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Texto 08 - Aspectos Materiais Da Corrupcao

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Curso de Alinhamento Conceitual do PNLD

P r o g r a m a N a c i o n a l d e C a p a c i t a ç ã o e T r e i n a m e n t o n o
c o m b a t e à C o r r u ç ã o e à L a v a g e m d e D i n h e i r o |1

Aspectos materiais da corrupção

A corrupção é um fenômeno complexo. Como sinônimo de conduta criminosa por


parte de agentes públicos, lesiva aos cofres e interesses públicos, ela existe em
qualquer sociedade e seu grau de gravidade será inversamente proporcional ao
contrapeso representado pelos valores coletivos e pela capacidade de resposta
institucional ao ilícito (prevenção e repressão). Em um sentido mais amplo, a
corrupção se agrava em momentos históricos de aceleradas e profundas
transformações sócio-econômicas, levando à expansão das atividades criminosas,
que se beneficiam também das dificuldades dos poderes constituídos de se
adaptarem a tais transformações com o mesmo grau de dinamismo. Nesse
segundo sentido, o mundo tem testemunhado grande expansão dos fenômenos de
corrupção relacionados com o complexo processo de globalização que se acelerou
após a derrocada dos antigos regimes comunistas, há pouco mais de duas
décadas1. Esse fenômeno leva à necessidade de aprimoramento dos instrumentos
de combate à corrupção, tanto no plano do direito interno como no da colaboração
com outros países, como será visto adiante.

A) Aspectos legais

Quanto ao tratamento legal interno, no direito brasileiro o crime de corrupção se


encontra cindido em dois tipos penais distintos, consubstanciados nos artigos 317 e
333 do Código Penal.

O art. 317 trata do crime de corrupção passiva, ou seja, do crime de corrupção


cometido pelo funcionário público que “solicitar ou receber, para si ou para outrem,
direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, vantagem
indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. Apenas pode cometer o crime o
funcionário público que realmente tiver competência para a prática do ato visado
pelo corruptor. A pena prevista varia de 2 a 12 anos de reclusão, além de multa.

1
NAPOLEONI, Loretta. Economia bandida, p. 15.
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Já o art. 333 do Código Penal define o crime de corrupção ativa, que pode ser
praticado por qualquer pessoa que “oferecer ou prometer vantagem indevida a
funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”. A
pena é equivalente à prevista para a modalidade passiva.

Importa salientar que, além do ato de corrupção propriamente dita, o Código Penal
tipifica outros crimes assemelhados que podem ser cometidos por funcionários
públicos. É o caso dos delitos de tráfico de influência (art. 332), de concussão (art.
316 – equivale, na esfera pública, à extorsão), de facilitação de contrabando (art.
318), de prevaricação (art. 319), de condescendência criminosa (art. 320), de
advocacia administrativa (art. 321) e de violação de sigilos funcionais (artigos 325 e
326), além da conduta do servidor que se apropria de bem ou valor, público ou não,
que esteja em sua posse em razão do cargo, ou seja, o crime de peculato (artigos
312 e 313). Embora distintos da corrupção, tais crimes têm em comum com ela a
conduta do servidor pautada pelo interesse privado, dele ou de terceira pessoa, em
detrimento do interesse público e da probidade. Naturalmente, são previstas penas
diferentes para cada tipo penal.

A legislação brasileira prevê também modalidades especificas de corrupção: é o


caso da corrupção de testemunha, perito, tradutor ou intérprete (Código Penal, art.
342, §1º), da corrupção de servidor da Administração Fazendária (Lei n. 8.137/90,
art. 3º, II) e da corrupção eleitoral, o que inclui a chamada “compra de votos”
(Código Eleitoral, art. 299).

Na esfera federal, são de especial relevância as leis especiais que tratam das
licitações (Lei n. 8.666/93) e dos crimes de responsabilidade cometidos por
prefeitos municipais (Decreto-Lei n. 201/67). Grande parte das investigações
conduzidas pela Polícia Federal, tanto em operações de grande porte como em
inquéritos policiais específicos, referem-se a crimes previstos nesses dois diplomas
legais.

A Lei n. 8.666/93 inovou ao reservar toda uma seção, com um total de dez
tipificações, para a tutela penal específica dos processos licitatórios e da
contratação administrativa. Antes da edição da lei, eventuais condutas criminosas
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relacionadas com o tema eram enquadradas no Código Penal, que contava com
alguns tipos específicos (arts. 326 e 335), porém sem tratamento sistemático. Com
a publicação da Lei n. 8.666/93, houve também o agravamento das penas
cominadas a certas condutas.

Importa salientar, porém, que ações criminosas relacionadas com licitações e


contratações públicas podem eventualmente ser enquadradas também em crimes
do Código Penal (corrupção, concussão, advocacia administrativa etc.), sem
prejuízo das tipificações elencadas na lei específica.

Os crimes da Lei de Licitações não admitem a modalidade culposa; além disso, em


praticamente todos eles a doutrina considera necessário o chamado dolo
específico, ou seja, voltado diretamente para a consecução do resultado legalmente
reprovado2. Nesse sentido, é relevante apontar, ainda, que vários dos crimes
tipificados na Lei n. 8.666/93 constituem normas penais em branco, ou seja, a
configuração do delito depende do descumprimento de alguma norma da esfera do
Direito Administrativo. É o caso, por exemplo, do art. 89, que tipifica a conduta de
“dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de
observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade” (grifo nosso).

