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Linguagens e Tecnologia: Arte Ensino e Edição
Linguagens e Tecnologia: Arte Ensino e Edição
Linguagens e Tecnologia: Arte Ensino e Edição
21-56077 CDD-410
1 Professores do Posling: Ana Elisa Ribeiro, Ana Maria Nápoles Vilella, Andréa Soares Santos,
Carla Barbosa Moreira, Cláudio Humberto Lessa, Cláudia Cristina Maia, Giani David Silva,
James William Goodwin Júnior, João Batista Santiago Sobrinho, Lilian Aparecida Arão, Luiz
Antônio Ribeiro, Luiz Carlos Gonçalves Lopes, Luiz Henrique Silva de Oliveira, Maria Raquel
de Andrade Bambirra, Marta Passos Pinheiro, Mírian Sousa Alves, Olga Valeska Soares Coelho,
Patrícia Rodrigues Tanuri Baptista, Paula Renata Melo Moreira, Renato Caixeta da Silva, Rogério
Barbosa da Silva, Roniere Silva Menezes, Vicente Aguimar Parreiras e Wagner José Moreira.
7
Destaca-se a relevância dos papéis da tecnologia na sociedade
contemporânea e a utilização da linguagem atrelada a esses
papéis em vários contextos de atuação humana: literatura,
comunicação, educação, edição e outros.
8
teorias da linguagem. Reflexão sobre o papel de materiais
didáticos e de tecnologias da informação e comunicação no
ensinar e no aprender línguas e literaturas.
9
Destacamos ainda os dois grupos que realizaram participação
cultural em nosso evento: o Movência, da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
e o grupo da Escola de Design da Universidade do Estado
de Minas Gerais (UEMG). O grupo Movência apresentou
o espetáculo Histórias de bichos e encantados, fruto de suas
pesquisas sobre as narrativas orais. Ele é formado pelos
pesquisadores e artistas: Amanda Jardim, Cristina Borges,
Guilherme Trielli Ribeiro, Josiley Francisco de Souza, Laís
Penna, Lorena Anastácio, Tropowisk Coelho Carvalho,
Vinícius D’Moreira e Sônia Queiroz. O grupo da Escola
de Design apresentou o espetáculo Tipoema: movimento
três (Performance mecânico/analógico/digital com uso de
prensa tipográfica, música e imagens), fruto das pesquisas
do Núcleo de Tipografia (TipoLAB). O grupo é coordenado
pelos professores Cláudio Santos Rodrigues e Sérgio Antônio
Silva e a apresentação contou com a participação de Fabiano
Fonseca e Leonardo Dutra.
10
brasileiras. A maioria de seus livros está publicada no Brasil,
cujas pesquisas no âmbito dos estudos literários e das
humanidades vêm se beneficiando d as r eflexões de sse gr ande
professor. Entre suas obras, destacamos: Corpo e forma (1998),
Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir
(2010), Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre um potencial
oculto da literatura (2014), Depois de 1945 – Latência como origem
do presente (2014), Nosso amplo presente: o tempo e a cultura
contemporânea (2015) e Serenidade, presença e poesia (2016).
2 O texto foi publicado na Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.22, n.39, 2020.
11
convidados, incluindo os palestrantes e os pesquisadores
responsáveis pelas duas apresentações culturais; e duas
entrevistas, a realizada com o Professor João Cezar de Castro
Rocha, por Joelma Rezende Xavier (CEFET-MG) e Andréa
Soares Santos (CEFET-MG), e a realizada com Hans Ulrich
Gumbrecht, pelo grupo de pesquisa do Posling Comtec,
liderado por Olga Valeska Coelho, com a participação de
Guilherme Trielli Ribeiro (UFMG) e Marta Passos Pinheiro
(CEFET-MG). Essa entrevista integra as homenagens a
esse importante pesquisador feitas em 2018, ano de sua
aposentadoria.
12
Homenagem a Sepp Gumbrecht:
uma tipologia cronológica3
João Cezar de Castro Rocha
13
Eis, portanto, uma trajetória riquíssima. Destaco para cada
um desses momentos dois pontos para dar uma ideia de um
caminho intelectual que completa cinco décadas e que possui
um complexo movimento contínuo e duas ou três ideias-força
que ajudam a compreender o atual trabalho do Gumbrecht
sobre o conceito de bliss.
14
a questão de discussões teóricas que se haviam tornado
involuntariamente bizantinas, permitindo recuperar algo
que não havia sido ainda considerado seriamente: os níveis
diversos de recepção do “mesmo texto”. Por vezes, os níveis
são tão diversos, que o que se discute é exatamente o que
temos diante dos olhos: é um texto ou é apenas, digamos,
uma partitura, um ponto de partida para a performance de
um ato de leitura?
15
Não é casual que nesse mesmo ano de 1975 Gumbrecht tenha
saído de Konstanz: seu texto não foi muito bem recebido
por seu orientador. Na identificação desse impasse, surge
uma tensão que acompanha toda a obra do Sepp e que será
retomada em Stanford, em 1989. É a tensão entre impulso
descritivo e vocação normativa. É a tensão entre descrição
minuciosa de um ato concreto de enunciação ou de recepção
e tentativa de transformar um conjunto de atos numa teoria
mais geral. É, portanto, a tensão entre norma e descrição,
estrutura e história.
16
Na experiência literária medieval o que realmente contava não
podia ser o texto impresso, pois ainda não havia a imprensa!
O meio de comunicação que dominou a literatura medieval
era o corpo. O corpo enquanto meio e mensagem. O corpo é
os dois ao mesmo tempo num circuito comunicativo definido
pela co-presença de corpos. O que estamos fazendo aqui agora,
nesta mesa redonda, é muito característico da experiência
medieval, que inclui estruturalmente a improvisação e a
capacidade de adaptação do emissor à recepção.
17
Venho ao terceiro ponto da tipologia que esboço: Siegeng. Como
disse, entre 1982 e 1989, Sepp Gumbrecht foi convidado para
criar o primeiro programa exclusivamente de pós-graduação,
destinado às Humanidades, mas especialmente aos estudos
literários, num modelo que era muito comum nos EUA.
Por exemplo a Universidade Johns Hopkins principiou apenas
como uma universidade de pós-graduação e posteriormente
adotou a graduação.
18
uma série de colóquios, inicialmente com medievalistas e depois
com teóricos da literatura, na cidade de Dubrovnik. Foram cinco
os famosos colóquios de Dubrovnik, entre 1981 e 1989.
19
emergência supõe a acoplagem permanente entre dois
organismos. Pensemos então na interação entre leitor e
texto, entre dois textos, entre dois tipos de discursos, entre
duas formas de disciplinas científicas. A emergência implica
sempre que dois organismos se acoplam e que o resultado
da acoplagem é um terceiro termo, que naturalmente não
existiria sem os dois organismos que se acoplaram, mas que,
no entanto, a acoplagem não se reduz aos dois organismos já
existentes. Pelo contrário, no processo de emergência surge
algo que não estava previsto na simples composição daqueles
dois organismos.
Não é isso o que ocorre com cada leitor, com cada leitora,
no seu enfrentamento com os textos? Essa intuição foi
fundamental para Sepp Gumbrecht, junto com a teoria
sistêmica do Niklas Luhmann. Ele tem, inclusive, um
ensaio chamado “Patologias do sistema da literatura”, que
infelizmente não foi desenvolvido, pois há nele a instigante
proposta de uma nova história da literatura, a partir de duas
intuições notáveis do Luhmann. A primeira delas é que a
função básica de todo sistema, ao contrário do que pensamos,
não é o acréscimo da complexidade, pelo contrário, é a sua
redução. A característica básica dos sistemas é reduzir a
complexidade no relacionamento com o ambiente para
permitir que, no seu interior, a complexidade seja máxima.
Associando o insight ao paradigma das materialidades da
comunicação e à ideia da emergência, Sepp Gumbrecht
principiou a se afastar da associação naturalizada dos estudos
literários ou das ciências humanas com a hermenêutica, vale
dizer, com a obsessão de procurar um sentido profundo, um
sentido oculto à expressão da superfície. Somente então
Sepp começou a pensar não mais na decifração do sentido
como sendo a tarefa básica das ciências humanas, mas
20
na compreensão das condições materiais de produção desse
mesmo sentido. Condições materiais implicam obviamente o
meio através do qual a expressão se realiza. Se é o corpo, é uma
materialidade; se é o impresso, é outra materialidade; se é o
telefone, o smartphone, é outra materialidade; se é um laptop,
não é a mesma materialidade do desktop. A materialidade da
comunicação procura compreender as condições de emergência
dos sentidos a partir de uma complexa relação da materialidade
do suporte e das habilidades de quem maneja esse suporte.
21
é que a cultura ocidental oscilou entre culturas de produção de
sentido e culturas de produção de presença. E o trabalho atual
do Sepp é o desenvolvimento pleno dessa ideia. A ideia de
que nas humanidades hoje em dia nós não precisamos mais
decodificar sentidos, decifrar significados ocultos. No google,
no facebook nós já temos milhares de teorias conspiratórias
que têm sentido para tudo! Podemos entender, pelo menos
parcialmente, a decifração de um sentido unívoco a uma tarefa
que já pertence ao passado, ao passado da hermenêutica, ao
passado no qual acreditávamos que havia um texto a ser fixado,
um sentido a ser apreendido, uma verdade a ser revelada.
22
a latência tenha sido apenas uma expressão prévia do sentido.
Pelo contrário, a latência como um presente ampliado é
sempre uma explosão imprevisível: a própria ciência do acaso.
Pronto: agora, neste instante, vocês descobrirão o que 10 anos do Posling – CEFET-MG
é a experiência de intensidade: passo a palavra a Sepp
Gumbrecht...
23
EM CASA LONGE DE CASA?
UM OLHAR SOBRE AS
HUMANIDADES NO BRASIL1
Hans Ulrich Gumbrecht2
24
história prévia, nunca revelada, e simples de imaginar: os
colegas brasileiros, cismei, provavelmente haviam convidado
primeiro meu orientador, que rejeitou a possibilidade de uma
visita ao Brasil argumentando que, como socialdemocrata
de esquerda, não estava disposto a viajar para um país sob
uma ditadura militar – hipótese que depois ganhou outra
explicação e sentido com a descoberta de que ele tinha sido
um criminoso comprovado dos tempos de guerra, ligado aos
nazistas alemães. Mas o que me marcou naquele momento foi
a impressão de eu ter sido a segunda opção.
25
muito diferentes dos que me eram familiares no ambiente
europeu. Por causa do legado das pesquisas de campo de
Claude Lévi-Strauss no norte do país e de sua docência na
Universidade de São Paulo desde meados dos anos 1930, foi a
Antropologia e não a Filosofia – a Antropologia em uma versão
situada entre a concepção anglo-americana de descrição de
culturas diferentes da nossa própria e a concepção alemã de
tentar identificar as estruturas gerais da cultura humana –
que funcionou como referencial teórico básico para todas as
nossas conversas. Consequentemente, o Estruturalismo de
Lévi-Strauss foi firmemente tomado como método principal
e estado de espírito, e a proposta de meu seminário, de nos
concentrarmos na tradição fenomenológica alemã, consistiu
em um dos primeiros movimentos de uma abertura para
outros paradigmas epistemológicos.
26
em que até então se baseavam. Luiz Costa Lima, meu anfitrião
oficial, inaugurou uma reflexão que o acompanharia ao longo
da vida sobre o estatuto ontológico da Literatura e da Arte
a partir do potencial semântico complexo do conceito de
“mimese”. Silviano Santiago que, nos anos seguintes, seria
central para a síntese de uma versão especificamente brasileira
da crítica desconstrutivista, estava começando a encontrar
seu próprio lugar discursivo entre os romances da alta tradição
modernista, uma forma de crítica particularmente próxima
às tradições literárias da escrita. Flora Süssekind, que então
já realizava pesquisas de pós-graduação, ficou fascinada pelo
desafio de explorar as bases históricas e o potencial estético
de gêneros especificamente brasileiros de textos populares
e folclóricos. E Roberto Ventura que, após um doutorado na
Alemanha, e antes de sua morte prematura, faria a transição
para a cena intelectual paulistana, e procuraria compreender
e ativar no presente um legado nacional predominantemente
acadêmico de estudos literários e culturais em sua terra natal.
27
universidades sem nenhuma tradição intelectual notável,
sempre encontro vários colegas e alunos com um domínio
sofisticado dos debates internacionais em andamento e, acima
de tudo, com uma vivacidade e entusiasmo que continuam a
me lembrar dos meus primeiros encontros em 1977. Ainda
sinto a mesma sede incondicional de aprender; a estrutura
epistemológica e o horizonte evoluíram amplamente, e
continuam a parecer diferentes dos centros intelectuais do
hemisfério norte (e mereceriam uma mente filosófica capaz
de articular as zonas centrais de sua produtividade de uma
forma coerente); especificamente, os gêneros e discursos da
literatura brasileira que costumavam ficar fora do âmbito
institucional acadêmico foram integrados há muito tempo
ao cânone nacional e ao sistema educacional; e a inspiração
mútua entre a cena literária e a acadêmica hoje se mostra
mais forte do que nunca.
28
basicamente receptiva. Mesmo em um momento em que a
produção desses centros do Norte pode ter ficado em grande
parte estagnada, o olhar brasileiro ainda está fixo neles, em
vez de levar mais a sério e desenvolver mais ativamente o
que foi produzido em seu próprio território durante o último
meio século.
29
se cada vez mais difícil acompanhar suas reflexões, fruto de
uma linha de pensamento complexa e contínua, sem levar em
conta cada uma de suas etapas iniciais de desenvolvimento.
Em segundo lugar, e sobretudo, os livros de Costa Lima se
beneficiaram tanto do confronto com as discussões atuais dos
centros acadêmicos tradicionais que não é mais óbvio para os
leitores de fora do Brasil reconhecer qual seria seu potencial
específico e sua provocação produtiva.
30
já estabelecida da chamada tradição ocidental, somos
agora convidados – e estamos começando de fato – a reler
Shakespeare a partir do ponto de vista de Machado de Assis,
ou Joyce do ponto de vista de Guimarães Rosa. E se, até
recentemente, interpretávamos a proximidade dos Estudos
Literários no Brasil com a cena contemporânea da produção
literária como um resquício de uma etapa institucional
e intelectual que precisava ser superada, agora estamos
aprendendo como essa proximidade pode injetar uma nova
energia em nosso próprio trabalho intelectual e acadêmico.
31
E tudo isso está acontecendo enquanto os humanistas na
Europa e na América do Norte se perguntam seriamente, e
por uma série de boas razões, se sua versão das Humanidades
pode ter alcançado a última etapa de um fim histórico.
REFERÊNCIAS
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Why João Cezar de Castro
Rocha's Writing Matters – Not Only to Me. Revista Brasileira
de Literatura Comparada, v. 21, N. 36 (2019), p. 107-111.
32
O DIREITO À LEITURA LITERÁRIA:
NOTAS INICIAIS
João Cezar de Castro Rocha1
O direito à literatura e
Assembleia Constituinte2
Em texto merecidamente célebre, “O direito à literatura”,
Antonio Candido sublinhou a centralidade do literário na
constituição da pólis.3 É importante atentar à acepção que o
crítico empresta ao conceito de literatura, pois não se trata da
ideia tradicional e estreita do século XIX de “arte verbal escrita”,
pois, como se sabe, no contexto da filologia positivista, e sua
busca pelo texto-matriz perdido, a expressão literatura oral
seria antes um oxímoro. Pelo contrário, a compreensão do
crítico, muito mais generosa, tem ânimo antropológico:
34
(...)
Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas
sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a
literatura concebida no sentido amplo a que me referi
parece corresponder a uma necessidade universal,
que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui
um direito.4
4 Antonio Candido. “O direito à literatura”. In: Vários escritos. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas
Cidades/Ouro sobre Azul, 2004, p. 174-75.
5 William Shakespeare. Hamlet, Prince of Denmark. Philip Edwards (ed.). Cambridge:
Cambridge University Press, 2004, p. 139. Na brilhante tradução de Lawrence Flores Pereira:
Polônio – (...) “Senhor o que está lendo”. Hamlet – Palavras, palavras, palavras. (...) Polônio
– (...) Embora isso seja loucura, possui certo método”. William Shakespeare. A tragédia de
Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Tradução de Lawrence Flores Pereira. São Paulo: Penguin/
35
estudada da frase, metódica a seu modo, a reiteração é um
sintoma da visão do mundo expressa no ensaio de Antonio
Candido, e que supõe a centralidade da palavra no mundo do
narrador – recorde-se a caracterização de Walter Benjamin
do círculo de narradores e ouvintes, e podemos adicionar
o circuito de escritores e leitores, que, reunidos por uma
tradição comum, formam o sistema literário, como definido
por Antonio Candido.
