referido Programa há destaque para
os “estudos das modalidades de ensino e de aprendizagem
de língua e de literatura com fundamentação nas diferentes

1 Doutora em Educação e Linguagem pela USP. Diretora do Departamento de Artes & Design
da PUC-Rio. Professora do Programa de Pós-Graduação em Design da mesma instituição.
Coordena o Laboratório Linguagem, Interação e Construção de Sentidos-Design. Desenvolve
pesquisas sobre o Design a serviço da Educação na perspectiva da Sustentabilidade Humana.
Orienta pesquisas sobre o Design como construtor e coautor de sentidos sociais. Atua na
formação do designer e do educador para a inclusão focadas na pedagogia das multiliteracias,
no design em parceria e na ludificação das práticas de ensino-aprendizagem. 
2 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997 [coletânea
de textos de 1919;1922;1936;1938;1979]. 

93
teorias da linguagem” e, em especial, para a “reflexão sobre o
papel de materiais didáticos e de tecnologias da informação e
comunicação no ensinar e no aprender línguas e literaturas”,
sempre nas perspectivas interdisciplinar, intersemiótica e
interdiscursiva3.

Sustenta-se aqui que pensar os estudos de Linguagens,


Ensino, Aprendizagem e Tecnologia na perspectiva da
interdisciplinaridade implica em familiarizar o leitor com
alguns dos lugares educativos escolhidos e ocupados,
entendendo esses lugares como:

Os lugares educativos, sejam eles orientados para


uma perspectiva de desenvolvimento pessoal,
cultural, de desenvolvimento de competências
sociais ou ainda para uma perspectiva de formação
profissional, acolhem pessoas cujas expectativas
e motivações a respeito da formação e dos
diplomas referem-se, tanto a problemáticas de
posicionamento na sua vida quotidiana e na sua
ação em nossas sociedades em plena mutação, como
às questões e problemáticas ligadas à compreensão
da natureza dessas próprias mutações. É por isso
que todo projeto de formação cruza, à sua maneira
e nas palavras de seu autor, com a temática da
existencialidade associada à questão subsequente
da identidade (identidade para si, identidade para
os outros).
(...)
Assim, a questão do sentido da formação, vista
através do projeto de formação, apresenta-se como
uma voz de acesso às questões de sentido que hoje
permeiam os atores sociais, seja no exercício de sua
profissão – eles se assumem como porta-vozes dos
problemas dos grupos sociais com os quais operam
–, seja nas vivências questionadas e questionadoras
de sua própria vida. (JOSSO, M.C. 2007, p.414).

3 Disponível em: https://sig.cefetmg.br/sigaa/public/programa/apresentacao.jsf?lc=pt_


BR&id=307. Acessado em 30 de setembro de 2020. 

94
De certa forma, os lugares educativos escolhidos e ocupados ao
longo de uma trajetória de vinte e cinco anos de profissão entre
salas de aula de ensino médio, graduação e pós-graduação que
levaram a participação na referida mesa-redonda subsidiam
o viés autoral adotado neste texto. Salienta-se aqui alguns
deles, constituintes de uma história de vida em formação:
a. bolsista de aperfeiçoamento científico (CNPq) na temática
Design Social pelo Departamento de Artes & Design da
PUC-Rio, após cursar a graduação em Letras na mesma
universidade;
b. professora de Língua e Literatura para turmas dos três
anos de ensino médio de uma escola da zona sul da cidade
do Rio de Janeiro e para um vestibular comunitário de uma
escola da central do Brasil, destinado à inserção de negros
na universidade antes das ações governamentais em prol do
sistema de cotas;
c. professora universitária na área de Comunicação e
Expressão;
d. pesquisadora que escolheu como tema de seu doutorado
refletir sobre a atuação do professor de Língua e Literatura,
a partir de sua própria atuação em sala de aula;
e. profissional inquieta que constituiu sua formação em Letras
10 anos do Posling – CEFET-MG
e Educação, mas que migrou para o Design como escolha de
pesquisa e atuação;
f. professora universitária vinculada a disciplinas como
Docência em Design, Procedimentos metodológicos em
Design; Design e Interdisciplinaridade, Comunicação,
Interação e Autoria em Design;
g. pesquisadora responsável pelo Laboratório Linguagem,
Interação e Construção de Sentidos no Design;
h. supervisora e orientadora de pesquisas, projetos e ações

95
no contexto da sustentabilidade humana, da Educação
multimodal e inclusiva pelo viés do design em parceria; e
i. diretora do departamento de Artes & Design da PUC-
Rio, responsável pelo novo Projeto Político Pedagógico da
graduação com uma nova ênfase em sustentabilidade humana.

A exposição desses lugares possibilita o compartilhar de


um percurso que se inscreve na soma e não na oposição;
um percurso inscrito no “e” em detrimento de um percurso
inscrito no “ou”. A passagem por diferentes campos
do saber com o pouso no Design foi consequência das
vivências em salas de aula que cobraram ao longo da jornada
(e continuam cobrando) um olhar que se concentrasse, para
além dos saberes, nos seres; seres-pessoas com suas múltiplas
inteligências, com seus multimodos comunicacionais,
com seus multiletramentos. Seres-pessoas inscritos na
diversidade, ansiosos pelo direito à expressão, mas que,
contraditoriamente, se ressentiam a cada encontro com
uma nova turma (ano após ano) de disciplinas dedicadas à
Língua e à Literatura que tanto na definição dos Parâmetros
Curriculares Nacionais vigentes à época quanto na Base
Nacional Comum Curricular atual sustentariam esse direito.

Trazendo à cena uma lembrança, a primeira vivência como


professora em sala de aula teve início no encontro com
o inesperado. Vivia-se o final dos anos 90, os estudantes
estavam com os fones dos walkmans nos ouvidos, ansiosos
para voltarem para casa ou por se encontrarem em alguma
lan house, a fim de se divertirem com Sonic e Super Mário nos
nintendos e play stations. As novas tecnologias emergiam sem
dar trégua e eram usadas como comparação pelos estudantes
em seus questionamentos acerca de processos de ensino-
aprendizagem, considerados por eles como desestimulantes.

96
Essa lembrança do primeiro dia como professora foi narrada da
seguinte forma na tese de doutorado Utopia e realidade na atuação
do professor de Língua e Literatura, defendida na Faculdade de
Educação da USP em 19974, que teve como um dos objetivos
específicos analisar redações com a temática “o adolescente e a
leitura”, elaboradas por estudantes do ensino médio.
Entrei na sala carregando o livro didático, escolhido pela
professora do ano anterior e o programa do curso, olhei
para os trinta e cinco alunos e dei-me conta de que eles
continuavam conversando, ouvindo walkman, trocando
fotografias, lendo revistas, etc... Percebi que alguns
agiam como se não houvessem reparado em minha
chegada, enquanto outros demonstravam claramente
que não achavam o fato de eu ter entrado em sala
determinante para que deixassem suas atividades
de lado e concentrassem-se na minha fala. Somando
a recepção antagônica com a minha inexperiência
enquanto professora, minhas primeiras palavras foram:
– Vocês têm quinze minutos para colocarem os
assuntos em dia, afinal, voltaram de férias hoje,
alguns não se veem há mais de dois meses, não
deve faltar o que conversar. Sei que é pouco, mas
pelo menos ajuda a controlar a curiosidade até a hora
do intervalo. Depois uso quinze minutos para me
apresentar e o resto do tempo para a gente trocar,
tirar as dúvidas e estabelecer os limites dos dois lados. 10 anos do Posling – CEFET-MG
Incerta quanto a eles terem ouvido ou não o que eu
havia dito, fui para o quadro negro, transformei a
minha fala em um exercício, sentei, peguei um livro
e fiquei lendo a esmo, enquanto esperava o tempo
passar. Aos poucos, os alunos foram mudando de
posição, alguns nitidamente inseguros quanto ao
que fazer, até que uma das estudantes gritou:
– E aí galera é pra gente conversar mesmo, ela tá
falando sério!
Logo em seguida a sua fala, ela retirou um álbum de

4 Mais detalhes em: https://repositorio.usp.br/item/001208648. Acessado em 28 de


setembro de 2020.

97
fotografias da mochila, virou a carteira para o lado
e começou a mostrar as fotos, comentando sobre a
viagem que havia feito à Bahia. Daí para a frente, a
aula transcorreu sem incidentes, quando avisei que
o tempo deles havia terminado, a mesma estudante,
que mais tarde concluí ser uma espécie de líder na
turma, reclamou que o espaço era pouco, mas, em
seguida complementou:
– Tudo bem, pelo menos é alguma coisa. 
Como considerei que a aula havia transcorrido bem,
repeti o formato com as turmas seguintes daquele
dia, até que ao chegar à porta da sala-de-aula da
primeira turma após o recreio, uma das alunas foi
logo dizendo: 
– Você também vai deixar a gente conversar, né? Não
vai sair dando matéria, não. A gente também precisa
matar saudades! 
Pega de surpresa, eu respondi que eles já haviam
conversado no recreio, mas, em seguida, afirmei
que daria os quinze minutos, pois as outras turmas
também tiveram o recreio para colocar os assuntos
em dia. No dia seguinte, no elevador da escola, um
dos alunos comentou, sem me olhar: 
– Legal a aula ontem. Foi a primeira vez que deram
um tempo pra gente. 
Depois saiu sem dar-me a chance de responder.  
Hoje, lembro-me de que, naquele momento, achei
engraçado que a aula legal não foi fruto de nenhuma
programação prévia, não foi o atendimento a
uma estratégia de ensino consciente, foi apenas
a consequência de meu desconforto frente a uma
turma que se apresentava diferente de minhas
expectativas. Recordo-me que quando vi aqueles alunos
desorganizados, ignorando-me, senti necessidade de
ganhar tempo, de ter algum momento para organizar
minhas ideias e ver o que fazer. No instante em que os
vi, só tinha a certeza de que o que eu havia planejado
falharia, de que discutir o programa do ano letivo
não despertaria interesse e de que a possibilidade de
interação seria mínima. Daí a opção por dar tempo
para ganhar tempo. (FARBIARZ, J.L., 1997, p.33-34).

98
A experiência do primeiro dia de aula despertou alguns
conceitos que foram sendo solidificados durante os anos
junto ao ensino médio. Logo de início, foi possível perceber,
por meio da vivência e do relato de outros professores que
estavam ingressando na profissão, que entre o aluno que
se imagina na universidade e o que se encontra na prática
existe uma distância enorme. Na busca de referências para
a compreensão da situação, a tese de Lima (1996) destacava
àquela época a dificuldade da universidade em preparar o
aluno de magistério para o como fazer. Em seu ponto de vista,
embora conceitualmente os professores recém-formados
formulassem concepções próximas a modelos de ensino-
aprendizagem que visassem a reconstrução do conhecimento
entre professor e aluno com vistas a uma aprendizagem
potencialmente autônoma, as práticas identificavam-se com o
modelo tradicional de ensino, incluindo características como:

• ênfase na transmissão do patrimônio cultural;


• preocupação com a quantidade de informações;
• artificialismo dos programas, deslocados da realidade;
• verbalismo;
• verticalização da relação professor;
• despreocupação com as relações aluno-aluno; 10 anos do Posling – CEFET-MG
• ênfase no produto da aprendizagem; e
• avaliação como aferição deste produto. 

Os anos no magistério, a busca por uma formação


continuada, o encontro com a pesquisa e as trocas com
alunos e orientandos trazem significados para a revisita
àquele instante. Aquela aula se configurou como um
momento de autorrespeito que propiciou o respeito mútuo,
necessidade primeira para o estabelecimento de interações.
Várias realidades se encontraram e, em algum momento,

99
acordaram, por meio de modos comunicacionais diversos,
concessões em favor da soma e, consequentemente, em
detrimento de oposições. A aula não teve a ênfase no modelo
tradicional tal qual anteriormente caracterizado, apesar
disso quase acontecer no tempo de aula pós-recreio, caso a
escuta ativa tivesse sido descartada. O quase embotamento
da possibilidade de interação construída no encontro com
o inesperado, ganha também em Lima (1996) sustentação.
A autora deixava – já naquela época – como alerta que entre
os diferentes modelos de ensino-aprendizagem ofertados nas
licenciaturas, e conceitualmente apreendidos, as vivências
dos futuros professores – ainda como alunos, ancoradas em
relações de ensino-aprendizagem construídas em modelos
tradicionais – acabam por prevalecer, sobretudo aquilo que
eles vivenciaram no lugar daquilo que lhes foi narrado, mas
não experimentado.

Se Lima nos traz o contexto de professores, os alunos daquela


turma trazem pistas sobre seus contextos nas falas “ela tá
falando sério”, “pelo menos é alguma coisa”, “foi a primeira vez
que deram um tempo pra gente”, “foi legal”. Em retrospectiva,
a aceitação mútua daquela primeira aula sintetizada em um
processo que caminha do desconforto inicial para a ação,
da ação para a acomodação, da acomodação para a reação
de aceitação parece se circunscrever numa forma de olhar
situada na pessoa, não no estudante ou no aluno, não no
indivíduo ou no sujeito, mas no encontro entre seres-pessoas
com suas histórias de vida, seus repertórios, seus esquemas
de conhecimento, conforme destacam Spink & Medrado:

A pessoa, no jogo das relações sociais, está inserida


num constante processo de negociação, desenvolvendo
trocas simbólicas num espaço de intersubjetividade, ou
mais precisamente, de interpessoalidade. (1999, p.55).

100
Após esse extenso preâmbulo, em suma, o compartilhar dos
lugares educativos, o reviver de uma experiência profissional
são as bases para a apresentação do objetivo do presente
texto, isto é, o refletir sobre a abordagem metodológica design
em parceria5 no encontro com o design na leitura como um
ato responsável (BAKHTIN, M, 2017 [1920]) ancorado não
na identificação, mas sim no reconhecimento (RICOUER,
2006) como possibilidade de âncora para os estudos de
Linguagens. Para tanto, adotamos um percurso metodológico
que se divide em duas partes. Na primeira, há o uso de um
texto literário para levantarmos preceitos fundamentais da
referida abordagem. Na segunda, apresenta-se o resultado de
um projeto desenvolvido junto a agentes de saúde indígenas
da Aldeia de Paraty – RJ/Brasil6, colocando-o em diálogo com
os preceitos da soma design em parceria/design na leitura.

Parte-se do pressuposto de que a contemporaneidade exige


do Design ações de tradução que oportunizem a constituição
de objetos/sistemas/serviços políticos novos, inclusivos,
multiculturais, multimodais e multissensoriais, sustentados
na convivencialidade como uma filosofia do ato responsável.
Consequentemente, entende-se na soma Design-Educação
um caminho possível para o reconhecimento de seres-pessoas, 10 anos do Posling – CEFET-MG

5 Detalhamento da abordagem metodológica “design em parceria” pode ser acessado em:


(a)https://www.youtube.com/watch?v=vLm4WnYK2k0;
(b)http://www.pdc2020.org/wp-content/uploads/2020/06/Design-em-Parceria-
experie%CC%82ncias-de-ensino-de-projeto em-design-fundamentadas-na-
participac%CC%A7a%CC%83o-e-no-dia%CC%81logo.pdf; e
(c) http://www.dbd.puc-rio.br/pergamum/biblioteca/php/mostrateses.
php?open=1&arqtese=1712442_2019_Indice.html, especialmente o capítulo 2, acessados
em 30 de setembro de 2020. 
6 Parte integrante da dissertação de mestrado Livro de Guarani feito por Juruá. Reflexões acerca
do design do livro e da leitura a partir da escolarização dos agentes de saúde Guarani, de Ricardo
Artur Pereira de Carvalho, defendida no Programa de Pós-Graduação em Artes & Design da
PUC-Rio em 2007. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/10352/10352_1.
PDF. Acessado em 29 de setembro de 2020. 

101
para a negociação de trocas simbólicas, para o oportunizar de
expressões responsáveis inscritas na diversidade.

Um modo de tramar
No livro Guilherme Augusto Araujo Fernandes7 – classificado na
categoria Literatura Infantil pela Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil sediada no Brasil –, Mem Fox e Julie Vivas,
respectivamente autor e ilustradora, abordam a temática
da memória. Na contracapa do livro há a indagação “O que
é memória?”, cuja resposta é assinada pela editora do livro
(Brinque-Book), que compartilha com o leitor:

Essa questão aparentemente complicada é tratada


aqui de forma simples e carinhosa, através da visão
de uma criança. Uma comovente história de amizade
entre um jovem menino e uma senhora que já não é
mais tão jovem assim.

Interessa aqui entender o que o leitor aprende com o


protagonista Guilherme Augusto Araujo Fernandes e o
quanto o percurso do protagonista dialoga com a abordagem
metodológica design em parceria desenvolvida na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio/Brasil.
Como se desenrola a história? Que informações básicas ela
divide conosco? Que inferências essas informações ativam?
• A primeira informação que recebemos é a de que Guilherme é
um menino novo que mora ao lado de um asilo e que “conhece
todo mundo lá”.
• Nossa primeira inferência pode ser a de que Guilherme
escolheu o extra-muros em lugar do intra-muros, ou nas
palavras do prof. José Luiz Mendes Ripper (um dos fundadores

7 Trechos do livro são transcritos ao longo deste artigo sem que voltemos a apresentar sua
referência bibliográfica. 

102
da abordagem metodológica em Parceria na perspectiva da
PUC-Rio)8, escolheu “ir ao encontro de gente”9 em detrimento
de ficar confinado em seu espaço particular.
• A segunda informação que recebemos é a de que “ele gostava
da Sra. Silvano que tocava piano”; ele ouvia o contador de
histórias, Sr. Cervantes. Ele brincava com o Sr. Waldemar
que “adorava remar” e ele admirava a voz de gigante do
Sr. Possante.
• Nossa segunda inferência pode ser a de que Guilherme escolheu
o sim em detrimento do não, isto é, ele escolheu observar as
pessoas no contexto a partir do que existe em detrimento
do que não existe, a partir da potência em detrimento da
impotência. Essa inferência se fortalece quando entendemos
que essas pessoas estão em situação de asilo, são idosas
e carregam, pelo lugar em que vivem e pela idade que
possuem, “pré-conceitos” que as colocam no lugar daquelas
que precisam estar sob proteção, daquelas cujas idades as
limitam. Mais uma vez aqui, nosso protagonista dialoga com
um preceito da abordagem design em parceria, a observação
do outro, do ser-pessoa e não a busca do si mesmo no outro.
• A terceira informação que recebemos é a de que, apesar de
Guilherme Augusto Araújo Fernandes conviver com cada
morador do asilo, a partir da potência de cada um, ele tinha 10 anos do Posling – CEFET-MG
preferência pela Sra. Antônia Maria Diniz Cordeiro, pois ela
“também tinha quatro nomes como ele”, sendo então a sua
confidente.
• Nossa terceira inferência pode ser a de que Guilherme faz

8 Inicialmente a abordagem metodológica design em parceria foi denominada Design ou


Desenho Social na PUC-Rio. Os primeiros ensaios da abordagem ocorreram no ano de 1978
junto à disciplina Planejamento Projeto e Desenvolvimento I do então curso de graduação
em Desenho Industrial da universidade. 
9 O livro Instantâneos em Interação, exemplar único, tem como base um conjunto de
entrevistas fornecidas pelo prof. José Luiz Mendes Ripper a Jackeline Lima Farbiarz.
Ambos compartilham a autoria do livro, a partir do qual trechos da fala do prof. Ripper são
utilizados neste artigo. 

103
escolhas, baseando-se em um ponto de partida comum a
dois, mesmo que singular. Guilherme é novo, a Sra. Antônia é
velha. Guilherme mora numa casa com os pais, a Sra. Antônia
mora em um asilo. Guilherme circula no extra-muros, a
Sra. Antônia habita o intra-muros. Guilherme é um, a Sra.
Antônia é outro, mas mesmo na diferença há um em comum;
ambos têm quatro nomes. Em comum referenciado em suas
identidades constitutivas, potencializado na convivência de
ambos. Em suma, mais um preceito da abordagem design em
parceria: são as identidades que constituem os seres-pessoas,
assim qualquer escolha pressupõe o respeito a cada identidade
não no sentido do fortalecimento de uma em detrimento
da outra, mas no sentido do reconhecimento de que elas se
constituem, de fato, nas relações/negociações.

Com estas três informações, encerra-se a introdução do livro


Guilherme Augusto Araújo Fernandes. O leitor vive, por meio
da narrativa verbo-visual, um somatório de experiências,
com vistas ao estabelecimento do pertencimento. Ele passa
a conhecer as personagens, entende suas singularidades, e as
percebe como seres-pessoas potentes e ativas.

Mas, a partir desse ponto, inicia-se o conflito a ser desenvolvido


na trama, por meio de mais duas informações compartilhadas
com o leitor:

• A quarta informação que recebemos é a de que Guilherme,


já não mais no contexto extramuros asilo, mas no contexto
intramuros sua casa, ouve uma conversa entre os pais que
caracterizam D. Antônia como uma coitada que está perdendo
a memória. Percebemos também aqui que diferente dos seus
pais que atribuem um juízo de valor negativo à situação de
D. Antônia (ela é uma coitada, pois está perdendo a memória),

104
Guilherme não foca a sua atenção na adjetivação “coitada”,
mas sim no substantivo memória, naquilo que constitui os
sujeitos, ao perguntar aos pais “o que é uma memória?”.
• Nossa quarta inferência pode ser dividida em duas partes.
Na primeira, circular entre o intra-muros e o extra-muros
amplia as formas de olhar. Guilherme soma, ao seu olhar
sobre D. Antônia, o olhar de seus pais. Na segunda, conviver
potencializa o ver. Guilherme entende que junto ao olhar
de seus pais está a sua “com-vivência” com D. Antônia. Ele
conviveu com D. Antônia e sabe que ela não é uma coitada.
Ela é inclusive sua confidente. Então não há espaço para pré-
julgamentos depreciativos na ação de Guilherme, mas há
espaço para ele entender que esses pré-julgamentos existem
no extramuros, estão dados, participam do processo de
construção de identidades. Ele reconhece o que os outros
dizem que ela não tem, ele reconhece o que ela tem (ela é
capaz de escutar confidências) e ele foca no que é o seu direito
inerente: a memória. Assim, afastando-se do julgamento
depreciativo, Guilherme retira D. Antônia do lugar da
exclusão, do isolamento, desfavorecendo o sentimento de
piedade. Mais uma vez o encontro com outro preceito da
abordagem metodológica design em parceria; conviver no
lugar de antecipar ou pré-conceber, favorecendo a potência do 10 anos do Posling – CEFET-MG
ser-pessoa, sem ignorar a realidade inscrita no extramuros.
• A quinta informação que recebemos é a de que “Guilherme
Augusto quer saber mais” e a de que, para isso, ele sai em busca
de informações sobre o que é memória com as pessoas que
moram no asilo. Então ele consulta e escuta as respostas da
Sra. Silvano, do Sr. Cervantes, do Sr. Waldemar e acrescenta
à lista de pessoas com quem convive no asilo a Sra. Mandala.
Assim, recebe como respostas, de cada um a quem pergunta,
possibilidades diferenciadas de resposta: memória é algo
quente, antigo, caro, que faz rir, que faz chorar e que vale ouro.

105
Respostas estas obtidas por meio dos pares de D. Antônia, de
seu contexto de significações.
• Nossa quinta inferência pode ser a de que Guilherme sabe
que é preciso ouvir os outros, que a construção de sentidos
se dá entre e a partir de seres-pessoas em relação. No âmbito
da abordagem metodológica design em parceria, Guilherme
nos faz lembrar do antropólogo Roberto da Matta (1978),
em sua defesa de que é preciso “familiarizar o exótico e
estranhar o familiar”. As pessoas que habitam o asilo vivem à
margem da sociedade, não caracterizam o familiar, são exóticas e
D. Antônia, inclusive, é adjetivada como “coitada”. Mas
Guilherme circula entre intramuros e extramuros, questionando
verdades pré-estabelecidas, elegendo a pergunta com escuta
ativa, como ponto de reconhecimento.

Com mais essas duas informações, chega-se ao clímax da


trama. Dando continuidade à narrativa verbo-visual, o
leitor tem acesso ao percurso de escuta ativa de Guilherme,
percurso central para a sua tomada convivencial de decisão,
compartilhada com o leitor por meio de mais uma informação:

• A sexta informação que recebemos é a de que Guilherme, de


posse das respostas ouvidas, volta para o intramuros, a fim de
procurar memórias a serem compartilhadas com D. Antônia.
Ele pega sua marionete, a medalha deixada por seu avô, sua
bola de futebol e um ovo fresquinho. Uma memória que faz
rir, outra antiga que faz chorar, outra que vale ouro e outra
ainda quente, respectivamente.
• Nossa sexta inferência pode ser a de que Guilherme
busca alternativas que signifiquem/traduzam as respostas
escutadas. Não alternativas que partam exclusivamente dele,
mas alternativas oriundas de sua realidade, do extramuros,
que foram ativadas pela realidade de seres-pessoas que

106
habitam o asilo, o intramuros, em um encontro de realidades.
Ele se permite ativar, concretizar suas escutas, por meio de
sua relação com o extramuros, a fim de promover a memória
ativa de D. Antônia. Outra vez, mais um dos preceitos da
abordagem metodológica design em parceria é explorado aqui:
buscar alternativas que se constituam na relação eu-outro,
que se constituam entre pessoas, que partam do observado
e escutado, a fim de encontrar um eu-designer potente para
deixar emergir aquilo que tem lugar na relação, ou buscar
alternativas que não se constituam no eu ou no outro, mas
que traduzam a relação, encontrando significados nela.

Deste momento em diante, chega-se ao desfecho da trama,


por meio de mais uma informação:

• A sétima informação que temos é a de que Guilherme “vai


visitar Dona Antônia e dá a ela, uma por uma, cada uma das
coisas que colocou na sua cesta”, oportunizando assim o
ativar de memórias. Ele “procura, acha, lembra, coloca, pega”.
Ela “segura, escuta, pega, sorri, joga” e, na concretização de
cada ação, “lembra”. Lembranças diferentes das de Guilherme
que se encontram no direito ao reconhecimento.
• Advém daí nossa sétima e última inferência. Os objetos 10 anos do Posling – CEFET-MG
cuidadosamente selecionados por Guilherme constituem-
se como objetos de mediação entre passado e presente/
ausente e concreto, são escolhas derivadas do ir e vir, do
observar e escutar. Ganha forma aqui mais um dos preceitos
da abordagem metodológica design em parceria, os objetos,
sistemas e serviços em projetação são tomadas de decisão
oriundas de um conviver que se funda no reconhecimento
das diferenças, no encontro não do um ou do outro, mas
daquilo que signifique entre seres-pessoas, na relação, na
ação reflexiva-ativa.

107
O livro Guilherme Augusto Araújo Fernandes chega ao seu fim
com o seguinte texto: “E os dois sorriram e sorriram, pois
toda a memória perdida de D. Antônia havia sido encontrada
por um menino que nem era tão velho assim”. Ele serve de
ilustração para a exposição de preceitos fundamentais do
design em parceria, na perspectiva do curso de Design da
PUC-Rio, nos âmbitos da graduação e da pós-graduação,
fundado em 1974 e 1994, respectivamente. Em síntese,
poderíamos tangibilizar a abordagem metodológica design
em parceria por meio dos seguintes verbos de ação:

• visitar;
• observar;
• escutar;
• conviver;
• oportunizar;
• tangibilizar;
• experienciar;
• significar; e
• encantar (empatizar).

Processo cíclico de expansão, contração e síntese, de abertura


para o outro, visita ao si mesmo, de reconhecimento como
seres-pessoas e encontro com o novo; processo de eliminação
das identidades em prol da constituição dos reconhecimentos
(RICOUER, 2005). Assim, como expansão Guilherme visita
o asilo, observa e convive com as pessoas que nele moram e
experimenta junto com D. Antônia os objetos escolhidos para
compor sua cesta. Como processo de contração, Guilherme
escuta o ponto de vista de seus pais, encontra uma linha de
ação e tangibiliza possibilidades de encontro com a memória
de D. Antônia. E finalmente, como processo de síntese, na
convivência, Guilherme e D. Antônia significam memórias e
se reconhecem, oportunizando algo novo, no tecido tramado.