Dentre as condutas criminosas mais relevantes previstas na Lei n. 8.666/93,


podemos destacar os tipos penais do art. 89 (dispensa ou inexigibilidade de
licitação), art. 90 (frustração ou fraude do caráter competitivo da licitação, mediante
ajuste – trata-se do chamado “cartel em licitação”), art. 92 (criação, por parte do
servidor, de vantagens ilegais em favor do vencedor do certame), art. 94 (violação
do segredo de proposta) e art. 95 (tentativa de excluir licitante por meio de
violência, ameaça ou suborno).

Já o Decreto-Lei n. 201/67 trata especificamente dos crimes de responsabilidade


que podem ser cometidos por prefeitos municipais, cujas condutas se encontram
tipificadas nos vinte e três incisos do art. 1º do referido diploma legal.

2
STJ, APN n. 226, Corte Especial, rel. Min. Luiz Fux, jul. 01/08/2007, pub. DJ 08/10/2007, p. 187.
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Os crimes tipificados no art. 1º do DL 201/67 são crimes próprios específicos,


referindo-se exclusivamente ao chefe do Poder Executivo municipal e não se
estendendo a outros membros da Administração municipal, ou tampouco a agentes
políticos de outras esferas federativas. Os crimes só podem ser cometidos quando
o agente esteja no exercício do cargo de prefeito, mesmo que em substituição ao
titular, de forma transitória ou definitiva. No mesmo sentido, o ex-prefeito pode
responder pelos crimes em questão, desde que os tenha cometido enquanto no
exercício do cargo3. É possível, porém, a caracterização do concurso de agentes
(CP, art. 29), tanto nos delitos cometidos por ação como naqueles por omissão4.

Enquanto o prefeito esteja no exercício do cargo, a competência para


processamento das ações penais decorrentes do DL n. 201/67 será do Tribunal de
Justiça local ou, no caso de interesse da União, do Tribunal Regional Federal
respectivo (princípio da simetria). Extinto o mandato antes do julgamento, cessa a
prerrogativa de função, devendo o processo ser remetido ao Juiz de primeira
instância, estadual ou federal conforme o caso5.

Os diversos incisos do art. 1º, em grande parte, consistem em normas penais em


branco, com elementos que necessitam de complementação por outras leis ou
normas. É o caso, por exemplo, dos crimes do inciso IV (“empregar subvenções,
auxílios, empréstimos ou recursos de qualquer natureza, em desacordo com os
planos ou programas a que se destinam”) e do inciso IX (“conceder empréstimo,
auxílios ou subvenções sem autorização da Câmara, ou em desacordo com a lei”),
entre outros (grifos nossos).

Dentre os vinte e três incisos do art. 1º do DL n. 201/67, as condutas mais


relevantes e de incidência mais freqüentes estão previstas nos três primeiros, os
quais lidam sobre a malversação de bens, rendas ou serviços públicos, seja pela
apropriação ou desvio em proveito próprio (inciso I), pela a utilização indevida
(inciso II) ou pela aplicação indevida ou desvio que não seja em proveito próprio
(inciso III). São freqüentes também os casos de ausência de prestação de contas
aos órgãos ou entes devidos, tipificados nos incisos VI e VII.
3
STF, Súmula 703; STJ, Súmula 164.
4
STJ, RHC n. 18.501/MS; RHC n. 8.927/RS.
5
STJ, RHC n. 18.501/MS; HC n. 46.330/MG.
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Especial atenção merece o inciso XI, que tipifica a conduta de “adquirir bens, ou
realizar serviços e obras, sem concorrência ou coleta de preços, nos casos exigidos
em lei”. O dispositivo coexiste com a Lei n. 8.666/93, especialmente no que se
refere ao rito processual6, sendo importante atentar para as hipóteses de
contratação pelo poder público sem licitação (dispensa e inexigibilidade), previstas
nos arts. 24 a 26 da mesma. A redação do inciso XI é de certo modo anacrônica,
uma vez que prevê apenas a ausência de concorrência e a coleta de preços, não
abrangendo portanto as modalidades licitatórias do convite e do pregão. Essa
restrição da redação original do texto legal já levou o Superior Tribunal de Justiça a
decidir pela absolvição de prefeito, fundada em atipicidade da conduta.

B) Aspectos criminológicos

Do ponto de vista das ciências humanas, os estudiosos apontam que o surgimento


de episódios de corrupção é estimulado pelo enfraquecimento das “capacidades”
dos diferentes atores políticos em interação. Essas capacidades devem ser
entendidas em quatro sentidos: a) capacidades dos cidadãos de vocalizar suas
demandas e de inseri-las no debate público; b) capacidades dos representantes
eleitos de traduzir tais demandas em políticas públicas; c) capacidades da
burocracia pública de traduzir tais políticas em resultados efetivos; d) capacidades
dos governados de reconstituir a cadeia causal que liga as demandas às políticas e
aos resultados e de atribuir responsabilidades aos governantes por seus atos e por
suas omissões7.

