Escola Da Ponte - José Pacheco
Escola Da Ponte - José Pacheco
Escola Da Ponte - José Pacheco
Formação e transformação
1
Meireles, C. (2001). Crónicas de Educação (3). Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, pp. 158-159
2
Castoriadis, C.(1975) L'instrution, l'imaginaire et la societé, Paris, Seuil, p.148
Para que serve a formação?
3
“Determinantes do Desempenho Escolar do Brasil”, Naércio Menezes Filho, São Paulo, 2007
da formação universitária é, por vezes, a negação do que se pretende transmitir e que a universidade
é... a matriz. Talvez porque se descurasse a necessidade de criar dispositivos de auto-formação
cooperativa, que rompessem com a cultura do isolamento e auto-suficiência que ainda prevalecem
nas nossas escolas. Talvez...
Não será difícil caracterizar os programas de formação que serviram intuitos reformadores,
mas que as escolas “reformaram”:
A quem serviu esta prática de formação? A avaliar pela situação que se vive nas escolas,
talvez a ninguém. E não se poderá imputar a responsabilidade à incipiente concepção, à escassez de
recursos, à falta de financiamento dos programas ou ao tradicional individualismo dos professores.
Se algum êxito estes programas tiveram foi o de reforçar o alheamento e a alienação de grande
número de professores, mantendo-os como simples consumidores de formação. As avaliações
(quando as houve) segregaram aspectos relativos ao enquadramento dos programas no seu contexto
sócio-económico e cultural, num quadro de racionalidade técnico-instrumental.
Poderemos concluir que já tudo foi discutido e prescrito sobre formação? Ou deveremos
seguir a máxima de Pascal que nos avisa que, por detrás de cada verdade, é preciso aceitar que
existe uma qualquer outra verdade que se lhe opõe?
Opto pela busca. Porque acredito que a formação acontece quando um professor se decifra
através de um diálogo entre o eu que age e o eu que se interroga, quando o professor participa de
um efectivo projecto, identifica as suas fragilidades e compreende que é obra imperfeita de
imperfeitos professores. Por essa razão, procurei alternativas. Por isso, aconteceu este livro.
No princípio, era a Ponte...
A busca de alternativas (que passarei a descrever) teve origem naquilo que se convencionou
designar por “círculo de estudo”. Foi num círculo de estudo que o projecto Fazer a Ponte teve a sua
génese.
Em 1976, a Escola da Ponte defrontava-se com um complexo conjunto de problemas: o
isolamento face à comunidade de contexto, o isolamento dos professores; a exclusão escolar e
social de muitos alunos, a indisciplina generalizada e agressões a professores, a ausência de um
verdadeiro projecto e de reflexão crítica das práticas...
Nada foi inventado na Escola da Ponte, mas quando se compreendeu que eram precisas
mais interrogações que certezas, foram definidos como objectivos:
concretizar uma efectiva diversificação das aprendizagens tendo por referência uma
política de direitos humanos que garanta as mesmas oportunidades educacionais e de
realização pessoal para todos;
promover a autonomia e a solidariedade;
operar transformações nas estruturas de comunicação e intensificar a colaboração entre
instituições e agentes educativos locais.
5
O Projecto Fazer a Ponte obteve quase sempre os primeiros lugares nos concursos a que se submeteu. Os seus alunos
obtiveram excelentes resultados em provas nacionais.
6
Todas as citações feitas neste capítulo são extraídas da obra citada: Escola da Ponte, Profedições, Porto (2003); apenas
acrescentarei os nomes dos autores.
Modelos e conflito de racionalidades
Porém, a lógica da "formação centrada na escola" foi contrariada pela dicotomização entre
espaços de formação e de acção. “De um lado, as situações de formação normalmente organizadas
segundo uma lógica dos conteúdos a transmitir e das disciplinar a ensinar; do outro lado, as
situações de trabalho organizadas segundo uma lógica dos problemas a resolver e dos projectos a
realizar”9. Por maior debate (ou especulação...) que se produza, a formação continua eivada de um
inevitável empirísmo voluntarista. A formação está aí, consensualmente útil, “independentemente
dos contextos institucionais em que se realiza e da natureza da articulação com os lugares
institucionais onde é suposto que produza efeitos: as escolas”10. A indiferença perante esta
realidade arrasta consigo o cinismo que, também neste caso, é como que o verniz do espírito, que
embota qualquer perspectiva de construção de alternativas.
Na busca de alternativas, evocarei Chantraîne-Demailly11, que propõe quatro modelos de
formação. O critério de diferenciação é a relação simbólica fundamental: forma universitária, forma
escolar, forma contratual e forma interactiva-reflexiva. O modelo de formação adoptado na Escola
da Ponte aproxima-se do quarto modelo. Surge ligado à resolução de problemas reais relacionados
com situações concretas do quotidiano laboral e desenvolve-se com o contributo inalienável dos
professores. Aproxima-se, também, de um modelo de práticas espontâneas sob a forma de rede12
ou ainda da aprendizagem cooperativa13, que congrega grupos constituídos ad hoc para fins
específicos.
Na Escola da Ponte, postulámos um modelo isomórfico de formação, que, influenciando a
elaboração de objectivos, estabelecesse influência na configuração das práticas pedagógicas,
promovendo a relação entre o conjunto de saberes e saberes-fazer prévios com o que de novo se
fazia, conferindo significado à actividade, reforçando a progressiva apropriação do controlo e
condução do processo pelos professores, privilegiando uma interacção participativa.
Talvez tivéssemos andado próximos da descrição elaborada por Mary-Louise Holley e
Caven Mc Loughlin (1989): começa-se pela organização de acções pontuais de formação e por
encarar o professor isolado e a título individual; evolui-se para a consideração de redes de
9
Finger, M. & Nóvoa, A.(1988) O método (auto) biográfico e a formação, Lisboa, DRH, p.110
10
Canário, R.(1991) Mudar as escolas: papel da formação e pesquisa, Inovação nº 4 (1), p.77
11
Chantraîne-Demailly, L. (1992) Modelos de Formação Contínua e Estratégias de Mudança, in Nóvoa, A.(org.) Os
Professores e a sua Formação, Lisboa, D. Quixote/IIE, pp.142-145
12
Huberman, M.(1986) Um nouveau modèle pour le developpment profissionel des enseignants, in Revue Française de
Pédagogie, nº 75, pp. 5-15
13
Johnson, D. & Johnson, R.(1991) Cooperative learning and school Development, Mineapolis, U.M., pp. 2-5
cooperação e de colaboração profissional; deslocamo-nos da formação por catálogo para a reflexão
na prática e sobre a prática; diversificamos, criamos alternativas; “mudamos as nossas práticas de
investigação sobre os professores para uma investigação com os professores e até para uma
investigação pelos professores”14.
No campo da formação, predominam dois modelos: o que perfila um professor especialista
em didácticas e aquele que tende a considerá-lo como intelectual crítico. O primeiro é dominado
pelos métodos de ensinar e por uma Psicologia do individual; o segundo sobrevive apoiado em
tímidos contributos de uma Sociologia da Educação que tarda em se afirmar. Nesta tensão, não é
possível nem útil a separação arbitrária dos modelos. “A oposição entre um modelo de formação
dito tradicional e um outro que se reclama de autonomia e de criatividade pode ser mistificadora
(...) os modelos não se anulam mutuamente”15.
Na formação concebida e desenvolvida na Ponte, os professores colheram e ultrapassaram
soluções avulsas e passaram à problematização de situações educativas. Seleccionaram a
informação útil que uma formação mais transmissiva lhes facultara e sobre elas elaboraram novas
leituras de situações emergentes. Como a complexidade dessas situações não encontrava resposta
em soluções técnicas genéricas, um terceiro modelo de formação surgiu. Esse modelo serviu a
intenção de obstar ao desenvolvimento de uma “lógica instrumental e adaptativa”16, de uma
tecnocracia da formação que, instalando-se, dificilmente seria erradicada. A sua síntese possível
poderá ser descrita nas articulações seguintes:
17
Garcia, C.(1989) Introdución a la formación del professorado, Sevilha, S.P.U.S.
18
Banks, J.(1985), cit in Cortesão, L. (1988). Contributo para a análise da possibilidade e dos meios de produzir
inovação: o caso da formação de professores. Porto: FPCE, p.78
19
Banks, J.(1985) Etnic Revitalization Movements and Education, Educational Review, V.37, nº 2, pp.131-139
20
Giroux, H.(1986) Teoria Crítica e Resistência em Educação, Petrópolis, Ed. Vozes, p. 149
21
Sobretudo na transição da década de 70 para a década de 80.
22
Barbier, J. et al (1991) Tendances d'évolution de la formation des adultes, Révue Française de Pédagogie, 97, pp.75-
108
o desenvolvimento da formação integrada na situação de trabalho (escola, sala-de-aula,
equipa de professores);
uma atenção particular às estratégias de aprendizagem na formação.
23
Santos, B. (1986) Oração de Sapiência, Coimbra, pp.14-22
24
Benavente, A. (1990) Escolas, Professoras e Processos de Mudança. Lisboa: Horizonte, p.91
Um sentido ambíguo de formação
29
Aronowitz, S., e Giroux, H. (s/d) Educação radical e intelectuais transformadores. Porto: policopiado, p. 11
30
Aronowitz, S., e Giroux, H. (s/d.), op. cit., p. 8
31
Kohl, M., cit in Aronowitz, S., e Giroux, H. (s/d.), op. cit., p.11
32
Ultrapassemos, por opção, a crítica necessária a modelos de formação que presumem o professor como intelectual
"não-comprometido", no sentido em que lhe é atribuído por Giroux (texto policopiado, s/d)
emancipatórios, no sentido de que o pedagógico e o político se interpenetram profundamente.
Significa que, tal como no terreno dos conflitos sociais, as escolas representam tanto uma luta pelo
significado das coisas, como uma luta ao nível das relações de poder.
No processo de formação cruzam-se relações entre indivíduos e grupos, que ultrapassam a
fronteira das instituições e se defrontam no campo, não somente técnico mas, em sentido mais
vasto, no cultural. Nesta dinâmica cultural se concretizam atitudes criadoras de condições para um
processo de formação de «cidadãos que têm o conhecimento e a coragem para apostar seriamente
na necessidade de conceber o desespero como estado transitório e de dar corpo à esperança» 33 e de,
na teoria e prática, transcender o ciclo vicioso da reprodução.
O modo como o poder se manifesta nas escolas e como este poder aliado à linguagem
(entendida como instrumento de dominação) contribui para a reprodução, pode ser organizado em
torno de questões sobre: o que conta como saber escolar; como é que tal saber é seleccionado e
organizado; quais os interesses subjacentes à organização do saber; como é transmitido o saber;
como é determinado o acesso ao saber; que valores culturais são legitimados e que valores são
desorganizados pelas formas dominantes do saber escolar.34
A oposição entre um modelo de formação dito tradicional e um outro que se reclama de
autonomia pode ser mistificadora. O que importa reter, nos contrastes possíveis, é a tradicional
hegemonia do modelo transmissivo centrado no formador e no professor isolado. As alternativas a
tal modelo poderão acolher e valorizar a formação nos contextos mutáveis de trabalho e pautar-se
pela flexibilização e harmonização com a aprendizagem informal. Esse um outro modelo não
distancia a formação dos professores das realidades organizacionais em que os indivíduos actuam e
reconhece que a acção educativa é apenas uma das componentes, um dos possíveis momentos de
um processo de formação de adultos, e que, per si, uma acção educativa não é automaticamente
formadora. No modelo dito tradicional, a formação é concebida num espaço isolado dos contextos
em que a aprendizagem se desenvolve. Pressupõe que a informação e a formação são dois
momentos cumulativamente justapostos numa linearidade simples.
No primeiro, processa-se a articulação e integração da teoria e da prática, na assunção de
que uma reflexão na prática e sobre a prática valoriza os saberes de que os professores são
portadores35. A oposição entre teoria e prática é ultrapassada por uma praxeologia que confere à
experiência um estatuto de fonte de conhecimento enquanto objecto de reflexão e de produção dos
próprios conhecimentos.
33
Aronowitz, S. & Giroux, H. (s/d), op. cit., p. 16
34
Aronowitz, S. & Giroux, H. (s/d), op. cit., p. 22
35
Nóvoa, A.& Popkewitz, T.(org.)(1992) Reformas Educativas e Formação de Professores, Lisboa, Educa
A formação é um meio e não um fim em-si-mesma, não é para os professores. Estes são
mediadores de formação em desenvolvimento, que passam da identificação e valorização do saber à
sua partilha, inseridos num sistema social em que detêm competências específicas.
A realidade social vive do que já se conhece das regras, mas também da própria produção
de realidade. Uma das dimensões desse processo é o que Stenhouse 36 descreve como uma
disposição para examinar a prática com sentido crítico e sistemático. Num outro modelo, privilegia-
se o fornecimento de informação teórica descontextualizada e prévia e a formação constitui-se em
mais um factor de inibição de autonomia do professor ao configurá-lo como executante-consumidor
de formação.
A formação tem em conta a história e a acção dos professores como factores estruturantes
das aprendizagens, das interpretações e utilizações que delas venham a fazer. A formação
transforma-se num processo de consciência do mundo e de elucidação do significado das relações
interpessoais, com a instituição e com o saber, e traduz-se na não-dissociação do desenvolvimento
profissional e do desenvolvimento pessoal.
Quando se refere o desenvolvimento pessoal e se apela ao protagonismo do professor
individualmente considerado, não se pretende fazer uma apologia de uma formação
"individualizada" no sentido que lhe confere a teoria neo-clássica do "capital humano", e que se
reflecte numa simples multiplicação da oferta de formação. Também no campo da determinação de
necessidades não se propõe um diagnóstico centrado exclusivamente no individual, mas uma
redefinição da determinação de necessidades no pressuposto de que, no colectivo em formação, as
necessidades individuais e de grupo são, simultaneamente, produto e produtoras de trajectórias de
formação.
Na Escola da Ponte, o projecto de formação foi “o ponto de referência, em torno do qual se
podem regular os conflitos resultantes da existência de lógicas diferentes”37 e onde o grupo-sujeito
reelaborou valores, crenças, opiniões... Afirmou-se como micro-cultura local, que definiu
objectivos de formação criticamente adoptados e entendidos como instâncias provisórias de recurso
a um saber interior e exterior ao grupo, instâncias de produção de saberes que contrariaram, por
vezes, a hegemonia da distribuição de saberes considerados como legítimos. A Ponte constituiu-se
numa comunidade de iguais, prefigurando uma profissionalidade assente na definição do professor
como intelectual reflexivo, crítico e transformador. Opôs-se a estratégias autoritárias de formadores
que retomam na formação de adultos “as técnicas pedagógicas que desenvolveram na prática
anterior de ensino”38.
36
Stenhouse, L.(1981) An Introduction to curriculum research and development, London, Heinman Educational Books.
37
Correia, J. et al (1990) A acção educativa: Análise psico-social, Leiria, ESEL/APPORT, p.89
38
Dominicé, P.(1990) L'histoire de vie comme processus de formation, Paris, L'Harmattan, p.11
Perfilho dois lugares-comuns do discurso sobre formação continuada: a formação deve
concorrer para aumento da qualidade do ensino; deve ser estimulada a autonomia do formando e
das escolas. E creio que o objectivo da a formação não é adquirir conhecimentos, mas sim
criticamente adquirir a capacidade de adquirir conhecimentos que conduzam a mudanças no modo
de ser e de agir dos professores. Mas o ajustamento a mudanças para as quais o professor contribui
é um processo inverso ao da instalação de resistências àquelas que são concebidas e comandadas
por agentes exteriores. Mais do que a identificação da mudança, prevalece a intenção de
compreender o processo de mudança, de modo a rejeitar aquilo que, sob aparência de novo,
reproduz velhas concepções.
Cada professor estabelece as suas relações com o saber e com os agentes educativos
(alunos, pais, outros...), em função de pressupostos e práticas, que constituem um determinado tipo
de racionalidade. Os programas de formação que sobrevalorizam a racionalidade técnico-
instrumental determinam condições e momentos de assunção pelos professores de recursos técnicos
pretensamente isentos de ideologia. Esta racionalidade assenta sobre princípios de controlo, certeza
e eficácia. Fundamenta-se, epistemologicamente, na crença de que o conhecimento parte do
concreto e chega ao geral através de abstracções e generalizações. O conhecimento, considerado
como objectivo, colide com o discurso que faz insistente apelo a valores não-operacionalizáveis
pelas abordagens positivistas: autonomia, senso crítico, criatividade, participação, democraticidade.
A procura da objectividade engendra um quadro preocupante em que a formação contínua de
professores se assume como um processo marcado pela linearidade, previsibilidade e profunda
estruturação, controlo e determinação. Não há lugar para «pensar sobre o próprio processo de
pensamento»39.
As práticas da Escola da Ponte e de outros grupos de professores poderão abrir espaços
alternativos de formação, onde se confrontem diferentes racionalidades e onde, em última análise, a
racionalidade emancipatória produza juízos e interrogações sobre quem é e como é formado, pois
«ensinar não é só transmitir, mas também promover o desenvolvimento de aptidões e métodos de
pensar e de agir»40.
A formação tanto poderá contribuir para novas modalidades de reprodução social e cultural
como para um processo de desenvolvimento de aptidões e métodos de pensar e de agir críticos. A
formação é uma “área de conflito entre a reprodução e a mudança”, um “território disputado de
tendências conflituais: manter e reproduzir os padrões das formas tradicionais (...), tendência de
promover a inovação e a reforma”41. A formação é um “ponto sensível onde a saúde do sistema
39
GIROUX, H. (1986). Teoria Crítica e Resistência em Educação. Rio de Janeiro: Vozes, p.249
40
Comissão de Reforma do Sistema Educativo (1987) Lisboa, M.E., p.209
41
Lynch, J. (1973:171) cit in Cortesão, L.(1988), op. cit., p.26
educativo pode ser aferida e influenciada”42. Neste entrecruzar permanente de intenções e práticas,
a resistência que molda a adesão a modelos reprodutores, ou acessibiliza a assunção de uma
consciência crítica, poderá ser definida como resultante das interacções de racionalidades várias,
tantas quantos os actores do processo de formação. Daí que se considere como actores, não apenas
os professores em formação, mas também outros agentes, entendido o terreno de formação num
sentido mais lato.
Nos últimos trinta anos de trabalho de formação na Escola da Ponte, verificámos que a
violência simbólica das propostas educativas, os constrangimentos culturais, a reprodução da
estratificação social, somente poderão ser problematizadas no confronto com interlocutores
tradicionalmente marginais ao processo de formação de professores: os alunos, a família, outros
agentes educativos. São as escolas com projectos participados pela comunidade, os lugares
privilegiados de formação de “uma consciência radical e de acção crítica colectiva” 43. Nenhuma
mudança pode fazer a economia dos actos individuais implicados num processo de transformação
colectivo.
Creio que a Ponte instituiu «um processo social através do qual os grupos humanos
transformam o conhecimento que têm da realidade»44. A mudança pressentida como transformação
do conhecimento da realidade ultrapassa o domínio da mudança imposta, que é mudança
conjuntural ou estrutural, mas dos outros: uma mudança que não afecta, nem põe em causa o
professor, nem o colectivo de formação. Nessa dinâmica de formação é possível identificar
diferentes posicionamentos, provavelmente dependentes dos investimentos pessoais, ou da duração
da estadia no grupo de pertença. Vão do simples refinamento do discurso até à alteração profunda
das práticas, passando por estádios de angústia45 e frustração, mas sempre, sempre com o centro do
questionamento no indivíduo e deste no grupo de formação.
Os processos de "crescimento" dos professores, isomorficamente concebidos relativamente
aos dos alunos, são favorecidos pela distância óptima, seja cognitiva, afectiva ou ideológica 46. Esta
distância passível de ser franqueada, entre o interior do actor social e a situação de formação
dificilmente se opera numa situação "apresentada", oferecida. O que pressupõe de partilha e
participação dos actores sociais em formação evoca situações por estes construídas, ainda que
acompanhadas e apoiadas por contributos externos, nomeadamente de investigadores e da
tradicional formação de "oferta". Acontece a mudança na formação sempre que um professor “se
42
Lynch, J. (1973:172) cit in Cortesão, L.(1988), op. cit., p.27
43
Giroux, H. (1986), op. cit., p.149
44
Vielle, P. (1981) L'impact de la recherche sur le changement en éducation, Perspectives, vol. XI, nº 3, p. 339
45
Cortesão, L. & Stoer, S. (1994) A possibilidade de acontecer formação, texto policopiado, p.7
46
Cortesão, L. & Stoer, S.(1994), op.cit., p.8
decifra através de um diálogo entre o eu que age e o eu que se interroga, reduz o desfasamento
entre a imagem que faz de si próprio e a que os outros têm dele”.47
47
Postic, M.(1977) Observation et formation des enseignants, Paris, PUF, p.318
Círculo de estudo
48
Correia, J. (1992), in A Página, Outubro 1992, p. 12
Talvez pelo facto de se falar a mesma língua, no Brasil essas acções conheceram um forte
incremento.
Para que não ocorra o desvirtuamento do “círculo” (o recurso à internet tem riscos...),
justificar-se-á a presente obra. Senti a necessidade de caracterizar essa modalidade de formação,
divulgando uma pesquisa efectuada num tempo em que ainda não existia internet ou computadores.
A Sociedade da Informação contribuiu para intensificar a partilha de saberes e para gerar redes de
experiências. Os professores que experimentam a formação em círculo poderão ser
“intermediários” de uma rede de aprendizagem experiencial na qual a Ponte seja uma (entre muitas)
referências, no pressuposto da continuidade (já referida), da porta aberta para quem ousou entrar,
para quem apenas assomou à ombreira e para aqueles que, futuramente, queiram espreitar
Quando, num encontro de formação, se analisava as características de um círculo de estudo,
alguém comentou: "o que nós já fizemos foi isto mesmo sem lhe darmos este nome". Retive essas
palavras. Releio-as e evoco outros momentos de um já longo percurso de formação, ainda que “não
soubéssemos" que se fazia formação em círculo.
Foi nesses grupos (a que não dávamos nome...) que aprendemos a recomeçar, após cada
contrariedade. Quando, em 1976, cheguei à Escola da Ponte, eu já havia vivido muitas situações de
insucesso pessoal e de frustração profissional em outras escolas. A solidariedade do círculo de
estudos permitiu transformar a acumulação de insucessos numa gramática de mudança. A análise
dos erros cometidos permitiu desenhar uma estratégia, que conduziria à criação do “núcleo duro”
fundador do projecto Fazer a Ponte.
Os círculos sempre foram raros49 e transformaram-se em moda pedagógica. São escassos os
estudos de interpretação e de organização crítica de experiências deste tipo. Por essa razão
justificar-se-á o seu estudo, um estudo de marginalidades, que antecederam a sua assimilação e
descaracterização.
Durante trinta anos, acompanhei, do interior50, processos de auto-formação e aferi o discurso
de professores pelas suas práticas. Foi-me permitido concluir ser hoje mais difícil que há alguns
anos romper uma reflexão sobre a prática que está cada vez mais viciada por lugares-comuns e uma
retórica herdada da formação de modelo clássico (transmissivo, académico, ou o que lhe quisermos
chamar). Pude aperceber-me, directamente, em situação de sala-de-aula, de que esse discurso não
disfarçava o conservadorismo da prática. Um tipo mais subtil de conservadorismo consistia na
adopção acrítica e da "cristalização" de inovações. Alguns sobreviventes de um militantismo tardio
49
Em Abril de 1994, das cerca de 500 acções acreditadas pelo Conselho Coordenador de Formação Contínua de
Professores, apenas 4 eram círculos de estudos.
50
Partilhei o quotidiano de 76 escolas, 400 professores e 8000 alunos, directa e quase permanentemente entre 1987 e
1991.
eram incutidos a debitar, em acções patrocinados pelo ministério, técnicas de iniciação ao método
global da leitura, ou outros paliativos avulsos jamais integrados na prática pedagógica dos
professores.
Há professores que parecem pouco preocupados com a degradação da formação e das
práticas, enquanto outros se insurgem e constróem verdadeiras culturas de resistência. A Lei de
Bases estabelece como factor de valorização profissional uma formação que privilegie uma relação
intensa e permanente com a actividade educativa. Vemos, porém, manterem-se critérios que
alienam esta dialéctica. No campo da formação, as iniciativas foram tradicionalmente marcadas por
uma preocupação eminentemente técnica. Regra geral, visavam rituais de actualização (designados
por reciclagem) concebidos por organismos centrais ou regionais do Ministério da Educação, com
recurso frequente a instituições de formação inicial de professores. Os formadores reflectiam uma
profunda ignorância relativamente a problemas específicos deste ciclo de ensino e escudavam-se,
inevitavelmente, na transmissão de conteúdos teóricos. Esses encontros tiveram, porém, uma
virtude: foram oportunidades não desperdiçadas por alguns professores para interpelar a própria
formação.
Algumas conjunturas foram abertura para a concepção e desenvolvimento de projectos locais.
E, se muitos projectos foram extintos por hierarquias e acomodados, outros houve que resistiram à
erosão do tempo. Se já não vamos a tempo de recuperar o investimento (em recursos e
expectativas) desperdiçado em trinta anos de projectos falhados, poderemos, contudo, aproveitar
mais uma das aberturas consentidas. Isto é: a existência de um regime jurídico que confere ao
exercício da formação contínua regras que, podem não ser ideais, mas que existem. E é também no
quadro do instituído que o exercício crítico se pode concretizar, não se confinando a espaços
periféricos.
No campo da formação ainda são escassos os estudos que incidam em efectivas
transformações. O drama dos pesquisadores tem sido esse: a quem vive o quotidiano da escola, a
quem investiga a todo o momento, não sobra tempo para fazer registos. Os que estudam “sobre” as
práticas observam, captam o supérfluo e generalizam-no. As conclusões de muitos estudos
reflectem a origem dos pesquisadores, raramente a realidade dos investigados. Mesmo quando são
professores a conduzir os estudos, são professores com experiência de uma escola “tradicional”
fazendo, quase sempre, leituras que as suas representações permitem.
O drama dos que estão "dentro" consiste em tudo parecer já ter sido já dito pelos especialistas
sobre a formação. No irónico contraponto com o real é extremamente difícil assumir a humildade
curiosa de quem compreende que na formação contínua não existe ainda um edifício teórico
coerente. Muitas pesquisas limitam-se à recolha de experiências isoladas (ainda que significativas)
e, regra geral, sem consequências práticas, nem continuidade. Assentam em conclusões estáticas,
produtos de modelos explicativos construídos "à priori", ou (o que é ainda pior) são meras
teorizações de teorias que, entropicamente, se legitimam umas às outras. Se a investigação sobre
(ou na) formação não serve a transformação das práticas, para que serve?
Muita formação esgota-se em si mesma, é repositório de receitas avulsas debitadas sobre
auditórios passivos. Os formadores são, em muitos casos, incapazes de concretizar nos seus locais
de trabalho as propostas que recomendam. Fazem apelo teórico à prática de "metodologias activas",
mas a metodologia efectivamente utilizada na formação é a completa negação da teoria. A
dimensão técnica não é, talvez, a mais importante, mas não poderá ser alienada. É inconcebível
pois, que haja quem não tenha alguma vez passado por uma sala-de-aula e oriente formação de
professores em domínios tão sensíveis como a alfabetização.
Manifestações como os círculos de estudos são, regra geral, remetidas para a periferia do
sistema e assumem-se até elas-próprias como marginais. Permanecem ignoradas, sem que delas se
tome conhecimento, ou sobre elas se reflicta. Não constituem novidade, pois estiveram presentes na
génese de grande parte dos movimentos pedagógicos, nas três últimas décadas. Não são
dispositivos redentores dos sortilégios dos modelos tradicionais de formação. “A auto-formação
ultrapassa os quadros sociais de vida. Ela parece ser a expressão de um processo de antropogénese
que extravasa as estratificações sociais e educativas tradicionais. Compreender e trabalhar este
processo obriga-nos a apoiar a reflexão sobre a auto-formação (...) nas ciências emergentes da
autonomização”.51
A definição do círculo far-se-á através de um esforço de sublimação de um objecto que ficou
algures, num percurso de reflexão que continua e se aprofunda. Centrar-me-ei em processos de
formação, no reconhecimento de que tais processos não são independentes da história da vida dos
sujeitos. Esta concepção delimita o objecto de estudo: centrada nas pessoas e no contexto,
desvaloriza a vertente mais tecnicista da formação, isto é, os instrumentos e os meios. Decisão que
julgo coerente com o princípio de que não se trata de avaliar a acção de alguém sobre um grupo
para o conduzir a uma mudança do seu sistema de representações. Os professores são aqui
considerados como «agentes sociais inseridos em contextos singulares que, embora sejam produtos
destes contextos, são também capazes de agir sobre eles e reflectir sobre o seu processo de
transformação»52.