108
Recuperando a primeira experiência de sala de aula aqui
narrada como preâmbulo, poderíamos elencar:

• Percepção da recepção antagônica por parte dos estudantes


– expansão
• Entendimento dos estudantes de uma mudança no estado
de coisas – expansão (visitar; observar; escutar; conviver);
• “E aí galera é pra gente conversar mesmo, ela tá falando
sério!” - contração (oportunizar; tangibilizar; experienciar;
significar);
• “Tudo bem, pelo menos é alguma coisa” – síntese (significar;
encantar/empatizar);
• “Você também vai deixar a gente conversar, né? Não vai sair
dando matéria” – nova expansão(visitar; observar; escutar;
conviver);
• “Pega de surpresa, afirmei que daria os quinze minutos.” –
nova contração (oportunizar; tangibilizar; experienciar); e
• “Legal a aula ontem. Foi a primeira vez que deram um tempo
pra gente.” – nova síntese (significar; encantar/empatizar).

Outro modo de tramar


Objetivo e percurso
Se no tópico anterior, utilizamos como recurso didático, para
10 anos do Posling – CEFET-MG
ilustrar os preceitos da abordagem metodológica design em
parceria, tal qual desenvolvida na PUC-Rio, o livro de literatura,
classificado na categoria Literatura Infantil, Guilherme
Augusto Araújo Fernandes, nossa proposta neste tópico é tanto
significar alguns desses preceitos quanto relacioná-la com a
perspectiva do design na leitura nas reflexões em proposição.

Para tanto, tomamos como exemplo uma experiência


desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-graduação
em Design da PUC-Rio, especificamente no Laboratório

109
Linguagem e Construção de Sentidos no Design que integra o
referido Programa.

A experiência consistiu tanto no auxílio à produção dos


cadernos paradidáticos para o “Projeto de Escolarização dos
agentes de saúde indígenas”, promovido pela FUNASA e
desenvolvido no distrito de Patrimônio, em Paraty, quanto
na reflexão sobre a participação do designer no processo de
formação de escritores e leitores de cultura indígena e do
Design como campo de vocação interdisciplinar, em projetos
em que há a predominância da mescla de vozes/identidades
(CARVALHO, 2007).

O percurso metodológico compreendeu as seguintes etapas


que contemplam tanto a abordagem metodológica Design
em Parceria quanto a abordagem metodológica Design
Participativo:

a. Observação de encontros presenciais do Projeto. (Visitar e


observar)
b. Conversas com os diversos participantes envolvidos, isto é,
agentes de saúde indígenas, professores Guarani, professores
não índios, monitoras do curso, enfermeiras e membros da
equipe organizadora. (Escutar e conviver)
c. Análise dos cadernos paradidáticos existentes para a
prevenção de AIDS/DST pela Secretaria Estadual de Saúde
do Rio de Janeiro, voltado para o uso dos agentes de saúde
indígenas nas aldeias Guarani. (Oportunizar)
d. Produção colaborativa de caderno paradidático para a
prevenção de AIDS/DST pela Secretaria Estadual de Saúde
do Rio de Janeiro, voltado para o uso dos agentes de saúde
indígenas nas aldeias Guarani. (Tangibilizar)
e. Experimentação da produção colaborativa do material
produzido. (Experimentar)

110
f. Reflexão sobre o processo desenvolvido, os papéis do
designer no processo e sobre os lugares do Design em projetos
interdisciplinares. (Significar)

Durante o desenvolvimento de cada uma das etapas, os


principais desafios foram:

a. significar as expectativas, as “pré-visões”, os “pré-conceitos”


oriundos de um aluno (ser-pessoa) de pós-graduação em
Design (matriculado em uma universidade situada na Zona
Sul da cidade do Rio de Janeiro), de um orientador e de uma
co-orientadora (integrantes da mesma universidade) sobre
alunos (seres-pessoas) pertencentes à etnia Guarani, inscritos
no Projeto de Escolarização dos agentes indígenas;
b. reconhecer que a limitação projetual decorrente do produto
final “pré-definido” “caderno paradidático” tendia a desviar o
foco do aluno de pós-graduação/designer do encontro com
uma oportunidade de projeto no processo de reconhecimento
dos índios da cultura Guarani, de base oral, para a “pré-
configuração” de um produto caderno paradidático com
características conhecidas em sua identidade cultural de
estudante de escolas formais situadas na cidade do Rio de
Janeiro, de base escrita. 10 anos do Posling – CEFET-MG

Referenciais interdisciplinares fundamentais


Especialmente para ancorar as etapas de visita, observação,
escuta e convivência, Roberto da Matta (1978), Clifford
Geertz (1989) e Gilberto Velho (1978) foram referenciais
fundamentais:

Roberto da Matta sustentou o estranhamento do familiar


e a familiarização do exótico. A sala de aula do Projeto de

111
Escolarização, por exemplo, a princípio constituía-se como
elemento familiar, comum às realidades Aldeia em Paraty/
Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Quadro, mesa, cadeira,
material didático, professor, aluno, situação de interação de
ensino-aprendizagem. Em suma, sem um olhar observador e
uma escuta cuidadosos, sustentados na etnografia, o elemento
em comum “sala de aula” poderia propiciar a diluição do exótico
pelo aluno de mestrado, oriundo da zona sul da cidade do Rio
de Janeiro, planificando ou familiarizando pontos plurais.

Clifford Geertz sustentou a relativização das certezas nas


interações, ancorando a compreensão da lógica presente
nas relações observadas na busca pela perspectiva do nativo
e não na “pré-certeza” da perspectiva do pesquisador sobre
o nativo. E, enfatizando, mesmo assim, que a ancoragem
que se fundamenta na inclusão da perspectiva do outro,
por mais responsável que possa vir a ser, será sempre uma
interpretação, considerando ser a etnografia um trabalho de
natureza interpretativa.

Já Gilberto Velho fundamentou tanto a valorização de um


olhar e de uma escuta educados para as situações que se
apresentam, para a reflexão na ação quanto a comunicação
desse olhar e dessa escuta, fortalecendo o caráter processual e
procedimental das ações.

A título de exemplificação, constituiu-se como um aprendizado


nas etapas de visita e observação não inferir que os alunos
indígenas eram “maus alunos” ou “alunos dispersos” ou “alunos
desinteressados”, ou “alunos omissos”, por permanecerem
calados durante a aula, e, consequentemente, por não
interagirem oralmente com os professores. Foi preciso um
olhar e uma escuta fundamentados no design em parceria

112
para buscar compreender esse tipo de manifestação frente à
cultura deles e, consequentemente, os significados presentes
nas relações. Em observação e escuta, foi possível aprender
que, para os índios daquela etnia, interromper era sinônimo
de desrespeitar.

No que tange às etapas de oportunidade e tangibilização,


autores como Mikhail Bakhtin (1929 [2017]), José Luiz
Ripper (1978 [2012]), Jackeline Farbiarz (2012) e Roger
Chartier (1997) foram destacados por tornarem tangível
que a argumentação como linguagem é diferente da ação de
guerrear, implicando em vencer pelos argumentos com os
seres-pessoas em detrimento de vencer os seres-pessoas.
Assim, foram oportunizadas formas, no caso específico,
cadernos paradidáticos desenvolvidos, a partir da análise
de cadernos preexistentes com foco na prevenção AIDS/
DST, que participaram da composição do repertório do
pesquisador/designer, da observação, escuta e convivência
com as pessoas envolvidas no Projeto de Escolarização e,
em especial, com os índios guarani inscritos como alunos do
Projeto, usuários/interlocutores finais a quem os cadernos
didáticos se destinavam.
10 anos do Posling – CEFET-MG
Houve aqui uma grande diferença decorrente da limitação
projetual dos cadernos paradidáticos. Enquanto o menino
Guilherme, protagonista do livro Guilherme Augusto Araujo
Fernandes, abordado neste texto, teve a liberdade de escolher a
questão “O que é memória?” e de, a partir dela, se ressignificar
e oportunizar para a Sra. Antônia, pelo reconhecimento
eu-Guilherme (soma de vivências com Sra. Silvano, Sr.
Cervantes, Sr. Waldemar e Sra. Mandala) com ela-D. Antônia,
sua confidente, um objeto não pré-determinado de encontro,
o pesquisador/designer precisou partir de um objeto

113
pré-determinado. Com a limitação, defende-se aqui que,
embora muitos dos preceitos da abordagem metodológica
design em parceria tenham sido valorizados, o projetar “com”
seres-pessoas, com o parceiro de projeto, em busca de algo
constituído na relação (nem um nem outro, mas resultante do
evento comunicativo responsável/processo projetual), cedeu
lugar em momentos distintos.

Em um primeiro momento, a cessão se deu para o projetar


“para” o parceiro, na pré-definição de um objeto “estrangeiro”
em sua cultura, como pré-solução para um problema
identificado, e teve preceitos comuns a ambas as abordagens,
quando, mesmo diante da limitação projetual caderno
paradidático, buscou em parceria com os índios guarani
elaborar o caderno paradidático.

Por esse viés, o pensamento de Roger Chartier acerca da


forma como uma participante da construção de sentidos,
ao longo de uma relação/negociação, foi importante para
o entendimento de que muitas das dificuldades ligadas ao
ensino-aprendizagem, “pré-informadas” pelos representantes
da FUNASA, remetiam à dificuldade de apropriação dos
conteúdos por meio de um objeto “caderno paradidático”
tradicionalmente inserido na cultura não indígena, e
consequentemente distante do cotidiano do indivíduo
Guarani em situação de aprendizagem.

A pré-determinação “caderno paradidático”, entendida aqui


como uma limitação projetual, implicou em uma atitude
projetual que contemplasse questões anteriores: como
participar de um projeto onde um objeto estrangeiro a uma
cultura constituía-se como ponto de partida para as ações
junto aos membros daquela cultura? Como participar de um

114
projeto com foco em ensino-aprendizagem onde a resposta
para o material potencializador da aprendizagem está dada
pelo estrangeiro e não pelo real protagonista de sua história,
os agentes de saúde Guarani. E junto a isso, como ressignificar
o objeto caderno paradidático dentro da cultura Guarani, já
significado em suas versões anteriores por representantes
da FUNASA, respeitando uma cultura que tradicionalmente
privilegia a linguagem oral? De forma complementar, mas
fundamental, como potencializar a aquisição pelos Guarani
de uma nova prática social, a leitura, prática distante de sua
raiz, culturalmente sustentada na oralidade?

Foi então, com José Luiz Ripper (FARBIARZ, J. e RIPPER, J.:


2011), que se adquiriu o ensinamento de que as formas são
significadas e ressignificadas no processo de fazê-las, quando
constituem-se como expressão. Assim, se na abordagem
metodológica design em parceria, isso ocorre ao longo de
todo o processo projetual, no projeto desenvolvido pelo
pesquisador/designer, percurso similar foi adotado, com a
diferença de se direcionar ao evento comunicativo mediado
pelo objeto pré-determinado caderno paradidático em suas
versões preexistentes.
10 anos do Posling – CEFET-MG
Com isso, o olhar e a escuta ativa do pesquisador/designer
aprenderam que os desenhos dos índios são muito mais
diretos e assertivos do que os desenhos até então produzidos
para os cadernos desenvolvidos anteriormente. Os índios da
aldeia Paraty são literais na expressão visual. O olhar e a escuta
ativa aprenderam que os índios são orgulhosos de sua língua,
uma língua que possui uma gramática fundada na oralidade.
Assim os cadernos ganharam não apenas fotografias tiradas
pelos Guaranis, mas também ilustrações provenientes deles
mesmos, em respeito a sua tradição visual. Ganharam, ainda,

115
textos verbais híbridos, apresentados tanto em Guarani
quanto em Língua Portuguesa.

Em síntese, foi na convivência entre pesquisador/designer


e seres-pessoas indígenas em um contextos distintos
de formação, que as alternativas precursoras do projeto
gráfico final constituíram-se como modelos processuais,
que passaram a significar na ação, na convivência entre
professores e indígenas durante a interação com o objeto
caderno paradidático ressignificado na relação pesquisador/
designer-indíos em formação. Nas palavras de Alvares citadas
por Farbiarz e Ripper:

O processo de investigação pressupõe idas e vindas e


requer execução de inúmeros modelos e dispositivos,
que ao final, convergem a um determinado sistema
específico, trata-se, portanto, de um processo não
linear, onde cada modelo individualmente pode
contribuir ou determinar o próximo passo a ser dado
em direção a um objeto final. (ALVARES10, 2008, p.
14, apud FARBIARZ, RIPPER, 2011, p.63).

O ponto central a ser destacado neste tópico é a mudança de


rumo realizada no projeto durante a abordagem metodológica
de característica convivencial. Em síntese, se, a princípio, a
ação do aluno de pós-graduação/designer esteve limitada
ao projetar caderno paradidático para a prevenção de AIDS/
DST para o ensino-aprendizagem dos agentes de saúde
indígenas nas aldeias Guarani –, mantendo os conteúdos
fornecidos pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio de
Janeiro e, se concentrando no desenvolvimento do projeto
gráfico –, a valorização do projetar “com”, da experimentação
constante de modelos e dispositivos, preceito fundamental da

10 ALVARES, Luciano Rosa Alonso. Cúpula catenária de “fibrobarro” estruturado com bambu:
concepção e processo construtivo. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2008.

116
abordagem metodológica design em parceria, tornou possível
a significação de um objeto político novo, pensado em sua
totalidade, em ação de reconhecimento da cultura Guarani.

Para a constituição desse mencionado objeto político novo,


observação e escuta ativa foram mais uma vez indispensáveis.
Se o objetivo era a prevenção da Aids/DST, logo intrigou o
aluno de pós-graduação/designer o fato de os desenhos
elaborados pelos índios frequentemente incluirem garrafas
de bebida alcóolica e uma “vendinha” que se situava já fora
da aldeia. Com a escuta, ativa logo foi possível identificar que,
diferente do mote eleito para o conteúdo verbal dos cadernos
paradidáticos, a prevenção da relação sexual não segura, os
índios Guarani da Aldeia Paraty saíam da aldeia em busca de
bebida alcóolica e não de sexo, como imaginado. Mais do que
isso, era a consequência do excesso de bebida que levava os
índios Guarani a estabelecer relações sexuais com pessoas de
fora da aldeia, potencializando o transporte de doenças para
o interior da aldeia.

Visita, observação, escuta e convivência geraram uma


oportunidade de projeto integral, sem separação conteúdo
verbal/conteúdo visual e desenvolvido junto com os índios 10 anos do Posling – CEFET-MG
Guarani inscritos no Projeto.

Mais uma vez Mikhail Bakhtin, em Para uma filosofia do Ato


Responsável (2017 [1920]) e Estética da criação verbal (1997
[1929]), constituiu-se como alicerce para o design em parceria
e é fonte de inspiração para práticas de ensino-aprendizagem
constituídas no encontro com o outro, inscritas na empatia,
na intersemiose, nos interdiscursos. A defesa de Mikhail
Bakhtin por uma “filosofia prima” nos trouxe os fundamentos
para valorizar a reflexão na ação, base do design em parceria

117
apresentado por José Luiz Ripper e Ana Branco no final dos
anos 70 na PUC, em consonância com o pensamento de
Victor Papanek (1971).

Na perspectiva de Bakhtin, o ato dialógico tem sempre lugar


na arena discursiva pelo somatório de locutores singulares
com campos de visão diferenciados que congregam em si tanto
a determinação, fundamentada no espaço-tempo específico
em que se situam, quanto a relatividade, considerando que
a totalidade do que está sendo dito (comunicado) decorre
dos distintos campos de visão que os locutores ocupam,
em função de seus posicionamentos espaço-temporais
diferenciados. Assim, a significação do ato/processo resulta
da multiplicidade de visões11 que juntas ampliam a face visível
e compõem/configuram o ato da fala/objeto de design”.

Defende-se aqui que essa significação, inscrita numa mescla


de vozes complementares, requer um pesquisador/designer
e também um professor sustentado por uma filosofia do ato
responsável, entendendo essa filosofia como mais um preceito
da abordagem metodológica design em parceria. Nas palavras
de Bakhtin:

Qualquer que seja a tentativa de superar o dualismo


entre consciência e vida, entre o pensamento
e a realidade concreta singular é, do interior
do conhecimento teórico, absolutamente sem
esperança. Uma vez separado o aspecto conteúdo-
sentido do conhecimento do ato histórico de sua
realização, podemos sair em direção ao dever
somente por meio de um salto; procurar a ação-ato
cognitivo real no conteúdo-sentido separado dele é

11 Dialógicas e polifônicas, entendendo o processo como um mecanismo de interação


a partir do qual um texto revela outros textos e juntos, na soma de vozes, em diálogo,
constroem sentido. 

118
como tentar levantar-se puxando-se pelos cabelos.
Do conteúdo separado do ato cognitivo apropriam-se
suas próprias leis imanentes, com base nas quais ele
se desenvolve sozinho, autonomamente. Inseridos
neste conteúdo, consumado um ato de abstração,
estaremos à mercê de suas leis autônomas; mais
exatamente, cada um de nós não está mais presente
nele como ativo no sentido individual e responsável.
(BAKHTIN, 2017, p.49).

Um modo de dizer “por enquanto...”


Nesse percurso a reflexão sobre a abordagem metodológica
design em parceria como um ato responsável (BAKHTIN,
M., 2017 [1920]) de reconhecimento (RICOUER, 2005)
esteve ancorada em dois exemplos escolhidos: o primeiro,
inicialmente desconfortável, o dia de aula de uma professora
para alunos de ensino médio que serviram para reverenciarmos
alguns autores fundamentais na sustentação da abordagem
metodológica design em parceria. Além de Bakhtin e Ricouer,
dialogamos aqui com Geertz, Da Matta, Oliveira, Ripper,
Branco e Farbiarz, todos apresentados como validadores
de um olhar responsável e de uma escuta ativa pautada na
convivencialidade, no viver “com”, somando múltiplas vozes,
multimodos, múltiplas sensorialidades e, fundamentalmente, 10 anos do Posling – CEFET-MG
participando da constituição de um objeto político novo,
nem um nem outro, mas emergente no ato, ou no evento
comunicativo em ação.

Nesse sentido, defende-se aqui uma convivência entre


os estudos de Linguagens e o Design, no sentido amplo
do viver com o outro, do somar em prol da interação, da
interlocução e da parceria, com especial atenção para ações
interdisciplinares em situações de ensino-aprendizagem
localizadas na leitura, na comunicação e na expressão. A soma

119
das abordagens e processos metodológicos de projetação em
Design, sobretudo, da abordagem design em parceria, cujos
primeiros projetos concretizaram-se ainda na década de 70
à pedagogia das multiliteracias (COPE e KALANTZIS, 2000),
com a incorporação da diversidade, do pluralismo, isto é, das
múltiplas camadas dos mundos que conformam os sujeitos
contemporâneos. Os alunos são conduzidos a perceber,
transformar e recriar sentidos, movimentando-se de um
contexto socialmente inscrito para outro por meio de práticas
situadas, instruções abertas e enquadramento crítico, para a
vivência em uma prática transformada que recria sentidos,
colocando em funcionamento o sentido transformado em
outros contextos ou situações sociais.

A sustentação da pedagogia das multiliteracias pelo design


em parceria no somar de abordagens metodológicas
justifica-se por sua atenção à inclusão discursiva em seus
mais variados meios e modos comunicacionais, tanto
pela inserção dos saberes que cada estudante traz como
potencialmente significador em sua trajetória de vida (comum
a ambas as abordagens), quanto pela potência adquirida no
desenvolvimento de objetos (materiais, recursos, tecnologias),
sistemas e serviços que sejam mediadores-tradutores das
relações/negociações vivenciadas nas situações de ensino-
aprendizagem, uma vez que o ato de projetar em parceria é
um exercício de tradução, conforme conceituado em 1923 por
Walter Benjamin.

Da mesma forma como os cacos de um vaso, para


serem recompostos, devem encaixar-se uns aos
outros nos mínimos detalhes, mas sem serem iguais,
a tradução deve, ao invés de procurar assemelhar-se
ao sentido do original, conformar-se amorosamente,
e nos mínimos detalhed, em sua própria língua, ao

120
modo de visar do original, fazendo com que ambos
sejam reconhecidos como fragmentos de uma língua
maior, como cacos são fragmentos de um vaso.
(BENJAMIN, 2011).

Tal condição se consolida pela potencialização do pensar


criticamente sobre a práxis, condição basilar para uma atuação
profissional ética, cidadã e responsável. Isso, na certeza de que
objetos, sistemas e serviços constituem-se nos atos/na mescla
de vozes, cabendo sempre serem entendidos na perspectiva
do “por enquanto”, com vistas a uma formação promotora da
constituição de práticas discursivas próprias.

É por esse viés que o presente texto não se encerra, ele se


mantém à espera de novos porvires, que se constituem no
que o Laboratório Linguagem, Interação e Construção de
Sentidos no Design (LINC-Design) cunhou como Design na
Leitura um projeto político de formação dos seres-pessoas
em relação/negociação, mediada por objetos, sistemas e
serviços. Uma formação interdisciplinar que as capacitem a
agir criticamente na sociedade a partir de diferentes modos
comunicacionais e a produzir sentidos na multimodalidade,
tornando-se assim agentes de mudanças dos sistemas
ideológicos sociais circundantes. 10 anos do Posling – CEFET-MG

121
REFERÊNCIAS:
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN,
Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G.
G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997, [1929].

BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do Ato Responsável


(1920–1922). Trad. Valdemir Miotello e Carlos Alberto
Faraco. 3ª ed. São Carlos: Pedro & João Editores, 2017 [1920].

BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem (1915-


1921). São Paulo: Livraria Duas Cidades/Editora 34, 2011.

CARVALHO, Ricardo Artur Pereira. Livro de Guarani feito


por Juruá. Reflexões acerca do design do livro e da leitura a
partir da escolarização dos agentes de saúde guarani. 2007.
108 f. Dissertação (Mestrado em Design). Programa de Pós-
Graduação em Artes & Design, PUC-Rio, 2007.

CHARTIER, Roger. Práticas da leitura (Org.). Trad. Cristiane


Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

COPE, B. & KALANTZIS, M. (Eds.) Multiliteracies. Londres &


Nova Iorque: Routledge, 2000.

DA MATTA, Roberto. O oficio de etnólogo, ou como


ter anthropological blues. Boletim do Museu Nacional:
Antropologia, n. 27, maio de 1978.

FARBIARZ, Jackeline Lima. Utopia e realidade na atuação do


professor de língua e literatura. 2001. 306 f. Tese (Doutorado
em Educação). Faculdade de Educação, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2001.

122
FARBIARZ, J. L.; RIPPER, J. L. M. Instantâneos de interações.
Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010.

FARBIARZ, J. L.; RIPPER, J. L. M. Design em parceria:


visitando a metodologia sob a perspectiva do Laboratório
de Investigação em Living Design da PUC-Rio. In: WESTIN,
D.; COELHO, L. A. L. (Org.). Estudo e prática de metodologia
em design nos cursos de pós-graduação. Rio de Janeiro: Novas
Ideias, 2011.

FOX, M. Guilherme Augusto Araujo Fernandes. Ilustrado por Julie


Vivas. Trad. Gilda Aquino. São Paulo: Brinque-Book, 2009.

GEERTZ, Cliford. A interpretação das culturas. São Paulo: LTC,


1989 [1973].

JOSSO, Marie Christine. A transformação de si a partir da


narração de histórias de vida. In: Educação. Porto Alegre/RS,
ano XXX, n. 3 (63), p. 413-438, set./dez. 2007.

LIMA, Emilia Freitas. Começando a ensinar: começando a


aprender? 1996. Tese (Doutorado em Educação). São Carlos.
Universidade Federal de São Carlos. Tese de Doutorado. 1996.

PAPANEK, V. Design for the real world – human ecology and social 10 anos do Posling – CEFET-MG
change. Chicago, EUA: Academy Chicago Publishers, 1971.

RICOUER, Paul. Percurso do Reconhecimento. 2ª. ed. São Paulo:


Edições Loyola, 2006.

SPINK, Mary Jane P.; FIGUEIREDO, Pedro; e BRASILINO,


Julliane (Orgs.). Psicologia Social e pessoalidade [on-line]. Rio de
Janeiro; Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; ABRAPSO, 2011.

VELHO, Gilberto. Observando o familiar. In: NUNES, Edison


de O. A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

123
EDIÇÃO, UM PROCESSO EM ABERTO:
exercícios, projetos e construção
de espaços
Rogério Barbosa da Silva
Wagner Moreira

“cada página virada é o mais puro


movimento do pensamento que encontra
nesta superação a sua melhor imagem.”
(Armando Freitas Filho, Raro Mar)

Introdução
As considerações apresentadas neste texto foram em parte
apresentadas no Colóquio comemorativo dos 10 anos do PPG
em Estudos de Linguagens em 2018.

Com elas pretendemos compor um breve panorama de


elementos norteadores da pesquisa e da formação dos
bacharéis e pós-graduados no curso de Letras em edição
e no PPG em Estudos de Linguagens, tendo em vista a 10 anos do Posling – CEFET-MG
instituição de um campo de estudos no CEFET-MG. Para
isso, apresentamos, no primeiro tópico, um pequeno esboço
ensaístico estabelecendo relações entre a matéria, os objetos e
a abertura para o pensamento, embasando a ideia de que o agir
pensa pelas mãos (o fazer criativo e editorial) e pelos gestos
(a instauração crítica e os processos do fazer nos campos de
saber). Em seguida apresentamos, de maneira sintética, um
panorama que abrange o campo aberto do que temos entendido
por edição na escolha de projetos de pesquisa, uma sinopse,
ainda que não detalhada adequadamente e nem devidamente
debatida neste texto, considerando-se os vários aspectos

125
que essas escolhas encerram. Para isso, seria necessário
certo esforço quase pormenorizado das metodologias e
dos caminhos de cada um desses processos investigativos.

Um pensar: matéria, forma e gesto


Poderíamos começar a discussão desse tópico refletindo
sobre a diversidade da vida tipográfica com Roland Barthes,
quando, nas entrevistas publicadas em O Grão da voz, fala
da relação “quase maníaca com os instrumentos gráficos”
(Cf. BARTHES, 1981, p. 175). Nesse texto-entrevista,
Barthes aborda aspectos vários que recobrem os textos,
do desejo que se converte em pulsão gráfica ao objeto
caligráfico, e às cópias, as quais implicam tanto a ideia do
poema datilografado (as práticas correntes até os anos
1970/80, antes da invasão dos computadores pessoais)
quanto ao posterior processo de impressão dos livros. Deste,
ele trata muito pouco neste seu texto, uma vez que está
mais preocupado com os gestos do escritor. Mas entre os
vários aspectos ali ressaltados abrangem-se os métodos,
as regras ou protocolos e os instrumentos da escrita,
enquanto práticas de trabalho. Barthes fala da caneta.
Da Bic que compõe a “escrita chapada”, a que ele define
como uma escrita utilitária, instrumental, “transcritiva do
pensamento”. E das boas canetas, as de ponta de feltro de
origem japonesa, as de pena como a “sergent-major”, aquelas
que, essencialmente, lhe permitiriam “essa escrita doce à qual
me sinto inteiramente ligado” (Cf. BARTHES, 1981, p. 176).

