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POESIA

GREGA E LATINA
Seleção, notas e tradução
direta do Grego e do Latim por
Péricles Eugênio da Silva Ramos

Apresentação e Apêndice
Rafael Brunhara

2a edição
2022
Copyright © 2022 - Herdeiros de Péricles Eugênio da Silva Ramos

1a. Edição 1964, Editora Cultrix


2a. Edição 2022, Editora Madamu

Editores
Marcelo Toledo e Valéria Toledo

Projeto Gráfico
KOPR Comunicação
Imagem da Capa: Bacchus [Dionysus]. Gravura de M. Dorigny, 1645,
a partir de ilustração de S. Vouet. Wellcome Collection, UK.

Todos os direitos reservados à Editora Madamu


Rua Terenas, 66, conjunto 6, Alto da Mooca, São Paulo, SP
CEP 03128-010 - Fone: (11) 2966 8497
www.madamu.com.br
E-mail: leitor@madamu.com.br

P441p Ramos, Péricles Eugênio da Silva (1919-1992)

Poesia Grega e Latina / Seleção, notas e tradução direta


do Grego e do Latim por Péricles Eugênio da Silva Ramos.
Apresentação e Apêndice por Rafael Brunhara. - 2a. ed.. - São
Paulo: Editora Madamu, 2022.

228 p., 14 x 21cm


ISBN 978-65-86224-24-5

1. Poesia Lírica Grega Clássica. I. Título. II. Autor.

CDD: 884

Índice para catálogo sistemático:


1. Poesia Lírica Grega Clássica. I. Título. II. Autor.
884
Índice

Apresentação da 1a. edição (orelha do livro de 1964), 9.


Apresentação à 2a. edição − Rafael Brunhara, 11.
Advertência − Péricles Eugênio da Silva Ramos, 29.

POESIA GREGA

HESÍODO: Verão, 35.


ARQUÍLOCO: Com a Lança, 37; Sombras, 38; O Eclipse, 39;
A grande arte, 40; A Glauco, 41.
ALCMÃ: Partênio, 43; Noite, 45; Martim-Pescador, 46.
MIMNERMO: Sem a Afrodite de ouro, 49;
Como as Folhas que brotam, 50; Ao Sol Todos os Dias, 51.
SEMÔNIDES DE AMORGOS: A insciência do homem, 53.
HÍBRIAS: Minha Grande Riqueza, 55.
SÓLON: Felicidade, 57.
ESTESÍCORO: O Hiperiônide Sol, 59; Helena, 60; Primavera, 61.
ALCEU: Ao Hebro, 63; Primavera, 64; A Cidade, 65;
Convite, 66; Vinham os pássaros, 67;
Palavras de Alceu a Safo e Resposta de Safo a Alceu, 68-69.
SAFO: Contemplo Como o igual dos Próprios Deuses, 71;
Eu vos rogo, ó cretenses, 72; Para Anactória, 73;
Quando eu te vejo, 75; O amor, 76; As rosas de Piéria, 77;
Para Átis, 78; A lua já se pôs, 80; Para Mnesídice, 81;
Como a doce maçã, 82; Como o jacinto, 83.
ÍBICO: Na primavera, 85; De novo o Amor, 86;
Sobre as mais altas folhas, 87; Temo adquirir, 88;
Dois fragmentos, 89.
ANACREONTE: A bola vermelha, 91; Galgo o rochedo, 92;
Olhos meigos, 93; Amargura, 94; Traze água, jovem, 95;
Moderação, 96; A moça esquiva, 97; Agatão, 98; Oferenda, 99.
TEÓGNIS: A melhor coisa,101; Do amor, 102;
Meu coração, Mantém-te jovem, 103;
Ninguém, ó Cirno, causa, 104.
SIMÔNIDES DE CEOS:
Aos que morreram nas Termópilas, 107; Instabilidade, 108;
Pequena é a força do homem, 109; Sem os deuses, 110;
Do Epinício para Anaxilas de Régio, 111; Orfeu, 112;
Sobre a batalha de Maratona, 113;
Os que salvaram Tégea, 114; Epitáfio, 115;
Inscrição no altar de Plateia, 116.
PÍNDARO: O sonho de uma sombra, 119; Sabedoria, 120;
De uma só raça, 121; Vim para celebrar, 122; O Elísio, 123.
BAQUÍLIDES: A paz, 125; O mergulho de Teseu, 126;
Agora como sempre, 128; Ninguém pode manchar o céu, 129.
PRAXILA: Resposta de Adônis, 131; Os covardes, 132;
O escorpião, 133; Um rosto, 134.
ÍON DE QUIOS: O vinho, 137; Estrela da manhã, 138.
MELANÍPIDES: Danaides, 141.
TIMÓTEO: Não canto velhos cantos, 143; Do Ciclope, 144.
LÂMINAS ÓRFICAS: Lâmina de Petélia, 147;
Lâminas de Compagno (Thurium), 148.
FILÓXENO DE CITERA: Galateia, 151.
LICOFRÔNIDES: Pudor, 153; Oferenda, 154.
ERINA: Epitáfio, 157.
TEÓCRITO: Aroma de outono, 159; Hilas, 160.
ANTOLOGIA PALATINA: De Platão, 163; De Meleagro, 164;
De Paulo, o silenciário, 165.