Este estudo é apenas mais um momento de reflexão crítica, um produto inacabado. Limito-me
a procurar compreender onde a formação acontece e como sobrevive. Provavelmente apologético e
51
Pineau, G. (1988) O método auto-biográfico e a formação, Ministério da Saúde, Lisboa
52
Correia, J. (1990) "Inovação, mudança e formação: elementos para uma praxeologia de intervenção". Aprender, 12:31
inevitavelmente imperfeito, será mais um contributo (só pode ser este o termo) para o
conhecimento dos círculos e do indissociável reconhecimento de zonas obscuras no exercício da
profissão de professor. Ao longo de mais de três décadas, assisti impotente à deserção de muitos e
bons companheiros que, saturados de precariedades, rumaram à dignidade em profissões melhor
remuneradas ou de estatuto social mais elevado que a de professor. Porque resisti ao legítimo
exílio, me obrigo a este contributo.
Mas o que são círculos de estudos? Quais as características que os distinguem de outras
modalidades de formação? O que determina a opção pela formação em círculo? A hegemonia do
modelo transmissivo poderá afectar, futuramente, o desenvolvimento dos círculos entendidos como
culturas locais de formação? Onde têm origem os projectos de círculo? Quem é formador no
círculo? Como se formam os professores? Como sobrevivem os círculos? Que vantagens
apresentam? Que potencialidades, adaptações, limites?...
Contributos para a compreensão do círculo de estudo
O círculo de estudos pode ser definido como um “grupo reduzido de pessoas que se reúne
para discutir em conjunto, mas sem professor, uma matéria, de forma organizada” 53. O cerne
inovador será, provavelmente, o não haver "professor" – são os participantes que buscam
conhecimentos, recolhem informações... No exercício de uma permanente dialogia, “penetram o
tema de estudo, relacionando-o com a sua própria experiência e concretizando-o, ou exercitam em
conjunto as suas aptidões, ou realizam um pequeno projecto”54.
Nos países nórdicos, o círculo de estudos foi o mais importante e reconhecido meio de
educação de adultos, no decurso do último século. Na Suécia, por exemplo, calcula-se que mais de
metade da população já tenha frequentado, pelo menos uma vez, um círculo de estudos.
Nos círculos, a formação é um acto total, pois os encontros que deles decorrem implicam
«uma série de acontecimentos e de interacções que são vividos (...) na sua totalidade, ou seja, em
contextos onde intervêm não apenas a (...) biografia pessoal, mas os sistemas de valores e de
normas, constrangimentos económicos, jurídicos, políticos e ideológicos, mais ou menos
interiorizados, aceites ou impostos»55. A formação não é modelação, formatação – traduz-se em
«mudanças de comportamento duráveis nos indivíduos e nos grupos, que são consequência da
estabilização de comportamentos pontuais, da aquisição de conhecimentos na acção e na
capitalização da experiência pessoal e colectiva»56.
A designação de círculo foi dada, no caso presente, a grupos de professores que,
anteriormente, promoviam já uma reflexão sobre as práticas. Autênticas "tertúlias", cujo espaço de
intervenção ultrapassou o espaço da escola, estes grupos pautavam-se por um certo hedonismo, por
rituais de encontro menos finalistas e pouco determinados pelo dever ou pelo trabalho, pela
apropriação contínua do presente e o investimento na errância da exploração do mundo. Estava
neles latente um acentuado sentimento de pertença. A racionalidade dominante era a
comunicacional. O encontro não se restringia à troca de informação, mas uma reflexão-acção
produtora de conhecimento.
A essência do homem é, na sua realidade, o conjunto de relações sociais. O círculo
constitui-se em instância de mediação entre singulares. O professor que participa do contacto com
outros fica outro, transforma transformando-se e disso adquire consciência. O requisito do respeito
pela autonomia do formando e da autonomia do círculo está intimamente ligado ao princípio da
53
Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986) Para uma pedagogia participativa, Braga, Universidade do Minho, p.13
54
Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.15
55
Lesne, M. (1984) Lire les pratiques de formation d'adultes, Paris, Edilig, p.84
56
Pain, A.(1990) Éducation Informelle, Paris, L'Harmattan, p.130
responsabilização a que esta modalidade apela. Dada a sua organização, o círculo é um verdadeiro
núcleo de democracia participativa, onde a responsabilidade é a responsabilidade de todos, e onde
cada elemento é individualmente responsável pelos actos do colectivo.
A participação é precedida de negociação. “A negociação de planos de formação permite
evitar um retorno à abstracção e à exteriorização, tanto nas situações de formação, como no seu
conteúdo, no seu desenvolvimento e na sua avaliação”57. O conhecimento emergente da
comunicação e da partilha é comandado por um interesse emancipatório e, mais que conhecimento-
em-si, é como que uma gramática para uma práxis emancipadora.
Na Suécia, os círculos de estudos surgem em 190258, “criados pelo movimento dito da
temperança, mas são rapidamente desenvolvidos por diversos outros movimentos (sindicatos,
partidos políticos, movimentos ditos de "não-conformismo", associações de consumidores, etc.).
Em 1947, o parlamento decide subvencioná-los sistematicamente (em 80% do seu custo)”59.
Na tradição escandinava, os círculos são associados ao desenvolvimento de uma cultura
democrática mais vasta, tocam problemas culturais, sociais, quotidianos e políticos. No último
caso, refira-se o facto de 150.000 pessoas terem discutido em círculo de estudo a política nuclear do
Governo. Em 1980, numa população de pouco mais de oito milhões de habitantes, mais de três
milhões participavam da formação em círculo60. Em 1986, o quantitativo assinalado corresponde a
um milhão e meio de adultos que “normalmente reúnem uma noite por semana, no período
compreendido entre Setembro e Abril”.61
No início do século XX, a "educação popular" recorria ao círculo de estudo, por lhe
reconhecer potencial de gerar o aparecimento de novos grupos. Nos anos 1920 e 1940, estes grupos
constituem-se em forte movimento, nomeadamente entre as organizações sindicais e nas
comunidades cristãs. Nestas, os conteúdos do plano de estudos excediam o domínio meramente
religioso. A universidade acabou por se interessar por este movimento e organizou ela própria
círculo de estudo, por pretenderem participar no trabalho de "educação popular". A proliferação dos
círculos conduziu à organização de "federações de estudo"62, cada qual com uma conotação
ideológica específica em consonância com os diferentes movimentos populares de que emergiam.
Actualmente, os círculos ocupam-se de assuntos tão díspares como: a aprendizagem de
línguas estrangeiras, o artesanato, a história regional, ou a conservação da natureza. E “nunca foi
57
Peretti, A. (coord.) (1982) Rapport au ministre de l'Éducation National, Paris, La Documentation Française, p.83
58
cf. Embaixada da Suécia (1981) Novas regras para os círculos de estudos suecos.
59
Shwartz, B.(1988), Education Permanente et formation des adultes, Éducation Permanente, nº 92, p.10
60
Shwatz, B. (1988), op.cit., p.10
61
Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.13
62
Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.14
necessário aguardar uma nova formação de professores para se poder estudar uma nova matéria,
nem uma decisão das autoridades para se iniciar um círculo de estudo”63.
O número de participantes varia, normalmente, entre cinco e quinze elementos. A iniciativa
parte de organizações, de associações, de sindicatos, de empresas, ou simplesmente de grupos de
amigos. Em cada círculo existe um "líder", ou "monitor", a quem estão cometidas funções de
organização. As federações de educação e as organizações centrais providenciaram a formação
destes monitores, sob a forma de círculo, ou de curso. O líder de círculo não é remunerado.
O plano de estudos pode ser elaborado pelo círculo, ou obtido numa associação de círculos
de estudo, mediante as intenções expressas pelo grupo. Se o círculo se encontra inscrito numa
qualquer associação, pode ser certificada a formação que realize.
Nos países nórdicos, os círculos são considerados como verdadeiras escolas de democracia
participada, onde a autoridade exercida é sempre consentida e nunca imposta. Mas a tradição de
formação em círculo é escassa nos países de língua portuguesa. Em meados da década de 1980, os
círculos tinham-se multiplicado na região onde a Escola da Ponte está sediada, porque professores
de outras escolas tinham identificado vantagens na formação realizada no primeiro círculo,
constituído em finais da década de 1970, e os excelentes resultados obtidos pelo projecto “Fazer a
Ponte”.
Os participantes na formação diziam que poderiam designá-los desse modo, por "se
assemelhar ao que se vinha fazendo, há muitos anos, sem se saber que era círculo..." Ainda hoje,
os círculos são realidades moventes, fugidias a classificações e até, por vezes, contraditórias com o
recorte dos círculos escandinavos. Porém, coincide com a tradição nórdica nos três objectivos
concretizados nesta modalidade de formação64: «que os participantes adquiram conhecimentos e
aptidões relevantes, que a sua auto-confiança se fortaleça e que se desenvolvam do ponto de vista
social e democrático». Também na organização se verifica uma analogia: a existência de um
«círculo-mãe»65, no qual os animadores dos vários círculos convergem para um trabalho comum de
planificação, troca de materiais e de conhecimento. Apesar deste princípio de coordenação entre os
animadores, pertence a cada círculo a discussão e a modificação do plano de estudos, de modo
autónomo.
Exemplo de síntese de reflexão em círculo66:
63
Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.15
64
Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.21
65
Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.25
66
Todas as citações que não contenham indicação de autor são da autoria de professores que, no círculo de estudo da
Escola da Ponte e em outros círculos, desenvolveram formação ligada a projectos de mudança nas suas escolas. As
citações foram extraídas de actas e de outros documentos produzidos nos círculos. O documento mais antigo data de
Setembro de 1976; o mais recente é de Junho de 1993.
“O Círculo de Estudo aproxima-se da ideia de projecto colectivo. Está implícito o
princípio do paralelismo entre desenvolvimento pessoal e profissional, a harmonização
entre o individual e o colectivo. Basta a afinidade com um problema comum a outros
professores: as dificuldades sentidas na concretização de um projecto, a prática de uma
"nova avaliação” etc. Basta disponibilidade, cooperação, vontade de ajudar e abertura
para ser ajudado. Basta poder recorrer, se necessário, a alguém que saiba integrar-se no
grupo e apontar pistas de solução, alguém que apoie professores na síntese entre teoria e
prática, que viabilize mudanças na prática pedagógica. O objectivo é o bem-estar no
grupo, a melhoria das condições de trabalho do professor, que o mesmo é dizer dos
alunos que ajudamos a crescer e a formar-se."
A experiência pioneira da formação protagonizada pela Escola da Ponte assumia que para
criar um tipo de relação social entre indivíduos em pé de igualdade e não uma situação hierárquica,
a organização deve ser tal que permita uma relação directa entre todos os participantes, que,
exprimindo-se e agindo diversamente, constituem uma comunidade de adultos em auto-formação,
que surge por princípios democráticos e não-autoritários.
O quadro seguinte apresenta uma síntese dos contrastes entre o conceito de círculo e a
formação de modelo escolar67:
69
Giroux, H. (1986) Teoria Crítica e Resistência, Petrólopis, Ed. Vozes.
70
Maisonneuve (1974), cit in Delome, C. (1985) De la animación pedagógica a la investigación-accion, Madrid,
Marcea, p.42
71
Freire, P. (1971) Educação como prática de liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, p.103
72
Freire, P. (1971), op.cit., p.109
73
Santos, B. (1988) O Social e o político na transição pós-moderna, Comunicação e Linguagem, 6/7, p.35
No círculo, a reflexividade concretiza-se em ciclos recursivos, que se desdobram em dois
momentos: o momento do fazer, onde o saber se investe nas actividades, e o momento do saber,
onde este, que é já conhecido na prática, se reelabora a um nível superior de formalização. A
reflexividade não pode, porém, ser reduzida a esta alternância. No círculo, ela é um movimento
protocolar entre formador interno e formador externo, no qual este toma, fundamentalmente, o
desempenho de uma função de consultadoria, a que o círculo se abre por reconhecer indispensável
a reflexividade externa.
“Não existe um conhecimento profissional para cada caso-problema, que teria uma única
solução correcta. O profissional competente actua reflectindo na acção, criando uma nova
realidade, experimentando, corrigindo e inventando através do diálogo que estabelece com essa
mesma realidade. Por isso, o conhecimento que o professor deve adquirir vai mais longe do que as
regras, factos, procedimentos e teorias estabelecidas pela investigação científica”74. Como
profissionais, os professores não só dispõem de um corpo sistemático de conhecimentos básicos,
mas também de uma cultura comum: “sem sair do processo de produção real (como contraponto a
uma alternância de situações de formação/situações de trabalho de eficácia discutível) e com o
auxílio de dispositivos pensados, preparados e organizados, a pessoa em formação pode apropriar-
se com força e pertinência dos saberes e dos saberes-fazeres necessários à compreensão, conduta e
acompanhamento dos processos profissionais ligados à sua função”75. A formação, como processo
complexo de apropriação crítica e criativa de elementos científicos, culturais e técnicos, implica a
descentração do sujeito-agente de formação e a compreensão das inter-subjectividades,
solidariedades e autonomias vividas na resolução de problemas comuns. No alfobre desta alquimia
colectiva se engendram, estudam e solucionam problemas sociais e comunitários.
Na definição de profissionalidade docente, raramente se reconhece o professor como
detentor de controlo sobre a profissão e as condições do seu exercício. O controlo das condições de
trabalho estão cometidas à administração escolar. Não surpreende que os professores tenham
desenvolvido atitudes defensivas, que os remeteram para níveis inferiores de autonomia e
reconhecimento social. O professor circunscreve o exercício da autonomia ao espaço da sala de
aula. A consideração da escola como lugar privilegiado de formação fica comprometida. O estudo
dos dispositivos de formação na Ponte e a identificação das suas características poderão ser úteis
para o retomar da ideia da escola como espaço e tempo de uma formação com intensa relação com
a prática profissional. Um círculo de estudo é como um ecossistema de relações e mudanças
74
Gomez, A. (1992) O pensamento prático do professor in Nóvoa, A.(coord.) Os professores e a sua formação, Lisboa,
D. Quixote/IIE, p.110
75
Lesne, M. & Minvielle, Y. (1988) Socialisation et formation d'adultes., Éducation Permanente, 92, p.36
simbólicas gerador de significado para a mudança pessoal e das práticas, em grupo. A formação
acontece numa sobreposição de interrogações críticas inseridas em contexto de trabalho.
Toda a relação formativa é uma relação entre culturas no desiderato da elaboração de uma
cultura específica. A organização da cultura círculo subordinou-se a critérios como a afinidade de
interesses, a afectividade, a proximidade das escolas. O símbolo é a causa e o efeito de toda a vida
societal. Portanto, não é somente com base na consciência ou na razão que o grupo se constitui [e]
são os símbolos que têm origem no grupo [que] permitem a continuidade.76
Ao procurar definir os contornos-características da formação em círculo, não estou a procurar
mais que compreender, para revelar, este ou aquele aspecto até agora mais ignorado ou esquecido
no campo da formação contínua. Busco a compreensão do círculo através da reunião de
significados que mais não são que uma simbologia reconhecida nos traços de um discurso
individual no colectivo. Quando se penetra no grupo através do sujeito este projecta
necessariamente no discurso o seu grupo interior e revela assim as relações especiais que ele
mantém habitualmente com os outros.
E não só... Torna-se tarefa difícil isolar o que é específico do que é local. Todavia julgo ser
possível identificar quatro orientações das culturas locais de formação a que, por necessidade de
classificação, se convencionou designar de círculo de estudo:
78
Bogard, G. (1991) Pour une éducation socialisatrice des adultes, Strasbourg, Conselho da Europa, p. 9-10
79
Bogard, G. (1991), op.cit., p.22
A formação em colectivo não subjuga projectos individuais. Esta tensão confere ao círculo
uma qualidade específica. O triângulo pedagógico formando-objecto de formação-formador não é
abolido, mas reelaborado. A linearidade e unicidade da transmissão magistral de saberes é
moderada por uma apropriação dos saberes, acompanhada e partilhada com os pares do círculo.
Combina-se teoria e prática, trabalho colectivo e trabalho individual, segundo diferentes modos de
acesso, de indivíduo para indivíduo, através do colectivo. A preservação do individual no grupo
sujeita-o a desestruturações sucessivas, que podem afectar a sua coesão até ao ponto de
desaparição. Os círculos actuam pela cissiparidade. Se o conflito de intencionalidades se apresenta
indissolúvel, o círculo subdivide-se, multiplica-se para procurar novas identidades, embora
mantenha as características do círculo original.
O professor situa-se nas descontinuidades e previne-se para a eminência de reformulações
do seu projecto pessoal; firma acordos tão precários como coerentes com o círculo, cujos contornos
de identidade social mais se aproximam da sua identidade pessoal. O projecto pessoal é sempre um
compromisso prudente entre as possibilidades objectivas de um grupo aberto, mas apesar de tudo,
constrangedor com determinada etapa de progressão pessoal na formação. O ineditismo deste tipo
de tensão entre projectos permite afirmar a intimidade, sem que se processe a ausência do outro,
numa intimidade feita da presença de intimidades próximas.
Provavelmente característica da transformação paradigmática, que também atravessa o
campo da formação, agudiza-se a interpelação séria das escolas teóricas tradicionais. São inúmeros
os sinais e é imensa a criatividade marginalizada. Talvez seja tempo (ou demasiado tarde?) para nos
determos no banal quotidiano dos professores para refazermos as certezas. «Mas isso exige um
estudo profundo, uma aprendizagem do desaprender»80. O círculo propicia ao adulto em formação o
trabalhar a seu modo, o promover rupturas ponderadas no continuum de experiências individuais e
colectivas, o confronto reflectido com o real, na resolução de problemas próximos, que não passa
pela aplicação linear de modelos teóricos instituídos, nem pelo decalque de experiências não-
reflectidas.
O círculo declina monopólios da formação, ao inscrever as suas práticas no seio de uma
sociedade educativa mais vasta, reivindicando o princípio que afirma que a formação acontece nas
circunstâncias mais comezinhas e informais. Sem descurar a formação instituída, situa-a na sua
incapacidade de “responder às questões sobre o singular na linguagem do singular”81. Ao
conhecimento construído, que privilegia a dimensão cognitiva, junta-se o conhecimento
80
Caeiro, A. (1979) Poemas, Lisboa, Ed. Ática, p.48
81
Delbos, cit in Courtois, B. (1989) L'aprentissage expérientel, Éd. Permanente, nº 100/101, p.10
relativizador, que todo e qualquer fenómeno imprime na experiência individual e colectiva
(política, profissional, social, cultural...).
O círculo vai "mais longe" porque, ao promover a síntese de conhecimentos, adita-lhe a
possibilidade efectiva de agir. O professor em círculo parte da experiência do fenómeno para agir
sobre ele e, colectivamente, assumir as consequências da acção. Este duplo movimento não fica
completo sem uma actividade intelectual intensa, que permite o confronto de interpretações e a
integração do conhecimento produzido. Segundo Kolb – referindo-se à aprendizagem experiencial
– este trabalho reflexivo «põe em jogo duas operações mentais diferentes mas ligadas: apreensão da
experiência e a sua transformação. Cada uma destas operações articula duas acções em si-mesmas
diferentes: a apreensão e a compreensão para a posse da experiência: a sua interiorização psíquica e
a sua exteriorização social, para a sua transformação»82.
Enquanto projecto existencial, o círculo concretiza algumas das muitas correntes no campo
da formação: “o prazer que inclui a livre escolha do objecto de aprendizagem, assim como o
momento, o lugar (...); um espaço suficientemente vasto, que torna possível a vagabundagem de
espírito, a descoberta, a reflexão; a diversidade que estimula a curiosidade”.83 Torna viável a
concretização destes ensejos, por permitir a manutenção de um contexto estável. O compromisso
do indivíduo com uma prática deste tipo radica em projectos de existência que de latente se torna
deliberação e acção. O indivíduo decide suportar o questionamento da sua prática, a exploração da
sua própria identidade porque se supõe acompanhado de pares com idêntica disposição. E esse
questionamento não é meramente intelectual. É existencial. É o modo concreto de escapar a um
destino preestabelecido. Para tal, o círculo oferece ainda o testemunho alheio que confirma, ou
contraria o vivido pessoal. Renova-se a utopia dos pequenos grupos que não uniformizam e
escapam ao círculo vicioso da reprodução, pela reinvenção de formas criativas de resistência.
As utopias são necessárias como função crítica do real. Nos espaços intersticiais das
contradições dos sistemas sociais, será preciso mobilizar energias criativas fundadoras de uma
actividade humana não alienada. Reconheça-se a existência de uma «centralidade subterrânea
informal que assegura o perdurar da vida em sociedade. É na direcção desta realidade que
deveremos olhar... Trata-se de um desafio para os decénios vindouros»84. Um desafio não
desprovido de riscos e obstáculos. Se “uma forte vida comunitária é, em democracia, a melhor
garantia para que os seus cidadãos não se transformem nos últimos homens”85, as obrigações
absolutas, que unem os indivíduos nas estruturas autoritárias, demonstram múltiplas fraquezas.
82
Kolb, D.(1984) Experiential learning, cit. in Pineau, G. (1989) La formation expérientielle en auto-eco-et co-
information, Éducation Permanente, nº 100/101, p.25
83
Gronemeyer, M.(1989) Les chocs de la vie, moteur ou frein de l'aprentissage? Éducation Permanente, 100/101, p.80
84
Maffesoli, M.(1988) Le temps des tribus, Paris, Meridiens Klincksiek, p.15
85
Fukwyama, F.(1992) O Fim da História, Lisboa, C.L., p.311
O irracional originário dos círculos, as inquietações, as errâncias, os desejos, são cimento
forte, mas não suficiente para a sua preservação. E, se é falsa a separação do objecto da emoção que
provoca, o objecto-círculo pode ficar cativo do emocional e apresentar flancos de ductilidade
social. O objecto pensado é sempre um segundo objecto, mas vale a pena obstar à ductilidade com
o exercício do repensar o círculo na permanência em círculo. Sem deixar de conferir primazia à
energia do marginalizado, importa vigiar o erro que nos preserve de erros alheios.
Sempre que houve necessidade de realizar encontros de círculo numa escola que não a
Ponte, até na reorganização do espaço e equipamento se reflecte a pressão dos rituais: no final de
cada encontro, dever-se-ia recolocar as mesas todas voltadas para o mesmo lado... Não sei se li
algures que as instituições são a medida do Homem, mas sei que o círculo pode ser um dos
aferidores do instituído que oprime.
Etapas comuns na criação de círculos de estudo
o número de elementos que o constituem, ainda que os grupos com mais de onze ou doze
elementos tenda a descaracterizar-se;
a duração do projecto, que pode ser definido ad aeternum, ou enquanto se justificar;
a cópia de instrumentos ou enxerto de processos à prova de professor;
a consideração do grupo como instrumento ou como meta;
a quantidade dos encontros de formação;
a consolidação de dispositivos de colaboração interna, se comparada ao consolidar da
articulação com a comunidade envolvente;
a hetero-avaliação, se confrontada com o rigor da auto-regulação;
o estatuto científico do monitor, se o comparamos com a sua competência para agir no
seio de um grupo com as características de círculo;
haver, ou não haver, um formador externo;
a formação teórica divorciada de uma praxelogia que lhe confira pertinência.
87
Pelletier, C.(1993) Professional Development trough a Teacher Book Club, American Educational Research
Association, Atlanta
Os círculos de estudos emergem de projectos que, sendo locais e singulares, reflectem um
pensar global sobre os problemas que estão na sua origem – “Cada professor e cada situação, como
cada grupo, ou cada escola, é algo único e irrepetível. Ainda que em grupo, o professor não está
completamente determinado”.88 O círculo reivindica o estar no seu tempo e a seu modo. E, numa
época em que a cultura apenas parece servir para ser consumida, é significativo que haja grupos
que facultem a cada um o direito e a possibilidade de pensar por si próprio e de recriar
culturalmente o seu tempo e espaço de intervenção.
88
Pacheco, J. (1993), Memória e projecto, Correio Pedagógico, Abril, nº74, p. 9
Características do círculo de estudos
89
Bataille, M.(1981) Le concept de chercheur colectif dans la recherche-action, Les Ciences de l'Éducation, 2-3, texto
policopiado, p.30.
90
Bataille, M.(1981) "Le concept de chercheur collectif". Les Sc. de l'Éducation, 2/3 :26-38, p.31
91
Bataille, M.(1981) op.cit., p.32
92
Bataille, M.(1981) op.cit., p.33
93
Pain, A. (1990) Éducation Informelle, Paris, L'Harmattan, p.179
94
Santos, B. (1986) Oração de Sapiência, Coimbra, pp.14-22
por descurarem elementos dos contextos em que se processa, ou pelo facto de um intransponível
fosso se instalar entre os dispositivos de análise e os idiossincráticos dispositivos de formação.
A definição do círculo permanece venturosamente num estado de latência. Tem sido
protegida da erosão dos estudos fixistas dado que as suas características são de tão simples
determinação como fluídas. Os dispositivos de uma análise externa defrontam-se com o ilógico, o
indeterminado de errâncias formativas que se furtam às premissas mais infalíveis. Numa
aproximação compreensiva às características do círculo, a intenção é mais de questionamento que
de explicação causal. As características ideais não podem ser analisadas isoladamente, nem
desligadas da situação do vivido. Não se creia que a singularidade recusa a objectividade neste
assentimento. A circunstancialidade e o registo histórico localizado são componentes dessa
objectividade, por tudo o que de subjacente se eleva ao nível dos processos explícitos, pelo que tal
significa na articulação entre elementos tradicionalmente dissociados. É preciso inverter o sentido
tradicional da investigação, buscar a compreensão dos processos na realidade das situações, não em
laboratório. É necessário, sobretudo, interpelar procedimentos estatísticos que podem informar-nos
de mudanças operadas, mas não nos informam dos processos. Entre as prescrições de política
educativa e as mudanças nas práticas existe numa complexa teia de mediações, processos habitados
por pessoas e grupos, que condicionam as intenções de sentido único do centro para a periferia do
sistema.
Acrescentaria que, na análise de conteúdo, não há um modelo ideal. Neste caso, o corpus da
análise não foi constituído por material produzido para a pesquisa. A selecção dos segmentos impôs
riscos de delimitação, riscos de relevância de segmentos avulsos e pouco significativos, em
detrimento de excertos de forte intensidade heurística. É grande a diversidade e a heterogeneidade
das fontes e impossível simplificar o discurso, para o enquadrar em limites estáticos. A opção foi a
da focalização no posicionamento dos actores face às condições do exercício da profissão e da
formação. É um posicionamento ao mesmo tempo individual e colectivo. Os segmentos não
ganhariam significado na sua frequência, mas no cruzamento avaliador de coerências.
O círculo constituiu-se em universo identitário, fonte e produto de representações que
indiciam uma transformação efectiva das práticas sociais em formação. E quais são os traços mais
significativos da cultura de formação "círculo"?
“Ao longo dos anos 90, a formação contínua dos professores não poderá deixar de
conceber a máxima atenção às dinâmicas de auto-formação participada dos professores,
em inter-relação com o desenvolvimento dos projectos educativos de escola”95
pela iniciativa - como se toma a decisão e quem toma a decisão de organizar o círculo;
pela consideração da experiência - como se re-elabora o capital de conhecimento adquirido
e investido em acções anteriores;
pela diversificação - como emergem as diferenciações, os desenvolvimentos imprevistos e
como estes influenciam a evolução do círculo.
95
Nóvoa, A.(1991) "A Formação Contínua Entre a Pessoa-Professor e a Organização-Escola". Inovação, vol.4, nº1,
Lisboa, IIE, p.68
Nos círculos, a formação decorre da formulação de um problema destacado da complexa
teia de problemas que afectam a escola. O problema pode ser referido aos alunos, ao grupo-turma,
aos professores, a outros agentes educativos. Nada de novo. O paradigma de formação continuada
centrada na resolução de problemas é, desde há muito tempo, objecto de reflexão96. O inédito
consistirá, possivelmente, no facto de a formação decorrer no hic et nunc da manifestação do
problema.
“Onde há encontro há formação (...) construção pessoal e colectiva (...) simultaneamente
auto-conhecimento e conhecimento do mundo, construção activa do sujeito” 97. A análise dos
problemas levantados não se limita à produção de uma mudança nos comportamentos nos actores-
autores envolvidos no projecto. “Consiste numa conquista progressiva de autonomia e de
consciência da totalidade e complexidade das experiências partilhadas com os outros. No contexto
de um projecto de formação, é o sujeito que se constrói na atribuição de significado ao
conhecimento colectivamente produzido. Num grupo de projecto há sempre produção de mudança
e formação, ainda que não-intencional”.98 Dito de outro modo, um projecto de círculo é também “o
ponto de referência em torno do qual se podem regular os conflitos resultantes da existência de
lógicas diferentes”.99 O grupo de projecto favorece a transformação crítica de opiniões e de
conceitos. Os participantes confrontam-se permanentemente com referências diferentes das que
orientaram a construção dos seus universos representacionais e das práticas.
