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Construindo Pontes e Travessias - Das Mediações Sociais À Mediação Intercultural

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Construindo pontes e travessias: das mediações sociais à mediação intercultural

RICARDO VIEIRA ANA VIEIRA


rvieira@ipleiria.pt ana.vieira@ipleiria.pt
CICS.NOVA.IPLeiria CICS.NOVA.IPLeiria

Resumo
Neste texto clarificam-se alguns conceitos e pilares habitualmente afetos à
Palavras-chave:
mediação. Particularmente, distingue-se a mediação intercultural que dentro de Mediações sociais; mediação Intercultural; tolerância versus respeito;
todas as mediações sociais é a que mais investe na prevenção, transformação, hermenêutica multitópica; neutralidade versus multiparcialidade.
educação e reabilitação. Discute-se a neutralidade e a imparcialidade e sugere-se a
opção pelo conceito de multiparcialidade que permite conciliar a empatia com as
partes, no sentido da compreensão émica, e, simultaneamente, com a busca da
equidade. Critica-se o uso abusivo do conceito de tolerância e propõe-se o de
respeito como pilar da convivência entre diferentes.
Assume-se a mediação intercultural como tendo potencialidade para atravessar
todas as mediações socioculturais (familiar, comunitária, pessoal, laboral,
escolar...) se se assumir o intercultural como paradigma que rompe com o
culturalismo. Desta forma, a mediação intercultural não está presente apenas em
contextos de forte multiculturalidade como é o exemplo da coexistência de pessoas
migrantes.

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Abstract Key concepts:


This text clarifies some concepts and pillars usually related to mediation. Social mediations; Intercultural mediation; Tolerance versus respect; multitopical
Particularly, intercultural mediation is distinguished in all social mediations as the hermeneutics; Neutrality vs. multiparciality.
one that invests most in prevention, transformation, education and rehabilitation.
Neutrality and impartiality are discussed, and the option for the concept of
multiparciallity is suggested, which allows us to reconcile empathy with the
parties in the sense of the empirical understanding and, at the same time, the
search for equity. The abusive use of the concept of tolerance is criticized and
respect is proposed as a pillar of coexistence between different people.

Intercultural mediation is assumed to have the potential to cross all sociocultural


mediations (family, community, personal, work, school ...) if the intercultural is
assumed as a paradigm that breaks with culturalism. In this way, intercultural
mediation is not only present in contexts of strong multiculturalism, as is the
example of the coexistence of migrants.

1. Mediar: construir pontes e travessias Vieira, R. 2016).


Qualquer tradução implica um vai e vem entre sentidos de diferentes Facilmente se ouve falar de mediação familiar, sociocultural, de me-
margens linguístico-culturais. Assim, numa primeira abordagem, diação de conflitos, de mediação de seguros, mediação laboral, me-
podemos dizer que mediar é traduzir, no seu sentido antropológico. diação intercultural, entre outras.
A mediação é, nesta linha, uma estratégia de construção de pontes e A mediação educativa, escolar e mediação sociopedagógica são,
trânsitos entre pessoas, diferentes pontos de vista e fronteiras cultu- também, conceitos cada vez mais veiculados por parte dos profissio-
rais. Claro que pomos, desde já, em segundo plano, as técnicas de nais da educação e nas intenções de alguns projetos educativos (Ca-
mediação, vulgo mediação de conflitos, associadas à mediação clás- ride, 2005; Peres, 2010, entre outros).
sica, e que tantas vezes esquecem os choques de cultura que estão Quando nos referirmos à mediação, enquanto área e conjunto de
por detrás de questões aparentemente só interpessoais (Vieira, A. & competências transversais a várias profissões, e como uma filosofia