36
Na célebre definição do crítico brasileiro, a inter-relação de
três elementos configura o sistema literário: “a existência de
um grupo de um conjunto de produtores literários, mais ou
menos conscientes de seu papel; um conjunto de receptores,
formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra
não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma
linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros”.7
Nesse processo, os momentos decisivos são aqueles nos quais
afirma-se a consciência dos três elementos e, sobretudo, de
sua ligação. A leitura literária é o meio mais adequado para
que a fluência entre os vértices desse triângulo crie uma
atmosfera própria, bem definida na agudeza da prosa crítica
de Machado de Assis: “O que se deve exigir do escritor antes
de tudo é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu
tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos
no tempo e no espaço”.8 Vale dizer, e essa diferença é decisiva,
no processo de formação da literatura a experiência comum
ainda não se havia consolidado, era preciso inventá-la. Valia,
pois, para a literatura o desafio que guiava a atividade crítica:
37
Pois bem: a resposta de Hamlet nos dias que correm
provavelmente seria: “images, images, images”. Nem seria
preciso esperar tanto tempo – aliás. Bastaria recordar o
parágrafo de abertura de Alice no país das maravilhas:
a protagonista indaga sem constrangimento aparente:
“‘what is the use of a book, tought Alice, ‘without pictures
or conversations?’”.10 Nesse caso, precisamos repensar o
direito necessário, em boa medida urgente, para enfrentar os
desafios contemporâneos. Trata-se, proponho, do “direito à
leitura literária”.11
10 Lewis Carroll. Alice’s Adventures in Wonderland. In: Alice in Wonderland Collection – All
Four Books. Los Angeles: Enhanced Media, 2016, p. 8. Na notável tradução de Sebastião
Uchoa Leite: “(...) ‘e de que serve um livro’ – pensou Alice – ‘sem figuras nem diálogos’?”.
Lewis Carroll. Aventuras de Alice. Tradução e organização de Sebastião Uchoa Leite. Rio de
Janeiro: Fontana / Summus, 1977, p. 41.
11 Embora não seja essa a ocasião de desenvolver plenamente o conceito, devo mencionar
dois autores que há muito mais tempo preocupam-se com o tema, oferecendo contribuições
significativas: Graça Paulino (Das leituras ao letramento literário. 1979-1999. Belo Horizonte
/ Pelotas: Faculdade de Educação-UFMG / Universidade Federal de Pelotas) e Rildo Cosson
(Letramento literário. Teoria e prática. São Paulo: Editora Contexto, 2006).
38
A única forma de alcançar esse futuro seria pela prioridade
dada no presente à educação pública. Eis o sentido forte da
exortação que conclui o ensaio:
(Não seja tão sensível! Não se choque com os termos consumo, 10 anos do Posling – CEFET-MG
produtos e oferta. Respire fundo e, se puder, continue a leitura
– o texto é breve, de qualquer modo.)
12 Antonio Candido. “O direito à literatura”. In: Vários escritos. São Paulo / Rio de Janeiro:
Duas Cidades / Ouro sobre Azul, 2004, p. 191.
39
(…) It is in our century, in cinema, in radio, and in
television, that the audience for drama has gone
through a qualitative change.13
40
Nesse cenário, coube à televisão a mais completa banalização
da experiência. Agora, basta ligar o aparelho e o cotidiano
dos telespectadores é invadido por um tsunami ininterrupto
de telenovelas, séries, episódios especiais, filmes, e, com um
olhar otimista, também peças de teatro e óperas. O que diria
Raymond Williams da onipresença de reality shows e seus
roteiros feitos sob medida e mimetizados em todo o mundo?
Não se pense, porém, uma resposta apocalítica e muito
menos preconceituosa. Pelo contrário: no mesmo ano em que
proferiu sua “Aula Inaugural”, Williams publicou uma análise
fascinante do fenômeno produzido pela televisão; livro que se
beneficiou da coluna que manteve no jornal The Listener, para
o qual escrevia uma resenha mensal de programas produzidos
para a televisão. Pronto! A narrativização e a dramatização
conheceram um alcance de tal modo inédito que Willians não
hesitou ao avaliar seus efeitos: “É muito comum dizer-se que
a televisão transformou nosso mundo”.15
15 Raymond Willians. Television. Technology and Cultural Form. Hanover and London:
Wesleyan University Press, 1974, p, 3.
41
uma funcionalidade excepcional na armação de esquemas
narrativos de massa.)
42
vulgarizou-se a tal ponto com a emergência do universo
digital e a expansão mundial das redes sociais que já passou
da hora de propor uma pausa e repensar conceitos e teorias.
E não vale argumentar que o solipsismo da miríade de
bolhas virtuais – essas mônadas que nunca leram Leibniz
– nada tem a ver com a perspectiva de Antonio Candido,
pois o caráter antropológico de sua abordagem não pode
ser reduzido aos aspectos, digamos, solares da noção de
“direito à literatura”. Vimos o contexto que motivou o ensaio
de Candido, incialmente preparado para um curso aberto
em 1988. Em todo caso, uma brecha pode ser explorada no
primado da produção implícito no ensaio e, a bem dizer, nos
estudos literários como um todo, e na teoria da literatura em
particular, mesmo após o surgimento da Estética da Recepção
na década de 1960. Em outras palavras, tão importante
quanto a habilidade de fabular é a capacidade de dialogar com
as formas alternativas de imaginação.
43
que paradoxalmente sugere um vazio estrutural, por que não
investir tempo e energia num exercício de descentramento e de
abertura ao outro. Eis o que entendo por leitura literária.
A eles – pois.
44
próxima coluna, recorrendo à obra de William Shakespeare,
continuarei a formular a noção de “leitura literária”.
16 Machado de Assis. “A chinela turca”. Papéis avulsos. In: Obra completa. Vol. II. Rio de
Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, p. 303.
45
O, for a muse of fire that would ascend
The brightest heaven of invention!
A kingdom for a stage, princes to act,
And monarchs to behold the swelling scene!
Then should the warlike Harry, like himself,
Assume the port of Mars (…).17
17 William Shakespeare. King Henry V. In: The Globe Shakespeare. The Complete Works
Annotated. New York: Greenwich House, 1979, p. 813. Na tradução de Carlos Alberto
Nunes: “Se de musa de fogo eu dispusesse / para escalar o céu mais rutilante / da invenção!
Por teatro, um grande reino, / príncipes como atores, e monarcas / para a cena admirável
contemplarem! / Então viria o belicoso Henrique / tal como é mesmo: qual um novo Marte”.
William Shakespeare. A vida do Rei Henrique V. In: Teatro Completo. Dramas Históricos. Rio
de Janeiro: Agir, 2088. P. 217. Nas próximas ocorrências, somente mencionarei o número
da página citada.
46
Shall be my brother; be he ne’er so vile,
This day shall gentle his condition;(…)18
18 Idem, p. 850. Na tradução: “Nós, poucos; nós, os poucos felizardos; / nós, pugilo de
irmãos! Pois quem o sangue / comigo derramar, ficará sendo / meu irmão. Por mais baixo
que se encontre / confere-lhe nobreza o dia de hoje” (p. 250).
19 Idem, p. 813. Na tradução: “(...) Mas meus amáveis / espectadores, perdoai o espírito /
pouco altanado que a ousadia teve / de evocar tal assunto em tão ridícula / armação. Poderá
esta pequena/rinha de galos abranger os vastos / campos da França? Ou nos será possível /
pôr neste O de madeira os capacetes / que os ares de Azincourt aterroraram?” (p. 217).
47
Any retirement, any sequestration
From open haunts and popularity.20
48
BISHOP OF CANTERBURY
The King is full of grace and fair regard.
BISHOP OF ELY
And a true lover of the holy Church.
BISHOP OF CANTERBURY
The courses of his youth promised it not.
The breath no sooner left his father’s body
But that his wildness, mortified in him,
Seemed to die too. (…)22
49
Você me acompanha: Shakespeare surpreendeu uma
homologia estrutural inesperada entre Henrique V, e seu
exército, e o próprio dramaturgo, e sua companhia teatral.
Num e noutro caso, incerto era o êxito da tarefa, pois as
adversidades eram consideráveis.
Como superá-las?
23 Idem, p. 813. Na tradução: “Oh, mil perdões, que uma figura curva / representa milhões em
pouco espaço. / Por isso, permiti que nós, os zeros / desta importância imensa, trabalhemos
/ por excitar a vossa fantasia” (p. 217).
50
O palco do The Globe – this wooden O – é sem dúvida incapaz
de rivalizar com o panorama grandioso da Batalha de
Azincourt. Por isso mesmo, se o espectador mantiver os
olhos bem fechados, então a impossibilidade cênica converte-
se na potência máxima da experiência literária. E, ao mesmo
tempo, permite que se formule o conceito de clássico que
mais importa ao projeto desta nova antologia de contos de
Machado de Assis.
24 Idem, p. 813. Na tradução: “(...) Supri com o pensamento / nossas imperfeições. Cortai
cada homem / em mil partes e, assim, formai exércitos / imaginários. Quando vos falarmos
/ em cavalos, pensai que à vista os tendes / e que eles as altivas ferraduras / na terra batida
imprimem, pois são vossos / pensamentos que a nossos reis, agora, / hão de vestir, levando-
os para todos / os lados, dando saltos pelo tempo, / concentrando numa hora de relógio /
fatos que demandaram muitos anos” (p. 217).
51
Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo
se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio
algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que
faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar
todas as cousas que não achei nele. Quantas ideias
finas me acodem então! Que de reflexões profundas!
(...) Assim preencho as lacunas alheias; assim podes
também preencher as minhas.25
Coda
Notas iniciais: você encontrou a modesta advertência no
subtítulo deste ensaio e espero que a tenha levado a sério, pois
aqui nada concluirei, antes alinhavarei duas ou três intuições
que ainda preciso desenvolver plenamente.
25 Machado de Assis. Dom Casmurro. In: Obra completa. Vol. I. Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar, 1986, p. 870-871.
52
Contudo, a simultaneidade de três eixos é realmente inédita
e tem produzido um efeito devastador tanto no modelo da
democracia representativa quanto na paisagem cultural do
planeta.
(Não exagero.)
Confuso?
53
A própria hermenêutica como disciplina demanda a distância
temporal entre o presente do intérprete e o tempo singular
do artefato a ser estudado. Se estivessem encapsulados no
mesmo presente eterno e, por isso, eternamente órfão de
referências, como supor o ato interpretativo? Não se esqueça
que o readymade de Marcel Duchamp é impensável sem o ato
crítico que depende da defasagem temporal que o participante
precisa imaginar entre o contexto usual do objeto e sua
recontextualização enquanto potência estética, decidida pela
própria descontextualização da função utilitária.
54
aceitasse o ultimato para deixar o Kuwait até a meia-noite do
dia 15 de janeiro de 1991, um devastador ataque aéreo seria
desferido. Ultimatos similares já tinham ocorrido inúmeras
vezes ao longo da história, claro está; no entanto, agora,
um fato inédito teve lugar: o início dos bombardeios foi
transmitido ao vivo pela CNN!27 E sua cobertura durava as
24 horas do dia – exatamente como o malogrado personagem
Funes, el memorioso, do conto homônimo de Jorge Luis
Borges, que, porque não podia esquecer coisa alguma, também
não pôde mais pensar... A análise dos vídeos da cobertura da
CNN transmite com perfeição a atmosfera de excitação e de
caos que prefiguraram o universo distópico das redes sociais.28
27 Um vídeo vale mais do que mil palavras? Veja este, “CNN Gulf War Begins, January 16,
1991”: https://www.youtube.com/watch?v=_kwfYRRCmNw&t=21s.
28 Veja-se, em especial, este vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=BskrpzvVE3Q.
29 Eis o vídeo, “Second Plan hits South Tower”: https://www.youtube.com/
watch?v=sBciZFE8lAw.
55
Martin Amis tudo disse numa frase cortante: “Foi o surgimento
do segundo avião (...): esse foi o momento decisivo”.30 Somente
então a hipótese de um atentado terrorista foi levantada
pelos comentaristas. O espaço de tempo transcorrido entre
o primeiro e o segundo avião inaugurou de fato o século XXI.
(Em alguma medida, seguimos enredados nesse espaço de
tempo.)
Num cenário presenteísta, ou atualista, na teorização inovadora
de Valdei Araújo e Matias Pereira,31 Manuel Bandeira jamais teria
tido oportunidade de elaborar uma simples nota, lida talvez com
olhos descuidados, em versos icônicos da literatura brasileira,
“Poema tirado de uma notícia de jornal”:
30 Martin Amis. “The Second Plane”. In: The Second Plane. London: Jonathan Cape, 2008, p. 3.
31 Valdei Araujo e Mateus Pereira. Atualismo 1.0. Como a ideia de atualização mudou o século
XXI. Ouro Preto: SBTHH, 2018.
56
do “suicídio”? Em outras palavras, o leitor do poema é levado
a ponderar a notícia com uma gravidade que dificilmente teria
ocorrido ao apressado leitor do jornal.
32 E, acredite se quiser, os “puristas” reclamaram muito quando essa “concessão” foi feita:
“Twitter libera postagens de até 280 caracteres para todos os usuários”, 7 de novembro de
2017. Ver a matéria no link: https://www1.folha.uol.com.br/tec/2017/11/1933591-twitter-
libera-postagens-de-ate-280-caracteres-para-todos-os-usuarios.shtml.
57
Minha aposta: a leitura literária é uma forma que favorece
a experiência epistemológica e afetiva contida no poema
drummondiano.
58
ALGUMAS ESPECULAÇÕES
EM TORNO DO FAZER ANÁLISE
Hugo Mari1
1. Breve histórico
Em qualquer campo dos estudos da linguagem o desafio de
análise coloca questões e dificuldades de natureza diferente,
quando centralizamos a discussão numa de suas áreas
específicas. A tradição da análise linguística percorreu muitos
séculos: desde Panini na Índia, no século IV A.C., até os dias
atuais encontramos abordagens que diferem em muitas
perspectivas. Análises diacrônicas e sincrônicas perpassaram
as diversas áreas da linguagem, focalizando reconstruções
históricas, padrões estruturais e dimensões funcionais.
Embora marcada por uma extensão temporal significativa,
tais análises foram mais orientadas para alguns objetos
linguísticos do que para outros; daí o reconhecimento de
um volume maior de informações no campo da sintaxe, em
comparação com fonologia ou com a semântica.
Um traço comum nesse conjunto de abordagens costumava ser 10 anos do Posling – CEFET-MG
a ausência sistemática de uma preocupação com os problemas
de significação, a não ser quando pudessem ser vistos como
uma extensão dos fatos decorrentes de uma análise sintática,
morfológica e fonológica. Essa ‘mentalidade’ sobre os fatos
de linguagem apresenta uma repercussão limitadora sobre
as práticas pedagógicas com as atividades de linguagem na
escola. É por razões dessa natureza, mas provavelmente
59
não é a única, que a prática escolar com linguagem mostra
(ainda, mas numa proporção menor) uma preocupação
com fatos sistêmicos: numa redação, em geral, corrigem-se
as concordâncias, as regências, as colocações, os erros de
ortografia, com a pretensão suposta de que essa prática possa
conduzir a uma clareza sobre a significação2. Nada disso deve
ser considerado como um desserviço às práticas de linguagem
na escola; o reparo a ser feito, no meu entendimento,
é quando se faz desse ritual a única forma de ver a produção
de linguagem do aluno. É provável que os processos de
letramento estejam apontando numa outra direção.
2 Nesse particular, acho que a correção possa ter um valor inverso: corrigimos porque
sabemos qual é o sentido, ou porque precisamos atribuir um sentido.
60
Contrariamente às dificuldades enfrentadas pelas teorias
em abordar as questões sobre o sentido, é sobre elas que se
concentram o maior interesse sobre a linguagem, sobretudo
quando esse interesse se faz representar por olhares de
outras áreas de conhecimento ou quando assumem um teor
funcional para justificar tantos outros aspectos que envolvem
as atividades de um locutor na sociedade. Por que esse
interesse sobre as questões de sentido? O que dele extraímos
para uma compreensão das práticas político-sociais na
sociedade? Afinal, o que o sentido daquele que o produz pode
revelar sobre sua identidade, sobre sua ideologia, sobre sua
forma de ser e de fazer no mundo das coisas?