O círculo considerado como cultura local de formação evidencia a indissociabilidade com a
ideia de projecto educativo e considera o professor e a escola como pontos de partida e destino de
experiência, em intercâmbio com outros projectos pessoais ou de grupos. «A troca de experiências
e a partilha de saberes consolidam espaços de formação mútua, nos quais cada professor é chamado
a desempenhar, simultaneamente, o papel de formador e formando. A construção de dispositivos de
formação assistida e participada, através da diversificação das modalidades de apoio e de
consultadoria, favorece a elaboração de projectos pessoais de formação».100
Os projectos que subjazem aos projectos de círculo denotam abertura à pluralidade,
indiciam uma rejeição sensível de modelos, um privilegiar da incerteza. O projecto, qualquer que
seja, denuncia uma invariante: a da formação para a complexidade. No círculo, o futuro existe
como uma ideia difusa que é necessário não simplificar; não há preocupação apenas com o
encontrar de soluções imediatas e eficientes; prevalece uma causa final, um projecto, uma ideia
96
Érante, M. (1985) In Service Teacher Education, The international Encyclopedia of Education, Vol. 5, United
Kingdom, Pergamon Press
97
Pacheco, J. (1993), Memória e Projecto, Correio Pedagógico, Abril, nº 74, p.8
98
Pacheco, J. (1993), op.cit, p.8
99
Correia, J.(1990) A acção educativa: análise psico-social, Leiria, ESEL/APPORT, p.89
100
Nóvoa, A.(1991) A formação contínua entre pessoa-professor e a organização-escola, Inovação, Vol.4, nº1, p.71
(ainda que vaga) daquilo que virá101. Será uma das formas da ultrapassagem de uma formação de
curto prazo, em sentido restrito. Situada a acção no quadro de um projecto individual e colectivo,
confere coerência às acções pontuais, à acção imediata. mas com vista à prossecução de objectivos
mais vastos. O contrário resultará no controlo de situações urgentes que, logo que controladas, se
apresentam caducas e sem significação projectiva.
O projecto em círculo é sempre o discurso inconsciente do grupo, que gera transferências e
conflitos. É também aprendido no imaginário do grupo, que “no sentido etimológico do termo (...)
permite "prender a si" o real”102 e ultrapassar dualismos. Na falta de um projecto, a autonomia do
círculo transformar-se-ia numa auto-suficiência mortal.
Para que haja projectos de formação é preciso que haja projectos educativos nas escolas (e
vive-versa), é preciso que haja colectivos em auto-formação contínua. Porém, sabemos serem raras
as escolas com projecto educativo103. Na sua maioria, dispõem de um plano de actividades
desarticulado e incoerente, ou de um conjunto de intenções escritas por um ou dois professores
mais voluntariosos (em nome colectivo). São repositórios de lugares-comuns do discurso
pedagógico contemporâneo. O mais grave é que os professores que aportam à formação em curso
estão convencidos (ou aparentam estar) de que dominam os pressupostos da acção, de que operam
aprendizagens activas e significativas nos seus alunos. Pura ingenuidade reforçada por muitos anos
de uma formação que confirma os equívocos.
Ao cabo de dois ou três encontros de formação, toda a construção se esboroa. Depois, é
preciso recuperar os pedaços que ficaram dispersos e devolver ao professor uma segurança
questionante, que possa colmatar as brechas da presunção derrubada. Muitos dos professores que
atravessaram esta situação desconstrutora e re-estruturante organizaram-se, posteriormente, numa
formação em círculo. O círculo não é um paliativo redentor, mas chega-se até ele, muitas vezes,
pela consciencialização das aparências. Por vezes, os formandos levam para os encontros de círculo
documentos e instrumentos de trabalho que lhes foram oferecidos em cursos, mas que jamais
conseguiram utilizar, integrar nas suas rotinas, nas suas práticas pedagógicas. No círculo,
participam de projectos nos quais os mesmos instrumentos podem ganhar pertinência.
101
Nóvoa, A. (1991), op. cit., p.71
102
Jean, G.(1976) Pour une pédagogie de l'imaginaire, Paris, Casterman, p.33
103
Entre 1993 e 1995, na minha actividade de formador, não em círculo, mas em curso, trabalhado com milhares de
professores, verifiquei que apenas duas escolas dispunham de projecto (os projectos apenas no papel não são
contabilizados...)
No século XXI, continuam por concretizar as promessas que deram ao século XX o epíteto
de “século da criança”. As escolas mantêm práticas assentes em modelos pedagógicos obsoletos
legitimados por um revestimento discursivo plagiado de uma qualquer cartilha. E ninguém parece
importar-se com isso. Os estudos oscilam entre o eufemismo e a desculpabilização paternalista. As
suas conclusões são feitas de fragmentos e citações contaminadas por memórias alheias, ou pela
própria memória dos autores, que os impedem de denunciar aberrações: o estrado e a secretária
como centro estratégico de difusão de ensino; o ditado seguido de leitura seguida de cópia seguida
de contas, problemas, redacção, fichas, ralhos, ameaças, gritos... e mais estrados e mais cadeiras de
sentar na secretária...
Quanto mais se caminha para juzante do sistema educativo maior indigência pedagógica se
encontra, ainda que se mascare de presunção de um saber científico e disciplinar. Mas os estudos
não revelam o que, efectivamente, se passa nos primeiros anos de escolaridade. Tomo um exemplo
concreto do absurdo: a Reforma Curricular de 1989 prescrevia uma aprendizagem da leitura e da
escrita com recurso a metodologias activas e, particularmente, a adopção de métodos ditos
“globais”. Para os legisladores, parece haver acordo entre intenção e prática. Porém, na quase
totalidade das escolas portuguesas, as letras continuam a ser "ensinadas" no decorar rotineiro e
violento de frases idiotas, do tipo: "a tia tapa o pote e a pua", "o queque e o quepe e o quá-quá do
paquete", ou "o pópó é do papá do Papu".
As escolas funcionam como espaços justapostos, quase sem actividades comuns. Em
horários de regime de curso duplo, os professores que trabalham da parte da manhã quase não
conhecem os colegas da tarde. O trabalho de reflexão feito em comum está ausente. A
monodocência, redutoramente interpretada e legalmente imposta, mantém a figura do professor
generalista nos primeiros quatro anos de escolaridade. Talvez este erro “legal” seja responsável
pelas assustadoras cifras de analfabetismo literal e funcional. A alfabetização é uma das áreas onde
o conhecimento “generalista” provoca mais danos...
Cada professor encontra-se entregue a si próprio104. Quase não existe trabalho de equipa. A
formação de guetos disciplinares impede a existência de efectivos projectos. Poder-se-á falar de
projecto educativo em escolas onde os professores não se encontram, ou onde se reúnem por
constrangimento? Poder-se-á falar de projecto, se as práticas profissionais fomentam e reproduzem
um novo tipo de analfabetismo político e cultural?
Na formação em círculo, todos os professores estão, concomitantemente, envolvidos num
projecto de acção, na sua escola, por mais insignificante que pareça.
104
Berger, I.(1979) Les instituteurs d'une generation à l'autre, Paris, PUF
"O que fazemos é pouco, mas é verdadeiro (...) o trabalho foi proveitoso para, porque me
ajudou a reflectir sobre o que deve ser feito com a equipa, realizando o projecto
pedagógico (...) foi muito positivo para mim reflectir sobre o conceito de escola, que não
é trabalho de um professor, mas trabalho e responsabilidade de uma equipa de
professores, dos pais, da comunidade educativa e local."
"Um projecto pressupõe uma prática pedagógica inovadora e uma harmonia concreta
entre a escol e a comunidade em que se encontra inserida (...) o espaço de acção
alargou-se, saímos das quatro paredes da escola, actuámos com e para a comunidade".
105
Crozier, (1982) Mudança individual e mudança colectiva, in Vala, J.(coord.) Mudança social e psicologia social,
Lisboa, Livros Horizonte, p.75
da estabilização de comportamentos pontuais, da aquisição de conhecimentos na acção e da
capitalização da experiência individual e colectiva»106.
"Quero que me situem apenas no meu trabalho diário com os alunos (...) ao contrário do
que costumava fazer, os meus alunos passaram a contar as novidades no fim da aula e eu
verificou que isso trazia vantagens (...) o trabalho que foi apresentado veio obrigar-nos a
pensar sobre o trabalho que fizemos com as nossas crianças e o porquê (...)
principalmente, levou-me a uma reflexão sobre o meu trabalho com os alunos e à
possibilidade de ele vir a ser modificado (...) parece que estou a principiar a aprender".
106
Pain, A.(1990) Éducation Informelle, Paris, L'Harmattan, p. 130.
107
Gage & Berliner (1975) Educational Psycology, Chicago, Rand Mc Nally College Publishing, Cº, p. 450
108
Shulman, L.(1986) "Knowledge Growth in teaching", Educational Researcher, 15(2), p.14
109
Jean, G. (1990) Cultura pessoal e acção pedagógica, Porto, Ed. ASA, p.95
"Sou professora há trinta e dois anos, uma vida a ensinar e a aprender. Nunca foi fácil.
Por certo, não sou, hoje, a professora que fui no início da carreira. Não sei se serei
melhor, mas certamente serei diferente. De uma coisa eu tenho a certeza: sempre tentei
fazer o melhor para os alunos (...) Aqui, na Ponte, não me disperso tanto, sigo mais uma
linha que me conduz àquilo que pretendo e que entendo seja melhor para as crianças (...)
Aqui, apercebi-me de que elas não são recipientes virgens, onde os «mestres» despejam
cultura a «potes», fazendo da sala de aula uma área de passividade, quando devia ser
precisamente o contrário - activa, em movimento, aberta à crítica"
"Estas reuniões, em círculo de estudo, levaram-me a uma reflexão sobre o meu trabalho
com os alunos e à possibilidade de ele ser modificado (...) na sala de aula, habituei-me já
a planificar com os alunos, escrevendo num cantinho do quadro o plano diário e levando
cada aluno, no fim da aula, a fazer a avaliação do seu trabalho, registando se cumpriu
ou não o seu plano (...) sinto que alguns alunos se tornaram mais responsáveis e que
possuo já alguns instrumentos para melhor poder avaliá-los."
"As nossas práticas resultam de um trabalho de equipa de professores empenhados em
aprofundar e enriquecer as capacidades dos alunos, tendo em vista a formação de seres
felizes, sociáveis, autónomos, criativos e críticos. Temos necessidade de actualização,
para que os nossos alunos se sintam felizes na escola."
A autonomia que, no círculo, se reivindicava para os professores e a escola era a autonomia que
se outorgava aos alunos. Ninguém dá o que não tem. Mas ninguém poderá recusar-se a partilhar o
110
cf. Huberman, M. & Shapiro, A. (1985) Cycle de vie et enseignement, Les Sciences de l'Éducation, 3, p.5
111
Josso, C.(1991) Cheminer vers soi, Lausanne, Ed. L'age d'Homme, p. 47
que possui. Por isso, a formação dos professores, na Ponte, não era somente a concretização de um
projecto pessoal e colectivo, mas sobretudo a exigência profissional colocada ao serviço do sucesso
pessoal e educativo dos alunos:
"Os professores que nos auxiliam, ou criticam, são a razão mais forte que nos aumenta a
vontade de continuar a fazer mais e melhor por aqueles que, somente olhando, já nos
pagam (...) aprendo com os meus erros, mas, por vezes, sinto-me angustiada, ao pensar
que eles poderão influenciar negativamente os meus alunos."
"Somos por uma "escola aberta (...) mas, na prática, o que se tem feito com os nossos
alunos, para que aconteça abertura, criatividade?"
«Eu creio que a maior preocupação dos professores, o que os leva a sentirem a necessidade da
transformação, será o facto deles pensarem nos seus alunos. Este é o objectivo nobre. Qualquer
formação que não procure isso engana quem a procura e quem a fornece. À partida, no projecto em
que nós participamos, eu acredito que os professores venham com o propósito de compreender que
a formação não é para os professores. A formação continuada faz-se para os alunos (...) Tudo se
reaprende quando se passa a estar com as crianças»112. Esta finalização formativa encontra-se nos
antípodas da formação «centrada no ensino, que só muito remotamente tem em conta a
aprendizagem»113. Fazer os alunos mais felizes será fazer passar a formação pelos professores, para
que a formação passe pelos alunos.
“Sinto diariamente que algo ficou por dizer, algo ficou por ensinar, e cada vez mais sinto
medo de ser uma má professora, mais ainda porque sou mãe de um filho que iniciou
112
Pacheco, J.(1993) Grandes insignificâncias, in Revista Educação/nº 6, Porto, Porto Editora, p.52
113
Correia, J.(1989) Inovação Pedagógica e Formação de Professores, Porto, Ed.ASA, p.90
agora o seu percurso escolar: por isso estou aqui porque quero "dar" aos meus alunos
aquilo que gostaria que "dessem" aos meus filhos (...) resumindo: tanto estudo de
iniciação e aprofundamento que tenho de fazer e quão pouco tenho feito! Mas estamos no
caminho certo (...) agora, acho uma maravilha fazer a ligação com os seus problemas e
as suas experiências, demorar-me longamente com assuntos que para eles são
importantes. Todavia, até há tão pouco tempo, eu sentia-me aprisionada por tempos
lectivos rígidos e curtos, extensos programas, necessidade de classificar os alunos.
Anulava, à partida, tudo o que perturbava as aulas, ou desviava a atenção dos alunos das
suas tarefas, segundo a forma que eu tinha pré-estabelecido (...) com a «chuva de
ideias», todos os alunos tiveram oportunidade de dar o seu contributo e de ver que as
suas ideias eram tomadas em consideração. E aprenderam que o seu contributo
individual era importante, mas que não poderia ser imposto de forma a inviabilizar
outros contributos. Experimentei também o conselho do professor Zé, que disse que, «se
os alunos copiassem a responsabilidade seria deles», e nunca mais separei os alunos, ou
distanciei as mesas. Quase todos já entenderam que não vale a pena copiar. E eu evitei a
enorme confusão que surgia no início e no final das aulas. É que tinha que deixar a sala
como a encontrei."
“Foi por altura da introdução dos novos programas para o ensino primário (1980) que
alguns professores vieram a compreender que não há apenas dificuldades de aprendizagem; há
também dificuldade de ensino”114. Esta compreensão permitiu juntar à discussão sobre as condições
do exercício da formação e da profissão, a discussão das condições do exercício da aprendizagem.
Esse momento marcou uma inversão clara do sentido do agir na formação. Gradualmente,
os professores passaram de indivíduos justapostos e isolados – que impunham a justaposição e o
isolamento aos alunos – a professores em busca "do melhor para alunos"... que seria o melhor para
os professores.
A génese do círculo, tal como hoje o caracterizamos, acompanhou o distanciamento
relativamente a formadores externos, que instituíam com os professores o mesmo vazio constitutivo
que os professores habitualmente produzem junto dos alunos, e que é a negação da intimidade e dos
afectos.
114
Pacheco, J. et al (1993) Avaliar a avaliação, Porto, Ed. ASA, p.32
"Devemos promover a realização de cada educando (...) tal como os meus alunos,
também eu tenho o «caderno da escola», onde registo tudo o que se vai passando ao
longo do dia (...) todos somos professores, mas nem sempre somos capazes de cumprir o
que exigimos aos nossos alunos"
Na sua versão provisória, o documento que viria a constituir o primeiro esforço sério de
inventariar as condições do exercício da profissão, realçava o sentimento de solidão de muitos
professores:
115
Versão preparada para o encontro sobre "Práticas de Gestão", Lisboa, Universidade Católica,
26-29 de Abril de 1988
116
GEP (1988), texto policopiado, p.37
117
GEP (1988), texto policopiado, p.6-7
Encarada a "possibilidade" de quebrar o círculo vicioso da reprodução de dependências,
poder-se-á deslocar a questão do domínio da gestão para o da relação, do domínio do saber
tradicional para a da comunicação que o relativiza e lhe confere novo sentido. Será provável o
aparecimento de mecanismos de auto-regulação e sustentabilidade, o aparecimento de formas de
mutualismo, de inter-conhecimento e inter-reconhecimento.
"Ainda não há um caminho aberto, tem que ser o professor a desbravar vários e
complicados caminhos. Sozinho? Não pode fazer esse trabalho sozinho, porque não
consegue e desanima (...) ao traçar estes caminhos em equipa, não esquecer os colegas
que têm as mesmas dúvidas e preocupações (...) A maior parte de nós trabalhava sozinha,
há já muitos anos, e muitos vícios se foram adquirindo (...) antigamente, um dos motivos
da minha grande insegurança era ter de fazer o trabalho sozinha; se tivesse mais alguém
com quem pudesse programar, fazer fichas e verificações, estas minhas dúvidas e
incertezas seriam bem menores (...) o trabalho feito em grupo é melhor do que o
somatório do trabalho de cada pessoa (...) porque, antigamente, vivíamos mais sós as
nossas frustrações e angústias, e agora as despejámos em grupo e sentimos apoio daqui e
de acolá."
118
Schon, D. (1990) Educating the reflective Pratitioner, San Francisco, Jossey-Bass
119
Lesne, M. (1984), Trabalho pedagógico e Formação de Adultos, Lisboa, Fundação C.Gulbenkian
Os professores agiam por adesão aos que compartilham idênticas preocupações. No dizer de R.
Grácio, o grupo agia como “lugar de solidariedade construtiva (...) visto a articulação de vontade
numa estrutura com objectivos e funcionamento concertados ter um efeito multiplicador”.120
Verificou-se uma diferença substancial entre a necessidade de produzir a formação pela formação e
a necessidade de partilhar. Só esta última é geradora de solidariedade. No primeiro caso teríamos,
na origem, uma motivação que poderia ser satisfeita individualmente. Porém, quando uma meta
comum mobiliza os professores para participarem de objectivos comuns, é definida uma
propriedade diferente, o apelo a uma relação interpessoal, para responder a uma necessidade
fundamental: o sentimento de pertença, que determina o sentimento de segurança.
"Assim, posso continuar o meu trabalho porque estamos sintonizados (...) as colegas do
grupo vieram ajudar-me a compreender que eu estava a ir numa direcção certa, ao
avaliar, diariamente, os meus alunos e a mim própria (...) comecei com a Assembleia,
mas não me sinto segura (...) ao introduzir alterações na minha sala de aula, verifiquei
que precisava de tirar dúvidas, para sentir mais segurança no que quero fazer. Preciso
de não ter receio de aplicar novos conhecimentos e saber que ao fazê-lo não irei
prejudicar de qualquer forma os meus alunos, por não estar segura do que estou a fazer
(...) juntos, com o conhecimento e experiência de outros colegas e com a aprendizagem
de novos métodos, técnicas e instrumentos de trabalho, alcançaremos a realização
pessoal, a segurança e a autonomia de que necessitamos (...) deveríamos evidenciar a
importância dos encontros em pequenos grupos, pois só assim pode haver mudança na
sala de aula, pelo menos a perder o medo de experimentar e a ter vontade de o fazer (...)
ainda bem que há angústia, que não indiferença (...) tentei fazer o melhor que posso e sei.
Tenho tido imensas dificuldades porque estou muito habituada a um ritmo de trabalho
muito individualista (...) custe o que custar tenho que ser honesta e assumir e ultrapassar
as contrariedades e primeiras dificuldades que qualquer mudança traz (...) ainda não me
sinto completamente segura, mas acho que já percebi o caminho a seguir (...)
Obstáculos? Surgem sempre! Mesmo quando o caminho é já velho em nós. Ultrapassá-
los é juntar a força de se estar junto naquilo em que se acredita."
“Os professores partilham não apenas o que sabem, mas aquilo que são» e, mercê desta
condição, «a formação terá de ser mais uma manifestação de desenvolvimento do que um pretexto
120
Grácio, R. et al (1984) Correntes Actuais da Pedagogia, Lisboa, Livros Horizonte, p. 89
para ensinar a ensinar”.121 Para avaliar o impacto da formação no professor e na escola, é
indispensável a participação do colectivo numa oportunidade de confronto e troca de experiências.
A valorização social da formação e da profissão passa pelo fortalecimento do convívio profissional,
no aprender com os outros a reformular práticas e identidades.
"A necessidade de saber como colaborar mais e retribuir a ajuda (...) dialogar com outras
colegas, para um enriquecimento mútuo (...) reunir com quem tenha interesse em trocar
experiências, encontrar pessoas com problemas semelhantes (...) Durante a minha vida
profissional, sempre pensei que a maior ajuda vem das colegas de trabalho, de
partilharmos dúvidas e problemas e tentarmos soluções (...) é triste ver que professores
das escolas que nos criticam continuam a fechar-se na sua sala, a competir com o
vizinho, tentando evidenciar as suas qualidades e esconder os seus fracassos (...) a
experiência que adquiri nos últimos anos, nesta escola, dá-me esperança para o futuro.
No entanto, há muito a mudar, em nós próprios e na sociedade (...) a F... mostrou-se
preocupada em relação às grelhas de registo de comportamentos, mas a M... trazia
grelhas que já aplicou e mostrou ao grupo, que também já as aplicou, e constatou que
sobre o mesmo objectivo fez grelhas totalmente diferentes (...) a relação entre os
elementos da nossa equipa tem sido baseada no acreditar nas nossas capacidades e na
aceitação. Estamos com o lema dos mosqueteiros - um por todos, todos por um. O
milagre é este: quanto mais partilhamos, mais temos"
121
Pacheco, J. (1993) Memória e Projecto, Correio Pedagógico, abril, nº 74, p.8
122
Morin, E. (1980) La méthode II, La vie de la vie, Paris, Seuil, p.45
123
Bachelard, G.(1971) La poétique de la rêverie, Paris, PUF, p.148
aparelhos sociais perderam face a um individualismo crescente. Mas fá-lo com uma aceitação lata
do individual, para permitir experiências de proximidade.
"Cada professor deveria partilhar as suas experiências pedagógicas, mesmo pensando que
talvez não sejam as melhores; a partilha de ideias e estratégias utilizadas na sala de aula
pode ser um ponto de partida para esclarecer dúvidas e incertezas (...) É preciso
desacomodar os colegas. É fácil cair na rotina. Que não se feche cada qual na sua sala
(...) O tema era actual e, por isso, cada professor tinha as suas vivências próprias. A
confrontação foi agradável porque deu para clarificar aspectos pontuais. Por vezes, os
problemas que surgiram foram mais de comunicação do que concepção.”
Alguns conceitos oriundos da Biologia poderão caracterizar o tipo de relação mutualista nos
círculos: a simbiose - uma relação permanente e duradoira com benefícios para todos os
participantes na associação; a cooperação - mantém a reciprocidade de vantagens, ainda que difira
da simbiose por poder contemplar o agir isolado; o comensalismo - tal como a cooperação é uma
associação facultativa provisória e, em particular, temporária.
Outras conceitos adaptados da Biologia são desfavoráveis ao tipo de cultura de formação
que postulo e poderão afectá-la em sistema aberto: a competição, que pressupõe a eliminação ou
prejuízo dos menos capazes, dos menos competitivos; o antagonismo, que se verifica no
impedimento do desenvolvimento de outrém; a predação, que reflecte a exploração do potencial de
outros; o parasitismo, que acaba por resultar também numa relação de exploração alheia.
Esta adaptação de conceitos serve para recordar a centralidade da relação no processo de
formação em círculo, de uma relação onde a experiência biográfica pessoal se exprime, se corrige e
se expande – um tipo de intersubjectividade, que se pode pautar por qualquer das características
anotadas, que pode resultar em algo qualitativamente diferente dos elementos que nela interagem,
que é cimento formativo, causa e efeito de comunidade.
"Muito ficou por fazer, mas creio que o objectivo principal foi atingido. Parámos para
reflectir, descobrir o quanto era importante essa troca de experiências (...) ficou a
vontade de continuar (...) ainda é difícil saber em que posso contribuir no grupo (...) O
que eu quero é um grupo activo, que comece desde já a manifestar gostos e desejos, que
expresse desde já críticas e opiniões. Que se sintam elementos activos para que sejam de
verdade elementos activos."
Não se trata somente de uma relação inter-individual: é também relação com um território
biológico e psicológico de partilha com outros, o território de uma memória colectiva fundadora e
estruturante de novos círculos. A cissiparidade (outro conceito da Biologia...), que creio ter
identificado no trabalho de formação em círculo, confirma uma "civitas" que é combinação de
associações reduzidas, de um “micro-localismo gerador de cultura”126.
Aprender com os outros será, sobretudo, um modo de viver no presente e em colectivo a
angústia do tempo que passa, estando activamente no tempo. O tempo é um dado adquirido e,
simultaneamente, um produto de transformações individuais em grupo. É no tempo e através da
permanência em círculo no tempo que se processa a partilha dos saberes e dos afectos. O indivíduo
integra-se e sente-se integrante do grupo enquanto este o identifica com um lugar-tempo de
recordações de experiências colectivas securizantes. O individuo-com-os-outros tem consciência do
seu papel numa ordem simbólica complexa e concreta, que o "protege" dos efeitos mortais da
uniformização. A pluricultura e a heterogenidade são, pois, atributos do círculo e “os jogos da
proxémia organizam-se em nebulosas policentradas”127, que propiciam, em simultâneo, segregações
e tolerâncias. Se é verdade que o conceito de partilha está eivado de conotações moralistas e
paternalistas, também é certo que é de partilha que se trata. De manifestações de um sentimento de
partilha que rejeita uma formação de carácter carismático.
"Foi uma sessão que achei proveitosa, pois foram tratados temas que alertaram para uma
possível mudança e para uma maior compreensão dos mesmos (...) os trabalhos com os
colegas mostraram novas ideias e métodos. Aprendi muito. A troca foi esplêndida (...)
comecei a participar mais activamente nas reuniões, a ter menos vergonha"
126
Maffesoli, M. (1988) Le temps des tribus, Paris, Klinckisieck, p.186
127
Maffesoli, M. (1988) op. cit., p.219
processo transformador. Mas não são somente as resistências individuais que perturbam o sistema.
O sistema não pode absorver e adaptar mais que uma parte das divergências. Aprender-com-os-
outros é aglutinar projectos individuais num projecto comum de mudança e inovação – «um dos
factores com mais força para que a inovação educativa chegue realmente às aulas, é a presença de
equipas de trabalho, a existência de grupos de professores que põem em comum com outros colegas
os seus êxitos e dificuldades, adaptando e melhorando continuamente, nesta comunicação,
métodos, objectivos e conteúdos»128.
A passagem da deliberação individual à deliberação reflectida no colectivo implica
modalidades de formação de natureza cooperativa, que o círculo traduz e reforça. É nele visível
uma apropriação de processos que gera a diversidade das influências e as integra, se pertinentes.
"Porque vim? Ainda não sei bem, mas, sobretudo, para me valorizar profissionalmente.
Vim porque ainda acredito que, juntos, aprendemos e seremos uma força. Ainda acredito
que a partilha e a solidariedade são algo em que posso acreditar. Vim para aprofundar
conhecimentos, mas também para conviver."
No trabalho de formação realizado na Ponte, sobretudo num período que vai de 1976 e 1982, já
é possível identificar alguns traços que denotam sentimentos de segurança, de uma segurança que
se poderá traduzir na compreensão dos outros e dos seus pontos de vista, ao mesmo tempo que se
verifica a consolidação de uma opinião positiva do próprio. Esta segurança reforça imagens de
auto-realização que, por sua vez, é mantida pela percepção de uma meta comum. São
desenvolvidos laços de interdependência:
Eis algumas características de grupos restritos, nos quais os círculos de estudos se podem
enquadrar: “número restrito de membros, tal que cada um pode ter uma percepção individualizada
de cada um dos outros, ser percebido reciprocamente (...); persecução dos mesmos fins em comum
e de forma activa, dotados de uma certa permanência, assumidos como fins de grupo, respondendo
a diversos interesses dos membros (...); relações afectivas que podem chegar a ser intensas entre os
128
Esteve, J. et al (1988) Comunicacion y educacion, Barcelona, p. 87
membros (...); forte interdependência dos seus membros e sentimentos de solidariedade; união
moral dos membros do grupo fora das reuniões e actos em comum; constituição de normas,
crenças, símbolos e rituais próprios do grupo”129.