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hermenêutica, assumimos a comunicação interpessoal e intercultural tica, visto que fomenta a livre tomada de decisões e compromissos.
(Vieira, R., 2011; Vieira, A., 2013) como tradução sistemática de Mas este processo não é automático. Como refere Torremorell
interesses das partes numa interação e por vontade dos implicados. (2008: 8), “[…] não deduzimos que os processos de mediação, por si
Na mediação entre diferentes valores culturais, o trabalhador social e só, venham a construir a ponte social para um futuro mais humani-
o educador emergem como mediadores entre os grupos sociais e as zado, mas sim que tais processos talvez assentem uma das pedras
mais diversas instituições públicas e privadas, apoiando-se numa que nos ajudarão a cruzar o rio e ambos os sentidos ”.
hermenêutica multitópica (Vieira, A., 2013) com vista à concretiza- Por vezes há uma visão simplista da mediação aplicada a nível co-
ção dos direitos e dos interesses dos grupos e sujeitos em causa na munitário, penal, familiar, laboral, escolar, internacional. Tal pode
interação. A finalidade do processo de mediação é buscar a autono- levar-nos a considerar como uma via secundária de condução de
mia desses grupos e pessoas, o tão referido, hoje, empowerment. conflitos, sendo a principal a via legal. Se for feita uma reflexão
Para Maria Torremorell (2008), o papel transformador e humaniza- mais pormenorizada, descobrem-se os inumeráveis valores compre-
dor da mediação deverá passar da simples instância do processo ju- endidos no processo de mediação (Jares, 2007).
dicial, ou de uma alternativa ao mesmo, para vir a ocupar um lugar A tão propagada expressão “resolução de conflitos” reporta-nos,
central de uma nova cultura universal. Trata-se de um debate inicia- muitas vezes, para o conceito de eliminação dos conflitos. Já a ex-
do, mas muito aberto, ainda (Baptista, 2009; Caride, 2005; Vieira, R. pressão “gestão de conflitos” não pretende acabar com os conflitos
& Vieira, A., 2016; Vieira, A. & Vieira, R., 2016). (coisa impossível), mas sim, antes, resolvê-los. Aqui, a mediação é
A mediação intercultural pressupõe um avanço na desejada coesão vista apenas como uma técnica, uma ferramenta utilizada nas rela-
social. Inclui os diferentes participantes no conflito, promove a ca- ções interpessoais com problemas complexos. Na realidade, na me-
pacidade de compreensão, aceitando as diferentes versões da reali- diação combina-se uma atitude cultural com um manejo de técnicas.
dade, defende a pluralidade e contribui para a participação democrá- É esta ligação a chave da mediação.

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Quanto à presença do terceiro termo, “o terceiro” refere-se ao medi- guém – optam por falar em “multiparcialidade”, ou seja, tomar par-
ador como pessoa, ou à equipa que assume a função de ponte, liga- tido por todos. Estar com todos. Ouvir todos. Compreender todos a
ção ou catalisador dos processos de mediação. A terceira parte pres- partir dos seus próprios pontos de vista. Tal implica atitudes inde-
supõe e condiciona a existência de duas partes: “A estrutura ternária pendentes e empáticas por parte do mediador. E, se a empatia não é
implica abertura, uma vez que o terceiro rompe a dualidade em que neutral, não há neutralidade na mediação intercultural (Vieira, A., &
os dois seres se encontram envolvidos” (Torremorell, 2008: 23) e é Vieira, R., 2016).
para eles um ponto de referência comum. Finalmente, nas palavras de Capul e Lemay (2003: 113), “a media-
No que respeita à questão da neutralidade em mediação, que é um ção é, portanto, esta arte do “entre-dois” em que o educador funciona
dos aspetos mais polémicos da mediação, pelo menos da intercultu- como o intermediário privilegiado entre o que ainda não é mas se
ral, quando se fala do mediador, é verdade que o mediador tem de constitui silenciosamente e o que virá numa série de gestos combina-
“manter uma posição equilibrada e equidistante dos protagonistas do tórios, por ter sabido situar-se em devido, entre um estímulo forte e
conflito com o objetivo de garantir que o processo não se vicie, nem um organismo desejoso de o utilizar”.
se atue com base em preconceções” (idem, p. 23), mas também é
2. Na mediação sociocultural, escuta, entendimento e respeito
verdade que “nunca ninguém deveria ter tido a ideia de ser neutro. pelo outro a tolerância não basta
Nunca houve neutralidade, nunca há, e nunca existirá. Creio que a Mediar implica uma escuta ativa e o entendimento do outro. De to-
única maneira de ser neutro é estar morto” (Galtung, 1995 in Tor- dos os outros, na sua própria racionalidade (lógica e entendimento)
remorell, 2008: 23-24). Assim, passou-se, mais recentemente, a falar (Vieira, A., & Vieira, R., 2016). Por isso, não basta tolerar, é preciso
de imparcialidade em vez de neutralidade, embora alguns autores respeitar, ainda que discordando de algumas tomadas de posição
continuem a achar tal conceito uma abstração. Há, ainda, autores que do(s) outro(s). Mediar socioculturalmente é encontrar terceiros luga-
em vez de falarem em imparcialidade – não tomar partido por nin- res de entendimento entre posições à vezes extremadas, que não são