61
sujeitos fazem dos objetos de conhecimento, as formas de
vida que eles constroem na sociedade, as posições ideológicas
que assumem sobre os fatos sociais, enfim o modo pelo
qual erigem a sua visão de mundo. Nesse percurso dos
sujeitos sobre o mundo das coisas, é importante salientar que
os sentidos produzidos não são acidentalmente individuais
e nem necessariamente universais: os sujeitos agem em
função do lugar social que ocupam numa dada correlação de
forças sociais e esse seu agir se mostra espelhado nas formas
discursivas de que se vale. Buscar argumentos e justificativas
para entender o alcance que a diversidade dos sentidos que
se disseminam nos discursos numa sociedade pode ser uma
das dimensões do desafio de análise que colocamos para nós
mesmos, quando nos deparamos com certos eventos sociais
que elegemos como objeto de estudo de um trabalho acadêmico.
62
Certamente, muitos dos jovens mais talentosos
filósofos da ciência (especialmente filósofos da
física e filósofos da biologia) parecem inquietos com
questões metodológicas e muito mais confortáveis
com esclarecimentos técnicos de conceitos científicos
fundamentais. Não há dúvida de que as explicações
filosóficas da metodologia científica que almejam
relatar aos cientistas de como proceder com seu
trabalho são hoje ociosas.3 (2001, p. 463).
63
no fim do túnel. Precisamos fazer da análise do discurso,
analisando discursos, uma faísca de um ‘aufklerung’ para o
momento que vivemos.
2. Da intuição à análise
Um fato a ser analisado comporta etapas, caminhos e
processos muito diversos para os quais nem sempre temos
aquilo que poderia vir a constituir-se num procedimento
metodológico claro, com passos e etapas pré-estabelecidos,
com tratamento de dados explicitado pelo procedimento, com
objetivos e metas da análise alcançados com transparência.
Embora o objetivo seja a análise, nem tudo que realizamos,
ainda que com validade e com seriedade, seja de fato análise.
Precisamos admitir, todavia, que há abordagens teóricas
que propiciam descrições de dados de forma mais efetiva e
que uma transposição desse nível descritivo pode implicar
o uso de recursos que vão além das categorias que a própria
teoria disponibiliza. Vejamos, então, alguns aspectos que
selecionei para discutir o processo de análise de um fato, de
um acontecimento discursivo.
64
um processo inferencial explicitado, de um aporte teórico
organizado, como em geral ela costuma ser lembrada.
Podemos ter intuição sobre o sucesso ou sobre o insucesso de
qualquer ação que pretendemos realizar, porque dispomos de
alguma forma de conhecimento tácito (um sistema de crenças)
que nos possibilita experimentar impressões diversas, ou
imaginar predições (desejo) que nos permitem transitar por
muitos estágios intermediários entre aquilo que incentiva ou
que bloqueia nossas ações. O teor difuso e diversificado da
intuição já foi lembrado por David Lewis:
Nossas ‘intuições’ são simplesmente opiniões; nossas
teorias filosóficas são a mesma coisa. Algumas são
do senso comum; outras são sofisticadas; algumas
são particulares, outras gerais; algumas são mais
firmemente sustentadas, outras menos. Entretanto,
todas elas são opiniões...4 (1983, p.18).
4 “Our ‘intuitions’ are simply opinions; our philosophical theories are the same. Some are
commonsensical, some are sophisticated; some are particular, some general; some are more
firmly held, some less. But they are all opinions…” (1983, p. 18)
65
generis, caracterizada por variações como aquela
na qual a proposição recorrente parece verdadeira
(BEALER, 1998, 2002; PUST, 2000; HUEMER, 2001,
2005), outra na qual uma proposição é apresentada
ao sujeito como verdadeira (CHUDNOFF, 2011),
ou que empurra o sujeito para acreditar numa
proposição. (KOKSVIK, 2011)5.
66
que temos do fato; ela é importante, mas corresponde apenas
a uma forma de senso comum (mais ou menos depurado)
que somos capazes de expressar sobre um fato. Uma análise
precisa superar o senso comum, a opinião inicial, uma
atitude proposicional espontânea, em duas dimensões mais
comumente verificáveis:
67
apropriamos das categorias do quadro teórico para
justificá-lo. A paráfrase pode ser assumida, pois,
como um registro de memória para a intuição inicial
que criamos sobre um tema e que dela podemos nos
valer para avançar em termos da análise. É possível
que as suposições acima possam ser parafraseadas da
seguinte forma: (a) o jornal/entrevistado está sendo
ambíguo porque não está descrevendo objetivamente
a sua posição sobre o fato – implantação de cotas –,
já que, computados os argumentos apresentados,
não podemos assegurar qualquer posicionamento
mais significativo; (b) o jornal/entrevistado está
criticando a adoção do sistema de cotas por julgar
ser ele um fator de difícil administração e por
representar uma ameaça à qualidade do processo
escolar. Todavia, numa dimensão da análise, essas
paráfrase-sínteses precisam ser escrutinadas no
material coletado para avaliação, isto é, torna-se
necessário mostrar como a ambiguidade, a crítica
ou o reconhecimento se apresentam e como foram
(in)diretamente construídos nesse material. Para o
desenvolvimento dessa etapa é recomendável valer-
se das categorias de análise descritas no quadro
teórico selecionado.
68
Conhecimento direto é “o que derivamos dos
sentidos”, isto é, aquele que não implica o
conhecimento de qualquer proposição relativa ao
objeto com o qual estamos familiarizados. Para Russell
conhecimento é primariamente o “conhecimento
direto das sensações’ – do qual todo conhecimento
depende -; mas quando é expresso na linguagem
e organizado pelo senso comum ou pela ciência,
temos conhecimento por descrição.6 (1987, p. 412).
6 “Knowledge by acquaintance is ‘what we derive from sense’, which does not imply
knowledge of any proposition concerning the object with which we are acquainted. For
Russell knowledge is primarily – and all knowledge depends upon – the ‘knowledge by
acquaintance of sensations’; but when this is expressed in language, and organized by
common sense or science, we have knowledge by description.”
69
a ser analisado só faz sentido se for feita com base em
categorias que integram o quadro teórico, escolhido para
o desenvolvimento da pesquisa. A descrição não pode ser
confundida com a análise, mas ela já pode ser concebida como
uma formulação mais sistemática que caminha para a análise,
enfim, como um passo inicial da análise. Esta possiblidade de
confusão é comum e, muitas vezes, difícil de ser isolada, porque
dela participa o quadro teórico de forma intensa. A descrição
torna-se, portanto, uma etapa essencial para a análise: a
consistência de muitas inferências analíticas resulta de uma
descrição sobre aquilo que foi, no corpus, eleito como temas
e subtemas que devem ser destacados no processo de análise.
Uma descrição precisa se valer de alguma forma teórica de
abordagem com o objetivo de ultrapassar meras impressões
que são providas pela intuição. Uma descrição de um fato já
representa, portanto, um princípio de desenvolvimento da
análise que não deve ser confundida com a própria descrição
em toda sua extensão, nem se confinar a ela.
70
uma forma de ver esses dados dinamicamente, integrando e
confrontando agentes, integrando e confrontando temas e
subtemas, criando e justificando novas relações inferenciais.
É difícil supor um roteiro pré-estabelecido para a análise que
tenha uma precisão a priori: o processamento inferencial é
circunstancial e depende dos dados reunidos pelo analista
na fase de descrição, possibilitando evidenciar informações
não explicitadas nessa descrição. A dimensão da análise é o
momento em que o sujeito-analista se vale das informações,
mas também da sua experienciação, para construir um
arcabouço de relações que possa assumir um valor de
singularidade, de revelação de fatos que a superfície dos
dados pode não revelar de forma imediata. Essa revelação é
realizada pelo desempenho inferencial do analista.
71
Uma análise precisa acionar um processo inferencial qualquer,
pois é ele que possibilita suplantar os dados imediatos que
foram dispostos na fase descritiva. É esse processo que opera
‘o salto qualitativo’ que a indução nos possibilita: da avaliação
de alguns, podemos concluir para muitos, ou da avaliação de
muitos, podemos concluir para todos. Ou ainda de forma mais
radical, como advoga Peirce em favor da abdução, único estágio
que o autor considera propiciador da novidade num processo
de inferenciação, isto é, da análise de um caso a probabilidade
de sua inclusão numa regra geral. Esses processos costumam,
formalmente, estar associados a esquemas rígidos de
inferência, mas não há nada que impeça a sua utilização em
sistemas pré-formais – alguns autores trataram essa questão
como uma lógica informal –, como parece ser os padrões de
uma grande extensão do nosso raciocínio.
72
2.4 Intuição → descrição → análise
Nos itens anteriores, fizemos um percurso por essas três
dimensões, assinalando, em cada momento, alguns aspectos
que poderiam ajudar num traçado de orientação para uma
análise. Optamos por uma formulação, quando conveniente,
menos apegada a confrontações teóricas que poderiam ser
discutidas em cada uma das dimensões. Por exemplo, em
relação à intuição, optamos por não avançar na sua discussão
a partir de contrastes com categorias como introspecção,
sensação, percepção e tantas outras, bem como a sua
inserção em processos conscientes ou não. Na sequência,
apresentamos algumas observações gerais sobre a discussão
até aqui desenvolvida.
73
precisam ser contemplados no desenvolvimento de todo
o processo de análise, mas não necessariamente fixar um
roteiro de procedimentos.
74
Texto 1: charge
75
Podemos nos valer de alguns quadros teóricos para descrever
essa intuição inicial que temos da charge; inicialmente,
destacaremos o quadro enunciativo da charge e depois os
atos de fala nela envolvidos. Comecemos pela descrição do
processo enunciativo da charge:
76
significado dos termos em questão. Finalmente, a cena global,
valendo-se dessas cenas locais, coloca um repórter como o
locutor responsável para narrar o evento aos leitores. Essa
organização propicia, numa dimensão mais analítica, uma
percepção mais clara dos valores que ela pretende circular,
enquanto uma crítica humorada ao episódio, vivido pelos
interlocutores da cena inicial.
77
Há outro fator também a ser considerado: a identidade desses
interlocutores precisa ser vista pelo teor da animosidade que
caracterizou a relação entre eles, em certo período da vida
pública brasileira. Somente a partir desses fatos podemos
admitir um teor intencional para os proferimentos, o que
reorienta o valor das qualificações. O fato, portanto, de
eles de se fazerem representar por desqualificações dos
interlocutores, decorre de um valor intencional que podemos
atribuir a cada um dos proferimentos.
7 Significado e sentido são dois objetos discursivos diferentes, mas não são objetos
indiferentes entre si; resumidamente, pode-se dizer que o significado especifica condições
gerais para referenciação, enquanto o sentido determina uma referenciação, em seu uso
específico. Essa contraposição consagra a formulação de Wittgenstein de que sentido (mas
não significado) é o uso.
78
3.4 Descrição: atos de fala
Podemos nos valer também da teoria dos atos de fala, para
descrever o comportamento dos diversos interlocutores que
estão integrados em cada uma das cenas.
Estamos transmitindo
Ponto: declarativo/Modo: existência ou
ao vivo a briga do
Ponto: assertivo/M: relato
excelentíssimo ....
A descrição desses atos evidencia o teor simétrico e estrutural 10 anos do Posling – CEFET-MG
que perpassa as duas cenas enunciativas locais: a cena inicial
alterna dois atos expressivos com conteúdos proposicionais
distintos, permitindo caracterizar, de forma diferenciada,
como cada locutor percebe o seu interlocutor; a cena suporte,
formada por dois atos simétricos, responde pelo conteúdo
proposicional, de teor convencional e se mostrará também
como fonte dos efeitos perlocucionais que podemos derivar
desses atos. Por fim, a cena global, com duas alternativas de
análise, sendo cada uma propícia a criar certo tipo de ação
específica que pode ser atribuído ao seu locutor.
79
3.5 Análise dos atos de fala
Seguindo a descrição proposta para os atos na charge
em questão, a cena inicial mostra dois atos com uma
descrição idêntica – Ponto: expressivo/Modo: xingamento.
A importância dessa descrição inicial já mostra um processo
de interlocução dominado pelas emoções dos sujeitos pelo
fato de ambos os atos serem expressivos e que têm como
modo de realização o xingamento, isto é, ações discursivas
dominantemente representadas pelo estado mental de raiva,
que domina as condições preparatórias a que esses sujeitos
se acham submetidos. Esse estado, por sua vez, enseja um
processo de crença, onde cada um dos locutores manifesta
desavenças profundas com o seu interlocutor.
80
dos atos da cena inicial, associada às condições preparatórias
dos locutores – sujeitos integrados a formações discursivas
contrapostas e marcados por muitas desavenças no campo
político – o repórter declara online a existência de uma
briga, em função da força ilocucional dos atos em questão.
Aqui temos, certamente, duas alternativas de análise, como
proposto no esquema anterior: ao ato de declarar a existência
de uma briga – ato que representa uma leitura do repórter
sobre os fatos da cena inicial - podemos contrapor o ato de
asserção do relato desse mesmo efeito de briga. A primeira
análise coloca o locutor como corresponsável pelo efeito
– é ele que vê o fato como briga, ao instituí-lo, enquanto a
segunda centraliza essa responsabilidade nos protagonistas
da cena inicial.
4. Objetivismo, subjetivismo
e intersubjetivismo
No desenvolvimento de uma pesquisa, os procedimentos
de análise estão sempre sujeitos a flutuações em termos da
natureza da abordagem pretendida: escorregamos entre as
fragilidades de uma suposta objetividade dos dados (embora
ela exista em alguma extensão), de sua imposição sobre
condutas do pesquisador, de seu teor rigoroso testemunhado
10 anos do Posling – CEFET-MG
81
e se desenvolveram a partir de padrões desse teor. Nada
disso, todavia, nos garante uma certeza sem escoriações na
objetividade, uma certeza sem as marcas subjetivas daquele
que realiza a pesquisa. Tornamo-nos cada vez mais arredios à
velha apologia de que os dados falam por si só; sempre há um
sujeito que fala por eles ou com eles, que os decanta ou que
se encanta com eles. O pesquisador é um sujeito falível como
outro qualquer, mesmo quando ciceroneado por grandezas
numéricas, por algoritmos robustos. Supor realismo em que
um objeto, um fato impõe-se ao sujeito, anulando-o de forma
irrefutável, é quase uma utopia, sobretudo numa era em que
as incertezas, a relatividade, o ponto de vista, a fluidez dos
conceitos deixaram de ser um objeto de luxo das humanidades.
82
defensores parecem refutar uma pretensa imposição do
objeto, como uma difusa interpelação do sujeito. Cria-se um
nível de solução para esses dois ‘defeitos’ metodológicos,
um nível arbitral em que o outro é, ao mesmo tempo,
nosso parceiro – falamos numa voz plural que não é minha,
nem sua (mas antes nossa) –, mas também nosso juízo –
avaliamos sob a pressão do outro, sob os ecos da voz do outro.
É possível que essa socialização dos pontos-de-vista seja,
de fato, uma alternativa para a aporia gerada pela incerteza
entre o subjetivo e o objetivo, mas certamente ela precisa
se mostrar com uma clareza maior em termos operacionais
a serem incorporados nos processos de análise. Categorias
como intersubjetividade, compartilhamento intersubjetivo,
co-construção, interpretação conjunta, entendimento
mútuo (e variações possíveis) podem ter um aproveitamento
produtivo para justificar muitas das nossas experienciações,
muitos dos nossos processos de análise e, por isso mesmo,
devem ser acolhidas em nossas reflexões, mas não estou
convencido da extensão, quase sem limites (sem pudor
seria um tanto deselegante) em que são evocadas (às vezes
até intimadas) para, supostamente, resolver problemas de
análise. Em geral, nos processos de análise precisamos mais
do que truísmos e declarações de boas intenções: quaisquer 10 anos do Posling – CEFET-MG
categorias de análise precisam ser submetidas a provas duras,
ou, nos termos atuais e mais amenizados que retomo abaixo,
elas precisam ser naturalizadas.
83
“... realizações científicas universalmente reconhecidas que,
por um período, proveem problemas e soluções modelares
para uma comunidade de praticantes” (1975, p. 67). Kuhn
atribuiu ao paradigma uma posição importante no cenário
cientifico seja enquanto uma avaliação de manifestações
no campo da ciência, seja enquanto um diagnóstico de
formatação de novos projetos de conhecimento. Consenso e
convergência de pensamento em termos de modelos globais
de fazer ciência, estabilidade de formulações e concepções
num determinado período de desenvolvimento das atividades
científicas tornaram-se dois parâmetros importantes para a
discussão da ciência a partir do conceito de paradigma.
