Bernardo de Claraval - Apologia
Bernardo de Claraval - Apologia
Bernardo de Claraval - Apologia
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BERNARDO DE CLARAVAL
APOLOGIA
PARA GUILHERME, ABADE
Texto latino da edição crítica e tradução
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APRESENTAÇÃO
Espiritualidade, Comida e Arte na polémica
dos monges da Idade Média
1 Gullielmus de Sancto Theodorico - Vita Bernardi Claravallensis (Vita Prima), Liber I, Col.
251, Lin. 4: "Et primum quidem circa ressuscitandum in monastico ordine antiquae religio-
nis fervorem primitias iuventutis suae dedicavit exemplo et verbo in convento fratrum intra
septa monasterii ad hoc omni studio vacans, "PL'', 185, Col. 227-266.
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BERNARDO DE CLARAVAL, APOLOGIA
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APRESENTAÇÃO
2 Obras completas de S. Bernardo. Edición bilingue, Edición preparada por los Manjes Cister-
cienses de Espaõ.a, Volume VII: Cartas, Madrid, Biblioteca de autores cristianos, 1990 (BAC,
505).
3 WILMART, Dom A.- Une risposte de l ~ancient monachisme, "Révue Bénédictine", 45,
296-344.
4
LECLERCQ, Jean, OSB; ROCHAIS, H. M, OSB - S. Bernardi Opera, Volumen III:
TractatliS et Opuscula, Roma, Editiones Cistercienses, 1963, 63-108; Patrologia Latina, T. 132,
895-919.
5 Inventário dos Códices Alcobacenses , 6 Tomos, Lisboa, Biblioteca Nacional de Lisboa,
l-11,1930, Ill-V,1932, VI, 1978, pg. 137.
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BERNARDO DE CLARAVAL, APOLOGIA
6 "Quando recordo a plena e estricta vida quotidiana da vossa abadia, reconheço que é o Espírito
Santo quem vos guia. Porque a série dos vossos ofícios é tão repleta e contínua, passais tanto
tempo no coro que, inclusivé, nos dias de verão, quando a luz do sol se alonga mais, dificil-
mente se pode encontrar meia hora para que os innãos possam falar no claustro". Epistula
V, "PL", 145,380.
7 "PL", Vol. 149, 668: Udalrici Constitutiones, I, 18.
8 Autores modernos pretendem reabilitar o abade Pôncio, como BREDERO, Adrian H. -
Cluny et Citeaux au douzü!me siecle. L 'histoire d'une controverse monastique, Lille, Presses
Universitaires de Lille, 1985, 40 s.
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APRESENTAÇÃO
9 "Auferetur ab advenientis fratris carde scandalum ... Christianum me sesse putabam, et pro
ethnico reputar. Monachum me credebam, et ut publicanus abjicior. Concivem me aestima-
bam et ut Samaritanus expellor. Verum nunc agnovi, quia non coutuntur Judaei Samaritanis.
Et quis potest cuncta similia istis, quae hac de causa prolata sunt, maledicta verba referre?
Obstruatu rigitur tali charitatis obice os loquentium talia, ne dicam iniqua; consulatur infir-
mis, quorum se medicum Christus dixit (Mt. 9,)", Epistolarum Liber V, Ep. 4, "PL", 189,406.
10 "Stultum videtur scribere ad vos pro domino Cluniacensi et quasi velle patocinium ferre,
quem omnes sibi patrono habere desiderant. Sed scribo, etsi non necessarie illi, satisfaciens
tamen affectui: affectui dica meo, non alterius. Ipso enim, quia corpore non possum, prose-
quor amicum peregrinantem. Quis nos separabit? Nec altitude Alpium, nec nivium frigora,
nec longitudo itineris ... Nam, si nescitis, iste est qui manus suas extendit ad pauperes Ordinis
nostri; iste est qui de possessionibus ecclesiae suae, quantum cum pace suorum potest, liben-
ter et frequenter largitur ad victum ... Quamquam paene ab introitu suo in multis Ordinem
illum meliorasse cognoscitur, cerbi gratia, in observantia ieiuniorum, silentii, indumentorum
pretiosorum et curiosorum", Epistula 277, "PL", 182, 482-483.
11 HUCKEL, G.A - Les poemes satiriques d'Albéron de Laon , "Mélanges d11istoire du
Moyen Age", Paris, Université de Paris, Bibliotheque de la Faculté des Lettres, 1901,
Capítulo XIII, 49-167; DUBY, Georges -As três ordens ou o imaginário do feudalismo,
Lisboa, Editorial Estampa, 1982, 25-33. De resto, sobre a sátira do monaquismo na Idade
Média, cfr. BRETEL, Paul- Les ermites et les moines dans la littératurefrançaise du Moyen
Age (1150-1250), Paris, Honoré Champion Éditeur,1995.
12 "Quocumque exibat, quocumque praecedebat, tanta eum sequebatur frequentia fratrum, ut
jam non ducem ac principem, sed revera putares esse archangelum monachorum", Vita
Odilonis 1,11, "PL", 142, 897-940. Esta obra foi redigida pouco depois da morte de S. Odilão
(+1049) e nela se descreve como este monge do ano mil atravessou o milénio todo empol-
gado em relevar a grandeza de Deus e a paz entre os homens, instituindo a "Trégua de
Deus" para que o Reino de Cristo fosse um reino de paz na terra. Aliás, S. Pedro Damião
também escreveu, cerca de 1063, uma Vita Sancti Odilonis, "PL", 144, 925-944.
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Santo Odilão, doutrina que tanto iria servir à "ordem gregoriana" aplicada
à Igreja pelo papa Gregório VII (t 1085), antigo monge beneditino com o
nome de Hildebrando.
Com razão, a observância de Cluny e a de Cister se podem considerar
como as duas artérias substanciais da vivência da Regra beneditina, a partir
daí chamadas dos monges negros e dos monges brancos. Cluny era a exte-
rioridade, a opulência, a decoração figurada e simbólica para realçar o esplen-
dor da casa de Deus, já que nada é belo demais para para glorificar o poder
divino, como dirá o abade Sugério (1081-1151) ou Soeiro à portuguesa, jus-
tificando a grandiosidade da igreja do mosteiro de S. Dinis em Paris. Neste
sentido, os textos de Sugério, quer no "Liber de rebus in administratione sua
gestis" quer no "Libel/us de consecratione Ecclesiae a se aedificata" (Igreja de
S. Dinis em Paris) 13 , são uma contra-resposta prática, pela positiva, à crítica
da Apologia de S. Bernardo. O abade de S. Dinis, guiado pela teologia neo-
platónica de Hugo de S. Victor na sua "Hierarchia caelesti", sabia que as coi-
sas materiais são plataforma para chegarmos às coisas espirituais. Soeiro pro-
punha para o seu mosteiro o valor da riqueza e da beleza como homenagem
à fé, para fazer realçar a claridade e o belo fulgor da luz divina. De resto,
S. Bernardo não pouparia elogios a Sugério na carta que lhe dirigiu pes-
soalmente felicitando-o pela "conversão" que o levou a transformar a "ofi-
cina de Vulcano" e "sinagoga de Satanás" em casa de oração e de estudos
celestes 14• Depois, numa carta endereçada ao Papa Eugénio III, louva-o clas-
sificando-o "in temporalibus fidelis et prudens, et in spiritalibus fervens et
humilis... Apud Caesarem est tanquam unus de curia Romana, apud Deum
tanquam unus de curia caeli" 15 .
Cister, em contrapartida, privilegiava a interioridade, o recolhimento, a
austeridade como elementos que guiam o monge no itinerário espiritual à
procura do conhecimento de si mesmo para chegar ao conhecimento de Deus.
13 SUGERIU$- Liber de rebus in administratione sua gestis, "PL", 186, 1211- 1239; Libel/us
de consecratione Ecclesiae a se aedificata, "PL", 186, 1239-12.54; Cfr. BUR, Michel-L'Abate
SUGERO, statista e architetto de/la luce , Milão, Editoriale Jaca Book, 1995 (Tradução do
francês).
14 "Cuius studio et industria Vulcani officina studiis videtur mancipata coelestibus, imo sua
Deo habitatio reddita, et, in id potius quod ante fuit, ex synagoga Satanas restituta", Epistola
78,4, "PL'', 182, 191·199.
IS Episto/ae Sugerii, "PL", 186, 1347.
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APRESENTAÇÃO
Esta procura, apesar de tudo, não deixava de se fazer com elementos sim-
bólicos e arquitecturais, ainda que sem a mediação decorativa das artes sump-
tuárias. Na nudez das igrejas, bastava-lhes a harmonia dos volumes, a sim-
plicidade das linhas, a elegância das proporções, a esbelteza dos arcos, a
pureza das paredes caiadas, o claro-escuro da luz para se elevarem para Deus
e se representarem a imagem impressionante da Jerusalém celeste. S. Ber-
nardo preferia a luz e as sombras do claustro e da igreja, como símbolo a
fazer da vida do monge um "dinâmico e incessante projecto a realizar no
decurso da vida". Procurava-se, portanto, uma articulação do corpo, da alma
e do espírito, os três registos da vida contemplativa, procurando eliminar tudo
aquilo que pudesse desviar a alma na busca interior do divino. Se Cluny, den-
tro do espírito feudalista, realçava Deus como grande Senhor e punha o
acento no "Serviço Divino", na Liturgia solenemente celebrada em estrutu-
ras mais ou menos grandiosas, Cister pretendia a união mística com Deus,
que Cristo e Maria emblematizavam, e considerava o homem necessitado de
penitência sublinhando o papel ascético do trabalho manual de que se não
podem dispensar "os verdadeiros monges" 16 , em ambiente retirado e
humilde. A grande riqueza interior de S. Bernardo permitia-lhe dispensar
para si e, pensava ele, para os seus irmãos de hábito, a mediação das reali-
dades materiais. Bernardo, entrando no mosteiro, trazia consigo o pundonor
e a intrepidez da família feudal em que nascera e cujas virtudes, canalizadas
para a milícia da santidade, queria introduzir na disciplina cisterciense. As
virtudes cardiais e a austeridade seriam, agora, a magnificência da vida cis-
terciense. Todavia, a história mostra que o ideal cisterciense de retiro, renún-
cia, simplicidade e trabalho no espaço dum século estava praticamente supe-
rado e já os cistercienses voltavam a viver à maneira dos cluniacenses. Afinal,
quase poderíamos dizer com um escritor moderno que o "sonho cister-
ciense" 17 , quer no ideal primitivo dos chamados "Padres de Cister" 18, quer
na visão ascético-espiritual de S. Bernardo, depressa se desfizera e, passados
quatro séculos, já o Abade De Rancé (1626-1700) sentia como que a neces-
16 Regra de S. Bento, 48,20, 2.a Edição, Singeverga, Edições "Ora & Labora, 1992, 100.
17 PRESSOUYRE, Léon - Le rêve cistercien, Paris, Gallimard, 1990 (Col. Découvertes
Gallimard, N. o 95).