A recusa da máquina de escrever vista por Barthes como que


um desconforto dessa estética veloz que se oporia, num certo
sentido, ao ritual do escrever, como o copista medieval que
medita antes de entregar o trabalho (Cf. BARTHES, 1981, p.
176), e que talvez delegasse a escrita a uma espécie de prática

126
alienante: “(...) isso mostrou-me a alienação dessa relação
social, na qual um ser, o copista, está confinado perante o
mestre a uma atividade que eu diria quase esclavagista, ainda
que o campo da escrita seja precisamente o da liberdade e do
desejo.” (Cf. BARTHES, 1981, p. 177). Há, evidentemente, na
literatura inúmeros textos em que os escritores explicitam
essa tensão entre o desejo e a manipulação dos instrumentos,
a revelarem, mais que os protocolos da escrita, a reflexão
contínua sobre as suas práticas de trabalho - distintas, em
grande parte, dos objetos impressos que resultam desse
exercício. Talvez, como diz Alexandrino E. Severino, a respeito
das versões de Água Viva, de Clarice Lispector, “a tentativa de
chegar a um ponto inefável, um ‘it’, para além do raciocínio e para
além mesmo da imaginação.” (SEVERINO, 2019. p. 125). Em
Água Viva, espécie de romance experimental ou prosa poética,
a voz narradora pergunta-se em determinado momento:

O que sou neste instante? Sou uma máquina de


escrever fazendo ecoar as teclas secas na úmida
e escura madrugada. Há muito já não sou gente.
Quiseram que eu fosse um objeto. Sou um objeto.
Objeto sujo de sangue. Sou um objeto que cria outros
objetos e a máquina cria a nós todos. Ela exige. O
mecanicismo exige e exige a minha vida. Mas eu não 10 anos do Posling – CEFET-MG
obedeço totalmente: se tenho que ser um objeto, que
seja um objeto que grita. (LISPECTOR, 2019, p. 74).

Aqui a máquina está presente e se impõe ao sujeito que reage.


Reconhece o maquinismo, a repetição que aniquila, mas
explora a potência da máquina para se contrapor, para afirmar
sua existência numa pulsão diferente. Num parêntesis rápido,
essa objetualização do sujeito nos lembra as discussões de
Flusser para nos fazer pensar o papel do programador e o dos
aparelhos. Em “programar”, ele afirma que “uma parcela cada
vez menor da sociedade ‘trabalha, enquanto que uma parte

127
cada vez maior apenas ‘funciona’” (FLUSSER, 2008, p.73),
porque a sociedade dedica um tempo maior ao consumo das
imagens técnicas. E os homens tornaram-se funcionários que
reprogramam os aparelhos, funcionam em função deles. Para
ele, a saída é apostar numa “sociedade de programadores”
para se opor a uma “democracia programada”. Ele vê, nessa
sociedade, que a imaginação se desloca daquele escriba
que está obrigado a interessar-se por letras e a manejar as
regras da gramática e do discurso para uma superfície: está
destinado a imaginar as imagens e obrigar o aparelho a
produzi-las” (FLUSSER, 2008, p. 43). Retomando, pois, ao
texto de Clarice, entendemos que a voz narradora, enquanto
objeto contaminado pelo sangue, reconhece esse maquinismo
e o torna uma instância produtora. Dessa maneira, a sua
indagação é contrária à posição de muitos poetas e escritores
que enfatizam o trabalho da mão, corroborando Heidegger,
com a ideia de que “a palavra como escrita é caligrafia” e de
que o “escrever mecânico priva a mão da sua reputação no
âmbito da palavra escrita e degrada a palavra a um meio de
comunicação” (HEIDEGGER, 2019, p. 276, 277). Segundo
essa visão, Heidegger considera que a máquina é desprovida
do sinal da escrita e, embora reconheça aí algumas vantagens,
o principal é que ela “transforma a relação do Ser com o
humano”, diz ele. Mas admite ao final de seu texto que a
tecnologia está na nossa história. O pensamento contrário,
evidenciado e descrito por Kittler (2019), é o de Nietzsche,
que diz em uma de suas correspondências: “Nossa ferramenta
de escrita trabalha juntamente com o nosso pensamento”
(NIETZSCHE, apud KITTLER, 2019, p. 278). Kittler nos
mostra que, consciente das limitações por sua semicegueira,
Nietzsche se interessa por um máquina de escrever portátil
desenvolvida por Hans Rasmus J. M. Hansen para surdos-
mudos, a Grafosfera, de 1867, que buscava compensar déficits

128
fisiológicos e aumentar a velocidade da escrita (Cf. KITTLER,
2019, p. 280). Acrescenta ainda que a mecanização fez com que
o filósofo mudasse “de argumentos para aforismos, de ideias
para jogos de palavras, da retórica para o estilo telegráfico”
(KITTLER, 2019, p. 282). Derrida, por sua vez, argumenta
contra esse aspecto litúrgico requerido por Heidegger,
afirmando que, na máquina de escrever ou no computador,
não é necessário abandonar a mão, pois aí aciona-se outra
mão, outro comando. Adiante, esclarece:

Entre a ferramenta-caneta e a ferramenta lápis, por


um lado, e as máquinas, por outro, não é a mão que
faz a diferença, pois ela continua operando – são
os dedos. Com as máquinas de escrever mecânicas
ou elétricas, com as máquinas que funcionam
com programas de edição de texto, os dedos ainda
operam, trabalhando mais e em maior número.
(DERRIDA, 2004, p. 141).

Para Derrida, assim como um programa de edição pode


interferir na escrita, delimitando, por exemplo, a extensão
de parágrafo (jogo que ele admite fazer, e se impor em sua
Circonfissão1), pode-se fingir obedecer-lhe enquanto se explora
os seus recursos. Mas admite que o modo de escrever se altera,
pois, no computador, o texto nos é dado como espetáculo, ele 10 anos do Posling – CEFET-MG
sobe à tela. Se escrito à mão, a página descenderia de nós.
Alteram-se, portanto, as nossas experiências do corpo e das
mãos, assim como a distância da coisa escrita – de uma só
vez, mais próxima e mais distante. Essa experiência vista
pela proximidade do escrever à mão expressa também certa
incongruência entre materialidade e matéria nesse poema de
Armando Freitas Filho:

1 Publicada inicialmente no volume editado por Geoffrey Beenington, os argumentos sobre


a máquina foram incluídos no volume Papel-máquina, publicado pela Estação Liberdade, em
2004.

129
para este ofício de segurar o lápis –
precisamente e próximo – tal como
as palavras que ele tenta caligrafar
e trazer para perto da vontade
da expressão nítida, ou de firmeza
que vai do esboço suado e promissor
ao borrão do golpe em falso – sujo –
do garrancho, da garatuja.
(FREITAS FILHO, 2009, p. 25).

O fazer artístico resiste à imposição da técnica, ao mesmo


tempo que sua conformação deriva da capacidade de o
instrumento fazer emergir um pensamento, uma imaginação.
Poderíamos dizer que a técnica também imagina os objetos
da criação e do pensamento.

Em que pese a crítica que se pode fazer aos processos


mecanizados que hoje se pode dizer da indústria gráfica
e que, antes poderia ser materializada na tensão entre o
escrever à máquina e o escrever à mão, ou que se pode pensar
na transformação das artes tipográficas pela computação,
tanto quanto em toda a cadeia produtiva editorial, há que se
perguntar se o pensar não derivaria também dos modos do
fazer a edição.

Derrida, na citação acima, dá a entender que sim. Esse


pensar está em nossos dedos, sejam esses dedos aqueles que
manipulam as teclas do computador que escreve, que produz o
designer nos softwares especializados, ou ainda aqueles dedos
que ainda persistem nas oficinas tipográficas. Flusser nos diz
que o tatear é o método da pesquisa eurística. Segundo ele,
na inteligência artificial, o tatear é dirigido: “No caso do word
processor, a direção do tatear, do programa, foi deliberada
por técnicos programadores. Por isto os word processors

130
produzem textos mais rápidos (...), em cujo caso a origem
do programa é menos evidente” (FLUSSER, 2008, p.33).
E dirá que ainda que o seu tatear sobre as teclas o convide a
um determinismo aleatório, sua sensação existencial recusa
tal determinismo. Assim, a sua existência, a nossa existência
e estar no mundo se concentram sobre as pontas dos dedos.
A sua aposta é que num futuro não muito distante – e nisso
ele acerta – seria uma sociedade de tateadores em busca de
informações novas. Nessa sociedade certeiramente antevista
se percebe o predomínio das imagens técnicas de superfícies
não afetivas, mas imaginadas. (Cf. FLUSSER, 2008, p. 37-38).
O que dizer dos textos que hoje tateamos nas telas de nossos
dispositivos, em termos de sua materialidade tanto quanto de
sua existência como escrita?

Considerando a experiência de troca dos arquivos pelos


dispositivos tecnológicos (na época de produção do texto,
o disquete), Derrida observa que o computador alterou
o ritmo do processo de publicação: mudou a duração e os
intervalos que se faziam nas revisões de provas, o corpo a
corpo com o texto, o contato direto com o editor por via
do suporte. Agora, a “prova da prova é compartilhada, no
disquete, com esse intermediário invisível, mas ele nunca 10 anos do Posling – CEFET-MG
se inscreve num suporte de papel num intercâmbio com o
impressor.” (DERRIDA, 2004, p. 147). Mas entende que a
viagem continua, e que novas liberações de fluxos fazem
emergir novas possibilidades outrora limitadas pelas
instâncias legitimadoras do livro.

Mesmo que voguemos ao tempo das tipografias, recorremos


aqui às memórias de Guilherme Mansur, poeta e tipógrafo,
que assim se formou no chão da tipografia da família:
durante o dia trabalhando com as encomendas comerciais ou

131
particulares (notas fiscais, convites de casamento, cartões de
nascimento e participações de morte):

A tipografia durante o dia, era uma gráfica bombando,


aquelas prensas todas funcionando, aqueles
batidos todos, aqueles sons todos, cheiro de tinta,
composições saindo, provas, enfim. (...) Mas durante
a noite, quando eu me via ali sozinho, era outra
coisa: a gráfica estava completamente silenciosa
e era só minha. [...] Então eu tinha tempo para
experimentar, para testar a cor, para fazer uma prova
na impressora ou, quem sabe, até mesmo fazer uma
tiragem de cartões. Eu tinha todas as ferramentas
e as ramas, as guarnições, tudo ao meu alcance e à
minha disposição. (MANSUR, 2018, p.29).

Interessante o depoimento, porque as mesmas ferramentas


que se prestam a todos os processos da aceleração mecânica
que atendem à urgência mecânica do dia a dia, despossuído
de escrita, no sentido atribuído por Heidegger à máquina,
tornam-se no espaço noturno as ferramentas criativas que
desenvolvem o pensar e a imaginação do poeta que ali inventa
o seu trabalho, numa experiência lúdica. Essa duplicidade é
a mola propulsora que transformou Guilherme Mansur num
raro editor o qual trouxe à luz preciosidades do trabalho
tipográfico em livros seus e de escritores contemporâneos.
Nisso, Mansur passa a pertencer, como diz Mário Alex Rosa a
respeito de Cléber Teixeira, àquele grupo particular de poeta-
tipógrafos que estão “a serviço do livro e não apenas do seu
gosto particular de impressor” e que detém a convicção de que
“compor um livro é afinar as partes com o todo e vice-versa,
ou seja, a escolha dos tipos, a diagramação, o formato do livro,
o papel, as cores, enfim, tudo deveria ficar bem orquestrado”
(ROSA, 2019, p. 84).

Ellen Lupton (2013) defende a ideia de que “a tipografia


é uma ferramenta com a qual o conteúdo ganha forma, a

132
linguagem ganha um corpo físico e as mensagens ganham
um fluxo social” (LUPTON, 2013, p. 5). Nesse sentido, ela nos
mostra que a tipografia ajudou a configurar a ideia de “texto”
como um corpo estável de ideias, original completo, pois a
obra impressa solucionou os problemas de irregularidades
e lacunas das antigas cópias, pois o sistema de impressão
permite as correções dos manuscritos pelo autor e pelo
editor. No entanto, afirma que os livros mudam a cada edição,
tradução, citação, revisão, interpretação ou discussão. Por isso,
enquanto a tipografia clássica enfatiza a ideia de completude
da obra, tal como a imprensa ajudou a estabelecer a figura
do autor como proprietário de um texto, “as estratégias
alternativas de design nos século XX e XXI refletem a natureza
contestada da autoria, revelando a abertura dos textos ao
fluxo das informas e à corrosividade da história.” (LUPTON,
2013, p. 85). Nisso está de acordo com Derrida, que considera
o espaço de publicação na internet como diluidor da fronteira
entre o público e o privado, com movimentos de apropriações
da res pública e o questionamento das antigas instâncias
legitimadoras do livro (DERRIDA, 2004, p. 152).

Esse olhar de Lupton (2013) é relevante porque, em Pensar com


tipos, a autora nos leva a avaliar a trajetória do livro por dentro
dos seus elementos mais intrínsecos que levam a tipografia
10 anos do Posling – CEFET-MG
(entendida não só como a arte dos tipos, mas o fazer do livro)
a operar uma transformação nesse objeto portátil também
num processo em aberto. Ou como diria Melot, parodiando
os defensores do alcorão: “‘que reside entre duas capas’ é,
ainda hoje, a definição mesma do livro” (MELOT, 2012, p. 33).
Talvez porque, como dirá mais adiante, o tempo do livro é o
tempo fragmentado:

Ora, o tempo do livro não é mais o tempo real dos


computadores e tampouco o tempo elástico dos rolos.
É um tempo medido como aquele do relógio. É o

133
tempo sequencial da língua e das narrativas, mesmo
quando o livro contém imagens. O livro inscreve seu
conteúdo no tempo, o qual tem um começo e um fim,
ao qual chamamos história. (MELOT, 2012, p. 54).

Ao situarmos o livro na história e em espaços tão distintos e que


nos pertencem todos, se nos posicionamos numa perspectiva
sincrônica, Melot se pergunta: “Histórias tão improváveis
quanto aquelas da arte ou do pensamento seriam concebíveis
sem a forma imposta pelo livro?” (MELOT, 2012, p. 54).

Não é nossa intenção responder a essa questão, ainda que


entendamos que a história lacunar registrada nesse Livro,
(MELOT) seja em parte uma resposta positiva a essa questão,
mas com uma evidência de que a temporalidade e as formas
dessas histórias são múltiplas. Os modos de escrever e gravar,
os formatos, as linguagens e as formas de materialização
desse objeto podem sempre nos levar a experiências limites,
abrindo caminhos para o pensar. Como viemos escrevendo
até aqui, a matéria do livro e sua forma podem contaminar-
se, conforme expomos a(s) linguagem(ns) aos exercícios
criativos. Seja no escrever, seja no editar os livros.

Edição e Letras: pensar e construir espaços


A edição tem sido ao mesmo tempo um desafio e uma estratégia
para a consolidação da área de Letras no CEFET-MG, uma
instituição tecnológica e dominante na área das engenharias,
estruturada na formação de técnicos de nível médio,
engenharias e pós-graduação. Nesse contexto, a formação em
Letras, ao nível da graduação e da pós-graduação, voltou-se
para uma interface tecnológica e interdisciplinar, tornando-
se a edição o eixo central do bacharelado em Letras e uma
linha de pesquisa (Edição, linguagem e tecnologia) com uma
interface profícua com as demais linhas do PPG em Estudos de
Linguagens (Literatura, cultura e tecnologia; Discurso, mídia
e tecnologia; Linguagem, ensino, aprendizagem e tecnologia).

134
Em termos de pesquisa, portanto, poderíamos traçar este
desenho das principais interfaces que recortam projetos
e orientações ao nível do mestrado e doutorado, com
capilaridade em TCCs e projetos de iniciação científica:

I – Edição, literatura, artes visuais e outras


convergências – estudo de obras multiformes que
promovam o diálogo e questionamento entre os espaços
artísticos e suas relações com os sistema das artes;
ênfase nos aspectos de produção e de circulação dos
objetos editados; estudo do processo de edição como
um processo social que interfere no espaço urbano, sob
a ótica da intermidialidade; a reinvenção do livro pelo
digital, a sobrevivência do texto nos arquivos digitais.

II – Edição e literatura: gênese, políticas, redes de


sociabilidade e identidade – estudo os processos
editoriais literários; aspectos históricos, políticos, de
linguagens, sociais; gênese das edições de uma obra; a
circulação de uma obra e sua relação com o mercado;
diálogos editoriais do literário com o jornalismo, o
cinema e o documentário, entre outros; os livros para
crianças e jovens; as formas alternativas da produção
editorial, produções independentes e autopublicações. 10 anos do Posling – CEFET-MG
As investigações buscam ainda compreender a
configuração de forças e a circulação do objeto literário
e a sua revalorização social e cultural.

III – Edição, imagem visual e outras mídias: estudo


da composição editorial jornalística a partir da imagem
fotográfica para afirmar aspectos da memória e do
imaginário; estudo do afeto (experiência do sensível
que modifica a percepção do vivido) que o processo
editorial fotográfico produz em sua construção de
narrativa imagética e sua circulação; o processo de

135
edição como ato criativo e crítico; também como ação de
uma experiência poética no vídeo ou como ação política
de resistência e afirmação dos devires e paradigmas de
grupos considerados minoritários ou excluídos; estudo
da edição e estratégias discursivas do audiovisual.
A partir da desconstrução dos arquivos digitais, análise
do universo de significados a partir dos instrumentos e
estratégias instaurados como processo de edição.

IV – Edição, letramentos e estudos de revisão: estudo


de linguagens e revisão textual, estudo dos processos
de letramento associados aos objetos editoriais, o livro
didático e as produções paradidáticas, consideradas as
inscrições paratextuais, os recursos visuais e os projetos
gráficos de livros impressos, ou a articulações com outras
produções multimodais, interativas ou animadas, como
games; a criação de podcasts, ferramentas pedagógicas
para inclusão e formação de alunos com necessidades
especiais ou vunerabilidade socioeconômica.

Como se observa nesse desenho não exaustivo das


possibilidades e das pesquisas interdisciplinares que vêm
sendo desenvolvidas, e cruzando os eixos de pesquisas dentro
do PPG em Estudos de Linguagens, o conceito de edição torna-
se evidentemente bastante elástico. Numa aproximação a
esse desenho, propomos tomar a edição, na Instituição, como
o processo que procura compreender como os dispositivos de
gravação, de fixação, de memorização atuam para estabelecer,
divulgar e fundar os saberes e conhecimentos, seus sistemas,
suas tecnologias e seus imaginários, bem como a circulação
efetivada desses processos sob diversas óticas, na sociedade.

Como bem nos mostra Muniz Júnior (2020, p. 69), as


expressões “edição”, “editar”, “editor” não são exclusivas
do universo dos livros, por designarem muitas outras

136
materialidades editáveis. Lembra ainda que a palavra
recobre grande quantidade de procedimentos intrínsecos
à definição geral da palavra. Por isso, ancorado na reflexão
de Howard Becker, a que a compreensão do funcionamento
do mundo da arte está atrelada ao entendimento da rede
cooperativa que o constitui (Cf. MUNIZ JÚNIOR, 2020, p. 70),
o autor propõe também uma definição abrangente do ato
de “editar”, porém, circunscrita ao fazer: “(...) pode-se
definir o “editar” como um conjunto de práticas destinadas
a preparar materiais, simbólicos para circular publicamente
(ainda que destinados a públicos específicos, como os
relatórios institucionais)” (MUNIZ JÚNIOR, 2020, p. 71).
Seu argumento central é o de que uma definição nessa
linha reconhece o sentido ético de uma série de práticas
profissionais, invisíveis ou desconhecidas no campo.
No mesmo volume, o Tarefas da edição (CEFET-MG, 2020),
Cléber Cabral Araújo discute a edição a partir dos “arquivos
editoriais”, para trazer ao campo não apenas as tarefas
do editor/publisher ou das práticas de editar/editing, mas
também as da preservação (CABRAL, 2020, p. 20-29).
Penso aqui em Cláudia Kozac que, em seu Tecnopoéticas
Argentinas (CAJA NEGRA, 2012), define o livro como um
arquivo blando, evocando o Mal de arquivo, de Derrida, mas
pensando que o arquivo digital é maleável, inconcluso, que 10 anos do Posling – CEFET-MG
se interrompe, e pode se retomar. Cabe ainda ressaltar que
a noção de livro continua a ser um conceito problemático,
tal como evidencia Ana Elisa Ribeiro:

Venho discutindo o que foi e o que não é (e não é) um


livro há alguns anos (...), incomodando-me muito
com as metáforas que se aplicam a ele. E enganam! E
o que é, então um livro? O que se pode definir, senão
um arranjo de materialidades, funções e efeitos? A
forma, o processo que o configura, suas serventias e
seus modos de uso me parecem bastante específicos,
já quase entrada a terceira década do século XXI.
(RIBEIRO, 2018, p. 71).

137
Como também nos mostra Michel Melot, a história do livro
também pode ser traçada ao longo de sua história em aberto
(é ver o título da obra Livro, – a que se segue uma vírgula e
não um ponto), e relembrando o seu trocadilho: um livro
acaba, mas não acabamos com o livro. A tarefa de editar
parece similar à história do livro, pois as práticas sempre se
redefinem ao longo do tempo e das sociedades.

Considerações finais
Embora possam parecer distintas, as duas partes deste texto
tentam explicitar a ideia de que escrever e editar constituem
processos criativos, e que é preciso considerar a dimensão de
que o fazer é também uma atividade crítica. Assim, pensar a
edição requer que os objetos editados sejam não apenas um
produto, mas sobretudo um exercício de imaginação alicerçado
em projetos e na pesquisa. Que sejam um fazer/pensar,
uma espécie de “imaginário radical”, como queria Arlindo
Machado, que pudesse liberar toda energia “incubada e diluída
no marasmo de bens culturais” (MACHADO, 2001, p. 14).

Da mesma forma que o trabalho editorial nos exige esse pensar


sobre e a partir dos instrumentos, a tarefa constitui também
um investir sobre as formas engessadas e incrustradas nos
tecidos sociais. Retomo aqui uma metáfora do nosso colega
Luiz Henrique Silva Oliveira (Cf. OLIVEIRA, 2018, p. 195):
editar é uma forma de resistência, é um investir de quilombos
(quilombos editoriais) contra essa coluna dura e selvagem do
capital e, portanto, dos tecidos mortos do social. E isso nos
exige, no terreno da crítica, que reconheçamos os paradigmas
de resistência hoje em debate, quais sejam: os dos povos
considerados ou tornados periféricos, indígenas, aborígenes
e todas as minorias. E também aqueles em que se situam
enclaves críticos: aqueles que tratam a impressão como

138
resistência ao maquinismo desenfreado; aqueles que debatem
a democratização do audiovisual, ou aqueles que elegem o
digital para abrir alternativas em meio à diluição dos meios e
ao poderio dos conglomerados econômicos.

Em síntese, essas são algumas ideias hoje materializadas em


inúmeros objetos produzidos no interior de disciplinas do
curso de Letras e da Pós-Graduação em Estudos de Linguagens,
e que recentemente passam a compor as produções da LED-
Editora Experimental do curso de Letras do CEFET-MG.
Sobre esses objetos esperamos falar muito em breve.

10 anos do Posling – CEFET-MG

139
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DERRIDA, Jacques. Papel-máquina. Trad. Evando Nascimento.
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FREITAS FILHO, Armando. Lar,. São Paulo: Cia das Letras, 2009.

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KITTER, Friedrich A. Gramofone, Filme, Typewwriter. Trad.
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KOZAK, Claudia. Tecnopoéticas Argentinas – Archivo blando


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LISPECTOR, Clarice. Água Viva: edição com manuscritos


e ensaios inéditos. Rio de Janeiro: Rocco Digital. Edição do
Kindle, 2019.

140
LUPTON, Ellen. Pensar com tipos. 2ª ed. rev. e ampl. Trad. André
Stolarski e Cristina Fino. São Paulo: Cosac & Naify, 2013.

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Edusp, 2001.

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G.; MELLO, Simone Homem de. Editando o editor. São Paulo:
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MELOT, Michel. Livro,. Trad. Marisa Midori Deaecto. São


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MUNIZ JÚNIOR, José de S. Edição. In: RIBEIRO, Ana E.


& CABRAL, Cléber A. (Orgs.). Tarefas da edição: pequena
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OLIVEIRA, L. H. Edição e afrodescendência: os quilombos


editoriais como redes de sociabilidade no Brasil. In: OLIVEIRA,
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RIBEIRO, Ana Elisa. Do livro ao “livro”: ensaiando a genealogia de 10 anos do Posling – CEFET-MG
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ROSA, Mário Alex. Cinco livros perfumados da Editora Noa


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SEVERINO, Alexandrino E. As duas versões de Água Viva.


In: LISPECTOR, Clarice. Água Viva: edição com manuscritos
e ensaios inéditos. Rio de Janeiro: Rocco Digital. Edição do
Kindle, 2019.

141
TENTEANDO A TRAVESSIA — ROTEIRO
DE PERFORMANCE1
Sônia Queiroz e Grupo Movência2

“A escritura gera a lei, instaura de modo ordenado


as limitações, tanto na palavra, quanto no Estado.
No seio de uma sociedade saturada de escrito, a
poesia oral (mais resistente que nossos discursos
cotidianos à pressão ambiente) tende — porque
oral — a escapar da lei e não se curva a fórmulas,
senão as mais flexíveis: daí sua movência.”
Paul Zumthor, Introdução à poesia oral

ABERTURA

10 anos do Posling – CEFET-MG

Imagem de Vinícius D’ Moreira

Senhores donos da casa

1 Este é o roteiro da performance realizada pelo grupo Movência no evento de comemoração


dos 10 anos do Posling. As fotografias incorporadas ao texto foram feitas durante uma
temporada que o grupo realizou na Funarte, em julho de 2019.
2 Autoria coletiva: Amanda Jardim, Cristina Borges, Guilherme Trielli, Josiley Francisco de
Souza, Laís Penna, Lorena Anastácio, Tropowisk Coelho Carvalho e Vinícius D’ Moreira.

143
Oi, me dê licença
Viemos pedir licença
Oi, pedir licença
Pra contar nossa história
Oi, nossa história
Ô licencê, ô licençá
Ô licencê, ô licençá
Foi agora que eu cheguei
Que eu vou me apresentar

EH, CUEIO

Imagem de Bianca Dantas

A tradição oral do Brasil apresenta muitas histórias em que


animais pequenos, muitas vezes representados pelo coelho,
conseguem, por intermédio de esperteza e sabedoria, enganar
animais fisicamente mais fortes e superá-los em conflitos e

144
desafios. De onde vêm essas histórias de um tempo em que
os bichos falavam? Seria possível identificar as vozes que
primeiro transmitiram essas narrativas?

Na tradição oral, verifica-se a inexistência do texto autêntico,


original, primeiro. Trânsito permanente, relações transtextuais
e diálogos transculturais aproximam contos registrados em
espaços socioculturais e geográficos distintos. Paul Zumthor
(1997, p. 264) nomeou esse dinamismo das tradições orais
como movência.

Cabe observar que as próprias histórias que apresentam


animais personificados como personagens apontam diálogos
entre tradições orais africanas e brasileiras. As histórias de
animais, se não são exclusivas das tradições orais de alguns
países africanos – já que é possível encontrar narrativas de
animais em outras partes do planeta, como as fábulas de
Esopo, na Grécia, as fábulas de La Fontaine, na França, ou
os ciclos de histórias do uncle rabbit, nos Estados Unidos –,
apresentam-se como tema recorrente em contos orais
transmitidos em territórios africanos.

Câmara Cascudo (1984, p. 147) chamou a atenção para as 10 anos do Posling – CEFET-MG
narrativas de animais em diferentes regiões do continente
africano, especialmente aquelas em que animais pequenos,
fazendo uso da astúcia, da inteligência e da esperteza,
superam animais grandes e fortes em desafios, destacando-
se o coelho, personagem sempre hábil e astucioso. Cascudo
observa, ainda, que o suíço Héli Chatelain, em Angola, no final
do século XIX, e o alemão Leo Frobenius, na foz do rio Níger,
na região do Golfo da Guiné, na primeira metade do século
XX, registraram histórias do coelho. Cascudo afirma ainda ter
ouvido várias histórias de coelho em Moçambique e Angola.

145
O suíço Henri Junod, em sua pesquisa realizada no sul de
Moçambique e publicada pela primeira vez em 1911 sob o
título Life of a South African Tribe, também destaca a presença
do coelho.

Também o pesquisador moçambicano Lourenço Joaquim


da Costa do Rosário, que na década de 1980 realizou
pesquisa sobre narrativas orais no Vale do Rio Zambeze,
em Moçambique – publicada em 1989, no livro A narrativa
africana de expressão oral –, observa que o coelho é o herói
mais frequente na região, também em situações em que o
animal pequeno, pela astúcia e esperteza, derrota animais
maiores, apresentados como estúpidos ou brutos (ROSÁRIO,
1989, p. 112).