Portanto, falhas, imperfeições ou interferências em cada uma dessas quatro etapas


que separam a demanda popular da política pública e do controle popular dos
resultados são fatores que contribuem para o surgimento ou agravamento do
fenômeno da corrupção. A essa observação de caráter sócio-político, podemos
acrescentar que a sensação de impunidade e a impotência do Estado em coibir e
punir atos de corrupção e outras condutas funcionais igualmente lesivas ao serviço
público também são fatores de incremento dos fenômenos criminosos dessa
6
STJ, RHC n. 11.290/MG, 5ªT., rel. Min. Gilson Dipp, julg. 11/09/2001, pub. 15/10/2001.
7
ANASTASIA, Fátima; SANTANA, Luciana. Sistema político. In: AVRITZER, Leonardo et alli (org).
Corrupção, p. 365.
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natureza. De fato, os mesmos autores apontam que o combate a corrupção deve


se dar em dois eixos: o reforço ao princípio da virtude pública (incentivos à
participação política, diminuição da assimetria entre representantes e
representados, etc.) e a dissuasão do comportamento criminosos (incremento da
publicidade dos atos e omissões públicas, criação de mecanismos efetivos de
punição, etc.)8.

No caso brasileiro, podemos classificar os principais fenômenos de corrupção em


quatro grupos:

Corrupção eleitoral: A corrupção eleitoral pode ser entendida em três sentidos: 1)


do uso da máquina pública a favor de determinado(s) candidato(s), 2) da “compra
de voto”, e 3) do financiamento de campanha visando vantagens especiais e ilícitas
no plano político e/ou administrativo9. Aqui, importa o terceiro sentido, já que no
Brasil o fenômeno da corrupção está intimamente ligado com a questão do
financiamento das campanhas políticas, inserindo em um ciclo vicioso em que
detentores de cargos públicos recompensam com contratos aparentemente lícitos
ou negócios escusos pessoas físicas e jurídicas que contribuíram (oficialmente ou
por “caixa dois”) para suas campanhas, as quais, por sua vez, tornam-se cada vez
mais caras, em verdadeiro ciclo vicioso.

Contratos e obras públicas: O modelo federativo que serve de base ao sistema


político-administrativo brasileiro tem a peculiaridade de concentrar grande parte da
arrecadação e distribuição de recursos na União, o que faz com que as unidades
da Federação, particularmente os municípios, sejam bastante dependentes de
repasses de verbas federais. Deste modo, as ocorrências criminosas na aplicação
de verbas públicas (fraudes em licitações, desvios, etc.), em grande parte, referem-
se a recursos federais. A título de informação, cabe apontar que os recursos
transferidos pela União aos entes federativos ou privados podem ser classificados
em cinco espécies: 1) transferências constitucionais (decorrem diretamente da
Constituição, com fins de repartição e transferência das cotas de tributos
arrecadados pela União, como no caso do Fundo de Participação dos Municípios e

8
Ibidem, p. 367.
9
MELO, Carlos Ranulfo. Corrupção eleitoral. In: AVRITZER, Leonardo et alli (org). Op. cit., p. 374.
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Fundo de Participação dos Estados10); 2) transferências legais (previstas em leis


específicas que regulam a forma de habilitação, a transferência, a aplicação e a
prestação de contas do recurso); 3) transferências fundo a fundo (principal forma de
transferência dos recursos das áreas da saúde e assistência social, casos em que
os valores são depositados diretamente do Fundo Nacional de Saúde aos fundos
de saúde das unidades federativas, em contas individualizadas); 4) transferências
diretas ao cidadão (programas de benefícios monetários mensais, na forma de
transferência de direta de renda, cabendo geralmente ao município o
gerenciamento)11; 5) transferências automáticas (realizadas sem a utilização de
convênio ou contrato, mediante o depósito em conta corrente específica para a
descentralização de recursos em determinados programas na área de educação
disciplinados pela legislação específica, abrangendo ações como o Programa
Nacional de Alimentação Escolar, entre outros).

Corrupção transnacional: o fenômeno da globalização, fortemente incrementado


após a queda dos regimes comunistas há aproximadamente duas décadas,
favoreceu a intensificação das relações comerciais e financeiras entre as fronteiras
nacionais, o que se aplica tanto ao cidadão comum como aos próprios entes
públicos e às grandes empresas. Com isso, houve um aumento considerável nos
casos de corrupção transnacional, nas mais diversas situações (licitações abertas a
empresas estrangeiras, celebração de contratos internacionais, espionagem
industrial e empresarial, fusões e aquisições de empresas por grandes grupos
multinacionais). Trata-se de problema relevante ao ponto de ser abordado em
convenções transnacionais (como se verá adiante), trazendo novos desafios à
persecução penal e à cooperação policial internacional.

Lavagem de dinheiro: a globalização favoreceu principalmente o fluxo de capitais


entre os países, abrindo novas oportunidades para a lavagem de dinheiro, cujos
montantes globais provêm principalmente do tráfico de drogas e da corrupção.
Adiante, o tema será abordado de modo específico.

10
CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO. Gestão de Recursos Federais/Controladoria Geral da
União, p. 23.
11
Ibidem, pg. 24.
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Tipos penais de acordo com as Convenções Internacionais

Se a globalização contribuiu para o incremento da criminalidade organizada


transnacional, por outro lado a comunidade internacional tem se mobilizado para
aprimorar os instrumentos de persecução e a colaboração em diferentes áreas
(investigação policial, inteligência, criminalística, procedimentos judiciais, etc.).

A uniformização das políticas criminais entre Estados signatários de convenções e


tratados internacionais constitui medida importante em vista do fenômeno da
criminalidade globalizada, pelo qual organizações criminosas partem do controle
social e de territórios e do poder difuso de intimidação para, na etapa seguinte,
desenvolver relação parasitária com servidores e entes estatais corruptos e fazer
uso das facilidades trazidas pela globalização12.