18 Os Cistercienses. Documentos primitivos. Texto, latino e tradução brasileira de Irineu
Guimarães, Rio de Janeiro/S. Paulo, Edições "Lumen Christi/Musa Editora, 1997.
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APRESENTAÇÃO
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"Nós, porém, que já nos saimos do povo, que, por Cristo, deixámos (Mt. 19, 27) as coisas
preciosas e belas do mundo, todas as lindamente brilhantes, musicalmente embaladoras, sua-
vemente inebriantes, docemente saborosas, agradáveis ao tacto, enfim, julgamos todos os
prazeres do corpo como estrume para lucrarmos a Cristo (FI. 3, 8), pergunto-vos a quem é
que incitamos com elas a devoção?", Apo/. 28.
22 Sermo 13 super Cantica Canticorum, par. 6.
23 Apologia, V, 10.
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APRESENTAÇÃO
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são de vida, se não temos a corajosa tranquilidade daqueles que, com fideli-
dade, seguem o caminho da perfeição e "verdadeiramente procuram a Deus",
ao menos apreciemos com simpatia esses utópicos mas sinceros seguidores
de Jesus, homens e mulheres, que se deixaram conduzir pelas normas da
Regra de S. Bento, Pai do Monaquismo Ocidental.
Por sua vez, os monges, sem atitudes preconcebidas, deverão abrir-se à
justeza das críticas naquilo que, porventura, também for atinente, hoje, à sua
condição de religiosos comprometidos com o Evangelho, qualquer que seja
a observância regular que sigam. Para revisão da sua vida em comunhão, a
Apologia, como fonte de espiritualidade, poderá servir-lhes de bom espelho
de consciência comunitária e termómetro válido para aferimento da fideli-
dade ao radicalismo evangélico e ao espírito da mesma Regra.
Os crentes, sobretudo, através dum homem que à ciência das letras pre-
feria o amor de Deus, mas tinha o sentido do belo e que, em plena Idade
Média, sabia escrever um latim de sabor quase clássico, poderão, neste opús-
culo, escutar a voz de Deus que, como ao Seu Povo Eleito de Israel, conti-
nua a alertar-nos com o despertador da Sua Palavra acutilante e sempre
actual: "Hoje, se ouvirdes a voz do Senhor, não fecheis os vossos corações"
(SI. 94 (95) 8).
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Bernardo de Claraval
1.1. USQUE modo si qua me scripitare iussistis, aut invitus, aut nulla-
tenus acquievi: non guia negligerem quod iubebar, sed ne praesumerem quod
nesciebam. Nunc vero, nova urgente causa, pristina fugatur verecundia, et vel
perite, vel imperite, dolori meo satisfacere cogor, fiduciam dante ipsa neces-
sitate. Quomodo namque silenter audire possum vestram huiuscemodi de
nobis querimoniam, qua scilicet miserrimi hominum, in pannis et semicinc-
tiis, de cavernis, ut ille ait, dicimur iudicare mundum, quodque inter cetera
intolerabilius est, etiam gloriosissimo Ordini vestro derogare, sanctis, qui in
eo laudabiliter vivunt, impudenter detrahere, et de umbra nostrae ignobilita-
tis mundi luminaribus insultare? Itane sub vestimentis ovium, non quidem
lupi rapaces, sed pulices mordaces, immo tineae demolientes, bonorum vitam,
quia palam non audemus, in occulto corrodimus, nec saltem clamarem invec-
tionis, sed susurrium detractionis emittimus? Si hoc ita est, ut quid sine causa
mortificamur tota die, aestimati sicut oves occisionis? Si ita, inquam, phari-
saica iactantia ceteros homines et, quod est superbius, nobis meliores despi-
cimus, quid nobis prodest tanta in nostro victu parcitas et asperitas, in ves-
titu notabilis illa vilitas ac diversitas, in opere manuum quotidiana desudatio,
in ieiuniis et vigiliis iugis exercitatio, totius denique vitae nostrae singularis
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APOLOGIA PARA GUILHERME, ABADE.
"Ao venerável Padre Guilherme, frei Bernardo, servo inútil dos irmãos
que estão em Claraval, saúda no Senhor.
1.1- Até agora, se alguma vez me pediste para escrever, nunca acedi
a teus rogos, ou, então, não o fiz senão contrariado. Não é que desprezasse
aquilo que me era mandado, mas para não presumir o que não sabia. Agora,
porém, urgindo uma nova causa, desaparece a vergonha anterior e, de modo
perito ou imperito, sou obrigado a ceder à minha dor, dando-me ânimo a
própria necessidade. Como é que eu poderia ouvir em silêncio a tua queixa
acerca de mim, pela qual se diz que nós, os mais miseráveis dos homens,
andrajosos e mal vestidos, das cavernas, como diz ele 1, julgamos o mundo e,
o que é mais intolerável ainda, criticamos também a tua gloriosíssima Ordem
e, sem vergonha, atacamos os santos que nela vivem tão louvavelmente e, da
sombra da nossa ignobilidade, insultamos esses luminares do mundo? É pos-
sível, acaso, que nós, não lobos vorazes (Mt, 7, 15) sob pele de ovelhas, mas
pulgas mordazes e mesmo traças destruidoras (Mt. 6, 19), uma vez que não
o ousamos fazer às claras, destruamos, às ocultas, a vida dos bons e nem
sequer lancemos o clamor da invectiva mas o sussurro da detracção? Se assim
é, por que é que todos os dias nos mortificamos sem motivo, tidos como ove-
lhas para o matadoiro (S1.42 (43), 22) ? Digo que se assim, por orgulho fari-
saico, desprezamos os restantes homens (Lc. 18, 11) e, o que é mais soberbo
ainda, outros melhores do que nós, que é que nos aproveitam tanta aspereza
e parcimónia na alimentação, aquela notável pobreza e diferença no vestir,
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HERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM AHHATEM
quaedam atque austerior conversatio, nisi forte omnia opera nostra facimus
ut videamur ab hominibus? Sed dicit Christus: AMEN DICO V O BIS, RECE-
PERUNT MERCEDEM SUAM. Nonne si lN HAC VITA TANTUM lN
CHRISTO SPERANTES SUMUS, MISERABILIORES SUMUS OMNI-
BUS HOMINIBUS? An vero non in hac vita tantum in Christo speramus, si
de Christi servitio temporalem tantum gloriam quaerimus?
2. Miser ego homuncio, qui tanto labore et industria studeo non esse
vel potius non videri sicut ceteri hominum, minus tamen accepturus, immo
gravius puniendus, quam quilibet hominum. Siccine ergo non inveniebatur
nobis via, ut ita dicam, utcumgue tolerabilior ad infernum? Si ita necesse erat,
ut illo descenderemos, cur saltem illam, qua multi incedunt, viam scilicet
latam, quae ducit ad mortem, non elegimus, quatenus vel de gaudio, et non
de luctu, ad luctum transiremus? O guam felicius est illis, quorum non est
respectus morti corum et firmamentum in plaga eorum, qui in labore homi-
num non sunt et cum hominibus non flagellantur, qui, etsi peccatores ac pro
gaudiis temporalibus perpetuis cruciatibus addicti, saltem abundantes in sae-
culo obtinuerunt divitias! Vae portantibus crucem, non sicut Salvator suam,
sed sicut ille Cyrenacus alienam! Vae citharoedis citharizantibus, non ut illi
de Apocalypsi, in citharis suis, sed vere, ut hypocritae, in alienis! Vae semel,
et vae iterum pauperibus superbis! Vae, inquam, semel, et vae iterum, por-
tantibus crucem Christi et non sequentibus Christum: qui nimirum cuius pas-
sionibus participantur, humilitatem sectari negligunt.
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BERNARDO DE CLARAVAL, APOLOGIA PARA GUILHERME, ABADE
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
malitia, nisi unde involuta est infantia Salvatoris? Et quomodo intra praese-
pium Domini simulatrix arrogantia se coarctat, ac pro vagitibus innocentiae
malum inibi detractionis immurmurat? Annon illi superbissimi de Psalmo,
quorum prodiit ex adipe iniquitas eorum, multo tutius operti sunt iniquitate
et impietate sua, quam nos latemus sub sanctitate aliena? Quis enim magis
impius, an profitens impietatem, an mentiens sanctitatem? Nonne is qui, etiam
mendacium addens, gemina! impietatem? Et quid dicam? Vereor ne forte et
ego suspectus habear, non quidem vobis, Pater, non vobis, cui utique notum
me novi, quantum in hac caligine homo homini innotescere potest, - et spe-
cialiter de hac re seio vos non ignorare quid sentiam. Sed propter illos qui
me nec ita ut vos cognoverunt, nec sicut vobis hinc loqui soleo, loquentem
audierunt, scribo vobis quod et frequentar audistis, ut, quoniam ego per sin-
gulos ire et singulis satisfacere nequeo, ex me habeatis, unde quod de me cer-
tissime scitis, eis pro me verissime persuadeatis. Neque enim timeo omnium
oculis scribere quidquid de hac re vobis in aure locutus sum.
II. 4. Quis umquam me adversus Ordinem iii um vel coram audivit dis-
putantem, vel clam susurrantem? Quem umquam de Ordine illo nisi cum gau-
dio vidi, nisi cum honore suscepi, nisi cum reverentia allocutus, nisi cum humi-
litate adhortatus sum? Dixi, et dico: modus quidam vitae est sanctus, honestus,
castitate decorus, discretione praecipuus, a Patribus institutos, a Spiritu Sancto
praeordinatus, animabus salvandis non mediocriter idoneus. Egone vel
damno, vel despicio, quem sic praedico? Memini me aliquando in aliquibus
eiusdem Ordinis rnonasteriis hospitio susceptum fuisse: reddat Dominus ser-
vis suis humanitatem quam infirmanti mihi, ultra etiam quam necesse fuit,
exhibuerunt, et honorem quo me, plus quoque quam dignus fui, dignati sunt!