Sobre as histórias de coelho em terras brasileiras, é


interessante mencionar o trabalho do antropólogo Otávio
da Costa Eduardo, intitulado Aspectos do folclore de uma
comunidade rural. A pesquisa de Otávio da Costa Eduardo
foi realizada em 1944, em Santo Antônio dos Pretos, uma
pequena comunidade rural, no município de Codó, no
Maranhão. Atualmente reconhecida como quilombola, essa
comunidade era constituída na época por uma população de
150 pessoas, em sua maioria negros que conviveram com a
escravidão e seus descendentes.

Otávio da Costa Eduardo registrou onze narrativas de


animais. Dentre as onze narrativas registradas por Otávio
da Costa Eduardo em Santo Antônio dos Pretos, em oito
histórias aparece o coelho como personagem que, fazendo
uso de perspicácia e inteligência, consegue superar animais
maiores em conflitos e desafios. Duas dessas histórias são
variantes da história narrada por nós: “O coelho e a onça são
pretendentes à mão de uma moça” e “O coelho e a onça são
pretendentes à mão da girafa”.

146
Imagem de Josiane Souza

Ainda no Brasil, Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o


Mestre Didi, publicou “O elefante e a tartaruga”. A exemplo
de registros feitos em territórios africanos aqui apresentados,
surge nessa narrativa o elefante como personagem que
representa a força física e a tolice (SANTOS, 1961, p. 57-58).
É importante destacar que Mestre Didi é um sacerdote da 10 anos do Posling – CEFET-MG
tradição religiosa afro-brasileira nagô e “inaugura no Brasil a
categoria do contador-autor” (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004,
p. 75). A primeira publicação de Mestre Didi, Contos negros
da Bahia, que apresenta o conto “O elefante e a tartaruga”,
é de 1961, e saiu pelas Edições GRD, do Rio de Janeiro, com
ilustrações de Caribé e prefácio de Jorge Amado.

147
MAS O COELHO SEMPRE
CASA COM A GIRAFA?
Em Angola e Moçambique, territórios linguístico-culturais
banto, há registros de variantes dessa narrativa.

Em Angola, o escritor Raúl David registrou a história


“O candimba e o elefante”, publicada no final da década 1970,
no livro Contos tradicionais da nossa terra (obra organizada em
dois volumes que reúne contos de tradição oral recolhidos em
Angola).

Nessa narrativa, o coelho, que é nomeado na língua banto


quimbundo – candimba –, e o elefante são pretendentes ao
casamento com uma princesa.

Outro registro feito em Angola, em que o coelho engana um


animal maior e o faz sua montaria na disputa pela preferência
de casamento com uma mulher, é “A lebre e a raposa”,
registrada por António Fonseca e publicada em 1996 no livro
Contribuição ao estudo da literatura oral angolana.

O livro Contos moçambicanos, organizado pelo Instituto


Nacional do Livro e do Disco de Moçambique, publicado em
1979, traz a história “O elefante, escravo do coelho”.

Outra história é “O coelho e a hiena”, registrada por Lourenço


do Rosário, em Moçambique, e publicada em 2001, no livro
Contos africanos.

148
Imagem de Bianca Dantas

Além dessas histórias, há variantes registradas em território


africano em que, ao invés do coelho, outro animal representa
o personagem fisicamente mais fraco que, por meio da astúcia
e inteligência, faz do animal maior sua montaria.

Enfim, há uma intricada tessitura de cruzamentos de narrativas


de tradição oral inscritas em diferentes culturas e lugares. 10 anos do Posling – CEFET-MG
Impossível saber o caminho que as histórias fazem.

As histórias do coelho e de outros pequenos animais,


sempre superando animais fisicamente mais fortes por
intermédio da astúcia, teriam sido inscritas em terras
brasileiras por africanos negros escravizados no diálogo
com tradições orais locais? Ou, de outro modo, a supremacia
da inteligência sobre a força física se configura como tema
recorrente em culturas de diferentes povos, tempos e lugares?

149
Essas perguntas ficarão sem resposta. O que se pode
observar são várias ressonâncias e diálogos transculturais
entre narrativas orais registradas no Brasil e em territórios
africanos.

Imagem de Bianca Dantas

JOÃO JILÓ
É interessante observar que essas narrativas apontam para
a grande dinamicidade presente na tradição oral, em que
histórias são transmitidas pela rede oral por diferentes tempos
e lugares. O pesquisador Paul Zumthor explora o conceito de
movência nas expressões de tradição oral, observando que
elas são caracterizadas por um intenso dinamismo. Zumthor
(1997, p. 264) nos lembra que, com exceção de algumas formas
míticas muito ritualizadas, na tradição oral, o texto está
sempre em movimento e adquire uma forma sempre instável.

150
A história “João Jiló” foi contada por nós a partir de registro
feito em Turmalina, com o contador Francisco Lourenço
Borges, em 1987. Além desse registro, publicado por Sônia
Queiroz, no livro 7 Histórias de encanto e magia, em 1999,
encontramos três outras variantes dessa história publicadas
em livro no Brasil por Alexina de Magalhães Pinto, em As
nossas histórias: contribuição do folk-lore brazileiro para a
bibliotheca infantil, em 1907; Lúcia Casasanta, em As mais
belas histórias, em 1969; e por Maria Selma de Carvalho, José
Murilo de Carvalho e Ana Emília de Carvalho, em Histórias
que a Cecília contava, em 2008.

Na rede movente da tradição oral que entrecruza fios de


vozes de diferentes tempos e lugares, é possível descobrir
ressonâncias de vozes africanas banto na história do João
Jiló. O enredo dessa narrativa apresenta um tabu religioso
que é ignorado pelo menino João Jiló: a proibição de se
matar animais e comer carne na Sexta-feira da Paixão. Esse
personagem desobedece os conselhos da mãe e decide sair
para caçar passarinho durante a Semana Santa. João Jiló
então encontra um pássaro, mata-o e o come, ignorando a
voz do animal, em forma de canto, que anuncia a interdição
alimentar. Devido ao desrespeito a essa interdição alimentar, 10 anos do Posling – CEFET-MG
o menino recebe punição.

O desrespeito a uma interdição alimentar também é tema da


história “A mulher que desejava peixe”, registrada no século
XIX pelo suíço Héli Chatelain, em Angola, e publicada em
Contos populares de Angola: cinquenta contos em quimbundo
coligidos e anotados, cuja primeira edição é de 1894. Assim
como na história de João Jiló, em “A mulher que desejava
peixe” um animal retorna à vida depois de ser comido numa
situação de desrespeito a uma interdição alimentar.

151
Imagem de Josiane Souza

O COISA RUIM, O ARRENEGADO,


O CRAMULHÃO, O SUJO, O TISNADO,
O NÃO-SEI-QUE-DIGA...
Na história “O afilhado do diabo”, percebemos novamente
a movência e as transformações que habitam as tradições
orais. Nessa história, é possível observar ressonâncias de
“O aprendiz de feiticeiro”, poema de Johann Wolfgang von
Goethe, escrito no final do século XVIII. É interessante
destacar que a crítica do autor alemão aponta que Goethe
se inspirou em um conto da tradição oral para escrever seu
poema. Em “O aprendiz de feiticeiro”, também adaptado
para o cinema por intermédio de uma animação produzida
por Walt Disney na década de 1940, o ajudante de um bruxo,
ainda pouco experiente, se envolve em confusões ao tentar
fazer mágicas aprendidas com o mestre.

152
Já na história “O afilhado do diabo”, um menino, após
tornar-se afilhado do “coisa ruim”, tem acesso ao livro onde
estão registradas mágicas. Morando na casa do diabo, onde
realizava todos os trabalhos domésticos, o menino aprende a
fazer mágicas durante uma viagem do diabo e, ao final, supera
seu mestre. Nessa história, o bruxo é representado pelo
diabo, figura muito presente em narrativas de tradição oral
transmitidas no Brasil e em outros países da América Latina.
Félix Coluccio e Marta Coluccio (2000) destacam a forte
presença da figura do diabo, por influência do cristianismo,
em expressões das culturas de tradição oral e popular em
países latino-americanos, como Brasil, Argentina, Bolívia,
Chile, Paraguai, Venezuela, Colômbia, Peru e Porto Rico.

Pelas movências e transformações das tradições orais,


encontramos outra variante dessa história registrada no Vale
do Jequitinhonha, que integra o acervo do projeto “Quem
conta um conto aumenta um ponto”3, da Faculdade de Letras
da UFMG: “O mestre do mio”. Nessa história, registrada
em Turmalina/MG, temos novamente a figura do mágico –
ausenta-se aqui a figura do diabo – que é superado por seu
afilhado, o aprendiz que supera o mestre.
10 anos do Posling – CEFET-MG

3 O projeto de extensão e pesquisa “Quem conta um conto aumenta um ponto”, da Faculdade


de Letras da UFMG, foi desenvolvido de 1995 a 2006, sob coordenação de Sônia Queiroz.
Esse Projeto trabalhou o registro sonoro e escrito de contos orais da cultura popular do
Vale do Jequitinhonha, através da edição de CD’s e livros destinados, especialmente, ao
público do ensino fundamental e médio, nas áreas de Leitura e Produção de Texto. O acervo
de gravações é constituído por mais de 200 histórias, além de versos, piadas e conversas
gravadas com 50 contadores do Vale do Jequitinhonha. 

153
Imagem de Bianca Dantas

IAIÁ CABOCLA
Entre os índios Xakriabá, a força motriz da memória é
constitutiva dos saberes de homens e mulheres que buscam
“viver o presente sem esquecer o passado”, utilizando
uma expressão lema para o povo Xakriabá que precisou
reinventar-se, buscando na memória imaterial e material de
seus antepassados (re)afirmar sua identidade. Nessa cultura
acústica, a palavra é dotada de grande importância. Como um
povo da palavra, os Xakriabá mantêm vivas muitas expressões
da tradição oral amparadas no corpo e na memória, em
diversas vozes que se inscrevem na performance.

Iaiá Cabocla é um encantado que representa proteção para


os indígenas Xakriabá que vivem no município de São João
das Missões, região norte de Minas Gerais. Segundo dados do

154
Censo de 2010 realizado pelo IBGE, na Terra Indígena Xakriabá
– (TIX) – vivem um pouco mais de 9.221 indígenas, porém,
no discurso local consta um número maior de indígenas,
cerca de 14.000. Ainda de acordo com o Censo, os Xakriabá
representam a quarta maior população indígena do Brasil.

Imagem de Bianca Dantas

As histórias dos encantados são reveladas pelos Xakriabá, 10 anos do Posling – CEFET-MG
principalmente quando se referem aos antigos ou à sua relação
com eles. Essas narrativas compreendem a relação com os seus
ancestrais, como é o caso da Iaiá Cabocla, onça considerada a
avó dos Xakriabá, que a reconhecem como parte integrante
da cultura do grupo. Iaiá Cabocla é a protetora do território
e também símbolo de força. “Ela é parte das narrativas
mais conhecidas, é uma figura que demarca a alteridade dos
Xakriabá e de sua terra, uma entidade poderosa do Toré e do
trabalho de mesa, além de uma ancestral comum.” (SANTOS,
2010, p. 117).

155
Por intermédio dos rituais realizados pelos Xakriabá, é
possível fazer contato mais estreito com os encantados,
conversar com eles, e até mesmo usufruir de sua força. Mas
aproximar-se de um encantado pode ser perigoso, pois estar
próximo é também estar vulnerável à sua ação. Além da Iaiá
Cabocla, encontramos na TIX o Pé de Garrafa, Bicho Homem,
Bicho do Morro, Caipora, Ouro, Machadero, Mãe D’água.
Muitos aparecem com mais frequência nas matas e nas lapas.
Os encantados das águas são pouco citados, provavelmente
pela escassez de água no território. Manter com os encantados
uma boa relação, principalmente o Caipora e a Onça Cabocla,
é algo de certa forma determinante para se ter uma boa caçada
ou para andar sem ser assustado. Muitos caçadores deixam
fumo na mata para agradar a Iaiá, é um presente para manter-
se protegido e obter boas caças. Outros encantados não têm
necessariamente um nome, mas um conhecedor ao encontrá-
los sabe que é encanto, como podemos observar nas falas dos
Xakriabá registradas por Lorena Anastácio:

156
Ela faiz todo tipo, ela é incantada. Ela vira passarim,
vira toco, vira cupim, vira um gambá, um bichim
miudim, vira bicho bem grande, vira gente. De veiz
enquando ela passa aí subiano. É, tem veiz que ela
passa aí asubeia. [...] Ela passa assubeia tarde depois
que a gente deita. O assubio dela num tem quem
imita não, puque é bem finim. Ela só subeia, por
inxemplo, se vim pessoa de lá pra cá e a gente num
sabe, ela subeia avisano que tá vino visita. Quando
é pra pessoa daqui viajá tamém ela assubia, ela
passa na noite se fô viajá que nem amanhã de noite
ela passa pra avisá e quondo tá lá é pra saí de lá ela
subeia aqui. Quando eu tava lá em Montes Claros
mais mãe ela assobiô lá pertin da Casa do Índio, de
noite, e ninguém iscutô só eu que vi mais ninguém
iscutô. E se vim coisa tamém contra nóis, ela avisa,
´subeia, aí a gente já sabe. Ou nutícia boa pro lado
nosso ou nutícia que num presta, ela vem. Se tivé
demanda aí com terra ela passa assubeia. Uma
veiz na retomada nas Caraíba ela foi lá bateu nos
cachorro. Pegô os cachorro, deu um pau! Ficaro tudo
com medo, pensaro que era ‘gente que tava chegano e
num era. Ela que tava lá. Se ocê falá coisa com ela que
cê vai fazê corqué coisa com ela, ela pega é ocê, senta
de riba, pega ocê dá umas n’ocô. Um home véio que
morava aqui do lado da iscola que nós vamo amanhã,
o home era criadô de gado aqui, tinha poca gente,
aí cumeço a pegá o gado dele, ele falô: “- É, tem um
diabo duma onça acabano co’meu gado!” Aí o povo: “- 10 anos do Posling – CEFET-MG
Moço, cê toma cuidado que pode sê a Onça Cabocla!”
Ele disse: “- Colé disgraça de Onça Caboca, moço? Se
fô ela eu meto o facão nela impurro uma bala nela,
boto ela pros inferno!” Aí, pois ela foi prisiguino o
gado dele, el’ prendeu no curral ela foi e sangrô o
marruá e bebeu o sangue e largô lá. Aí ele pegô a
zuá quando é um dia ela tava destampano a carne.
No ôtro dia foi priciso ele í ond’tava o Estevo Gome’
que é esse qu’eu falei. O Estevo Gome’ conversava co’
ela. Falô co’ ela que dexasse, mexesse não, aí parô.
E… se ficá zuanoo acaba o gado, agora se ´quetá ela
respeita, num mexe não. (Sr. Valdemar, Dona Célia
e Tico, junho, 2017. In: ANASTÁCIO, 2018, p.116).

157
Imagem de Bianca Dantas

Iaiá Cabocla é dotada de um poder maior. Ela é uma encantada


ancestral indígena Xakriabá. Conta a história que uma índia
moça precisou buscar caça no mato, pois ela e sua irmã
tinham fome. Ela se transformou em onça e pediu para que a
irmã colocasse em sua boca uma folha (planta de poder) para
quebrar o encanto quando ela retornasse da mata com a caça.
Ao que a onça abriu a boca, a irmã teve medo e correu.

Assim, a jovem ficou encantada em onça, virou “monça”, e vive


no território Xakriabá como protetora dos seus. Nas histórias
contadas em todo o período de luta pela terra, Iáiá lutou contra
os fazendeiros e expulsou muitos invasores dali. Na luta pelo
território, muitas vitórias se explicam também pela ação
dos encantados, como nos informa o Sr. Valdemar Xakriabá:

Qu’ela foi virada duma índia, tinha simpatia. Ela


virava onça e disvirava. Aí um dia ela ia mais um
cumpanhero e falô assim: “- Nuvia bunita!” O ôtro

158
falô: “- Ô novia bonita gorda, se eu achasse um
pedaço dela. Ela disse: “- Cê tem corage?” Ele disse: “-
Tenh’!” Então, pegô um ramo e deu ele: “- Sigura esse
ramo aqui, eu vô lá pegá a nuvia. Na hora qu’eu vim
lá co’ a boca aberta cê coloca na minha boca.” Qu’era
pr’ela disvirá. Aí o índio ficô isperano, ela sumiu lá
quondo viu ‘pariceu a onçona, derrubô a novia e veio
de lá no rumo dele. Aí ele correu. Aí ela incantô. Mais
desse dia tamém diz qu’ela prisiguiu ele até o dia que
pegô ele. Ele corrreu… [risos] Ela num ia fazê nada,
era só pô o ramo na boca ela disvirava. Ele. Mais
ele correu, incantô ela, é simpatia. E aí ela ficô prá
protegê o índio. Ela é índia. Ela é a protetora dos
índio! (Sr. Valdemar, junho 2017. In: ANASTÁCIO,
2018, p.116-117)

10 anos do Posling – CEFET-MG

Imagem de Bianca Dantas

159
REI KITAMBA KIA XIBA
Os diálogos permeados por movências e transformações
podem ser observados, ainda, quando se confrontam contos
orais registrados na África, como os contos recolhidos por
Héli Chatelain, em Angola, e narrativas registradas em
território brasileiro. A história “O rei Kitamba Kia Xiba”
apresenta um rei – o rei Kitamba – que, após a morte de sua
esposa, tem uma grande tristeza e decreta luto em todo o
seu reino. Incomodados com o luto que impedia festas ou
outras celebrações, os homens do reino de Kitamba procuram
um feiticeiro, que vai à terra dos mortos e volta com uma
mensagem da rainha. Ao receber a mensagem, o luto é
abandonado e a alegria retorna ao povo do rei Kitamba.

No Vale do Jequitinhonha, foi registrada a narrativa “O leão


e o macaco”, cujo enredo se aproxima bastante da história do
rei Kitamba. Nessa história que integra o acervo do projeto
“Quem conta um conto aumenta um ponto”, da Faculdade
de Letras da UFMG, os personagens são representados por
animais. Como o rei Kitamba, após a morte da esposa, o leão
decreta luto na mata. O luto não poderia ser quebrado por
nenhum animal, pois aquele que desrespeitasse a ordem do
leão poderia ser punido. O luto só é interrompido quando o
macaco, que o desrespeitara, diz portar uma mensagem da
leoa endereçada ao rei da mata.

160
Imagem de Bianca Dantas

RETRATO-FALADO4
Este grupo não é tão novinho assim. Ele já tem mais de 20
anos e hoje leva o nome de Movência. Todo grupo, ao longo
dos anos, como os grupos de rock, os músicos, os contadores
de história, muda sua configuração. Eu sou um pouco a
madrinha desse grupo. Começamos na última década do
século XX, tivemos a honra de ter a Ana Elisa Ribeiro conosco
10 anos do Posling – CEFET-MG
na primeira configuração do grupo que começou a pesquisa
no Vale do Jequitinhonha, identificando os narradores, os
contadores de histórias do Vale, que é uma região muito rica
em termos de arte e cultura. Fizemos vários livros, impressos
e sonoros, com várias experimentações editoriais, na UFMG,
com as narrativas orais do Vale do Jequitinhonha, a maioria em
prosa, mas algumas em verso. Fizemos muitas experiências.

4 Apresentação do grupo feita por Sônia Queiroz nos momentos finais da performance.

161
Inicialmente, no Vale do Jequitinhonha, foram 11 anos
do projeto de pesquisa e extensão “Quem conta um conto
aumenta um ponto”. Depois desenvolvemos outros projetos,
como o “Minas Afrodescendente”, em que fomos verificar
narrativas orais publicadas em livro aqui no Brasil e em
Angola, na África. Pra identificar o que nós chamamos,
então, ressonâncias, ou seja, vamos dizer, cantos à distância
ou reverberações de tradições orais lá e aqui. Encontramos
muitas histórias. Formamos um acervo de mais de duzentas
narrativas orais entre Brasil e Angola. E grande parte dessas
histórias são de animais, que aqui a gente costuma chamar
“histórias do tempo em que os bichos falavam”. São histórias
como a do Coelho, a do Sêo Onça e a da Girafa, que o Josiley
acabou de contar. A gente desenvolveu uma série de livros, de
livros-objetos, a partir dessa pesquisa das ressonâncias Brasil-
África. Estou falando Brasil-África, desculpem, é uma mania
nossa de generalizar, mas, na verdade, era a África banto,
especialmente Angola, de onde veio a maioria da população
brasileira. Até hoje nós temos mais de 50% da população
afrodescendente.

Nós desenvolvemos esses livros-objetos que homenageiam os


pequenos. Como Josiley mostrou, nessa história, o Coelho,
pequenininho, faz o grande de cavalo. Então esse é o coelho.
Aqui está o livrinho, que é uma homenagem aos pequenos.
Ele é intitulado “A força dos pequenos” e reúne todo o
repertório de narrativas que têm esses animais falantes como
personagens, aqui e em Angola. São exemplares diferentes da
mesma coletânea. Aqui nós temos o sapo e a tartaruga, que
é um bicho muito inteligente também. Então o livrinho tem
a capa feita de casco de tartaruga. Depois vocês podem ver.
Tudo com artesanato desenvolvido por artesãos do povoado
do Bichinho, aqui em Minas Gerais, perto de Tiradentes.

162
A gente também desenvolveu, vocês vão ver o aspecto
material destes livros, alguns inspirados nos livros anteriores
à imprensa, nos que tinham formato de rolos. A gente tem um
rolo de tecido, feito em serigrafia. As narrativas, como desde
o início do nosso trabalho, são escritas por jovens que estão
conosco nas equipes. Vários já se tornaram grandes escritores,
como é o caso da poeta Ana Elisa Ribeiro, que trabalhou com a
gente no início de sua graduação.

10 anos do Posling – CEFET-MG


Imagem de Bianca Dantas

163
Imagens de Bianca Dantas

164
DESPEDIDA
Eu vou-me embora,
mas um dia eu volto aqui
Eu vou-me embora,
mas um dia eu volto aqui
Eu vou morar na mata
onde canta a Juruti
Eu vou morar na mata
onde canta a Juruti
Passarim bateu asa,
bateu asa e avoo
Passarim bateu asa,
bateu asa e avoo
Quand’ocê for embora,
dê lembranças meu amor
Quand’ocê for embora,
dê lembranças meu amor

O Grupo Movência é fruto do encontro de artistas e professores


que participam de um grupo de pesquisa sobre tradições orais
da Faculdade de Educação da UFMG. As principais ações do
10 anos do Posling – CEFET-MG
grupo (contação de histórias, pesquisa, oficinas e curadoria
de eventos) baseiam-se em um repertório constituído por
obras vocais originárias de matrizes africanas, indígenas,
latino-americanas e brasileiras.

Os espetáculos do grupo colocam em cena contos orais,


poemas, canções e imagens de matrizes africanas, indígenas e
brasileiras, propondo diálogos interculturais e multiartísticos
por meio de performances intermídia. No repertório
encontram-se obras de diferentes tradições orais, encontradas
em diversas regiões da África, do Brasil e da América Latina.

165
Imagem de Vinícius D’ Moreira

166
FICHA TÉCNICA
Amanda Jardim (narração)
Cristina Borges (narração)
Guilherme Trielli (música e design sonoro)
Josiley Francisco de Souza (narração)
Laís Penna (produção e iluminação)
Lorena Anastácio (narração)
Tropowisk Coelho Carvalho (música e design sonoro)
Vinícius D’ Moreira (música, vídeo, design de cena e sonoro)

ARTISTAS CONVIDADOS
Sônia Queiroz (narração)
Bianca Dantas (fotografia)
Josiane Souza (desenho)
Thompson Medrado (cenografia)
Thyana Hacla (cenografia)

10 anos do Posling – CEFET-MG

Imagem de Bianca Dantas

167
168
Imagens de Bianca Dantas
Visite a página do Movência no YouTube:
https://www.youtube.com/channel/
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Maria Inês de; QUEIROZ, Sônia. Na captura da
voz: as edições da narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica; FALE/UFMG, 2004.

ANASTÁCIO, Vanessa Lorena. Um povo da palavra:


ressonâncias da cultura acústica na educação escolar indígena
Xakriabá. 2018. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Faculdade de Educação, Universidade do Estado de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2018.

CASASANTA, Lúcia M. As mais belas histórias: segundo livro.


Belo Horizonte: Editora do Brasil, 1969.

CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 3. ed.


Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da USP, 1984.

CHATELAIN, Héli. Contos populares de Angola: cinquenta


contos em quimbundo coligidos e anotados por Héli Chatelain.
Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1964.

COLUCCIO, Félix; COLUCCIO, Marta. El diablo en la tradición 10 anos do Posling – CEFET-MG


oral de Iberoamérica. Buenos Aires: Edições Corregidor, 2000.

DAVID, Raul. Contos tradicionais da nossa terra. Luanda: UEA,


1979. (Cadernos de Lavra e Oficina, 22).

EDUARDO, Otávio da Costa. Aspectos do folclore de uma


comunidade rural. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, v.
18, n. 144. nov./dez. 1951, p. 11-60.

FONSECA, António. Contribuição ao estudo da literatura oral


angolana. Luanda: INLD, 1996.

169
INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO E DO DISCO. Contos
Moçambicanos. vol. 1. Maputo: Instituto Nacional do Livro e
do Disco, 1979.

JESUS, Maria Cecília de; ALVES, Maria das Dores. Histórias


que a Cecília contava. Organização de Maria Selma de Carvalho,
José Murilo de Carvalho e Ana Emília de Carvalho. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

JUNOD, Henri A. Mœrs et coutumes des Bantous: la vie d’une


tribu sud-africaine. Paris: Payot, 1936.

PINTO, Alexina de Magalhães. As nossas histórias: contribuição


do folk-lore brazileiro para a bibliotheca infantil. Rio de
Janeiro: G. Ribeiro dos Santos, 1907.

QUEIROZ, Sônia (Coord. Ed.) 7 Histórias de encanto e magia.


Belo Horizonte: PROEX/UFMG/FINEP, 1999.

ROSÁRIO, Lourenço do. Contos africanos. Cacém: Texto


editora, 2001.

ROSÁRIO, Lourenço Joaquim da Costa. A narrativa africana


de expressão oral. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa; Luanda: Angolê, 1989.

SANTOS, Deoscóredes Maximiliano dos [Mestre Didi]. Contos


negros da Bahia. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1961.

SANTOS, Rafael Barbi Costa e. A cultura, o segredo e o índio:


diferença e cosmologia entre os Xakriabá de São João das
Missões/MG. 207f. Dissertação (Mestrado em Antropologia).
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal de Minas Gerais, 2010.

170
SOUZA, Josiley Francisco de. Do canto da voz ao batuque da
letra: a presença africana em narrativas orais inscritas no
Brasil. 2012. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) —
Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2012.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires
Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida.
São Paulo: Hucitec, 1997.

GRUPO MOVÊNCIA
Amanda Jardim é contadora de histórias, antropóloga e educadora. Bacharel e
mestranda em Antropologia pela UFMG. Realiza pesquisas com o povo indígena
Xakriabá. Desde 2017, atua de maneira autônoma promovendo o ensino das
temáticas indígenas em escolas da rede pública e privada.
Cristina Borges é contadora de histórias, atriz, performer e professora de
português. É mestre em Literatura Brasileira pela UFMG, pós-graduada
em “A arte da performance” pela Faculdade Angel Vianna e em Consultoria
Pedagógica pela Universidade de Mainz. Já atuou como contadora de histórias
nos grupos Os Linguarudos e Trupe Malalô.
Guilherme Trielli é poeta, músico e professor de literatura e português
na Faculdade de Educação da UFMG. Dedica-se à pesquisa e ao ensino nas
áreas de escrita criativa, didática da literatura e estudos interartes, atuando
também na Educação Indígena e do Campo.
Josiley Francisco De Souza é contador de histórias, músico e professor de
literatura e português na Faculdade de Educação da UFMG. Pós-doutor pelo
Instituto Caro y Cuervo da Colômbia, pesquisando as vozes africanas, afro-
10 anos do Posling – CEFET-MG
brasileiras e afro-colombianas dos contos orais.
Laís Penna é produtora cultural, educadora, pesquisadora da literatura e do
universo literário. Pós-graduada em psicopedagogia clínica pela UniBH, graduada
em artes cênicas pela UFOP e graduanda em pedagogia pela UFMG.
Lorena Anastácio é contadora de histórias, cantora, instrumentista,
educadora, pesquisadora das narrativas de tradição oral e da cultura da
criança. Mestre em educação pela UEMG. Como cantora e contadora de
histórias participou de diversos espetáculos, além de ministrar oficinas sobre
a arte de contar histórias. É pesquisadora da educação indígena e das relações
entre oralidade e escrita nas culturas Xakriabá e Maxakali.
Vinícius D’Moreira é artista visual e músico, graduado em Desenho
Industrial e Programação Visual pela UEMG. Vinícius pesquisa e experimenta
a linguagem e os efeitos das artes visuais e cênicas.