84
uma sequência mais natural com os problemas discutidos até
aqui. Trata-se da naturalização de uma categoria conceitual
e da necessidade de uma convivência com orientações
disjuntivistas. Não farei uma discussão detalhada e muito
documentada das duas questões, já que possuem uma
extensão que extrapola em muito os objetivos desse texto.
Uma reflexão em detalhes implicaria até mesmo uma avaliação
sob que condições devemos conceber uma e outra orientação
e até mesmo decidir se são elas compatíveis num mesmo
processo de análise. De modo ainda resumido, gostaria de
ressaltar apenas a sua importância para os problemas que
discutimos ao longo dessa reflexão.
5.1 Naturalização
Começo por uma citação de Grammont:
85
estreita correlação entre eles: quando uma ação é intencional
ou não? A intenção é um processo consciente ou não? Toda
ação intencional é consciente? Em torno de questões dessa
natureza circunda a naturalização, que comporta sua extensão
para outras categorias.
86
Não são estas, entretanto, as únicas perspectivas apontadas
para a naturalização: Legrand (2010, p. 323), por exemplo,
cita três dimensões de importância para a sua compreensão
e aqui destacamos uma delas: a necessidade de superação do
dualismo cartesiano. De fato, a naturalização destaca também
o processo de integração do conhecimento, mostrando que
certas dicotomias deixam de ter importância nessa nova
perspectiva que se abre para o conhecimento.
87
1. Propriedade Natural de um sistema S – Uma
propriedade de um sistema S é natural se for incluída
em um conjunto de propriedades naturais primitivas
Pn1 ou se ela puder ser cientificamente explicada
pelas propriedades Pn1, possuídas por S. Neste caso,
ela é chamada de propriedade natural não primitiva,
que reunidas formam o conjunto de propriedades
Pn2.(...)9 (2010, p. 294).
88
5.2 Disjuntivismo
O disjuntivismo representa uma postura mais alternativa
do que a naturalização: enquanto esta se fixa cada vez mais
como uma necessidade de que as categorias teóricas tenham
um reflexo sobre o mundo empírico, o disjuntivismo ainda é
algo mais controverso, por ter se tornado uma estratégia mais
afeita para uns processos perceptivos e de forma especial para
a percepção visual, campo em que sua discussão tem sido mais
intensa, mas não exclusivamente. Assim, o que representa
o disjuntivismo no contexto de análise em que estamos aqui
discutindo? Destaco um comentário de Ruben, de teor ainda
muito genérico sobre o tema:
10 “It looks to S that p iff either (a) S sees or perceives that p or (b) it merely looks to S as
if that p.”
89
na percepção desses mesmos objetos, quando os completamos,
ou os qualificamos de modo singular.
90
narrativas para as quais os limites entre ser e parecer ser, entre
que-p e achar que-p, entre o factivo e o fictivo nem sempre
são passíveis de um reconhecimento explícito pelos processos
de análise. O disjuntivismo não opera com a necessidade de
impor um ponto de vista, recusando o outro ou de afirmar
uma divisão essencial entre mundos diversos, mas antes de
assumir o processo em sua totalidade reconhecendo duas
dimensões para a atividade perceptiva.
91
A fórmula, se já não era simples, agora se torna ainda mais
complexa não somente pela presença desses novos operadores
como também pela presença destacada da restrição feita
por disjunção. Isso poderia assinalar a existência de algum
fato que pudesse ter unicamente uma compreensão apenas
convencional como outro que fosse apenas intencional, o
que seria, em alguma extensão, reconciliar dicotomias que
estariam sendo exatamente contestadas.
REFERÊNCIAS
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integrative view in: GRAMMONT, F., LEGRAND, D. & LIVET,
P. Naturalizing intention in action. Cambridge, MA: The MIT
Press, 2010.
GREGORY, R. L.(Eds). The Oxford Companion to the Mind.
Oxford: Oxford University Press, 1987, p. 412.
GUTTING, G. Scientific methodology in: A companion to the
philosophy of science. Oxford: Blackwell, 2010, p. 463.
KOKSVIK, Ole. Intuition. In: Stanford Encyclopedia of
Philosophy, 2011. Disponível em: http://plato.stanford.edu/
entries/intuition/. Acessado em 12/09/2014.
KUHN, T. S. A prioridade dos paradigmas. In: A estrutura das
revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 67-76.
LEGRAND, D. Externalist naturalization of intention in
action. In: GRAMMONT, F., LEGRAND, D. & LIVET, P.
Naturalizing intention in action. Cambridge, MA: The MIT
Press, 2010, p. 323-336.
LEWIS, D. Philosophical Papers. Oxford: Oxford University
Press, 1983, p. 183.
92
ROY, Jean-Michel. Cognitive neuroscience of action. In:
GRAMMONT, F., LEGRAND, D. & LIVET, P. Naturalizing
intention in action. Cambridge, MA: The MIT Press, 2010, p. 294.
RUBEN, David-Hillel. Disjunctive theories of perception
and action. In: HADDOCK, A. & MACPHERSON, F. (Eds.)
Disjunctivism. Perception, action, knowledge. New York: Oxford
University Press, 2007, p. 227-243.
SANTIAGO. Charges Online – 27 de junho de 2000. Acesso
em: 30 de junho de 2000.
93
LINGUAGEM, ENSINO E APRENDIZAGEM
NO ENCONTRO DESIGN EM
PARCERIA E DESIGN NA LEITURA
Jackeline Lima Farbiarz1
Preâmbulo
O presente texto resulta de participação na Mesa-redonda
Interdisciplinaridade nos estudos de Linguagens, Ensino,
Aprendizagem e Tecnologia durante o Colóquio Estudos de
Linguagens, em comemoração aos dez anos do Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Linguagens (Posling) do CEFET- 10 anos do Posling – CEFET-MG
MG. Na apresentação do referido Programa há destaque para
os “estudos das modalidades de ensino e de aprendizagem
de língua e de literatura com fundamentação nas diferentes
1 Doutora em Educação e Linguagem pela USP. Diretora do Departamento de Artes & Design
da PUC-Rio. Professora do Programa de Pós-Graduação em Design da mesma instituição.
Coordena o Laboratório Linguagem, Interação e Construção de Sentidos-Design. Desenvolve
pesquisas sobre o Design a serviço da Educação na perspectiva da Sustentabilidade Humana.
Orienta pesquisas sobre o Design como construtor e coautor de sentidos sociais. Atua na
formação do designer e do educador para a inclusão focadas na pedagogia das multiliteracias,
no design em parceria e na ludificação das práticas de ensino-aprendizagem.
2 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997 [coletânea
de textos de 1919;1922;1936;1938;1979].
93
teorias da linguagem” e, em especial, para a “reflexão sobre o
papel de materiais didáticos e de tecnologias da informação e
comunicação no ensinar e no aprender línguas e literaturas”,
sempre nas perspectivas interdisciplinar, intersemiótica e
interdiscursiva3.
94
De certa forma, os lugares educativos escolhidos e ocupados ao
longo de uma trajetória de vinte e cinco anos de profissão entre
salas de aula de ensino médio, graduação e pós-graduação que
levaram a participação na referida mesa-redonda subsidiam
o viés autoral adotado neste texto. Salienta-se aqui alguns
deles, constituintes de uma história de vida em formação:
a. bolsista de aperfeiçoamento científico (CNPq) na temática
Design Social pelo Departamento de Artes & Design da
PUC-Rio, após cursar a graduação em Letras na mesma
universidade;
b. professora de Língua e Literatura para turmas dos três
anos de ensino médio de uma escola da zona sul da cidade
do Rio de Janeiro e para um vestibular comunitário de uma
escola da central do Brasil, destinado à inserção de negros
na universidade antes das ações governamentais em prol do
sistema de cotas;
c. professora universitária na área de Comunicação e
Expressão;
d. pesquisadora que escolheu como tema de seu doutorado
refletir sobre a atuação do professor de Língua e Literatura,
a partir de sua própria atuação em sala de aula;
e. profissional inquieta que constituiu sua formação em Letras
10 anos do Posling – CEFET-MG
e Educação, mas que migrou para o Design como escolha de
pesquisa e atuação;
f. professora universitária vinculada a disciplinas como
Docência em Design, Procedimentos metodológicos em
Design; Design e Interdisciplinaridade, Comunicação,
Interação e Autoria em Design;
g. pesquisadora responsável pelo Laboratório Linguagem,
Interação e Construção de Sentidos no Design;
h. supervisora e orientadora de pesquisas, projetos e ações
95
no contexto da sustentabilidade humana, da Educação
multimodal e inclusiva pelo viés do design em parceria; e
i. diretora do departamento de Artes & Design da PUC-
Rio, responsável pelo novo Projeto Político Pedagógico da
graduação com uma nova ênfase em sustentabilidade humana.
96
Essa lembrança do primeiro dia como professora foi narrada da
seguinte forma na tese de doutorado Utopia e realidade na atuação
do professor de Língua e Literatura, defendida na Faculdade de
Educação da USP em 19974, que teve como um dos objetivos
específicos analisar redações com a temática “o adolescente e a
leitura”, elaboradas por estudantes do ensino médio.
Entrei na sala carregando o livro didático, escolhido pela
professora do ano anterior e o programa do curso, olhei
para os trinta e cinco alunos e dei-me conta de que eles
continuavam conversando, ouvindo walkman, trocando
fotografias, lendo revistas, etc... Percebi que alguns
agiam como se não houvessem reparado em minha
chegada, enquanto outros demonstravam claramente
que não achavam o fato de eu ter entrado em sala
determinante para que deixassem suas atividades
de lado e concentrassem-se na minha fala. Somando
a recepção antagônica com a minha inexperiência
enquanto professora, minhas primeiras palavras foram:
– Vocês têm quinze minutos para colocarem os
assuntos em dia, afinal, voltaram de férias hoje,
alguns não se veem há mais de dois meses, não
deve faltar o que conversar. Sei que é pouco, mas
pelo menos ajuda a controlar a curiosidade até a hora
do intervalo. Depois uso quinze minutos para me
apresentar e o resto do tempo para a gente trocar,
tirar as dúvidas e estabelecer os limites dos dois lados. 10 anos do Posling – CEFET-MG
Incerta quanto a eles terem ouvido ou não o que eu
havia dito, fui para o quadro negro, transformei a
minha fala em um exercício, sentei, peguei um livro
e fiquei lendo a esmo, enquanto esperava o tempo
passar. Aos poucos, os alunos foram mudando de
posição, alguns nitidamente inseguros quanto ao
que fazer, até que uma das estudantes gritou:
– E aí galera é pra gente conversar mesmo, ela tá
falando sério!
Logo em seguida a sua fala, ela retirou um álbum de
97
fotografias da mochila, virou a carteira para o lado
e começou a mostrar as fotos, comentando sobre a
viagem que havia feito à Bahia. Daí para a frente, a
aula transcorreu sem incidentes, quando avisei que
o tempo deles havia terminado, a mesma estudante,
que mais tarde concluí ser uma espécie de líder na
turma, reclamou que o espaço era pouco, mas, em
seguida complementou:
– Tudo bem, pelo menos é alguma coisa.
Como considerei que a aula havia transcorrido bem,
repeti o formato com as turmas seguintes daquele
dia, até que ao chegar à porta da sala-de-aula da
primeira turma após o recreio, uma das alunas foi
logo dizendo:
– Você também vai deixar a gente conversar, né? Não
vai sair dando matéria, não. A gente também precisa
matar saudades!
Pega de surpresa, eu respondi que eles já haviam
conversado no recreio, mas, em seguida, afirmei
que daria os quinze minutos, pois as outras turmas
também tiveram o recreio para colocar os assuntos
em dia. No dia seguinte, no elevador da escola, um
dos alunos comentou, sem me olhar:
– Legal a aula ontem. Foi a primeira vez que deram
um tempo pra gente.
Depois saiu sem dar-me a chance de responder.
Hoje, lembro-me de que, naquele momento, achei
engraçado que a aula legal não foi fruto de nenhuma
programação prévia, não foi o atendimento a
uma estratégia de ensino consciente, foi apenas
a consequência de meu desconforto frente a uma
turma que se apresentava diferente de minhas
expectativas. Recordo-me que quando vi aqueles alunos
desorganizados, ignorando-me, senti necessidade de
ganhar tempo, de ter algum momento para organizar
minhas ideias e ver o que fazer. No instante em que os
vi, só tinha a certeza de que o que eu havia planejado
falharia, de que discutir o programa do ano letivo
não despertaria interesse e de que a possibilidade de
interação seria mínima. Daí a opção por dar tempo
para ganhar tempo. (FARBIARZ, J.L., 1997, p.33-34).
98
A experiência do primeiro dia de aula despertou alguns
conceitos que foram sendo solidificados durante os anos
junto ao ensino médio. Logo de início, foi possível perceber,
por meio da vivência e do relato de outros professores que
estavam ingressando na profissão, que entre o aluno que
se imagina na universidade e o que se encontra na prática
existe uma distância enorme. Na busca de referências para
a compreensão da situação, a tese de Lima (1996) destacava
àquela época a dificuldade da universidade em preparar o
aluno de magistério para o como fazer. Em seu ponto de vista,
embora conceitualmente os professores recém-formados
formulassem concepções próximas a modelos de ensino-
aprendizagem que visassem a reconstrução do conhecimento
entre professor e aluno com vistas a uma aprendizagem
potencialmente autônoma, as práticas identificavam-se com o
modelo tradicional de ensino, incluindo características como:
99
acordaram, por meio de modos comunicacionais diversos,
concessões em favor da soma e, consequentemente, em
detrimento de oposições. A aula não teve a ênfase no modelo
tradicional tal qual anteriormente caracterizado, apesar
disso quase acontecer no tempo de aula pós-recreio, caso a
escuta ativa tivesse sido descartada. O quase embotamento
da possibilidade de interação construída no encontro com
o inesperado, ganha também em Lima (1996) sustentação.
A autora deixava – já naquela época – como alerta que entre
os diferentes modelos de ensino-aprendizagem ofertados nas
licenciaturas, e conceitualmente apreendidos, as vivências
dos futuros professores – ainda como alunos, ancoradas em
relações de ensino-aprendizagem construídas em modelos
tradicionais – acabam por prevalecer, sobretudo aquilo que
eles vivenciaram no lugar daquilo que lhes foi narrado, mas
não experimentado.
100
Após esse extenso preâmbulo, em suma, o compartilhar dos
lugares educativos, o reviver de uma experiência profissional
são as bases para a apresentação do objetivo do presente
texto, isto é, o refletir sobre a abordagem metodológica design
em parceria5 no encontro com o design na leitura como um
ato responsável (BAKHTIN, M, 2017 [1920]) ancorado não
na identificação, mas sim no reconhecimento (RICOUER,
2006) como possibilidade de âncora para os estudos de
Linguagens. Para tanto, adotamos um percurso metodológico
que se divide em duas partes. Na primeira, há o uso de um
texto literário para levantarmos preceitos fundamentais da
referida abordagem. Na segunda, apresenta-se o resultado de
um projeto desenvolvido junto a agentes de saúde indígenas
da Aldeia de Paraty – RJ/Brasil6, colocando-o em diálogo com
os preceitos da soma design em parceria/design na leitura.
101
para a negociação de trocas simbólicas, para o oportunizar de
expressões responsáveis inscritas na diversidade.
Um modo de tramar
No livro Guilherme Augusto Araujo Fernandes7 – classificado na
categoria Literatura Infantil pela Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil sediada no Brasil –, Mem Fox e Julie Vivas,
respectivamente autor e ilustradora, abordam a temática
da memória. Na contracapa do livro há a indagação “O que
é memória?”, cuja resposta é assinada pela editora do livro
(Brinque-Book), que compartilha com o leitor:
7 Trechos do livro são transcritos ao longo deste artigo sem que voltemos a apresentar sua
referência bibliográfica.
102
da abordagem metodológica em Parceria na perspectiva da
PUC-Rio)8, escolheu “ir ao encontro de gente”9 em detrimento
de ficar confinado em seu espaço particular.
• A segunda informação que recebemos é a de que “ele gostava
da Sra. Silvano que tocava piano”; ele ouvia o contador de
histórias, Sr. Cervantes. Ele brincava com o Sr. Waldemar
que “adorava remar” e ele admirava a voz de gigante do
Sr. Possante.
• Nossa segunda inferência pode ser a de que Guilherme escolheu
o sim em detrimento do não, isto é, ele escolheu observar as
pessoas no contexto a partir do que existe em detrimento
do que não existe, a partir da potência em detrimento da
impotência. Essa inferência se fortalece quando entendemos
que essas pessoas estão em situação de asilo, são idosas
e carregam, pelo lugar em que vivem e pela idade que
possuem, “pré-conceitos” que as colocam no lugar daquelas
que precisam estar sob proteção, daquelas cujas idades as
limitam. Mais uma vez aqui, nosso protagonista dialoga com
um preceito da abordagem design em parceria, a observação
do outro, do ser-pessoa e não a busca do si mesmo no outro.