Ipsorum me commendavi orationibus, interfui collationibus; saepe de
Scripturis et salute animarum habui sermonem cum multis, et publicum in
capitulis, et priva tum in cameris. Quem umquam vel clam, vel palam, aut ab
illo Ordine dissuadere, aut ad nostrum ut veniret persuadere tentavi? Annon
potius muitos cupientes venire repressi, venientes et pulsantes repuli? Annon
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BERNARDO DE CLARAVAL, APOLOGIA PARA GUILHERME, ABADE
sob os panos da humildade de Jesus (Lc, 2,7)? Acaso não tem com que se
cobrir a humana malícia a não ser com o que envolveu a infância do Salvador?
E como é que a fingida arrogância se consegue meter no presépio do Salvador
e em vez dos vagidos da inocência faz murmurar aí o mal da detracção?
Porventura aqueles soberbíssimos do Salmo, cuja iniquidade brota da sua gor-
dura, estão muito mais seguramente encobertos pela sua iniquidade e impi-
edade do que nós conseguimos esconder-nos sob uma aparente santidade?
Quem é mais ímpio: o que manifesta a impiedade ou o que finge santidade?
Não é, por certo, aquele que acrescentando ainda a mentira duplica a impi-
edade? Que direi? Receio também eu ser suspeito, não a ti, Padre, não a ti,
de quem reconheço ser tão conhecido quanto nesta escuridão o homem pode
ser conhecido pelo homem, - e, em especial acerca deste assunto, sei que
tu não ignoras o que eu sinto. Mas, por causa dos que não me conheceram
como tu nem me ouviram falar como daqui costumo falar para ti, escrevo-te
o que também com frequência ouves; desse modo, porque não posso ir ter
com cada qual e a cada qual dar satisfação, de mim tens aquilo que de mim
sabes com toda a certeza para os poderes persuadir a meu respeito com toda
a verdade. Não temo pôr em escrito à vista de todos aquilo que acerca deste
assunto a ti disse ao ouvido (Lc.12, 3).
II. 4- Quem jamais me ouviu discutir em público contra essa Ordem
ou murmurar às ocultas? Dessa Ordem, a quem é que eu não vi senão com
alegria, não recebi senão com honra, não falei senão com reverência, não
exortei senão com humildade? Disse e digo: o modo de vida é santo, honesto,
insigne em castidade, notável pela discreção, instituído pelos Padres, estabe-
lecido pelo Espírito Santo, não mediocremente idóneo para salvar almas.
Acaso estou eu a condenar ou desprezar aquela de que assim falo? Lembro-
me de, às vezes, ter sido recebido como hóspede em alguns mosteiros dessa
mesma Ordem; o Senhor retribua aos seus servos a humanidade que mos-
traram para comigo, enfermo, mais até do que a que era necessária, e a honra
com que, mais do que era digno, me dignificaram! Recomendei-me às ora-
ções deles, participei nas práticas rituais; bastas vezes conversei com muitos
acerca das Escrituras e da salvação das almas, quer publicamente nos capí-
tulos quer privadamente nas celas. A quem é que eu ou em público ou em
particular tentei afastar dessa Ordem ou persuadir a vir para a nossa? Não
tenho antes dissuadido muitos que desejavam vir, não afastei mesmo os que
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
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BERNARDO DE CLARAVAL, APOLOGIA PARA GUILHERME, ABADE
vieram e bateram à porta? Não fiz voltar para São Nicolau 2 o frei Nicolau
e não te restitui dois dos vossos, como tu próprio podes testemunhar? Mas
até a dois abades da mesma Ordem, cujos nomes não revelarei,- tu, porém,
bem os conheces e sabes com que amigável familiaridade se ligam a mim -
quando pensavam e já estavam decididos a transitar para outra Ordem, o que
tu também não ignoras, acaso não foi o meu conselho que os dissuadiu e fez
com que não abandonassem as suas cadeiras abaciais? Portanto, porque é
que, sou tido e dito como querendo condenar a Ordem à qual aconselho os
meus amigos a servir, à qual restituo os seus monges quando vêm para nós,
da qual tão solícito sou a pedir orações e com tanta devoção recebo?
III. 5 - Porventura serei considerado suspeito apenas porque sigo a
observância de outra ordem? Mas, sendo assim, também vós, quem quer que
vivais de forma diferente, diminuis a nossa ordem. Por conseguinte, poderia
julgar-se que celibatários e casados se condenam mutuamente, pelo facto de
viverem na Igreja segundo as suas leis. De igual modo se diria que monges
e clérigos regulares se criticam mutuamente porque se separam uns dos outros
pelas observâncias próprias. Seríamos até levados a supor que nem Noé, nem
Daniel nem Job se poderiam suportar no mesmo reino, ao qual sabemos não
terem chegado por um só caminho de justiça. Seria necessário, finalmente,
que ou Maria ou Marta (Lc. 19, 38-42), uma ou outra, desagradasse ao Senhor
ao qual, sem dúvida, por zelo tão diferente de devoção, ambas se esforçaram
por agradar. E, por esta razão, paz alguma ou concórdia se julgará haver em
toda a Igreja, - a qual se adorna de tantas e tão variadas ordens, como a
rainha que no Salmo se lê revestida de variadas vestes (SJ.45 (44), 15). De
facto, que descanso seguro, que estado tranquilo nela se encontrará, se qual-
quer homem que escolher uma outra Ordem desprezar os outros que vivem
de forma diferente ou suspeitar que por eles é desprezado, sobretudo sendo
impossível que um mesmo homem esteja em todas as Ordens, ou uma mesma
Ordem receba todos os homens? Não sou tão imbecil que não reconheça a
túnica de José (Gn. 37, 23), não daquele que livrou o Egipto mas do que sal-
vou o mundo, e não da fome do corpo mas, ao mesmo tempo, da morte do
corpo e da alma. É, de facto, bem conhecida, porque variegada (Gn. 37, 31),
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
est suo ipsius, non alieno. Ipse profecto est Agnus mansuetissimus, qui coram
non quidem tondente, sed occidente se, obmutuit, qui peccatum non fecit,
sed abstulit peccata mundi. Miserunt, ait, ad Iacob qui dicerent: HANC
INVENIMUS; VIDE UTRUM TUNICA FILII TUI SIT, AN NON. Vide et
tu, Domine, utrum haec sit tunica Filii tui dilecti. Recognosce, omnipotens
Pater, eam quam fecisti Christo tuo polymitam, dando quidem quosdam apos-
tolas, quosdam autem prophetas, alias vero evangelistas, alias pastores et doe-
tores, et cetera quae in eius ornatu mirifico decenter apposuisti, ad consum-
mationem utique sanctorum, occurrentium in virum perfectum, in mensuram
aetatis plenitudinis Christi. Dignare etiam, Deus, pretiosissimi purpuram san-
guinis, quo aspersa est, recognoscere, et in purpura praeclarum insigne ac vic-
toriosissimum indicium oboedientiae. QUARE ERGO, inquit, RUBRUM
EST VESTIMENTUM TUM? TORCULAR, ait, CALCA VI SOLUS, ET
DE GENTIBUS NON EST VIR MECUM.
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BERNAROUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
peccato, et talem animae meae languorem sentiebam, cui fortior esset potio
necessaria.
Et diversis morbis diversa conveniunt medicamente, et fortioribus
fortiora. Fac duas homines febribus anxiari, quartanis unum, alterum
tertianis. Commendet autem, qui quartanis laboral, tertiano aquam, pira
et frigida quaeque sumenda, cum tamen ipse ab his abstineat, vinumque
et cetera calida, utpote sibi congruentia, sumat. Quis, rogo, hinc eum recte
reprehendat? Si diceret ille : "Cur tu aquam non bibis, quam ira laudas?",
annon recte respondere!: "Et tibi eam fideliter tribuo, et mihi salubriter
subtraho?"
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BERNARDO DE CLARAVAL, 11/'0LOG/A PARA GUILHERME, ABADE
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUJLLELMYM ABBATEM
9. Non igitur una tantum semita inceditur, quia nec una est mansio quo
tenditur. Viderit autem quisque quacumque incedat, ne pro diversitate semi-
tarum ab una iustitia recedat, quoniam ad quamlibet mansionum sua quisque
semita pervenerit, ab una domo Patris exsors non erit. Verumtamen STELLA
AB STELLA DIFFERT lN CLARITATE: SIC ERIT, ait, ET RESUR-
RECTIO MORTUORUM. Nam etsi fulgebunt iusti sicut sol in regno Patris
eorum, alii tamen aliis amplius, pro diversitate meritorum. Quae sane merita
sciendum non sic in hoc saeculo, ut in illo, facile ab homine posse discerni:
quippe cum hic tantum opera videantur, illic etiam corda nihil impediat intu-
eri. Siquidem radiante ubique Sole iustitiae, tunc manifesta erunt abscondita
cordium; et sicut non est nunc qui se abscondat a calare eius, ita tunc non
erit qui se occultet a splendore ipsius. Et de operibus quidem saepe incerta,
et ob hoc periculosa sentencia fertur, cum multoties minus iustitiae habeant,
qui magis operantur. HACTENUS MEl EXCUSATIO.
V. 10- Unde nunc mihi conveniendi sunt quidam de Ordine nostro, qui
contra illam sententiam: NOLITE ANTE TEMPUS IUDICARE, QUOA-
DUSQUE VENIAT DOMINUS, QUI ET ILLUMINABIT ABSCONDITA
TENEBRARUM ET MANIFESTABIT CONSILIA CORDIUM, aliis
Ordinibus derogare dicuntur, et suam iustitiam solam valentes constituere,
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BERNARDO DE CLARAVAL, Al'OLOGIA PARA GUILHERME. ABADE
caminhos de justiça para glória do seu nome" ( SI. 22 (23), 3). Pondo os cami-
nhos no plural e a justiça no singular nem omitiu a diversidade de operações
nem a unidade dos que operam. Prevendo, ainda, aquela diferenciada uni-
dade futura no céu, alegre canta com imensa devoção: "As tuas praças,
Jerusalém, são recobertas de ouro puro e por todas as tuas vielas se cantará
o Aleluia!" (Tb. 13, 22). Ao ouvires falar de praças, e vielas, entende coroas
e glórias diversas. No ouro, o único metal de que se diz adornada aquela
cidade, e no único Aleluia, que se indica que deve ser cantado, compreende
a beleza similar das espécies diferentes e a única devoção de muitas mentes.