O sentimento de segurança advém da cumulação destas invariantes, no contraste com a
socialização em grupos formais sem coesão, ou com o quotidiano de uma escola sem projecto. Os
laços securizantes que se desenvolvem são correlativos a uma angústia comum de abandono,
«correspondia à experiência última de uma solidão compartilhada, excluiria toda a ambivalência e
constituiria uma defesa objectiva contra esta angústia de base»130.
No estudo dos grupos o critério afectivo raramente é evocado. Com frequência, é
substituído pelo termo solidariedade: relação entre pessoas conscientes de uma comunidade de
interesses. No círculo, como cada um dos membros se dirige preferencialmente ao conjunto do
grupo e não, como em agregados de outro tipo, a um responsável (líder, formador, chefe...), o
processo de desenvolvimento da solidariedade é mais intenso. A segurança resulta deste tipo de
interpelação geral igualitária.
"E o desencanto, que começava a fazer-se sentir, atenuou-se, dissipou-se (...) Por vezes, o
nosso destino parece uma árvore de fruto no inverno. Ninguém diria que aqueles ramos
hão-de ficar verdes e florir de novo, mas nós temos confiança, nós sabemo-lo (...) mas,
juntos, podemos reflectir melhor e com mais profundidade. É preciso não estar sozinho."
Poder-se-á considerar sinal seguro do que “além dos esquemas positivistas, ou mecanicistas,
a circulação dos afectos (...) constitui uma consolidação eficaz da estruturação social”131. Esta
poderá vir a ser, no futuro, menos dominada pela estreiteza racionalizadora das análises de circuitos
de solidariedade, testemunhando um querer viver colectivo. Mas – como disse noutro lugar132 –,
para que aconteça criação comum, será necessário valorizar o insignificante significado de
pequenos gestos. O contágio afectivo desempenha um papel primordial no grau de coesão do
círculo. E, mesmo quando a uma tensão, sucede um afrouxamento dessa coesão, logo é sentido um
novo movimento de congregação, como se o grupo quisesse avaliar o grau de intensidade dessa
coesão e o sentimento que tem de si mesmo. Talvez se trate de deixar que o fluir da beleza da
129
Anzieu, D. & Martin, J.(1971) La dinamique des groupes restreints, Paris, PUF, p.23
130
Maisonneuve, J.(1973) La dinamique des groupes, Paris, PUF, p.81
131
Maffesoli, M.(1985) A Sombra de Dionísio, Rio de Janeiro, Edições Graal Ltda., p.85
132
Pacheco, J.(1993) Importantes insignificâncias, in Revista Educação, nº6, Junho.93, pp.50-53
experiência de realização tenha «o seu lugar, não pela sua utilidade, mas sim pelo gosto de viver e
pela alegria»133. Porque não? Os participantes também procuram o círculo para se relacionarem134.
A coesão do círculo alimenta-se da mútua importância que os seus elementos se
concedem. A confirmação pelo outro, uma confirmação não-paternalista característica do círculo
não se confunde com a concessão de importância por parte de um qualquer indivíduo que não
pertence ao grupo, porque o círculo é, de algum modo, imune a situações de dependência externa.
A partilha mais profunda é aquela em que cada partilhante continua, o mais possível, ele
próprio, na qual cada um possibilita rumos seguros a outras vidas, inventando a sua própria
existência no seio de práticas quotidianas tão seguras quanto incertas.
«Talvez seja uma utopia, mas os professores estão a precisar de construir novas utopias
para a escola... A utopia é uma meta, é um desafio que obriga a grandes debates e a uma
nova postura na profissão. Uma maneira de estar não-acomodada, como crítica e
aberta... É preciso repensar tudo isto e pôr em causa o sistema: o que existe não
funciona.»135
"Li algures algo que me marcou e que agora gostava de reproduzir aqui, dando início a
este trabalho, pois de uma forma ou de outra sempre acabo por recordar aquilo que li. O
meu trabalho é um reflexo do conhecimento de muitos e variados métodos, da influência
de muitas pessoas, consequência da minha forma de estar na vida (...) aprendi a não ter
vergonha de mostrar os meus pontos fracos, aprendi a pedir ajuda e ajudar os outros"
137
Bourdencle, R. (1993) La professionnalisation des enseignants, Revue Française de Pédagogie, nº 105, Out.-Nov.-
Dec.1993, p. 100
138
Polanyi, M. (1967) The tacit dimention, New York, Doubleday
139
Schön, D. (1983) The reflexive practioner, New York, Basic Books
140
cf. Finger, M. (1989) "Aprentissage expérientiel" ou "Formation par les expériences de vie"? Education Permanent,
nº 100/101, p.39-46
outra concepção que radica numa filosofia progressista e pragmática, a qual tende a colocar a
aprendizagem experiencial ao serviço dos ideais da modernidade.
A aprendizagem experiencial, tal como a perspectivo no círculo, aspira à formação da
pessoa que a sociedade moderna tende a excluir, ou até mesmo a destruir. Esclareço, porém, que tal
posicionamento nada tem de exclusivo. Muitos contributos do behaviorismo, do pragmatismo, do
interaccionismo simbólico denotam a sua presença no quotidiano do círculo sem que daí advenha
dano para a perspectiva central. Senão, como se justificaria o persistente recurso à "resolução de
problemas", à reflexão cognitiva corrente sobre experiências, às adaptações ainda que críticas ao
contexto material e simbólico, à integração do círculo (ainda que sempre precária) no social que o
próprio círculo questiona?
Como referi, o círculo poderá ser incluído num movimento mais alargado de crítica do
modernismo. A Lebensphilosophie surge como reacção contra a racionalismo do século XVIII e,
mais tarde, como reacção ao positivismo. Faz apelo a uma filosofia de vida total, que contrasta com
racionalidades redutoras. “Dilthey é provavelmente o último representante autêntico desta tradição
filosófica, que sempre sofreu a influência de sociólogos célebres, nomeadamente (...) Max
Weber”141.
Prevalece uma concepção de pessoa que não nega o potencial da razão e da reflexão mas
que as alia às emoções, aos sentimentos, às intuições e às experiências de vida, como conjunto-
motor de formação. Recusa-se uma formação de tipo mecânico, pensada e planificada segundo
ideais de modernidade, para colocar o formando integrado na vida sociocultural, da qual este se
distancia para compreender. É a condição necessária de uma ligação total à vida, que substitua uma
relação «mutilada» com a «realidade»142. Ditthey define esta ligação total como empírica, dado a
pessoa não poder compreender a "vida" a partir de um ponto de vista que lhe é exterior. A pessoa
forma-se na compreensão da vida histórica e sociocultural, mas através da sua participação directa
na vida.
Dilthey designa por compreensão “um processo de procura e de formação, no qual a pessoa
elabora um sentido a atribuir às suas vivências e às suas experiências de vida”143. Mas a vida
histórica e sociocultural que Dilthey perspectiva é a vida pré-industrial. A cultura do espírito que o
romantismo postula desapareceu em simultâneo com o fim das culturas pré-modernas. Ressurge no
momento em que a crise da modernidade se instala. Hoje corporiza-se em processos de formação
de identidades ao mesmo tempo pessoais e socioculturais. Mas as pesquisas neste campo são ainda
incipientes. Os pesquisadores identificam elementos destas diferentes culturas de formação, ou
141
Finger, M. (1989), op. cit., p. 42
142
Dilthey cit in Finger, M.(1989) op.cit., p.43
143
Dilthey cit in Finger, M.(1989) op.cit., p.43
etapas dos processos de formação, mas «estão longe de poder precisar o modelo de pessoa e da
formação que sustente o processo»144.
144
Finger, M.(1989), op.cit., p.44
145
Pacheco, J. (1993) Memória e Projecto, Correio Pedagógico, nº 74, p. 8
146
Pacheco, J, (1993), op.cit., p.8
147
Nóvoa, A. in Stoer, S.(org.) (1991) Educação, Ciências Sociais e Realidade Portuguesa, Porto, Afrontamento, p.119
A situação actual tem raízes mais profundas e por centro o derrube dos referentes
pedagógicos e sua substituição por modelos mecanicistas e neopositivistas, cuja disseminação se
concretiza. Ao negociar formação, o professor tende a alienar a construção da sua realidade
pedagógica, rejeita a reflexão sobre o conhecimento prático e teórico, condiciona as suas crenças e
hipoteca o seu processo de identificação profissional a ditames externos. Ao deixar de haver espaço
para a construção de uma teoria pessoal do mundo, o professor instala-se numa crise profunda de
identidade cultural e profissional.
Os professores são convidados, ou convocados para acções de formação. Não lhes
perguntam que formação pretendem. Nem sequer ocorrerá aos organizadores de formação que
possa haver professores que sabem o que querem (e o que não querem), que reconhecem
necessidades e estabelecem objectivos de formação?...
"Vi no projecto um caminho para obter formação profissional de acordo com as minhas
necessidades (...) à medida que caminhávamos, as necessidades aumentavam e
diversificavam-se."
Informalidade
148
Ander-Egg, E.(1989) La animacion y los animadores, Madrid, Narcea
149
Ander-Egg, E.(1989) op.cit., p. 18
150
Demailly, L.(1991) Le collége: crise, mythes et métiers, Lille, PUL.
151
Baptista, A. (1971) Peregrinação Interior, Lisboa, Ed. Presença, p.211
A organização formal é constituída pela própria estrutura organizacional, composta de
órgãos, cargos, relações funcionais e níveis hierárquicos. A organização informal contrapõe-se
àquela por um conjunto de interacções e relacionamentos consequentes que se estabelecem entre os
vários elementos, tem como origem interesses comuns e uma forte componente de lazer. A
colaboração é espontânea. O grupo detém possibilidade de oposição à organização formal.
Tudo aquilo que é rectilíneo, estreito, enquadrado é estéril. Talvez por isso, a ocupação na
formação se concilie no círculo com o exercício de uma pedagogia do imprevisível, no hic et nunc
que desqualifica o previsto, que valoriza tanto o modo de produção como o eventual produto do
investimento colectivo.
A informalidade da formação em círculo, que marcou décadas de formação na Escola da
Ponte, manifesta-se nos mais ínfimos detalhes:
"A L... sugeriu que os primeiros quinze minutos de cada encontro fossem para
desabafarmos, conversarmos um pouco e até contarmos alguma anedota actualizada (...)
iniciou-se a reunião com conversas informais, em que algumas colegas expuseram as
suas angústias e trocaram impressões sobre actividades realizadas e outras a realizar
(...) Por vezes, o que é informal resulta em termos de trabalho futuro (...) todos se sentem
à vontade para expor as suas dúvidas (...) já antes nos reuníamos, nos cafés, na escola,
em casa de uma ou de outra. Já antes produzíamos momentos de formação."
"Em jeito de conclusão parece-me poder afirmar que, depois de todas as sessões em que
tantos e tão diversos caminhos foram apontados, ficou, na maior parte dos colegas, a
semente de inquietação e a necessidade de encontrar processos que possam ajudar a
minorá-la. E assim o círculo de estudo encontrará o seu sentido."
"No dia a dia tendo isso presente vou adaptando trabalhos ajustados aos alunos com mais
dificuldades, mas tenho consciência que o faço ainda de uma forma anárquica, sem
registos conclusivos e orientadores de futuras estratégias."
157
Althusser, L. (1970) Ideologie et apareils idéologiques d'état, in La Pensé/Junho, Paris, p.29
158
Shwartz, B.(1969) Formal and informal education, N.Y., Oxford University Press.
159
Lengrand, P.(1965) "L'Education Permanente", Peuple et culture, cit. in Pain, A.(1990), op. cit., p.121
160
Shwartz, B.(1973) L''éducation demain, Paris, Aubier-Montaigne, cit. in Pain, A.(1990), op. cit., p.74
161
Huberman, M.(1986) Un noveau modèle pour le développment professionel des enseignants, Revue Française de
Pédagogie, 75, p.14
espaços tão informais como a informalidade que a motiva. É uma formação “despojada de qualquer
consideração institucional prévia”162, até mesmo marginalmente instituínte.
A permanência no círculo
"No grupo, havia dois momentos: falávamos de outras coisas para além da formação
como se diz que é. Sentia-se bem estar, uma necessidade (...) nunca púnhamos isto nas
actas, mas... pôr ali «falar dos nossos problemas pessoais»?..."
162
Huberman, M.(1986), op.cit., p.6
163
Malinowski, B.(1968) Une Théorie Scientifique de la Culture, Paris, Maspero, p.41
164
Shwartz, B. et al (1988) Éducation Permanente et Formation d'Adultes, Éducation Permanente, nº 92, p.8
165
Ducros, P. (1988) Quelques orientations stratégiques pour la formation des enseignants, in Éd. Permante nº 96, p. 38
"Não se conseguiu desenvolver e aprofundar com maior relevância alguns dos objectivos
e conteúdos anteriormente apontados, por escassez de tempo (...) será conveniente
continuar, a fim de se dar tratamento mais profundo a alguns dos objectivos e
conteúdos."
"A procura de ser melhor é interminável. Aprendi isso durante estes anos (...) A formação
e actualização de conhecimentos devem ser constantes e permanentes."
O conceito de permanência não pode ser alheado de utopias que povoam alguns discursos
sobre formação. Acompanhado do princípio do prazer, aproxima-se de concepções
“falansterianas”166, colhe contributos platónicos, e não enjeita referências libertárias, ainda que as
origens de uma permanência utópica se possam deter ao nível do imaginário.
Poderemos reencontrar a premência da permanência nas abordagens sobre a formação do
espírito científico: “uma cultura bloqueada sobre o tempo escolar é a própria negação da cultura
científica. Não existe ciência senão através de uma Escola permanente”167. O autor é premonitório
da descontinuidade que caracteriza práticas de formação predominantes. A formação continua
centrada em acções de curta duração, em ofertas de complementos, correcções e remediações das
práticas dos professores.
"Penso que, se acções se destinam à formação e ajuda aos docentes devem ser feitas com
tempo, com sequência (progressão) e não como «um balão que ao rebentar despeja
tudo»."
166
cf. Desroche, H.(1976) La societé festive: du fouriesrisme écrit aux fouriérismes pratiquès, Paris, Ed. du Seuil, p.28
167
Bachelard, G.(1938) La formation de l'espirit scientifique, p. 252, cit. in Desroche, H.(1976), op. cit., p.39
"É certo que nos limitamos a introduzir pequenas mudanças. Contudo, foram suficientes
para percebermos aquilo que é possível fazer e melhorar ao longo dos anos (...) o tempo
é realmente escasso (...) não podemos parar, porque temos muito que aprender."
É numa comunicação ininterrupta que o indivíduo encontra e mantém o seu equilíbrio interno e
reforça o equilíbrio (ainda que precário) do círculo. A permanência no tempo do círculo não
impede que, justaposto ao princípio do prazer, subsista uma atitude realista, que se desenvolve a
partir de constrangimentos que a utopia modera. A utopia “faz apelo a exigências antropológicas
fundamentais. Nestas condições, a utopia não é uma evasão; ela mostra, pelo contrário, que certas
amnésias históricas não são inocentes. Não se trata (...) de uma oposição entre o possível e o
impossível, mas de um conflito entre duas concepções do Homem, da sociedade, da História”168. A
formação tradicional, assente numa concepção autoritária, uniformizadora e anacrónica da acção
pedagógica, provou ser incapaz de gerir a tensão entre esses princípios.
Integração teoria-prática
"Procurei cumprir tudo o que aprendi (...) embora tenha sentido bastantes dificuldades
porque tive que dar uma grande volta ao que normalmente fazia na sala de aula (...) não
vale de nada o que aqui fazemos, se não houver uma consequente mudança na prática
lectiva (...) partilhei problemas, vi-os melhor, houve troca de ideias, a própria escola se
modificou, os alunos começaram a trabalhar, explorando os temas (...) deveria partir da
escola a necessidade de procurar as experiências e a teoria que já está escrita."
Subsiste uma situação paradoxal: a pesquisa em educação produziu resultados relevantes, mas
esses resultados estão longe de se traduzirem em mudança da prática educativa. Estará na formação
de professores uma das possíveis explicações para o facto?
“A investigação científica esforçou-se por desenvolver os instrumentos necessários à redução
progressiva do "desvio" entre os objectivos educacionais (do professor) e os resultados concretos (à
medida dos alunos)”174. A pretensão de moldar as práticas através de uma ciência aplicada
prescreveu o que afinal ficaria por configurar. Manifesta-se pertinente a tónica no debate sobre a
172
Campos, B.(1989) Questões de Política Educativa, Porto, Ed. ASA, p. 145
173
Carr, W e Kemmis, S. (1986) Becoming critical, Dearkin University Press.
174
Nóvoa, A. (1991), A Formação Contínua entre a pessoa-professor e a organização escola, in Inovação, 4, nº 1, p.63
articulação entre investigação e formação, as sínteses entre a teoria e a prática, como meio de
atenuar as prescrições e de possibilitar uma mudança de contornos esboçados por decénios de
tentativas vãs. Esse debate, que no pólo da formação e das práticas é ainda incipiente, interpelará a
violência simbólica exercida pelo investigador sobre o objecto de estudo. Questionará, certamente,
a hierarquização entre investigação e práticas. Interpelará, necessariamente, a separação entre o
tempo e espaço de formação e o tempo e espaço de aplicação, um binómio-síntese anunciado no
tempo e espaço do círculo:
"Aprendi, ou seja, fiquei com a noção do que é avaliação formativa. Se aprendi ou não só
quando puser em prática irei verificar (...) houve muitos assuntos que, embora não
tenham sido novos, foram clarificados, e agora entendo melhor como os pôr em prática
(...) são positivas todas as propostas, mas temos dificuldade em pô-las em prática. Vamos
no entanto tentar e a nossa opinião na próxima sessão poderá ser diferente. É
experimentando que se aprende (...) pela leitura feita de uma escala de Likert,
concluímos que a grelha elaborada na reunião anterior, não está bem feita, porque
avalia mais do que uma atitude. Concluímos ainda que teremos que fazer novas
tentativas para aperfeiçoar."
“A formação de adultos não pode deixar de ser articulada e pensada em função das
organizações onde são exercidas as actividades profissionais”175. Neste sentido, todo o vivido do
quotidiano da escola e, no senso mais lato, da profissão, é formação. Por esta razão, a teoria jamais
poderia ser considerada precedendo, cronologicamente, a prática. A não ser que, obstinadamente,
se continue a insistir no erro de os resultados das investigações “não exercerem senão uma acção
mínima, ou mesmo nula, sobre aquilo que tem lugar na sala de aula”176 – o “progresso do saber
educacional concretizou-se à margem dos professores, que dele permaneceram ignorantes”177.
É superficial, na prática, o conjunto de saberes que a pretendam pré-determinar. Na formação
em círculo, a integração procurada entre teoria e prática contribui para o esbater da territorialização
das diferentes componentes do saber pedagógico, assim como possibilita a constante ligação à
prática pedagógica acompanhada de uma descentração reflexiva dessa prática:
"A concepção humanista da educação deve estimular a criatividade humana; deve ter do
saber uma visão crítica. A educação não deve ser uma transferência de conhecimentos,
pois o saber humano implica uma unidade permanente entre acção e reflexão sobre a
realidade, para que este mundo seja transformada pelo pensamento e pela razão. A
178
Kropotkine, P. (1919), in Desroche, H.(1977) Éducation ou aliénation permanente?, Montreal, Dunod, p.386
179
Desroche, H.(1977) Éducation ou aliénation permanente?, Montreal, Dunod, p.33
educação libertadora deve estar submetida a uma pedagogia, cuja articulação da teoria
com a prática seja uma constante..."
Também parece ser o pensamento uma espécie de estratégia organizacional, pois o direito de
reflectir não se dissocia da necessidade de modificar a acção educativa. “Os raciocínios teóricos
não têm em si qualquer valor. É, precisamente, quando podemos relacioná-los com a nossa
realidade e traduzi-las em acções, que eles revelam o seu significado” 180. Muita teoria será acção na
medida em que “seja assumida pelo professor, a personalize e a aplique a situações reais”181. Toda a
formação é reflexão sobre formação, a teoria não dispensa o pôr-se à prova, e toda a prática se
justifica perante uma qualquer matriz teórica.
"A nossa prática mudou desde que a componente teórica foi completada com a componente
da prática. Uma e outra completaram-se (...) Já antes criávamos instrumentos de
trabalho que experienciávamos na sala e, de novo, no grupo analisávamos os resultados
e dúvidas novas, que eram, muitas vezes, a «catapulta» para pesquisas mais profundas."
180
Vaalgarda, H. & Norbeck, J.(1986), op.cit., p.34
181
Gimeno, J.(1985) Planificación de la investigación educativa y su impacto en la realidad, in Gimeno, J. & Perez, A.,
La enseñanza: su teoria e su pratica, Madrid, Akal, p.181
182
Benavente, A.(1993) Ser professor em Portugal, Lisboa, Teorema, p. 7
183
Jean, J.(1990) Cultura pessoal e acção pedagógica, Porto, Ed.ASA, p.97
Presume-se a transferência linear da teoria para a prática. Destitui-se os professores de mecanismos
de controlo de produção de novos saberes.
A formação que ainda se vai fazendo enquadra os professores em iniciativas alheias a
dinâmicas de formação localizadas, o que contribui para a ampliação do fosso pré-existente entre a
formação teórica e a prática pedagógica. O "professor, enquanto “profissional reflexivo" não existe.
Construi-se sobre os êxitos e fracassos quotidianos, num exercício permanente – o exercício de
uma formação dotada de autonomia relativamente ao controlo administrativo.
Vivemos numa época de transição, cujos contornos apenas visíveis em legislação dispersa, não
se constituem em farol que esclareça a linha de horizonte. Numa situação de profunda crise de
identidade profissional, é inútil a especulação teórica sobre a melhoria da qualidade de ensino, se
persistir o hiato entre teoria e prática. Urgente se torna agir por dentro das transformações que se
operam na cultura profissional dos professores.
As conclusões de múltiplos estudos isso apontam: “Tivemos ocasiões de trabalhar em grupos
de formação (voluntária) de professores e constatámos que as professoras possuem por vezes a
informação teórica necessária (etapas de desenvolvimento, características de cada etapa, etc.) mas
que esta informação não se articula com as práticas pedagógicas adequadas. Faltará o elo entre
informação teórica e criação de novas práticas em função do que se sabe. Mais uma vez a solução
passaria por uma formação contínua, um apoio constante articulado com as práticas reais e não
numa mera informação formal e académica”184
Autonomias
184
Benavente, A.(1980) Obstáculos ao Sucesso na Escola Primária. Lisboa: IED, p.200
185
Apple, M. & Jungck (1990), No hay que ser maestro para enseñar esta unidad, Revista de Educación, 291, p. 149
subordinação do indivíduo ao controlo organizativo”186. Será necessário, portanto promover a
distinção entre uma autonomia formal e uma concepção democratizante de autonomia geradora de
modalidades de intervenção formativa distintas da participação formal de professores em acções
condicionadas pela instrumentalidade e a racionalidade técnica.
No círculo, é essa autonomia de novo tipo que realça a inutilidade de controlo exterior. Os
professores detêm um efectivo controlo sobre o seu próprio trabalho e o entendimento de que a
inteligibilidade do real sofre uma erosão constante. À desactualização dos saberes, o círculo
contrapõe uma autonomia sempre provisória e questionável. Para a provisoriedade dos
conhecimentos uma autonomia de recorte não definitivo e continuamente amadurecida.
Creio poder falar de uma autonomia diversa que é concebida como “uma certa quantidade de
alguma independência abstracta”187. Creio ser pertinente considerar o círculo como sub-sistema
social autónomo, “na medida em que as suas consequências sociais significantes, interiormente e
exteriormente, não estejam ajustadas à reprodução de outros sistemas”188 e no qual se possa
reclamar responsabilidade pelos próprios actos e seus efeitos. Esta presunção de autonomia difere
de outras interpretações, que tendem a considerar como autónomas meras qualificações para
assunção de responsabilidades pessoais no quadro de constrangimentos estruturais, sem que se
questione a legitimidade de relações sociais de reprodução. No círculo, lida-se com dependências
assumidas e problematizadas; não se alienam as estruturas profundas de desenvolvimento
individual no quadro do colectivo, antes se agudizam os conflitos para, através destes, se testar as
aparências de autonomia.
O círculo possibilita a afirmação de autonomias individuais, no aprofundamento das
relações entre o indivíduo e as estruturas sociais de subordinação. A gestão das dependências
admitidas como inevitáveis dota de substância uma “autonomia positiva [que] não se refere a
qualquer liberdade abstracta na relação, na qual qualquer noção especulativa de mudança social
186
Ball, A. (1989), La micropolítica de la escuela, p. 129, cit in Correia, J. (1992) Formatividade e profissionalidade
docente, policopiado, p. 13
187
Fritzell, C.(1987) O conceito de autonomia relativa na teoria educativa, British Journal of Sociology of Education,
vol. 8, nº 1, texto policopiado, p. 2
188
Fritzell, C. (1987), op.cit., p. 3-4
pode surgir no debate educativo como outra moda”189. Concebida deste modo, a autonomia do
círculo relativiza a originalidade da autonomia de cada destino particular, sem que prive cada um
dos seus elementos de uma autonomia-com-os-outros. De uma autonomia que poderá ser
conceptualizada enquanto “acção de um sujeito que se esforça por aprender contra, apesar e graças
a um contrato experiencial”190. A formação é, em qualquer dos casos, oportunidade aproveitada, ou
falhada, de se ser mais autónomo.
O discurso da autonomia pedagógica pode desempenhar uma poderosa função ideológica,
promovendo a subordinação do indivíduo ao controlo organizativo. O exercício de uma profissão
pressupõe o exercício de alguma autonomia... ainda que assalariada. O profissional professor
escolhe estratégias de acção e é responsável pelos seus actos e pelos actos do colectivo em que se
insere.
Esta autonomia é restrita, se entendida segundo uma caracterização da profissão que
transfere a responsabilidade dos actos para uma qualquer directoria. Em sentido amplo, requer a
responsabilização directa. E não se presuma que esta responsabilidade se confina ao cumprimento
de horários, ou a adaptações curriculares no último reduto da sala de aula. A autonomia é um
constructo que se define, principalmente, no âmbito de uma formação colaborativa. Nesta se ganha
ou se perde poder sobre as condições de trabalho, muito mais do que na necessária – mas sempre
limitada – reivindicação de condições materiais que, com bastante frequência se aproxima de
subtis formas de corporativismo. Se a formação não é a única valência da autonomia, também não
age isolada de uma profunda transformação ao nível da gestão das escolas, não possui sentido
isolada dos projectos educativos, ou da urgência de clarificação dos espaços que o sistema reserva
às escolas e aos professores.
A autonomia está embotada de equívocos. Em toda a autonomia existe dependência e não
há uma ciência da autonomia, pois esta está para além de todos os determinismos e é agida em
dinâmicas relacionais de difícil inventariação. Poderá ser entendida como capacidade de controlo
de decisões, que não se confunde com a autonomia dos professores na sala de aula, aceite e
considerada como de alto grau por vários autores e pode ser identificada com individualismo191.
Esta autonomia, contrariamente ao que sugere, está profundamente subordinada às dependências
dos professores face a um currículo e às condições materiais do seu desenvolvimento, bem como
sujeita a forte controlo administrativo. A autonomia poderá ser entendida como o auto-governo de
uma profissão que tem, ela própria, o controlo das suas funções: critérios de selecção, de ingresso
189
Fritzell, C. (1987), op.cit., p.16
190
Theil, J. P. (1989) L'importance de l'autonomie, Éducation Permanente, nº 100/101, p.37
191
Duckworth, E. (1984) What teachers know, Harvard Educational Review, 54(1), p.15-20
na profissão, regras de comportamento profissional, decisões de renovação. E que desempenha, de
algum modo, papel significativo na determinação da política educativa.
Nesta última função, porém, os professores raramente são considerados como interlocutores.
Este facto poderá ser atribuído às características do sistema, à debilidade do reconhecimento
específico da profissão, ou à dispersão das competências no campo educativo, pois os professores
“participan en el cómo, pero no en el qué”192. Talvez o sentimento de pertença característico dos
círculos confira ao colectivo a segurança para assumir situações de liberdade em acção, mais
transgressão que reconhecimento, na marginalidade de sub-culturas não delimitadas pelos cânones
da formação (dita) tradicional.
"A realização deste trabalho serviu para a tomada de consciência de pequenas coisas, às
quais, em geral, não atribuímos grande importância, porque nos parecem demasiado
evidentes e damos o habitual "tratamento intuitivo", ou porque simplesmente "isso não é
connosco" (...) serviu, também, para percebermos que podemos modificar a nossa prática
educativa, de modo a facilitar a aprendizagem do aluno, alertando-nos para o facto de
termos um grande caminho a percorrer (...) esta tomada de consciência é extremamente
importante e só a partir dela estamos, de facto, abertos à mudança (...) mas as grandes
mudanças exigem preparação, porque o modo de agir mexe com a mentalidade formada
ao longo de gerações."