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ainda, necessariamente, conflito mas que são já relações de discórdia tornou-se, de repente, arma usada em muitos discursos políticos e
e alguma tensão social. político-partidários a favor da paz e da salvação do mundo. Mas, ser
Há, desde logo, aqui, alguma reconceptualização necessária a fazer tolerante não basta. Não cremos que seja o caminho de podermos ser
em torno do conceito de tolerância. A mediação sociocultural não diferentes e vivermos juntos (Touraine, 1999). Quando muito pode-
pretende introduzir a tolerância entre os agentes sociais envolvidos ríamos viver justapostos mas segregados e não comunicantes. A via
como o fim de um processo de reconciliação. A mediação tem que da tolerância, como produto acabado, não parece ser o caminho da
buscar transformações (Vieira, A. & Vieira, R., 2016). E de todos os transformação diatópica (Santos, 1997) ou multitópica, de que falá-
envolvidos. Transformações que têm de assentar num entendimento mos, conducente a uma sociedade mais intercultural. Pelo contrário,
do entendimento do outro, aquilo que é vulgarmente definido como a tolerância passiva promove a segregação.
hermenêutica. Mas não numa hermenêutica unilateral, do dominante Se se tolera a intolerância, aceita-se a injustiça. Então um mediador
que procura entender o mais frágil ainda que o venha apenas a tole- vai tolerar e sugerir a tolerância sobre quem agride outrem? Ou o
rar. Urge que o mediador sociocultural potencie hermenêuticas mul- mediador sociocultural tem de agir e, nesse momento, abandona os
titópicas (Vieira, A., 2013; Vieira, 2011) que levem ao entendimento princípios da mediação clássica, assentes na neutralidade e na im-
e respeito, que não significa, necessariamente, concordância e identi- parcialidade e tem de intervir, socialmente, tomando parte (uma
ficação, e não apenas à tolerância. blasfémia para os fundamentalistas da mediação clássica) sob pena
É por isso que dizemos que tolerar não basta (Héritier, 1999; Vieira, de assistir e permitir a aprovação e reprodução da violência, seja ela
2011; Vieira, R. & Vieira, A., 2016). Nos tempos modernos, o termo de que tipo for? Complexo, provavelmente controverso e criticável
“tolerância” só adquiriu uma conotação positiva a partir do século pelos fundamentalistas da mediação de conflitos, mas que se prende
XIX, com o livre pensamento. Até aí, a religião condenava a tole- com realidade social, aquela que nos interessa, e não apenas com
rância eclesiástica em relação aos “não crentes”. Hoje, a tolerância técnicas, exercícios e princípios abstratos e gerais para usar formas