9- Por conseguinte, não se segue apenas por um só caminho, porque
não é uma só a mansão para onde nos dirigimos. Veja, todavia, cada qual por
onde caminha, não vá, por causa da diversidade de caminhos, afastar-se da
única justiça, porque seja qual for a mansão onde cada qual chega pelo seu
caminho, não deixará de ter parte na única casa do Pai (Jo. 14, 2). É certo
que "uma estrela difere de outra em claridade; assim será, diz, a ressurreição
dos mortos" (I Cor. 15, 41-42). Na realidade, embora os justos brilhem como
o sol no reino de seu Pai (Mt. 13, 43), uns brilharão mais que outros por
causa da diversidade dos méritos. Sem dúvida que esses méritos não podem
ser com facilidade conhecidos pelo homem neste mundo, como no outro: aqui
apenas se vêm as obras, lá nada impede que se vejam também os corações.
É que brilhando lá o Sol da justiça (MI. 3, 18 ou 4, 2), serão patentes então
os recônditos do coração; e assim como não há agora quem se esconda do
seu calor, assim depois não haverá quem se oculte do seu esplendor (I Cor.
4, 5; SI. 18 (19), 7). A respeito das obras se refere esta muitas vezes incerta
e, por isso, perigosa sentença, pois a maior parte das vezes têm menos de jus-
tiça os que mais as praticam. Até aqui a minha desculpa.
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
iustitiae Dei non sunt subiecti: quos profecto, si qui tamen huiusmodi sunt,
nec nostri, nec cuiuspiam esse Ordinis verius dixerim; quippe qui etsi ordi-
nate viventes, superbe tamen !aquentes, cives se faciunt Babylonis, id est con-
fusionis, immo filias tenebrarum ipsiusque gehennae, ubi nullus ordo, et sem-
piternos horror inhabitat. Vobis ergo inquam, fratres, qui etiam post auditam
illam Domini de Pharisaeo et Publicano parabolam, de vestra iustitia prae-
sumentes, ceteros aspernamini: Dicitis, ut dicitur, solos vos hominum esse ius-
tos aut omnibus sanctiores, solos vos monachorum regulariter vivere, ceteros
vero Regulae potius exsistere transgressores.
11. Primo quid ad vos de alienis servis? Suo domino stant, aut cadunt.
Quis vos constituir iudices super eos? Deinde si ita, ut dicitur, de Ordine ves-
tro praesumitis, qualis ordo est, ut antequam de suo quisque trabem eiciat,
in fratrum oculis tam curiose festucas perquiratis? Qui in Regula gloriamini,
cur contra Regulam detrahitis? Cur contra Evangelium ante tempus, et con-
tra Apostolum alienas servos iudicatis? An Regula non concordai Evangelio
vel Apostolo? Alioquin Regula iam non est regula, quia non recta. Audite,
et discite ordinem qui contra ordinem aliis Ordinibus derogatis:
HYPOCRITA, inquit, EICE PRIMUM TRABEM DE OCULO TUO,
ET SIC YIDEBIS EICERE FESTUCAM DE OCULO FRATRIS TUI.
Quaeris quam trabem? Annon grandis et grossa trabes est superbia, qua te
putans esse aliquid, cum nihil sis, insanissime tibi tamquam sanus exsultas, et
allis vanissime, trabem portans, de festucis insultas? GRATIAS, inquis, AGO
TIBI DEUS, QUIA NON SUM SICUT CETERI HOMINUM, INIUSTI,
RAPTORES, ADULTERI. Sequere ergo, et dic: detractores. Neque enim
minima est festuca inter ceteras. Quare cum tam diligenter alias enumeres,
istam laces? Si pro nulla vel minima babes, audi Apostolum: NEQUE MALE-
DICI, ait, REGNUM DEI POSSIDEBUNT. Audi et Deum in Psalmo com-
minantem: ARGUAM TE, inquit, ET STATUAM CONTRA FACIEM
TUAM. Quod quia detractori loquatur, certum est ex praecedentibus. Et qui-
dem iuste ad se retorquendus, et se compellendus est intueri, qui avertens
faciem suam a se, aliena potius mala quam sua solet curiosius Perscrutari.
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BERNARDO DE CLARAVAL, AI'OLOGJA PARA GUILHERME, ABADE
Deus; esses, por certo, se de facto assim são, diria que, em verdade, nem per-
tencem à nossa Ordem nem a qualquer outra. Vivendo embora segundo a
regra, mas falando com orgulho, tornam-se cidadãos de Babilónia, isto é, da
confusão e, até, filhos das trevas e da própria geena, onde não existe qual-
quer ordem, mas um horror eterno (Jb. 10, 22). Digo-vos, irmãos, que mesmo
depois de terdes ouvido aquela parábola do Senhor acerca do fariseu e do
publicano (Lc. 18, 9-14), presumindo da vossa justiça desprezais os restantes.
Dizeis, como se diz, que vós é que sois justos ou mais santos que todos os
outros, que só vós entre os monges viveis segundo a regra, ao passo que os
restantes não passam de transgressores da regra.
11- Antes de mais, que tendes a ver com os servos de outrém? É com
o seu senhor se estão de pé ou se caiem (Rom, 14, 4). Quem vos constituiu
juizes deles? (Lc. 12, 14). Por isso, se assim presumis da vossa Ordem, como
se diz, que ordem há para que antes de tirar a vossa trave, tão curiosamente
vos ponhais a procurar argueiros nos olhos dos irmãos? (Mt. 7, 13). Vós que
vos gloriais da Regra, porque murmurais contrariando a Regra? Porque é
que contra o Evangelho e contra o Apóstolo julgais antecipadamente os ser-
vos de outrem? (I Cor. 4,5). Pode ser que a Regra não concorde com o
Evangelho ou com o Apóstolo? Nesse caso, a Regra já não é regra, porque
não é recta. Escutai e aprendei a ordem, vós que contra a ordem criticais as
outras Ordens. "Hipócrita, diz, tira primeiro a trave do teu olho e assim verás
para tirar o argueiro do olho do teu irmão" (Mt. 7,3). Perguntas, que trave?
Acaso não é grande e grosso o orgulho pelo qual te julgas ser algo, nada
sendo; pelo qual a ti mesmo, como um louco, te exaltas de forma tresloucada
e, levando a trave, insultas os outros de maneira orgulhosa por causa de
argueiros? "Graças te dou, ó Deus, dizes tu, porque não sou como os res-
tantes homens, injustos, ladrões, adúlteros!" (Lc. 18, 11). Continua, então, e
diz: detractores. Nem sequer é um pequeníssimo argueiro entre outros. Como
é que enumerando com tanta diligência os outros, calas este? Se o tens por
nada ou mínimo, ouve o Apóstolo: "Nem os maledicentes, diz ele, possuirão
o Reino de Deus" (I Cor. 6, 10). Ouve também Deus a ameaçar no Salmo:
"Eu te acusarei, diz, e te porei face a ti mesmo" (SI. 49 (50), 21). Pelas coi-
sas ditas antes, é certo que fala ao detractor. E, na verdade, é com razão que
deve questionar-se a si e ser obrigado a contemplar-se aquele que, afastando
de si a vista, costuma perscrutar com mais curiosidade os males dos outros
que os seus.
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
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BERNARDO DE CLARAVAL, APOLOGIA PARA GUILHERME, ABADE
3 S. BENTO-Regra dos Monges, Singeverga, Edições "Ora & Labora", 1992, Capítulos 36,
39, 55. Os cluniacenses tinham o costume de preparar os legumes com gorduras sem atender
aos dias de jejum, mas Pedro Venerável proibiu o uso de gorduras às sexta~feiras, dias de
Advento e Quaresma, excepto ao Domingo (Estatutos, X, XV).
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUlLLELMVM ABBATEM
ex gustu mellis, non carnis, morti adiudicatus, econtra vero Elias innoxie car-
nem comederit, Abraham angelos gratissime carnibus paverit, et de ipsis sua
fieri sacrificia Deus praeceperit. Sed et satius est modico vino uti propter
infirmitatem, quam multa agua ingurgitari per aviditatem, guia et Paulus
Timotheo modico vino utendum consuluit, et Dominus ipse bibit, ita ut vini
potator appellatus sit, Apostolis quoque bibendum dedit, insuper et ex eo
sacramente sui sanguinis, condidit, cum e contrario aquam ad nuptias bibi
non passus sit, et ad aquas contradictionis populi murmur terribiliter casti-
gaverit, David quoque aquam, guia desideraverat, potare timuerit, virique illi
Gedeonis, qui prae aviditate tolo corpore prostrato de ilumine biberunt, digni
ad praelium ire non fuerint. Iam vero de labore manuum quid gloriamini,
cum et Martha laborans increpata, et Maria quiescens laudata sit, et Paulus
aperte dicat :LABOR, CORPORIS AD MODICUM VALET, PIETAS
AUTEM AD OMNIA? Optimus labor, de quo Propheta dicebat: LABO-
RA VI lN GEMITU MEO, et de quo alibi: MEMOR Fui DEI, ET DELEC-
TATUS SUM, ET EXERCITATUS SUM; acne corporale intelligas exerci-
tium: ET DEFECIT, inquit, SPIRITUS MEUS. Unde autem non corpus, sed
spiritus fatigatur, spiritualis procul dubio labor intelligitur.
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BERNARDO DE CLARAVAL, APOLOGIA PARA GUILHERME, ABADE
à morte por ter provado mel e não carne (I Sm. 14, 29); pelo contrário, Elias,
sem cometer pecado IRe, 17, 6), comeu carne, Abraão gratificou os anjos
com carnes Gn. 18, 7), e dela mandou Deus que se lhe fizessem sacrifícios
(Ex. 20, 24; 29, 1). Também é melhor saciar-se com um pouco de vinho por
causa da enfermidade do que encher-se de água por avidez, pois até Paulo
aconselhou Timóteo a beber um pouco de vinho (I Tm. 5, 23) e o próprio
Senhor dele bebeu (Mt. 26, 27), a ponto de ser chamado ébrio (Mt.l1, 19;
Lc. 7, 34). Deu-o depois a beber aos Apóstolos (Jo. 2, 11) e, mais ainda, com
ele instituiu o sacramento do seu sangue (Mt.26, 27; I Cor. 10, 5); pelo con-
trário, não permitiu que nas bodas bebessem água (Jo. 2, 3), castigou de
maneira terrível o povo que murmurava junto das Águas da Contradição
(Nm. 20, 6). David receou beber a água que tinha desejado (2 Sm. 23, 16),
e os homens de Gedeão que, por causa da avidez, se prostraram de corpo
inteiro para beber da torrente não foram dignos de avançar para o combate.