POESIA LATINA

CATULO: O pardal de Lésbia, 169; Vivamos, minha Lésbia, 170;


Fúrio e Aurélio, que iríeis com Catulo..., 171; Volta ao lar, 173;
Diz a amada..., 174.
HORÁCIO: Não indagues, Leucónoe, 177; Lálage, 178;
Luxo persa, 180; A fonte de Bandúsia, 181; A Fauno, 182;
Aere Perennius, 183.
TIBULO: A bela Sulpícia, 185.
PROPÉRCIO: Da morte e do amante, 189.
OVÍDIO: O poder da poesia, 191.
PETRÔNIO: Vida campestre, 195; O verdadeiro prazer, 196.
A VIGÍLIA DE VÊNUS (Pervigilium Veneris):
A vigília de Vênus, 199.
PENTÁDIO: Elegia: à chegada da primavera, 207.
AUSÔNIO: Anoitecer sobre o Mosela, 209;
Erram na vasta brenha..., 210.
MS. DE S. RÉMY, EM RHEIMS: A bela e o sonho, 213.

Apêndice − Os poemas da Poesia Grega e Latina, 215.


Sobre o tradutor, 225.
Apresentação da 1a. edição
(texto da orelha do livro de 1964)

D
o mesmo modo que em diversos outros setores da cul-
tura, a influência da Grécia e de Roma sempre se fez
sentir de forma permanente e profunda sobre a poesia
ocidental, notadamente a partir do Renascimento, quando a imi-
tação dos modelos antigos se constituiu em norma da atividade
literária e artística, já que eram reputados como que o limite de
perfeição alcançado pelo gênio humano. Da Renascença aos dias
atuais, embora de maneira mais difusa e menos categórica, a poe-
sia greco-latina continuou a inspirar e a interessar os poetas do
Ocidente, que a cada geração lhe redescobrem a perene atualidade.
Se a épica foi o contributo da Antiguidade mais estimado
pelos autores do Classicismo europeu, a lírica é o que hoje mais de
perto fala à nossa sensibilidade. Em linguagem miraculosamente
despojada (segundo o crítico Cecil M. Bowra, Alceu e Safo ele-
varam a simplicidade da linguagem comum “ao mais alto grau de
expressividade”), os líricos da Grécia e de Roma alcançaram fixar
momentos de beleza e de emoção que nos tocam tão intensamente
quanto se fossem obra de contemporâneos nossos. Daí a inteira
“legibilidade” desta antologia organizada pelo poeta Péricles Eu-

9
gênio da Silva Ramos, que escolheu e traduziu diretamente do
Grego e do Latim cento e treze poemas líricos de trinta e cinco
poetas diferentes, sobre cada um dos quais escreveu uma pequena
nota biográfica, para melhor informação do leitor.
Tradutor sensível e talentoso, Péricles Eugênio da Silva Ra-
mos conseguiu alcançar plenamente nesta coletânea o objetivo
a que se propôs quando empreendeu organizá-la: “transmitir ao
leitor de nossos dias, de modo acessível e em linguagem fiel, embora
a mais simples e viva possível, alguns retalhos daquela grande alma
antiga que nutriu por tantos séculos o pensamento ocidental — e
ainda o nutre, em suas bases mais legítimas”.

10
Apresentação à 2a. edição

A Grande Arte de
Péricles Eugênio da Silva Ramos1

por Rafael Brunhara2

“Muitos anos antes de Cristo havia na Grécia um poeta,


Arquíloco, que dizia: ‘Tenho uma grande arte:
eu firo duramente aqueles que me ferem’.”
“Às vezes você parece maluco. Não sei do que você está falando.”
“Minha arte é maior ainda: eu amo aqueles que me amam.”
Rubem Fonseca - A Grande Arte

N
as últimas décadas, uma questão que vem ganhando no-
vos contornos e respostas é a da recepção da tradução.
Dizendo de outro modo, estamos falando de compre-

1. Este texto recupera em parte a discussão realizada em Brunhara (2021).


2. Professor de Língua e Literatura Grega na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

11
ender a literatura traduzida como parte da História da nossa pró-
pria literatura vernácula. Admitir o papel de obras em tradução
no enriquecimento de nossa literatura eleva a figura do tradutor ao
lugar que lhe é de direito: não mero transportador de significados
de uma língua para outra, mas ele mesmo um artista que faz es-
colhas, recria, enriquece a sua língua e, especialmente, influencia
outros escritores, sejam tradutores ou não. Busca-se, enfim, re-
conhecer que a literatura traduzida, enquanto tradução, também
pode participar da constituição do sistema literário de uma língua
– e é ela um dos principais responsáveis por introduzir o influxo da
literatura estrangeira na língua vernácula. Isso nos leva a algumas
perguntas que, longe de serem meras curiosidades, contribuem
para evidenciar o papel da tradução neste circuito de formação
literária: “como certo autor estrangeiro surgiu pela primeira vez
em vernáculo?”; “Quem o traduziu?”; “Qual a repercussão desta
tradução em nossa literatura?”.
No que concerne à influência do trabalho de Péricles
Eugênio da Silva Ramos (1919-1992) e de sua Poesia Grega e La-
tina, o trecho que abre esta apresentação é ilustrativo. Quando o
escritor Rubem Fonseca (1925-2020) cita os versos do grego Ar-
quíloco – versos que inspiram até mesmo o título de seu romance –
transcreve-os tal como Péricles Eugênio os apresentou em Poesia
Grega e Latina:

Tenho uma grande arte:


eu firo duramente
aqueles que me ferem

12
Algumas edições de Arquíloco dão este poema como o
fragmento número 126 de sua obra, que assim se pode ler, no
idioma original, acompanhado de uma tradução meramente in-
formativa:

ἓν δ’ ἐπίσταμαι μέγα,
τὸν κακῶς ἔρδοντα δεινοῖς ἀνταμείβεσθαι κακοῖς.

[uma <coisa>, porém, eu sei como fazer, grande,


a quem me faz mal responder com males terríveis]

Note o leitor o grau de invenção destes mesmos versos na


tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos: o que numa tradu-
ção informativa, como a lida acima, parece ficar demasiado áspero,
rebarbativo e truncado em português, ganha na versão de Péricles
agilidade e elegância – graças às apuradas escolhas lexicais e ao uso
do hexassílabo, frequente em língua portuguesa, que imprime,
além da brevidade, um ritmo ao mesmo tempo conciso e contun-
dente aos versos, características que também não são incomum na
poesia de Arquíloco.
Sendo assim, o poeta Arquíloco que Rubem Fonseca leu,
conheceu e que inspirou o nome de seu romance foi, antes de
tudo, o poeta Péricles Eugênio da Silva Ramos: foi a habilidade
do poeta paulista em transpor a matéria e o vigor do fragmento
grego de Arquíloco que contribuiu para torná-lo tão memorável
em Português.
Célebre por seu trabalho como tradutor, Péricles Eugênio
dedicou-se a verter ao português os clássicos da literatura mundial,
sobretudo os anglófonos, espanhóis e franceses. Poesia Grega e La-

13
tina, uma de suas poucas incursões pela poesia antiga greco-latina,
reúne poetas diversos num arco que perfaz aproximadamente toda
a chamada Antiguidade Clássica.
Pertencente ao grupo que se autodenominou “Geração de
45” e se definiu pela contraposição à geração modernista de 22 por
meio da retomada de uma dicção mais solene, de formas métricas
tradicionais e maior disciplina formal (BOSI, 2017, p.497), Péri-
cles ocupa um lugar de importância na história da literatura bra-
sileira. À altura da primeira edição de Poesia Grega e Latina, em
1964, o poeta já havia trazido à luz três títulos autorais: Lamen-
tação floral (1946), Sol sem tempo (1953) e Lua de ontem (1960),
e tinha uma carreira consolidada como tradutor, que seguia em
paralelo à sua produção autoral, tendo-a iniciado em 1950, com a
publicação dos Sonetos de Shakespeare.
Poesia Grega e Latina foi o primeiro trabalho a antologiar
e traduzir em larga medida a dita poesia “lírica” da Antiguidade.
O que chamamos modernamente lírica é a conjugação do que
para os antigos gregos consistia em três gêneros distintos: “méli-
ca” – “canção” ou “lírica propriamente dita” – poesia entoada ao
acompanhamento musical da lira; jambo, poesia de invectiva e
agressão verbal; e elegia, poesia composta em dísticos e que era ori-
ginalmente acompanhada pelo aulo, uma espécie de flauta dupla.
Péricles Eugênio da Silva Ramos tinha a consciência de
certo ineditismo desta coletânea no Brasil, como ele anota na “ad-
vertência” da obra:

“Assinale-se, afinal, que nosso trabalho não pretende, de


forma alguma, relevar erudição; pretende apenas trans-
mitir ao leitor de nossos dias, de modo acessível e em lin-
guagem fiel, embora a mais simples e viva possível, alguns

14
retalhos daquela grande alma antiga que nutriu por tan-
tos séculos o pensamento ocidental – e ainda o nutre, em
suas bases mais legítimas.” (RAMOS, 2022, p.31).

Com brevidade, Ramos sublinha aí os critérios que nor-


teiam o seu trabalho: uma transmissão acessível, que tenta res-
peitar o idioma de partida e reproduzir, em vernáculo, o estilo de
cada poeta, no entanto sem enveredar-se por minúcias acadêmicas,
mantendo esta linguagem “o mais simples e viva possível”. É claro
o desejo do poeta-tradutor em fazer uma primeira apresentação
desta poesia para “o leitor de nossos dias”, tornando sua obra um
primeiro contato com a poesia da Antiguidade. Esta orientação o
teria levado a escolher, dentre os mais dificultosos e muitas vezes
fragmentados poemas dos líricos gregos, apenas aqueles que mais
se aproximassem dos ideais vigentes de poesia e gosto:

“É óbvio que a seleção ora apresentada traz apenas os


excertos que nos pareceram mais eloquentes para a sensi-
bilidade atual. Assim, a antologia não pretende ser mais
do que realmente é, uma pequena amostra.” (RAMOS,
2022, p.29).