“As decisões fundamentais são tomadas no topo da escala hierárquica. Existe uma hierarquia
de decisões, do ministro ao professor, dispondo este último de uma certa margem de decisão no
quadro do sistema de normas”193. Esta presunção de escassa autonomia é impensável na formação
em círculo. A autonomia é condição do seu funcionamento e sobrevivência. Foi condição do seu
aparecimento. Alguns professores, sujeitos a múltiplos constrangimentos que lhes coarctavam a
iniciativa, optaram pela associação – tomando consciência do isolamento e das discriminações,
ainda que não as expressasse, rejeitava-as activamente. Ao adoptar este posicionamento, respeitava-
se o “direito prioritário que aos agentes locais assiste na direcção dos seus destinos e a criar
condições para transformação da realidade própria num contexto de maior autonomia em relação ao
apoio externo”194. Actuando nas margens de liberdade possíveis, confirmou-se o princípio de que os
192
Montero, L. (1990) La enseñanza como profesion y el profesor como profesional, texto policopiado, p. 10
193
Lapassade, G.(1974) Groupes, organisations, instituitions, Paris, Gauthiers-Villars, p.197
194
Campos, B.(1989), Questões de política educativa, Porto, Ed. ASA, p. 148
processos de formação “racionalmente conduzidos para fins e objectivos bem precisos, produzem
efeitos individuais ou colectivos bastante diferentes dos esperados”195.
No círculo, observa-se uma preocupação com a denúncia da dominação, a par com uma nova
ética da liberdade. A tarefa básica é a de mudar vivendo o presente na incerteza do presente. Nos
actos mais triviais de formação estão presentes as recusas da antecipação teórica dos problemas
práticos. Está presente o jogo da liberdade com o real, que visa transformá-lo.
Formar pressupõe o esclarecimento do modo como se opera a politização da cultura: o
sistema de relações que se estabelece entre política, cultura e ideologia permite um re-situar
permanente face ao social. Creio ser possível que os professores prestem atenção ao tipo de
racionalidade que molda as suas próprias pressuposições e com essa racionalidade medeia as regras
da cultura dominante e as experiências da sala de aula propiciadas aos alunos196, que o professor
confronte pressuposições a respeito dos objectivos da educação, com os tipos de conhecimento e
estes com os valores e as relações sociais considerados legítimos, que se interrogue sobre quem vai
- e como vai - ser educado. Os fenómenos educativos caracterizam-se por uma complexa e
imprevisível instabilidade e por um permanente conflito de valores. As "realidades" educativas
fomentam dilemas perante os quais os professores acabam, de qualquer modo, por tomar posição.
Para que não suceda uma opção de alheamento, o modelo de formação terá de considerar o
professor como um profissional autónomo e interactivo que toma decisões e se assume como
investigador da sua própria prática.
A autonomia pressupõe risco, compreensão da situação, do sistema interaccional, dos
constrangimentos institucionais, num ambiente organizado para a participação na decisão.
Pressupõe controlo sobre a profissão e sobre as condições do seu exercício. A autonomia
característica dos círculos permite pensar alternativas à ausência de projectos colectivos, que ainda
se constitui em óbice à “afirmação social dos professores, dando aso a uma atitude defensiva mais
própria de funcionários do que de profissionais autónomos”197.
“Preciso de aprender. Mas parece que na comunidade já tudo se aprendera, estava tudo
ensinado e sabido desde sempre”198
195
Lesne, M.(1984), Lire les pratiques de formation d'adultes, Paris, Edilig, p.42
196
Giroux. H.(1983) Teoria Crítica e Resistência, s. Paulo, Petrópolis
197
Nóvoa, A.(1991), Concepções e Práticas de Formação Contínua de Professores, Aveiro, U.A., p.21
198
Helder, H.(1994) Os passos em volta, Lisboa, Assírio & Alvim, p.18
Poderemos considerar a emancipação como o interesse por um conhecimento substantivo
propiciador de uma práxis libertadora. Na formação, isto pressupõe a substituição de um modelo
tradicional e prescritivo por um modelo de apropriação. Se a formação tem por finalidade permitir
aos indivíduos a realização dos seus destinos, na realidade, ela tem contribuído para manter os
professores numa relação dual de forte dependência, através de processos de "clonagem" nada
consentâneos com uma racionalidade emancipatória. A formação desenvolve-se “no quadro de uma
sociedade tecnocrática (...) na qual, ao mesmo tempo que o conformismo é prescrito, a iniciativa, a
criatividade, o espírito inovador são reclamados com insistência”199.
Neste sentido, a formação em círculo é mais uma de-formação, pelo que implica de
desconstrução de certezas e do criar de condições de realização pessoal no grupo e no contexto
social mais alargado, através da apropriação crítica dos saberes e da interpelação das estruturas e
relações sociais. No círculo não existe um saber constituído. Os projectos que o atravessam são
geradores de um saber constituinte sobre o qual novos conhecimentos podem emergir:
"Acho que devemos reflectir um pouco mais sobre os programas porque, nos últimos
tempos, em que tanto se fala de planejamento, têm sido postas dúvidas sobre o assunto. É
bom sintoma, porque mostra que as dúvidas só surgem quando se manifesta interesse em
aprender"
Os sistemas educativos tendem a avaliar os saberes através do verificável, daquilo que medem,
ou controlam. Mas as modificações mais profundas que neles se operam escapam, na maioria das
vezes, ao seu controlo, processam-se na intimidade e na capacidade do Homem que se traduz
naquilo que consegue fazer com o que fizeram dele200
"A maioria dos professores continua a fechar-se na sua sala ou a competir com o vizinho,
no sentido de evidenciar as suas qualidades pessoais, de mostrar os seus êxitos e
esconder os seus fracassos. Nenhum destes comportamentos nos dá confiança nem
eliminará a divisão existente na classe dos professores. Os professores estão muito
acomodados. Coisas novas são infidelidades. Algumas coisas que eu sinto nas pessoas é
que a prática de que elas falam não é o reflexo da sua prática. É difícil habituarmo-nos à
angústia de viver em angústia. Andar angustiado e não ter angústia disso (...) se as
pessoas não mudarem as suas cabeças, não há receita que resista."
199
Enriquez, E. (1977) La formation: Discipline ou Anti-discipline, in Pineau, G. (org) (1977), Education ou Alienation
Permanente? Montreal, Dunod, p. 236
200
Sartre, J. (1960) Critique de la raison dialectique, Paris, Gallimard, p. 63
Pelo corte epistemológico com a indeterminabilidade, as soluções pedagógicas antecipam as
situações e o pensamento divergente é anulado. Aos professores ensina-se um conjunto de técnicas;
não se lhes pede uma reacção critica perante os modelos. Assim, uma das consequências da
profunda crise de profissionalidade, que vem afectando os professores, é um tipo subtil de
analfabetismo conceptual e político. A cultura é a representação de experiências vividas, de
relações materiais e de práticas, no contexto de relações desiguais e dialécticas, que diferentes
grupos estabelecem, em determinada sociedade e momento histórico. A cultura é também produção
no caso do grupo informal, característico dos movimentos alternativos da pós-modernidade. Entre
diferentes níveis de poder operam diferentes culturas sócio-pedagógicas. Até que ponto essas
culturas poderão defrontar-se com a cultura dominante? Fará sentido a existência de culturas
grupais de superação da crise de identidade, no contexto de uma formação orientada para o
professor individual?
Talvez que a consequência maior da acção destes grupos venha a ser a manutenção de um
clima de incerteza, onde nenhum domínio seja total, dado que “a mudança de cada um, individual e
colectiva, não pode fazer a economia de processos de construção diversos e individualizados,
processos em que os grupos desempenham um papel quase indispensável”201. As estratégias de
mudança não podem prescindir da participação destes grupos, quer na elaboração, quer na
concretização, entendidas estas na sua dimensão crítica. No seio destes grupos, os professores
questionam ideologias que legitimam a separação entre processos de conceptualização e de
execução, e a ênfase em “técnicas pedagógicas que evitam questões sobre as finalidades e o
discurso da crítica e de possibilidade”202. Não se confunde a formação com momentos institucionais
fixados para cursos...
Nos primeiros anos do exercício de formação na Escola da Ponte, na modalidade de círculo,
o senso crítico manifestava-se, em particular no saber diagnosticar uma situação, adequando as
decisões a cada caso, ao invés da aplicação de soluções tipificadas para situações diversas, aquilo
que Stenhouse203 designa de disposição para examinar com sentido crítico e sistemático a própria
actividade prática.
Este conceito emerge por oposição a uma característica das práticas de formação pautadas
pela previsibilidade. É indispensável que o professor permaneça desperto, que trabalhe sobre si e
201
Benavente, A., in Stoer, S. (org.) (1991). Educaçäo, Ciências Sociais e Realidade Portuguesa. Porto: Afrontamento.,
p. 181
202
Aronowtiz, S. & Giroux, H., texto policopiado, s/d, p.8
203
Stenhouse, L.(1981) An introdution to curriculum research and development, Londres, Heineman Educational Books
sobre as implicações da sua actividade, que se situe numa sábia integração do necessário, mas que
se preocupe com os riscos de adopção de modismos.
Ao senso crítico que ressalta do trabalho em círculo associa-se a condição colaborativa de
uma realidade una, ainda que plural. É a metáfora do "feixe de varas", que reflecte a consciência
dos limites e das imposições do sistema para a ambos defrontar numa responsabilidade partilhada.
Esta característica encontra-se, habitualmente, arredada das preocupações das instituições de
formação. Praticamente, não existem dispositivos estimuladores desta acção crítica e resistente,
dispositivos que viabilizem a resposta a problemas, o diagnóstico, a procura de soluções. 204 As
características de muitos programas de formação cerceiam o pensamento crítico, ou o limitam à
mera reflexão sobre os meios em função de fins já estabelecidos. Mas «a investigação é um
processo social através do qual os grupos humanos transformam o conhecimento que têm da
realidade, transformando ao mesmo tempo a sua maneira de agir sobre esta realidade».205 Como tal,
a luta contra a rotina e a burocratização passa pela manifestação de traços de pensamento crítico
que reorientam a actividade de formação em círculo para o exercício da educação como liberdade.
"Os anos passam e há uma acomodação muito grande aos métodos (...) Na parte da tarde,
notei alguma dificuldade no trabalho de análise de texto, na medida em, que havendo
opiniões diferentes, não estamos habituados a descobrir qual é a melhor mas gostamos
de impor a nossa. Creio, no entanto, que isto é o princípio e é difícil trabalhar em
grupo."
“A condução completa do processo [de formação] supõe uma relação crítica e selectiva com as
fontes e os meios (...) A auto-formação caracteriza-se por uma mudança de óptica baseada na
tomada de responsabilidade individual da formação pessoal”206. Supõe admitir uma concepção
emancipadora da formação, a qual exige a explicitação do sistema de referência, através da qual o
professor atribui sentido àquilo que vive e que transforma. É, portanto, necessário manter uma forte
vigilância relativamente a deformações que se processam na formação de professores e que tendem
a reduzi-la à sua expressão instrumental. O pensamento crítico pode ser definido como “o pôr em
questão os pressupostos que orientam tanto o pensamento quanto a acção”207. Possibilita ao adulto o
204
Huberman, M.(1986) Un nouveau modèle pour le développment profissionel des enseignants, Revue Française de
Pédagogie, 75, pp.5-15
205
Vielle, P. (1981) L'impact de la recherche sur le changement en éducation, Perspectives, vol.XI, nº 3, p.339
206
Pain, A. (1990) Éducation Informelle, Paris, L'Harmattan, p. 175-176
207
Brookfield, S. (1987) Developing critical thinkers, cit in Dominicé, P. (1988) De l'apprentissage instrumental à la
pédagogie critique, Éducation Permanente, nº 92, p.86
destacar-se de compromissos teóricos e a observação distanciada dos modelos que influenciam, ou
influenciaram, a sua formação.
Possibilita ao professor em formação “ver nas escolas um lugar tanto de dominação como de
contestação”208 e compreender que o poder, em si, não é pernicioso, mas sim a utilização que dele
se fizer. Se o professor tem, tradicionalmente, responsabilidade na reprodução social, pode, por
outro lado, contribuir para contrariar essa tendência.
"A falta de hábitos de leitura por parte de colegas, nos quais eu me incluo, prejudicou o
debate (...) A consciência da realidades levanta problemas (...) uma escola que conduza a
criança para a utilização da sua inteligência e dos sentidos apenas para fins puramente
técnicos, sem lhe deixar tempo para reflectir sobre o seu potencial artístico (plástico,
mímico, musical...) é uma escola amputada, uma fábrica de «robots» (...) Pretende--se,
na verdade, uma reflexão crítica, uma tomada de consciência, uma atitude. enfim,
levantar problemas. Pensamos que só assim se constrói uma nova pedagogia, uma nova
escola. Se assim não for, talvez o melhor seja ficar por aqui (...) Não queremos formar
homens pré-fabricados, mas homens vivos. É por isso que me compete fazer aqui uma
reflexão sobre os livros que se usam como manuais escolares. Ao equiparmos os alunos
com o número de livros iguais ou semelhantes, para cada disciplina, exigindo a cada um
e a todos esta ou aquela matéria, dada a mesma forma, não estamos a respeitar as
pessoas das crianças (...) Em alguns aspectos, o que foi discutido é uma verdadeira
revolução. É necessário algum tempo para aderir. É natural que as barreiras hoje
levantadas sejam bem menos importantes. Certamente, a principal barreira talvez seja
psicológica (...) Torna-se legítimo pôr em causa a adopção dos manuais escolares,
apesar de acarretar consequências desagradáveis para as editoras, livrarias, autores (...)
Há fichas à venda, muito mal feitinhas, nos manuais do costume. Temos que saber
seleccionar o que de bom têm os livros."
208
Giroux, H. (1986) Teoria Crítica e Resistência em Educação, Petrólolis, Ed. Vozes, p.90
209
Benavente, A., in Stoer, S. (org.) (1991), op. cit., p. 178
professores”210. A possibilidade de mudança passará pela desestruturação e reestruturação dos
universos simbólicos dos professores. A formação, sendo projecto essencialmente cultural, exigirá
um distanciamento crítico dos professores relativamente às "realidades" dos contextos onde
decorre.
Os modelos escolares dominantes foram, por isso, objecto de problematização na formação
"divergente" dos primeiros tempos do projecto da Escola da Ponte. A variedade de opiniões foi útil
na busca de um conhecimento objectivo. Correspondeu à necessidade de questionar obstáculos de
natureza simbólica do universo conceptual dos professores que, de outro modo, sairiam ainda mais
reforçados. Refiro-me, por exemplo, à existência de uma visão desvalorizada dos alunos dos meios
populares211, representação que poderá sair reforçada por um processo de desresponsabilização
provocado pelo predomínio da racionalidade técnica na formação.
“As políticas actuais empurram as práticas inovadoras para as margens do sistema, lêem
as críticas como subversão, procuram limitar vozes e intervenções”212
"Pensei que nunca seria capaz de modificar os meus hábitos de há muitos anos de
experiência profissional. E senti vontade de desistir. De repente, uma força interior se
apoderou de mim e me obrigou a continuar. Ainda bem, porque já me convenci de que
sou capaz de modificar algumas atitudes. Vou ler e reler os apontamentos. Sei que vão
surgir tantas dúvidas e contradições, que me vou sentir perdida (...) Permitiu-me retomar
consciência da minha responsabilidade (...) unir os professores, no momento difícil que
atravessamos, preservando-os de divisionismos que apenas enfraquecem uma classe
profissional já de si debilitada por décadas de esquecimento e rotina."
“O universo cultural e pedagógico (como todos os universos simbólicos) constrói-se nas suas
coerências e contradições através de processos complexos sobre os quais pouco sabemos” 216. O que
214
Correia, J. (1991), Mudança educacional e formação, Inovação, vol. 4, nº 1, p.150
215
Nóvoa, A., in Stoer, S.(org.) (1991), Educação, Ciências Sociais e Realidade Portuguesa, Porto, Afrontamento, p.119
216
Benavente, A.(1990), op. cit., p.89
soubemos, a partir da prática de formação em círculo, nos primeiros anos da Escola da Ponte, foi
que a construção da identidade se processa na solidariedade em torno de valores e interesses
comuns. “Ser professor é aderir a um conjunto de normas e valores que desenham diferentes
atitudes profissionais: a identidade constrói-se sempre através da adesão (...) Deixa de ser professor
quem perde (...) a noção profissional”217.
Edgar Morín evoca uma “unidade complexa», na qual «não se pode reduzir o todo às partes,
nem as partes ao todo, nem o um ao múltiplo nem o múltiplo ao um” 218. Se a necessidade de
organização tende a transformar a diversidade em unidade, não anula no círculo a diversidade. O
paradigma funcionalista sublinha a dependência do indivíduo relativamente ao grupo. Porém, numa
perspectiva de conflito, é preciso realçar a interdependência entre indivíduo e grupo, as interacções
no interior do grupo, bem como as transformações que impelem a novas formas de pensamento e
de acção. É preciso associar ao conceito de pensamento divergente o de complexidade, levar em
linha de conta as complementaridades, os antagonismos, as tensões. Divergência entendida como
reflexão-acção irrepetível e irreversível. Esta irreversibilidade original pressupõe tensão, o conflito
que provoca evolução. Existe evolução na oposição, na complementaridade de reflexões e de
acções divergentes – é no antagonismo que emergem novas propriedades...
Quem se mostra “incapaz de pôr em causa o que sabe ou julga saber e (...) não prefira os
caminhos do conhecimento ao próprio conhecimento é, de facto, totalmente inculto, numa
perspectiva de acção pedagógica”219. Em círculo, o professor, se certezas já teve, dispensa-as.
Cultiva a capacidade de gerir novas experiências e a sua competência cultural por um acréscimo de
interpretações e leituras do real quotidiano.
Poder-se-á falar de novas atitudes culturais, manifestações de pensamento centrífugo,
amadurecido na construção dos objectos de conhecimento. Participante da acção, consciencializado
da falência da cultura constituída, o professor reserva-se o direito de ousar reflectir de "outro
modo", de um modo que afere nas práticas os produtos das divergências analisadas no grupo.
Assim o círculo sobrevive numa espécie de existência excêntrica, marginal, ainda que à mercê de
influências de ordem vária. A divergência poderá ser entendida, neste caso particular, como
errância transformadora.
217
Nóvoa, A., in Stoer, S.(org.) (1991), Educação, Ciências Sociais e Realidade Portuguesa, Porto, Afrontamento: 116
218
Morin, E. (1977) La méthode, I.I., Ed. Senil, p.105
219
Jean, G.(1990) Cultural pessoal e acção pedagógica, Porto, Ed. ASA, p.93
“Quando a multidão dos governados, sentindo-se abandonada, começa a organizar a sua
sobrevivência em pequenas comunidades capazes de se bastarem e de assegurarem
sozinhas os seus serviços públicos, então os governos (...) cognominam do "movimentos
marginais" estas tentativas. Contudo, os movimentos marginais de hoje apresentam
talvez as soluções do futuro”220
"É necessário mudar muita coisa, quer na estrutura interna da escola, quer nas
orientações vindas do Ministério da Educação (...) a viragem pedagógica está feita. Os
professores que entenderam a mensagem estão firmes. Os outros não quiseram entender
(...) Eram outros tempos, herdados de décadas de cinzentas submissões"
225
Santos, B.(1988) O social e o político na transição pós-moderna, Comunicação e Linguagem, 6/7, p.35
226
Ferry, G.(1970) La pratique du travail en groupe, Paris, Dunod
Participar no projecto da Ponte é um acto de vontade, que pressupõe assumir o compromisso
consigo e com um grupo, que conduz a uma reflexão transformadora das práticas, num quadro mais
vasto da reflexão sobre a profissão:
"Tenho livros já há bastante tempo a aguardar que sejam lidos, contudo a vida é
complicada (filhos pequenos, trabalho doméstico, etc.) sem estar a querer desculpar-me
pois sei que devia fazer um esforço para o fazer. Deito-me muitas vezes com uma grande
sensação de frustração em relação aos filhos e em relação aos alunos (...) derrubo o
muro que há em mim, busco na memória a minha infância, refaço percursos (..) estou
observando o outro e queria ser capaz de ajudar os outros a realizarem-se como pessoas,
ao mesmo tempo que eu me realizaria pessoalmente (...) quero dar, no que depender de
mim, entregar-me, livremente, a esta complicada aventura, aceitar o compromisso (...)
não é por acaso que a gente quer falar e não consegue dizer as coisas."
Faz pouco sentido falar da democraticidade no funcionamento das escolas. Onde existe
director, livro de ponto, necessidade de justificar faltas ao serviço, não existe autonomia e
responsabilidade. Uma organização que privilegia mecanismos de controlo e um poder vertical,
esvazia o conceito de participação e de responsabilização dos professores. A democraticidade é,
também, incompatível com o trabalho de legisladores, efectuado no desconhecimento da prática, ou
por pessoas que dela recebem uma contribuição indirecta.
Nos primeiros tempos do projecto da Ponte, a formação teve, também, a função de
democratizar – “o indivíduo singular sente-se valorizado, ao colaborar para um objectivo comum e
o círculo oferece exercício democrático, estímulo para se agir na sociedade ou no local de
trabalho”227: A democratização é aqui entendida como diversificação das práticas, ao nível do
professor e do contexto institucional, uma diversificação facilitadora da participação na decisão e
na acção. A democraticidade é condição de mudança.
Esta democraticidade pode ser ponderada a partir do modelo dicotómico “sociedade
igualitária-sociedade hierárquica”228. Na sociedade igualitária, a dependência de cada membro não
se altera com a alteração da composição do grupo social. Na hierárquica, cuja composição pode ser
representada num gráfico de árvore, a hierarquia degressiva das situações sociais institui uma
227
Vaalgarda, H, & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.21
228
Friedman, Y. (1978) Utopias Realizáveis, Lisboa, Socicultur, pp.39-40
dependência tão significativa quanto mais próxima a posição do indivíduo estiver de raiz. A
deserção de um elemento do conjunto produz um corte intransponível na comunicação para uma
multiplicidade de outros elementos situados a jusante relativamente ao topo hierárquico.
Estes dois tipos não são os únicos possíveis, mas o que importa reter é que “todas as nossas
utopias actuais têm por fim a sociedade igualitária e todas as nossas organizações técnicas estão
baseadas na sociedade hierárquica (...) não existem no estado puro, mas não faltam organizações
que se aproximem de qualquer destes modelos”229. Na Ponte, os efeitos de uma educação pessoal
com raízes numa escola repressiva e autoritária entraram em conflito com práticas coerentes com
vivências democráticas. No choque entre as pressões do compromisso e as intenções de
democratização se elaboraram diferentes percursos formativos.
"Não me agrada expor resultados positivos ou negativos a quem me possa «julgar» sem
antes ter sentido, como eu, as mesmas dúvidas, as mesmas dificuldades, os mesmos
problemas (...) há uma descoberta em grupo, não nos limitamos a ouvir e a tentar
compreender conceitos, fomos nós que descobrimos (...) eu sabia que não bastava
preservar os saberes e tradições existentes, mas dava mais ênfase à instrução, dava
primazia aos objectivos cognitivos, procurava transmitir valores e conhecimentos. Agora
eu consigo reflectir a educação em termos mais abrangentes. Para além da
aprendizagem de conhecimentos do domínio cognitivo, outras aprendizagens que não
estas eu considero agora igualmente importantes: educar para a criatividade e livre
iniciativa, contribuir para o desenvolvimento pleno da personalidade dos alunos,
privilegiar a competição consigo próprio e a solidariedade com os outros, promover a
auto-responsabilização, privilegiar relações de liberdade individual compatíveis com as
liberdades colectivas, valorizar pensamentos divergente (...) a discussão colectiva, o
esforço de cada um e o desejo real de se não cair em puras discussões teóricas, foram o
meio e a confirmação de que muito iríamos construir."
229
Friedman, Y. (1978). Utopias Realizáveis. Lisboa: Socicultura, p.40
230
Kaufman, R.(1972), Educational System Planning, Prentice - Hall
intervenção corresponde um nível de responsabilização menor; a responsabilidade progride com a
correspondente assunção da iniciativa e consolida-se na espiral de ganhos que dela resultam.
Se a formação é, essencialmente, auto-formação, a iniciativa pode partir do professor, de um
grupo de professores, ou de uma escola. Terá de partir, efectivamente, destes. Seria inútil esperar
criar nos indivíduos “uma necessidade permanente de aprender» se eles próprios «não estão
inseridos num processo pessoal de desenvolvimento”231. Quando o professor possui a percepção dos
efeitos que a formação terá relativamente aos seus objectivos, quando está convicto das vantagens e
consciente das desvantagens da iniciativa, decide.
Interrogue-se o momento, o destinatário e as finalidades da formação. Levante-se a questão
de se dever propor formação aos professores, ou de dar resposta aos seus pedidos: iniciá-la a partir
de quê? É este o ponto de partida que é preciso aprofundar.
De imediato, poder-se-ia acrescentar que os dois movimentos se completam. Isto é, nada
obsta a que se proponha que a formação seja "resposta" a pedidos. Apenas um preceito deve ser
considerado nesta tensão: aquele que estabelece que a formação de professores é um processo
permanentemente inacabado. Por via deste reconhecimento, a iniciativa dos professores assume
preponderância.
No círculo são os professores que definem cooperativamente os objectivos, os recursos e o
desenvolvimento da acção de formação. “A formação não é somente ocasional, aleatória, é
procurada sistematicamente no sentido de uma transformação durável”232. Os professores são
construtivamente activos nos projectos de formação em que se envolvem.
O social é produto do impulso e do compromisso que é disponibilidade e não
obrigatoriedade, que é liberdade na iniciativa e não o seu constrangimento. As orientações de nível
central poderão servir de quadro de referência, mas não são as mais adaptados às aspirações locais.
Fundam-se sobre indicadores macro-estruturais ineficazes no confronto com a idiossincrasia dos
projectos de grupos e de indivíduos. Do nível central poder-se-á requerer que assegure as redes de
comunicação e informação sem hierarquias e burocracias de novo tipo.
A “evolução da sociedade repousa sobre a impossibilidade de não poder aprender”233. Mas
cada professor deve «tomar nas suas mãos os seus destinos intelectuais, morais e espirituais»234.
Neste pressuposto, importa discernir das estruturas favoráveis e das desfavoráveis à sua
efectivação, dado que, se a urgência da formação não suscita, inevitavelmente, a necessidade de
231
OCDE (1970) Oferta e procura de pessoal docente nos ensino primário e secundário, Lisboa, GEPAE, p. 104
232
Goyette, B. et al (1987) Recherche-action, ses funtions, ses fundaments et son instrumentation, Québec, P.U.F., p.94.
cit in Cortesão, L. (1991), op. cit., p.99
233
Habermas, J. (1973) Problème de legitimation dans le postcapitalisme, Frankfort, p.27
234
Lengrand, P. (1975) L'homme du devenir, Paris, Ed. Entente, p.23
formação. E importa que cada indivíduo e cada grupo detenha a oportunidade de realizar a sua
própria mudança.
"Limitarmo-nos a ser militantes do ensino liderado por não se sabe quem? É urgente
aprendermos a debater estas questões e procurar soluções, em lugar de esperarmos que
resolvam por nós o que depois criticamos (...) o que fica, para além do trabalho, das
experiências e angústias, é a amizade que se vive e se alimenta de mais trabalho, que nos
ajuda e ensina a sermos livres”
"Procurámos reflectir sem pessoalizar e não fomos capazes de encontrar soluções (...) há
um longo caminho a percorrer, mas estou certo que o trajecto que vou seguindo, é mesmo
uma das vias dessa viagem. Não sei nada, mas vou descobrindo pouco a pouco, algo que,
237
Saint-Arnaud, Y.(1981) Participacion y comunicacion de grupos, Madrid, Ed. Anaya, p. 89
238
Peretti, S.(1981) Du changement à l'inertie, Paris, Dunod, p. 229
apesar de novo, já não me assusta, antes me anima continuamente (...) a oportunidade de
expor ideias, sugerindo a reflexão conjunta das mesmas (...) cada um sente-se um agente
mais activo.”
A todo o momento, o indivíduo está imerso em relação concreta com outros indivíduos ou
grupos sociais. A qualidade desta relação depende do grau de poder que o mesmo pode exercer, do
índice de participação que lhe é permitido. Num clima de plena participação das decisões, é
facilitada a ruptura pressuposta em qualquer experiência. Sem uma intervenção activa e directa na
decisão, será difícil suportar a prova de inadequação de práticas e representações.