(Jz. 7, 5). Já gora, porque vos gloriais do trabalho das mãos, quando Marta
trabalhando foi censurada e Maria descansando foi louvada (Lc. 10, 41-42) e
Paulo abertamente diz: "O trabalho do corpo pouco vale, a piedade é útil
para tudo" (II Tm. 4, 8)? Óptimo é o trabalho de que dizia o Profeta:
"Trabalhei no meu gemido" (Sl. 6, 7) e noutro passo: "Lembrei-me de Deus,
deleitei-me e exercitei-me" (76 (77), 4). E, para que não interpretes isso como
exercício corporal, diz: "Desfaleceu o meu espírito" (Sl. 76 (77), 4). Sem
dóvida alguma, entende-se como trabalho espiritual aquele com que se fatiga
não o corpo mas o espírito.
VII. 13- "Que fazer, pois", dizes? "Será que assim aconselhas as coi-
sas espirituais para condenares mesmo estas coisas corporais que nos pres-
creve a Regra?" De maneira nenhuma; convém fazer aquelas e não omitir
estas (Mt. 23, 23; Lc. 11, 42). De contrário, caso seja necessário omitir estas
ou aquelas, mais vale omitir estas que aquelas. De facto, o exercício espiri-
tual é tanto mais fructuoso que o corporal, quanto o espírito é superior ao
corpo. Quando tu, orgulhoso da observância destas coisas, criticas os que as
não praticam, não te mostras mais transgressor da Regra (Tg. 2, 11) pois,
observando até as coisas mínimas, evitas as melhores, de que diz o Apóstolo:
"Rivalizai nos melhores carismas"? (I Cor. 12, 31) Rebaixando os irmãos,
com o que te exaltas a ti próprio, perdes a humildade; naquilo com que os
deprecias, a caridade; esses são, indiscutivelmente, os melhores carismas. Tu
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
14. Quod si Regulam ab omnibus, qui eam professi sunt, sic ad litteram
tenendam censes, ut nullam omnino dispensationem admitti patiaris, audac-
ter dica, nec tu eam, nec ille tenetis. Nam etsi ille, quantum quidem pertinet
ad observationes corporeas, in pluribus offendit, impossibile est tamen te quo-
que vel in uno non transgredi. Seis autem quia qui in uno offendit, omnium
est reus. Sin vero concedis aliqua posse mutari dispensatorie, procul dubio et
tu illam tenes, et ille, quamquam dissimiliter: nam tu quidem districtius, at
ille fartasse discretius. Neque hoc dica, quia haec exteriora negligenda sint,
aut qui se in illis non exercuerit, mox ideo spiritualis efficiatur, cum potius
spiritualia, quamquam meliora, nisi per ista, aut vix, aut nullatenus vel acqui-
rantur, vel obtineantur, sicut scriptum est: NON PRIUS QUOD SPIRI-
TUALE, SED QUOD ANIMALE, DEINDE QUOD SPIRITUALE. Sicut
nec lacob, nisiprius cognita Lia, desideratos amplexus Rachel meruit obti-
nere. Unde rursus in Psalmo: SUMITE PSALMUM ET DATE TYMPA-
NUM, quod est dicere: Sumite spiritualia, sed prius date corporalia. Optimus
autem ille, qui discrete et congrue et haec operatur, et illa.
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BERNARDO DE CLARAVAL, APOLOGIA PARA GUILHERME. ABADE
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
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BERNARDO DE CLARAVAL, Al'OLOGIA PARA GUILHERME, ABADE
também vos desagradar e não duvido de que devem ser evitadas por todos
os bons; essas coisas parecendo que são feitas na vossa Ordem, Deus não
permita que sejam da Ordem. Na realidade, nenhuma ordem aceita algo de
desordenado; o que é desordenado não é ordem. Por consequência, não me
devem considerar como disputando contra a Ordem mas pela Ordem, se,
acaso, repreendo não a Ordem nos homens mas os vícios dos homens. A este
respeito, não temo ser tido por molesto pelos que amam a Ordem; pelo con-
trário, certamente me hão-de aceitar de bom grado se perseguir o que a eles
próprios é odioso. Se, de facto, a alguns desagradar, eles mesmos mostram
que não amam a Ordem, já que não querem condenar a corrupção, isto é,
os vícios. A esses respondo com aquele dito de Gregório: "É melhor que apa-
reça o escândalo que se deixe a verdade" 4 .
Até aqui contra os detractores.
VIII. 16- Diz-se, e crê-se como verdade, que os santos Patres instituí-
ram aquela vida (cluniacense) e, para que nela muitos se salvassem, tempe-
raram o rigor da Regra como para enfermos, sem a destruir. Não acredito,
contudo, que tenham ordenado ou permitido tantas vaidades e superficiali-
dades quantas vejo em vários mosteiros. Admiro-me, por isso, como é que
pôde introduzir-se entre os monges uma tão grande intemperança nas comi-
das e bebidas, nas vestes e roupas de dormir, nos apetrechos de cavalgar e
na construção de edifícios; e onde isso se faz com mais zelo, com mais gosto
e com mais abundância aí se afirme que a ordem melhor está, aí se julgue
que há mais religião. A ser assim, a parcimónia é tida como avareza, a sobrie-
dade julgada como austeridade, o silêncio reputado como tristeza. Pelo con-
trário, o relaxamento diz-se discreção, o desperdício liberalidade, a loquaci-
dade afabilidade, a gargalhada alegria, a delicadeza das vestes e o adorno dos
cavalos dignidade, o cuidado supérfluo das camas limpeza e darmos isto uns
aos outros chama-se caridade. Esta caridade destrói a caridade, esta discre-
ção confunde a discreção. Tal misericórdia está cheia de crueldade pela qual
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BERNARDUS CLARAYALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMYM ABBATEM
ita corpori servitur, ut anima iuguletur. Quae etenim caritas est, carnem dili-
gere et negligere spiritum, quaeve discretio, totum dare corpori et animae
nihil? Qualis vero misericordia, ancillam reficere et dominam interficere?
Nemo pro huiusmodi misericordia speret se consequi misericordiam, quae
misericordibus promittitur in Evangelio, Veritatis ore dicentis: BEATI MISE-
RICORDES, QUONIAM !PSI MISERICORDIAM CONSEQUENTUR;
sed certissime potius poenam exspectet, quam tali, ut ita dicam, impio mise-
ricordi sanctus Iob magis prophetando quam afectando imprecatur:
NON SIT, inquiens, lN RECORDATIONE, SED CONTERATUR
QUASI LIGNUM INFRUCTUOSUM. Dignae plane retributionis causam
mox subinfert satis idoneam, dicens: PAVIT ENIM STERILEM ET QUAE
NON PAR!T, ET VIDUAE BENE NON FECIT.
18. Sub hac tamen abusione iam fere ubique sic pro ordine tenentur,
fere iam ita ab omnibus sine querela atque irreprehensibiliter observantur,
quamquam dissimiliter. Nonnulli quippe his omnibus tamquam non utentes
utuntur, et ideo aut cum nulla offensa, aut cum minima. Aliquanti quippe
haec agunt ex simplicitate, aliquanti ex caritate, aliquanti ex necessitate: qui-
dam namque simpliciter ista tenent, quoniam sic eis praecipitur, parati aliter
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
IX. 19. Quis in principio, cum Ordo coepit monasticus, ad tantam cre-
deret monachos inertiam devenire? O quantum distamus ab his, qui in die-
bus Antonii exstitere monachi! Siquidem illi cum se invicem per tempus ex
caritate reviserent, tanta ab invicem aviditate panem animarum percipiebant,
ut, corporis cibum penitus obliti, diem pleruique totum ieiunis ventribus, sed
non mentibus transigerent. Et hic erat rectus ordo, quando digniori parti prius
inserviebatur; haec summa discretio cum amplius sumebat quae maior erat;
haec denique vera caritas, ubi animae, quarum caritate Christus mortuus est,
tanta sollicitudine refocillabantur. Nobis autem convenientibus in unum, ut
verbis Apostoli utar, IAM NON EST DOMINICAM CENAM MANDU-
CARE. Panem quippe caelestem nemo qui requirat, nemo qui tribuat. Nihil
de Scripturis, nihil de salute agitur animarum; sed nugae, et risus, et verba
proferuntur in ventum. Inter prandendum quantum fauces dapibus, tantum
aures pascuntur rumoribus, quibus tatus intentus, modum nescias in edendo.
DE COMMESSATIONE
20. Interim autem fere ula ferculis apponuntur, et pro solis carnibus, a
quibus abstinetur, grandia piscium corpora duplicantur. Cumque prioribus
fueris satiatus, si secundas attigeris, videberis tibi necdum gustasse pisces.
Tanta quippe accuratione et arte coquorum cuncta apparantur, quatenus, qua-
tuor aut quinque ferculis devoratis, prima non impediam novissima, nec sati-
etas minuat appetitum. Palatum quippe, dum novellis seducitur condimentis,
paulatim disuescere cognita, et ad suecos extrancos, veluti adhuc ieiunum,
avide renovatur in desideria. Venter quidem, dum nescit, oneratur; sed vari-
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BERNARDO DE CLARAVAL, APOLOGIA PARA GUILHERME, ABADE
outros tantos, porém, para não viverem em desacordo com os que consigo
habitam, procuram nisto não a sua satisfação mas a paz dos outros; muitos
ainda porque não conseguem resistir à multidão dos que discordam e defen-
dem isto com toda a liberdade como se fizesse parte da ordem; e quando
aqueles, conforme a razão aconselha, começam a restringir ou mudar alguma
coisa, logo estes lhes resistem com toda a autoridade.
IX. 19- Quem é que no princípio, quando começou a Ordem monás-
tica, teria pensado que os monges pudessem chegar a tal relaxamento? Oh!
como estamos longe dos monges do tempo de Antão! Quando eles, por cari-
dade, se visitavam, recebiam com tal avidez uns dos outros o pão das almas
que, de todo esquecidos do pão do corpo, passavam o mais das vezes o dia
inteiro em jejum de ventre que não de mente. Esta era a ordem correcta
quando, em primeiro lugar, serviam à parte mais digna.; esta era, enfim, a
verdadeira caridade quando as almas, por amor das quais Cristo morreu, se
alimentavam com tanta solicitude. Nós, porém, reunindo-nos em comunidade,
para usar as palavras do Apóstolo, "já não é para comer a Ceia do Senhor"
(I Cor. 11, 20). Não há quem queira o pão do Céu, não há quem o dê. Não
se conversa acerca das Escrituras nem acerca da salvação das almas; apenas
se espalham brincadeiras, risadas e palavras ao vento. Durante as refeições,
tanto as bocas se enchem de alimentos quanto os ouvidos de rumores, atento
aos quais, até se perde a medida no comer.