Nesse sentido, Poesia Grega e Latina ocupa um lugar espe-


cial dentro da obra tradutória de Ramos por seu caráter de divul-
gação e apresentação, o que o eximira de delinear ali um projeto
tradutório específico. Segundo Junqueira, em sua tese de douto-
rado Uma biobibliografia literária de Péricles Eugênio da Silva
Ramos (2018), as linhas gerais do projeto tradutório de Péricles
Eugênio envolviam certa aceitação de intraduzibilidade do origi-

15
nal, que se resolvia em um processo de recriação que estritamente
“parte de um trabalho de compreensão do texto a ser traduzido”
(2018, p.259). Essa recriação deve se dar na mesma forma do texto
de partida: “um texto poético metrificado só pode traduzir-se em
verso, para dar uma ideia do que seja o original” (RAMOS, 1982,
p.10). Evidencia-se, assim, nas traduções de Péricles, uma procura
por ser fiel à letra – isto é, aos termos semanticamente importantes
na língua de partida – mas que seria secundária à emulação da
métrica e do ritmo.
Assim, dois pontos parecem estar em jogo no trabalho
tradutório de Péricles. O primeiro é a adoção de uma estrutura
métrica, posto que a transposição de verso metrificado por verso
metrificado lhe era imperiosa. Mesmo quando praticava o verso
livre, Ramos o praticava à maneira clássica – prezando a polime-
tria vinculada a preceitos rítmicos tradicionais – do que o verso
liberado de toda a regularidade e limite silábico, praticado amiúde
pelos modernistas de 22 (JUNQUEIRA, 2012, p.45). Parece-nos,
aliás, este o primeiro ponto de identificação entre as traduções de
Péricles e a poesia que ele e a Geração de 45 praticavam: o apreço
ao formalismo, revelado em “cuidados métricos e dicção nobre”
(BOSI, 2017, p.497). Em segundo lugar, a determinação da estru-
tura métrica está condicionada à sua possibilidade de acomodar,
na transposição, os traços semânticos das palavras do original sem
grandes perdas.
Outro fator que nos parece constitutivo nas reflexões de
Péricles Eugênio sobre tradução – e nesse ponto seguimos o es-
tudo de Junqueira – é que “a tradução parte de um trabalho de
compreensão do texto” (2018, p.258). Não é afirmação simplória:
Junqueira argumenta que Ramos se aproxima aqui de uma con-

16
cepção, posteriormente consagrada por Haroldo de Campos em
seu artigo “Da tradução como criação e como crítica”, de que a
tarefa do tradutor envolve uma interpretação que não consiste na
busca de um sentido verdadeiro, mas que é, ela mesma, produtora
de sentidos (2018, p.259). Nas palavras do poeta:

“Traduzir é, antes do mais, compreender; mas ninguém


pode garantir que a nossa compreensão do texto seja exa-
ta ou ainda a única exata. Ainda que o fosse, não se
poderia respeitar, escrupulosamente, a sonoridade das
palavras, nem as evocações que essas palavras despertam
com sua simples sonoridade”. (RAMOS, 1970, p.5 apud
JUNQUEIRA, 2018, p.255).

As possibilidades de interpretação, ainda que múltiplas, re-


duzem-se, na concepção de Péricles, respectivamente, a uma deci-
fração do sentido do texto em sua língua original, de sua intenção
e de suas qualidades estéticas. É o que ele afirma, em entrevista
concedida a Moacir Amâncio ao Jornal da Tarde e coligida na
tese de Junqueira:

“Traduzir poesia já é uma coisa um bocado mais amar-


rada. Você tem que pegar um texto original e procurar
compreender o texto. Em primeiro lugar, você vai com-
preendê-lo, é uma questão completamente difícil, porque
às vezes você pensa que está escrevendo uma coisa e está
escrevendo outra. Isso acontece freqüentemente. Então,
você tem de entender o que ele quer; depois ver qual é a

17
qualidade e o nível do texto na língua original”... (RA-
MOS, 1988, p.8 apud JUNQUEIRA, 2018, p.259).

Na orelha da edição de 1964 [aqui reproduzida a partir


da página 5], Ramos parece ser mais claro em relação à vividez e
simplicidade que almejou em Poesia Grega e Latina. Ele vê nos
poetas líricos gregos e romanos uma “simplicidade de linguagem”
que os opõe à poesia épica e aproxima-os de nossa sensibilidade, em
termos de emoção e beleza, como se pudéssemos enxergar, graças a
esse despojamento de linguagem, uma continuidade entre os líri-
cos antigos e a nossa poesia contemporânea. Para comprovar seus
argumentos, menciona o testemunho do estudioso C.M.Bowra,
na então recente obra Greek Lyric Poetry, de 1961:

“Se a épica foi o contributo da Antiguidade mais estimado


pelos autores do Classicismo europeu, a lírica é o que hoje
mais de perto fala à nossa sensibilidade. Em linguagem
miraculosamente despojada (segundo C.M.Bowra, Alceu
e Safo elevaram a simplicidade da linguagem comum “ao
mais alto grau de expressividade”), os líricos da Grécia e de
Roma alcançaram fixar momentos de beleza e de emoção
que nos tocam tão intensamente quanto se fossem obra de
contemporâneos nossos” (RAMOS, 2022, p.9).