Se as rupturas funcionam como uma necessidade interior de afirmação, precisam de
legitimação num grupo que apoie uma descentração participada. O indivíduo que se questiona
necessita da confirmação do outro para ser reconhecido e existir, mas sem que o outro o prive da
possibilidade última de recusar a própria experiência. A participação é considerada «como
essencial ao desenvolvimento da autonomia e da criatividade, varia muito, no seu grau e natureza,
de uma experiência para outra; mede-se, portanto, na atenção dada à liberdade e ao conteúdo das
escolhas»239:
O grau de participação constitui um indicador da qualidade da formação, na medida em que a
interacção negocial com o outro pressupõe reconhecê-lo e fazê-lo reconhecer-se. Fortalece “a
autoconfiança dos participantes, a crença nas suas próprias capacidade e no valor das suas próprias
experiências e opiniões”240. A perda da participação e do sentido comunitário é alienante, pois o
professor deixa-se subjugar por espaços aleatória e extremamente demarcados. A recuperação do
“espaço participado passa pelo despertar dos focos comunitários, utilizando-os, de tal modo que a
pessoa neles inserida se sinta transformada, mas agente de transformação também”241. A
participação dota o círculo de um sentido interior colectivo segundo o qual toda a intervenção
pessoal é intervenção do grupo e qualquer liderança é sempre múltipla.
Releva daqui aquilo que pode significar a auto-realização do professor no plano do contexto
social onde exerce a profissão e a formação, enquanto que o isolamento conduz à acumulação de
problemas não superados. O “sentir-se aceite pelos colegas [permite] a partilha dos seus problemas,
para que eles não se acumulem, exprimindo as suas dificuldades e limitações para trocar
experiências, ideias e conselhos”242.
239
Shwartz, B.(1988), Education Permanente et formation des adultes, Education Permanente nº 92, p. 18
240
Vaalgarda, H. & Norbeck, J.(1986), op. cit., p.21
241
Ferra, A.(1992) Pedagogia Centrada na Pessoa, Lisboa, Planeta Editora, pp.25-26
242
Vork, J.(1983) Problems of beginning teacher, European Journal of Teacher Education, 6, 2, p.147
A participação obsta a que os indivíduos passem por mudanças significativas e que, em
contrapartida, a instituição quase não mude. “Os que imaginam o grupo (...) como um fenómeno
temporário, que apenas afecta algumas pessoas, será melhor reconsiderarem. No futuro perturbado
que está à nossa frente, o movimento da experiência intensiva de grupo está ligado a problemas
profundos e significativos que têm a ver com (...) mudanças que acontecem nas pessoas, nas
instituições”243.
Nas escolas, os professores juntam-se durante algumas horas, com raros momentos de trabalho
colaborativo e as decisões são, quase sempre unipessoais – a participação nas decisões colectivas
não existe por não existir um verdadeiro colectivo. A referência da Ponte pode ajudar a encontrar
alternativas aos paradoxos existentes, por possuir um potencial transformador, que não deve ser
menosprezado.
243
Rogers, C.(1986) Grupos de Encontro, Lisboa, Moraes Ed., p.176
Potencial e limites da formação em círculo
244
Paulston, R.(1980) Education as Anti-struture, p. 64, cit. in Cortesão, L.(1988), op. cit., p.79
245
Vaalgarda, H. & Norbeck, J.(1986), op. cit., p.19
246
cf.Marc, E. & Picard, D.(1984) L'Ecole de Palo Alto, Paris, Ed. Retz.
prático-reflexivo-investigador, visa-se o desenvolvimento pessoal, ao saber-ser em grupo e repensa-
se a organização escola, nas duras condições do exercício da profissão. Questiona-se a
inevitabilidade do individualismo na formação, mas procura-se compreender também, o que leva os
professores a organizarem-se numa equipa pedagógica e a mantê-la.
A causalidade circular, complexidade de interacções onde cada elemento pode ser,
simultaneamente, causa, efeito, estímulo, resposta e esforço, contribui sobremaneira para a coesão
do círculo. Mas outros importantes factores nele actuam. No círculo, verifica-se que toda a
inovação é em si-mesma conflitual. Os obstáculos são encarados como dificuldades, não como
impedimento de mudança.
Os professores buscam as regras para mudar as regras. E os produtos do acto formador são
captados e testados no quotidiano da escola. Por isso, quando se pergunta “em que espaços (e sob
que modalidades) se poderá desenvolver uma formação inicial e contínua de professores que
facilite a apropriação dos processos de inovação e que valorize as iniciativas ao móvel local” 247,
poder-se-á alvitrar: por que não em círculo? Nele se suavizam as tendências da recusa da relação
pela ideologia individualista com a recusa do sujeito, numa conciliação original. Esses pólos são
integrados: é reabilitado o sujeito sem que se perca a dimensão relacional. “Não se pode encarar
mais o conhecimento científico como o produto da descoberta de sujeitos individuais, como não se
pode olhar também o mundo contemporâneo como um agregado de sujeitos isolados”248.
O círculo não resolve as contradições que atravessam o campo da formação. Não se
substitui, antes incorpora a reflexão alargada de nível meso e macro que, de algum modo,
condicionam desenvolvimentos locais. O círculo deverá estar atento às contradições internas.
Apresenta-se como indeclinável que, a par de novas práticas surja nova teoria. De uma teoria que
suceda ao deslumbramento do surpreendentemente novo e que escalpelize o círculo nos riscos de
descaracterização, nos erros e nos vícios.
A formação entre pares, ainda que organizada e sistematizada, tem os seus limites. E é
delicada a questão de se saber qual o grau óptimo de determinação interna, ou externa. Os
professores em círculo não podem prescindir do recurso teórico que «assegure a coerência
necessária à evolução de uma inovação pedagógica»249. O perfil e o papel do formador externo
assumem-se aqui como pólos indispensáveis de reflexão sobre os riscos de ensimesmamento do
círculo.
247
Benavente, A., A Reforma Educativa e a Formação de Professores, in Nóvoa, A. & Popkewitz, T.(1992), Reformas
Educativas e Formação de Professores, Lisboa, Educa, p.53
248
Carvalho, A.(1992) A Educação como Projecto Antropológico, Porto, Afrontamento, p. 40
249
Ducros, P. & Finkelstein, D. (1990) Dix conditions pour faciliter les inovations, Cahiers Pédagogiques, 288, P. 27
Os limites de uma formação continuada que passa pela formação inicial
250
Naysmith, J.(1995) Reflexões sobre o Ensino Superior em dois lugares diferentes, Rumos nº 3, p. 11
251
Gonçalves, J. in Nóvoa, A. (1992) Vidas de Professores, Porto, Porto Editora, p. 161
252
Benavente, A.(1990), op.cit., pp.107-108
253
Benavente, A.(1990), op.cit., p.105
254
Watzlawick, P. et al (1975) Changements, paradoxes et psichothérapie, Paris, Seuil
O trabalho rigoroso de avaliação da formação de professores continua por concretizar.
Correr-se-á o risco de ajuizar em causa própria, pois os avaliadores são, por regra, professores das
instituições de formação inicial, mas dever-se-á correr esse risco. Ainda que as premissas estejam, à
partida viciadas e a visibilidade da prática social dos pesquisadores seja diminuta, só com dados se
poderá partir para uma análise participada que permita esbater a falta de diálogo entre os teóricos-
formadores e os práticos radicalmente isolados nas suas "certezas".
“Depois de várias experiências de insucesso pessoal, ainda que não assumido, o professor
chega à escola urbana ou semi-urbana, prematuramente envelhecido no espírito, na formação, sem
grandes expectativas, nem capacidades de mudança”.255 Se esta afirmação se apresenta credível,
será necessário que nos interroguemos, não apenas sobre as condições do exercício da formação e
da formação contínua, mas também sobre a formação inicial dos professores.
São os próprios docentes das instituições de formação inicial que reconhecem existir “uma
lacuna gravosa na formação de professores ministrada pelas instâncias instituídas, que se torna
urgente colmatar”256. Os autores acrescentam que as escolas de formação inicial transmitem aos
alunos modelos alternativos de pedagogia, descrevem correntes e escolas, mas não colocam os
futuros professores na presença de “práticas profissionais assumidamente integradas em pedagogias
alternativas”257, o que a meu ver, englobará quer a componente da prática pedagógica do curso,
quer as próprias aulas a que é suposto assistirem dentro do estabelecimento de ensino superior.
Apesar de constituir uma contradição digna de apreço, a afirmação é grave pelo que permite
subentender: a incoerência entre o conteúdo do discurso de transmissão e a prática que o
contextualiza. Conclui-se, a atestar a presumível referência à instituição formadora, que, também
no âmbito da prática pedagógica ou estágios, não é facultada aos futuros professores a
experimentação de práticas profissionais coerentes com as propostas educativas.
É indispensável a participação das instituições de Ensino Superior em qualquer iniciativa de
formação. Mas não é possível, no actual estádio das Ciências da Educação, formular qualquer
proposta de formação "colaborativa" assente em referentes científicos firmes. Neste
reconhecimento, importará num primeiro momento, realizar estudos exploratórios que viabilizem a
não-separação entre formação e uma pesquisa que a fundamente. No quadro de uma participação
colaborativa do Ensino Superior, aconselhar-se-ia uma posição mais pautada pela escuta do que
pela aplicação de instrumentos de análise antecipadamente concebidos.
Persiste a influência de um modelo tradicional de formação, segundo o qual, “a
universidade proporciona as teorias, métodos e habilidades (...) e o professor proporciona o espaço
255
GEP (1988), texto policopiado, p. 39
256
Ribeiro, J. et al (1990) A influência da colegialidade no profissionalismo, in Inovação, vol. 3, nº1-2, p.121
257
Ribeiro, J. et al (1990), op. cit., p.121
individual”258. A emanação do saber a partir do mundo académico coloca-a ao abrigo da
depreciação. As propriedades científicas que lhe são tacitamente reconhecidas dotam-no de uma
validade universal que não pode ser objecto de contestação. Porém, se a Universidade quiser
cumprir a sua "vocação" para a formação, deverá contribuir para a “criação de uma comunidade
justa, com formandos e formadores a participar na gestão do plano de formação». Terá de
questionar a infalibilidade das suas propostas e «evitar o modelo das lições e colóquios avulsos e
integrar, ao invés, dispositivos de formação entre as escolas e as instituições de ensino superior”259.
A divisão tradicional entre os que na Universidade decidem e os práticos que no terreno da
formação concretizam as decisões, pode ser atenuada. Da Universidade não se reclama mais a
concepção, mas a colaboração. Numa perspectiva de participação indirecta das instituições de
formação inicial na formação de professores, poderão ser contempladas: estudos da avaliação, a
ajuda à concepção de programas e dispositivos de formação, a investigação-acção de modos de
aprendizagem dos adultos, a publicação de experiências.
As instituições de formação inicial são o lugar por excelência da racionalização de saberes
sobre os quais a profissão de professor assenta a competência, a autonomia e o seu estatuto social.
Mas torna-se imperioso não exorbitar os pergaminhos, sob o risco de os saberes que guardam se
tornarem tão inacessíveis aos práticos, quanto inúteis.
A Universidade poderá desempenhar um papel de legitimação de saberes práticos,
racionalizando-os, numa atitude de solidariedade de resposta. Parafraseando G. Pineau260, diria que
“para reconhecer novas práticas, é preciso construir novas teorias”, porque a sentença se aplica
perfeitamente às práticas de formação emergentes dos círculos. Não se pode dispensar o contributo
da Universidade; será porém necessário moderar a sua intervenção.
O que se pede ao Ensino Superior é, sobretudo, que não insista na realização de acções
isoladas, sem obediência a planos previamente negociados e amadurecidos com a participação
efectiva dos professores a quem se destinem. Os problemas da prática social não podem ser
reduzidos a problemas meramente instrumentais. “As acções pontuais, centradas em conteúdos,
construídas segundo lógicas de exterioridade relativamente aos públicos e aos contextos, exprimem
uma visão utilitária e consumista da formação”261. Será necessário inverter a lógica da oferta de
formação, que predomina nas instituições de Ensino Superior.
A intervenção dessas instituições “tende a pautar-se em larga medida por critérios de defesa
de interesses corporativos. Este pendor corporativo contribui para empobrecer, quer em termos
258
Britzman, D.(1986) Myths in the marking of teacher biography and social struture in Teacher Education, Harvard
Educational of Review, 56 (4), p. 442
259
Tavares, J. et al (1991) Formação Contínua de Professores, Realidades e Perspectivas, Aveiro, Ed. U.A., p.86
260
Pineau, G. & Courtois, B.(1991) La formation expérientielle des adultes, Paris, La Documentation Française, p.29
261
Canário, R. (1993) Ensino Superior e Formação Contínua de Professores, ESE/Portalegre, texto policopiado, p.13
estratégicos, quer metodológicos, o debate sobre a formação de professores”262. O processo de
formação de professores do ensino superior, entre o auto-didatismo e o improviso, não propicia a
integração no trabalho colectivo. Acresce que o pendor científico tem atirado para um segundo
plano o pedagógico. Um conjunto de circunstâncias difícil de discernir tem conduzido ao
ensimesmar dos universitários em fundamentalismos que arredam incertezas. Juiz em causa
própria, o universo académico abre-se à novidade, mas resiste à prática coerente da inovação. Está
para surgir o Freinet universitário que derrube estrados e solenidades vazias. “Permitamos que as
críticas justas se manifestem no seio da Universidade”263.
“Neste plano, a experiência (...) é insubstituível. Quantas vezes não pensei nisto quando
assistia, no anfiteatro de uma universidade, à "lição magistral" de um mandarim ultra-
especializado que se refugiava no seu discurso! Como poderia este homem mudar e
abrir-se se, de vez em quando, passasse um dia na escola pré-primária! Também é
utópico, eu sei. Também sei que os "grandes professores", como se diz, não necessitam
disso”264
“Constatei que os melhores "formadores de formadores" como se diz hoje, são da
categoria dos práticos, dos que mostram mais o que são que o que fazem e mais o que
fazem que o que sabem”265
O coordenador do projecto da Escola da Ponte age como formador do círculo. Dele se exige
“propiciar ao professor e ao grupo o ser ele próprio, acompanhar o sujeito de formação nos seus
processos de ruptura e de reestruturação”266. Se fosse possível elaborar um perfil de formador para
o círculo, poder-se-ia identificar alguns requisitos essenciais: grande capital de experiência,
rigorosa formação científica, dotado de profundos conhecimentos de pesquisa, socializado em
projectos inovadores e capacitado para o trabalho com adultos.
Quando o formador adopta uma atitude autoritária condiciona significativamente a
autonomia pessoal e intelectual do formando. Tanto se aplica à formação contínua de professores
como ao processo de ensino-aprendizagem dos alunos de uma qualquer escola, pois não há duas
pedagogias.
262
Canário, R. (1991), op. cit., p.13
263
Simão, V., cit. in Nunes, S. (1970) O problema político da Universidade, Lisboa, D. Quixote, p.136
264
Jean, G.(1990) Cultura pessoal e acção pedagógica, Porto, Ed. ASA, p.79
265
Jean, G.(1990) op.cit., p.88
266
Pacheco, J. (1993) Memória e Projecto, Correio Pedagógico, nº 74, p.8
Uma das pedras de toque da mudança na formação é a passagem (raramente concretizada ainda
que prodigamente anunciada) de uma atitude directiva para uma outra heurística e privilegiadora da
individualização no grupo. Tratar-se-á, apesar do desgaste do discurso, de um duplo papel: de
mediador e criador de estratégias de partilha.
"Não são «aulas», mas sim reuniões de trabalhos entre amigos (...) a competência
científica e pedagógica, a postura simples, despretensiosa e compreensiva (...) não trouxe
para a escola mais uns quantos textos de apoio para colocar na gaveta...”
"A sua actuação caracterizou-se por uma conduta de cooperação e valorização das
diferenças (...) atento às necessidades e /experiências dos participantes (...) se
267
Pain, A. (1990), Education Informelle, Paris, Ed. Harmattan, pp.132
268
Saint-Arnaud, Y.(1981) Participacion y comunicacion de grupos, Madrid, Ed. Anaya, p. 114
trabalhamos em grupo, somos todos formadores, mas há momentos em que todos temos a
mesma dúvida e há necessidade de alguém... "
269
Jobert, G.(1987) Una nouvelle profissionnalité pour les formateurs d'adultes, Éducation Permanente, 87, p. 32
270
Stroumza, J.(1991) Quels formateurs pour les adultes falblement qualifiés? Panorama, 14, policopiado, p.2
271
Le Boterf, G. (1986), L'ingénierie des projects de développement, Montréal, Agence d'Arc, p. 30
em identificar os problemas, (percebido como) um líder no sentido da dinâmica de grupo”272 não
existe no círculo. O formador não é o animador, é todo o grupo. Os formadores apercebem-se de
que não se dirigem exclusivamente ao indivíduo, mas a um grupo, cujos elementos constituintes se
encontram envolvidos numa constante intervenção no seu meio social. Se o formador se apercebe
desta dinâmica e a respeita, procederá a uma revisão do papel tradicional de um formador. Se o não
entende, verá serem subvertidas as formas de poder social que pretenda utilizar, ou impor...
Verifiquei, em outras escolas, algumas situações de conflitualidade latente, ou manifesta
entre o círculo e um formador. Este procurava pôr em acto um saber assente numa racionalidade
técnica que, presumivelmente, conduziria o grupo a soluções sólidas e estáveis. O grupo reagia,
frequentemente, com um desdém que o formador interpretava como ignorância. Servi, muitas
vezes, como intermediário na clarificação dessas situações. Mesmo assim, se o formador insistia
em não reconhecer o círculo como grupo com características diferentes de outros grupos, o
desfecho era inevitável: o formador inventava uma qualquer desculpa e, tão discretamente quanto
lhe era possível, afastava-se.
Num caso particular, a colaboração durou apenas um encontro. O formador entrou na sala e
imprimiu a sequência que, provavelmente, havia utilizado com êxito com outros grupos:
estabeleceu as sequências, a ordem, o ritmo, a apresentação dos acetatos... No final à linguagem
esotérica e eficaz em termos de imagem social e de poder, responderam-lhe com um silêncio de
desafio. E por aí se quedou a colaboração entre o círculo e o formador. No entanto, o formador
poderia, apenas com recurso ao bom-senso, constituir-se em mediador entre o saber constituído e o
domínio das preocupações do círculo. A sua formação sempre fez a apologia dessa mediação. O
que impediu que a concretizasse?
Imbuídos de uma já longa socialização em círculo, os professores reagiram como actores-
autores sociais, que não se comportam como meros objectos de formação. Vaalgarda e Norbeck
resumem em duas sentenças o fundamental: “O monitor (formador) do círculo (...) não pode agir
nunca como professor omnisciente tradicional (...) O grupo nunca fala para o monitor, o grupo
conversa entre si”273. Esses autores acrescentam que a participação de «especialistas tem de ser
sempre previamente preparada no grupo». Referem que “se alguma vez um professor com
formação pedagógica e habituado a ensinar se encarregava de ser monitor dum círculo, este
acabava geralmente por ser talvez um círculo menos feliz, uma classe escolar com professor e
alunos em vez de um grupo de colegas. A pedagogia e a metodologia da escola nunca se ajustaram
ao círculo de estudos”274.
272
Bogard, G. (1991) Pour une éducation socialisatrice des adultes, Strasbourg, Conselho da Europa, p.51
273
Vaalgarda, M. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.22
274
Vaalgarda, M. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.33
A formação é uma intervenção junto e com quem “dispõe já de representações,
conhecimentos, saberes-fazer e, (...) por consequência, para formar é necessário ter em conta estas
aquisições anteriores”275. O nicho formador de cada círculo proporciona o assumir deste princípio e
potencializa a autonomia do grupo em formação. O círculo poderá ser considerado como
dispositivo de auto-gestão aberto. Não é apenas uma instância de mediação, mas de auto-mediação,
de «mediação do sujeito em formação com o seu mundo subjectivo, mediação de um grupo de
formação com as suas subjectividades, mediação do grupo com um projecto de acção, através do
qual ele se exterioriza»276.
A tarefa do formador não consistirá na “formulação de respostas tecnicamente eficazes aos
pedidos explicitados, mas num trabalho sobre os pedidos em-si-mesmos e sobre o trabalho de
formulação de respostas”277. A autonomia do círculo afirma-se na proporcionalidade inversa ao
protagonismo do formador. Recorre a este como recorre a um centro de recursos. Os projectos têm
origem interna e consubstanciam-se num propósito e compromisso (passe o pleonasmo) comum.
Pelo que me foi dado ver (e viver) em círculos de estudo, o perfil possível de um formador
poderia ser esboçado em algumas atitudes encontradas como favoráveis à evolução do trabalho em
círculos: um evidenciado auto-conhecimento; equilíbrio entre o acatar da responsabilidade de
formador e as decisões dos pares; forte capacidade crítica; capacidade de gerir conflitos, sem
preocupação por consensos fáceis; capacidade de organização documental; consideração da
precaridade da função.
Este perfil, somente esboçado, é em tudo a negação do formador que desapossa os
professores dos seus saberes, lhes inculca sentimentos de incapacidade de acesso à verbe e à
sapiência e os impede de reflexão sobre as suas práticas. Também neste capítulo, o círculo pode
actuar como instrumento de denúncia das práticas de alguns formadores de formadores. Só o
trabalho de escuta pode ser facilitador de mudança. O contrário apenas confirma, ao nível da micro-
relação o que é sabido a um nível mais geral da política educativa: que os desajustamentos acabam
por funcionar como um generalizado processo de desculpabilização do empenhamento profissional
de muitos professores278.
Esta escuta, para além do seu significado metodológico, terá de ser humanamente
significativa, de assentar numa deontologia de troca279. Já se assiste a uma inflexão ainda que
mínima, de formação magistral para posições de escuta e já alguns pesquisadores concluem que
“todos os estudos sobre o que e como aprendem os professores demonstram que estes, na sua
275
Berger, G. (1991) Novos recursos para o ensino tecnológico e profissional, Porto, GETAP, p.235
276
Correia, J. (1993) Formatividade e Profissionalidade Docentes, texto policopiado, p.10
277
Correia. J. (1993) Dispositifs e Dispositons dans la Formation d'Adultes, texto policopiado, p.11
278
Stoer, S: (1986) Educação e Mudança Social em Portugal, Porto, Afrontamento
279
Morin, E.(1985) Sociologia, Lisboa, Europa-América, p.136
maioria, prestam maior atenção ao que diz um colega (independentemente de que o que lhes diga
seja ou não correcto), que ao que lhes diz alguém que venha da investigação educativa”280. E o
professor, no círculo, escuta-se escutando o outro.
No círculo, o poder do formador não se desvanece. Mas é moderado pelas estratégias dos
outros professores – elemento regulador. No círculo esta moderação face à tendência do formador
para a prática transmissiva, permite que se privilegie uma finalização mais forte das formações
relativamente ao seu contexto. A prática da formação centra-se na inserção social, na iniciativa e no
interesse dos professores. O formador externo terá de levar em consideração o carácter supletivo da
sua intervenção. Antes de mais, a formação centra-se no grupo, agindo nas escolas, no
envolvimento da pessoa que determina conteúdos e estratégias de formação, passa pela participação
activa do formando no seu processo formativo.
O saber pedagógico tende a dissociar-se em três dimensões: o teórico, o tecnológico e o
prático. Esta "taylorização" é contraditória com o actual contexto social e com o estatuto
epistemológico da pós-modernidade. Paralelamente com a "taylorização" pedagógica, o Estado
tende a dissociar também o prático do perito e este do militante. Na formação, o conhecimento de
práticas inovadoras é escasso, estamos no ponto de partida, quase nada sabemos. Por isso, se
pretendermos traçar um simples esboço do formador de círculo, poderemos fazê-lo, mas sem
presunção de certeza. Ao formador pede-se que esteja atento às tentações de controlo.
Tradicionalmente, é ao formador que compete determinar a natureza dos objectivos, ou estabelecer
a metodologia. Age tradicionalmente, como se fosse possível prever a multiplicidade e a variedade
de situações com que irá deparar. Traduz uma organização vertical quase sempre submetida a
regras definidas por uma qualquer entidade promotora da formação. No círculo, o formador é
convidado, tal como se convida um livro... A formação acontece com ou sem um presumível
formador.
281
Também conhecido como “1º Ciclo”, corresponde às quatro primeiras séries do Ensino Fundamental (no Brasil)
282
Figueira da Foz, 21-22 de Novembro de 1985
de Educação, que, eventualmente a terá feito chegar aos organismos centrais do Ministério. Digo
"eventualmente" porque não foi recebida qualquer resposta às questões colocadas no ofício.
"As pessoas são comodistas. Gostam de ser dirigidas. Nós fomos sempre tratados abaixo
de cão. Não há um mínimo de união, nem de dignidade. Os professores primários
acomodam-se na incomodidade. "
“Deveria haver mais união entre os professores, mais ligação, trocar ideias. Mas cada
qual fecha-se na sua concha. Há pessoas que querem evoluir, mas a maneira como
viveram para a profissão, no tempo do salazarismo, marcou-as muito”283
A influência das várias décadas de Estado Novo não justifica, por si, a situação. À herança
recebida junta-se idêntica atitude dos professores formados após 1974, mas socializados numa
escola dependente e ensimesmada.
Nas décadas de 1970 e 1980, chegavam às escolas projectores de diapositivos e material
sofisticado. Em meados da década de 1990, estes recursos estavam como novos. Melhor dizendo,
estavam intactos, dentro das suas embalagens de origem, ainda por abrir. Nos anos 1990, o
Ministério enviava "faxes" às escolas, que não tinham aparelho de fax para os receber. Enviava
disquetes para trabalho informático, em computadores que as escolas não possuíam, pois nem
sequer tinham verba para comprar giz.
Sem gestão participada, era também dispensado o projecto educativo (projecto político-
pedagógico). Não sendo "obrigatório" o projecto, também não era obrigatório dotar a escola de um
orçamento... A legislação que estabelecia obrigações das prefeituras perante as escolas também
ficaram por cumprir – as despesas com o expediente, higiene, saúde e aquisição de materiais e
equipamentos, foram sendo mitigados pela generosidade de terceiros.
283
Benavente, A. (1990), p. 201
Os Encontros Regionais e as Conferências Nacionais, que tiveram lugar na década de 1980,
reclamaram uma gestão democrática que contemplasse o direito à plena e responsável participação
dos professores nas decisões que afectassem a vida das suas escolas. Com bondade, o Despacho
Normativo 185/92 estabeleceu que a dispensa de serviço docente para a participação em acções de
formação seria “solicitada ao órgão de gestão do estabelecimento de educação ou de ensino onde o
docente exerce funções”284 e que a dispensa seria autorizada pelo mesmo órgão de gestão. Sete
meses decorridos sobre a publicação do Despacho, um ofício-circular da Delegação Escolar
transcrevia um ofício da Direcção Escolar285 que, por sua vez, estabelecia que, “nos termos da
alínea e) do artº 44º do Dec-Lei 249/92 (RJFCP), a competência para autorizar a dispensa de
serviço docente é do Senhor Director Regional de Educação, pelo que os requerimentos lhe devem
ser dirigidos”. Para que não reste qualquer dúvida da direcção e do trânsito dos requerimentos, o
ofício determinava que a Delegação Escolar, ao enviar os requerimentos, deveria informar a
Direcção Escolar “sobre a formação e sobre o professor”...
Em Portugal como no Brasil – onde ainda há escolas que funcionam em horário de três
turnos – «a questão dos horários não nos parece menor na vida escolar pois a organização do tempo
(e, neste caso, a sua concentração numa parte do dia) pesa no trabalho dos professores, nas
condições de trabalho das crianças (...) e, finalmente, pesam no papel social e educativo da
escola»286. Com "falta de tempo" não sobra o tempo para a participação activa dos alunos, que, na
mesma linha de argumentação, "faz perder o pouco tempo" de que os professores dispõem.
“Pensamos que este horário concentrado reforça a rigidez do modelo pedagógico dos professores e
os seus comportamentos autocentrados; aliás, qualquer estatuto de experiência pedagógica oficial
prevê o horário normal como condições de base para desenvolver novas práticas na escola
primária”287.
Nos últimos anos – apesar do esforço autárquico de construção de novos edifícios escolares,
ou da redução do número de alunos matriculados – o regime de horário normal, integral, continua a
ser preterido ao menor pretexto. As estratégias são diversas, desde a viciação do número de alunos
matriculados288, à escolarização de alunos rotulados de "deficientes" (ainda que o estigma não
corresponda à realidade) de modo a limitar ao máximo admitido de vinte alunos por turma.