São diversos os instrumentos legais supranacionais de combate ao crime dos quais


o Brasil é signatário. Especificamente quanto ao fenômeno da corrupção, são de
especial relevância a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional ou simplesmente Convenção de Palermo (internalizada no direito
brasileiro por força do Decreto n. 5.015/04) e a Convenção das Nações Unidas
Contra a Corrupção (Decreto n. 5.687/06).

Essa última convenção gerou relevantes desdobramentos para os órgãos e


instituições públicas brasileiras envolvidas no combate e na prevenção da
corrupção, dentre os quais o mais importante talvez tenha sido a ampliação do
escopo da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro
(ENCCLA). Instituída em 2003 (inicialmente com o objetivo de combate apenas à
lavagem de dinheiro), a ENCCLA é coordenada pela Secretaria Nacional de Justiça
(pertencente à estrutura do Ministério da Justiça), congrega cerca de 70 órgãos
(dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e dos Ministérios Públicos) e
desenvolve diferentes ações com vistas à melhor atuação estatal no cerco á
corrupção (aprimoramento de procedimentos de gestão pública, elaboração de
projetos de lei, mapeamento e gerenciamento de risco, etc.).

12
MAIEROVITCH, Wálter F. Na linha de frente pela cidadania, p. 227.
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No terreno da prevenção da corrupção, a Convenção traz diversas recomendações


relevantes, tais como a adoção de um código de conduta para servidores, a criação
de mecanismos de avaliação das práticas administrativas e judiciais, o incremento
da transparência na gestão, a indicação de servidores e instituições para execução
das políticas de cooperação internacional, etc.

No campo criminal, é importante salientar que mesmo antes do ato formal de


internalização da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, ocorrido em
2006, importante inovação legislativa já havia sido trazida pela Lei n. 10.467/02,
que introduziu o Capítulo II-A (artigos 337-B a 337-D) ao Título XI do Código Penal,
que trata dos crimes contra a Administração Pública. Antecipando compromissos
previstos na Convenção, os artigos acrescidos ao CP tratam de dois crimes que
podem ser praticados por particulares contra Administração Pública estrangeira
(corrupção ativa e tráfico de influência).

De fato, a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção contém dispositivos


de natureza penal, inclusive prevendo que os países signatários tipifiquem como
crimes determinadas condutas. Da análise do texto da Convenção, percebe-se que
algumas dessas condutas há muito já eram tipificadas no direito brasileiro. Além
dos tipos penais ainda não regulados, há também a necessidade de alguns ajustes
legais para que o direito penal interno fique perfeitamente ajustado às previsões da
Convenção.

Sinteticamente, são esses os pontos de convergência e de discrepância entre o


direito penal brasileiro e a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção:

a) Conceito de servidor público (art. 2º da Convenção): A Convenção adota um


conceito mais amplo de servidor público e de entidades estatais, para fins penais,
do que aqueles adotados pelos artigos 327 e 337-B (servidor estrangeiro) do
Código Penal. Pela Convenção, por exemplo, considera-se servidor o indivíduo que
tenha sido nomeado, ainda que não empossado.
b) Suborno de funcionários públicos nacionais (art. 15): Previsões abrangidas pelos
crimes de corrupção ativa (CP, art. 333), corrupção passiva (CP, art. 317) e tráfico
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de influência (CP, art. 332), sendo necessários apenas ajustes para adequar a
simetria de redação e de quantificação de pena com o crime de corrupção de
funcionário estrangeiro.
c) Suborno de funcionários estrangeiros (art. 16): Conduta tipificada nos já
mencionados artigos 337-B e 337-C do CP. O conceito de funcionário contido no
art. 337-D tem a mesma limitação em relação à Convenção mencionada no item
(a), acima.
d) Desvio de bens por servidores públicos (art. 17): Previsões abrangidas pelos
crimes de peculato (CP, art. 312), de emprego irregular de verbas ou rendas
públicas (CP, art. 315) e pelos tipos penais do Decreto-Lei n. 201/67 (crimes
funcionais dos prefeitos). São recomendáveis algumas alterações de redação
como, por exemplo, no caso do peculato, que atualmente se aplica apenas a bens
móveis.
e) Tráfico de influência (art. 18): Capitulado no art. 332 do CP.
f) Abuso de funções (art. 19): Abrangido pelo crime de prevaricação (art. 319 do
CP), referente à conduta do servidor que retarda ou deixa de praticar ato de ofício
“para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. No que tange à motivação para a
prática do ilícito, a Convenção adota a expressão “benefício indevido” (para si
mesmo ou para outrem), de conotação mais ampla. Além disto, deve-se destacar
que a pena prevista no Código Penal é bastante leve (3 meses a 1 ano de
detenção, além de multa), sendo recomendável sua majoração, para adequação às
políticas preconizadas pela Convenção.
g) Enriquecimento ilícito (art. 20): Hipótese não contemplada pelo direito penal
brasileiro, consiste na conduta do servidor público que possua injustificadamente
patrimônio incompatível com seus ganhos legítimos. Nesse caso, a Convenção
preconiza a condenação penal, independente da existência de prova de liame entre
a aquisição do patrimônio e alguma atividade ilícita.
h) Suborno no setor privado (art. 21): Hipótese também não contemplada pelo
direito brasileiro, consiste no suborno entre particulares no curso de atividades
econômicas , financeiras ou comercials, figurando no pólo passivo indivíduo com
poder de mando ou decisão em ente privado (empresa, banco, corretora,
conglomerado, etc.).
i) Malversação ou peculato de bens no setor privado (art. 22): Equivale, em linhas
gerais, às hipóteses de gestão fraudulenta tipificadas na Lei de Crimes Financeiros
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(Lei n. 7.492/86, artigos 4º e 5º) e às fraudes na administração de sociedades por