• A terceira informação que recebemos é a de que, apesar de
Guilherme Augusto Araújo Fernandes conviver com cada
morador do asilo, a partir da potência de cada um, ele tinha 10 anos do Posling – CEFET-MG
preferência pela Sra. Antônia Maria Diniz Cordeiro, pois ela
“também tinha quatro nomes como ele”, sendo então a sua
confidente.
• Nossa terceira inferência pode ser a de que Guilherme faz
103
escolhas, baseando-se em um ponto de partida comum a
dois, mesmo que singular. Guilherme é novo, a Sra. Antônia é
velha. Guilherme mora numa casa com os pais, a Sra. Antônia
mora em um asilo. Guilherme circula no extra-muros, a
Sra. Antônia habita o intra-muros. Guilherme é um, a Sra.
Antônia é outro, mas mesmo na diferença há um em comum;
ambos têm quatro nomes. Em comum referenciado em suas
identidades constitutivas, potencializado na convivência de
ambos. Em suma, mais um preceito da abordagem design em
parceria: são as identidades que constituem os seres-pessoas,
assim qualquer escolha pressupõe o respeito a cada identidade
não no sentido do fortalecimento de uma em detrimento
da outra, mas no sentido do reconhecimento de que elas se
constituem, de fato, nas relações/negociações.
104
Guilherme não foca a sua atenção na adjetivação “coitada”,
mas sim no substantivo memória, naquilo que constitui os
sujeitos, ao perguntar aos pais “o que é uma memória?”.
• Nossa quarta inferência pode ser dividida em duas partes.
Na primeira, circular entre o intra-muros e o extra-muros
amplia as formas de olhar. Guilherme soma, ao seu olhar
sobre D. Antônia, o olhar de seus pais. Na segunda, conviver
potencializa o ver. Guilherme entende que junto ao olhar
de seus pais está a sua “com-vivência” com D. Antônia. Ele
conviveu com D. Antônia e sabe que ela não é uma coitada.
Ela é inclusive sua confidente. Então não há espaço para pré-
julgamentos depreciativos na ação de Guilherme, mas há
espaço para ele entender que esses pré-julgamentos existem
no extramuros, estão dados, participam do processo de
construção de identidades. Ele reconhece o que os outros
dizem que ela não tem, ele reconhece o que ela tem (ela é
capaz de escutar confidências) e ele foca no que é o seu direito
inerente: a memória. Assim, afastando-se do julgamento
depreciativo, Guilherme retira D. Antônia do lugar da
exclusão, do isolamento, desfavorecendo o sentimento de
piedade. Mais uma vez o encontro com outro preceito da
abordagem metodológica design em parceria; conviver no
lugar de antecipar ou pré-conceber, favorecendo a potência do 10 anos do Posling – CEFET-MG
ser-pessoa, sem ignorar a realidade inscrita no extramuros.
• A quinta informação que recebemos é a de que “Guilherme
Augusto quer saber mais” e a de que, para isso, ele sai em busca
de informações sobre o que é memória com as pessoas que
moram no asilo. Então ele consulta e escuta as respostas da
Sra. Silvano, do Sr. Cervantes, do Sr. Waldemar e acrescenta
à lista de pessoas com quem convive no asilo a Sra. Mandala.
Assim, recebe como respostas, de cada um a quem pergunta,
possibilidades diferenciadas de resposta: memória é algo
quente, antigo, caro, que faz rir, que faz chorar e que vale ouro.
105
Respostas estas obtidas por meio dos pares de D. Antônia, de
seu contexto de significações.
• Nossa quinta inferência pode ser a de que Guilherme sabe
que é preciso ouvir os outros, que a construção de sentidos
se dá entre e a partir de seres-pessoas em relação. No âmbito
da abordagem metodológica design em parceria, Guilherme
nos faz lembrar do antropólogo Roberto da Matta (1978),
em sua defesa de que é preciso “familiarizar o exótico e
estranhar o familiar”. As pessoas que habitam o asilo vivem à
margem da sociedade, não caracterizam o familiar, são exóticas e
D. Antônia, inclusive, é adjetivada como “coitada”. Mas
Guilherme circula entre intramuros e extramuros, questionando
verdades pré-estabelecidas, elegendo a pergunta com escuta
ativa, como ponto de reconhecimento.
106
habitam o asilo, o intramuros, em um encontro de realidades.
Ele se permite ativar, concretizar suas escutas, por meio de
sua relação com o extramuros, a fim de promover a memória
ativa de D. Antônia. Outra vez, mais um dos preceitos da
abordagem metodológica design em parceria é explorado aqui:
buscar alternativas que se constituam na relação eu-outro,
que se constituam entre pessoas, que partam do observado
e escutado, a fim de encontrar um eu-designer potente para
deixar emergir aquilo que tem lugar na relação, ou buscar
alternativas que não se constituam no eu ou no outro, mas
que traduzam a relação, encontrando significados nela.
107
O livro Guilherme Augusto Araújo Fernandes chega ao seu fim
com o seguinte texto: “E os dois sorriram e sorriram, pois
toda a memória perdida de D. Antônia havia sido encontrada
por um menino que nem era tão velho assim”. Ele serve de
ilustração para a exposição de preceitos fundamentais do
design em parceria, na perspectiva do curso de Design da
PUC-Rio, nos âmbitos da graduação e da pós-graduação,
fundado em 1974 e 1994, respectivamente. Em síntese,
poderíamos tangibilizar a abordagem metodológica design
em parceria por meio dos seguintes verbos de ação:
• visitar;
• observar;
• escutar;
• conviver;
• oportunizar;
• tangibilizar;
• experienciar;
• significar; e
• encantar (empatizar).
108
Recuperando a primeira experiência de sala de aula aqui
narrada como preâmbulo, poderíamos elencar:
109
Linguagem e Construção de Sentidos no Design que integra o
referido Programa.
110
f. Reflexão sobre o processo desenvolvido, os papéis do
designer no processo e sobre os lugares do Design em projetos
interdisciplinares. (Significar)
111
Escolarização, por exemplo, a princípio constituía-se como
elemento familiar, comum às realidades Aldeia em Paraty/
Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Quadro, mesa, cadeira,
material didático, professor, aluno, situação de interação de
ensino-aprendizagem. Em suma, sem um olhar observador e
uma escuta cuidadosos, sustentados na etnografia, o elemento
em comum “sala de aula” poderia propiciar a diluição do exótico
pelo aluno de mestrado, oriundo da zona sul da cidade do Rio
de Janeiro, planificando ou familiarizando pontos plurais.
112
para buscar compreender esse tipo de manifestação frente à
cultura deles e, consequentemente, os significados presentes
nas relações. Em observação e escuta, foi possível aprender
que, para os índios daquela etnia, interromper era sinônimo
de desrespeitar.
113
pré-determinado. Com a limitação, defende-se aqui que,
embora muitos dos preceitos da abordagem metodológica
design em parceria tenham sido valorizados, o projetar “com”
seres-pessoas, com o parceiro de projeto, em busca de algo
constituído na relação (nem um nem outro, mas resultante do
evento comunicativo responsável/processo projetual), cedeu
lugar em momentos distintos.
114
projeto com foco em ensino-aprendizagem onde a resposta
para o material potencializador da aprendizagem está dada
pelo estrangeiro e não pelo real protagonista de sua história,
os agentes de saúde Guarani. E junto a isso, como ressignificar
o objeto caderno paradidático dentro da cultura Guarani, já
significado em suas versões anteriores por representantes
da FUNASA, respeitando uma cultura que tradicionalmente
privilegia a linguagem oral? De forma complementar, mas
fundamental, como potencializar a aquisição pelos Guarani
de uma nova prática social, a leitura, prática distante de sua
raiz, culturalmente sustentada na oralidade?
115
textos verbais híbridos, apresentados tanto em Guarani
quanto em Língua Portuguesa.
10 ALVARES, Luciano Rosa Alonso. Cúpula catenária de “fibrobarro” estruturado com bambu:
concepção e processo construtivo. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2008.
116
abordagem metodológica design em parceria, tornou possível
a significação de um objeto político novo, pensado em sua
totalidade, em ação de reconhecimento da cultura Guarani.
117
apresentado por José Luiz Ripper e Ana Branco no final dos
anos 70 na PUC, em consonância com o pensamento de
Victor Papanek (1971).
118
como tentar levantar-se puxando-se pelos cabelos.
Do conteúdo separado do ato cognitivo apropriam-se
suas próprias leis imanentes, com base nas quais ele
se desenvolve sozinho, autonomamente. Inseridos
neste conteúdo, consumado um ato de abstração,
estaremos à mercê de suas leis autônomas; mais
exatamente, cada um de nós não está mais presente
nele como ativo no sentido individual e responsável.
(BAKHTIN, 2017, p.49).
119
das abordagens e processos metodológicos de projetação em
Design, sobretudo, da abordagem design em parceria, cujos
primeiros projetos concretizaram-se ainda na década de 70
à pedagogia das multiliteracias (COPE e KALANTZIS, 2000),
com a incorporação da diversidade, do pluralismo, isto é, das
múltiplas camadas dos mundos que conformam os sujeitos
contemporâneos. Os alunos são conduzidos a perceber,
transformar e recriar sentidos, movimentando-se de um
contexto socialmente inscrito para outro por meio de práticas
situadas, instruções abertas e enquadramento crítico, para a
vivência em uma prática transformada que recria sentidos,
colocando em funcionamento o sentido transformado em
outros contextos ou situações sociais.
120
modo de visar do original, fazendo com que ambos
sejam reconhecidos como fragmentos de uma língua
maior, como cacos são fragmentos de um vaso.
(BENJAMIN, 2011).
121
REFERÊNCIAS:
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN,
Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G.
G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997, [1929].
122
FARBIARZ, J. L.; RIPPER, J. L. M. Instantâneos de interações.
Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010.
PAPANEK, V. Design for the real world – human ecology and social 10 anos do Posling – CEFET-MG
change. Chicago, EUA: Academy Chicago Publishers, 1971.
123
EDIÇÃO, UM PROCESSO EM ABERTO:
exercícios, projetos e construção
de espaços
Rogério Barbosa da Silva
Wagner Moreira
Introdução
As considerações apresentadas neste texto foram em parte
apresentadas no Colóquio comemorativo dos 10 anos do PPG
em Estudos de Linguagens em 2018.
125
que essas escolhas encerram. Para isso, seria necessário
certo esforço quase pormenorizado das metodologias e
dos caminhos de cada um desses processos investigativos.
126
alienante: “(...) isso mostrou-me a alienação dessa relação
social, na qual um ser, o copista, está confinado perante o
mestre a uma atividade que eu diria quase esclavagista, ainda
que o campo da escrita seja precisamente o da liberdade e do
desejo.” (Cf. BARTHES, 1981, p. 177). Há, evidentemente, na
literatura inúmeros textos em que os escritores explicitam
essa tensão entre o desejo e a manipulação dos instrumentos,
a revelarem, mais que os protocolos da escrita, a reflexão
contínua sobre as suas práticas de trabalho - distintas, em
grande parte, dos objetos impressos que resultam desse
exercício. Talvez, como diz Alexandrino E. Severino, a respeito
das versões de Água Viva, de Clarice Lispector, “a tentativa de
chegar a um ponto inefável, um ‘it’, para além do raciocínio e para
além mesmo da imaginação.” (SEVERINO, 2019. p. 125). Em
Água Viva, espécie de romance experimental ou prosa poética,
a voz narradora pergunta-se em determinado momento:
127
cada vez maior apenas ‘funciona’” (FLUSSER, 2008, p.73),
porque a sociedade dedica um tempo maior ao consumo das
imagens técnicas. E os homens tornaram-se funcionários que
reprogramam os aparelhos, funcionam em função deles. Para
ele, a saída é apostar numa “sociedade de programadores”
para se opor a uma “democracia programada”. Ele vê, nessa
sociedade, que a imaginação se desloca daquele escriba
que está obrigado a interessar-se por letras e a manejar as
regras da gramática e do discurso para uma superfície: está
destinado a imaginar as imagens e obrigar o aparelho a
produzi-las” (FLUSSER, 2008, p. 43). Retomando, pois, ao
texto de Clarice, entendemos que a voz narradora, enquanto
objeto contaminado pelo sangue, reconhece esse maquinismo
e o torna uma instância produtora. Dessa maneira, a sua
indagação é contrária à posição de muitos poetas e escritores
que enfatizam o trabalho da mão, corroborando Heidegger,
com a ideia de que “a palavra como escrita é caligrafia” e de
que o “escrever mecânico priva a mão da sua reputação no
âmbito da palavra escrita e degrada a palavra a um meio de
comunicação” (HEIDEGGER, 2019, p. 276, 277). Segundo
essa visão, Heidegger considera que a máquina é desprovida
do sinal da escrita e, embora reconheça aí algumas vantagens,
o principal é que ela “transforma a relação do Ser com o
humano”, diz ele. Mas admite ao final de seu texto que a
tecnologia está na nossa história. O pensamento contrário,
evidenciado e descrito por Kittler (2019), é o de Nietzsche,
que diz em uma de suas correspondências: “Nossa ferramenta
de escrita trabalha juntamente com o nosso pensamento”
(NIETZSCHE, apud KITTLER, 2019, p. 278). Kittler nos
mostra que, consciente das limitações por sua semicegueira,
Nietzsche se interessa por um máquina de escrever portátil
desenvolvida por Hans Rasmus J. M. Hansen para surdos-
mudos, a Grafosfera, de 1867, que buscava compensar déficits
128
fisiológicos e aumentar a velocidade da escrita (Cf. KITTLER,
2019, p. 280). Acrescenta ainda que a mecanização fez com que
o filósofo mudasse “de argumentos para aforismos, de ideias
para jogos de palavras, da retórica para o estilo telegráfico”
(KITTLER, 2019, p. 282). Derrida, por sua vez, argumenta
contra esse aspecto litúrgico requerido por Heidegger,
afirmando que, na máquina de escrever ou no computador,
não é necessário abandonar a mão, pois aí aciona-se outra
mão, outro comando. Adiante, esclarece:
129
para este ofício de segurar o lápis –
precisamente e próximo – tal como
as palavras que ele tenta caligrafar
e trazer para perto da vontade
da expressão nítida, ou de firmeza
que vai do esboço suado e promissor
ao borrão do golpe em falso – sujo –
do garrancho, da garatuja.
(FREITAS FILHO, 2009, p. 25).
130
produzem textos mais rápidos (...), em cujo caso a origem
do programa é menos evidente” (FLUSSER, 2008, p.33).
E dirá que ainda que o seu tatear sobre as teclas o convide a
um determinismo aleatório, sua sensação existencial recusa
tal determinismo. Assim, a sua existência, a nossa existência
e estar no mundo se concentram sobre as pontas dos dedos.
A sua aposta é que num futuro não muito distante – e nisso
ele acerta – seria uma sociedade de tateadores em busca de
informações novas. Nessa sociedade certeiramente antevista
se percebe o predomínio das imagens técnicas de superfícies
não afetivas, mas imaginadas. (Cf. FLUSSER, 2008, p. 37-38).
O que dizer dos textos que hoje tateamos nas telas de nossos
dispositivos, em termos de sua materialidade tanto quanto de
sua existência como escrita?
131
particulares (notas fiscais, convites de casamento, cartões de
nascimento e participações de morte):
132
linguagem ganha um corpo físico e as mensagens ganham
um fluxo social” (LUPTON, 2013, p. 5). Nesse sentido, ela nos
mostra que a tipografia ajudou a configurar a ideia de “texto”
como um corpo estável de ideias, original completo, pois a
obra impressa solucionou os problemas de irregularidades
e lacunas das antigas cópias, pois o sistema de impressão
permite as correções dos manuscritos pelo autor e pelo
editor. No entanto, afirma que os livros mudam a cada edição,
tradução, citação, revisão, interpretação ou discussão. Por isso,
enquanto a tipografia clássica enfatiza a ideia de completude
da obra, tal como a imprensa ajudou a estabelecer a figura
do autor como proprietário de um texto, “as estratégias
alternativas de design nos século XX e XXI refletem a natureza
contestada da autoria, revelando a abertura dos textos ao
fluxo das informas e à corrosividade da história.” (LUPTON,
2013, p. 85). Nisso está de acordo com Derrida, que considera
o espaço de publicação na internet como diluidor da fronteira
entre o público e o privado, com movimentos de apropriações
da res pública e o questionamento das antigas instâncias
legitimadoras do livro (DERRIDA, 2004, p. 152).