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de conciliação sem compreensão de contextos e identidades para conviver, para satisfazer a vida possível. Não se pode ser nem de-
produzir transformações (Vieira, A. e Vieira, R., 2016). pendente, nem independente demais.” (Demo, 2005: 83).
Defendendo a mediação como um processo pedagógico, transforma-
3. Mediações e transformações identitárias entre mundos e
dor e reabilitador como já vimos, Torremorell considera 5 níveis de contextos culturais
análise do valor pedagógico da mediação: 1) a mediação consigo Qualquer aprendizagem produz (trans)formações. Transformações
própria (intrapessoal), que se prende com a formação integral do em termos cognitivos, como é o caso da aprendizagem do cálculo
cidadão; 2) a mediação como processo de promoção da convivência matemático, económico e de todas as literacias, mas não só. Há uma
com a alteridade (interpessoal); 3) a mediação como “coeficiente de transformação do eu sempre que se aprendem novos conhecimentos,
coesão (intragrupal) que remete para a comunicação dentro dum seja na escola, seja nos diversos contextos culturais (Vieira, R. &
mesmo grupo ou comunidade; 4) a mediação como intercomunica- Vieira, A., 2016; Vieira, A. & Vieira, R., 2016).
ção entre grupos (intergrupal); 5) a mediação como cultura que pro- E essa aprendizagem/formação, se efetivamente houver apreensão,
move “competências culturais no sentido em que promove atitudes que implica autoconstrução (Vieira, 2014), origina transformações
de abertura em relação a outras formas de entender a existência ou, cognitivas (Vieira, 2011). Por isso a formação é transformação (Pi-
o que vai dar ao mesmo, capacidade para gerar empatias com signi- neau, 1983; Nóvoa e Finger, 1988); Vieira, 2011). Mas as aprendi-
ficações socioculturais e referentes axiológicos diversos” (Torremo- zagens operam, também, transformações culturais e identitárias (Vi-
rell, 2008: 76). eira, 2009; 2014). Ninguém aprende no vazio cultural, pelo que as
A terminar este ponto que sublinha a dificuldade da construção da aprendizagens cognitivas são acompanhadas de identificações e de-
convivência entre diferentes e do papel que as mediações sociocultu- sidentificações com os textos e contextos de aprendizagem e de
rais devem ter para o efeito convém reter que “o ser humano vacila aquisições e rejeições culturais. Da triangulação complexa entre a
entre ter de se impor, para satisfazer sua pretensão de sujeito, e autoformação, a heteroformação e a ecoformação (Pineau, 1983)

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pode, assim, resultar a emergência de novas formas culturais, tercei- da um com a sua história de vida, daí resultando ora processos de
ras culturas (Brockman, 1998) e, nas pessoas, em concreto, submeti- interação de forma mais dialogante, intercultural, mediadora, criado-
das a novas formações e aprendizagens, terceiros instruídos (Serres, ra e transformadora, ou, pelo contrário, mais acentuadores e vincula-
1993). O sujeito (trans)formado renasce de novo. Já não é apenas dores de fronteiras pessoais e sociais que se transformam em etno-
produto de uma socialização primária num dado contexto. É agora culturais e, por isso mais monoculturais (Barth, 2004).
um terceiro instruído; uma terceira, quarta, quinta e mais dimensões Compreende-se que quem vive a estabilidade cultural com poucas
de ser e estar; uma (re)construção identitária, uma recriação entre o interações com a alteridade tem tendência a ter atitudes mais mono-
background já possuído e as alternativas culturais constatadas e inte- culturais e mais próximas do comportamento modal da cultura onde
riorizadas pelo indivíduo. se inserem originalmente com os seus pares e seus familiares (Viei-
ra, 2009). As que, por diversas razões, sofrem processos de mobili-
Falar de mediação intercultural é admitir que terá de haver transfor-
dade social, quer ascendente quer descendente, ou atravessam vários
mações das partes envolvidas, em termos de atitudes, comportamen-
contextos socioculturais na trajetória social em função de processos
tos, representações e ações, por forma a se encontrarem plataformas
migratórios, de processos de escolarização ou outros, são submetidas
de entendimento que não são pontos aritméticos fixos, mas, antes,
a processos de metamorfose cultural e reconstroem, assim, as suas
terceiros lugares móveis, consoante as temáticas e acordos em dis-
identidades pessoais: reconstrói-se a imagem que o eu tem de si e a
cussão. Mas este processo não é linear e nem sempre tem finais de
que oferece aos outros (Dubar, 2006).
história felizes, tal como nos filmes românticos. Os choques de cul-
No caso do imigrante, este procura construir o seu novo eu, situado
tura e os choques interpessoais, que não deixam de ser, também,
entre a cultura de origem e a cultura de chegada, separando esses
choques culturais, estão sempre eminentes como hipótese presente e
dois mundos, conciliando-os ou construindo uma terceira dimensão
futura. Por isso é importante refletir sobre os choques de cultura rea-
identitária, procurando a via mais segura do ponto de vista ontológi-
lizados, diferentemente, consoante os indivíduos que interagem, ca-