284
Artigos 3 e 4 do Despcho 185/92
285
Ofício 5021-1º C, de 31.03.93
286
Benavente, A. (1990), p. 126
287
Benavente, A. (1990), p. 126
288
Um procedimento frequente consiste em manipular o sistema de transferência de alunos, de modo a conseguir o
número de alunos suficiente para curso duplo.
Os normativos289 avisam que a criação de novos lugares docentes se destina ao apoio a
alunos portadores de deficiência e/ou com dificuldades de aprendizagem e "não com vista à
formação de mais turmas", que inviabilizem o regime normal290. Realça-se, aliás, que o apoio não
visa desintegrar os alunos das respectivas turmas. É persistente a recomendação de que deverá
“proceder-se de forma a assegurar tanto quanto possível a manutenção do regime normal, que é
obrigatório”291 e que “deverá o Conselho Escolar tomar em consideração o prejuízo que advém para
os alunos do funcionamento em regime duplo”292. Aconselha-se a constituição de equipas de
professores que possam trabalhar na mesma sala em co-responsabilização. Porém, o regime de
turnos eterniza-se...
Um outro modo de assegurar o regime de turnos consiste em estruturar a progressão dos
alunos em referência aos anos de escolaridade (séries). Esse sistema de "classes" separa os níveis
de "aproveitamento" e inviabiliza a organização de grupos heterogéneos, reduzindo o número de
alunos por turma e as possibilidades de trabalho em equipa de professores.
Persistem ainda outros fenómenos de involuntária ocultação de realidades que urge relevar,
por mais absurdas ou chocantes que possam ser. Os estudos também podem pecar por omissões:
nas realidades que não contemplam, nas perguntas que não levantam, nas indignidades que não
denunciam... Um estudo que consultei (com olhos de olhar a realidade do Ensino Fundamental por
dentro...) reflectia enviezamentos idênticos aos de outros estudos. Confundia, por exemplo
intenções legislativas com a sua operacionalização. Referia «medidas concretas no sentido de
democratização da escola» e apontava como mais significativas a introdução de novos programas, a
estruturação das quatro classes em duas fases, a revisão da avaliação, as dotações de material
escolar, a gestão democrática das escolas.
Quem se quedasse por uma leitura menos avisada desse estudo poderia extrair ilações
erradas. A autora recorre a expressões como: “a avaliação foi revista”, “tentou-se a avaliação
contínua”, “foram reconhecidas as necessidades em material escolar”, “adoptou-se a gestão
democrática das escolas”, “eleitos coordenadores pedagógicos”, “redefiniu-se o papel do
inspector”. Porém, sem nada acrescentar de imediato que informasse e esclarecesse que, salvo raras
e honrosas excepções: os programas jamais foram implementados, a avaliação permaneceu
selectiva, as necessidades em material escolar continuaram por satisfazer, a gestão democrática não
existia e que os inspectores (no Brasil, supervisores e superintendentes) continuaram tão
prepotentes como antes de 1974.
289
É exemplo concreto o nº 8 do Artº 4º do Dec-Lei 35/88
290
Numa escola da Maia, no ano lectivo de 1994/95 uma forma expedita de conseguir assegurar o regime de curso duplo
foi a organização de uma turma de "deficientes" que ocupasse uma sala de aula. Não constituiu caso isolado...
291
Nº 22 do cap. V do Despacho nº 25/SERE/SEAM/88.
292
Nº 2 do Artº 4º de Dec-Lei nº 35/88
Sem nada acrescentar, que mostrasse o desfasamento entre medidas legislativas e a sua
concretização, o estudo escamoteava realidades. Referia «medidas de revalorização e de re-
orientação do estatuto e do papel do professor» como “o desenvolvimento de Bibliotecas escolares
em cada zona”. Mas essas “bibliotecas” nunca foram “medidas significativas da revalorização e re-
orientação do estatuto e do papel do professor do ensino primário” – os livros dessas “bibliotecas”
estão, desde há trinta anos, encerrados em armários...
As precárias condições do exercício da profissão agem “como factor de desencorajamento e
de cansaço e são entendidas como sinal de um certo desprezo das autoridades oficiais pela escola
primária”293. Nas entrelinhas dos normativos subsistem resquícios de senso comum legislativo, que
tendem a considerar que o primário tem a gestão que "merece" e que impelem à interiorização de
sentimentos de subalternidade.
"Os professores não exercem de uma forma feliz a sua função. Eu noto que as pessoas
começam o ano cansadas. Dizem que não lhes apetece fazer nada. Há um desgaste
imenso. Pode estar a faltar determinada formação. Quando se descobrir que há formas
de vida melhor, talvez as coisas se resolvam. Há valores que falham nas pessoas e nos
professores. Como professores nós falhamos em duplicado. Isso é terrível. Nós temos que
mudar o nosso comportamento para sermos felizes. Eu não aguento mais isto. Estou
saturada. Não tenho condições para ser o que quero ser na escola. Não estou doente,
estou consciente. Desta forma não me interessa continuar a ser professora.
Continuamos a ser controladas por papões. Em miúda eu não ia aos figos porque me
diziam que havia um bicho...
"O meu marido não respeitava a minha profissão. Dizia que era insignificante. Ao fim de
vinte e quatro anos de serviço e de vinte como casada, ele dá-me valor. Eu cresci perante
o meu marido como pessoa, através da minha profissão. Para que o meu marido me
considerasse (o trabalho dele é de fazedor de dinheiro e o meu é mal pago mas faz
crescer outros) eu precisei de acreditar em mim em primeiro lugar. Ainda estou sempre a
interrogar-me, mas sinto que tenho valor.”
“Eu fui um dos professores que acreditou numa escola democrática e para todos. No ano
transacto, acompanhei com amor a escola de dois meus ex-alunos. A Berta tinha um
currículo próprio, pois ela era uma criança também muito própria, muito ela mesma. O
Zé não tinha currículo próprio, tinha o mesmo programa dos outros, mas tinha uma
vontade férrea para acompanhar os colegas, não se importava de suar...
No final do ano, ao avaliar estes alunos, tendo em conta os objectivos essenciais e
sobretudo os critérios de avaliação, a resposta só podia ser a de transitar ao 5º ano.
Processou-se toda a burocracia inerente às matrículas destes alunos e partimos para
férias. Em Setembro chegou-me a notícia, através da Delegação Escolar, de que os
processos de matrícula destes alunos estava na Delegação, pois não obtiveram vaga na
escola do 2º Ciclo.
A partir desse momento só senti os espinhos que as rosas têm. Como poderia ser verdade
que a Berta e o Zé não tivessem vaga na escola do 2º Ciclo, se eles estavam dentro da
escolaridade obrigatória? Fui à Escola do 2º Ciclo saber o porquê (...)
A mãe do Zé estava nervosa, revoltada. Não viu o nome do Zé nas listas do 5º ano.
Dirigiu-se a alguém dessa escola para saber o porquê da ausência do nome do seu filho.
A resposta que lhe deram foi: “O seu filho não entrou nesta escola porque é deficiente.”
As lágrimas bailavam nos olhos daquela mãe. Era a primeira vez que alguém lhe dizia
que o Zé era deficiente. Ela mostrava o filho às professoras daquela escola e dizia:
“Olhem bem para o meu menino! Ele não é deficiente, ele tem dificuldades, mas tem
melhorado muito. O meu menino é perfeito!”
Não vou relatar o que se passou e os meandros que percorri para que os meus alunos
tivessem o direito de frequentar o 5º ano, mas queria que os professores pensassem nisto:
nove anos de escolaridade obrigatória para quem, para quando e como?”
294
Nóvoa, A. (1987) Le Temps des Professeurs, Lisboa, INIC
Concluindo...
“Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto; mas acho que isto deve estar bem
porque o penso sem esforço (...) porque o digo como as minhas palavras o dizem”
(Alberto Caeiro)
295
Pineau, G., in Furter, P., Les espaces de la formation, Lausanne, Presses Polytechniques Romandes, 1983:11
necessidades no decurso dos encontros banaliza a determinação exterior de objectivos e comprova
a imprevisibilidade dos processos formativos; a praxeologia confere à experiência um estatuto de
fonte de conhecimento e desequilibra a relação de poder entre formador e formando.
No círculo, a informalidade tem valor equivalente às situações formais. O tempo entre
encontros é sempre de formação, não se separa o formal do informal, o trabalho do lazer, o prazer
do dever. As reuniões de formação onde não há espaço para a emoção são monstruosidades. Os
professores são profissionais, mas são também pessoas, convém não esquecer.
Os conteúdos de formação são seleccionados por apropriação crítica. Transformam a pessoa
e a sua prática. São significativos e produzem novos significados. A formação em círculo obsta a
generalizações avulsas e induz o grupo em processos singulares. Não se queda pela descrição
empírica ou pela especulação teórica – busca a compreensão dos fenómenos educativos e constrói
teoria.
Poder-se-á falar de um processo de emancipação lento e progressivo? O que se poderá
afirmar é aquilo que uma formação oposta à socialização em círculo o confirma como cultura de
crítica e resistência. Isto é, se a escola e os professores aceitam modelos de prática não
democrática, aceitam a alienação em modelos correspondentes de formação. Nesta afirmação pela
negação, fará sentido dizer que o professor das escolas é o mesmo professor da formação. Inquirir
como se organizam os professores na formação implica perguntar como se organizam os
professores nas suas escolas, ou como decorrem as aprendizagens dos alunos e quais os modelos
que lhes dão forma. A mudança não poderá ser promovida “somente de fora, ao nível das super-
estruturas e dos decretos institucionais se não o é, ao mesmo tempo, no interior, pelas vozes
daqueles que a ela aspiram e que a vão, finalmente, exercer” 296. A mudança não é um objectivo: é
um estado. Possui componentes existenciais tão dinâmicos como imprevisíveis.
A sociedade entregue à auto-decomposição, a crises de aceleração da História, ou a um
obstinado investimento em lutos de fim de século, já não possui um sentido único de mudança. E
talvez seja no indivíduo integrado em colectivos auto-organizados que os processos de reelaboração
da cultura pessoal e profissional possam ser apreendidos e compreendidos. Os professores que,
num qualquer momento do seu percurso profissional, aderiram e participaram da prática de
formação num grupo auto-organizado, evidenciam atitudes bem diversas dos que apenas
conheceram práticas mais comuns no campo da formação de professores.
A problemática da formação em círculo continuará em aberto, à espera de novos
contributos. Aos períodos de euforia sucedem-se os de desânimo. Ficam pelo caminho reflexões
sobre uma formação de outro tipo, “cuja resposta irá por vezes determinar que a formação se situe
296
Ardoino, J.(1971) Propos actuels sur l'éducation, Paris, Gauthier-Villars, 5ª Ed., p.317
em quadro epistemológicos bem diversos. Formação em que momento? Para quem? Com que
finalidade? Através de que estratégias? Que considerar nela prioritário? Propô-la aos professores,
ou dar resposta aos seus pedidos? Iniciá-la a partir de quê?”297.
Não foi meu propósito efectuar uma projecção sócio-histórica no campo da formação de
professores. Mas diria que “não há na história dos grupos profissionais nenhum futuro pré-
determinado (e que) o amanhã é sempre o produto das opções tomadas hoje” 298. Hesitei na
multiplicação de referências, de citações, ou de mais e mais pistas para a compreensão do círculo,
porque tudo o que registei me sugere retornos. Redescubro-me num regresso cíclico à pedagogia e
aos pedagogos – Pestalozzi, Herbart, Neill, Decroly, Freinet, Ferrière, Faria de Vasconcelos...
Também (talvez) por isso, a linguagem e o conteúdo do discurso me pareçam gastos. Em trabalhos
anteriores (não publicados) verifico a prevalência de uma matriz que radica na tradição e
manifestos da Escola Nova. Não farei transcrições desses trabalhos, apenas refiro por serem
caracterizados pelos mesmos traços que agora julgo reencontrar no trabalho com círculos de
estudos: a iniciativa, o senso crítico, a solidariedade, a autonomia.
Apercebo-me de que não é este o lugar para avaliar o impacto de uma inovação assente
numa transformação de valores apenas esboçada. E é importante sublinhar que o círculo não é
novidade. Sob uma pluridade de abordagens, os círculos de estudo foram conceptualizados por
muitos teóricos da formação. Os seus apoios conceptuais enraizam-se nos contributos dos pioneiros
da educação permanente. Assim, os círculos traduzem um modo de estar e de agir numa sociedade
em via de formação, numa transição para perspectivas ainda pouco nítidas, onde a única certeza é a
da mudança sentida, nas transformações que se supõe estarem a processar-se nas estruturas e nos
processos sociais. Terá valido a pena o investimento de tempo e energias, se outros tomarem seus
os intentos breves deste estudo, os conduzirem para novas interrogações.
297
Cortesão, L. (1991) Formação: algumas expectativas e limites, Inovação, 4 (1), p.93
298
Nóvoa, A., in Stoer, S. (1991) Educação, Ciências Sociais e Realidade Portuguesa, Porto, Afrontamento, p. 118
ANEXOS
Sobre a pesquisa
A pesquisa que serviu de base para a presente obra incidiu nos significados que os
professores atribuem às suas acções, nas estratégias que utilizam em formação, nas atitudes e
comportamentos evidenciados, nas suas leituras e descrições do vivido numa multiplicidade de
situações. Prevaleceu a tarefa de reconstituir o campo alargado, não apenas do facto-em-si, mas da
dispersa multiplicidade dos actores e universos não directamente relatados nas "evidências"
recolhidas.
Quis integrar o campo de observação no campo social de que fazia parte. Na análise dos
dados recolhidos, tentei aperceber-me do sistema de relações do objecto, para que este não viesse a
ser entendido como algo compartimentado, mas como objecto relacionado. Os professores não se
formam sozinhos, formam-se em contextos específicos, com os instrumentos e meios de que
dispõem. É no conjunto que o objecto ganha inteligibilidade, na formulação de um espaço de
relações objectivas. Ou, no dizer de Morin, “hoje a nossa necessidade histórica é encontrar um
método que detecte e não oculte as ligações, articulações, solidariedades, implicações, imbricações,
interdependências, complexidades”299.
Os círculos de estudo requerem mais compreensão que explicação. Mas uma compreensão
contemplativa, uma "neutralidade activa" diferente da neutralidade definida por Durkheim. Essa
"neutralidade activa" caracteriza-se pela indução de um trabalho de interpretação realizado numa
relação que não é de observação, mas de escuta. O pesquisador observa a relação que os
fenómenos têm com as suas interrogações, no reconhecimento de que o que produz ciência não é o
"transfer", mas o "contra-transfer", dado o observador ser, simultaneamente, observado.
Não pretendi, somente, o regresso do sujeito de pesquisa, mas o regresso da ideia de "acção
social", em detrimento da ideia de prática. Não se tratou de uma relação ciência-prática, mas entre
acção e prática, um problema de produção social da própria acção de pesquisa: existe um actor que
produz acção e que, na acção, adquire consciência da dificuldade de gerir, por exemplo, as tensões
entre teoricismo e empiricismo.
Integrei o campo da acção e da pesquisa, não me transferi para lá. Por isso, mais do que a
apreensão das representações de representações, tratou-se do aperceber-me da realidade oculta que
se manifesta “nas interacções em que se dissimula a si própria”300. “O espaço de interacção
299
E. Morin , La Méthode, T.I., Le Seuil, p.16, cit. in Bourdieu, P. (1989), op. cit., p.54
300
Bourdieu, P.(1989) O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, p.54
funciona como uma situação de mercado linguístico”301 que, apesar dos limites impostos pelo
reconhecimento das relações e das implicações dos actores, possui "características conjunturais"
que é possível destacar, para se compreender o dito e, sobretudo, o não-dito.
Considerei a crítica de Morin302 aos processos de generalização e de simplificação, bem como
a definição de ideologia como interpretação parcial do mundo, ou um "desvio de atenção". Do
pensamento simplificador resulta uma certa patologia do saber, que exprime dificuldade em
integrar a unidade na diversidade, a individualidade com a globalidade. Existe o risco efectivo de
trabalhar em Ciências Humanas ignorando o Homem. Considerei, também, a recomendação de
Bachelard da "vigilância da vigilância", o sobre-mim intelectual indispensável à efectiva
objectivação do objecto. Esta vigilância não actua sobre a ciência feita, mas sobre a ciência-a-fazer-
se e enquanto se faz. Tentei pesquisar na formação e não sobre formação, predominando o ponto de
vista do formando, perspectiva quase inédita no quadro das pesquisas disponíveis.
O tempo de elaboração deste trabalho é longo – mais de trinta anos. Foi um tempo de
solidariedades e compromissos. Uma situação incómoda, de quem está no grupo estudado e sobre
ele (e sobre si-próprio) exerceu uma vigilância crítica, que não se restringe ao registo de uma
reflexão epistemológica, de quem com o grupo partilha e sofre os produtos. Compreender não é
algo meramente intelectual. Para o investigador envolvido na comunicação, a compreensão de
significados ultrapassa o domínio de uma intelectualidade fragmentada e fragmentária. Quando se
presume compreender, isso significará ouvir e compreender a palavra, mas nada tem a ver com a
compreensão propriamente dita. Compreender implica apreensão do conteúdo semântico, mas
também a consciência do seu significado aplicada ao próprio investigador. E, quando a
proximidade do objecto é mínima, essa consciência simultaneamente individual e colectiva,
fugidia, dinamicamente reformulada, é ultrapassada numa corrente "em que não é possível
mergulhar duas vezes".
Analisei registos de avaliação, monografias, actas de círculo, boletins, sínteses de inquéritos,
notas tomadas no decurso da pesquisa, cartas, relatórios, folhas soltas de "diários de formação", de
frases isoladas até textos com várias páginas. Procurei traços de caracterização da formação em
círculo em cerca de quinhentos documentos. Quase toda a documentação havia servido propósitos
de avaliação do trabalho em círculo e de auto-regulação da formação. Surgia sob a forma escrita,
mas não obrigava à identificação do autor.
O "corpus" de análise é constituído por textos não-intencionalmente produzidos para servir a
pesquisa. A excepção a este estatuto é o conjunto de documentos que resultam do trabalho em
301
Bourdieu, P.(1989) op. cit., p.55
302
Morin, E. (1991) Introdução ao Pensamento Complexo, Lisboa, Instituto Piaget
círculo efectuado a partir de meados de 1992, sob a forma de registos de observação. Este carácter
de contemporaneidade confere-lhes um estatuto diferente, na medida em que, implícita ou
explicitamente, estarão imbuídos de um propósito prospectivo que os anteriores não possuíam.
O discurso não é transposição transparente de opiniões, de atitudes e de representações que
pré-existam de modo cabal antes da passagem à escrita. O discurso não é um produto acabado, mas
um momento num processo de elaboração, com tudo o que comporta de contradições e
imperfeições. A análise de conteúdo é condicionada por determinantes epistemológicos do próprio
campo onde as práticas são produzidas. A subjectividade da análise deixa em aberto a possibilidade
de diferentes reformulações de significado. Com base no reconhecimento das contradições
interpretativas, não busquei regularidades discursivas, mas atribuí ao discurso um estatuto de
singularidade – não é o discurso mas a realidade que é produtora de sentido.
As categorias de análise foram sendo induzidas do conteúdo analisado, em sucessivas
reformulações. Vi-me obrigado a uma reformulação constante, em muitos momentos a abdicar de
expectativas. De tantas vezes reler, quase decorei períodos inteiros, na procura do seu
enquadramento, ou das complementaridades discursivas. Os segmentos perdiam sentido,
readquiriam-no, escapavam-se na dinâmica da atribuição de significados. Devo confessá-lo como
uma das heresias face a cânones clássicos de investigação – uma das heresias (sublinhe-se), porque
outras terei de apontar – o material de análise foi chegando sem que me apercebesse, à partida, do
seu potencial heurístico. As folhas ajudavam-me a introduzir correcções na minha atitude como
formador-aprendiz. As folhas que me chegavam de outros círculos confirmavam algumas
evidências colhidas no meu círculo de pertença: o da Escola da Ponte. E, quando esbocei um
arremedo de entrevistas com professores do meu círculo, no propósito de esclarecer algumas
dimensões da análise, foi o insucesso total – a entrevista só acontecia após desligar o gravador...
Na recolha de segmentos de discurso em pleno encontro de formação, senti a falta de
competências no domínio da estenografia... No final de cada encontro, procurava reconstituir os
códigos hieroglíficos que o tempo e a corrente da palavra me permitiam anotar. Este esclarecimento
é mais um acto penitencial a juntar à obrigação em que se transformou este estudo. A obrigação de
não omitir a "desimportância"303 das transgressões metodológicas, quando o que é necessário
revelar para ser compreendido se apresenta como produtor e produto de uma pesquisa
efectivamente participada.
303
Neologismo que um aluno da Escola da Ponte introduziu num texto.
Casos “exemplares” da formação de professores
Eivado de princípios como o enunciado, o sistema de ciclos (fases) poderia ter significado
uma oportunidade de efectiva alteração das práticas nas escolas. Mas muitos professores ainda hoje
não se apercebem da subtil diferença entre classe (“série”) e ciclo. Na prática, ignoram-na.
Ressalvadas as excepções e apesar das disposições legais, o sistema de "classes" ainda é
hegemónico nas escolas. Vinte anos depois, não obstante despachos e discursos, vigora o sistema
de classes sob a designação eufemística de "ano de ciclo".
É nítido o contraste entre o discurso de política educativa e as realidades em que (não)
penetra nem interfere. Os legisladores são exímios na redacção. Uma sucessão de lugares-comuns
do discurso pedagógico da Escola Nova atravessa o corpo dos normativos e confere-lhe sentido...
se o considerarmos no nível meramente intencional, dissociado de qualquer confirmação empírica.
O valor psicopedagógico do sistema de ciclos assentava no pressuposto de que a
diferenciação qualitativa é condicionada por factores de natureza individual e acrescentava-se à
argumentação atributos da Psicologia do Desenvolvimento. O contributo mais inovador e arrojado
da tentativa de individualização do sistema de ciclo foi a introdução do princípio da diversificação,
sublinhando-se que se visava uma política de democratização do ensino. E a igualdade de acesso e
de sucesso passaria, inevitavelmente, pela abolição de provas finais. Na prática mantém-se.
Assumiram novas formas dentro das velhas rotinas. Metamorfoseou-se em testes "sumativos"
servidos nos manuais, nos exames-aos-bocados que são as "provas de Natal e da Páscoa",
"travestiu-se" de "retenção"305.
As reprovações subverteram o sistema de ciclo. Em 1977306 admitia-se que “talvez em
Portugal o problema se coloque de modo diverso e que, no futuro, se venha a chamar ao exame
"prova, teste, ou outra designação adequada". Como se depreende, tratar-se-á, para o ministério de
uma subtileza terminológica. Mas os efeitos da ambiguidade são reais e dramáticos: vigorando o
sistema de ciclo, a pretexto das reprovações nas "avaliações finais", milhares de alunos
304
Circular 64/84, da DGEBS
305
Despacho 98-A/92
306
Caderno de Documentação do Professor, DSEP, MEIC-DGEB, Junho de 1977
abandonaram a escola, ou atingiram o limite de idade para a sua frequência sem que tivessem
obtido "aproveitamento". Até aos dias de hoje, teoricamente, vigorou a avaliação formativa e a
progressão contínuada. Na prática, manteve-se a avaliação selectiva e um facilitismo na avaliação
que atirou para a 4ª série alunos não-alfabetizados.
Em 1981, a Escola da Ponte retirava algumas ilações das prática da "fase" (ciclos):
“Verifica-se que os dois anos lectivos previstos como mínimo (ou média?) para
completar cada fase não corresponde ao momento de aprendizagem de qualquer aluno
em particular, nem sequer a uma parte significativa da turma. Mais ainda: algumas
alterações introduzidas na organização do tempo e do espaço na sala de aula (e não
só...), permitiam a muitos alunos completar uma das fases no decurso de um ano apenas.
A administração escolar pressiona os professores da Ponte no sentido de "não serem
diferentes dos outros", exigindo-lhes o preenchimento de mapas estatísticos com a
indicação "do número de alunos por ano de escolaridade e por professor".
Estamos conscientes de que, para além do facto de se ter alterado a terminologia, a
estrutura dos quatro primeiros anos de escolaridade obrigatória não mudou na
mentalidade da maior parte dos colegas, acontecendo, então que se tome o 1º da 1ª fase
pela 1ª classe, o 2º ano da 1ª fase pela 2ª classe e assim sucessivamente...»
Desde a sua instituição (em 1975307) até à sua extinção (foram extintas sem nunca terem sido
concretizadas...), as fases foram testadas, sem qualquer apoio de formação, por um grupo restrito
dos professores organizados em círculo de estudo. A formação organizada pelos serviços do
ministério limitou-se à edição dos "Cadernos de Documentação do Professor"308 e no envio às
escolas de textos de Apoio como suporte de emissões de Rádio e TV 309. Localmente, nenhuma
estrutura de formação assegurava a rendibilidade desses materiais. A Direcção Geral do Ensino
enviava "Cadernos de Documentação" e "Textos de Apoio" à Direcção do Distrito Escolar, que, por
sua vez, os enviava à Delegação Escolar, que, por sua vez, enviava às escolas pacotes de
documentação. As remessas chegaram às escolas sempre com o mesmo destino: o armário do
“arquivo morto”.
307
Despacho de 4 de Junho de 1975
308
DGEB/DSPRI, 1976
309
DGEB, 1977-1980
Numa brochura distribuída aos formadores para os novos programas de 1980 podia ler-se:
«sem uma concepção correcta das fases não se pode organizar o trabalho escolar»310. A divisão em
classes, pressupunha que o ensino fosse dirigido à "média". Os que não podiam acompanhar o
"discurso" do professor eram de certo «modo segregados da actividade escolar e condenados ao
insucesso. Assim se explica que, em 1973-1974, em 256 357 alunos inscritos na 1ª classe do ensino
oficial, sejam repetentes 93 669 e não tenham aproveitamento 94 379, o que representa cerca de 38
alunos sem aproveitamento em cada 100. Cumpre aditar, que esta segregação sintoniza com um
sistema político assente na defesa de uma minoria privilegiada, na medida em que a maioria das
crianças afectadas pelo insucesso era certamente procedente das camadas trabalhadoras» 311. E o
texto introdutório aos programas de 1975 concluía: «A fase implica uma organização do trabalho
escolar radicalmente diversa da tradicional»312. Em 2007 continua por concretizar na maioria das
escolas essa mítica organização.
Nos encontros de formação que acompanhei, em 1991 – formação para introdução da
Reforma Curricular – eu iniciava as reuniões com a exposição de um acetato com as seguintes
citações:
Depois, eu perguntava aos professores (e foram mais de quatrocentos entre Janeiro e Julho)
quais dos princípios enunciados no acetato haviam, efectivamente, concretizado nas suas salas e
escolas. Foram muito raras as respostas que denotavam mudança baseadas em tais princípios.
Quando se fazia, enfim, um silêncio cúmplice e contristado, eu pedia aos professores que fizessem
estimativa da data aproximada da publicação do normativo de onde havia extraído estas citações.
Invariavelmente, os professores referiam 1991, 1990 e o mais recuado foi 1987. A data da lei de
onde eu havia retirado esses extractos era 6 de Setembro de 1975! O despacho ministerial era
contemporâneo da introdução do sistema de fases (ciclos) no ensino primário...
310
MEIC, policopiado, s/d:103
311
MEIC, policopiado, s/d: 11
312
MEIC, policopiado, s/d: 12
Chegámos a 1980 e ao lançamento dos programas de "capa verde"313. Na introdução destes
programas eram evocados os anteriores, em vigor desde 1975/1976, e para os quais se previra três
anos de experiência. O novo programa314 confirmava que se havia reconhecido «a impossibilidade
de pôr em prática, de forma generalizada, o programa de 1975, uma vez que não estavam reunidas,
minimamente, as condições para que o mesmo tivesse possibilidades de atingir os propósitos que
devem presidir à implantação de qualquer programa - a melhoria da acção pedagógica no Ensino
Primário»315. A contradição repetir-se-á ciclicamente, em cada novo programa, como naquela que
acompanhou a introdução do sistema de fases no primário: «o lançamento do novo programa exige
que, à partida, sejam tomadas medidas que permitam evitar uma generalização precipitada (...)
susceptível de comprometer o êxito de um trabalho pedagógico que, pela sua natureza e extensão,
assume um elevado grau de responsabilidade.»316
À semelhança do que iria ser regra nos programas que se lhe seguiram, também durante o
ano lectivo de 1976/77 «todas as acções (...) serão em regime de voluntariado e, por isso, aos
participantes não será atribuída qualquer compensação»317. O zelo economicista não impediria que,
no mesmo documento, se traçasse objectivos de formação tomados, logicamente, como de
concretização obrigatória para todos os professores: na primeira fase da escolaridade, a
reformulação dos processos no domínio da iniciação à leitura, à escrita e às "primeiras noções de
matemática"; para a segunda fase, a melhoria dos "processos de avaliação continuada". E na
conjugação do voluntariado com as exigências de uma mudança imposta, tudo se manteve
praticamente imutável e o regime de classe fez uma travessia completa de mais de trinta anos sem
sobressaltos.