ações (CP, art. 177), além da apropriação indébita propriamente dita (CP, art. 168).
j) Lavagem de produto de delito e encobrimento (artigos 23 e 24): Hipóteses
abrangidas pela lei brasileira que trata da lavagem de dinheiro (Lei n. 9.613/98),
abordada adiante.
k) Obstrução da Justiça: Algumas das hipóteses de obstrução mencionadas pela
Convenção equivalem, no direito brasileiro, à corrupção ativa de testemunha ou de
profissional auxiliar da Justiça (CP, art. 343) e à coação no curso do processo (CP,
art. 344). Para complementar a adequação aos termos da Convenção, seria
recomendável a criação de tipo penal específico de crime de desobediência
praticada contra a Administração da Justiça.

Regimes extrapenais e sanções

A repressão penal constitui a face mais severa do combate à corrupção e ao uso


distorcido da “coisa pública”; contudo, tal combate, em suas vertentes preventiva e
repressiva, não pode se limitar à penalização das condutas previamente tipificadas.
Antes de se chegar aos instrumentos extremos fornecidos pelo direito penal, a
Administração deve dispor de mecanismos para avaliação de suas condutas
institucionais e das atuações funcionais de seus servidores, com vista à
constatação de desvios administrativos, correção de rumos, imposição de sanções
de cunho extrapenal e garantia de ressarcimento pecuniário de eventuais prejuízos
sofridos pelo erário, entre outras medidas.

Quanto aos regimes extrapenais e sanções de que dispõe a Administração Pública,


podemos destacar os mecanismos interno e externo de controle da atividade
administrativa (e político-administrativa) e o regime disciplinar a que estão sujeitos
os servidores públicos. Tais temas serão abordados sucintamente levando em
conta a realidade da Administração federal, salientando que os regimes estaduais
variam de acordo com a unidade da Federação, sendo que vários dos modelos
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existentes se inspiram na legislação federal (ou freqüentemente a reproduzem),


especialmente na matéria disciplinar.

A) Controle interno e externo da Administração

A aplicação dos recursos federais pode passar por duas espécies de


fiscalização/controle: interna e externa. Cabe aos responsáveis pela atividade de
controle analisar a correta aplicação dos recursos à luz dos requisitos impostos
pela legislação pertinente e, no caso de transferências voluntárias (convênios e
contratos de repasse) pelo próprio termo firmado entre os entes (de um lado a
União e, do outro, um Estado, Município ou entidade privada).

É importante ressaltar que os órgãos de fiscalização e controle avaliam a aplicação


dos recursos de forma ampla. Trata-se de atividade de auditoria, segundo os
parâmetros técnicos adotados por cada órgão no âmbito de suas atribuições,
realizada geralmente de modo abrangente. Deste modo, os relatórios produzidos
pelos mesmos costumam apontar diferentes tipos de irregularidades na aplicação
de recursos e/ou simplesmente na execução do convênio ou contrato de repasse,
desde irregularidades de caráter meramente administrativo (as quais
freqüentemente podem ser sanadas) até condutas mais graves que possam
configurar ilícitos penais.

a) Controle interno

O Controle interno é aquele efetuado pelo próprio Poder Executivo Federal, na


forma da Constituição Federal (art. 74) e do sistema instituído pela Lei n. 10.180/01
(arts. 19 a 24).

Como regra geral, o controle interno é feito pela Controladoria Geral da União
(CGU). No caso de transferências voluntárias, em tese o controle é feito de forma
cumulativa pela CGU e pelo órgão repassador (no caso dos convênios, hipótese na
qual o órgão repassador é geralmente um dos Ministérios) ou pela instituição
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financeira (no caso dos contratos de repasse, nos quais via de regra a instituição é
Caixa Econômica Federal).

Na prática, os Ministérios e órgãos a eles vinculados contam com assessorias de


controle interno que funcionam principalmente como “facilitadores” nas relações
com a CGU (controle interno) e o TCU (controle externo), especialmente quanto à
avaliação dos processos internos de gastos e compras, e não à análise da
execução de convênios, repasses e programas de governo específicos.

A Controladoria Geral da União (CGU) é órgão integrante da estrutura da


Presidência da República (Lei n. 10.683/03, art. 1º, §3º, I), com status de Ministério,
a quem cabe, dentre outras atribuições, a de coordenar e executar no âmbito do
Poder Executivo a atividade de controle interno prevista no art. 74 da Constituição.
Deste modo, a CGU coordena ações de controle interno e atua diretamente em
toda a estrutura do Poder Executivo Federal, inclusive quanto à aplicação de
recursos repassados a Estados, Municípios e entidades privadas mediante
convênio ou contrato de repasse. Por limitação legal, a CGU não tem poderes de
atuação apenas em três esferas da administração federal: nos Ministérios da
Defesa e das Relações Exteriores e na própria Presidência da República – que
possuem estruturas próprias de controle interno com as quais a CGU pode atuar
em colaboração, desde que requisitada.