O breve parágrafo nos dá uma concepção tradicional dos


gêneros poéticos: oposto à épica por se ocupar de falar à nossa
sensibilidade de maneira significativa, a linguagem da lírica, para
Péricles Eugênio da Silva Ramos, parece ser entendida como
expressiva das afecções e sentimentos de um Eu. Sublinhar o

18
que na tradição antiga da lírica seja eloquente para uma visão
contemporânea do gênero foi a finalidade da coletânea, uma vez
que, para o autor, a expressão subjetiva é um critério que interliga
a lírica do passado e a atual.
A intenção de Poesia Grega e Latina é, ao fim, dar uma no-
tícia, em linguagem poética, dos poetas que representam “a grande
alma antiga que nutriu por tantos séculos o pensamento ociden-
tal” (RAMOS, 2022, p.31). Vejamos agora como esta coleção se
estrutura e como a tradução transmite os poetas.

***
O volume reúne 113 poemas, 92 gregos e 21 latinos. A
seleção é bem diversificada, privilegiando o gênero mélico. É
interessante notar que, até onde pudemos averiguar, Péricles Eu-
gênio é o primeiro a empregar o termo “mélico” para designar a
especificidade do gênero em relação aos demais gêneros também
chamados, modernamente, líricos, como o jambo e a elegia. Com
isso, Poesia Grega e Latina é uma reunião de toda a poesia não-
-épica e não-dramática grega (excetuando o caso de Hesíodo) bem
como dos mais significativos poetas líricos latinos.
O trabalho é pioneiro na escolha dos poetas traduzidos.
Todos os poetas gregos da antologia serão lidos pela primeira vez
em português, exceto por Safo, Píndaro, Arquíloco, Mimnermo,
Hesíodo e Teócrito3. O caso de Anacreonte, poeta do final do

3. Safo já havia sido traduzida no século XIX, sobretudo por Antônio Ribeiro dos Santos, José
Feliciano de Castilho e Antônio José Viale. Uma seleção mais ampla está em Líricas de Safo,
traduzidas do francês em 1942, por Jamil Almansur Haddad (ver FONTES, 2003, p.149-150); as
traduções de Píndaro e Teócrito também remontam ao século XIX, bem como Hesíodo, que con-
tava com uma tradução incompleta de João Félix Pereira, de 1876 (ver MOURA, 2014). Arquíloco
e Mimnermo recebem traduções no volume Elegíacos Gregos (1941).

19
séc. VI a.C., é complexo: apesar de sua grande influência na lírica
ocidental, as traduções do século XIX não o traduziram de fato,
e sim a Anacreontea, imitações presentes em uma coletânea que
remonta ao século III a.C. Péricles Eugênio limita-se a traduzir os
fragmentos atribuídos ao próprio Anacreonte e, sobre a Anacreon-
tea, apenas observa que “por vezes, são mais anacreônticas do que
as peças do próprio Anacreonte” (2022, p.90). Dos latinos, além
dos nomes mais notórios – Catulo, Propércio, Ovídio e Horá-
cio − apresenta-se uma rara seleção de poetas até então pouco ou
nunca traduzidos: Ausônio, Petrônio, Pentádio e o extenso poema
Pervigilium Veneris, de autoria desconhecida.
Ramos não ignora o rigor filológico de suas traduções,
embora seja parcimonioso ao tratar de suas escolhas, indicando
apenas em alguns pontos de onde provém o texto do qual se serviu
para a tradução. Caso significativo é a tradução do poema de Safo
“Eu vos rogo, ó cretenses” (2022, p.72), coligido em edições mo-
dernas da poeta lésbia como o fragmento 2. A tradução de Péricles
é a primeira deste poema em português e, talvez pelo caráter de
novidade – o poema havia sido descoberto há poucos anos −, o
poeta registra a história de sua descoberta, desde a sua decifração
em 1937 pela filóloga Medea Norsa em um óstraco do século II
a.C. até a sua publicação em Greek Literary Papyri Texts, de Denys
Page, em 1941, de onde extrai o texto grego que lhe serviu de base.
Quanto aos outros, dá-nos indícios nas notas de que con-
sultou as edições e as traduções editadas pela Loeb Classical Li-
brary, feitas por J.M.Edmonds: os três volumes de Lyra Graeca,
de 1922, reunindo os poetas mélicos, e os dois volumes de poesia
elegíaca e jâmbica, Elegy and Iambus, de 1931. Para Hesíodo e
Arquíloco, cita também os volumes bilíngues da coleção francesa