133
tempo sequencial da língua e das narrativas, mesmo
quando o livro contém imagens. O livro inscreve seu
conteúdo no tempo, o qual tem um começo e um fim,
ao qual chamamos história. (MELOT, 2012, p. 54).
134
Em termos de pesquisa, portanto, poderíamos traçar este
desenho das principais interfaces que recortam projetos
e orientações ao nível do mestrado e doutorado, com
capilaridade em TCCs e projetos de iniciação científica:
135
edição como ato criativo e crítico; também como ação de
uma experiência poética no vídeo ou como ação política
de resistência e afirmação dos devires e paradigmas de
grupos considerados minoritários ou excluídos; estudo
da edição e estratégias discursivas do audiovisual.
A partir da desconstrução dos arquivos digitais, análise
do universo de significados a partir dos instrumentos e
estratégias instaurados como processo de edição.
136
materialidades editáveis. Lembra ainda que a palavra
recobre grande quantidade de procedimentos intrínsecos
à definição geral da palavra. Por isso, ancorado na reflexão
de Howard Becker, a que a compreensão do funcionamento
do mundo da arte está atrelada ao entendimento da rede
cooperativa que o constitui (Cf. MUNIZ JÚNIOR, 2020, p. 70),
o autor propõe também uma definição abrangente do ato
de “editar”, porém, circunscrita ao fazer: “(...) pode-se
definir o “editar” como um conjunto de práticas destinadas
a preparar materiais, simbólicos para circular publicamente
(ainda que destinados a públicos específicos, como os
relatórios institucionais)” (MUNIZ JÚNIOR, 2020, p. 71).
Seu argumento central é o de que uma definição nessa
linha reconhece o sentido ético de uma série de práticas
profissionais, invisíveis ou desconhecidas no campo.
No mesmo volume, o Tarefas da edição (CEFET-MG, 2020),
Cléber Cabral Araújo discute a edição a partir dos “arquivos
editoriais”, para trazer ao campo não apenas as tarefas
do editor/publisher ou das práticas de editar/editing, mas
também as da preservação (CABRAL, 2020, p. 20-29).
Penso aqui em Cláudia Kozac que, em seu Tecnopoéticas
Argentinas (CAJA NEGRA, 2012), define o livro como um
arquivo blando, evocando o Mal de arquivo, de Derrida, mas
pensando que o arquivo digital é maleável, inconcluso, que 10 anos do Posling – CEFET-MG
se interrompe, e pode se retomar. Cabe ainda ressaltar que
a noção de livro continua a ser um conceito problemático,
tal como evidencia Ana Elisa Ribeiro:
137
Como também nos mostra Michel Melot, a história do livro
também pode ser traçada ao longo de sua história em aberto
(é ver o título da obra Livro, – a que se segue uma vírgula e
não um ponto), e relembrando o seu trocadilho: um livro
acaba, mas não acabamos com o livro. A tarefa de editar
parece similar à história do livro, pois as práticas sempre se
redefinem ao longo do tempo e das sociedades.
Considerações finais
Embora possam parecer distintas, as duas partes deste texto
tentam explicitar a ideia de que escrever e editar constituem
processos criativos, e que é preciso considerar a dimensão de
que o fazer é também uma atividade crítica. Assim, pensar a
edição requer que os objetos editados sejam não apenas um
produto, mas sobretudo um exercício de imaginação alicerçado
em projetos e na pesquisa. Que sejam um fazer/pensar,
uma espécie de “imaginário radical”, como queria Arlindo
Machado, que pudesse liberar toda energia “incubada e diluída
no marasmo de bens culturais” (MACHADO, 2001, p. 14).
138
resistência ao maquinismo desenfreado; aqueles que debatem
a democratização do audiovisual, ou aqueles que elegem o
digital para abrir alternativas em meio à diluição dos meios e
ao poderio dos conglomerados econômicos.
139
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O Grão da voz. Trad. Teresa Menezes e
Alexandre Melo. Lisboa: Edições 70, 1981.
FREITAS FILHO, Armando. Lar,. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
140
LUPTON, Ellen. Pensar com tipos. 2ª ed. rev. e ampl. Trad. André
Stolarski e Cristina Fino. São Paulo: Cosac & Naify, 2013.
RIBEIRO, Ana Elisa. Do livro ao “livro”: ensaiando a genealogia de 10 anos do Posling – CEFET-MG
um objeto. In: OLIVEIRA, Luiz H. & MOREIRA, Wagner (Orgs.).
Edição & Crítica. Belo Horizonte: CEFET-MG, 2018, p. 67-75
141
TENTEANDO A TRAVESSIA — ROTEIRO
DE PERFORMANCE1
Sônia Queiroz e Grupo Movência2
ABERTURA
143
Oi, me dê licença
Viemos pedir licença
Oi, pedir licença
Pra contar nossa história
Oi, nossa história
Ô licencê, ô licençá
Ô licencê, ô licençá
Foi agora que eu cheguei
Que eu vou me apresentar
EH, CUEIO
144
desafios. De onde vêm essas histórias de um tempo em que
os bichos falavam? Seria possível identificar as vozes que
primeiro transmitiram essas narrativas?
Câmara Cascudo (1984, p. 147) chamou a atenção para as 10 anos do Posling – CEFET-MG
narrativas de animais em diferentes regiões do continente
africano, especialmente aquelas em que animais pequenos,
fazendo uso da astúcia, da inteligência e da esperteza,
superam animais grandes e fortes em desafios, destacando-
se o coelho, personagem sempre hábil e astucioso. Cascudo
observa, ainda, que o suíço Héli Chatelain, em Angola, no final
do século XIX, e o alemão Leo Frobenius, na foz do rio Níger,
na região do Golfo da Guiné, na primeira metade do século
XX, registraram histórias do coelho. Cascudo afirma ainda ter
ouvido várias histórias de coelho em Moçambique e Angola.
145
O suíço Henri Junod, em sua pesquisa realizada no sul de
Moçambique e publicada pela primeira vez em 1911 sob o
título Life of a South African Tribe, também destaca a presença
do coelho.
146
Imagem de Josiane Souza
147
MAS O COELHO SEMPRE
CASA COM A GIRAFA?
Em Angola e Moçambique, territórios linguístico-culturais
banto, há registros de variantes dessa narrativa.
148
Imagem de Bianca Dantas
149
Essas perguntas ficarão sem resposta. O que se pode
observar são várias ressonâncias e diálogos transculturais
entre narrativas orais registradas no Brasil e em territórios
africanos.
JOÃO JILÓ
É interessante observar que essas narrativas apontam para
a grande dinamicidade presente na tradição oral, em que
histórias são transmitidas pela rede oral por diferentes tempos
e lugares. O pesquisador Paul Zumthor explora o conceito de
movência nas expressões de tradição oral, observando que
elas são caracterizadas por um intenso dinamismo. Zumthor
(1997, p. 264) nos lembra que, com exceção de algumas formas
míticas muito ritualizadas, na tradição oral, o texto está
sempre em movimento e adquire uma forma sempre instável.
150
A história “João Jiló” foi contada por nós a partir de registro
feito em Turmalina, com o contador Francisco Lourenço
Borges, em 1987. Além desse registro, publicado por Sônia
Queiroz, no livro 7 Histórias de encanto e magia, em 1999,
encontramos três outras variantes dessa história publicadas
em livro no Brasil por Alexina de Magalhães Pinto, em As
nossas histórias: contribuição do folk-lore brazileiro para a
bibliotheca infantil, em 1907; Lúcia Casasanta, em As mais
belas histórias, em 1969; e por Maria Selma de Carvalho, José
Murilo de Carvalho e Ana Emília de Carvalho, em Histórias
que a Cecília contava, em 2008.
151
Imagem de Josiane Souza
152
Já na história “O afilhado do diabo”, um menino, após
tornar-se afilhado do “coisa ruim”, tem acesso ao livro onde
estão registradas mágicas. Morando na casa do diabo, onde
realizava todos os trabalhos domésticos, o menino aprende a
fazer mágicas durante uma viagem do diabo e, ao final, supera
seu mestre. Nessa história, o bruxo é representado pelo
diabo, figura muito presente em narrativas de tradição oral
transmitidas no Brasil e em outros países da América Latina.
Félix Coluccio e Marta Coluccio (2000) destacam a forte
presença da figura do diabo, por influência do cristianismo,
em expressões das culturas de tradição oral e popular em
países latino-americanos, como Brasil, Argentina, Bolívia,
Chile, Paraguai, Venezuela, Colômbia, Peru e Porto Rico.
153
Imagem de Bianca Dantas
IAIÁ CABOCLA
Entre os índios Xakriabá, a força motriz da memória é
constitutiva dos saberes de homens e mulheres que buscam
“viver o presente sem esquecer o passado”, utilizando
uma expressão lema para o povo Xakriabá que precisou
reinventar-se, buscando na memória imaterial e material de
seus antepassados (re)afirmar sua identidade. Nessa cultura
acústica, a palavra é dotada de grande importância. Como um
povo da palavra, os Xakriabá mantêm vivas muitas expressões
da tradição oral amparadas no corpo e na memória, em
diversas vozes que se inscrevem na performance.
154
Censo de 2010 realizado pelo IBGE, na Terra Indígena Xakriabá
– (TIX) – vivem um pouco mais de 9.221 indígenas, porém,
no discurso local consta um número maior de indígenas,
cerca de 14.000. Ainda de acordo com o Censo, os Xakriabá
representam a quarta maior população indígena do Brasil.
As histórias dos encantados são reveladas pelos Xakriabá, 10 anos do Posling – CEFET-MG
principalmente quando se referem aos antigos ou à sua relação
com eles. Essas narrativas compreendem a relação com os seus
ancestrais, como é o caso da Iaiá Cabocla, onça considerada a
avó dos Xakriabá, que a reconhecem como parte integrante
da cultura do grupo. Iaiá Cabocla é a protetora do território
e também símbolo de força. “Ela é parte das narrativas
mais conhecidas, é uma figura que demarca a alteridade dos
Xakriabá e de sua terra, uma entidade poderosa do Toré e do
trabalho de mesa, além de uma ancestral comum.” (SANTOS,
2010, p. 117).
155
Por intermédio dos rituais realizados pelos Xakriabá, é
possível fazer contato mais estreito com os encantados,
conversar com eles, e até mesmo usufruir de sua força. Mas
aproximar-se de um encantado pode ser perigoso, pois estar
próximo é também estar vulnerável à sua ação. Além da Iaiá
Cabocla, encontramos na TIX o Pé de Garrafa, Bicho Homem,
Bicho do Morro, Caipora, Ouro, Machadero, Mãe D’água.
Muitos aparecem com mais frequência nas matas e nas lapas.
Os encantados das águas são pouco citados, provavelmente
pela escassez de água no território. Manter com os encantados
uma boa relação, principalmente o Caipora e a Onça Cabocla,
é algo de certa forma determinante para se ter uma boa caçada
ou para andar sem ser assustado. Muitos caçadores deixam
fumo na mata para agradar a Iaiá, é um presente para manter-
se protegido e obter boas caças. Outros encantados não têm
necessariamente um nome, mas um conhecedor ao encontrá-
los sabe que é encanto, como podemos observar nas falas dos
Xakriabá registradas por Lorena Anastácio:
156
Ela faiz todo tipo, ela é incantada. Ela vira passarim,
vira toco, vira cupim, vira um gambá, um bichim
miudim, vira bicho bem grande, vira gente. De veiz
enquando ela passa aí subiano. É, tem veiz que ela
passa aí asubeia. [...] Ela passa assubeia tarde depois
que a gente deita. O assubio dela num tem quem
imita não, puque é bem finim. Ela só subeia, por
inxemplo, se vim pessoa de lá pra cá e a gente num
sabe, ela subeia avisano que tá vino visita. Quando
é pra pessoa daqui viajá tamém ela assubia, ela
passa na noite se fô viajá que nem amanhã de noite
ela passa pra avisá e quondo tá lá é pra saí de lá ela
subeia aqui. Quando eu tava lá em Montes Claros
mais mãe ela assobiô lá pertin da Casa do Índio, de
noite, e ninguém iscutô só eu que vi mais ninguém
iscutô. E se vim coisa tamém contra nóis, ela avisa,
´subeia, aí a gente já sabe. Ou nutícia boa pro lado
nosso ou nutícia que num presta, ela vem. Se tivé
demanda aí com terra ela passa assubeia. Uma
veiz na retomada nas Caraíba ela foi lá bateu nos
cachorro. Pegô os cachorro, deu um pau! Ficaro tudo
com medo, pensaro que era ‘gente que tava chegano e
num era. Ela que tava lá. Se ocê falá coisa com ela que
cê vai fazê corqué coisa com ela, ela pega é ocê, senta
de riba, pega ocê dá umas n’ocô. Um home véio que
morava aqui do lado da iscola que nós vamo amanhã,
o home era criadô de gado aqui, tinha poca gente,
aí cumeço a pegá o gado dele, ele falô: “- É, tem um
diabo duma onça acabano co’meu gado!” Aí o povo: “- 10 anos do Posling – CEFET-MG
Moço, cê toma cuidado que pode sê a Onça Cabocla!”
Ele disse: “- Colé disgraça de Onça Caboca, moço? Se
fô ela eu meto o facão nela impurro uma bala nela,
boto ela pros inferno!” Aí, pois ela foi prisiguino o
gado dele, el’ prendeu no curral ela foi e sangrô o
marruá e bebeu o sangue e largô lá. Aí ele pegô a
zuá quando é um dia ela tava destampano a carne.
No ôtro dia foi priciso ele í ond’tava o Estevo Gome’
que é esse qu’eu falei. O Estevo Gome’ conversava co’
ela. Falô co’ ela que dexasse, mexesse não, aí parô.
E… se ficá zuanoo acaba o gado, agora se ´quetá ela
respeita, num mexe não. (Sr. Valdemar, Dona Célia
e Tico, junho, 2017. In: ANASTÁCIO, 2018, p.116).
157
Imagem de Bianca Dantas
158
falô: “- Ô novia bonita gorda, se eu achasse um
pedaço dela. Ela disse: “- Cê tem corage?” Ele disse: “-
Tenh’!” Então, pegô um ramo e deu ele: “- Sigura esse
ramo aqui, eu vô lá pegá a nuvia. Na hora qu’eu vim
lá co’ a boca aberta cê coloca na minha boca.” Qu’era
pr’ela disvirá. Aí o índio ficô isperano, ela sumiu lá
quondo viu ‘pariceu a onçona, derrubô a novia e veio
de lá no rumo dele. Aí ele correu. Aí ela incantô. Mais
desse dia tamém diz qu’ela prisiguiu ele até o dia que
pegô ele. Ele corrreu… [risos] Ela num ia fazê nada,
era só pô o ramo na boca ela disvirava. Ele. Mais
ele correu, incantô ela, é simpatia. E aí ela ficô prá
protegê o índio. Ela é índia. Ela é a protetora dos
índio! (Sr. Valdemar, junho 2017. In: ANASTÁCIO,
2018, p.116-117)
159
REI KITAMBA KIA XIBA
Os diálogos permeados por movências e transformações
podem ser observados, ainda, quando se confrontam contos
orais registrados na África, como os contos recolhidos por
Héli Chatelain, em Angola, e narrativas registradas em
território brasileiro. A história “O rei Kitamba Kia Xiba”
apresenta um rei – o rei Kitamba – que, após a morte de sua
esposa, tem uma grande tristeza e decreta luto em todo o
seu reino. Incomodados com o luto que impedia festas ou
outras celebrações, os homens do reino de Kitamba procuram
um feiticeiro, que vai à terra dos mortos e volta com uma
mensagem da rainha. Ao receber a mensagem, o luto é
abandonado e a alegria retorna ao povo do rei Kitamba.
160
Imagem de Bianca Dantas
RETRATO-FALADO4
Este grupo não é tão novinho assim. Ele já tem mais de 20
anos e hoje leva o nome de Movência. Todo grupo, ao longo
dos anos, como os grupos de rock, os músicos, os contadores
de história, muda sua configuração. Eu sou um pouco a
madrinha desse grupo. Começamos na última década do
século XX, tivemos a honra de ter a Ana Elisa Ribeiro conosco
10 anos do Posling – CEFET-MG
na primeira configuração do grupo que começou a pesquisa
no Vale do Jequitinhonha, identificando os narradores, os
contadores de histórias do Vale, que é uma região muito rica
em termos de arte e cultura. Fizemos vários livros, impressos
e sonoros, com várias experimentações editoriais, na UFMG,
com as narrativas orais do Vale do Jequitinhonha, a maioria em
prosa, mas algumas em verso. Fizemos muitas experiências.