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co (Serres, 1993). Falamos, portanto, da complexa questão das estra- conflitos: voluntariedade; confiança; ajuda às partes; neutralida-
tégias que os sujeitos adotam para gerir os múltiplos contextos cultu- de/equidistância/imparcialidade; coprotagonismo das partes; ganho
rais de uma forma que entendem menos invasiva na edificação per- de todos; legitimação. Ainda que Gimenez considere 3 modelos
manente da sua identidade pessoal e social, de modo a evitar a crise principais de mediação e assuma que o princípio da neutralidade que
identitária à qual estão particularmente sujeitos na situação de pro- passou a ser substituído pelo de imparcialidade e, mais recentemen-
cesso migratório. te, pelo de equidistância continua a ser o princípio mais controverso,
A gestão das identidades apresenta-se como um terreno dilemático e essencialmente quando se pensa em mediação intercultural e no pa-
conflituoso, de negociação incessante entre as condições objetivas e
pel do mediador que, do nosso ponto de vista, é um interventor e,
subjetivas.
portanto, nunca neutro (Vieira, A. & Vieira, R., 2016), parece estar
4. Reflexões finais: Mediações socioculturais e mediação
intercultural. Da prevenção, gestão, resolução de conflitos e um pouco refém das dimensões técnicas da mediação clássica. Como
domínios da mediação interculturalOs sub-pontos têm a mesma se a mediação intercultural tivesse apenas a especificidade de lidar
letra dos pontos e são indentados.
com diferenças culturais acentuadas originadoras de choques de cul-
Um dos grandes defensores da mediação intercultural em Espanha,
turas entre pessoas, grupos e comunidades. Ainda assim, historiando,
Carlos Gimènez (2001, 2010), professor da Universidade Autónoma
modelando, e bem, o desenvolvimento da mediação, Gimenez
de Madrid, considera que a mediação intercultural se inscreve na
(2001) considera os seguintes modelos principais de mediação: 1-
mediação em geral e que a sua especificidade tem a ver com o facto
modelo de Harvard ou modelo linear que se debruça, essencialmente
de se interessar pelo processo mediador, para além do conflito, e
e finalmente, sobre problemas, interesses e acordos negociais; apos-
pela aplicação dos modelos gerais da mediação a contextos de acen-
ta, essencialmente, em técnicas para atingir objetivos e produtos ide-
tuada multiculturalidade. Desta forma, para Gimenez (2001), subja-
alizados sem olhar, minimamente, à transformação, à prevenção e à
zem à prática da mediação intercultural os mesmos princípios da
revalorização dos protagonistas; 2- modelo transformativo, em que
mediação geral tão queridos à mediação ligada à resolução/gestão de