171
SOBRE OS MOVIMENTOS
DOS TIPOEMAS.
DA ORIGEM AO INFINITO.
DO UM AO TODO.
DO CHUMBO AO PIXEL.
Cláudio Santos Rodrigues1
Sérgio Antônio Silva2

O texto apresenta o processo dos movimentos gerados sobre


o que denominamos TIPOEMAS, a partir da videoinstalação
TIPOS MÓVEIS. Será descrito como aconteceu cada uma das
performances, com suas diferentes formações, adaptações e
especificidades. Será disponibilizado, no formato de QR Code,
acesso aos vídeos originais e ao registro das performances, que
demonstram a capacidade de desdobramentos, remixagens
em diversos formatos e mídias.

1 Cláudio Santos Rodrigues – Mestre em Design, Inovação e Sustentabilidade pela ED/


UEMG (2015). Graduado em Publicidade e Propaganda pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (1993). Atualmente é diretor de criação da Voltz Design, atuando 10 anos do Posling – CEFET-MG
principalmente nos seguintes temas: design, design audiovisual, design de interação, redes
socias/educativas, museu expandido, design gráfico movente e tipografia. Professor na
Escola de Design da UEMG. Membro do grupo de pesquisa -grafia: estudos da escrita. É
CTS – Certified Tecnology Specialist pela Infocomm International. Através do coletivo F.A.Q
se apresentou em performances audiovisuais no Brasil, França, Holanda e África do Sul.
Parceiro do Instituto Fábrica do Futuro, Residência Criativa do Audiovisual e articulador
do projeto de extensão entre a UEMG e o Polo Audiovisual da Zona da Mata e região. Tem
mais de 20 anos de experiência em gestão de projetos de design aplicados no setor cultural e
educativo. Realizador de vídeos premiados no Brasil e Exterior.
2 Sérgio Antônio Silva – Doutor em Letras: Estudos Literários pela UFMG. Professor e
pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade do Estado de
Minas Gerais – PPGD-UEMG, com disciplinas, orientações e pesquisas ligadas à cultura do
impresso, aos estudos editoriais e ao design gráfico. Coordenador do grupo -grafia: estudos
da escrita (www.grupografia.org). Autor dos livros A hora da estrela de Clarice e Papel, penas
e tinta: a memória da escrita em Graciliano Ramos. Organizador de outros livros e autor de
textos esparsos.

173
Tipoema. Mix. Remix. A mixagem é a lógica do movimento.
A linguagem sincopada. Poesia concreta. Música abstrata.
Rastros, sobreimpressões. A imagem da letra, a letra como
imagem. Ideogramas moventes. O impresso, sua força material,
sua marca. A sensualidade do papel, a tela multi-sensorial.
A repetição. Uma tesoura que corta recorta e cola: imagem, som,
silêncio. Um, dois, três... sete movimentos, cada qual com sua
textualidade. O poeta e (o) tipógrafo, sempre por perto. Ouro
Preto, cidade onde tudo começou, no Vagão dos Sentidos, na
vaguidão dos sentidos, na vastidão dos sentidos, na devassidão
dos sentidos. Outras cidades, mundo afora. Performance
da performance. Os corpos. Cláudio, Leonardo, Fabiano e
convidados, ao vivo. Uma imersão, sensações intensas. Enfim,
um remix, o próximo movimento dos Tipos Móveis.

INSTALAÇÃO AUDIOVISUAL IMERSIVA


TIPOS MÓVEIS
Vagão dos Sentidos | Mariana | 2012

https://vimeo.com/55628167

A animação e instalação audiovisual Tipos Móveis propõe


uma imersão no universo da tipografia, que foi uma invenção
revolucionária para a divulgação e perpetuação das ideias e
saberes dos homens. Tipos Móveis, inicialmente, trata da
presença dessa prática no contexto específico das cidades de
Mariana e Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil. Sabe-se que a
primeira obra impressa nessa região é anterior ao advento da
impressão Régia no Rio de Janeiro.

174
Curiosamente, a história da imprensa em Minas
inicia-se, por um ato de rebeldia da própria
autoridade máxima da capitania, em 1807, ou seja,
um ano antes da chegada da Família Real portuguesa
e da criação da Impressão Régia, no Rio de Janeiro.
A primeira obra impressa em Minas Gerais surgiu
sob os auspícios do então governador, Pedro Maria
Xavier de Ataíde e Mello, que, querendo ver publicado
o poema laudatório que lhe dedicou Diogo Pereira de
Vasconcelos, tomou para si a responsabilidade de
infringir a ordem régia de 6 de julho de 1747, que
proibia terminantemente a realização de qualquer
atividade de imprensa no Brasil. Tal empreendimento
só foi possível graças ao padre, artista e impressor José
Joaquim Viegas de Menezes. (ARAÚJO, 2006, p. 20).

Ali também foram publicados, desde a segunda década do


século XIX, periódicos em grande quantidade e diversidade.
O próprio espaço das oficinas tipográficas era tido como local
aglutinador, sendo ponto de encontro e ambiente para desde
resoluções corriqueiras, familiares, a negociações comerciais
e políticas. Imprimiam-se casamentos e revoluções.

Escolhemos dar nova vida, com a utilização das mídias


digitais, à materialidade desse universo, que está se perdendo
pelo simples e óbvio motivo do abandono gradual dessa
10 anos do Posling – CEFET-MG
técnica de impressão. A relação e o contato com a textura das
peças de ferro e dos sulcos nos papéis, dos tons das tintas
e das madeiras das gavetas foi uma das linhas exploradas
na narrativa audiovisual. Esse universo e seus detalhes são
apresentados num filme de animação que percorre as janelas
do Vagão dos Sentidos.3 A intenção foi transpor e traduzir,

3 Vagão dos sentidos: projeto de instalação audiovisual com animação gráfica para 12 telas
de LCD, realizado em parceria com o animador Leonardo Rocha Dutra e com o músico e
sound designer Lucas Miranda, a convite do Santa Rosa Bureau Cultural, dentro do Vagão
dos Sentidos, no âmbito do projeto de Educação Patrimonial Trem da Vale – localizado em
Mariana, MG.

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para a linguagem audiovisual, a lógica do impresso tipográfico,
o labirinto das gavetas, as cores das tintas e a textura das
letras de chumbo no papel de algodão, além dos rangidos e
burburinhos de fundo das gráficas. Para a realização do filme,
foi levada em conta a conformação do espaço, a posição de
cada tela e de cada poltrona do vagão, para possibilitar uma
experiência sensorial em diferentes pontos de vista. Imagem
e som dão forma a essa composição, possibilitando um novo
tipo de fruição, por meio da relação entre as pessoas, as
palavras e as máquinas.

Cartaz de divulgação da instalação audiovisual estudos de perspectiva e visualização dos


diferentes pontos de vistas dentro do vagão dos sentidos. Acervo de Cláudio Santos.

Durante toda a peça, o som acompanha as mesmas seções e


temáticas. Não temos aqui uma trilha em separado, é uma
associação intrínseca com a imagem no intuito de realmente
se alcançar uma ambientação com efeitos sensoriais imersivos.
Para enriquecer a proposta do projeto e, ao mesmo tempo,
homenagear um reconhecido tipógrafo local, encomendamos

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um poema exclusivo de Guilherme Mansur.4 A poesia dos tipos
é há mais de 30 anos matéria desse tipógrafo e poeta ouro-
pretano. Além do grande apoio prestado nas conversas e na
disponibilização de seus tipos, ramas, clichês, ornamentos e da
própria impressora Heidelberg para as gravações, Guilherme
compôs um poema exclusivo que foi explorado de diferentes
formas na realização do vídeo, e cujas palavras foram
desmembradas e recompostas em uma das partes da narrativa.

Os desdobramentos iniciais do projeto


O primeiro desdobramento do projeto foi uma oficina
ministrada por Cláudio Rodrigues para 17 jovens do ensino
básico de Passagem de Mariana, distrito de Mariana.
O objetivo era sensibilizar os participantes para a importância
e o caráter histórico embutido na tipografia e, além disso, fazer
uso dela de forma lúdica e criativa, por meio do manuseio de
uma máquina tipográfica centenária e da transposição do
poema e do material impresso para o universo da animação
gráfica. O resultado foi uma animação stop-motion de um
minuto, além de acesso a todo o repertório pesquisado para a
produção de Tipos Móveis. Percebendo as diferentes reações
e sensações provocadas, ao expor o universo da tipografia 10 anos do Posling – CEFET-MG
através desses recursos a diversas faixas etárias, foi possível
pensar na ampliação da proposta inicial, a fim de expandir
as possibilidades de acesso ao conteúdo. Foi criada, assim,

4 Descendente de proprietários da gráfica Ouro Preto, Guilherme Mansur cresceu entre


tipos, clichês, papéis, chapas, tinta, cheiro de cola, guilhotina, zumbido de cortes, dobras,
embrulhos. Enfim, despertou para a poesia em meio a toda a parafernália que constituía,
inevitavelmente, o mundo gráfico há alguns anos, toda uma “sujeira”, uma “bagunça”,
que (fato lamentável de um ponto de vista cultural) vai-se tornando cada vez mais difícil
de se encontrar hoje em dia, em função das novas tecnologias de impressão. As edições
de Mansur são marcadas por esse ambiente em que ele se criou, atravessadas por uma
precariedade que acaba por se afirmar como seu dado encantador. (OLIVEIRA, s/d).

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uma nova versão em forma de vídeo single channel5 a partir
do vasto material gerado para a composição de sua origem,
Tipos Móveis, estruturado em combinações de imagens
orquestradas em função do ritmo sonoro de cada cena.

Captura fotográfica de gavetas de tipos da Gráfica Ouro Preto. Cláudio Santos, Lucas
Miranda e Leonardo Dutra, com Guilherme Mansur em sua casa em Ouro Preto. Acervo de
Cláudio Santos.

5 Formato de vídeo a ser exibido em apenas um canal ou tela.

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TIPOEMA: MOVIMENTO UM
NOITE BRANCA |
Parque Municipal, BH | 2012
HONG KONG MOBILE FILME AWARDS |
Hong Kong | 2013

https://vimeo.com/47350267

Tipoema: movimento um surge como uma variação da


instalação Tipos Móveis, através de uma recombinação das
pré-composições em que letras, frases, palavras e texturas
dialogam com os intervalos musicais, proporcionando
diferentes formatos de página/tela. No projeto, foram
utilizadas as bases de imagens já divididas em quatro (em
seu formato original para o funcionamento no sistema do
vagão). Foi uma transposição de proporções de página e das
estruturas da tipografia para intervalos audiovisuais. Esse
desdobramento permitiu que o vídeo fosse selecionado e
10 anos do Posling – CEFET-MG

exibido no evento Noite Branca, no Parque Municipal de


Belo Horizonte, em 2012. As letras que formam cada palavra
são animadas enquanto o poema se movimenta, destacando
o caráter de unicidade e, ao mesmo tempo, infinitude do
processo tipográfico.

A metáfora básica da composição tipográfica é a


de que um alfabeto (ou todo o léxico, no chinês)
é um sistema de partes intercambiáveis [...] A
caixa de tipos do velho compositor é uma bandeja
de madeira subdividida que carrega centenas

179
desses bits de informação intercambiáveis. Essas
partículas subsemânticas, essas unidades chamadas
de “espécimes” pelos impressores tipográficos são
letras fundidas em corpos de metal padronizado,
esperando pelo momento em que serão agrupadas
em combinações significativas, depois dispersadas
e novamente recombinadas em outras formas. A
caixa de tipos do compositor é um dos ancestrais
primordiais do computador – e não é por acaso que
a composição tipográfica, tendo sido um dos últimos
ofícios a ser mecanizado, tenha sido um dos primeiros
a ser mecanizado. (BRINGHURST, 2005, p. 29).

Todo o material gerado para o vídeo foi disponibilizado


também para o Guilherme Mansur, incluindo duas famílias de
tipos que foram fotografados e digitalizados em alta resolução
por Cláudio Santos e Leonardo Dutra. Isso deu ao Guilherme
a possibilidade de compor digitalmente, com essa tipografia,
em seu computador pessoal, diferentes poemas, dando origem
à exposição “Estalactites Tipográficas”, para a oitava edição
do Fórum das Letras de Ouro Preto, de 22 a 25 de novembro
de 2012. Mansur participou com a exposição na Galeria do
Centro Cultural FIEMG. Compôs poemas do expressionista
alemão August Stramm traduzidos por Augusto de Campos.

Poemas impressos com uso de fontes digitalizadas, produzidos por Guilherme Mansur para
o Fórum das Letras em Ouro Preto. Fotos e acervo de Cláudio Santos.

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Posteriormente, foi desenvolvida uma nova versão derivada
do vídeo Tipoema: movimento um. Esse novo vídeo foi,
então, um dos 10 selecionados pelo Festival Vivo Arte.
Mov para participar do 3º Hong Kong International Mobile
Film Awards. Ao todo, 10 países selecionaram 10 filmes
e, a partir de uma seleção de um júri internacional,
fomos escolhidos para representar o Brasil. Durante a
cerimônia, realizada em 24 de março de 2013, em Hong
Kong, o vídeo foi contemplado com o troféu de prata
na categoria animação, dentre os 10 filmes finalistas.
Foi o único representante das Américas nesse festival
mundial de conteúdo para celular e dispositivos móveis.
Dentro do processo de seleção, foi preciso apresentar
verbalmente o vídeo para um júri internacional. Além da
entrega dos prêmios, aconteceu, depois, uma conferência
dentro de um evento mundial de cinema e televisão (Hong
Kong International Film & TV Market), em que se apresentou
o processo de produção do filme para uma plateia de
estudantes de várias partes do mundo. Os outros troféus
foram para Alemanha, Austrália, França, Taiwan e Espanha.
10 anos do Posling – CEFET-MG

Imagens do vídeo Tipoemas: movimento um exibido no evento Noite Branca. Centro de


convenções de Hong Kong, dentro do envento 3º Hong Kong International Mobile Film Awards.
Fotos e acervo de Cláudio Santos.

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O passo seguinte foi apresentar o vídeo e o processo de
produção para um público de antigos e novos tipógrafos, no
Museu Vivo Memória Gráfica, localizado no Centro Cultural
UFMG, em Belo Horizonte, como parte da programação do
lançamento do Livro dos Tipógrafos, em 2013.

FOTO EM PAUTA | FESTIVAL DE FOTOGRAFIA


DE TIRADENTES | Tiradentes | 2016

https://vimeo.com/160102578

A primeira versão apresentada no formato de performance de


Tipoema: movimento um aconteceu no evento Foto em Pauta
– Festival de Fotografia de Tiradentes, em 2016. A partir
do envolvimento do Foto em Pauta em torno dos clichês
fotográficos e do uso da tipografia para a produção do material
gráfico, optou-se por se fazer uma apresentação pública de
fragmentos da dissertação de Cláudio Santos Rodrigues,
Design aplicado às tecnologias de rede colaborativa: projeto para
difusão da memória coletiva da tipografia em Minas Gerais6.

Ensaio da performance com André Travassos no violão e Cláudio Santos na prensa tipográfica
com sistema acoplada ao laptop. Fotos de Alessandra M. Soares. Acervo de Cláudio Santos.

6 Pesquisa realizada no âmbito da Programa de Pós-Graduação em Design da Escola de


Design da UEMG, com a orientação de Sérgio Antônio Silva.

182
A apresentação se deu através da integração da prensa
tipográfica com um sensor e um computador em uma interface
mecânico-digital e com música tocada ao vivo. Eis uma breve
explicação do funcionamento do sistema de impressão de
vídeos:
1) O operador executa o movimento de impressão da
tipografia.
2) O sensor é acionado através de um imã colado ao braço
da prensa.
3) Um circuito eletrônico que permite a exibição de uma
mídia é disparado.
4) A qualquer momento, pode-se chamar vídeos ou textos
animados via software.
5) Em paralelo, trilhas, sons e ruídos são executados ao vivo.

TIPOEMA: MOVIMENTO DOIS


II Fórum Patrimônio Gráfico em Movimento
| Museu Tipografia Pão de Santo Antônio |
Diamantina | 2016

10 anos do Posling – CEFET-MG

https://vimeo.com/198234777

Em 2016 fomos convidados para fazer a performance na


abertura do II Fórum Patrimônio Gráfico em Movimento,
que contou com lançamento de diversos livros, oficina de
gravura, palestras, com presenças nacionais e internacionais.
Apresentamos, em formato ao vivo, a versão remix Tipoema:
movimento dois, com o mesmo uso de sensor acoplado à prensa

183
tipográfica centenária que permite imprimir vídeos, a partir
dos conteúdos da instalação audiovisual Tipos Móveis e do
vídeo Tipoema: movimento um. O mais rico desse encontro foi
apresentar e conectar com diferentes gerações de tipógrafos,
artistas e gravadores. Um diálogo interdisciplinar que visa o
agora e o futuro, ao valorizar o passado.

Estrutura da performance com Leonardo Dutra no teclado. Performance em ação com


Cláudio Santos e Fabiano Fonseca (foto de Emília Mendes). Palestra de Laura Sandoval
Sarmiento, do Taller Editorial – Universidad de Cauca/Popayãn, Colômbia – e de José
Lourenço Gonzaga, da Lira Nordestina, de Juazeiro do Norte. Impressos produzidos ao
longo do evento por diversos participantes e organizado por Ana Utsch e Flávio Vignoli.
Acervo de Cláudio Santos.

184
Sendo em Diamantina, cidade inspiradora de tantas histórias,
o encontro não poderia se dar sem as boas conversas
paralelas com figuras emblemáticas: Maria Dulce lembrou-
nos do ineditismo e coragem da Associação Memória Gráfica
Typographia Escola de Gravura, que desenvolveu um trabalho
sócio-educativo para jovens entre 14 e 21 anos no período
de 1999 a 2010. Antônio F. Costella, do Museu Casa da
Xilogravura, em Campos do Jordão, apresentou uma vida
dedicada a uma coleção. José Lourenço, da Lira Nordestina,
trouxe-nos uma trajetória de sabedoria e sensibilidade no
mundo da gravura. Os gráficos do Centro Editorial e Gráfico
(Cegraf) da Universidade Federal de Goiás nos mostraram um
projeto potente de resgate da tipografia, dentro do parque
Gráfico da Universidade Federal de Goiás. Ainda contamos
com a presença delicada e a força de representantes da
Universidade de Cauca, na Colômbia, com um projeto de que
conecta tipografia e design. Gilberto Tomé, da Fonte Design,
de São Paulo, nos apresentou sua sofisticação em soluções
gráficas. Flávio Vignoli falou do seu trabalho (não menos
sofisticado) na Tipografia do Zé. Ana Utsch e Sônia Queiroz
apresentaram a Red Latinoamericana de Cultura Gráfica.
Sérgio Antônio Silva apresentou o TipoLab – Laboratório de
Tipografia da Escola de Design da UEMG e lançou a reedição
do Tratado da Gravura de A. Bosse, com belo projeto gráfico
10 anos do Posling – CEFET-MG
do LDG-ED-UEMG. Cláudio Santos Rodrigues reforçou o
compromisso assumido com o mestre Sebastião Bento da
Paixão, da cidade de Jequitinhonha, MG. Por fim, designers
e tipógrafos de Belo Horizonte apresentaram o livro/filme
Prelo, que coroou o encerramento com uma bela homenagem
ao sr. Ademir Matias, nosso grande mestre. Ainda aconteceu
produção coletiva de alta qualidade para quem estava lá
colocar a mão na tinta e levar para casa um impresso do evento.

185
TIPOEMA: MOVIMENTO TRÊS
POSLING – CEFET – MG | BH | 2018

https://vimeo.com/284212680

A convite de Guilherme Trielli, da FAE/UFMG, e de Marta


Passos Pinheiro, do CEFET-MG, apresentamos a performance
analógica/mecânico/digital no evento comemorativo dos 10
anos do curso de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
– POSLING do CEFET-MG. A apresentação baseou-se,
conceitualmente, em manifestos redigidos em diferentes
épocas, por diferentes grupos. A impressão, feita na prensa,
como dispositivo performático, e distribuída para o público
ao final, era de uma parte da Cantiga de Nossa Senhora do
Protesto, poema de Affonso Ávila. A performance foi assim
descrita, na ocasião:

Tipografia e poema em movimento. Tipos animados,


letras em marcha, o prelo feito agito. Tipografia e
poesia: resistência. Deslocamento, a prensa pensa
o movimento da tela. Um dispositivo mecânico – o
braço – é o ponto de partida. Arranca, sobe o rolo,
desce a tinta sobre a rama. Imprime-se sobre o
papel, enquanto a tela, sob o comando do dispositivo
acoplado à prensa – e ao som do momento – passa.
Imagens estáticas e em movimento. O analógico e o
digital, simultâneos. Transposição intersemiótica,
semioses, simbioses. O som da máquina, a música
como elemento narrativo.

186
Registro da performance com Cláudio Santos na prensa e Vinícius Cabral no laptop,
realizando a trilha incidental, o sampler e o remix. Impressos utilizados na projeção: acervo
de Cláudio Santos. Fotos de Isabela Prado

E, na orquestração do movimento, a presença, a performance


dos corpos. O tipógrafo transmídia, atravessado por diversas
linguagens. O tipógrafo performer, poeta, guerrilheiro.
O tipógrafo do ar, cheio de sonhos, em busca de um novo
mundo, utópico e feliz. Ao fim, a impressão de que lutar é
preciso, pois dias melhores virão.
10 anos do Posling – CEFET-MG
Esta versão teve a narrativa roteirizada por Cláudio Santos
Rodrigues e Sérgio Antônio Silva, impressão e performance,
por Cláudio Santos Rodrigues, impressão tipográfica por
Pedro Sakô e Tatiane Quintino, programação de software,
Sérgio Mendes, sistema Live AV/VJ por Fabiano Fonseca e
especialmente trilha incidental, sampler e remix por Vinícius
Cabral, que deu origem posterior à música TIPOBEAT/
MANIFESTO_1, uma audiocolagem feita por VCR a partir da
performance com samplers diversos e iconografias  auditivas
relacionadas a manifestos dos séculos XX e XXI e ao universo
contemporâneo digital.

187
TIPOEMA: MOVIMENTO QUATRO
OCUPAÇÃO 62 PONTOS | Galeria quartoamado
| BH | 2017

https://vimeo.com/291582912

A perspectiva de troca e conexão que faz parte do universo


da tipografia permitiu o fortalecimento e a criação de uma
rede de que fazemos parte. Nesse contexto surgiu o coletivo
62 pontos, que é uma gráfica e um coletivo que, na época,
tinha como participantes Flávio Vignoli, Ana Utsch, Cláudio
Santos, Gabriel Nascimento, Luis Matuto, Olavo D’Aguiar,
Rafael Quick e Vitor Paiva. Depois de mais de um ano com uma
produção significativa, a Quartoamado, que é uma galeria física
que fica na Savassi, em Belo Horizonte, propôs uma ocupação
completa de suas instalações, com um mês de atividades.
Conforme descrito no site da galeria, “esta exposição é uma
ode ao futuro, em forma de passado. Um encontro entre
esses tipógrafos e gravadores que se tateiam na vontade de
experimentar caminhos e possibilidades com as máquinas
de outro tempo. A apresentação de uma pesquisa autoral e
experimental em tipografia – e nas técnicas de impressão.
A galeria toma forma de oficina tipográfica”

188
Registros da Ocupação 62 pontos e da performance realizada na Galeria Quartoamado.
Fotos de Cláudio Santos e Leonardo Dutra. Acervo de Cláudio Santos.

A cada semana acontecia uma atividade, incluindo lançamento


de livro e filme, bate-papo, leilão e duas performances.
O Tipoema: movimento quatro, que foi um remix do Tipoema:
movimento três, acrescentando, para além dos manifestos,
as produções contemporâneas mais atuais realizadas por
coletivos do Brasil.
10 anos do Posling – CEFET-MG

189
TIPOEMA: MOVIMENTO CINCO
ARTE DEMOCRACIA UTOPIA | Museu de Arte do
Rio | RJ | 2018

https://vimeo.com/352059583

A exposição Arte Democracia Utopia – Quem não luta tá morto


foi inaugurada no dia 15 de setembro de 2018, no Museu de
Arte do Rio, na Praça Mauá – Rio de Janeiro. Com coordenação
geral de Eleonora Santa Rosa e curadoria assinada por Moacir
dos Anjos, um dos mais importantes curadores do país, com
passagens pelas Bienais de São Paulo e Veneza, a mostra
fez parte do programa de comemoração dos cinco anos do
MAR, como é conhecido o museu. A exposição, porém, não
se restringiu às galerias do museu. Para expandir o diálogo,
foi criado o projeto Transborda, que ocupou os pilotis com
estruturas lúdicas e arquibancadas onde aconteceram
encontros, debates e atividades da Escola do Olhar. O evento
de abertura contou com shows, performances, intervenções
artísticas, entre outras atividades culturais.

190
Registros da exposição Arte Democracia Utopia, realizada no Museu de Arte do Rio (MAR)
e da performance realizada com Cláudio Santos e Fabiano Fonseca. Fotos de Alessandra M.
Soares e Marcelo Braga. Acervo de Cláudio Santos.

E assim, mais uma vez tivemos a possibilidade de mostrar


a performance Tipoema, agora no seu movimento cinco. Um
remix, para dar visibilidade a fragmentos do uso da tipografia
em forma de manifestos, como os de Minas Gerais do
século XIX ou aqueles realizados em função da “Revolta da
Chibata”, que foi um motim naval que aconteceu no Rio de 10 anos do Posling – CEFET-MG
Janeiro, em 1910. Junto a este conteúdo inédito passamos
pelas vanguardas, até os dias de hoje, através dos coletivos
artísticos. Saímos de Belo Horizonte com a prensa centenária
e a levamos para um público maior, na abertura da exposição
junto com diversas outras atrações e finalizado com show de
Jards Macalé. Os mesmos versos impressos da Cantiga de
Nossa Senhora do Manifesto, do poeta Affonso Ávila, foram
entregues ao público durante a performance.

191
TIPOEMA: MOVIMENTO SEIS
TIPOS LATINOS | MUMO | BH | 2018

https://www.facebook.com/claudio.voltz/posts/10216719304436572

O Museu da Moda de Belo Horizonte (MUMO) recebeu em


2018 a exposição Tipos Latinos, que fez parte da 8ª Bienal
de Tipografia Latino-Americana. A exposição tem o Brasil
como cofundador e, desde a sua inauguração, em 2004,
acontece simultaneamente em 14 países da América Latina,
retratando as transformações tipográficas no último século e
os principais aspectos relacionados. Realizada pela Escola de
Design da UEMG e a Universidade FUMEC, a mostra recebeu
no total 73 trabalhos. Entre as obras, 15 são de designers
brasileiros selecionados entre os 444 inscritos do Brasil, Chile
e a Argentina.