As fiscalizações pela CGU podem ser iniciadas por demanda interna ou externa. As
iniciativas internas são as mais diversas e incluem, entre outras:
a) Avaliação da execução de programas de governo por amostragem (não sendo
possível, evidentemente, a análise exaustiva de todos eles);
b) Auditorias em Municípios escolhidos por sorteio, metodologia iniciada em 2003.
Participam dos sorteios municípios com até 500 mil habitantes (os 47 municípios
brasileiros com população acima deste número são fiscalizados com base em
outros critérios, independentemente de sorteio). Além dos municípios, são
sorteados também os programas de governo e/ou convênios que serão objeto da
auditoria; contudo, o objeto da fiscalização pode ser ampliado, usualmente a partir
de denúncias. Após o sorteio, a data e o período dos trabalhos de campo (uma
semana, normalmente) são previamente divulgados e publicados;
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c) As chamadas fiscalizações especiais, que são as colaborações com a Polícia


Federal em operações de grande porte que incluam uma fase sigilosa de
investigação.

A demanda externa, por sua vez, provém sobretudo de denúncias populares, de


requisições de lavra do Ministério Público ou do Poder Judiciário e também das
solicitações de atuação conjunta por parte da Polícia Federal.

Do volume total de recursos repassados pela União para outros entes da


Federação e entidades privadas, os montantes mais significativos são destinados
às áreas da saúde e educação, razão pela qual os respectivos órgãos
repassadores possuem sistemas de controle bem estruturados.

Na área da saúde, o SUS (Sistema Único de Saúde) possui sistema próprio e


descentralizado de auditoria: o DENASUS - Departamento Nacional de Auditoria do
SUS, previsto na Lei n. 8.689/93 (art. 13, § único) e regulado pelo Decreto n.
1651/95. O DENASUS audita prioritariamente as chamadas transferências fundo a
fundo, enquanto os convênios e contratos de repasse costumam ser fiscalizados,
em princípio, pela auditoria interna do próprio Fundo Nacional da Saúde (FNS), na
forma do art. 8º do Decreto n. 3.964/01. Já a FUNASA - Fundação Nacional da
Saúde, autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, atua principalmente em ações
de saneamento, especialmente aquelas vinculadas ao PAC (Plano de Aceleração
do Crescimento), que costuma consistir em obras de engenharia de pequeno porte
(sistemas de água, esgoto e melhorias sanitárias), executadas em pequenos
municípios, assentamentos rurais e áreas quilombolas. A FUNASA possui sistema
de auditoria interna centralizado na sede da instituição em Brasília.

Na área da educação, a maior parte das verbas é gerida pelo FNDE - Fundo
Nacional de Desenvolvimento de Educação, autarquia do Ministério da Educação,
criada pela Lei n. 5.537/68 e encarregada da prestação de assistência técnico-
financeira e da execução de programas nesta área, dentro do modelo estabelecido
pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96). O
orçamento do FNDE se divide em quatro grandes áreas: custeio, FUNDEB, FIES
(Financiamento ao Estudante do Ensino Superior) e Salário-Educação, sendo que
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as verbas do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação


Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) são transferidas
diretamente para os Tesouros estaduais e municipais e administradas localmente,
com prestação de contas para o Tribunal de Contas do Estado respectivo, sem
auditoria ou ingerência pelo FNDE. O sistema de auditoria do FNDE é centralizado,
não possuindo representações nos Estados.

b) Controle externo

No âmbito federal, o controle externo é realizado pelo Tribunal de Contas da União


- TCU, cujas atribuições são definidas no art. 71 da Constituição Federal.

O TCU adota a seguinte classificação para as fiscalizações que realiza:


a) Auditoria: examina a legalidade e a legitimidade dos atos de gestão (aspectos
contábil, financeiro, orçamentário e patrimonial), avalia o desempenho de órgãos,
entidades, sistemas, programas, projetos e atividades governamentais (aspectos da
economicidade, da eficiência e da eficácia);
b) Inspeção: supre omissões e lacunas de informações, esclarece dúvidas ou apura
denúncias quanto à legalidade, legitimidade ou economicidade de atos
administrativos;
c) Levantamento: avalia a organização, o funcionamento e a forma de atuação dos
órgãos da Administração, e também de sistemas, programas, projetos e atividades
governamentais;
d) Acompanhamento: avalia o desempenho de órgãos e entidades públicas, e
também dos sistemas, programas, projetos e atividades governamentais (aspectos
da economicidade, da eficiência e da eficácia);
e) Monitoramento: verifica o cumprimento de deliberações do próprio TCU.

No curso da fiscalização, se surgirem indícios de irregularidades, o TCU poderá


instaurar Tomada de Contas Especial (TCE) para esclarecimento, sendo possível
também o desmembramento da fiscalização, se seu objeto ainda não houver sido
esgotado. Neste caso a fiscalização prossegue, sem prejuízo a tramitação da TCE,
a qual consiste em procedimento de fiscalização com direito à ampla defesa.
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A atuação do TCU pode ser provocada por quem de direito (Poder Legislativo,
CGU, etc.), por denúncia ou representação, ou pode atuar de ofício diante de
indícios de irregularidade, ou ainda no caso de receber autos relatados de TCE -
Tomada de Contas Especial que tenha sido realizada por alguma unidade gestora
da Administração, em sede de controle interno.

O TCU também realiza fiscalizações por iniciativa própria, de forma seletiva, a partir
das prioridades definidas pelo plano anual do Tribunal, no qual são definidos os
temas de maior significância (saúde, educação, infra-estrutura). Definidos os temas
no Plano Anual de Fiscalização (com vigência a partir do mês de março de cada
ano), a área técnica do TCU define os pontos mais relevantes nos temas
selecionados.