4 Apresentação do grupo feita por Sônia Queiroz nos momentos finais da performance.
161
Inicialmente, no Vale do Jequitinhonha, foram 11 anos
do projeto de pesquisa e extensão “Quem conta um conto
aumenta um ponto”. Depois desenvolvemos outros projetos,
como o “Minas Afrodescendente”, em que fomos verificar
narrativas orais publicadas em livro aqui no Brasil e em
Angola, na África. Pra identificar o que nós chamamos,
então, ressonâncias, ou seja, vamos dizer, cantos à distância
ou reverberações de tradições orais lá e aqui. Encontramos
muitas histórias. Formamos um acervo de mais de duzentas
narrativas orais entre Brasil e Angola. E grande parte dessas
histórias são de animais, que aqui a gente costuma chamar
“histórias do tempo em que os bichos falavam”. São histórias
como a do Coelho, a do Sêo Onça e a da Girafa, que o Josiley
acabou de contar. A gente desenvolveu uma série de livros, de
livros-objetos, a partir dessa pesquisa das ressonâncias Brasil-
África. Estou falando Brasil-África, desculpem, é uma mania
nossa de generalizar, mas, na verdade, era a África banto,
especialmente Angola, de onde veio a maioria da população
brasileira. Até hoje nós temos mais de 50% da população
afrodescendente.
162
A gente também desenvolveu, vocês vão ver o aspecto
material destes livros, alguns inspirados nos livros anteriores
à imprensa, nos que tinham formato de rolos. A gente tem um
rolo de tecido, feito em serigrafia. As narrativas, como desde
o início do nosso trabalho, são escritas por jovens que estão
conosco nas equipes. Vários já se tornaram grandes escritores,
como é o caso da poeta Ana Elisa Ribeiro, que trabalhou com a
gente no início de sua graduação.
163
Imagens de Bianca Dantas
164
DESPEDIDA
Eu vou-me embora,
mas um dia eu volto aqui
Eu vou-me embora,
mas um dia eu volto aqui
Eu vou morar na mata
onde canta a Juruti
Eu vou morar na mata
onde canta a Juruti
Passarim bateu asa,
bateu asa e avoo
Passarim bateu asa,
bateu asa e avoo
Quand’ocê for embora,
dê lembranças meu amor
Quand’ocê for embora,
dê lembranças meu amor
165
Imagem de Vinícius D’ Moreira
166
FICHA TÉCNICA
Amanda Jardim (narração)
Cristina Borges (narração)
Guilherme Trielli (música e design sonoro)
Josiley Francisco de Souza (narração)
Laís Penna (produção e iluminação)
Lorena Anastácio (narração)
Tropowisk Coelho Carvalho (música e design sonoro)
Vinícius D’ Moreira (música, vídeo, design de cena e sonoro)
ARTISTAS CONVIDADOS
Sônia Queiroz (narração)
Bianca Dantas (fotografia)
Josiane Souza (desenho)
Thompson Medrado (cenografia)
Thyana Hacla (cenografia)
167
168
Imagens de Bianca Dantas
Visite a página do Movência no YouTube:
https://www.youtube.com/channel/
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Maria Inês de; QUEIROZ, Sônia. Na captura da
voz: as edições da narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica; FALE/UFMG, 2004.
169
INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO E DO DISCO. Contos
Moçambicanos. vol. 1. Maputo: Instituto Nacional do Livro e
do Disco, 1979.
170
SOUZA, Josiley Francisco de. Do canto da voz ao batuque da
letra: a presença africana em narrativas orais inscritas no
Brasil. 2012. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) —
Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2012.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires
Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida.
São Paulo: Hucitec, 1997.
GRUPO MOVÊNCIA
Amanda Jardim é contadora de histórias, antropóloga e educadora. Bacharel e
mestranda em Antropologia pela UFMG. Realiza pesquisas com o povo indígena
Xakriabá. Desde 2017, atua de maneira autônoma promovendo o ensino das
temáticas indígenas em escolas da rede pública e privada.
Cristina Borges é contadora de histórias, atriz, performer e professora de
português. É mestre em Literatura Brasileira pela UFMG, pós-graduada
em “A arte da performance” pela Faculdade Angel Vianna e em Consultoria
Pedagógica pela Universidade de Mainz. Já atuou como contadora de histórias
nos grupos Os Linguarudos e Trupe Malalô.
Guilherme Trielli é poeta, músico e professor de literatura e português
na Faculdade de Educação da UFMG. Dedica-se à pesquisa e ao ensino nas
áreas de escrita criativa, didática da literatura e estudos interartes, atuando
também na Educação Indígena e do Campo.
Josiley Francisco De Souza é contador de histórias, músico e professor de
literatura e português na Faculdade de Educação da UFMG. Pós-doutor pelo
Instituto Caro y Cuervo da Colômbia, pesquisando as vozes africanas, afro-
10 anos do Posling – CEFET-MG
brasileiras e afro-colombianas dos contos orais.
Laís Penna é produtora cultural, educadora, pesquisadora da literatura e do
universo literário. Pós-graduada em psicopedagogia clínica pela UniBH, graduada
em artes cênicas pela UFOP e graduanda em pedagogia pela UFMG.
Lorena Anastácio é contadora de histórias, cantora, instrumentista,
educadora, pesquisadora das narrativas de tradição oral e da cultura da
criança. Mestre em educação pela UEMG. Como cantora e contadora de
histórias participou de diversos espetáculos, além de ministrar oficinas sobre
a arte de contar histórias. É pesquisadora da educação indígena e das relações
entre oralidade e escrita nas culturas Xakriabá e Maxakali.
Vinícius D’Moreira é artista visual e músico, graduado em Desenho
Industrial e Programação Visual pela UEMG. Vinícius pesquisa e experimenta
a linguagem e os efeitos das artes visuais e cênicas.
171
SOBRE OS MOVIMENTOS
DOS TIPOEMAS.
DA ORIGEM AO INFINITO.
DO UM AO TODO.
DO CHUMBO AO PIXEL.
Cláudio Santos Rodrigues1
Sérgio Antônio Silva2
173
Tipoema. Mix. Remix. A mixagem é a lógica do movimento.
A linguagem sincopada. Poesia concreta. Música abstrata.
Rastros, sobreimpressões. A imagem da letra, a letra como
imagem. Ideogramas moventes. O impresso, sua força material,
sua marca. A sensualidade do papel, a tela multi-sensorial.
A repetição. Uma tesoura que corta recorta e cola: imagem, som,
silêncio. Um, dois, três... sete movimentos, cada qual com sua
textualidade. O poeta e (o) tipógrafo, sempre por perto. Ouro
Preto, cidade onde tudo começou, no Vagão dos Sentidos, na
vaguidão dos sentidos, na vastidão dos sentidos, na devassidão
dos sentidos. Outras cidades, mundo afora. Performance
da performance. Os corpos. Cláudio, Leonardo, Fabiano e
convidados, ao vivo. Uma imersão, sensações intensas. Enfim,
um remix, o próximo movimento dos Tipos Móveis.
https://vimeo.com/55628167
174
Curiosamente, a história da imprensa em Minas
inicia-se, por um ato de rebeldia da própria
autoridade máxima da capitania, em 1807, ou seja,
um ano antes da chegada da Família Real portuguesa
e da criação da Impressão Régia, no Rio de Janeiro.
A primeira obra impressa em Minas Gerais surgiu
sob os auspícios do então governador, Pedro Maria
Xavier de Ataíde e Mello, que, querendo ver publicado
o poema laudatório que lhe dedicou Diogo Pereira de
Vasconcelos, tomou para si a responsabilidade de
infringir a ordem régia de 6 de julho de 1747, que
proibia terminantemente a realização de qualquer
atividade de imprensa no Brasil. Tal empreendimento
só foi possível graças ao padre, artista e impressor José
Joaquim Viegas de Menezes. (ARAÚJO, 2006, p. 20).
3 Vagão dos sentidos: projeto de instalação audiovisual com animação gráfica para 12 telas
de LCD, realizado em parceria com o animador Leonardo Rocha Dutra e com o músico e
sound designer Lucas Miranda, a convite do Santa Rosa Bureau Cultural, dentro do Vagão
dos Sentidos, no âmbito do projeto de Educação Patrimonial Trem da Vale – localizado em
Mariana, MG.
175
para a linguagem audiovisual, a lógica do impresso tipográfico,
o labirinto das gavetas, as cores das tintas e a textura das
letras de chumbo no papel de algodão, além dos rangidos e
burburinhos de fundo das gráficas. Para a realização do filme,
foi levada em conta a conformação do espaço, a posição de
cada tela e de cada poltrona do vagão, para possibilitar uma
experiência sensorial em diferentes pontos de vista. Imagem
e som dão forma a essa composição, possibilitando um novo
tipo de fruição, por meio da relação entre as pessoas, as
palavras e as máquinas.
176
um poema exclusivo de Guilherme Mansur.4 A poesia dos tipos
é há mais de 30 anos matéria desse tipógrafo e poeta ouro-
pretano. Além do grande apoio prestado nas conversas e na
disponibilização de seus tipos, ramas, clichês, ornamentos e da
própria impressora Heidelberg para as gravações, Guilherme
compôs um poema exclusivo que foi explorado de diferentes
formas na realização do vídeo, e cujas palavras foram
desmembradas e recompostas em uma das partes da narrativa.
177
uma nova versão em forma de vídeo single channel5 a partir
do vasto material gerado para a composição de sua origem,
Tipos Móveis, estruturado em combinações de imagens
orquestradas em função do ritmo sonoro de cada cena.
Captura fotográfica de gavetas de tipos da Gráfica Ouro Preto. Cláudio Santos, Lucas
Miranda e Leonardo Dutra, com Guilherme Mansur em sua casa em Ouro Preto. Acervo de
Cláudio Santos.
178
TIPOEMA: MOVIMENTO UM
NOITE BRANCA |
Parque Municipal, BH | 2012
HONG KONG MOBILE FILME AWARDS |
Hong Kong | 2013
https://vimeo.com/47350267
179
desses bits de informação intercambiáveis. Essas
partículas subsemânticas, essas unidades chamadas
de “espécimes” pelos impressores tipográficos são
letras fundidas em corpos de metal padronizado,
esperando pelo momento em que serão agrupadas
em combinações significativas, depois dispersadas
e novamente recombinadas em outras formas. A
caixa de tipos do compositor é um dos ancestrais
primordiais do computador – e não é por acaso que
a composição tipográfica, tendo sido um dos últimos
ofícios a ser mecanizado, tenha sido um dos primeiros
a ser mecanizado. (BRINGHURST, 2005, p. 29).
Poemas impressos com uso de fontes digitalizadas, produzidos por Guilherme Mansur para
o Fórum das Letras em Ouro Preto. Fotos e acervo de Cláudio Santos.
180
Posteriormente, foi desenvolvida uma nova versão derivada
do vídeo Tipoema: movimento um. Esse novo vídeo foi,
então, um dos 10 selecionados pelo Festival Vivo Arte.
Mov para participar do 3º Hong Kong International Mobile
Film Awards. Ao todo, 10 países selecionaram 10 filmes
e, a partir de uma seleção de um júri internacional,
fomos escolhidos para representar o Brasil. Durante a
cerimônia, realizada em 24 de março de 2013, em Hong
Kong, o vídeo foi contemplado com o troféu de prata
na categoria animação, dentre os 10 filmes finalistas.
Foi o único representante das Américas nesse festival
mundial de conteúdo para celular e dispositivos móveis.
Dentro do processo de seleção, foi preciso apresentar
verbalmente o vídeo para um júri internacional. Além da
entrega dos prêmios, aconteceu, depois, uma conferência
dentro de um evento mundial de cinema e televisão (Hong
Kong International Film & TV Market), em que se apresentou
o processo de produção do filme para uma plateia de
estudantes de várias partes do mundo. Os outros troféus
foram para Alemanha, Austrália, França, Taiwan e Espanha.
10 anos do Posling – CEFET-MG
181
O passo seguinte foi apresentar o vídeo e o processo de
produção para um público de antigos e novos tipógrafos, no
Museu Vivo Memória Gráfica, localizado no Centro Cultural
UFMG, em Belo Horizonte, como parte da programação do
lançamento do Livro dos Tipógrafos, em 2013.
https://vimeo.com/160102578
Ensaio da performance com André Travassos no violão e Cláudio Santos na prensa tipográfica
com sistema acoplada ao laptop. Fotos de Alessandra M. Soares. Acervo de Cláudio Santos.
182
A apresentação se deu através da integração da prensa
tipográfica com um sensor e um computador em uma interface
mecânico-digital e com música tocada ao vivo. Eis uma breve
explicação do funcionamento do sistema de impressão de
vídeos:
1) O operador executa o movimento de impressão da
tipografia.
2) O sensor é acionado através de um imã colado ao braço
da prensa.
3) Um circuito eletrônico que permite a exibição de uma
mídia é disparado.
4) A qualquer momento, pode-se chamar vídeos ou textos
animados via software.
5) Em paralelo, trilhas, sons e ruídos são executados ao vivo.
https://vimeo.com/198234777
183
tipográfica centenária que permite imprimir vídeos, a partir
dos conteúdos da instalação audiovisual Tipos Móveis e do
vídeo Tipoema: movimento um. O mais rico desse encontro foi
apresentar e conectar com diferentes gerações de tipógrafos,
artistas e gravadores. Um diálogo interdisciplinar que visa o
agora e o futuro, ao valorizar o passado.
184
Sendo em Diamantina, cidade inspiradora de tantas histórias,
o encontro não poderia se dar sem as boas conversas
paralelas com figuras emblemáticas: Maria Dulce lembrou-
nos do ineditismo e coragem da Associação Memória Gráfica
Typographia Escola de Gravura, que desenvolveu um trabalho
sócio-educativo para jovens entre 14 e 21 anos no período
de 1999 a 2010. Antônio F. Costella, do Museu Casa da
Xilogravura, em Campos do Jordão, apresentou uma vida
dedicada a uma coleção. José Lourenço, da Lira Nordestina,
trouxe-nos uma trajetória de sabedoria e sensibilidade no
mundo da gravura. Os gráficos do Centro Editorial e Gráfico
(Cegraf) da Universidade Federal de Goiás nos mostraram um
projeto potente de resgate da tipografia, dentro do parque
Gráfico da Universidade Federal de Goiás. Ainda contamos
com a presença delicada e a força de representantes da
Universidade de Cauca, na Colômbia, com um projeto de que
conecta tipografia e design. Gilberto Tomé, da Fonte Design,
de São Paulo, nos apresentou sua sofisticação em soluções
gráficas. Flávio Vignoli falou do seu trabalho (não menos
sofisticado) na Tipografia do Zé. Ana Utsch e Sônia Queiroz
apresentaram a Red Latinoamericana de Cultura Gráfica.
Sérgio Antônio Silva apresentou o TipoLab – Laboratório de
Tipografia da Escola de Design da UEMG e lançou a reedição
do Tratado da Gravura de A. Bosse, com belo projeto gráfico
10 anos do Posling – CEFET-MG
do LDG-ED-UEMG. Cláudio Santos Rodrigues reforçou o
compromisso assumido com o mestre Sebastião Bento da
Paixão, da cidade de Jequitinhonha, MG. Por fim, designers
e tipógrafos de Belo Horizonte apresentaram o livro/filme
Prelo, que coroou o encerramento com uma bela homenagem
ao sr. Ademir Matias, nosso grande mestre. Ainda aconteceu
produção coletiva de alta qualidade para quem estava lá
colocar a mão na tinta e levar para casa um impresso do evento.
185
TIPOEMA: MOVIMENTO TRÊS
POSLING – CEFET – MG | BH | 2018
https://vimeo.com/284212680
186
Registro da performance com Cláudio Santos na prensa e Vinícius Cabral no laptop,
realizando a trilha incidental, o sampler e o remix. Impressos utilizados na projeção: acervo
de Cláudio Santos. Fotos de Isabela Prado
187
TIPOEMA: MOVIMENTO QUATRO
OCUPAÇÃO 62 PONTOS | Galeria quartoamado
| BH | 2017
https://vimeo.com/291582912
188
Registros da Ocupação 62 pontos e da performance realizada na Galeria Quartoamado.
Fotos de Cláudio Santos e Leonardo Dutra. Acervo de Cláudio Santos.
189
TIPOEMA: MOVIMENTO CINCO
ARTE DEMOCRACIA UTOPIA | Museu de Arte do
Rio | RJ | 2018
https://vimeo.com/352059583
190
Registros da exposição Arte Democracia Utopia, realizada no Museu de Arte do Rio (MAR)
e da performance realizada com Cláudio Santos e Fabiano Fonseca. Fotos de Alessandra M.