Convite do evento Tipos Latinos e frame da performance realizada com Cláudio Santos e
Fabiano Fonseca a partir de vídeo transmitido ao vivo por Yuri Simon da Silveira. Acervo de
Cláudio Santos

A abertura da exposição contou com palestras de professores,


designers e pesquisadores como Rafel Neder, Gustavo Soares,
Tadeu Costa e Sérgio Antônio Silva. Além de oficinas e
rodas de conversa, aconteceu a performance denominada
Tipografia em movimento, na qual Cláudio Santos apresentou
os principais movimentos e ações de produção e de resgate do
Patrimônio Gráfico em Minas Gerais e no Brasil, conectados
com a Red Latinoamericana de Cultura Gráfica sob o remix
sonoro de Fabiano Fonseca.

TIPOEMA: MOVIMENTO SETE


FÓRUM DAS LETRAS | Ouro Preto | 2018

https://vimeo.com/467080352

Com o tema “Emergências: Literaturas e Outras


Narrativas”, o encontro homenageou os poetas Guilherme
Mansur e Paulo Leminski. A curadoria foi assinada pela
coordenadora Guiomar de Grammont em parceria com o
Sesc. A abertura oficial do Fórum das Letras aconteceu na
Casa dos Contos, com as exposições “Silêncio Lascado –
10 anos do Posling – CEFET-MG

Guilherme Mansur & Paulo Leminski” e Mostra Literária do


Sesc de Paulo Leminski. Em seguida, o público acompanhou
a apresentação do Coral do IFMG. A exposição contou com
o apoio da Voltz Design. O primeiro dia de evento contou
também com a Performance Homenagem: Tipoema:
Movimento 7 – Mansur / Leminski. Mais um remix do
espetáculo mecânico/analógico/digital com uso de prensa
tipográfica, música e imagens, realizado por Cláudio Santos,
Leonardo Dutra e Fabiano Fonseca, com participação de
Ivan de Castro e Guilherme Garcia. Desta vez, a partir da

193
manipulação do sistema digital que alterna vídeos e fotos
com uso da alavanca da prensa manual, foram apresentados
haicais de Guilherme Mansur e poemas de sua parceria com
Paulo Leminski. A apresentação aconteceu no Glória Bistrô.
Foi apresentado material de arquivo jamais visto sobre
Mansur e Leminski, além de alguns poemas impressos em
tipos móveis no TipoLab – Laboratório de Tipografia da
Escola de Design da UEMG.

O ouro-pretano Guilherme Mansur  é personagem de


fundamental importância na história do Fórum das Letras.
O tipoeta, como era chamado pelo concretista Haroldo
de Campos, já participou de diversas edições do evento e
recebe, agora, justa homenagem, ao lado do curitibano Paulo
Leminski, falecido em 1989, de quem foi amigo pessoal.
Além da performance Guilherme e Leminski, também foram
homenageados pela escritora ouro-pretana Adriana Versiani
e pelo poeta Nicolas Behr, com quem, junto com Guilherme
Garcia, tivemos a honra de passar uma manhã juntos,
conversando, trocando ideias e impressos enquanto Guilherme
organizava a “chuva de poesia” para o encerramento do evento.
***
Tipoema. A experiência em movimento. Um curso, como o
de um rio ou de uma escola. Um método. Um percurso. Já lá
se vão alguns anos nesse rumo, o que aprendemos com tudo
isso? Que sim, o movimento nos movimenta, nos alimenta,
nos leva a terras estrangeiras, nos livra de certas tormentas
e nos dá a certeza de que estamos indo bem, apesar dos
pesares. Apesar da inércia, do retrocesso que nos cerca, o
movimento é contínuo, é parte do espaço-tempo, misto de
passado presente futuro. O Tipoema lida com o olho da letra,
a língua em estado de desenho, traço, linha. Assim sendo,
viva a tipografia, vivam os poetas e a poesia. E que venha o
movimento 8.

Da origem ao infinito. Do um ao todo.


REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Marta Maria. Uma história de precursores e
ativistas. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte,
ano XLIV, n. 1, jan.-jun., 2008.
BRINGHURST, Robert. Elementos do estilo tipográfico (versão
3.0). Trad. André Storlaski. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
RODRIGUES, Cláudio Santos. Design aplicado às Tecnologias
de Rede Colaborativa: Projeto para Difusão da Memória Coletiva
da Tipografia em Minas Gerais. 2015. 169 f. Dissertação
(Mestrado em Design). Programa de Pós-Graduação em
Design, Universidade do Estado de Minas Gerais, 2015.
RODRIGUES, Cláudio Santos; SILVA, Sérgio Antônio. Uma
Tipografia na Escola de Design: relatos de um laboratório. In:
UTSCH, Ana e GRAVIER, Marina Garone (Org.). Encontro em
torno de tipos e livros. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019.  p.
121-136.
OLIVEIRA, Anelito. Encantadora precariedade. Caderno de
Leitura – EDUSP. Disponível em: http://200.144.189.30/
cadleitura/cadleitura_0802_7.asp. Acesso em: 19 out. 2020.
10 anos do Posling – CEFET-MG

195
Da ‘esquizofrenia produtiva’ à
sobrevivência da Universidade
Pública no Brasil

Eu acho que precisamos [adotar] plenamente a


“esquizofrenia produtiva”. Precisamos, simplesmente,
transmitir à sociedade, da forma mais clara possível,
algo sobre o qual eu estou plenamente convencido:
não existe, no Brasil, nenhuma instituição pública
que [...] tenha dado a contribuição que a universidade
pública deu ao país. Não existe!

João Cezar de Castro Rocha1

No evento comemorativo dos 10 anos do Programa de Pós-


Graduação em Estudos da Linguagem (Posling) do CEFET-MG,
o Professor Dr. João Cezar de Castro Rocha (UERJ) fez a
apresentação do Prof. Dr. Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford
University) na conferência intitulada “Bliss/intensidade:

1 Professor Titular de Literatura Comparada da UERJ. Possui graduação em História pela


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1992), mestrado em Letras pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (1994). Completou dois cursos de doutorado. Em 1997 concluiu
o doutorado em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1997), defendendo
a tese Ao pé-da-letra: a literatura do homem cordial, orientada pela Profa. Dra. Maria
Helena Rouanet. Em 2002 completou seu segundo doutorado, em Literatura Comparada,
pela Stanford University (2002), com a tese Marinetti goes to South America: Confrontos e
diálogos do Futurismo na América do Sul, orientada pelo Prof. Dr. Hans Ulrich Gumbrecht.
Em 2005-2006 realizou pós-doutorado na Freie Universität, Berlim, orientado pelo Prof.
Dr. Joachim Küpper. Pesquisou estratégias de apropriação cultural, com destaque para as
obras de Oswald de Andrade e Fernando Ortiz. Contou com Bolsa de Pesquisa concedida
pela Fundação Alexander von Humboldt. Em 2014, realizou novo pós-doutorado na
Princeton University, orientado pelo Prof. Dr. Pedro Meira Monteiro, como visiting professor.
Atualmente é assessor ad hoc da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e
participa do Conselho Consultivo de várias revistas especializadas no Brasil e no exterior.
Foi residente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), eleito para o
biênio 2016-2017. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira
e Literatura Comparada, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura brasileira,
literatura comparada, cultura brasileira, crítica literária, teoria literária, dependência
cultural e estratégias de apropriação cultural (antropofagia e transculturación). Texto e
imagem disponíveis na Plataforma Lattes: CV: http://lattes.cnpq.br/2996791931732673
proposta para um existencialismo do século XXI?” e
ministrou a palestra “Estudos literários hoje”. João Cezar de
Castro Rocha ainda concedeu esta entrevista às professoras
Andréa Soares Santos e Joelma Xavier2 do Departamento de
Linguagem e Tecnologia do CEFET-MG, na qual aborda temas
relacionados a perspectivas teóricas dos Estudos Literários,
especialmente a partir da publicação de Culturas Shakesperianas
(É Realizações, 2017) e aponta reflexões sobre a condição de
assimetria político-cultural brasileira, a formação e a postura
de intelectuais no Brasil e a Universidade Pública hoje.

[Profª Joelma Xavier]:


Em Culturas Shakesperianas, o senhor propõe a possibilidade de
uma vivência sobre o conceito de intersubjetividade coletiva, de
René Girard. O senhor poderia, por favor, explicar essa noção
teórica?

[Prof. Dr. João Cezar]:


Bom, muito obrigado pela oportunidade do diálogo e parabéns
pelos 10 anos do Programa. René Girard é um pensador
francês que desenvolveu, ao longo de aproximadamente
cinco décadas de trabalho, o que ele denominou de teoria
mimética. O princípio básico da teoria mimética é o de que
o sujeito, ao contrário do que nós pensamos, pelo menos
desde o Romantismo, não deseja autonomamente; ele não
deseja de maneira espontânea. O desejo é sempre mediado
por um modelo. Então, consciente ou inconscientemente,
2  Profª Andréa Soares – Doutora em Letras: Estudos Literários pela FALE/UFMG.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Linguagens - Posling/CEFET-MG. Professora
do Curso de Bacharelado em Letras, Tecnologias da Edição do CEFET-MG e do Departamento
de Linguagem e Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais –
Campus I – Belo Horizonte/MG.
Profª Joelma Xavier – Doutora em Teoria da Literatura/Literatura Comparada no
Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da FALE/UFMG. Professora do Curso
de Bacharelado em Letras, Tecnologias da Edição do CEFET-MG e do Departamento de
Linguagem e Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais –
Campus I – Belo Horizonte/MG.
quando nos interessamos por um objeto, seja uma pessoa,
um objeto amoroso, seja um objeto físico, seja um objeto
imaterial, como o prestígio, a honra, nós estamos sempre
guiados por um ‘outro’ que é o nosso modelo. Por isso, ele
desenvolveu o conceito de interindivíduo, para opor à ideia de
indivíduo como autônomo e autotélico a noção de interdivíduo,
que apenas é capaz de definir sua subjetividade pela presença
de outros. Isso implica dizer que o sujeito mimético é
fundamentalmente um sujeito vulnerável, é um sujeito
marcado por uma incompletude radical. Em suma, trata-se de
um sujeito lacunar, cuja lacuna só pode ser temporariamente
preenchida pelo concurso do outro, da alteridade.

Em Culturas Shakespearianas, procurei aproximar o conceito


girardiano à ideia de Oswald de Andrade sobre o sujeito
antropofágico que, de igual forma, só faz sentido se partirmos
da ideia de que o sujeito antropofágico nunca se basta a si
mesmo; por isso ele precisa, continuamente, devorar o outro,
assimilar a alteridade. A pergunta que eu me fiz, a partir do
trabalho de René Girard, foi a seguinte: podemos pensar
que certas culturas são tão vulneráveis quanto o indivíduo?
Isto é, mesmo antes de René Girard, todos já sabíamos com
Freud que o ego se estrutura a partir de uma oposição, de uma
tensão permanente entre o id, ou seja, a fonte dos desejos,
e o superego, a fonte das repressões ou das adequações dos
desejos às conveniências sociais. Lacan, já nos havia dito, na
famosa ideia do Le stade du miroir, que a criança aprende a
olhar-se não quando se mira num espelho, mas, quando,
diante de um espelho, ela vê o olhar de uma pessoa que a
olha. Ela [a criança], portanto, só pode ver-se no olhar do
outro. Mas antes de Freud, de Lacan, de René Girard, como
sempre, a literatura já tinha dito tudo, de maneira muito mais
aguda. Na peça de William Shakespeare, Julius Caesar, há
uma cena rigorosamente fundamental em que o personagem
Cassius precisa convencer a outro, Brutus, de participar da
conspiração contra Caesar. Como Brutus era respeitado em
Roma como um homem íntegro, honesto, absolutamente
acima de qualquer suspeita, se Brutus se unisse à conspiração,
então, deixaria de ser conspiração e passaria a ser uma
operação para salvar a República, essa era a ideia básica.
Então, Cassius faz os maiores elogios possíveis a Brutus e
depois pergunta a ele: “Brutus, can you see your face?” ou seja,
“Você pode ver o seu rosto?”, e Brutus responde (e a resposta
de Brutus é, em síntese, todo o meu livro): “No, Cassius, for
the eye sees not itself, but by reflection by some other things.”.
Genial, não é?! Ele diz: “Não, Cassius, o olho não pode ver-se
a si mesmo, a não ser por algum reflexo, por alguma outra
coisa”, ou seja, uma superfície externa ao próprio sujeito. É
isso que a psicanálise nos ensinou; é isso que Shakespeare já
havia intuído com força total.

A minha hipótese é a seguinte: e se pudermos pensar


numa estrutura similar não para um indivíduo, mas
para uma coletividade, não para uma pessoa, mas para
uma comunidade simbólica, o que aconteceria se nós
imaginássemos uma interindividualidade coletiva, isto é,
uma cultura que se determina a si mesma, que tem a sua
autoimagem literalmente esculpida pelo olhar estrangeiro,
muitas vezes não tendo consciência de que é isso que está
ocorrendo? Então a pergunta é: faz algum sentido pensar
nessa hipótese? Imaginamos que a resposta seja sim, então,
a segunda pergunta, a mais importante, se impõe: quais são
as consequências do ponto de vista cultural e político dessa
situação, de uma interindividualidade coletiva, de todo um
país, de toda uma nação, que define sua realidade a partir do
olhar do estrangeiro?
[Profª Andréa Santos]:
Nesse aspecto, o senhor acha que a teoria da sociologia dos
campos, de certa maneira, ao fazer um contraponto entre culturas
consideradas de prestígio, pode convergir com essa abordagem da
intersubjetividade coletiva?
[Prof. Dr. João Cezar]:
Interessante pergunta. Claro, sem dúvida. Partindo dessa
intuição, com base no pensamento girardiano, eu tenho
tentado, na verdade, já tenho três livros publicados e um
quarto em preparo, eu tenho tentado pensar em outra questão.
A questão é a seguinte: a Modernidade é um sistema que
principia no século XV, com as grandes navegações, e uma das
características do que chamamos de processo de Modernidade
– e aí pouco importa se falamos em Modernidade ou em
Pós-Modernidade, como vocês compreenderão – porque o que
ocorre, na verdade, a partir do século XV, é um processo de
mundialização, é um processo de imposição, ou de circulação
cada vez mais crescente e cada vez mais planetária de certos
hábitos, de certos códigos, de certos gostos, não é verdade?!
E o que nós chamamos de globalização hoje é o ponto final
ou o ponto máximo desse processo, que já leva quatro, cinco
séculos. É claro que se você observa esse processo do ponto de
vista da Europa, até a segunda guerra mundial, ou do ponto de
vista dos EUA, a partir de 1945, ou hoje, do ponto de vista da
China, é claro que o que você observa é uma transposição em
escala planetária dos próprios modelos. Isto é, é difícil para a
observação europeia, até o final da segunda guerra mundial,
a norte-americana até hoje, a chinesa, provavelmente no
futuro, é muito difícil, para eles, analisar esse processo, a
partir da perspectiva que nós, brasileiros, podemos analisar,
porque, para nós, há cinco séculos, ocupamos a mesma
posição, quer dizer, nessa relação assimétrica, ocupamos a
posição menos favorecida, independentemente de qual seja
a relação, pode ser econômica, política, cultural, linguística,
ocupamos a posição menos favorecida. E o que eu tenho
tentado, então, é pensar o sistema-mundo no sentido de
Immanuel Wallerstein, distinguindo centro ou centros,
periferias, que é o usual, mas ele introduziu uma terceira
categoria, a categoria da semiperiferia, que é uma categoria
fundamental para nós, porque as nossas metrópoles, no
processo inicial da expansão colonial, as nossas metrópoles,
que, para nós, eram centros absolutos, no interior da Europa
eram impérios semiperiféricos, que é como Boaventura
de Souza Santos considera Portugal e Espanha. Fomos
colonizados por impérios semiperiféricos, o que apenas
agrava a questão da interindividualidade, porque, no nosso
caso, se nós tínhamos Portugal e a América Hispânica tinha a
Espanha como referências imediatas, na verdade, a referência
final era Inglaterra e França, criando uma relação sempre
mais complexa de mediações, hierarquias e assimetrias.

Daí, a pergunta básica é: e se nós reconsiderarmos todo esse


processo dos últimos cinco séculos a partir da posição que
ocupamos? Nós ocupamos, nas relações assimétricas e sempre
mais planetárias, mas também sempre mais assimétricas e
sempre mais hierárquicas, nós ocupamos, sistematicamente,
o polo menos favorecido. Quais são as estratégias que
criamos – culturais, políticas e econômicas – para lidar com
essa circunstância? O fato é ainda mais agravado, porque,
no interior de uma situação como a nossa, não-hegemônica,
há situações ainda mais graves do que a situação geral do
Brasil em relação a Portugal, em relação à Inglaterra. Há, por
exemplo, durante todo o período monárquico – colonial e
monárquico –, há a escravidão; ainda hoje há o desrespeito
com que a pessoa indígena é tratada. E pouco importa se o
partido é de direita ou de esquerda. Talvez um dos maiores
problemas do governo da presidente Dilma Rousseff,
legitimamente eleita e deposta por um golpe, foi a absoluta
indiferença à centralidade da questão indígena no Brasil. Não
houve preocupação da presidente com a questão indígena.
Ela tratou a questão indígena como um partido de direita a
trataria. Então, a questão se torna sempre mais complexa,
porque nós, numa relação assimétrica, não apenas ocupamos
uma posição inferior como nós reproduzimos internamente
os mesmos mecanismos. Isso é um pouco do que eu tenho
tentado pensar.

[Profª Joelma Xavier]:


Em uma perspectiva estética, é possível haver uma conexão teórica
entre o conceito de intersubjetividade coletiva, discutido pelo
senhor, e a noção de imaginação teórica da alteridade, discutida em
seu ensaio “Uma teoria de exportação? Ou: ‘Antropofagia como
visão de mundo’”, no livro Antropofagia hoje: Oswald de Andrade
em cena –, no qual há um grande pensamento sobre absorção entre
culturas, e entre esses conceitos e as noções benjaminianas de
anacronismo e o conceito de montagem de Aby Warburg?

[Prof. Dr. João Cezar]:


Essa questão é bem interessante e pode nos levar longe; aliás,
felizmente. Vamos por partes. O que eu tenho tentado pensar,
em termos de estratégias intelectuais, artísticas, estéticas,
em geral, é um desdobramento dessa questão. Imaginemos
um caso concreto. Imaginemos um romancista brasileiro, ou
mexicano, ou guatemalteco no século XIX. É absolutamente
impossível fazê-lo sem conhecer bem Cervantes, a tradição
inglesa do século XVIII, o realismo francês do século XIX e, em
traduções para o francês, o Bildungsroman alemão e o romance
russo. Mas por que é impossível? Porque, mesmo antes – essa
observação não é minha; é de Roberto Schwarz – mesmo antes
de haver romancistas brasileiros, já havia um público leitor de
romances no Brasil, e um público solidamente constituído.
Como lia esse público? Lia em traduções. Ou lia textos no
original em francês, ou textos traduzidos para o francês. Ler,
no século XIX, romances de outras culturas traduzidos para o
francês era ler, na verdade, o romance francês. Dois exemplos
apenas: Crime e Castigo, de Dostoiévski, nas traduções iniciais
para o francês, que são as traduções que circularam inclusive
no Brasil, os tradutores franceses chegaram à conclusão de que
os longos diálogos entre Raskólnikov e o delegado de polícia
eram metafísica russa. Daí, os tradutores franceses cortaram
os diálogos. Agora, Crime e Castigo sem os longos diálogos
entre Raskólnikov e o delegado de polícia deixa de ser Crime
e Castigo. Ele se transforma num vulgar romance policial em
que, na verdade, um homem desastrado resolve, para estudar,
roubar uma senhora idosa e imagina que ela não está em casa,
mas, infelizmente está, e, então, mata a primeira, aparece uma
vizinha e ele mata a segunda pessoa. Ou seja, é um romance
policial desastrado. É um romance policial quase cômico, sem
os longos diálogos metafísicos entre Raskólnikov e o delegado
de polícia, porque o título Crime e Castigo quer, sobretudo,
dizer que o único castigo possível não é a penalidade legal; é a
consciência. E todo o diálogo do delegado com Raskólnikov é
para que Raskólnikov adquira a consciência do crime.

A primeira tradução para o francês de Clarissa Harlowe,


romance absolutamente icônico do século XVIII inglês,
de Samuel Richardson, foi feita pelo Abade Prévost, que
é o autor de Manon Lescaut, também um romance icônico
do século XVIII francês. Curiosamente, a tradução para o
francês só tem um terço do tamanho do original; é porque
o Abade Prévost, simplesmente, traduziu apenas um terço; é
um “tradutor cleptomaníaco”, como no excepcional conto de
Dezsö Kosztolányi. E aí surgiu, na França, o que talvez seja,
em termos modernos, a primeira crítica de tradução. Diderot
escreveu um longo ensaio, chamado “L’Éloge de Richardson”
[“O elogio a Samuel Richardson”], denunciando que o Abade
Prévost tinha traduzido apenas um terço do romance e que,
por isso, esse romance não deveria ser lido, porque não era
o verdadeiro romance de Richardson. Deu certo e o Abade
traduziu o romance inteiro!

Os franceses sempre fizeram assim nos séculos XVIII e XIX,


as traduções eram, sobretudo, interpretações e reduções ao
gosto francês. Mas isso quer dizer, então, voltando ao ponto,
que, se você é um romancista brasileiro, se você se chama
Teixeira e Souza e, em 1843, você decide publicar o primeiro
romance escrito por um brasileiro, O filho do pescador, você
só pode fazê-lo se você tiver lido essa tradição, porque seu
público já leu, seu público a conhece. O filho do pescador é um
romance realmente ruim, mas absolutamente extraordinário
para o nosso interesse. O filho do pescador não é exatamente
um romance, porém uma mescla de temporalidades: é um
romance, uma fábula, um ‘romance’, no sentido espanhol
de ‘romanceiro’, de ‘narrativa em versos’. E mais: ao mesmo
tempo, um romance de tese, um romance moralista, em
outras palavras, ele é o próprio anacronismo vivo, ele é a
justaposição de várias temporalidades.

Um poeta, muito pouco lido hoje em dia, mas um poeta que


mereceria um estudo dentro dessa hipótese, é o poeta José
Albano. José Albano, nos seus melhores momentos, é um dos
melhores poetas da língua portuguesa, mas, na maior parte
dos casos, ele é apenas um homem muito erudito, que sabia
grego, sabia latim, sabia francês, sabia italiano, lia todos os
clássicos no original, mas José Albano não era capaz de fazer
uma destilação de tudo o que ele havia assimilado. José Albano
representa boa parte das culturas não-hegemônicas naquilo
que não conseguimos fazer: a assimilação produtiva da
alteridade, que é a justaposição de temporalidades com certo
eixo de controle. Quando José Albano torna-se, por assim
dizer, um antropófago, ele tem nome próprio: Machado de
Assis! Em última instância, um autor como Machado de Assis
transforma o anacronismo numa forma; essa forma ganhou
precisão conceitual, dado por outro autor não-hegemônico,
um autor que, na verdade, é o grande autor machadiano da
literatura hispano-americana. Penso em Jorge Luis Borges
que, em Pierre Menard, autor del Quijote. No último parágrafo,
diz-se que o Pierre Menard inventou “o método das atribuições
errôneas e do anacronismo deliberado”.

Então, o anacronismo deliberado é uma forma propriamente


não-hegemônica que eu proponho para lidar com o fato
concreto de que somos sempre segundo, estamos sempre
atrás do tempo; ao banquete da civilização, chegamos sempre
na hora da sobremesa, na famosa frase de Alfonso Reyes.
Ora, se no banquete da Modernidade, chegamos na hora da
sobremesa”, perdemos o prato principal, mas, muitas vezes,
a sobremesa é o melhor da refeição, não é verdade? Então,
boa parte do que eu tento fazer é entender essas estratégias
e, em nenhuma circunstância, eu tenho em relação a elas
melancolia alguma. Não há melancolia possível, se não
dispomos de origem; melancólico só pode ser aquele que
perdeu a origem; nós nunca contamos com origem alguma;
temos total liberdade para ter uma irreverência completa
e absoluta no trato com a tradição e dispomos de algo que,
na verdade, autores hegemônicos jamais contarão: Se você
é um romancista francês no século XIX, basta ler literatura
francesa, basta escrever em francês, se você é um ensaísta
no século XXI, basta ler a literatura escrita em inglês, basta
escrever em inglês.

Você pode ser monoglota e ainda assim se arriscar a escrever


um livro chamado O cânone ocidental [risos]. Harold Bloom é
monoglota, ele só fala inglês, ele só lê em inglês. Ele pode até
dizer que passa os olhos em algum texto em francês, mas, se
for literatura, tem de ser tradução, se não for tradução, ele
não lê. Quando perguntaram a Harold Bloom porque ele não
havia incluído, n’O cânone ocidental, Machado de Assis, ele
foi muito honesto e disse: “porque não havia nenhuma boa
tradução”. A frase é inaceitável, porque, primeiro, ele poderia
ter aprendido português; segundo, se ele não sabe a língua,
ele não pode avaliar a tradução. A frase não é aceitável em
nenhuma circunstância. Nós apenas a aceitamos, porque ele
escreve em inglês e mora em Nova Iorque. Imaginemos o
ridículo de um autor brasileiro que apenas lesse em português,
que apenas falasse português e que, ainda assim, escrevesse
uma História da Literatura Ocidental e que perguntassem a
ele por que ele não incluiu William Faulkner e ele dissesse:
“porque não há boa tradução” [risos]. O ridículo é tão grande,
que rimos, mas não nos damos conta de que é igualmente
ridículo que Harold Bloom tenha escrito The Western Canon.

Há um gênero que se tornou muito comum, que poderia se


chamar o gênero ‘o escritor fala do seu ofício, ou a escritora
fala do seu ofício’, e um texto fundamental para entender
esse gênero, que agora virou uma coqueluche, é do E. M.
Foster, Aspects of the Novel, é um dos grandes clássicos do
gênero, depois o Kundera escreveu L’Art du roman, etc. Eu li o
livro do Foster e, para fazer esse trabalho, eu li vários assim.
Foster não cita Cervantes. Na compreensão de E.M. Foster,
do romance como gênero, não há Cervantes, o que é como
se alguém desejasse escrever uma poesia épica e ignorasse
Homero, desconhecesse Virgílio, e, se escrevesse em língua
inglesa, considerasse, com seriedade, que a poesia épica
começa com John Milton. Ele só cita um autor em língua
estrangeira, que é André Gide, mas há uma nota reveladora,
que diz “translation by...”, ele só lia em inglês?
Milan Kundera, muitas décadas depois, publicou L’Art du
roman, que ele escreveu em francês. Já é outra coisa. Ele cita
um autor hispano-americano, Carlos Fuentes, que era amigo
dele. Cita numa linha, mas pelo menciona cita. Está lá o
Cervantes, tanto que Kundera divide o romance na tradição
cervantina e na tradição de Waterloo. A tradição cervantina seria
Cervantes, Sterne, Machado de Assis; a tradição de Waterloo
seria o romance realista de Stendhal, Balzac, mas, no final
do ensaio, o leitor encontra um glossário. Veja a entrada
“romance”, entre parênteses ressalva-se “europeu”, e se diz:
“porque o romance, assim como a música clássica, é um
fenômeno exclusivo da cultura europeia”. Perfeito, mas não
deveria ter citado, então, o Fuentes!

Agora, leia Mario Vargas Llosa, e seu texto, absolutamente


extraordinário, chamado Cartas a un joven novelista [Cartas
a um jovem romancista], absolutamente notável! Todos os
autores citados pelo Foster e pelo Kundera, Vargas Llosa
também cita. Todos! Mais: lá está Faulkner, Guimarães Rosa,
e há um momento em que Vargas Llosa reúne Guimarães
Rosa e Virginia Woolf, dizendo que, em ambos, há tramas nas
quais o personagem se transforma de homem em mulher e
de mulher em homem, ele se refere, obviamente, a Diadorim
e ao Grande Sertão: veredas. Então, encontramos um autor
peruano, um autor tcheco e um autor de língua inglesa, de
maneira muito sintomática, quanto mais distante do que
nós consideraríamos o centro, maior o repertório. Porque
um autor peruano leu toda a tradição da América Hispânica,
no caso do Vargas Llosa, leu a tradição brasileira e leu toda a
tradição europeia e outras tradições. Isso quer dizer, então,
que, aqui, o que seria uma situação de inferioridade, tem
uma potência única. Como a língua portuguesa não circula,
nos sentimos na obrigação de dominar um repertório amplo.
Um intelectual brasileiro de ponta, que realmente leva a
sério o seu ofício, possui, na sua área, um repertório que um
professor de Harvard não possui – com raríssimas exceções.
O repertório que um teórico brasileiro de ponta domina, em
geral, um teórico norte-americano ou europeu não conhece,
porque o brasileiro terá lido os teóricos da tradição local, ele
terá lido os hispano-americanos, ele terá lido um romeno, um
tcheco, ao passo que, se você é norte-americano, você sempre
estudou no Ivy League, se você já possui a chancela da Ivy
League, se você escreve em inglês, quaisquer três páginas que
você escreva são muito boas...