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esse, sim se interessa particularmente, pelo reconhecimento e pela monocultural, tão próxima do assimilacionismo] que fomente a coe-
revalorização; 3- modelo circular-narrativo em que o objetivo é, são social e promova a autonomia e inserção social das minorias.
também, atingir uma conciliação mas através da criação de histórias Nesta linha, estamos mais próximos do trabalho de Torremorell
alternativas que os protagonistas do processo mediador passam a (2008) e de AAVV (2008), autores já explorados anteriormente. Cla-
narrar com busca à conciliação. ro que as técnicas poderão ser necessárias no final da linha se todo o
Ora, parece-nos que, independentemente de se poderem considerar trabalho preventivo fracassar.
técnicas comuns à mediação geral também para a resolução de ten- Aquilo que à luz da lei, da jurisprudência, dos costumes e aos olhos
sões e conflitos entre sujeitos e grupos etnoculturalmente diferencia- do Homem médio poderá ser visto como justo ou injusto, poderá não
dos, deverá haver uma particularidade mais acentuada da mediação ser considerado dessa forma pelas partes ou poderá não representar a
intercultural. De contrário, por que razão atribuir um novo nome a solução ideal para o caso em questão.
uma mediação que teria, também, como objetivo, em última instân- Um despejo de um prédio urbano (apartamento) apenas porque os
cia, a resolução de conflitos? Claro que se podem usar, também as habitantes são de etnia cigana, poderá configurar um exemplo de
técnicas da escuta atenta/ativa; fazer perguntas adequadas por forma mediação intercultural. Concretizando o dito anteriormente, uma das
a que as partes reformulem [reformulação] os seus posicionamentos partes poderá pretender apenas um pedido de desculpa em vez de
rígidos; haver co-mediação por forma a buscar uma maior eficácia, uma indeminização que lhe seria devida (legalmente).
etc. Mas qual seria a particularidade da mediação intercultural que Semelhante identificação fazemos com a proposta de Cohen-
lhe daria a sua autonomia? Pensamos que, essencialmente, a dimen- Emerique (1997) para quem a particularidade da mediação intercul-
são preventiva, educativa, transformadora, capacitadora e reabilita- tural abarca a idiossincrasia do uso de 3 modalidades possíveis: 1-
dora com vista a uma melhor comunicação, melhor relação, enfim, mediação preventiva que procura facilitar a aproximação, a comuni-
uma integração intercultural [o simétrico contrário da integração cação e a compreensão entre pessoas, grupos e comunidades com

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códigos culturais diferentes; 2- mediação reabilitadora que intervém tural capaz de fazer integrações interculturais e integração social e
na regulação e resolução de tensões e conflitos interculturais; 3 – pelo potenciar e favorecer a participação social e comunitária.
mediação transformadora que supõe a abertura de um processo cria- Ora, todas estas funções implicam uma atitude de pedagogia social
dor que supere normas, costumes e pontos de vista particulares, em (Vieira, A., & Vieira, R., 2016), e uma tomada de posição em busca
situação de convivência multicultural para alcançar novas normas e da autonomização. E, claro, estas funções não ocorrem apenas em
modos de relação compartilhados, aquilo que mais atrás designámos contextos de imigração ou de trabalho com minorias étnicas. Estas
de aprendizagem da convivência, de acordo com Jares (2007). funções sociais do mediador intercultural podem ser desenvolvidas
Deste modo, as funções do mediador intercultural vão muito para em qualquer âmbito da intervenção social, seja o educativo, o social,
além do conceito de arbitragem em contextos de acentuada multicul- o sociofamiliar, o comunitário, o jurídico, o laboral, ambiental, na
turalidade e da resolução dos seus conflitos. O mediador intercultu- saúde etc.
ral, do nosso ponto de vista, não pode deixar de tomar parte, como Em síntese, podemos reivindicar uma mediação específica, na ótica
vimos. Não pode ser neutro a ponto de permitir a reprodução da in- da mediação intercultural, para a intervenção social com imigrantes
justiça, da violência e da desigualdade. Pelo contrário, terá de ser e minorias etnoculturais, a par das outras mediações como sejam a
empático com todos, entrar no mundo cultural de todos, e, ao fazê- comunitária, sociopedagógica, familiar, jurídica, laboral, entre ou-
lo, está exatamente no simétrico contrário de assumir uma posição tras. Mas podemos, igualmente, reivindicar um novo paradigma de
de neutralidade, também, como vimos e opta, antes, pela multiparci- mediação intercultural, transversal a todas estas anteriores, assente
alidade, pelo facilitar a comunicação entre pessoas, pelo assessorar mais na ideia da prevenção, transformação, reabilitação, autonomi-
os agentes sociais na sua relação com as minorias, pelo assessorar zação, etc. do que, propriamente, nas técnicas de gestão/resolução
pessoas e comunidades minoritárias, pela promoção do acesso a ser- pontual de conflitos.
viços públicos e privados, pela construção duma cidadania multicul- Finalmente, qual a particularidade da mediação intercultural no âm-