Das refeições
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS. APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
elas tollit fastidium. Quia enim puras, ut eas natura creavit, epulas fastidi-
mus, dum alia aliis multifarie permiscentur, et spretis naturalibus, quos Deus
indidit rebus, quibusdam adulterinis gula provocatur saporibus, transitur nimi-
rum meta necessitatis, sed necdum delectatio superatur.
Quis enim dicere sufficit, quot modis, ut cetera taceam, sola ova ver-
santur et vexantur, quanto studio evertuntur, subvertuntur, liquantur, duran-
tur, diminuuntur, et nunc quidem frixa, nunc assa, nunc farsa, nunc mixtim,
nunc singillatim apponuntur? Ut quid autem haec omnia, nisi ut soli fastidio
consulatur? Ipsa deinde qualitas rerum talis deforis apparere curatur, ut non
minus aspectus quam gustus delectetur, et cum iam stomachus crebris meti-
bus repletum se indicet, necdum tamen curiositas satiatur. Sed dum oculi colo-
ribus, palatum saporibus illiciuntur, infelix stomachus, cui nec colores lucent,
nec sapores demulcent, dum omnia suscipere cogitur, oppressus magis obru-
itur quam reficitur.
DE POTATIONE
21. Iam vero de aquae potu quid dicam, quando ne ullo quidem pacto
vinum aquatum admittitur? Omnes nimirum, ex quo monachi sumus, infir-
mos stomachos habemus, et tam necessarium Apostoli de utendo vino con-
silium merito non negligimus, MODICO tamen, quod ille praemisit, nescio
cur praetermisso. Et utinam vel solo, cum etiam purum est, contenti essemus!
Pudet dicere, sed magis pudeat actitari; et, si pudet audiri, non pudeat emen-
daria. Videas uno in prandio ter vel quater semiplenum calicem reportari,
quatenus diversis vinis magis odoratis quam potatis, nec tam haustis quam
attactis, sagaci probatione et celeri cognitione unum tandem e pluribus, quod
fortius sit, eligatur. Quale est autem illud, quod nonnulla monasteria ex more
observara dicuntur, in magnis videlicet festis vina delibuta melle, pigmento-
rum respersa pulveribus, in connentu bibere? Numquid et hoc fieri dicemus
propter infirmitatem stomachi? Ego vero ad nihil aliud valere video, nisi ut
vel amplius bibatur, vel delectabilius. Sed cum venae vino fuerint ingurgita-
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Da bebida
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
tae, toto in capite palpitantes, sic surgenti a mensa quid aliud libet, nisi dor-
mire? Si autem ad vigilias indigestum surgere cogis, non cantum, sed plane-
tum potius extorquebis. 22. Cum vero ad lectum devenero, requisites incom-
modum plango, non crapulae peccatum, sed quod manducare non queo.
Ridiculum vero est, si tamen verum est, quod relatum est mihi a pluri-
bus, qui hoc se pro certo scire dicebant: reticendum esse non arbitror. Aiunt
enim incolumes ac validos iuvenes. conventum solere deserere in domo se
infirmorum, qui infirmi non sunt, collocare, carnium esu, qui vix aegrotis dum-
taxai et omnino debilibus ex Regulae discretione pro virium reparatione con-
ceditur, non quidem corporis infirmantis ruinas reficere pro incommodo, sed
carnis luxuriantis curam perficere in desiderio. Rogo quae est haec securitas,
inter frendentium undique hostium fulgurantes hastas et circumvolantia spi-
cula, tamquam finito iam bello et triumphato adversaria, proicere arma, et
aut prandiis incubare longioribus, aut nudum molli volutari in lectulo? Quid
hoc ignaviae est, o boni milites? Sociis in sanguine et caede versantibus, vos
aut cibos diligitis delicatos, aut somnos capitis matutinos? Aliis, inquam, nocte
et die cura pervigili festinantibus redimere tempus, quoniarn dies mali sunt,
vos e contrario et longas noctes dormitando consumitis, et dies fabulando
ducitis otiosos? An dicitis: PAX, ET NON EST P AX? Cur vel non vere-
cundamini ad exprobrationem apostolicae indignationis? NONDUM ENIM,
ait, RESTITISTIS USQUE AD SANGUINEM. lmmo iam ad eiusdem ter-
ribilis valde comminationis tonitruum cur non expergiscimini? CUM DIXE-
RINT, inquit: PAX ET SECURITAS, TUNC REPENTINUS EIS SUPER-
VENIET INTERITUS, SICUT DOLO R lN UTERO HABENTIS, ET NON
EFFUGIENT. Delicata nimis medicina est, prius alligari quam vulnerari,
membrum non percussum plangere, et necdum suscepto ictu admovere
manum, fovere unguento ubi non dolet, emplastrum adhibere ubi caesura
non est.
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BERNARDO DE CLARAVAL, APOLOGIA PARA GUILHERME, ABADE
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
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23- Para distinguir, pois, entre sãos e doentes (Me. 2, 17), mandou-se
que os doentes andassem de paus nas mãos, absolutamente necessários para
que a invalidez, que a palidez do rosto e a magrez não mostram, a finja o
pau que se sustenta na mão. Diria que tais loucuras fazem rir e chorar? Viveu
assim S. Macário? Ensinou assim S. Basílio? Determinou assim Santo Antão?
Viveram assim os Padres no Egipto? Enfim, foi isso que os santos Odo,
Maíolo, Odilão, Hugo, de quem se gloriam de ter por príncipes e mestres da
sua Ordem, observaram e mandaram observar? Mas todos esses, se santos,
antes por serem santos, não discordaram do santo Apóstolo que, de facto,
assim fala: "Tendo que comer e vestir, com isso estamos satisfeitos" (I Tm.
6, 8). Nós, porém, temos em vez de alimento fartura e não procuramos com
que nos vestir mas com que nos adornar.
X. 24- Para vestir, procura-se não o que é mais útil mas o que se acha
mais fino; não o que afasta o frio mas o que satisfaz o amor próprio; não,
por último, o que, segundo a Regra 6, se pode comprar de mais vil, mas o
que mais elegante e até com mais vaidade se pode mostrar. Ai de mim, um
miserável monge qualquer! Como é que ainda vivo para ver chegar a isto a
nossa Ordem, esta Ordem que foi a primeira na Igreja, mais ainda, a partir
da qual começou a Igreja, nunca houve na terra nenhuma mais semelhante
às ordens angélicas, nenhuma mais próxima da Jerusalém que está nos céus,
a nossa mãe (Ap. 21, 2; Gl. 4, 26), quer pelo decoro da castidade, quer pelo
ardor da caridade, da qual foram instituidores os Apóstolos, da qual foram
iniciadores aqueles que S. Paulo, tantas vezes, chama santos (Rm. 1, 7; 15, 25,
etc.). E embora esses, entre si, nada tivessem como seu (Act. 4, 32), conforme
está escrito "dividia-se a cada um segundo as suas necessidades" (Act. 4, 32.
35) e não como cada qual poderia infantilmente desejar. Com certeza que,
onde se recebia tanto quanto se precisava, aí nada de ocioso se admitia, quanto
mais de curioso, quanto mais de orgulhoso. "O que era preciso", diz, isto é,
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
25. Ubi nunc illud unanimitatis exercitium? Fusi sumus exterius et, de
regno Dei, quod intra nos est, relictis veris ac perennibus banis, foris quae-
rimus vanam consolationem de vanitatibus et insaniis falsis, ac iam religionis
antiquac non solum virtutem amisimus, sed nec speciem retinemus. Eccc enim
ipse habitus noster, quod et dolens dica, qui humilitatis esse solebat insigne,
a monachis nostri temporis in signum gestatur superbiae. Vix iam in nostris
provinciis invenimus, quo vestiri dignemur. Miles et monachus ex eodem
panno partiuntur sibi cucullam et chlamydem. Quivis de saeculo, quantumli-
bet honoratus, etiam si Rex, etiam si Imperator ille fuerit, non tamen nostra
horrebit indumenta, si suo sibi modo praeparata fuerint et aptata.
26. ''Ceterum in habitu", inquis, "non est religio, sed in carde." Bene.
At tu quando cucullam empturus lustras urbes, fora circuis, percurris nundi-
nas, domas scrutaris negotiatorum, cunctam evertis singulorum supellectilem,
ingentes explicas cumulas pannorum, attrectas digitis, admoves oculis, solis
opponis radio, quidquid grossum, quidquid pallidum occurrerit, respuis;
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BERNARDO DE CLARAVAL, AI'DLDGIA PARA GUILHERME, ABADE
7 Foi Pedro Venerável quem detenninou que os monges cluniacenses não se vestissem de
Galabruno e de /sembruno (Estatutos, XVI). Galabruno e !sembnmo são tecidos de seda
acastanhada ou com mais cores, normalmente usados pelas pessoas do mundo.
8 Gato é aqui referência ao gato bravo. Era da Espanha que se importavam cobertores feitos
de peles de gatos bravos. Parece que os cluniacenses preferiam esses cobertores aos da França,
mas Pedro Venerável ainda pennitiu que se usassem cobertores de pele de visão e de furão
(Estatutos, XVII).
9 Barregana era um tecido de lã de muita dura e de várias cores, que tirava o seu nome pre-
cisamente de barria , isto é, das tiras variegadas com que se fazia a peça; também este tecido
havia de ser proibido (Estatutos, XVII).
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
si quid autem sui puritate ac nitore placuerit, illud mox quantolibet pretio
satagis tibi retinere: rogo te, ex carde facis hoc, an simpliciter? Cum denique
contra Regulam, non quod vilius occurrerit, sed studiosissime quaeris
quod, guia rarius invenitur, pretiosius emitur, ignorans facis hoc, an ex
industria? Ex cordis thesauro sine dubio procedi! quidquid foris apparet
vitiorum. Vanum cor vanitatis notam ingerit corpori, et exterior superfluitas
interioris vanitatis indicium est. Mollia indumenta animi mollitiem indicant.
Non tanto curaretur corporis cultus, nisi prius neglecta fuisset mens inculta
virtutibus.