Agora, se você dá aulas na UERJ, se o Pezão [Luiz Fernando


Pezão, governador do Rio de Janeiro] não paga seu salário,
para você escrever três páginas boas, você terá de trabalhar
muito mais. Em última instância, e com bom humor, a
biblioteca de um autor brasileiro ocupa sempre mais espaço
que a biblioteca de um autor de Paris, em tese, o que não
quer dizer que os livros estejam sempre bem assinados
[risos], mas em tese, pelo menos, o número de livros com
os quais trabalhamos durante a vida tende a ser maior;
o nosso repertório tende a ser mais amplo e diversificado.
Isso tanto pode criar uma paralisia, um terrível sentimento
de inferioridade, tolo, quanto pode, o que é mais raro, gerar
uma potência, porque, diante da ampliação do repertório só
há uma alternativa para produzir, essa alternativa é aprender
a realizar, continuamente, sínteses críticas. Não basta apenas
ampliar o repertório, mas a ampliação de repertório é um
passo indispensável para a formulação de um pensamento
que saia de si mesmo, que não seja solipsista. Uma parte
considerável dos autores que lemos com enorme reverência
no Brasil é de um solipsismo lamentável, porque se limitam a
sua própria tradição e nem se dão conta disso!
[Profª Andréa Santos]:
Em relação a essa noção de tradição literária, discutida pelo senhor,
e a partir da leitura de seu livro Por uma esquizofrenia produtiva:
da prática à teoria, impressiona-me o fato de o senhor sempre
insistir na prática incessante da leitura e na ideia de desmistificar
a noção de sentido oculto do texto. A partir disso, ocorre-me um
pensamento sobre tradução, oriundo dos estudos da tradução,
de que a tradução funciona como um operador que permite a nós,
sujeitos periféricos, e a todo leitor, desde que este esteja disposto,
ampliarmos nossos repertórios. Considerando a perspectiva teórica
de que toda tradução é calcada na ideia do sentido oculto no texto,
como o senhor avalia a qualidade das traduções e o processo de
produção da tradução, tanto na teoria quanto na literatura?

[Prof. Dr. João Cezar]:


Eis uma questão bem interessante, mas bem difícil também.
Uma característica muito interessante, pelo menos é o
que eu proponho, das culturas não-hegemônicas – só um
esclarecimento: eu prefiro chamar de culturas ‘hegemônicas’ e
‘não-hegemônicas’ no lugar de ‘centro’ e ‘periferia’, porque as
reflexões em torno das noções de ‘centro’ e ‘periferia’ tendem
sempre a resolver as contradições, os impasses que não se
resolvem, a partir de metáforas espaciais. Por exemplo, num
ensaio que foi muito importante, extremamente inspirador,
mas que já se encontra datado, o ensaio de Silviano Santiago
sobre “O entre-lugar do discurso latino-americano”, que
é uma belíssima metáfora, mas, quando se lê o ensaio,
descobre-se que estar no entre-lugar é, por assim dizer, um
lugar privilegiado por definição: estejamos todos no entre-
lugar e seremos todos mais críticos! A mesma ideia encontra-
se na noção de ‘frestas’, proposta por Luiz Costa Lima. Ora,
de novo, a ‘fresta’ é, literalmente, um entre-lugar, cujo olhar é
oblíquo e nos permitiria ver aquilo que, nos lugares estáveis
da terra não se pode ver. A pergunta que eu faço é muito
simples: Por quê? Qual é a razão? Se alguém me disser que isso
está escrito no entre-lugar ou na fresta, então se trata, salvo
engano, de um pensamento determinista. O vocabulário pode
ser sofisticado, eu posso recorrer a Kant ou a Derrida, mas eu
estou afirmando que o entre-lugar tem uma essência e que a
fresta tem uma potência que, necessariamente se manifesta,
estou no círculo de uma determinação necessária: eis minha
primeira dúvida.

Segunda dúvida: do ponto de vista social, não é verdade


que o intelectual, num país periférico, seja periférico. Ora,
num país periférico, um intelectual é, por definição, uma
pessoa que ocupa um lugar de centralidade na sociedade.
Nos últimos vinte anos, tornou-se mais comum que o
professor universitário seja oriundo dos subúrbios, de
periferias da cidade. Não era assim há trinta ou quarenta
anos. Não era assim: os professores universitários vinham
de camadas muito favorecidas da sociedade. Nós, professores
universitários, com exceções, viemos das camadas mais
ricas da sociedade. Por questões biográficas, eu viajei muito
e frequentei os melhores lugares, tanto na Europa quanto
nos Estados Unidos, em termos de universidades. E já tive
oportunidades de frequentar a casa de professores que são
os grandes nomes do século XX em nossas áreas. Olha, eu
nunca vi empregados na casa deles. Depois do jantar, os
professores se levantavam para lavar a louça com a esposa.
Na hora de fazer um café, nós fazíamos. Na hora de preparar
um lanche, nós fazíamos. Eu já estive na casa de René Girard
na Califórnia, em Palo Alto, e em Paris; eram ele e a esposa.
Nós fizemos um livro juntos, um livro de diálogos, então,
trabalhamos durante cinco anos. Eu nunca vi um empregado
na casa de René Girard, por cinco anos; um dos maiores
pensadores do século XX. Eu estive na casa de Wolfgang
Iser, que era um querido amigo. Éramos eu, ele e a esposa.
Nós cozinhávamos, eu ajudava em alguma coisa; não havia
mais ninguém na casa; não havia empregados. Você vai aqui, a
Belo Horizonte, ao Rio de Janeiro ou a São Paulo, à casa de um
professor de prestígio e há um ou mesmo duas empregadas!
Daí você vai me dizer que um professor tradicional brasileiro,
no Brasil, ocupa uma posição periférica? Por favor! Ele
ocupa uma posição, do ponto de vista social, centralíssima,
que poucos professores universitários de Brown University,
por exemplo, ocupam na sociedade norte-americana.
Do ponto de vista da representação social, esses professores da
Brown não ocupam um lugar comparável ao de um professor
universitário importante no Brasil. Essa questão tem de ser
realmente discutida, com imenso cuidado. Então, eu prefiro
dizer circunstância ‘hegemônica’ e ‘não-hegemônica’ porque
tais noções revelam um dinamismo interno próprio: a
posição hegemônica pode mudar historicamente e, no seio de
culturas hegemônicas, há contextos não-hegemônicos e, em
culturas não-hegemônicas, há muitos bolsões de hegemonia.
Tradução: nas culturas não-hegemônicas, a tradução é, na
verdade, o verdadeiro centro da tradição.

A primeira obra da literatura latina, e aqui eu estou


considerando que, do ponto de vista cultural, a cultura latina
foi não-hegemônica em relação à cultura grega, pelo menos
nos primeiros momentos. A primeira obra da literatura latina
é a tradução de Homero. Nas culturas não-hegemônicas como
as nossas, a tradução, desde sempre, é o centro da tradição.
Quando Teixeira e Souza, de maneira um tanto desajeitada,
ou José Albano, com um excesso de erudição se perdem, não
conseguem compor exatamente o que eles desejam, é porque
eles não conseguiram partir da tradução para a emulação; eles
estão, ainda, presos no registro da tradução, mas, nas nossas
culturas, a tradução é o centro da tradição. Isso mudaria
radicalmente a forma de pensar a história literária, porque
não teríamos mais uma história literária que busca origens;
nós teríamos uma história literária que busca complexidades
e a complexidade básica da história literária não-hegemônica
é assimilação explicitada, é a citação, é a tradução reconhecida
enquanto tal. Do ponto de vista teórico, isso é uma questão
importantíssima. Importantíssima.

É muito comum a crítica à tradução, com a alegação de que


o sentido não foi perfeitamente fiel à obra original, mas isso
é um problema teórico. É que não há sentido original, fiel,
na própria obra, isto é, nenhum de nós se arriscaria a dizer,
ingenuamente, do ponto de vista teórico, que existe uma
única interpretação para um texto, não é verdade? Nenhum
de nós se arriscaria a dizer isso. Então, por que nós podemos
afirmar que a tradução não é correta porque não é fiel ao
original? Do ponto de vista teórico, só seria possível dizê-
lo, se houvesse um consenso sobre o sentido último daquele
texto, mas isso não há. Então a tradução apenas explicita a
ambiguidade radical do texto literário. Bom, agora, é claro,
que, se for a tradução de um ensaio, nós podemos chegar a um
consenso sobre o sentido desse ensaio. Quando Wittgenstein
diz: “sobre aquilo que não se pode falar deve-se calar”, se
alguém traduzir: “sobre aquilo que não se sabe aí mesmo deve-
se falar”, a tradução está errada! [risos], porque o sentido
do que está dito em Wittgenstein é muito claro. Mas não é
o mesmo em Machado de Assis. Uma frase, por exemplo,
“eles eram contraditórios, mas ambíguos também” – está em
Esaú e Jacó – essa frase é difícil de traduzir, porque a ideia de
contraditório, no sentido do romance, é a de água e vinho, sol
e lua, dia e noite e, se são tão contraditórios, não podem ser
ambíguos. Então a frase, que é muito simples, traz um desafio
enorme para a tradução.
Poderíamos pensar que a tradução, nesse ponto, e Walter
Benjamin, evidentemente, é muito importante, mas eu diria
que mais importante ainda é Haroldo de Campos, pois a ideia
da transcriação é uma ideia muito forte, muito importante.
Há essa coisa um pouco paradoxal nas traduções, sobretudo
em Haroldo de Campos, não no Augusto de Campos, suas
traduções de poesia do Augusto de Campos são notáveis e se
encontram entre os melhores versos da língua portuguesa.
No caso do Haroldo de Campos, há um paradoxo, porque, ao
mesmo tempo em que ele abraça – em relação à transcriação
– a ideia de que não existe um sentido último do próprio
original que deva ser reproduzido na tradução e que, por isso,
o tradutor precisa, sobretudo, criar, quando você lê as notas
das traduções do Haroldo de Campos, há uma contradição,
porque aquelas notas estão gritando, aos quatro cantos, que
só há uma opção possível: a do próprio Haroldo de Campos
[risos].

Seria interessante pensar que uma tradução fecunda seria


uma tradução que consegue inspirar no leitor – refiro-me à
tradução literária – a ambiguidade e o caráter instigante da
literatura propriamente literária. Quer dizer, evitaríamos
pensar em fidelidade ao original, porque isso implica, de fato,
do ponto de vista teórico, uma ingenuidade, implica dizer que
o original possui um sentido último que pode ser decifrado
a tal ponto que todos estaríamos de acordo; nenhum de nós
se arriscaria a dizê-lo, não é verdade? Mas é obvio que isso
também não quer dizer que toda tradução é evidentemente
boa, claro que não, há critérios mínimos.

[Profª Andréa Santos]:


Acho que, talvez, expressar a questão da presença, não é?, quer
dizer, a tradução tem de compor a presença da obra, nos processos
de chegada...
[Prof. Dr. João Cezar]:
Exatamente! E podendo, para isso, dar-se à liberdade de,
deliberadamente, não ser fiel, para recuperar a presença,
certa atmosfera do original. Por exemplo, há um problema
muito sério nas traduções feitas na literatura brasileira para
o espanhol e das literaturas escritas em espanhol para o
português, é que as línguas são tão próximas que isso dificulta
muito a tradução. Em que sentido? As línguas são muito
próximas, digamos, na conjugação verbal, na parte morfológica,
e as línguas são muito próximas na parte lexical. Já na parte
sintática, o espanhol é diferente do português. O espanhol e
o português têm giros sintáticos que são, realmente, muito
diferentes. Eu me dediquei muitíssimo à língua espanhola e
à cultura hispano-americana, precisamente para tentar criar
alternativas ao modelo dominante na academia brasileira,
que é muito subserviente aos Estados Unidos, e por uma
razão que não é propriamente intelectual, mas apenas porque
as bolsas americanas e as cátedras honorárias americanas são
maravilhosas. E, veja, eu não reclamo de nada!

Eu fiz um segundo doutorado em Stanford, com full fellowship


de Stanford, já ocupei duas cátedras honorárias nos Estados
Unidos, já dei aulas em Princeton University, achei tudo ótimo,
uma maravilha!, aquelas bibliotecas extraordinárias! E eles me
pagaram muito bem, eu quero que eles me convidem de novo!
[risos] Mas somos muito subservientes ao modelo americano
e isso não é por uma razão intelectual; é uma razão puramente
pragmática. É porque se trata do centro das decisões do
mundo acadêmico. Uma razão puramente pragmática, não é
mesmo?! Então, muitas vezes, o que eu percebo é que, quando
se traduz a literatura escrita em espanhol para o português,
ou do português para o espanhol, a tradução é apenas uma
transposição lexical daquele texto. Isso cria um problema
tremendo em termos de ordem sintática, porque, algumas
frases que eu leio em traduções não fazem sentido. Expresso-
me mal: é claro que fazem sentido, mas causam um incômodo
ao leitor em português, ao não ser que esse leitor em português
tenha, realmente, se esmerado em aprender espanhol, mas,
nesse caso, ele não precisa ler a tradução [risos]. Em muitos
romances da literatura em língua portuguesa traduzidos
para o espanhol, há o mesmo problema, então a tradução do
espanhol para o português e do português para o espanhol
são exigentes e, se há uma similaridade morfológica e lexical,
não há o mesmo nível de similaridade sintática. Isso é um
problema seríssimo e, para quem trabalha com tradução,
seria um belo estudo a ser feito.

[Profª Joelma Xavier]:


A partir da excelência dos eventos da Abralic em 2016 e em 2017,
sediados na UERJ e pensando em sua fala, na abertura da Abralic
em 2016, de que “é preciso resistir e faremos isso com excelência”,
pergunto-lhe: como a universidade pública resiste e sobrevive hoje?

[Prof. Dr. João Cezar]:


Eu acho que precisamos, neste caso, adotar plenamente
a “esquizofrenia produtiva”. Precisamos, simplesmente,
transmitir à sociedade, da forma mais clara possível, algo
sobre o qual eu estou plenamente convencido: não existe, no
Brasil, nenhuma instituição pública que tenha a relação custo-
benefício da educação pública; não existe, no Brasil, nenhuma
instituição pública (imaginemos a USP como um marco,
1934) que, ao longo de 84 anos, tenha dado a contribuição
que a universidade pública deu ao país. Não existe!

O sistema de saúde não tem a capilaridade da escola pública dos


ensinos básico e médio, não existe nenhuma outra instituição
brasileira que esteja presente em todos os municípios do país;
só há uma, infelizmente, que é o PMDB [risos], o que é um
desastre! [risos], mas o PMDB é o único partido que está
presente em todos os municípios brasileiros. Então, tirando o
PMDB, a escola pública é a única instituição que está presente
em todos os municípios brasileiros. Saneamento básico não
existe em todos os municípios brasileiros, água potável não
existe em todos os municípios brasileiros; iluminação elétrica
não existe em todos os municípios brasileiros; transporte
público não existe em todos os municípios brasileiros,
honestidade entre os políticos não há em município algum!
A educação pública é a única instituição deste país que está
presente do norte ao sul, do leste ao oeste. E a universidade
pública forma, todos os anos, milhares e milhares de cidadãos
e, dentre estes milhares e milhares, uma parte considerável, é
ou a primeira geração ou a segunda geração de sua família que
teve acesso ao ensino superior. E esse simples acesso ao ensino
superior, além de aumentar consideravelmente a autoestima
da família – o que não é pouco –, significará, em muito pouco
tempo, um acréscimo inédito na renda familiar. Na UERJ, que
é uma universidade popular, que se situa entre o Maracanã
e a Mangueira, perto de Vila Isabel, e nada poderia ser mais
emblemático – uma universidade a que se pode chegar de
trem, de metrô, de ônibus, de van e a pé, uma vez que, se
você desce o Morro da Mangueira, em 5 minutos você está
na UERJ, se você pega o metrô, você chega à UERJ, se você
desce na estação de trem e caminha 5 minutos, você chega
à universidade. A UERJ, que é uma universidade popular,
mudou a vida de milhares, milhares e milhares de alunos.
Provavelmente, já estejamos chegando à casa de centenas de
milhares de alunos que tiveram sua vida modificada por meio
da UERJ. Não existe, neste país, nenhuma instituição que
tenha uma relação semelhante em termos de custo-benefício.
O que nós, professores universitários fazemos e temos
dedicação de horas-extras dadas com enorme entusiasmo e
amor, orientação de alunos, escrita de textos, viagens, muitas
vezes, custeadas por nós mesmos para aperfeiçoamento.
Compramos, constantemente, livros, uma parte considerável
do salário que ganhamos se encontra nas paredes de nossas
casas. Não existe nenhuma profissão neste país que tenha
dedicação semelhante dos seus membros.

Não existe nenhuma profissão neste país que dê para a


sociedade o que nós damos. Por isso, precisamos encontrar
uma forma concreta de calar a boca desses políticos corruptos
e que não têm nenhum compromisso com o país, que não têm
ideia do que seja a possibilidade de se construir uma Nação.
Precisamos encontrar uma forma de trazer a sociedade para
dentro de nossas aulas, de nossas salas de aula; convidar os pais,
os avós, os primos, os sobrinhos, o papagaio, o periquito... e
trazer todos para dentro da sala de aula, para que vejam o que
fazemos para que vejam a transformação que é possível fazer
na vida de seus filhos. Vou repetir: sei que parece um discurso
muito otimista, quase que eu me transformo numa espécie de
Dr. Pangloss, não é verdade?!, mas refiram outra instituição
brasileira que tenha um perfil semelhante ao da educação
pública e vejam como somos massacrados há muito tempo.

Eu estou escrevendo um pequeno livro sobre isso, que não será


acadêmico, é um livro para o grande público. E, nas minhas
pesquisas, eu descobri uma coisa notável: em 1958, durante
os debates da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação,
que foi, talvez, o debate mais longo da cultura brasileira, que
começou nos anos 30 e a primeira Lei de Diretrizes e Bases
da Educação só foi promulgada em 1961. Ao final dos anos
50, os debates se adensaram e havia dois grupos principais,
os chamados estatistas, liderados por uma das maiores
mentes que o Brasil já teve e hoje se encontra injustamente
esquecido, Anísio Teixeira, e os privatistas, que tinham como
um de seus líderes, o “Corvo”, quero dizer, Carlos Lacerda.
Em 1958, Carlos Lacerda tentou passar um aditivo à Lei de
Diretrizes e Bases que não obrigava (a), mas que favorecia
(e muito) a escola privada, nos níveis a que chamamos hoje
de básico e médio, e essa discussão vocês podem encontrar
nos anais da Câmara na internet. Anísio Teixeira denunciou
isso; Darcy Ribeiro, que foi o grande intelectual brasileiro
de vocação midiática, literalmente colocou a boca no
trombone e conseguiu apoio na USP. Darcy Ribeiro desafiou
Carlos Lacerda para um debate público, que teria sido um
dos grandes acontecimentos políticos da vida brasileira.
Carlos Lacerda aceitou o desafio, mas não foi; enviou uma
representante, Sandra Cavalcante, uma das lacerdistas e ela
era, na LDB, uma assessora de Lacerda, favorável ao ensino
privado. Obviamente ela foi superada por Darcy Ribeiro e o
aditivo foi derrotado. Nós poderíamos pensar “ganhamos”.
Mas não ganhamos não.

Em 1958, do ponto de vista legal, o aditivo de Carlos Lacerda


foi derrotado. Com o golpe militar, em 1964, e com as
reformas feitas durante a década de 60, começou um processo
duplo e perverso. Um processo necessário, mas o outro
processo que solapava o primeiro. O processo necessário:
a massificação do ensino; precisamos massificar o ensino no
Brasil, precisamos ter mais alunos na universidade pública.
Eu sei que meus colegas vão querer me matar por isso, que
vai significar que precisamos dar mais aulas; temos de dar
mais aulas!, temos de ter a sociedade dentro da universidade
pública; temos de fazer da universidade pública o principal
centro de resistência à barbárie, não somente do golpe, mas
desse retrocesso inaceitável. Daqui a pouco vão fazer o que
Enrique Peña Nieto acabou de fazer no México: vão vender a
água potável do Brasil!, como ele acabou de privatizar a água
no México. Isso vai ser revogado, com certeza, mas é uma
coisa absolutamente insana, e é o mesmo processo que se
encontra em curso no Brasil.

A universidade pública e a escola pública podem ser o grande


polo de resistência – precisamos trazer a sociedade para a
escola pública. A massificação é um processo necessário,
mas ela só pode ser um processo realmente transformador
se for acompanhada das condições adequadas para assimilar
o contingente maior de alunos que ingressam no sistema;
caso contrário, a massificação levará apenas à deterioração
crescente do sistema. E isso foi o que aconteceu: houve a
massificação por um lado e o achatamento salarial pelo outro.
Quem hoje quer dar aula na escola pública? São mil reais
de salário, mil e quinhentos reais de salário, em média, e as
piores condições possíveis de trabalho! Em cinco décadas, foi
possível destruir a educação no Brasil, a educação básica e a
educação média. Os nossos pais estudaram na escola pública,
os nossos pais almoçavam, tinham café da manhã, tinham
lanche na escola pública. O professor de escola pública, no
Brasil, até meados dos anos 60, tinha um salário bastante
respeitável, bastante respeitável mesmo – os professores
de educação básica, não estou me referindo aos professores
de universidade – em geral, nessa época, os professores de
escola ganhavam mais que os professores de universidade. O
achatamento que houve, no ensino básico e no ensino médio,
é o projeto deste governo, ou seja, que essa tendência de
retrocesso político tem em relação à universidade pública.

A pergunta básica é: por quê? A resposta é simples: na


ponta do lápis, é conversar com as pessoas. Vejamos o caso
da UERJ. A UERJ tem, aproximadamente, uma população
flutuante, 35.000 alunos, entre os níveis de graduação e
pós-graduação. Façamos uma conta básica: imaginemos que,
em uma universidade pública como a UERJ, com 35.000
alunos. Agora, façamos uma média ponderada dos cursos
de Medicina, Engenharia e Direito. Quanto se poderia
cobrar de mensalidade? Quinhentos reais? Trezentos reais?
Quatrocentos e cinquenta reais? – o que seria razoável?
– vamos fazer uma conta? O projeto é o seguinte: 35.000
alunos x 500 reais = 17 milhões e 500 mil reais por mês, por
12 meses, é igual a 210 milhões, em quatro anos, o valor é
igual a 840 milhões de reais; isso é corrupção caixa-zero; sabe
por quê? Porque o prédio está construído, a mão de obra está
formada, o salário é pago pelo Estado e para onde vai esse
dinheiro? Isso, na UERJ. A UnB tem 45.000 alunos, o sistema
universitário público brasileiro equivale, se somarmos todos
os alunos, funcionários técnico-administrativos e professores,
pode equivaler à população de pequenos países europeus,
talvez seja equivalente à população de Portugal. O que se
deseja é criar uma situação tal em que formas alternativas de
privatização sejam estimuladas: eis o que se deseja. Eis o projeto!

Como podemos resistir? Em primeiro lugar, reforçar nosso


compromisso com a sociedade. Por exemplo, o movimento
docente da universidade pública não pode continuar tendo,
como única estratégia de resistência, fazer greve. Não pode!
Precisamos recompor calendários, faça chuva ou faça sol;
precisamos recompor o calendário e os pais de nossos alunos
têm de saber que, se o filho entrar na universidade em 2019, se
o curso tiver 4 anos, em 2023, ele estará formado; ele não pode
se formar em 2024, no segundo semestre. E se isso acontecer,
se conseguirmos reforçar nossos laços com a sociedade, se
conseguirmos dizer para a sociedade o que eu estou dizendo:
não existe nenhuma instituição pública no Brasil que tenha,
sequer, metade da relação custo-benefício que nós temos,
que tenha feito um terço do que nós fazemos pela sociedade
brasileira, se conseguirmos transmitir isso de maneira clara,
ganhamos essa batalha. Depende de nós. Depende de nossa
capacidade de lutar e eu estou disposto a lutar, energia não
me falta. Precisamos unir nossas forças. Vamos?
Referências
ROCHA, João Cezar de Castro; PRIGOL, Valdir (org.).
Por uma esquizofrenia produtiva (Da prática à teoria). Chapecó,
SC: Argos, 2015.

ROCHA, João Cezar de Castro; Leituras desauratizadas: tempos


precários, ensaios provisórios. PRIGOL, Valdir (org). Chapecó,
SC: Argos; Recife: UFPE, 2017.

ROCHA, João Cezar de Castro; Culturas Shakespearianas:


Teoria mimética e os desafios da mímesis em circunstâncias não
hegemônicas. São Paulo: É Realizações, 2017.

10 anos do Posling – CEFET-MG

223
Corpo, presença e serenidade:
um diálogo com
Hans Ulrich Gumbrecht

Esta entrevista foi realizada após a palestra de abertura que


Gumbrecht ministrou no evento comemorativo dos 10 anos
do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
(Posling) do CEFET-MG, no dia 18/6/2018, no campus II.
A entrevista foi concedida às professoras do CEFET-MG
Olga Valeska Soares Coelho e Marta Passos Pinheiro, ao
professor da FaE-UFMG Guilherme Trielli e aos integrantes
do grupo Corpo, Movimento e Tecnologia (Comtec): Caroline
Cavalcante do Nascimento, Isabel Coimbra, Isis Carolina Vidal
Fonseca, Leandro Geraldo da Silva Acácio, Maria do Carmo
Moreira dos Santos, Marlon Fabian Soares Machado, Mauro
Figueiredo Brito Júnior, Morgana de Alvarenga Mafra, Nora
Vaz de Mello, Renata de Oliveira Ramos, Renata do Carmo
Crisóstomo Nakano, Sandra Barbosa Nogueira Borges e Siane 10 anos do Posling – CEFET-MG
Paula de Araújo.

[Profª Olga Coelho]:


Todos os alunos que estão reunidos nesta sala são integrantes
de um grupo de pesquisa que se chama Comtec. Nesse grupo,
pesquisamos questões envolvendo Corpo, Movimento e Tecnologia.
Durante cerca de dois meses, estudamos e discutimos seus livros
e suas palestras em vídeos. Nesse período, formulamos algumas
perguntas para esse momento de encontro com o Senhor. São
perguntas diretas, referentes às dúvidas que tivemos ao longo dos
nossos estudos.

225
[Prof. Gumbrecht]:
Claro. Como as perguntas da palestra, não é? Perguntas bem
específicas. [Risos]

[Profª Olga Coelho]:


[Risos] São perguntas simples, não são perguntas tão complexas
como as da palestra não [Risos]. Pretendemos, aqui, conversar
com o senhor e esclarecer nossas dúvidas referentes aos nossos
interesses de pesquisa. A primeira delas é esta: em suas palestras,
com bastante frequência, o senhor se autodeclara um humanista.
Observa-se, no entanto, que esse conceito possui diversas
perspectivas e vertentes. Para o senhor, o que seria ser humanista?
E qual seria o sentido do “Humanismo” no século XXI?

[Prof. Gumbrecht]:
Finalmente vou ter a oportunidade de recorrer a uma
citação, vou começar com uma do livro que considero o mais
importante de Foucault, entre muitos livros importantes e
memoráveis para essas discussões. Esse livro termina com
aquele parágrafo famoso que diz: “um dia, o conceito de ser
humano vai ficar rasurado, vai ser diferente”. Interessante
porque naquele contexto (o livro foi escrito no início dos
anos 60) os conceitos de humano, de humanista e de
Ciências Humanas eram usados, ainda, no sentido clássico do
Iluminismo. Mas, a genialidade de Foucault foi antecipar que,
um dia, seria necessária uma transformação daquele conceito.