20
Belles Lettres, de autoria, respectivamente, de Paul Mazon (1951) e
André Bonnard e François Lassere (1958). O helenista de Oxford
Gilbert Murray (1866-1957) figura como a mais importante refe-
rência de Ramos para a compreensão e interpretação dos poetas.
Sua obra A History of Ancient Greek Literature (1901) é amiúde
citada nas breves introduções de cada poeta e deve ter sido a prin-
cipal fonte em sua elaboração. Outros trabalhos mencionados são
os de John G. Griffith (“Early Greek Lyric Poetry”, 1954) e os
Prolegomena to the Studies in Greek Religion de Jane Harrison
(1922), de onde se serviu do capítulo de Murray ali presente para
traduzir as Lâminas Órficas (2022, p.146).
Péricles Eugênio demonstra um conhecimento meticuloso da
metrificação greco-latina, como mostra Oliva Neto (2015, p.154) ao
analisar a tradução do dístico elegíaco do poema II, 27 de Propércio
(“Da Morte e do Amante”, 2022, p.189), que logra recriar efeitos do
verso original servindo-se de metros da tradição vernácula.4
Segundo Oliva Neto (2015, p.152), ainda, esta é “a única vez
que Péricles Eugênio adotou esse modelo para traduzir o dístico
elegíaco antigo”. De fato, os recursos empregados por Péricles para
traduzir os poetas da coletânea são variados e em grande medida
não têm a preocupação de recriar o ritmo do original tampouco
de manter o mesmo número de versos. Outro recurso adotado é
dar títulos aos poemas, que muitas vezes cumprem uma função
explicativa. Citemos o exemplo do fragmento 1 de Mimnermo,
que Ramos intitulou “Sem a Afrodite de Ouro”:

4. Em resumo, Ramos “traduz” o hexâmetro datílico latino por um alexandrino perfeito e o “pen-
tâmetro” datílico por um decassílabo heroico para reproduzir o encurtamento das sílabas finais
do pentâmetro em relação ao hexâmetro. Este método, aliás, tem larga recepção na tradução de
poesia antiga no Brasil, por ser critério recorrentemente adotado por Oliva Neto e seus discípulos,
que o consagraram como opção para traduzir o dístico elegíaco.

21
SEM A AFRODITE DE OURO

SEM a Afrodite de ouro,


que vida existe, ou que doçura?
Melhor morrer, quando eu não mais tiver
os amores secretos e os presentes
de puro mel e o leito:
porque da juventude breves são as flores
para homens e mulheres.
Quando chega a velhice dolorosa
que os belos homens torna repulsivos,
cruéis preocupações desolam a alma:
o homem não mais se alegra olhando a luz do sol,
mas é odioso aos jovens
e objeto do desprezo das mulheres:
de tantos males deus cobre a velhice.

22
A seguir, a comparação com o original grego e uma tradu-
ção própria:

(Grego, ed. Edmonds, 1931)

τίς δὲ βίος, τί δὲ τερπνὸν ἄτερ χρυσῆς Ἀφροδίτης;


τεθναίην, ὅτε μοι μηκέτι ταῦτα μέλοι,
κρυπταδίη φιλότης καὶ μείλιχα δῶρα καὶ εὐνή,
οἷ’ ἥβης ἄνθεα γίγνεται ἁρπαλέα
ἀνδράσιν ἠδὲ γυναιξίν· ἐπεὶ δ’ ὀδυνηρὸν ἐπέλθῃ
γῆρας, ὅ τ’ αἰσχρὸν ὁμῶς καὶ κακὸν ἄνδρα τιθεῖ,
αἰεί μιν φρένας ἀμφὶ κακαὶ τείρουσι μέριμναι,
οὐδ’ αὐγὰς προσορῶν τέρπεται ἠελίου,
ἀλλ’ ἐχθρὸς μὲν παισίν, ἀτίμαστος δὲ γυναιξίν·
οὕτως ἀργαλέον γῆρας ἔθηκε θεός.

(Trad. Ragusa & Brunhara, 2021)

Que vida, que prazer sem a áurea Afrodite?


Que eu morra, quando isto não mais me interessar:
enlace secreto e doces dons e leito –
tais são da juventude as flores atraentes
a homens e mulheres. Mas quando sobrevém dolorosa
velhice, que similarmente asqueroso e feio faz o homem,
sempre em redor dos sensos o angustiam vis anseios,
e, olhando a luz do sol, ele não se deleita,
mas é detestável aos meninos e desonrado às mulheres:
assim repugnante o deus dispôs a velhice.

23
O metro empregado no texto original deste poema é tam-
bém um dístico elegíaco, como no poema de Propércio, porém
Ramos adota um critério diferente. Notamos, da comparação
com o texto grego, que o número de versos do original aumenta
de dez para catorze, e o poeta adota versos polimétricos, que va-
riam de 6 a 12 sílabas em um andamento predominantemente
binário. Oliva Neto lamenta o silêncio do tradutor quanto à sua
prática e se questiona porque Ramos não fez como no poema de
Propércio “para verter outros poemas gregos e latinos escritos em
metro idêntico” (2015, p.152). Temos uma hipótese: assim como
em outras de suas traduções poéticas, Ramos buscou em Poesia
Grega e Latina primeiramente metros que evitassem “o sacrifício
essencial ou deveras significativo de palavras” (RAMOS, 1982,
p.10) sem necessariamente a intenção de reconstruir com exati-
dão a estrutura rítmica do texto grego, mas ainda mantendo-se
fiel ao seu critério de sempre traduzir textos poéticos metrificados
por verso.
Os versos adotados em Poesia Grega e Latina se asseme-
lham aos versos livres autorais de Péricles Eugênio, muitos deles
marcados pela alternância de 8 a 20 sílabas em ritmo binário,
segundo um critério de metrificação silábico-acentual que admite
sílabas semifortes para realçar tal andamento. 5 O próprio poeta,
em sua introdução à Poesia Quase Completa, explicita o seu mé-
todo, também usado em suas traduções dos gregos:

5. Ver Junqueira, 2018, pp. 34-56.

24
“Já no 1º poema de Lamentação floral, de resto, como
em muitos outros desse livro, eu havia sistematizado o
meu próprio verso livre, fazendo-o flutuar de oito a vin-
te sílabas, num ritmo sustentadamente binário. Desco-
nheço precedentes da sistemática de Lamentação floral
e Sol sem tempo, bem como do andamento, também
binário, dos dois poemas em prosa de Lua de ontem.
Mostra isso que o autor não procurava repetir ninguém,
mas pelo contrário moldar seu próprio verso livre em
bases rítmicas binárias...” (RAMOS, 1972, p. xiii apud
JUNQUEIRA, 2018, p.35).

Mostre-se de exemplo os primeiros versos do poema “Na-


tureza Morta 2”, de Poesia Quase Completa (1972), nos quais, de
modo similar à sua tradução de Mimnermo, prevalece a polime-
tria, com versos de 5 a 10 sílabas, em ritmo binário:

É a mesma sala,
sombria de terrores e suspeitas,
coberta pela noite;
os móveis conhecidos,
o armário, a mesa, as cadeiras,
vidros e louças;
nave quadrada, barca de sombras
que se desfarão nem bem se fira
o interruptor.

25
O que podemos observar, assim, é que Poesia Grega e La-
tina, publicado já em momento maduro da carreira poética de
Péricles Eugênio da Silva Ramos – quatro anos depois de Lua de
Ontem, uma de suas últimas obras autorais (Noite da Memória,
último livro, viria à luz apenas em 1988) – é, não só, divulgação
da poesia lírica antiga, em grande parte inédita no Brasil, mas
também a adequação dessa lírica à nossa sensibilidade e, como
se vê, a uma poética pessoal, revelada na grande perícia técnica
de um poeta consolidado que se põe, com louvores, a serviço de
transmitir a “grande alma” do mundo antigo.
E, agora, depois de muito tempo fora de circulação, o
leitor poderá apreciar, nesta nova e cuidadosa edição da Editora
Madamu – fidedigna à edição original de 1964 – a poesia lírica
reanimada à luz da poética de um dos mais importantes autores
da Geração de 45.

26
Referências

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Belle Lettres, 1958.
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1961.
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ricles Eugênio da Silva Ramos”. In: Ferreira, R. M. C.;
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brasileira: perspectivas contemporâneas. Campo Grande: Ed.
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1968 [1ª ed. 1954], 50-82.
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ton: Princeton University Press, 1922.
Junqueira, J. F. P. N. Uma biobibliografia literária de Péricles
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tado de São Paulo, 2018. Tese de doutorado.

27
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mos: o ritmo como fator constitutivo. Araraquara: Universi-
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Mazon, P. (ed. e trad.). Hesiode. Theogonie, Les travaux et les jours,
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Moura, A. R.. As Obras e os Dias, por João Felix Pereira. Nun-
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Ragusa, G.; Brunhara, R. Elegia Grega Arcaica: uma Anto-
logia. Cotia, SP: Ateliê/Araçoiaba da Serra, SP: Mnēma,
2021.
Ramos, P. E. S. Poesia Grega e Latina. São Paulo: Madamu, 2022.
______. Poesia Quase Completa. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio Editora, 1972.
______. Virgílio. Bucólicas. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1982.
Advertência

N
o presente volume incluem-se poetas líricos gregos e
latinos, se não todos — o que seria tarefa inviável, uma
vez que de muitos nos restaram apenas os nomes, sem
nenhum fragmento aproveitável para as finalidades desta coletâ-
nea —, pelo menos a maior parte daquelas grandes figuras de que
se salvou alguma coisa. É óbvio que a seleção ora apresentada traz
apenas os excertos que nos pareceram mais eloquentes para a sen-
sibilidade atual. Assim, a antologia não pretende ser mais do que
realmente é, uma pequena amostra.
Dos gregos, estão representados os nove grandes mélicos do
cânone alexandrino, a saber: Alcmã, Alceu, Safo, Estesícoro, Íbico,
Anacreonte, Simônides, Píndaro e Baquílides; também dois dos
três poetas iâmbicos do cânone, o aventuroso Arquíloco e Semô-
nides de Amorgos, bem como alguns dos mais notáveis elegíacos,
como Mimnermo, Sólon, Teógnis. A coleção abre com um poeta
didático, Hesíodo, mas com um excerto de Os Trabalhos e os Dias