Soares e Marcelo Braga. Acervo de Cláudio Santos.
191
TIPOEMA: MOVIMENTO SEIS
TIPOS LATINOS | MUMO | BH | 2018
https://www.facebook.com/claudio.voltz/posts/10216719304436572
Convite do evento Tipos Latinos e frame da performance realizada com Cláudio Santos e
Fabiano Fonseca a partir de vídeo transmitido ao vivo por Yuri Simon da Silveira. Acervo de
Cláudio Santos
https://vimeo.com/467080352
193
manipulação do sistema digital que alterna vídeos e fotos
com uso da alavanca da prensa manual, foram apresentados
haicais de Guilherme Mansur e poemas de sua parceria com
Paulo Leminski. A apresentação aconteceu no Glória Bistrô.
Foi apresentado material de arquivo jamais visto sobre
Mansur e Leminski, além de alguns poemas impressos em
tipos móveis no TipoLab – Laboratório de Tipografia da
Escola de Design da UEMG.
195
Da ‘esquizofrenia produtiva’ à
sobrevivência da Universidade
Pública no Brasil
223
Corpo, presença e serenidade:
um diálogo com
Hans Ulrich Gumbrecht
225
[Prof. Gumbrecht]:
Claro. Como as perguntas da palestra, não é? Perguntas bem
específicas. [Risos]
[Prof. Gumbrecht]:
Finalmente vou ter a oportunidade de recorrer a uma
citação, vou começar com uma do livro que considero o mais
importante de Foucault, entre muitos livros importantes e
memoráveis para essas discussões. Esse livro termina com
aquele parágrafo famoso que diz: “um dia, o conceito de ser
humano vai ficar rasurado, vai ser diferente”. Interessante
porque naquele contexto (o livro foi escrito no início dos
anos 60) os conceitos de humano, de humanista e de
Ciências Humanas eram usados, ainda, no sentido clássico do
Iluminismo. Mas, a genialidade de Foucault foi antecipar que,
um dia, seria necessária uma transformação daquele conceito.
226
e com o sentido de risco, seria perguntar quais poderiam ser
os elementos de uma humanidade nova, transformada, já não
exatamente pautada na tradição do Iluminismo.
[Prof. Gumbrecht]:
Talvez... Quer dizer, humanidade entre aspas, não é? Mas, eu
acho que não seria só uma historicização do conceito, dizendo
que hoje em dia, quando a gente está usando esse conceito,
ele é diferente de 50 anos atrás. Mas, também, no sentido que
o João1 falou na palestra de hoje sobre uma “normatividade
sem normas”. Seria ver, por exemplo, se aquela proposta
existencialista poderia funcionar. Então podemos nos adentrar
em uma análise do que foi discutido no seminário. O evento de
hoje, não propriamente a palestra, mas as perguntas, que não
eram perguntas, eram contribuições, reações diante da situação
atual. Essas perguntas demonstraram que não temos certezas,
mas, ao mesmo tempo, temos uma grande necessidade de nos
abrirmos experimentalmente para um novo saber. Não um
saber de arqueologia, no sentido de pensar, “ainda não sabíamos
como funcionava um texto no século XVIII”, mas no sentido de
enfrentar os desafios do momento presente.
10 anos do Posling – CEFET-MG
1 Menção à apresentação do Professor João Cezar de Castro Rocha (UERJ) que antecedeu à
palestra de Hans Ulrich Gumbrecht, no CEFET-MG.
227
[Prof. Gumbrecht]:
Estranhamente, eu devo ser o único professor na história da
ciência literária que nunca tentou produzir literatura [Risos].
Às vezes, as pessoas me dizem que estou escrevendo bem, mas
eu não tenho essa ambição. Porém, eu estou casado com uma
artista. Minha mulher é pintora. Então, eu tenho, em meu
cotidiano, a oportunidade de presenciar o seu processo de criação.
228
a gente deveria reagir tentando contribuir para a emergência
de uma nova forma institucional da nossa profissão.
[Prof. Gumbrecht]:
Difícil essa pergunta! Agora, em primeiro lugar, eu gosto
de falar do ritmo. Eu gosto de falar da dança, porque, eu
existencialmente não tenho ritmo nenhum. Sou completamente
horrível. [Risos] Eu não consigo dançar. Eu tenho inveja de
quem consegue dançar bem, como no filme Dirty Dance. Eu
adoraria ser capaz de fazer isto. Eu não posso lidar nem com
algumas cadeiras no caminho, eu estou sempre tropeçando.
Então, por isso eu acho interessante o tema da dança.
10 anos do Posling – CEFET-MG
A coisa particular do tango que acho interessante, realmente,
em primeiro lugar é aquela assimetria entre a coreografia
masculina e feminina. É muito no sentido de descrever a
situação intelectual. Em cada momento de um tango se tem
que conseguir essa assimetria. E por isso, como vocês sabem,
está quase proibido2 na Argentina dançar um tango que tem
letra. Não se dança Carlos Gardel, se dança, talvez, a música
instrumental de Gardel. E eu acho que a razão é a seguinte:
229
se você dança concentrando-se na letra da música, então,
não vai conseguir realizar esse desafio em cada momento.
Se você observa os casais, os grupos profissionais, quando
estão executando um tango durante cinco minutos, sempre
ocorrem um ou dois momentos que não funcionam bem.
É a originalidade.
3 Johann Christian Friedrich Hölderlin (1770 – †1843) foi um poeta lírico e romancista
alemão.
230
A universidade pagava dois argentinos para ensinar a dança,
mas eu não consegui dançar. Eu fui o único que não conseguiu.
Os outros alunos dançaram fantasticamente, mas eu não.
E, talvez, por causa disso, tenho uma inveja tão grande, um
desejo tão grande. Talvez, antes de morrer, na minha última
semana de vida, vou dançar um tango. [Risos]
[Prof. Gumbrecht]:
Eu acho o seguinte... e vou usar um conceito que não gosto
de usar: o conceito de “dialética”. Acho que, na nossa cultura
como também na tecnologia eletrônica, no sentido amplo, é
feita uma eliminação completa do espaço e da corporalidade.
Ocorre uma onipresença sem corpo. Uma onipresença apenas
de significado. Ao mesmo tempo, esta ausência primária
completa de corpo e de espaço cria um desejo de presença. Eu
acho que a razão por que a gente fala tanto em intensidade,
10 anos do Posling – CEFET-MG
231
tecnologia que elimina o espaço, de repente, está criando
uma putrefação numa das ruas mais limpas do mundo, uma
rua horrivelmente limpa. Então, usando a ideia de dialética
(eu não consigo descrever bem), me dou conta de que o Steve
Jobs é um exemplo muito elementar de que aquela tecnologia
que elimina o corpo e elimina o espaço secretamente possui uma
“entrada de emergência” para uma dimensão nova de espaço
sobre a qual a gente, talvez, ainda não tenha os conceitos.
Porque é um espaço diferente dos espaços já conhecidos.
232
até que ponto a gente pode desenvolver novos conceitos
básicos de espaço. Se quiserem ler, ontem foi publicada uma
página sobre esse seminário no El Mercurio5 de Santiago.
[Prof. Gumbrecht]:
Olha aqui... eu, basicamente, tomo como um conceito muito
elementar no meu pensamento filosófico o conceito de
Russell6 de “objeto intencional” que se refere a “qualquer
coisa que surge na nossa consciência”. Então, inevitavelmente
a gente sempre tem duas relações com as coisas do mundo:
uma relação interpretativa, ou seja, você não consegue não
tentar dar sentido, dar significado. Se você está ouvindo uma
língua que não conhece, tenta dar sentido ao que escuta.
Não pode não dar sentido. Não consegue não tentar dar
sentido. O problema é que a tradição das Ciências Humanas
acadêmicas tem se concentrado exclusivamente neste lado. O
grande momento da Semiótica. A Semiótica é tudo. Mas estou 10 anos do Posling – CEFET-MG
dizendo que não. Ao mesmo tempo, inevitavelmente, a gente
sempre tem uma segunda relação, uma relação espacial, não é?
Na nossa fala, pensamos pouco na distância que a gente tem,
mas não podemos não nos relacionar espacialmente com as
pessoas, não podemos não ter aquela “relação de presença”.
233
Então, eu acho que o conceito de complementaridade
não é problemático, mas perigoso, pois, quando se fala
de complementaridade ou quando se usa esse conceito,
sempre se faz referência a uma coisa estável, complementar,
como aqueles casados chatos [Risos]. Cada um já tem as
suas tarefas, cada um já faz as suas coisas. Não sei se estou
convencido, mas eu gostaria que não fosse assim. Eu gostaria
que a relação do tango, a assimetria da coreografia do tango
fosse uma metáfora universal do novo Humanismo [Risos].
Isso eu poderia publicar na Argentina.
[Prof. Gumbrecht]:
Acho que há aí uma fraqueza da minha filosofia, quero
dizer, biograficamente falando, talvez, o meu papel nas
Ciências Humanas tenha sido aquele de reintrodução da
dimensão da presença, no sentido complexo, nas Ciências
Humanas. Provavelmente, nos meus obituários, nas crônicas
necrológicas para mim, vão escrever isso. Espero que seja
assim. [Risos]
234
vocês, estou vendo a mim mesmo, estou modificando o que
estou dizendo segundo o que escuto da minha própria voz, que é
diferente da sua escuta.
[Prof. Gumbrecht]:
Geralmente, mas isso já é uma coisa de preferência pessoal.
Para falar em uma tradição do século XX do teatro (eu sou
muito stanislavskiano) por exemplo, na minha percepção, o 10 anos do Posling – CEFET-MG
maior ator da minha vida foi Marlon Brando. Ele tem muitos
filmes completamente ruins, mas há momentos do Marlon
Brando que acho absolutamente geniais. Por exemplo, na
primeira parte de O padrinho7, quando ele tem uma fala
interessante, ou aquela dança no casamento da filha.
235
Eu tenho uma certa tendência de admirar muito atores ruins.
[Risos] Por exemplo, existia no meu tempo, na Alemanha, um
ator chamado Viktor de Kowa que era muito popular, mas era
um ator muito ruim. Mas ele, de repente, fazia gestos... eu me
lembro de uma apresentação do Ibsen8, onde ele interpretava
aqueles monólogos maravilhosos, de repente precisava chiar
[Risos]. Até hoje em dia (não sei se isso tem a ver com Ibsen), mas
num momento, quando estava fazendo um monólogo, ele fazia
gestos como se quisesse ir ao banheiro, mas não tinha banheiro.
[Risos]. Esse é um exemplo daquelas coisas, aqueles eventos
em que você é desafiado e não sabe como lidar com o desafio.
236
Aí eu vou terminar essa resposta com uma anedota:
eu tenho um gosto musical muito ingênuo. Minha peça
musical preferida Me and Bobby Mcgee, aquela versão da Janis
Joplin. Fui convidado, em uma ocasião, para o aniversário
nacional de Mozart, na Áustria. Fui convidado a dar uma das
cinco palestras do evento e, infelizmente, aceitei sem saber
muito sobre a música. E por casualidade, indo do meu hotel
à universidade, ouvi Me and Bobby Mcgee, e já não podia falar
de Mozart, foi completamente horrível, com o presidente da
república na primeira fila. Eu falei, mas, sabe, né? [Risos] Mas,
às vezes, ouvindo a mesma canção, não acontece nada. [Risos]
[Prof. Gumbrecht]:
A serenidade é o conceito trágico desta noite, né? [Risos]
Novamente, adoro o conceito de serenidade. Talvez agora,
com a sua pergunta, eu diria que esse conceito deveria ser
incluído naquele sentido que eu estava desenvolvendo:
o sentido de “deixar acontecer alguma coisa”. Ir ao jogo 10 anos do Posling – CEFET-MG
de futebol, por exemplo, ir a uma apresentação de teatro
com uma atenção muito ativa, mas sabendo que aqueles
momentos inesquecíveis não podem oferecer garantias.
Isto seria “serenidade”.
237
[Profª Olga Coelho]:
Você pode criticar quando é você que faz, não é? [Risos]
[Prof. Gumbrecht]:
É claro! Mas, retrospectivamente, vejo que eu tenho dado
aula de poesia toda a vida. Você é um professor de literatura
e você dá aula de poesia, mas eu diria que só nos últimos dez,
quinze anos, percebi que, apesar daquela conceitualização
inevitável (apesar disto) tive uma relação existencial com a
poesia. E talvez isto tenha acontecido neste momento em que
eu reconheço a necessidade da serenidade: eu diria que eu não
posso dar garantias. Muitas vezes penso que tudo que posso
dar aos alunos é uma relação dêitica. Eu posso recitar aquela
poesia de Hölderlin em alemão para alguns alunos que não
sabem alemão, esperando que talvez aconteça alguma coisa.
E desde então, eu tenho feito mais recitações, por exemplo,
em seminários. Assim, tenho uma relação com a poesia,
com a lírica, diferente daquela que tive anteriormente,
provavelmente graças à serenidade.
[Prof. Gumbrecht]:
Claro, claro. Contemplação como você disse, é essa a palavra.
Eu acho que o que realmente a gente está fazendo nas
Ciências Humanas não é pesquisa. Eu acho que pesquisa é
uma denominação errada tomada das Ciências Naturais.
A gente não está fazendo pesquisa, nunca. Bem, talvez até
seja, mas nossas pesquisas são mínimas e sempre fazemos
pesquisas para obter fundos para fazer pesquisa. [Risos]. Mas
o que a gente realmente está fazendo, e acho que a vocação
das Ciências Humanas, é contemplação secular, secularizada,
não teológica, porque sempre tem uma conotação teológica.
238
Contemplação no sentido de uma capacidade de se concentrar
no objeto intencional: sempre voltando ao objeto intencional
e sempre, como falou o João9, ganhando complexidade em
cada descrição. Cada vez que você volta a uma poesia de
Hölderlin, você nunca vai ter a forma final que já explica tudo,
ao contrário, a coisa torna-se cada vez mais complexa e cada
vez mais difícil de obter aquele momento “sem garantias”.
Neste sentido, como você falou, é contemplação. Talvez
aquela tentativa de encontrar uma nova forma profissional,
institucional para as Ciências Humanas deveria incluir uma
afirmação mais agressiva da contemplação. Contemplação
secular. Eu não tenho nada contra religião, eu só não conecto
com religião.
[Prof. Gumbrecht]:
Talvez essa colocação seja interessante. Recentemente uma
revista suíça quis saber quais os tipos de universidades, que 10 anos do Posling – CEFET-MG
tipo de instituições acadêmicas tem subido mais rapidamente
nos rankings internacionais nos últimos 25 anos. Eu não sabia.
Mas é interessante, eu trabalhei com alunos de estatística e
eles me forneceram alguns dados. As universidades que têm
subido mais são universidades basicamente tecnológicas
que têm Ciências Humanas. É o caso de Stanford10 que
9 Menção à apresentação do Professor João Cezar de Castro Rocha (UERJ) que antecedeu à
palestra de Hans Ulrich Gumbrecht, no CEFET-MG.
10 Stanford é uma das universidades mais bem sucedidas na criação de empresas e no
licenciamento de suas invenções para empresas existentes; muitas vezes é tida como um
modelo de transferência de tecnologia.
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não é chamada de Stanford Tecnological University, mas
de Stanford MIT11 of the West (da Costa Pacífica). Então,
tentando responder a sua pergunta, eu acho que a gente, nas
Ciências Humanas, deveria se interessar menos em ter muitos
alunos de Ciências Humanas. Também deveria pensar que o
dinheiro disponível, os salários disponíveis para profissionais
das Ciências Humanas são muito baixos. Se eu vejo uma
garota que é a primeira pessoa da sua família a chegar na
universidade, eu não lhe diria: “você tem que procurar uma
profissão em que ganha menos”. Isso é idiotice. Agora, se
você é de família bastante rica, você poderia ser professor de
Ciências Humanas? Em todo caso, eu acho que o futuro das
Ciências Humanas poderia ser, precisamente, receber alunos
cuja graduação não é em Ciências Humanas. Por exemplo, a
melhor universidade nos rankings internacionais da Europa
Continental, com exceção de Oxford e Cambridge, é a ETH
Zurich (Instituto Federal de Tecnologia de Zurique). Essa
instituição, desde o século XIX, tem pequenos departamentos
de Ciências Humanas, mas todo aluno de Engenharia, de
Estatística ou de Ciências Naturais precisa fazer vários
seminários de Filosofia, de História Cultural, entre outros.
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daquelas Ciências Humanas novas: aulas dêiticas para alunos
que não vão ser profissionais de literatura nem de filosofia.
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