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bito das mediações socioculturais? Autónoma de Madrid - tem dado ao ACM.


A mediação intercultural atravessa (ou pode atravessar, se se assumir Tal trabalho desembocou, também, na constituição em Portugal, à
o intercultural como paradigma que rompe com o culturalismo semelhança do já realizado em Espanha, de uma rede de ensino su-
(Giménez, 2010) todas as mediações sociais e/ou socioculturais (fa- perior em mediação intercultural – a RESMI, que integra os autores
miliar, comunitária, pessoal, laboral, escolar…) e não está presente deste texto, professores da ESECS-IPLeiria e investigadores do
apenas em contextos de forte multiculturalidade como é o caso da CICS.NOVA.IPLeiria.
coexistência de pessoas migrantes que o senso comum e alguns auto- Em síntese, consideramos que toda a mediação intercultural é socio-
res defendem, como vimos. cultural. Mas nem todas as mediações socioculturais são, necessari-
Por outro lado, podemos considerar, também, ainda que muito bre- amente, interculturais. Tal particularidade remete, sempre, para a
vemente, a história do uso destes conceitos em Portugal: O ACIDI ideia do terceiro lugar, terceira pessoa, reconstrução identitárias das
começou por usar os conceitos de mediação social há décadas (na partes envolvidas, como explorámos acima, mestiçagem, cultura(s)
altura era o ACIME; hoje é o ACM). Depois passou a usar o concei- dinâmica(s), etc., ao invés de culturas consideradas fechadas em
to de mediação sociocultural por dar conta dessa dificuldade de dis- determinado grupo social.
tinguir a esfera social da cultural. Assim, a mediação sociocultural será intercultural dependendo do
Mais recentemente, o ACIDI, transformado em ACM em 2013, pas- objetivo fundamental e do estilo e paradigma dominante que subjaz
sou a optar pelo uso do conceito de mediação intercultural, por in- à prática do interventor. Para ser intercultural tem de assentar na
fluência, também, do trabalho desenvolvido em Espanha e, em parti- transformação de todas as partes envolvidas com vista a uma melhor
cular, pela formação, apoio e assessoria que Carlos Gimènez e sua convivência, e não, apenas, num acordo pontual
equipa do IMEDES – Instituto universitário de investigação sobre Referências Bibliográficas
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.

Ficha curricular
Ricardo Vieira, Doutor em Antropologia Social, Professor
Coordenador Principal da ESECS do Instituto Politécnico de Leiria.
Investigador Integrado do CICS.NOVA.IPLeiria. Autor do livro
Educação e Diversidade Cultural. Notas de Antropologia da
Educação, 2011.

Ana Vieira, Doutora em Ciências da Educação, Professora Adjunta


da ESECS do Instituto Politécnico de Leiria. Investigadora Integrada
do CICS.NOVA.IPLeiria. Autora do livro Educação Social e
Mediação Sociocultural, 2013.

Vol. 5 – n.º 1 – 2017 < 56 >

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