29
que teve imitação em poeta mélico; e termina com alguns poetas
da Antologia Palatina, precisamente com Paulo, o Silenciário, de-
pois de passar por vários mélicos menores e por Teócrito, o pai da
poesia bucólica.
Dos latinos, traduzimos poemas de Catulo, Horácio, Ti-
bulo, Propércio e Ovídio, bem como de alguns “menores” e o Per-
vigilium Veneris, o que, se é mostra muito longe de completa, ao
menos dá para que se faça uma ideia dos versos dos maiores líricos
peninsulares.
A poesia da Hélade e de Roma, principalmente a partir
do Renascimento, permeou o lirismo ocidental. Seu alcance e sua
variedade de expressão foram tão amplos — apesar das fortes tra-
vas conservadoras que eram uma das constantes clássicas — que
muitas das “novidades” de hoje ostentam similares que já eram
conhecidos na antiguidade helênica: pródromos do “verso livre”
(apolelyména) e da “poesia concreta” (technopaígnion) remontam a
séculos antes de Cristo: bastaria citar Timóteo e Símias de Rodes.
Procuramos, ao transpor para nossa língua os nomes pró-
prios, ater-nos às regras de importação, embora às vezes isso não
tenha sido possível, para não fugirmos ao uso corrente: assim man-
tivemos Sólon, em vez de Solão, que talvez chocasse, e deixamos
Ion em vez de Ião, por motivo igual.
Vários dos poetas desta crestomatia — colocados pela or-
dem do seu floruit (40 anos) — possuem altíssimo valor: assim o
classicista inglês John M. Edmonds não hesita em situar alguns
trenos e epitáfios de Simônides, com os fragmentos de Safo e versos
de Píndaro, entre as mais belas flores vivas do gênio helênico, ao
mesmo título que o Partenon ou os diálogos platônicos.

30
Assinale-se, afinal, que nosso trabalho não pretende, de
forma alguma, relevar erudição; pretende apenas transmitir ao lei-
tor de nossos dias, de modo acessível e em linguagem fiel, embora
a mais simples e viva possível, alguns retalhos daquela grande alma
antiga que nutriu por tantos séculos o pensamento ocidental — e
ainda o nutre, em suas bases mais legítimas.

PÉRICLES EUGÊNIO DA SILVA RAMOS


São Paulo, 1964

31
POESIA GREGA
HESÍODO

Hesíodo, que provavelmente floresceu no século VIII a.C., adaptou o verso


épico a uma poesia em que fala da vida agrícola, da vida real de todos os
dias, e dele mesmo — o que era novo na poesia grega, a menos que a nota
pessoal já ressoasse na poesia eólia. Quase tudo o que circula a respeito do
Poeta é lendário. Segundo os dados constantes de sua obra, o pai dele morava
na Eólia, em Cime, donde se deslocou para a Beócia, Foi aí, em Ascra, que
Hesíodo nasceu, e lá cultivou os campos e poetou. Um dia atravessou o mar e,
na Eubeia, concorreu nos jogos fúnebres em honra de um chefe, Anfídamas;
venceu os outros poetas e consagrou às Musas Helicônias a trípode que recebera
como prêmio. Morreu em Ascra; quando o lugar foi destruído e os sobreviventes
recolhidos a Orcómeno, os habitantes desta cidade, por ordem de um oráculo,
levaram também as cinzas de Hesíodo, colocando-as no centro da ágora, em
túmulo ao lado do de Mínias, o epônimo da raça.
Embora a antiguidade atribuísse numerosas obras a Hesíodo, verdade
que controversamente, Pausânias nos informa que no vale das Musas, na
Beócia, só se reconhecia como autêntico o poema Os Trabalhos e os Dias. São
os versos 582 a 596 desse Poema que damos em tradução.

34
VERÃO1

QUANDO floresce o cardo e, na árvore, a cigarra


verte de sob as asas doce canto estrídulo,
no tempo em que o verão é fatigante,
mais gordas veem-se as cabras e melhor o vinho,
mais sensuais as mulheres, débeis os varões:
— Sírius lhes queima a fronte e os joelhos, e o calor
lhes seca a pele. Oh, possa eu ter, nessa ocasião,
a sombra de uma rocha, vinho bíblino,
pão e leite de cabras que já desmamaram,
e carne de novilha que pastou no bosque
e ainda não deu cria, ou, caso falte,
de cordeirinhos do primeiro parto.
E possa eu, para beber o vinho negro,
à sombra me estender, de coração feliz
com o meu banquete, e, dando o rosto ao vento oeste,
junto a fonte perpétua, viva e imperturbada,
mesclar três partes de água e uma de vinho.

1. Esses versos parecem ter sido famosos na antiguidade; a propósito, Proclo cita uma imitação
de Alceu (fr. 161 Edmonds; Lyra Graeca, I). Vinho bíblino — de Bíblina, região da Trácia. “Vin de
Biblos” é como traduz Paul Mazon (Hésiode, Paris, Les Belles Lettres, 1951). Cardo, no verso 1,
traduz “scólymos”, que é uma espécie de cardo comestível ou alcachofra.

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