Por fim, cabe salientar que as decisões condenatórias proferidas pelo TCU
possuem caráter de título executivo extrajudicial, devendo a Advocacia Geral da
União (AGU) mover as respectivas ações executórias.

B) Regime disciplinar

O regime jurídico único dos servidores públicos federais está disciplinado pela Lei
n. 8.112/90, com diversas alterações ao longo dos anos. Cada unidade da
Federação conta com sua legislação própria, mas é importante ressaltar que
diversas leis estaduais foram inspiradas diretamente no regime federal, muitas
vezes praticamente o reproduzindo. Mesmo na esfera federal, o regime disciplinar
geral pode coexistir com regulamentos específicos, como é o caso da Polícia
Federal (Lei n. 4.878/65).

O regime disciplinar regulado pela Lei n. 8112/90 se estende dos artigos 116 a 182
e relaciona deveres, proibições, responsabilidades e penalidades, além de
disciplinar o rito processual para a condução dos processos disciplinares.
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O art. 121 da referida lei dispõe que “o servidor responde civil, penal e
administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições”. Na realidade, os
comportamentos listados como “proibições” no art. 117 incluem algumas condutas
que constituem crime, como é o caso, por exemplo, da coação de subordinado
(inciso VII) e do recebimento de propina (inciso XII). Cabe destacar a
independência de instâncias: a infração pode subsistir ainda que não haja crime e
vice versa, as regras quanto à prescrição são próprias de cada esfera, o processo
disciplinar segue rito próprio independentemente de eventual ação penal, etc.

Quanto à relação entre corrupção e infrações disciplinares, é importante atentar


para o caráter transversal do fenômeno da corrupção, ou seja, ela não está
presente apenas nos desvios funcionais mais óbvios – recebimento de propina ou
comissão (incisos XII e XIII do art. 117), utilização de recursos humanos e materiais
para fins particulares (inciso XVI), etc. –, mas também pode ser o motivador de
qualquer outro ilícito capitulado na Lei n. 8.112/90.

Além da possibilidade de responsabilização civil (art. 122, que regulamenta a


previsão contida na Constituição Federal, art. 37, §5º e §6º), em seu art. 127 a Lei
n. 8.112/90 prevê três tipos principais de punição, de gravidade crescente:
advertência, suspensão e demissão (da qual as outras punições constituem
variáveis: cassação de aposentadoria, disponibilidade e destituição de cargo em
comissão ou função comissionada).
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Relações com a lavagem de dinheiro e com o crime organizado

A corrupção e o desvio de verbas públicas constituem um dos principais fenômenos


criminosos, em escala mundial, que antecedem o delito de ocultação de bens ou
valores, popularmente conhecido como “lavagem” de dinheiro. A ampla
globalização dos sistemas financeiros nacionais e suas implicações – abandono do
controle cambial, fim dos sistemas financeiros fechados, competição acirrada entre
agentes financeiros (bancos, corretoras e outros serviços similares) pela captação
de valores, revolução da informática – propiciaram enormes oportunidades para a
lavagem de capitais, acrescentando novas técnicas aos métodos mais antigos e
ainda eficazes (contas bancárias em jurisdições permissivas, empresas fantasmas
em negócios com grande fluxo de caixa, etc.). Deste modo, estima-se que a
lavagem de dinheiro atinja entre 2% e 5% do PIB mundial (há quem fale em 10%),
podendo chegar à casa dos 2 trilhões de dólares anuais 13. Na primeira década do
séc. XXI, estima-se que os lucros globais com tal atividade tenham crescido a um
ritmo entre 45% a 60% ao ano14.

Considerando que, por definição, a lavagem de dinheiro constitui fenômeno


criminoso precedido por alguma atividade ilícita altamente lucrativa cujo lucro em
algum momento deverá retornar à economia formal, policiais encarregados de
investigações de desvio de verbas e contra a Administração devem atentar para a
etapa posterior, na qual os valores e bens obtidos ilicitamente são ocultados ou
reinseridos na cadeia da legalidade.

A relevância do tema é tamanha que mereceu tratamento específico na Convenção


das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de
Palermo), editada no ano 2000 e internalizada pelo direito brasileiro por força do
Decreto Legislativo n. 231/03 e do Decreto n. 5.015/04

13
NAÍM, Moisés. Ilícito, pp. 127-130. Para contextualização histórica dos fatores que levaram ao
crescimento do fenômeno da lavagem de dinheiro, veja-se: WOODIWISS, Michael. Capitalismo
gângester, cap. 16.
14
MAIEROVITCH, Wálter F. Op. cit., p. 151.
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O art. 6º da Convenção de Palermo tipifica a lavagem de dinheiro como15: a) a


conversão ou transferência de bens, quando quem o faz tem conhecimento de
serem produtos de crime, com o fim de ocultar ou dissimular sua origem ilícita ou
ajudar qualquer pessoa envolvida na infração principal a se furtar às conseqüências
judiciais do crime; b) a ocultação ou dissimulação da natureza, origem localização,
disposição, movimentação ou propriedade de bens ou direitos a eles relativos,
sabendo o autor serem os mesmos produtos de crime; c) a aquisição, posse ou
utilização de bens, sabendo o autor se tratarem de produto de crime.