DE INCURIA PRAELATORUM
XI. 27. Mirar autem cum Regula dicat ad magistrum respicere quidquid
a discipulis delinquitur, et Dominus per Prophetam sanguinem in peccato
morientium de manu pastorum requirendum esse minetur, quomodo abbates
nostri talia fieri patiantur, nisi forte, si audeam dicere, nemo fidenter repre-
hendit, in quo se esse irreprehensibilem non confidit. Siquidem humanitatis
est omnium, in quo sibi quisque indulget, aliis non vehementer irasci. Dicam,
dicam; praesumptuosus dicar, sed verum dicam. Quomodo lux mundi obte-
nebrata est? Quomodo sal terrae infatuatum est? Quorum nobis vita via vitae
debuit esse, dum exemplum in suis actibus ostendunt superbiae, caeci facti
sunt duces caecorum.
DE FASTU EQUITANDI
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BERNARDO DE CLARAVAL, APOLOGIA PARA GUILHERME, ABADE
que for desbotado. Se alguma coisa te agrada pela sua pureza e brilho, logo
o reservas para ti, qualquer que seja o seu preço. Pergunto-te: fazes isso inten-
cionalmente ou por distracção? Quando, enfim, contra a Regra, compras não
o que ocorre de mais vil, mas o que com toda a preocupação procuras, por-
que mais raramente se encontra, mais caro se vende, fazes isso por ignorân-
cia ou de propósito? Procede, sem dúvida, do tesouro do coração (Lc. 6, 45)
o que de vicioso aparece no exterior. Um coração vazio imprime no corpo a
nota da vaidade e a superficialidade exterior é indício da vaidade interior (Sl.
5, 1). As roupas finas indicam a moleza do espírito. Não se tomaria tanto
cuidado do corpo se antes não se tivesse deixado de cultivar as virtudes do
espírito.
Que espécie de humildade é, para calar o resto, avançar com uma caval-
gada tão pomposa, ser rodeado de tantos obséquios de homens de penacho,
a ponto de, para dois bispos bastar o séquito dum só abade? Minto se não
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMYM ABBATEM
XII. 28. Sed haec parva sunt; veniam ad maiora, sed ideo visa minora,
quia usitatiora. Omitto oratoriorum immensas altitudines, immoderatas lon-
gitudines, supervacuas latitudines, sumptuosas depolitiones, curiosas depicti-
ones, quae dum in se orantium retorquem aspectum, impediunt et affectum,
et mihi quodammodo repraesentant antiquum ritum ludaeorum. Sed esta,
fiant haec ad honorem Dei. Illud autem interrogo monachus monachos, quod
in gentilibus gentilis arguebat: DlClTE, ait ille, PONTlFlCES, lN SANCTO
QUID FAClT AURUM?
Ego autem dica: "Dicite pauperes",- non enim attendo versum,
sed sensum -, "dicite", inquam, ''pauperes, si tamen pauperes, in sancto
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BERNARDO DE CLARAVAL, AI'OLOGJA PARA GUILHERME, ABADE
XII. 28- Mas isto são coisas pequenas; passo então a coisas maiores,
que parecem menores porque mais usuais. Deixo de lado as enormes alturas
dos oratórios, os comprimentos imensos, as larguras excessivas, as decorações
sumptuosas, as pinturas bizarras que atraem para si olhar dos que aí rezam,
impedem a concentração e que a mim, de certo modo, lembram o antigo rito
dos judeus. Mas seja, também isto se faz para glória de Deus. Como monge,
interrogo os monges acerca disto que, entre os gentios, um gentio acusava,
dizendo: "Dizei-me, pontífices, que faz o ouro no santuário" 12?
Pois eu digo: "Dizei pobres, -não atendo ao verso mas ao sentido -,
dizei, repito, pobres, se é que sois pobres, que faz o ouro no santuário?" E,
11 Neste passo, S. Bernardo tem, por certo, em mira o aparato do abade Sugério, quando minis-
tro do rei de França, Luis VII, e a isso se refere na Epístola 18, 3: "Te, inquam, mutato,
mox omnis tumultus concideret, quiesceret strepitus. Solumque ac totum erat quod move-
bat, tuus ille scilicet habitus et apparatus cum procederes, quod pauto insolentior appare-
ret", "PL", 182, 191-199.
12 PÉRSIO- Sátiras, II, 69.
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
quid facit aurum? Et quidem alia causa est episcoporum, alia monachorum.
Scimus namque quod illi, sapientibus et insipientibus debitares cum sint, car-
nalis populi devotionem, quia spiritualibus non possunt, corporalibus excitant
ornamentis. Nos vero qui iam de populo exivimus, qui mundi quaeque pre-
tiosa ac speciosa pro Christo reliquimus, qui omnia pulchre lucentia, canore
mulcentia, suave olentia, dulce sapientia, tactu placentia, cuncta denique
oblectamenta corporea arbitrati sumus ut stercora, ut Christum lucrifaciamus,
quorum, quaeso, in his devotionem excitare intendimus? Quem, inquam, ex
his fructum requirimus: stultorum admirationem, an simplicium oblationem?
An quoniam commixti sumus inter gentes, forte didicimus opera eorum, et
servimus adhuc sculptilibus eorum?
Et ut aperte loquar, an hoc totum facit avaritia, quae est idolorum ser-
vitus, et non requirimus fructum, sed datum? Si quaeris: <Quomodo?"
"Miro", inquam, "modo". Tali quadam arte spargitur aes, ut multiplicetur.
Expenditur ut augeatur, et effusio copiam parit. Ipso quippe visu sumptuo-
sarum, sed mirandarum vanitatum, accenduntur homines magis ad offeren-
dum quam ad orandum. Sic opes opibus hauriuntur, sic pecunia pecuniam
trahit, guia nescio quo pacto, ubi amplius divitiarum cernitur, ibi offertur
libentius. Auro tectis reliquiis signantur oculi, et loculi aperiuntur. Ostenditur
pulcherrima forma Sancti vel Sanctae alicuius, et eo creditur sanctior, quo
coloratior. Currunt homines ad osculandum, invitantur ad donandum, et
magis mirantur pulchra, quam venerantur sacra. Ponuntur dehinc in ecclesia
gemmatae, non coronae, sed rotae, circumsaeptae lampadibus, sed non minus
fulgentes insertis lapidibus. Cernimus et pro candelabris arbores quasdam
erectas, multo aeris pondere, miro artificis opere fabrica tas, nec magis corus-
cantes superpositis lucernis quam suis gemmis. Quid, putas, in his omnibus
quaeritur? Paenitentium compunctio, an intuentium admiratio? O vanitas
vanitatum, sed non vanior quam insanior! Fulget ecclesia parietibus, et in
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BERNARDO DE CLARAVAL, APOLOGIA PARA GUILHERME, ABADE
de facto, uma é a razão dos bispos, outra a dos monges. Sabemos, com efeito,
que aqueles, sendo devedores a sábios e insensatos (Rom. 1, 14), promovem
a devoção do povo carnal com adornos materiais por não poder com os espi-
rituais. Nós, porém, que já nos saímos do povo, que, por Cristo, deixámos
(Mt. 19, 27) as coisas preciosas e belas do mundo, todas as lindamente bri-
lhantes, musicalmente embaladoras, suavemente inebriantes, docemente
saborosas, agradáveis ao tacto, enfim, julgamos todos os prazeres do corpo
como estrume para lucrarmos a Cristo (FI. 3, 8), pergunto-vos a quem é que
incitamos com elas a devoção? Que fruto disso pretendemos colher (Rom. 6,
21): a admiração dos insensatos ou a oferta dos simples? Acaso, porque anda-
mos misturados com pagãos, aprendemos as obras deles e ainda prestamos
culto às suas esculturas (SI. 105 (106), 35-36)?
E, para falar abertamente, não é porventura a avareza que faz tudo isto,
ela que é servidão dos ídolos (Ef.5 ,5; Cl.3, 5), e não procuramos o fruto mas
a dádiva? Se perguntas: "Como? "De um modo espantoso", respondo eu.
Espalha-se o dinheiro com tal arte que se multiplique. Gasta-se para o fazer
crescer e a liberalidade gera a abundância. Á vista das coisas sumptuosas,
admirando vaidades, os homens são levados mais a fazer ofertas que a rezar.
Assim, as riquezas fazem aparecer riquezas, assim o dinheiro atrai dinheiro,
porque, não sei como isso acontece, onde se vêm mais riquezas aí, de bom
grado, se oferece mais. Impressionam-se os olhos com relíquias recamadas de
ouro, e abrem-se as carteiras. Mostra-se uma belíssima imagem de algum
santo ou santa e julga-se que é tanto mais santo quanto mais colorida. As
pessoas correm a beijar, convidam-se a dar esmola e admira-se mais a beleza
do que se venera a sacralidade. Suspendem-se, depois, na igreja não coroas
mas rodas cobertas de pedras preciosas, cercadas de lâmpadas mas não menos
brilhantes com as pedras incrustadas. Em vez de candelabros, vemos como
que árvores levantadas, com muito peso de metal, fabricadas com arte admi-
rável, não mais brilhantes com as velas que lhes são sobrepostas que com as
suas pedras preciosas 13. Que julgas procurar-se com tudo isso? A compun-
ção dos penitentes ou a admiração dos visitantes? Oh! vaidade das vaidades
(Ecl. 1, 2), mais insensata que vã! A igreja rebrilha nas suas paredes mas pas-
13 Há aqui uma evidente alusão ao grande candelabro oferecido em 1109 pela rainha Matilde
para a igreja de Cluny e colocado diante do altar-mor.
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BERNARDUS CLARAVALLENSJS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
pauperibus eget. Suos lapides induit auro, et suos filios nudos deserit. De
sumptibus egenorum servitur oculis divitum. Inveniunt curiosi quo delecten-
tur, et non inveniunt miseri quo sustententur. Ut quid saltem Sanctorum ima-
gines non reveremur, quibus utique ipsum, quod pedibus conculcatur, scatet
pavimentem? Saepe spuitur in ore Angeli, saepe alicuius Sanctorum facies
calcibus tunditur transeuntium. Et si non sacris imaginibus, cur vel non par-
citur Pulchris coloribus? Cur decoras quod mox foedandum est? Cur depin-
gis quod necesse est conculcari? Quid ibi valent venustae formae, ubi pul-
vere maculantur assíduo? Denique quid haec ad pauperes, ad monachos, ad
spirituales viros? Nisi forte et hic adversus memoratum iam Poetae versicu-
lum propheticus ille respondeatur: DOMIINE, DILEXI DECOREM
DOMUS TUAE ET LOCUM HABITATIONIS GLORIAE TUAE.
Assentia: patiamur et haec fieri in ecclesia, quia etsi noxia sunt vanis et ava-
ris, non tamen simplicibus et devotis.