Então, eu acho que a tarefa nova, o desafio grande das


Ciências Humanas hoje é pensar que já entramos num
contexto político, social, cultural, onde as definições clássicas
do Humanismo, de Ser Humano, das Ciências Humanas, já
não funcionam, não é? E, quando se está fazendo Ciências
Humanas sem se levar em conta aquela transformação,
então... São as Ciências Humanas chatas, são as Ciências
Humanas que já não despertam interesse nos jovens alunos.
O problema precisamente seria se expor experimentalmente

226
e com o sentido de risco, seria perguntar quais poderiam ser
os elementos de uma humanidade nova, transformada, já não
exatamente pautada na tradição do Iluminismo.

[Profª Olga Coelho]:


Mais “humanidade” do que Humanismo?

[Prof. Gumbrecht]:
Talvez... Quer dizer, humanidade entre aspas, não é? Mas, eu
acho que não seria só uma historicização do conceito, dizendo
que hoje em dia, quando a gente está usando esse conceito,
ele é diferente de 50 anos atrás. Mas, também, no sentido que
o João1 falou na palestra de hoje sobre uma “normatividade
sem normas”. Seria ver, por exemplo, se aquela proposta
existencialista poderia funcionar. Então podemos nos adentrar
em uma análise do que foi discutido no seminário. O evento de
hoje, não propriamente a palestra, mas as perguntas, que não
eram perguntas, eram contribuições, reações diante da situação
atual. Essas perguntas demonstraram que não temos certezas,
mas, ao mesmo tempo, temos uma grande necessidade de nos
abrirmos experimentalmente para um novo saber. Não um
saber de arqueologia, no sentido de pensar, “ainda não sabíamos
como funcionava um texto no século XVIII”, mas no sentido de
enfrentar os desafios do momento presente.
10 anos do Posling – CEFET-MG

[Profª Olga Coelho]:


Muito bom! Obrigada. Agora vamos para a segunda pergunta. Ela
é mais pessoal [Risos]. O senhor, em diversos textos publicados,
aborda a experiência da Arte. Qual a sua relação com a prática
da criação artística? O senhor já se envolveu com algum tipo de
produção artística pessoalmente?

1 Menção à apresentação do Professor João Cezar de Castro Rocha (UERJ) que antecedeu à
palestra de Hans Ulrich Gumbrecht, no CEFET-MG.

227
[Prof. Gumbrecht]:
Estranhamente, eu devo ser o único professor na história da
ciência literária que nunca tentou produzir literatura [Risos].
Às vezes, as pessoas me dizem que estou escrevendo bem, mas
eu não tenho essa ambição. Porém, eu estou casado com uma
artista. Minha mulher é pintora. Então, eu tenho, em meu
cotidiano, a oportunidade de presenciar o seu processo de criação.

Mas, o que eu estou dizendo é que não há uma norma, eu


não estou dizendo que não se deveria escrever poesia ao
mesmo tempo que se pensa sobre ela. É que eu acho que não
tenho um grande talento. Se alguém me diz que um texto que
estou escrevendo ou uma palestra são lindos, tem qualidade
estética, tudo bem, mas não é minha ambição. Então, se isso
existe, é quase um efeito colateral. Mas, de novo, insisto: não
estou dizendo que não se deveria fazer, não é?

Eu acho que, talvez, essa seja a mesma situação que descrevi


na primeira resposta: a questão é aberta, a gente também
deveria encontrar formas novas para a nossa profissão.
Porque até recentemente, até semana passada, eu estava
sendo professor, dando aulas, acadêmicas. Ao mesmo tempo,
tenho uma produção escrita, mas também estou nas mídias
influenciando artistas.

Uma coisa muito surpreendente: de repente tive um convite


do governo chileno para voltar ao Chile em novembro e falar
dois dias inteiros com o ministério. Eu não estou dizendo que
eu sou tão interessante, mas talvez devamos ver que uma
reflexão filosófica, hoje em dia, tem uma repercussão política
que antigamente não tinha, o que é importante. E eu nem
tenho a intenção de ser muito político, mas talvez devamos
ver que, de repente, política tem interesse. É uma coisa a que

228
a gente deveria reagir tentando contribuir para a emergência
de uma nova forma institucional da nossa profissão.

[Profª Olga Coelho]:


Obrigada! Concordo com você... Agora a terceira pergunta:
o senhor em várias palestras e entrevistas se refere ao tango.
Como dança improvisada, essa prática demanda uma compreensão
rápida de códigos aprendidos e compartilhados. Sinais sutis
advindos do próprio corpo do casal que improvisa: uma interação
rápida e profunda a um só tempo. Tendo em vista essa relação
de leitura e entrega, quais seriam os limites entre a experiência
de “serenidade” e essa demanda de interpretação? Isso porque
quando existe um signo, existe um sentido ali. Neste contexto, é
correto afirmar que seria um “corpo místico” entre o casal?

[Prof. Gumbrecht]:
Difícil essa pergunta! Agora, em primeiro lugar, eu gosto
de falar do ritmo. Eu gosto de falar da dança, porque, eu
existencialmente não tenho ritmo nenhum. Sou completamente
horrível. [Risos] Eu não consigo dançar. Eu tenho inveja de
quem consegue dançar bem, como no filme Dirty Dance. Eu
adoraria ser capaz de fazer isto. Eu não posso lidar nem com
algumas cadeiras no caminho, eu estou sempre tropeçando.
Então, por isso eu acho interessante o tema da dança.
10 anos do Posling – CEFET-MG
A coisa particular do tango que acho interessante, realmente,
em primeiro lugar é aquela assimetria entre a coreografia
masculina e feminina. É muito no sentido de descrever a
situação intelectual. Em cada momento de um tango se tem
que conseguir essa assimetria. E por isso, como vocês sabem,
está quase proibido2 na Argentina dançar um tango que tem
letra. Não se dança Carlos Gardel, se dança, talvez, a música
instrumental de Gardel. E eu acho que a razão é a seguinte:

2 Isso acontece em situação de competição, em festivais. Nos salões, dançam-se todos os


tipos de tango.

229
se você dança concentrando-se na letra da música, então,
não vai conseguir realizar esse desafio em cada momento.
Se você observa os casais, os grupos profissionais, quando
estão executando um tango durante cinco minutos, sempre
ocorrem um ou dois momentos que não funcionam bem.
É a originalidade.

Eu acho que, principalmente na experiência estética, nunca


existe uma relação de garantia entre o “sentido” e a “presença”,
que é sempre uma coisa precária. Eu acho que nos momentos
de Bliss, talvez, a gente tenha durante esse momento a certeza
de que “tem que ser assim”. Por exemplo: o poeta de língua
alemã mais complicado, em sua prosódia, é o Hölderlin3.
Então, muitas vezes nas minhas aulas nos Estados Unidos,
onde nenhum aluno sabe alemão, eu recito Hölderlin para
eles terem uma impressão da prosódia de suas poesias. Então,
falando não de verdade mas de certeza, você vai recitando
um poema e sabe que funcionou: assim é que se deve recitar.
E aquele momento, tanto para mim quanto para os alunos,
pode ser um momento “sem garantias”.

Então, é por isso que acho o tango tão interessante. É por


causa daquela “não garantia”, em uma proporção certa, que
sempre você precisa criar no tango. É por causa das assimetrias
em cada coreografia. Por isso, acho o tango uma coisa tão
emblemática para minha reflexão, além da inveja que tenho
das pessoas que conseguem dançar tango [Risos].

Meu último seminário na Alemanha, em 1989, foi um curso


sobre a história e a estética do tango com aulas de dança.

3 Johann Christian Friedrich Hölderlin (1770 – †1843) foi um poeta lírico e romancista
alemão.

230
A universidade pagava dois argentinos para ensinar a dança,
mas eu não consegui dançar. Eu fui o único que não conseguiu.
Os outros alunos dançaram fantasticamente, mas eu não.
E, talvez, por causa disso, tenho uma inveja tão grande, um
desejo tão grande. Talvez, antes de morrer, na minha última
semana de vida, vou dançar um tango. [Risos]

[Profª Olga Coelho]:


[Risos] Obrigada. Vamos para a quarta pergunta. A ciência
atual desenvolveu uma tecnologia muito avançada envolvendo
hologramas e projeções em 3D. Com esse instrumental tecnológico,
a arte na atualidade vem realizando performances telemáticas,
intervenções com imagens 3D, entre outras práticas. Como o
senhor pensa o conceito de “presença” nesse contexto? A presença
de um corpo que não está presente...

[Prof. Gumbrecht]:
Eu acho o seguinte... e vou usar um conceito que não gosto
de usar: o conceito de “dialética”. Acho que, na nossa cultura
como também na tecnologia eletrônica, no sentido amplo, é
feita uma eliminação completa do espaço e da corporalidade.
Ocorre uma onipresença sem corpo. Uma onipresença apenas
de significado. Ao mesmo tempo, esta ausência primária
completa de corpo e de espaço cria um desejo de presença. Eu
acho que a razão por que a gente fala tanto em intensidade,
10 anos do Posling – CEFET-MG

intenso sem saber o que é intensidade, tem a ver com esse


desejo. E, de repente, existem novas sensibilidades que estão
se formando e que estão emergindo com aquelas tecnologias.
Para dar um exemplo muito “gringo”, a genialidade do
Steven Jobs foi isto: compreender que é importante criar um
computador que a gente tem desejo de tocar. Até o emblema
“apple” foi interessante. Quando ele morreu, em frente da loja
Apple da região onde ele vivia, durante meses, a cada dia, as
pessoas deixavam maçãs. Então, criou-se uma putrefação. E
tudo isso é uma coisa muito estranha. O papa de toda aquela

231
tecnologia que elimina o espaço, de repente, está criando
uma putrefação numa das ruas mais limpas do mundo, uma
rua horrivelmente limpa. Então, usando a ideia de dialética
(eu não consigo descrever bem), me dou conta de que o Steve
Jobs é um exemplo muito elementar de que aquela tecnologia
que elimina o corpo e elimina o espaço secretamente possui uma
“entrada de emergência” para uma dimensão nova de espaço
sobre a qual a gente, talvez, ainda não tenha os conceitos.
Porque é um espaço diferente dos espaços já conhecidos.

É interessante o que aconteceu no “ultimíssimo” seminário


que dei pela Universidade de Stanford em Santiago do Chile.
Vocês sabem que os chilenos estão obcecados por seu fim do
mundo, “la tierra del fin del mundo”? É uma coisa positiva
no Chile. Existe, em Santiago, até uma instituição privada
muito boa que se chama Universidad del Fin del Mundo4. Em
qualquer outro país, uma universidade do fim do mundo não
funciona. Então, eu quis fazer um seminário para pesquisar
o impacto daquela percepção do espaço, muito particular
da cultura chilena. Pesquisar como um espaço vai formando
uma cultura, porque nós, normalmente, quando estamos
pensando em “cultura”, estamos pensando sobretudo em
temporalidade. E eu acho que uma daquelas tarefas do novo
“Humanismo” das Ciências Humanas é repensar o espaço,
porque estritamente falando, desde o cartesianismo, o espaço
foi eliminado da filosofia ocidental. Mas, não seria renovar os
conceitos de espaços medievais, não. Diariamente, os desafios
seriam pensar um outro espaço. Não consigo descrever (e
provavelmente não vou descrever), mas aquele seminário em
Santiago foi uma coisa básica, neste sentido. Foi sobre o Chile
também, porque foi em Santiago, mas basicamente foi sobre

4 Provavelmente, ele se refere à “Universidad Finis Terrae”, uma universidade católica


situada em Santiago, Chile.

232
até que ponto a gente pode desenvolver novos conceitos
básicos de espaço. Se quiserem ler, ontem foi publicada uma
página sobre esse seminário no El Mercurio5 de Santiago.

[Profª Olga Coelho]:


A quinta pergunta: nós estamos em um Programa de Pós-Graduação
cuja Área de Concentração é Tecnologia e Processos Discursivos.
Para o senhor, a relação signo/presença seria excludente ou seria
possível pensar uma relação complementar entre essas duas
perspectivas? Tem muitos professores que trabalham com signos.

[Prof. Gumbrecht]:
Olha aqui... eu, basicamente, tomo como um conceito muito
elementar no meu pensamento filosófico o conceito de
Russell6 de “objeto intencional” que se refere a “qualquer
coisa que surge na nossa consciência”. Então, inevitavelmente
a gente sempre tem duas relações com as coisas do mundo:
uma relação interpretativa, ou seja, você não consegue não
tentar dar sentido, dar significado. Se você está ouvindo uma
língua que não conhece, tenta dar sentido ao que escuta.
Não pode não dar sentido. Não consegue não tentar dar
sentido. O problema é que a tradição das Ciências Humanas
acadêmicas tem se concentrado exclusivamente neste lado. O
grande momento da Semiótica. A Semiótica é tudo. Mas estou 10 anos do Posling – CEFET-MG
dizendo que não. Ao mesmo tempo, inevitavelmente, a gente
sempre tem uma segunda relação, uma relação espacial, não é?
Na nossa fala, pensamos pouco na distância que a gente tem,
mas não podemos não nos relacionar espacialmente com as
pessoas, não podemos não ter aquela “relação de presença”.

5 El Mercurio é um jornal chileno fundado por Agustín Edwards Mac-Clure, em 1° de junho


de 1900, na capital do país, Santiago, com publicação diária por todo o país.
6 Russell (1872-1971) foi um filósofo, matemático e lógico britânico que influenciou
profundamente o pensamento ocidental. Sua obra mais conhecida é o livro Principia
Mathematica, publicado em 2010, em parceria com Alfred North Whitehead (três volumes).

233
Então, eu acho que o conceito de complementaridade
não é problemático, mas perigoso, pois, quando se fala
de complementaridade ou quando se usa esse conceito,
sempre se faz referência a uma coisa estável, complementar,
como aqueles casados chatos [Risos]. Cada um já tem as
suas tarefas, cada um já faz as suas coisas. Não sei se estou
convencido, mas eu gostaria que não fosse assim. Eu gostaria
que a relação do tango, a assimetria da coreografia do tango
fosse uma metáfora universal do novo Humanismo [Risos].
Isso eu poderia publicar na Argentina.

[Profª Olga Coelho]:


Essa eu gostei demais [Risos]. A próxima pergunta é da área
da Cognição. Na Ciência da Cognição, o corpo é considerado
em várias perspectivas: como organismo biológico, ecológico,
fenomenológico, social e cultural. Neste aspecto, como conceber o
corpo como presença pura se ele não pode se desvencilhar da sua
dimensão social, histórica e cultural? É uma pergunta que sempre
faço: existiria um corpo nu?

[Prof. Gumbrecht]:
Acho que há aí uma fraqueza da minha filosofia, quero
dizer, biograficamente falando, talvez, o meu papel nas
Ciências Humanas tenha sido aquele de reintrodução da
dimensão da presença, no sentido complexo, nas Ciências
Humanas. Provavelmente, nos meus obituários, nas crônicas
necrológicas para mim, vão escrever isso. Espero que seja
assim. [Risos]

Mas se você vai reintroduzindo uma coisa, existe um perigo, uma


tendência de uma interpretação absoluta demais desses conceitos.
Mas eu diria que hoje em dia, sobretudo na Neurociência e na
Ciência Cognitiva, existem conceitos, descrições e análises
da existência corporal muito mais complexos. Por exemplo, a
autopercepção. Quando estou falando, não estou falando para

234
vocês, estou vendo a mim mesmo, estou modificando o que
estou dizendo segundo o que escuto da minha própria voz, que é
diferente da sua escuta.

Eu precisaria de um conceito de corpo mais de acordo com


o das Ciências Cognitivas e da Neurociência de hoje e, nesse
sentido, muito mais complexo. Quero dizer, aquele contraste
que estabeleço entre a dimensão interpretativa hermenêutica
e da dimensão temporal de um lado e da dimensão espacial
corporal de outro lado seria elementar demais. Mas ainda
tenho tempo para isso.

[Profª Olga Coelho]:


[Risos] Mas esses seus conceitos não são nada elementares. [Risos]
Vamos à próxima pergunta. No teatro, “presença” é um termo
usado para destacar a força atrativa de um ator em cena. Em que
medida este estudo sobre presença aproxima-se dessa qualidade do
ator (do ator que é chamado de “ladrão de cena”) que chega e todo
mundo passa a prestar atenção nele e não presta atenção nos outros.

[Prof. Gumbrecht]:
Geralmente, mas isso já é uma coisa de preferência pessoal.
Para falar em uma tradição do século XX do teatro (eu sou
muito stanislavskiano) por exemplo, na minha percepção, o 10 anos do Posling – CEFET-MG
maior ator da minha vida foi Marlon Brando. Ele tem muitos
filmes completamente ruins, mas há momentos do Marlon
Brando que acho absolutamente geniais. Por exemplo, na
primeira parte de O padrinho7, quando ele tem uma fala
interessante, ou aquela dança no casamento da filha.

7 The Godfather (Brasil: O Poderoso Chefão/Portugal: O Padrinho) é um filme norte-americano


de 1972, dirigido por Francis Ford Coppola, baseado no livro homônimo escrito por Mario
Puzo. O filme é estrelado por Marlon Brando, Al Pacino, James Caan, Richard Castellano,
Robert Duvall, Sterling Hayden, John Marley, Richard Conte e Diane Keaton.

235
Eu tenho uma certa tendência de admirar muito atores ruins.
[Risos] Por exemplo, existia no meu tempo, na Alemanha, um
ator chamado Viktor de Kowa que era muito popular, mas era
um ator muito ruim. Mas ele, de repente, fazia gestos... eu me
lembro de uma apresentação do Ibsen8, onde ele interpretava
aqueles monólogos maravilhosos, de repente precisava chiar
[Risos]. Até hoje em dia (não sei se isso tem a ver com Ibsen), mas
num momento, quando estava fazendo um monólogo, ele fazia
gestos como se quisesse ir ao banheiro, mas não tinha banheiro.
[Risos]. Esse é um exemplo daquelas coisas, aqueles eventos
em que você é desafiado e não sabe como lidar com o desafio.

Eu tenho quatro crianças e, como você sabe, existem


aquelas apresentações na escola normalmente horríveis. As
crianças vão apresentando, mas, de repente, há momentos
absolutamente geniais. É isso que, talvez, faz pensar a
dimensão do evento que pode emergir, que você não pode
planejar. Um pouco como nas aulas, você deve fazer tudo
para que a aula seja um espaço para uma coisa acontecer;
mas no momento em que você tenta garantir isso, tudo acaba
se perdendo. Mesma coisa no teatro e no cinema. Marlon
Brando ao mesmo tempo foi um grande ator, mas tem filmes
completamente ruins. Mas alguns momentos, por exemplo,
naquele filme On the Waterfront e A Streetcar Named Desire,
são momentos inacreditáveis. E não tem que ser ator
masculino. Em todo caso, Elizabeth Taylor, em Cat on a
Hot Tin Roof por exemplo, tem momentos absolutamente
inacreditáveis. Mas eu também estou pensando na minha
vida. Eu estou muito agradecido por esses momentos. É
interessante que a repetição não garante a mesma impressão.
Você pode voltar a ver os filmes e, de repente, nada acontece.
Na música é a mesma coisa.

8 Henrik Johan Ibsen  (1828 – 1906) foi um dramaturgo norueguês considerado um dos


criadores do teatro realista moderno.

236
Aí eu vou terminar essa resposta com uma anedota:
eu tenho um gosto musical muito ingênuo. Minha peça
musical preferida Me and Bobby Mcgee, aquela versão da Janis
Joplin. Fui convidado, em uma ocasião, para o aniversário
nacional de Mozart, na Áustria. Fui convidado a dar uma das
cinco palestras do evento e, infelizmente, aceitei sem saber
muito sobre a música. E por casualidade, indo do meu hotel
à universidade, ouvi Me and Bobby Mcgee, e já não podia falar
de Mozart, foi completamente horrível, com o presidente da
república na primeira fila. Eu falei, mas, sabe, né? [Risos] Mas,
às vezes, ouvindo a mesma canção, não acontece nada. [Risos]

[Profª Olga Coelho]:


No campo teórico, pode-se dizer que o saber acerca da experiência
artística (dança, teatro etc.) demanda interação presença-
sentido? Nesse caso, como seria possível inserir a “serenidade”
nesse contexto teórico?

[Prof. Gumbrecht]:
A serenidade é o conceito trágico desta noite, né? [Risos]
Novamente, adoro o conceito de serenidade. Talvez agora,
com a sua pergunta, eu diria que esse conceito deveria ser
incluído naquele sentido que eu estava desenvolvendo:
o sentido de “deixar acontecer alguma coisa”. Ir ao jogo 10 anos do Posling – CEFET-MG
de futebol, por exemplo, ir a uma apresentação de teatro
com uma atenção muito ativa, mas sabendo que aqueles
momentos inesquecíveis não podem oferecer garantias.
Isto seria “serenidade”.

Agora queria adiantar que a minha profissão é basicamente a


profissão de conceitualizar tudo, mesmo falando criticamente,
agressivamente, você vê que, no meu caso, é o que eu acabo
fazendo, não é?

237
[Profª Olga Coelho]:
Você pode criticar quando é você que faz, não é? [Risos]

[Prof. Gumbrecht]:
É claro! Mas, retrospectivamente, vejo que eu tenho dado
aula de poesia toda a vida. Você é um professor de literatura
e você dá aula de poesia, mas eu diria que só nos últimos dez,
quinze anos, percebi que, apesar daquela conceitualização
inevitável (apesar disto) tive uma relação existencial com a
poesia. E talvez isto tenha acontecido neste momento em que
eu reconheço a necessidade da serenidade: eu diria que eu não
posso dar garantias. Muitas vezes penso que tudo que posso
dar aos alunos é uma relação dêitica. Eu posso recitar aquela
poesia de Hölderlin em alemão para alguns alunos que não
sabem alemão, esperando que talvez aconteça alguma coisa.
E desde então, eu tenho feito mais recitações, por exemplo,
em seminários. Assim, tenho uma relação com a poesia,
com a lírica, diferente daquela que tive anteriormente,
provavelmente graças à serenidade.

[Profª Olga Coelho]:


A teoria, etimologicamente, tem a ver com a contemplação.

[Prof. Gumbrecht]:
Claro, claro. Contemplação como você disse, é essa a palavra.
Eu acho que o que realmente a gente está fazendo nas
Ciências Humanas não é pesquisa. Eu acho que pesquisa é
uma denominação errada tomada das Ciências Naturais.
A gente não está fazendo pesquisa, nunca. Bem, talvez até
seja, mas nossas pesquisas são mínimas e sempre fazemos
pesquisas para obter fundos para fazer pesquisa. [Risos]. Mas
o que a gente realmente está fazendo, e acho que a vocação
das Ciências Humanas, é contemplação secular, secularizada,
não teológica, porque sempre tem uma conotação teológica.

238
Contemplação no sentido de uma capacidade de se concentrar
no objeto intencional: sempre voltando ao objeto intencional
e sempre, como falou o João9, ganhando complexidade em
cada descrição. Cada vez que você volta a uma poesia de
Hölderlin, você nunca vai ter a forma final que já explica tudo,
ao contrário, a coisa torna-se cada vez mais complexa e cada
vez mais difícil de obter aquele momento “sem garantias”.
Neste sentido, como você falou, é contemplação. Talvez
aquela tentativa de encontrar uma nova forma profissional,
institucional para as Ciências Humanas deveria incluir uma
afirmação mais agressiva da contemplação. Contemplação
secular. Eu não tenho nada contra religião, eu só não conecto
com religião.

[Profª Olga Coelho]:


O CEFET-MG é uma instituição que possui muitos níveis, Ensino
Médio, Graduação e Pós-Graduação. Assim, surgiu esta questão: Como
pensar uma escola em uma dimensão de “presença” e “serenidade”?
Como seria uma escola em que a presença e a serenidade fossem
incluídas em sua prática pedagógica?

[Prof. Gumbrecht]:
Talvez essa colocação seja interessante. Recentemente uma
revista suíça quis saber quais os tipos de universidades, que 10 anos do Posling – CEFET-MG
tipo de instituições acadêmicas tem subido mais rapidamente
nos rankings internacionais nos últimos 25 anos. Eu não sabia.
Mas é interessante, eu trabalhei com alunos de estatística e
eles me forneceram alguns dados. As universidades que têm
subido mais são universidades basicamente tecnológicas
que têm Ciências Humanas. É o caso de Stanford10 que

9 Menção à apresentação do Professor João Cezar de Castro Rocha (UERJ) que antecedeu à
palestra de Hans Ulrich Gumbrecht, no CEFET-MG.
10 Stanford é uma das universidades mais bem sucedidas na criação de empresas e no
licenciamento de suas invenções para empresas existentes; muitas vezes é tida como um
modelo de transferência de tecnologia.

239
não é chamada de Stanford Tecnological University, mas
de Stanford MIT11 of the West (da Costa Pacífica). Então,
tentando responder a sua pergunta, eu acho que a gente, nas
Ciências Humanas, deveria se interessar menos em ter muitos
alunos de Ciências Humanas. Também deveria pensar que o
dinheiro disponível, os salários disponíveis para profissionais
das Ciências Humanas são muito baixos. Se eu vejo uma
garota que é a primeira pessoa da sua família a chegar na
universidade, eu não lhe diria: “você tem que procurar uma
profissão em que ganha menos”. Isso é idiotice. Agora, se
você é de família bastante rica, você poderia ser professor de
Ciências Humanas? Em todo caso, eu acho que o futuro das
Ciências Humanas poderia ser, precisamente, receber alunos
cuja graduação não é em Ciências Humanas. Por exemplo, a
melhor universidade nos rankings internacionais da Europa
Continental, com exceção de Oxford e Cambridge, é a ETH
Zurich (Instituto Federal de Tecnologia de Zurique). Essa
instituição, desde o século XIX, tem pequenos departamentos
de Ciências Humanas, mas todo aluno de Engenharia, de
Estatística ou de Ciências Naturais precisa fazer vários
seminários de Filosofia, de História Cultural, entre outros.

Acredito que, se os alunos dos nossos cursos não são da nossa


área, a tarefa das Ciências Humanas já não é de profissionalizar
alunos para que eles se tornem nossas cópias. Então, você tem
mais espaço para aqueles atos dêiticos. Ato dêitico no sentido
de, com a sua ação, incorporar o que pode ser um impacto de
uma poesia. Que o seu entusiasmo ao recitar um poema ou
dançar um tango seja mais importante que a discursividade.
Não estou dizendo que isso seja tudo, mas que, talvez, a gente
dedique 20% à reprodução da nossa profissão (formação
profissional da área) e 80% para aulas (não diria obrigatórias)

11 Provavelmente ele se refere ao Massachusetts Institute of Technology (MIT).

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daquelas Ciências Humanas novas: aulas dêiticas para alunos
que não vão ser profissionais de literatura nem de filosofia.

Para fechar o assunto, eu devo dizer que, cinco anos atrás,


o Departamento de Computação de Stanford, um dos
melhores do mundo no Silicon Valley, se aproximou de nós,
do Departamento de Literatura, onde eu trabalho, solicitando
que a gente introduzisse aulas de literatura na forma de
disciplinas complementares, na formação de seus alunos.
Eu devo dizer que fui o único professor de literatura que me
abstive. Eu achei que isso iria nos transformar naquela coisa
secundária, complementar. Mas hoje em dia, eu devo dizer
que meus colegas que concordaram com a proposta tiveram
razão. Os colegas de computação estavam propondo que a
elite dos seus alunos, aqueles “caras” que já vão atuar no Silicon
Valley, quase todos tivessem aulas de literatura (interessante,
não é?). Sem saber muito bem qual a função, mas eles acham
que estão programando melhor quando estão tendo aulas
de literatura. Agora, aquelas aulas de literatura deveriam ser
aulas diferentes das nossas aulas clássicas de literatura, de
arte e de filosofia. Acho que foi uma boa questão para acabar
nossa entrevista.
10 anos do Posling – CEFET-MG

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