O direito brasileiro tipifica as condutas definidas genericamente como “lavagem de


direito” na
Lei n. 9.613/98, cujo primeiro artigo descreve o crime de “ocultar ou dissimular a
natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens,
direitos ou valores” que sejam provenientes de certos crimes. Igualmente, incorre
nas mesmas sanções “quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens,
direitos ou valores provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos”,
“os converte em ativos lícitos; os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em
garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere; importa ou exporta
bens com valores não correspondentes aos verdadeiros” (§1º), ou ainda quem
“utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe
serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos” ou “participa
de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade
principal ou secundária é dirigida à prática dos crimes previstos”.

Em seguida ao caput do art. 1º, são listados os crimes cujos produtos econômicos
e/ou financeiro podem ser “lavados”. Esse é um aspecto da legislação brasileira
criticado de forma praticamente unânime por ter criado um rol rígido dos chamados
“crimes antecedentes”. Outras modalidades criminosas, portanto, não dão azo ao
fenômeno da “lavagem”, ainda que seus frutos econômicos sejam efetivamente
reinseridos na cadeia da legalidade por meio das mesmíssimas técnicas.

De qualquer modo e enquanto não advir alteração legislativa, as modalidades de


crimes antecedentes à lavagem estão elencadas nos oito incisos do art. 1º da
15
GOMES, Rodrigo Carneiro. O crime organizado na visão da Convenção de Palermo, p. 101.
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mencionada lei. No que tange ao fenômeno da corrupção, são de especial


interesse os incisos V, VII e VIII, que tratam respectivamente dos crimes “contra a
Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou
indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou
omissão de atos administrativos”, “praticados por organização criminosa” e
“praticados por particular contra a administração pública estrangeira”.

Deste modo, especialmente o inciso V do art. 1º abrange a lavagem de capitais ou


bens obtidos através de crimes de desvio de recursos públicos, seja por corrupção,
peculato, fraude em licitação, ou qualquer outra modalidade criminosa tipificada no
Brasil. Além disto, o inciso VIII alcança os produtos de crimes cometido em
detrimento de Administração Pública estrangeira, representando importante
previsão legal, em vista do amplo fenômeno de globalização do crime e da
economia.

Também o inciso VII, referente às organizações criminosas, possui relevância para


a repressão do fenômeno da corrupção, uma vez que as modalidades criminosas a
ele associadas são de regra complexas e envolvem grupos criminosos articulados,
com a participação de particulares (empresários, empreiteiros, lobistas, “laranjas”,
etc.) e de servidores públicos e/ou autoridades detentoras de mandato eletivo,
freqüentemente em condutas reiteradas ao longo do tempo. Além disso, a
experiência mostra que esquemas bem sucedidos de desvio de dinheiro público,
especialmente por meio de fraudes em licitações, costumam ser “exportados”:
quadrilhas montam expedientes criminosos (que podem ser por meio de cartel em
licitações, ou de empresas fantasmas, ou de pagamento de propina para
apresentação de emendas parlamentares, etc.) os quais, se bem sucedidos, são
apresentados a outras autoridades e servidores públicos como modelos prontos e
testados para o desvio de verbas públicas. Essa especialização de grupos
criminosos foi constatada em algumas investigações de repercussão da Polícia
Federal que resultaram em indiciamento de servidores e autoridades públicas,
dentre as quais podem ser citadas a Operação Sanguessuga (emendas
parlamentares para aquisição de ambulâncias e outros equipamentos na área da
saúde) e, mais recentemente, a Operação Carcará da Bahia (organização
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criminosa que fraudou licitações relativas a verbas federais recebidas mediante


convênios, em mais de 20 municípios baianos).

No direito brasileiro, a Lei n. 9.034/95 trata dos meios de investigações e de prova


aplicáveis aos crimes cometidos por organizações criminosas, porém sem conter
uma conceituação legal do fenômeno. Essa é uma lacuna freqüentemente criticada
como representando uma vulnerabilidade em nosso sistema de persecução da
criminalidade organizada. Do ponto de vista criminológico, a criminalidade
organizada pode ser entendida em dois planos: do crime violento (disputa feroz
entre grupos criminosos por território ou mercado; delitos como extorsão, roubo,
seqüestro, tráfico de entorpecentes etc.) e do chamado crime de “colarinho branco”,
de natureza não violenta e que atinge vítimas difusas e não individualizáveis, porém
com grande impacto lesivo sobre a sociedade, a começar pela qualidade dos
serviços públicos prestados ao cidadão16.

Contudo, juridicamente a definição deve ser buscada na já mencionada Convenção


de Palermo, incorporada ao direito brasileiro por força do Decreto n. 5.015/2004.
Nos termos da Convenção, um “grupo criminoso organizado” é aquele formado por
três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o
propósito de cometer uma ou mais infrações graves e de obter, direta ou
indiretamente, benefícios econômicos ou materiais.

Por fim, é importante salientar que na atividade de combate à corrupção, à lavagem


de dinheiro e à criminalidade organizada, os Estados nacionais enfrentam desafios
comuns relacionados à globalização econômica, à intensa mobilidade humana
entre os países e à porosidade das fronteiras. Para maior eficiência neste combate,
fundado nos eixos da prevenção e da repressão, uma das medidas mais
importantes é a integração entre as diferentes agências e órgãos governamentais,
em vista do grande grau de especialização dos componentes da burocracia pública.
Se a especialização tem a vantagem de proporcionar maior apuro técnico na
atuação, acarreta também, por outro lado, a desvantagem de contribuir para a
atuação descoordenada entre as diferentes frentes preventivas e repressivas17.

16
GOMES, Rodrigo Carneiro. Op. cit., p. 16.
17
NAÍM, Moisés. Op. cit., p. 171.
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