29. Ceterum in claustris, coram legentibus fratribus, quid facit illa ridu-
cula monstruositas, mira quaedam deformis formositas ac formosa deformi-
tas? Quid ibi immundac simiae? Quid feri leones? Quid monstruosa centauri?
Quid semihomines? Quid maculosae tigrides? Quid milites pugnantes? Quid
venatores tubicinantes? Videas sub uno capite multa corpora et rursus in uno
corpore capita multa. Cernitur hinc in quadrupede cauda serpentis, illinc in
pisce caput quadrupedis. Ibi bestia praefert equum, capram trahens retro
dimidiam; hic cornutum animal equum gesta! posterius. Tam multa denique,
tamque mira diversarum formarum apparet ubique varietas, ut magis legere
libeat in marmoribus, quam in codicibus, totumque diem occupare singula
ista mirando, quam in lege Dei meditando. Proh Deo! si non pude! ineptia-
rum, cur vel non piget expensarum?
30. Multa quidem et alia suggerebat addenda larga materia; sed avellit
me et propria satis anxia occupatio, et tua, frater Ogere, nimis festina dis-
cessio, qui videlicet nec morari diutius acquiescis, nec abrire tamen vis abs-
que recenti opusculo. Facio itaque quod vis: et te dimitto, et sermonem bre-
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BERNARDO DE CLARAVAL, APOLOGIA PARA GUILHERME, ABADE
14 Ogiério era cónego regrante do mosteiro de Monte de Santo Elói na diocese de Arras e,
depois, cerca de 1125, tornou-se abade de S. Medardo de Tournai.
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BERNARDUS CLARAVALLENSJS, APOLOGIA AD GUJLLELMVM ABBATEM
vio, praesertim quia utiliora sunt panca in pace, quam multa cum scandalo.
Et utinam haec pauca scripserim sine scandalo! Enimvero vitia carpens, seio
me offendere vitiosos. Potes! tamen fieri, volente Deo, aliquibus quos me
timeo exasperasse, potius placiturum esse, sed si desinant esse vitiosi: si vide-
licet et districtiores desinant esse detractores, et remissiores amputent super-
fluitates; si sic quisque bonum teneat quod tenet, ut alium aliud tenentem
non iudicet si qui accepit iam esse bonus, non invideat melioribus, et qui sibi
videtur agere melius, bonum non spernat alterius; si qui districtius vivere pos-
sunt, eos qui non possunt nec aspernentur, nec aemulentur, et qui non pos-
sunt, eos qui possunt sic mirentur, ut temere non imitentur. Sicut enim non
licet his, qui maius aliquid forte voverunt, ad id quod minus est descendere,
ne apostatentur, sic non omnibus expedi! de bonis minoribus ad maiora tran-
sire, ne praccipitentur.
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BERNARDO DE CLARAVAL. AI'OLOGJA PARA GUILHERME, ABADE
te partir e abrevio a conversa, uma vez que mais vale pouco em paz que
muito com escândalo. E oxalá que este pouco tivesse eu escrito sem escân-
dalo! Contudo, lamentando os vícios, sei que ofendo os viciosos. Pode toda-
via acontecer, se Deus o permitir, que, a alguns a quem julgo ter exasperado,
acabe por agradar, se deixarem de ser viciosos, isto é, se os de observância
mais estrita deixarem de ser detractores e os mais relaxados cortarem com
as suas superfluidades. Assim, cada um tenha o bem que tem e não julgue o
que tem outro; se alguém já aceitou ser bom não inveje os que são melho-
res, e aquele que julgue agir melhor não despreze os que agem bem (Rom.
14, 3). Se alguém julga poder viver com mais rigor não despreze os que não
podem nem lhes faça emulação, e os que não podem admirem de tal modo
os que podem que os não imitem temerariamente. Assim como não é lícito
que os que fizeram voto de mais alto desçam ao mais baixo a fim de não
apostatarem, assim também nerri a todos convém passar dos bens menores
para os maiores, a fim de não se despenharem.
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BERNARDUS CLARAVALLENSIS, APOLOGIA AD GUILLELMVM ABBATEM
mus, quo, secundum Apostoli consilium, omnia nostra in caritate fiant. Haec
est nostra de vestro et nostro Ordine sentencia; haec nostris, haec non de
vobis, sed vobis me solere dicere, nullus melius mihi testis erit quam vos, et
si quis me novit sicut vos. Quae in vestris laudabilia sunt, laudo et praedico;
si quae reprehendenda sunt, ut emendentur, vobis et aliis amicis meis sua-
dere soleo. Hoc non est detractio, sed attractio. Quod ut nobis a vobis sem-
per fiat, omnino precor et supplico. Valete.
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BERNARDO DE CLARAVAL, AI'OLOGIA PARA GUILHERME, ABADE
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TEXTOS PARALELOS E COMPLEMENTARES
DE OUTROS AUTORES
... de his nunc sermo sit, qui sub specie religionis negotium voluptatis obpalli-
ant: qui ea, quae antiqui patres in typis futurorum salubriter exercebant, in usum suae
vanitatis usurpant. Unde, quaeso, cessantibus jam typis et figuris, unde in Ecclesia tot
organa, tot cymbala? Ad quid, rogo, terribilis ille follium flatus, tonitrui potius fra-
gorem, quam voeis exprimens suavitatem? Ad quid illa voeis contractio et infractio?
Hic succinit, ille discinit; alter medias quasdam notas dividit et incidit. Nunc ~ox strin-
gitur, nunc frangitur, nunc impingitur, nunc diffusiori sonitu dilatatur. Aliquando, quod
pudet dicere, in equitos hinnitus cogitur; aliquando virili vigore deposito, in fernineae
voeis gracilitates acuitur, nonnunquam artificiosa quadam circumvolutione torquetur
et retorquetur. Videas aliquando horninem aperto ore quasi intercluso halitu exspi-
rare, non cantare, ac ridiculosa quadarn voeis interceptione quasi rninitari silentium;
nunc agones rnorientium, vel extasim patientium irnitari. Interim histrionicis quibus-
dam gestibus toturn corpus agitatur, torquentur labia, rotant, ludunt humeri; et ad sin-
gulas quasque notas digitorum flexus respondet. Et haec ridiculosa dissolutas voca-
tur religio; et ubi haec frequentius agitantur, ibi Deo honorabilius serviri clamatur.
Stans interea vulgus soniturn follium, crepitum cymballorum, harmoniam fistularum
tremens attonitusque miratur; sed lascivas cantantiurn gesticulationes, meretricias
vocum alternationes et infractiones non sine cachinno risuque intuetur, ut eos non ad
oratorium, sed ad theatrum, nec ad orandum, sed spectandum aestimes convenisse.
Nec timetur illa tremenda majestas, cui assistitur, nec defertur rnystico illi praesepio,
cui ministratur, ubi Christus mystice pannis involvitur, ubi sacratissimus ejus sanguis
calice liberatur, ubi aperiuntur caeli; assistunt angeli; ubi terrena caelestibus jungan-
tur; ubi angelis homines sociantur. Sic quod sancti Patres instituerunt, ut infirmi exci-
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TEXTOS PARALELOS
tarentur ad affectum pietatis, in usum assumitur inllicitae voluptatis. Non enim sen-
sui praeferendus est sonus: sed sonus cum sensu ad incitamentum majoris affectus ple-
rumque admittendus. Ideoque talis debet esse sonus, tam moderatus, tam gravis, ut
non totum animum ad sui rapiat obledtationem, sed sensui majorem relinquat por-
tionem. Ait nempe beatissimus Augustinus (Lib. X Confess. c. 33): "Movetur animus
ad affectum pietatis divino cantico audito: sed si magis sonum quam sensum libido
audiendi desideret, improbatur". Et alias: "Cum me, inquit, magis cantus quam verba
delectant, paenaliter me pecasse confiteor, et mallem non audire cantantes". Cum igi-
tur aliquis, spreta ridiculosa illa et damnosa vanitate, antiquae Patrum moderationi
sese contulerit, si ad memoriam nugarum theatricarum prurientibus auribus immane
fastidium gravitas honesta contulerit; sicque totam Patrum sanctitatem quasi rustici-
tatem contemnat ac judicet; modo cantandi, quem Spiritus Sanctus per sanctissimos
Patres quasi per organa sua, Augustinum videlicet, Ambrosium, maximeque
Gregorium, instituit; Hiberas, ut dicitur, naenias, vel nescio quorum scholasticorum
nugas vanissimas anteponens. Si ergo hinc crucietur, hinc doleat, hinc ad ea quae evo-
muerat, anius anhelet: quae rogo hujus laboris origo, jugum charitatis, an onus con-
cupiscentiae mundialis?
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TEXTOS PARALELOS
multumne, quaeso, gloriolas has exterioresaffectasset? ... Inde est etiam quod cum tota
die inanbibus spectaculis dediti, vel rumoribus audiendis intenti a nobis quodam modo
exicrimus, revertentes iterum ad nos, vanitatum imagines introducimus, et cor plenum
simulacris ad locum quoque quietis nostrae ferentes, pro ineptissima vanitate noctes
ducimus insomnes; regum praelia, victorias ducum, quasi sub oculis stultissima prae-
sumptione depingimus, omniaque regni negotia in ipsa psalmodia vem orationibus nos-
tris otiosis discursibus ordinamus ... "
15 Neste passo descobre-se uma clara referência ao tópico de Vergílio na Écloga II: Tu patu-
lae recubans sub tegmine fagi. Aqui está um belo tópico classicizante.
74
TEXTOS PARALELOS
et in superliminari:
75
TEXTOS PARALELOS
"ln tabula illa quae sacratissimum corpus ejus assistit, circiter XLII marcas auri
posuisse nos aestimamus. Gemmarum pretiosarum multiplicem copiam, hyacinthorum,
rebutorum, saphirorum, smaragdinum, topaziorum, necnon et opus discriminantium
unionum,quantam nos reperirenunquam praesumpsimus. Videres reges et principes,
multosque viras praecelsos, imitatione nostra digitas manuum suarum exannulare, et
annulorum aurum, et gemmas, margaritasque pretiosas ob amarem sanctorum marty-
rum eidem tabulae infigi praecipere. Nec minus etiam archiepiscopi et episcopi ipsos
suae desponsationis annulos ibidero sub tuto reponentes, Deo et sanctis ejus devotis-
sime offerebant. Venditorum etiam gemmariorum tanta de diversis regnis et natio-
nibus ad nos turba confluebat, ut non plus emere quaereremus, quam illi vendere sub
administratione omnium festinarent. Versus etiam ejusdem tabulae hi sunt:
76