O maior óbice à formação dos professores foi o processo de selecção dos formadores. As
acções de formação à distância organizadas pela Direcção Geral do Ensino Básico foram
complementadas, já em plena reciclagem para os Novos Programas de 1980, com acções de
formação directa «essencialmente a cargo da acção conjunta das Escolas do Magistério e dos
Serviços de Inspecção do Ensino Primário»318. Entregue a monitorização das acções a inspectores e
a professores das Escolas do Magistério, o que poderia esperar-se? Felizmente que os recursos
humanos dessas instituições eram limitados, se não os danos seriam ainda maiores...
313
Como ficaram conhecidos. Os anteriores tinham sido os "cor-de-laranja". O conhecimento da cor das capas era para
muitos (para a maioria) dos professores a única mudança operada.
314
Aprovado pela Portaria 572/79, de 31 de Outubro.
315
Novos Programas/1980, p.3
316
Preâmbulo dos Programas/1975
317
Ofício-circular nº 92-SAP/77 da DGEB, pp.3-4. Em 18 de Abril do mesmo ano, a DGEB dirigia-se de um modo
personalizado (e não inocente...) ao "colega"-professor nestes termos: «A sua adesão voluntária a este programa dá-nos,
à partida, a garantia de que esta equipa pode contar com a sua participação colaborante»
318
Texto de Apoio 16.2 - SAP, de 5/12/79
«Os professores do ensino primário em reciclagem sabem muito bem dizer a este ou
àquele formador: "mas o que é que você sabe disso de nunca o fez?" (...) E como
censurar os professores da Escola Normal, por exemplo, por não saberem fazer aquilo
sobre que a instituição lhes pede para falar?»319
"Os professores de uma escola acabadinha de estrear descobriram um dia que ela tinha
estantes sobre o comprido, a que não atribuíram valor imediato, Mais tarde, descobriram
para que servia: para eles e os alunos arrumarem os esquis."322
319
Jean, G.(1990) Cultura pessoal e acção pedagógica, Porto, Ed.ASA, p.98
320
Deste modo gastava o seu tempo (e a nossa paciência) uma inspectora que discursou no 1º Seminário sobre a
Formação Contínua dos Professores realizado na SMP do Porto, em 22 e 23 de Maio de 1980.
321
Texto de Apoio aos Programas do Ensino Primário 1980/81, Introdução, s/d, p.3
322
In "O Jornal" de 31.12.87
Em 1872, Eça de Queirós, referia em "Uma Campanha Alegre" que «a Escola entre nós é
uma grilheta do abecedário, escura e suja: as crianças, enfastiadas, repetem a lição, sem vontade,
sem inteligência, sem estímulo: o professor domina pela palmatória e põe o tédio da sua vida na
rotina do seu ensino». Numa prosa que se mantém actual à distância de um século, Eça informa-nos
das vivências escolares em edifícios de que hoje restam vestígios arquitectónicos, por exemplo, no
tipo de construção "Conde de Ferreira"323, ou "Conde de S. Bento". São escolas com um pé direito
altíssimo, com uma inclinação de pedra junto às janelas também altas, muito mais altas que a altura
possível aos alunos. É impossível uma criança observar de dentro destas salas, o que se passe em
torno da escola. Se nos colocarmos ao nível do olhar dos infantes, apenas nos será possível ver
alguns ramos e uma ou outra nuvem. A par com as práticas descritas por Eça de Queirós, mas com
as devidas distâncias, poderíamos estabelecer alguns paralelos com as descrições dos estudos de
Foucault324.
Um problema antigo, como se vê. Em 1979325, na explicação do projecto que se seguiu aos
dos "Condes do Brasil", a iniciativa do "Plano dos Centenários" é elucidativa da racionalidade que
lhe presidiu. Este projecto, que celebra os oitocentos anos de nacionalidade e os trezentos da
Restauração da Independência, surge na sequência do ciclone ocorrido em 1941. Como se pode
inferir, estamos na presença de duas razões de elevado coturno pedagógico: duas efemérides que
corroboram as intenções da Reforma de Carneiro Pacheco e um ciclone.
Os ventos fortes haviam provocado pesados danos nas escolas. Também haviam sido
arrancadas milhares de árvores. No acatar da sentença de Comenius326, as escolas e as árvores
convergiram num projecto de raiz. Para não desperdiçar madeira de tão boa qualidade (carvalhos,
pinheiros, etc.), o ministério decidiu aproveitar a madeira das matas para atender a uma
necessidade "gritante" a nível nacional.
O "Plano dos Centenários"327, que viria a ser o mais significativo antes da chegada das
escolas P3 escandinavas, nasceu fruto do acaso e da necessidade. Aquele padrão de construções
multiplicar-se-ia até aos anos sessenta. Um mesmo projecto para toda e qualquer necessidade328.
323
«Convencido de que a instrução pública é um elemento essencial para o bem da sociedade, quero que os meus
testamenteiros mandem construir e mobilar cento e vinte cinco casas para escolas primárias de ambos os sexos nas
terras que forem cabeças de concelho, tendo todas por uma mesma planta e com acomodação para vivenda do
professor, não exercendo o custo de cada casa e mobília a quantia de 1 200$00 réis, e pronta que esteja cada casa
será a mesma entregue à junta da paróquia em que for construída, mas não mandarão construir mais de duas casas
em cada cabeça de concelho e preferirão aquelas terras que bem entenderem.» (extracto do testamento de Joaquim
Ferreira dos Santos, 1º barão, 1º visconde, 1º conde de Ferreira, nascido em Vila Meã (Douro), em 1782, e falecido no
Porto, em 1866).
324
Foucault, M.(1970) Vigiar e punir, Petrópolis, Ed. Vozes
325
Moreira, M. cit in D.G.C.E. (1979) Vamos falar de escolas, Lisboa, M.E.
326
«Se não podemos levar a árvore para a escola, levemos a escola para debaixo da árvore.»
327
Despacho do Conselho de Ministros, de 15 de Julho de 1941.
328
Outros projectos de menor importância poderão ser ainda registados, para além destes dois: Projecto "Raul Lino",
"Urbano 3", "Adães Bermudes", "Novo Plano", "Rural 3"...
Em 1963, no âmbito da OCDE, foi iniciado um "projecto de ajuda" aos Países Mediterrânicos. Com
o objectivo de desenvolver a escolaridade obrigatória, um grupo de trabalho constituído, em grande
parte, por técnicos em Educação, propunha-se apoiar países como a Grécia, a Jugoslávia, a Espanha
e Portugal.
Neste âmbito, um dos problemas foi o de harmonizar a concepção das construções escolares
com as concepções de Escola e as orientações no campo da pedagogia. Apesar desta centralização
de objectivos, não devemos esquecer a forte componente financeira que esteve na origem do
"Projecto Mediterrâneo". Após três anos de trabalho (em 1966), alguns princípios gerais são
estabelecidos: a escolha do edifício deve ter em consideração o tamanho da criança; a escola não se
restringe à sala de aula e deve, por isso, estar aberta ao exterior; o ensino não consta só de
memorização, mas é também actividade que os espaços (diversificados) devem permitir; deve ser
fomentada a manipulação e criação de objectos (pelo que se introduziu uma zona de trabalho, dita
"suja", com pontos de água, ligada às salas de aula, propriamente ditas); a organização de situações
como a de trabalho em grupo, prevendo-se a mobilidade do equipamento; nem todas as actividades
podem ser realizadas no mesmo espaço (e daí a instalação dos chamados "polivalentes"); as
refeições são actividades educativas (e, por isso, foi suprimida a separação entre edifício-cantina e
edifício escola); as instalações sanitárias seguem a mesma lógica, como apoio e momento de
Educação; a escola é um edifício aberto, um equipamento social de e para toda a comunidade.
Estávamos em plena década de 1960. Em Portugal, vigorava ainda a separação de sexos no
ensino primário. Na construção da primeira escola de Área Aberta foi necessário construir quatro
salas (duas de cada sexo) com recreios cobertos também separados. O pátio e a sala polivalente
eram comuns. Esta escola esteve um ano a funcionar em “Área Aberta”, dado que alguns sectores
do ministério pretenderiam realizar aí uma experiência pedagógica. No final o ano, os serviços
burocráticos do ministério extinguiram o projecto, com argumentos de natureza administrativa. E
teriam também inviabilizado o novo projecto de edifício escolar, se algumas prefeituras, a quem a
lei permitia a construção de escolas, não tivessem sido sensíveis à mudança.
Em 1971, grupos de professores influenciados por correntes cooperativistas introduziram
duas inovações no projecto: o trabalho em equipa de professores; considerar núcleos de espaços
para grupos de alunos, fugindo ao tradicional sistema de turmas-classes.
Quando arquitectos e técnicos de educação conceberam as escolas de Área Aberta, sabiam
que a escola é um lugar onde a criança passa grande parte do seu tempo e que os primeiros anos de
aprendizagem são fundamentais. Libertar a criança da rigidez dos espaços e do mobiliário
tradicionais pareceu aos pedagogos e arquitectos um passo importante para a livre expressão e
desenvolvimento da espontaneidade e criatividade naturais da criança. Mas esta escola, pelas suas
características próprias - existência do grande espaço polivalente - facilita ainda a sua integração no
meio social, tornando possível a sua utilização pela comunidade. É área aberta de comunicação e
colaboração dentro da escola, é área aberta para o meio e integração na comunidade.
Para melhor explicar a finalidade das escolas de Área-Aberta transcrevo os objectivos enunciados
pelo Secretário da Organização do Ensino Elementar de Montreal (CANADÁ), um dos centros
promotores deste tipo de escolas:
procurar o ambiente que encoraje uma melhor comunicação entre alunos e professores;
mobilizar os professores para o trabalho em equipa;
facilitar a adaptação da organização escolar às diferenças individuais e à contínua
aquisição de conhecimentos, afim de permitir os reagrupamentos funcionais de alunos;
estimular nas crianças a multiplicação dos contactos pessoais e, por conseguintem, uma
melhor sociabilização;
facilitar múltiplas e diversas organizações, transformações temporárias e, por vezes
permanente, permitir as mais variadas modificações, dando assim flexibilidade não só aos
diferentes modos de organização escolar, como também aos diferentes tipos de didáctica e
pedagogia;
favorecer todas as formas de trabalho dos alunos (individual, em grupo, actividades livres,
etc.) de acordo com o espírito da Escola Activa329.
329
DGEB/DSPRI-ME (1981) Textos de Apoio aos Professores em Escola de Área-Aberta, documento nº 2
Da legislação à formação em "Área-Aberta"
No âmbito de um estudo que realizei sobre escolas de “Área Aberta”, solicitei ao ministério
informação disponível sobre esse projecto (orientações, plano de construção, formação
desenvolvida, experiências concretizadas, etc.). A resposta foi sempre igual: "Informo V. Exª que
esta Direcção Regional não dispõe dos elementos solicitados"330. Na resposta sugeria-se o contacto
com outras estruturas. Efectuado o contacto, a resposta era idêntica, ou nem sequer era
providenciada qualquer resposta, o que indicia uma situação cuja gravidade corrobora o que é
habitual: nos arquivos do ministério nada consta... A informação que não foi possível obter onde
deveria ser esperada, captei-a na memória possível pelo registo de normativos e na prática de
círculos de estudos compostos por professores em exercício em escolas de "Área-Aberta".
Os primeiros anos da década de oitenta testemunharam alguns investimentos, quer na
regulamentação do funcionamento destas escolas, quer na formação de professores. Em Setembro
de 1980331, eram definidas regras de funcionamento. No ano lectivo de 1980/1981, realizavam-se
alguns encontros de formação de professores. Em 1981/1982332, regulamentava-se a relação
professor-aluno. Sublinhava-se no ponto seis desse normativo que «cada núcleo de sala de aula
deve corresponder a um espaço único de ensino, com um corpo de professores a trabalhar em
equipa, de acordo com o programa elaborado em conjunto». O ministério assumia, claramente, que,
«para efeitos de concurso de docentes, as escolas P3 devem ser inequivocamente assinaladas com a
indicação de escola de área-aberta, projecto P3, significando a opção por essas escolas que os
professores aceitam as condições de trabalho que as mesmas exigem».
Porém, no final do ano lectivo de 1982/1983, é publicado um diploma333 que «pretende
obviar as dificuldades sentidas na aplicação do despacho 274/81» que dificultaram, ou impediram
«a colaboração entre docentes, que uma escola de área-aberta necessariamente pressupõe». No
mesmo diploma legal, o ministério admite que se criaram «situações compulsivas de ensino em
equipa e de cooperação entre docentes». Concluía o despacho que «o actual processo de colocação
de professores (...) bem como os problemas decorrentes da sua formação, pouco orientada para uma
pedagogia activa (...) agravam ainda mais a situação». Finalizada a argumentação, remetia-se para a
Inspecção334 a aprovação de projectos de equipas de professores e legitimava-se a introdução de
regime de horário de curso duplo nestas escolas.
330
Exemplo: ofício nº 13086, de 6/5/92
331
Despacho nº 84/80, do Secretário de Estado da Educação, D.Rep. de 13.Setembro
332
Despacho do M.E.U. nº 274/81, de 2 de Outubro
333
Despacho nº 41/EAE/83, de 13 de Maio
334
Imagine-se o descalabro: serem os inspectores a aprovar projectos, quando, na sua maioria, são técnicos
desqualificados no domínio da Pedagogia.
Estas medidas coincidiam no tempo com a suspensão de um primeiro esboço de formação
em área-aberta e com o levantamento das primeiras paredes a isolar as salas que haviam sido
concebidas para comunicarem entre si335. Os espaços "abertos" desapareceram gradualmente. Os
professores não haviam sido preparados para um trabalho com as características que as escolas de
área aberta apontavam. Umas vezes por falta de informação, em outras por falta de formação, e
sempre na falta das duas correntes, os professores refugiaram-se, ao menor pretexto, no seu espaço
íntimo, num contexto de trabalho que correspondia à sua concepção de "aula".
Este curto historial desemboca numa contestação generalizada que, em 1987 teve o seu
apogeu. Na imprensa são comuns notícias como esta: "A avaliação da experiência pedagógica que é
de aulas de ensino primário simultaneamente para três turmas foi solicitada à Secretaria de Estado
do Ensino Básico e Secundário pelo Sindicato Democrático dos Professores (SINDEP). Um
representante do SINDEP comentou que essa avaliação permitirá saber se a experiência deverá
continuar, ou não. Segundo explicou, essa ideia resultou nos Países Nórdicos, mas, por exemplo,
em França chegou-se à conclusão de que seria melhor voltar ao ensino tradicional. O ensino das
designadas "Escolas P3", consiste em dar aulas a três turmas de 90 alunos, com matérias
diferenciadas e em simultâneo por três professores. Pretendemos que esse tipo de escolas pare de
proliferar em Portugal até que seja avaliada a experiência, afirmou o sindicalista. Realçadas as
incoerências e a ignorância que a notícia veicula acrescentaria que não consta que a avaliação
tivesse sido realizada. Mas declarações como a transcrita sucederam-se no mesmo ritmo com que
se erguiam paredes entre os espaços de "área-aberta", ou se dispunham armários (como muralhas)
em improvisos arquitectónicos em que cada professor na sua sala, com os seus alunos, o seu
método e os seus manuais, apenas toleravam (como mal menor) o incómodo de ouvir as "lições" do
colega do lado...
As imprecisões são tantas, neste como em outros textos jornalísticos, que não merecem
qualquer comentário crítico; falam por si mesmos. O que importa destacar como original é o facto
de a construção do edifício de Área Aberta, que a Ponte reivindicou e conseguiu ter sido
contemporânea deste discurso. Mais ainda: a sua construção foi resultante de um esforço nesse
sentido feito por professores, a partir de um projecto de formação apresentado ao ministério, em
1979, e que jamais obteve resposta.
Duas realidades contraditórias coexistiam: de um lado a demagogia sindical e o apelo à
mediocridade pedagógica; de outro uma intenção de mudança e a prova da sua possibilidade. E,
enquanto expirava mais uma experiência que nem sequer chegara a ser, na Ponte, os professores
335
Hoje é prática corrente o fechar das salas. aliás, os gabinetes técnicos das prefeituras introduziram esta alteração nos
projectos.
exigiam a construção de edifícios de área-aberta e neles imprimiam os traços de um trabalho
participativo e democrático.
Por vezes, a acção de grupos activos na periferia do sistema gera movimentos que,
ciclicamente, são anulados, ou emergem para influenciar os acontecimentos.: «a introdução de
novos métodos não pode fazer-se senão por meio de pequenos grupos de professores resolvidos a
viver a experiência, apoiando-se uns nos outros e progredindo em conjunto»336.
As coordenadas para a construção de um modelo de formação variam, evidentemente, de
região para região. Mas, considerando a escola como local privilegiado de formação, o modelo
concebido na Escola da Ponte, em 1979-80:
336
Postic, M., (1977), Observation et Formation des Enseignants. Paris: P.U.F., p.312
337
Como se vê, a metáfora não é nova...
338
Nessa época ainda designados por inspectores-orientadores.
(sic) dos professores e a metodologia utilizada pelos inspectores foram confrontados com o saber e
o saber-fazer de muitos dos professores.
Sem o estribo da competência, mas escudados nos seus planos de formação e no poder que
o seu estatuto de inspector lhes conferia, estes procuravam escamotear as condições reais da
introdução das práticas que pretendiam transmitir. Foi esse, provavelmente, o primeiro choque
entre duas concepções de Escola ainda hoje inconciliáveis. A “reciclagem” que se seguiu era de
inscrição voluntária, o que na ausência de quaisquer subsídios para deslocações e alojamento, se
tornou, para muito professores, involuntária e até mesmo inacessível.
Na brochura distribuída no Curso de formadores podia ler-se: “os textos de apoio, as
emissões radiofónicas, o filme, a acção dos monitores incentivam a actualização pedagógica dos
professores (...) Os encontros de Setembro não visam transmitir o domínio de um saber definido
(...) haverá sempre (...) um vasto campo aberto à iniciativa do professor”339. Ao incentivo da
formação à distância junte-se a esperança de que os professores entendam que lhes cumpre a
iniciativa. Subestima-se a situação concreta. Subsiste a ideia de que aos "encontros de Setembro"
outros se seguirão. Indiferente ao peso da tradição e às condições objectivas do trabalho, este
programa de formação estava destinado ao mesmo fim que os que o antecederam ... e dos que
viriam depois.
Claro que a ausência da tradição de encontro e a pobreza de recursos não explicam o
insucesso dos programas. Mais fácil seria sugerir - como ouvi mais que uma vez, mas veladamente
- serem os professores os responsáveis pela falência dos programas. E porque as escolas não
reuniam as condições mínimas de instalações e equipamento, sugeria-se na mesma brochura340:
“que no pátio coberto fosse o espaço entre travejamento e cobertura utilizado para arrumações, com
um forro feito com elementos de "tabopam"; escada de acesso, construída pelas crianças; arcos de
ferro, aduelas, ou outros aros suspensos no travejamento e utilizados para jogos de precisão; entre a
parede e uma possível viga de suporte da cobertura, colocar elásticos ou cordas que servirão como
"redes de voleibol", extremamente úteis na iniciação deste jogo desportivo colectivo”.
É o apelo ao improviso. E o delírio ministerial continua noutras páginas de uma prosa que
oscila entre o onírico e o cínico341:
Como o vestíbulo é de cimento e nas zonas frias é difícil o trabalho nesse espaço, sugeria-se
que o chão fosse revestido com dois toldos de apanha de azeitona... E ficamos sem saber com que
dinheiro se iria comprar o aglomerado de cortiça, o tabopam, as tábuas, nem onde parava o
"material didáctico", ou as tintas para "os trabalhos de pintura", a que o ministério se referia.
Relativamente ao material, o ministério esclarece que «há um tipo de material que o
professor terá de confeccionar», há outro que pode ser trazido pelos alunos 342. Quanto ao material
que o professor não terá de confeccionar nem os alunos terão de trazer nada consta da brochura. As
escolas não dispõem de "audio-visual" de que se recomenda a utilização nas acções de formação.
Nem dispõem de material Cuisenaire, M.A.B., ou outro qualquer suporte de concretização
matemática que se recomenda nas acções. Por isso, o ministério adianta outras "sugestões":
342
MEIC, policopiado, s/d: 53
Em muitas escolas (onde nem "velha" a máquina de escrever existia) a boa-vontade e o
"espírito de missão" operaram milagres a bem da nação...
Entretanto, surgiram os Centros de Apoio Pedagógico, constituídos a partir de 1981-82 343,
como projecto resultante da verificação da ineficácia dos programas de formação que os
precederam. Professores e técnicos dos CAP exprimiam uma concepção de formação oposta aos
programas de TV e às estratégias dos Cadernos de Documentação e dos Textos de Apoio que,
publicamente, criticavam. Após dois anos de investigação e experiências, formularam o designado
"Projecto de Formação Contínua de Professores do Ensino Primário". Como principal característica
inovadora, aponte-se a preocupação de não apresentar aos professores e escolas formação
previamente elaborada, mas permitir que cada Conselho Escolar identificasse problemas,
necessidades, interesses. Visava-se no projecto: a mudança da organização da escola e do trabalho
escolar; o aprofundamento e experimentação de metodologias, técnicas, processos; a intensificação
das relações da escola com a comunidade local.
Os professores que integravam os centros, à semelhança dos seus colegas formadores nos
programas de formação que os antecederam, trabalhavam nos CAP fora do seu horário lectivo.
Apesar do entusiasmo dos professores dos CAP, a formação degradar-se-ia até à sua extinção. A
título de comentário, reveja-se um artigo de opinião publicado em Dezembro de 1986344:
343
Em 1981/82 abrangia 36 concelhos; em 1984/85 já havia 59 CAP's concelhios em funcionamento
344
Jornal de Notícias, 29/12/86
êxito quando a sua frequência for verdadeiramente tornada acessível a todos os docentes.
E privilégios, a havê-los, naturalmente apenas se aceitarão se dirigidos aos muitos que
labutam nas mais penosas condições, tantos deles quais eremitas sem votos, segregados
da civilização pelos ínvios tratos das fragas”.
O projecto dos CAP pretendia preparar uma estrutura que, com carácter sistemático,
proporcionasse aos professores em exercício um apoio permanente baseado em Centros de Apoio
locais. Talvez por considerar os professores como "elementos activos da sua própria formação e
gestão" tivessem induzido a sua auto-marginalização e posterior liquidação. A indefinição
institucional em que subsistiu determinou o seu fim, dado não terem sido criadas as condições
mínimas para o seu desenvolvimento.
Nos dois anos que antecederam o lançamento da Reforma Curricular simulou-se consulta e
fomentou-se a adaptação do modelo de formação dominante. Confirmava-se a tendência de
direccionar a formação para objectivos de progresso económico e de rendimento individual. Esta
característica é consonante com o discurso de "modernização". Resta saber de que modo este
discurso e os valores que as iniciativas de formação veicularam puderam atenuar a conflitualidade
que atravessava o campo educativo.
Como se posicionaram os professores, face às propostas da Reforma Curricular, perante o
apelo à assunção de "novas atitudes"? De que modo e em que extensão as "reciclagens" e em
particular a iniciada com o lançamento da Reforma Curricular afectaram as representações e as
práticas dos professores?
Com dois anos de antecedência o grupo de trabalho encarregado da redacção da proposta
dos "Novos Planos Curriculares" apontava para a existência de quatro áreas-problema de
desenvolvimento curricular. Uma das áreas reportava-se “à falta de investimento na organização de
redes de apoio regional e local à formação de docentes na área de desenvolvimento curricular”345.
A precariedade das iniciativas reformistas no campo da formação continuada contribuiu
para que se instalasse uma profunda crise profissional e cultural. Instala-se, com a reforma
Curricular o sentimento de que a formação é indispensável à adequação a novas práticas
(paradoxalmente não se definem quais as "novas práticas"). Decorrem acções de formação,
ininterruptamente, entre Dezembro de 1990 e Julho de 1991. Irá repetir-se o cenário descrito por
345
Comissão da Reforma do Sistema Educativo, Documentos Preparatórios I (1987): 180
Ana Benavente, já em 1980, a propósito da formação para os então "Novos Programas".
Transcrevo: “os objectivos dos novos programas não foram cabalmente entendidos por muitos
professores, e as reciclagens, que se propunham informar/formar limitaram-se em geral a meros
cursos de iniciação à leitura dos programas, deixando os professores sem os instrumentos
pedagógicos adequados à sua concretização”346.
Uma Reforma Curricular é muito mais que uma simples alteração nos conteúdos dos
programas. Justificaria, no mínimo, quer a concretização de um debate permanente sobre os
princípios a operacionalizar, de modo a clarificar conceitos e a identificar criticamente os valores
veiculados, quer a criação de estruturas de apoio, acompanhamento e avaliação347.
Fundamenta-se a reciclagem de 1990/91 num apelo constante à "modernização". Esta ênfase
constitui, em si, “um elemento de legitimação do discurso educativo dominante nos anos 80”348 e é
utilizada “sempre que, na prática discursiva se pretende emitir um juízo de valor sobre a evolução
social”349 sem que se problematize a estrutura que, retoricamente, se pretende criar. Esta
modernização é pretexto para a adopção de projectos voluntaristas de "curto prazo" e para a
importação de inovações. “O Estado é visto como um meio efectivamente neutro de distribuição de
resultados pretendidos que são decididos em outro lugar”350. Mas esta actividade não é neutra e
funciona como instrumento de dominação. Desenvolve-se uma refinada instrumentalização
traduzida em modelos de formação inibidores de mudança nas referências e nas práticas. Se os
primeiros movimentos da Reforma Curricular provocaram uma certa curiosidade científica, logo a
monorracionalidade técnica tomou o lugar central no programa de formação e o conduziu para a
cristalização das inovações. Foi esta racionalidade que, anteriormente, fez gorar a introdução do
regime de fases de escolaridade, ou o trabalho de equipa de professores em escolas de área-aberta.
É a mesma atitude que condena ao esquecimento centenas de bibliotecas pedagógicas, há muitos
anos fechadas nas dependências das Delegações Escolares.
O advento da pós-modernidade gera discursos legitimadores, em que se cruzam influências
internacionais, tendências globalizadoras e pedagogias “invisíveis". Sucede nesta reforma algo
semelhante às problemáticas culturais do modernismo: a recusa de situação num contexto social.
A Reforma Curricular produziu efeitos opostos aos princípios que se reclamava. Do mesmo
modo como o projecto de modernidade se cumpriu em excessos, também neste caso, a negação de
que haja algo para cumprir para além das determinações normativas e no "reciclar" dos professores
346
Benavente, A., Correia, A., Os obstáculos ao sucesso na escola primária, IED, Lisboa, 1980: 82
347
Na DREN, funcionava uma equipa de seis formadores para atender a cerca de 4.000 escolas e 17.000 professores.
Nas palavras de um desses formadores restava-lhes "quando alguém vinha de fora, mostrar-lhes exemplos de«brilho»"
348
Correia, J. et al, A ideologia da modernização e o sistema educativo, Cadernos de Ciências Sociais, 1991: 1
349
Correia, J. et al, A ideologia da modernização e o sistema educativo, Cadernos de Ciências Sociais, 1991: 6
350
Dale, R., A educação e o estado capitalista, Educação e Realidade, Porto Alegre, 1988:17
pode conduzir ao estreitamento de interpretações em micro-universos relacionais. As soluções
legislativas afastaram os professores do centro da discussão. Como formador, verifiquei a
desorientação face a novas competências cuja exigência se subentendia nas novas propostas
curriculares.
A autonomia equívoca concedida às escolas confirma que a lealdade relativa devida ao
Estado é o preço a negociar para preservação da segurança pessoal possível: “a modernidade
confirmou-nos numa ética individualista, uma microética, que nos impede de pedir ou sequer
pensar responsabilidades por acontecimentos globais”351. Mas como é característico do terceiro
tempo da modernidade, emergem neste contexto de "renúncia á interpretação", movimentos de
resistência, de que os círculos são paradigma.
A crise da escola, tal como a crise da sociedade, reflecte a flexibilidade das transformações
económicas, sociais e políticas de vários sectores da vida colectiva, a par com uma atmosfera de
rigidez e de imobilidade ao nível global da sociedade. Atitudes como aquela que atrás referi
apontam para a emergência de uma profunda crise de identidade profissional e cultural nos
professores só possível porque estes profissionais sentem abalar-se todas as suas representações,
quando as práticas de muitas décadas nunca problematizadas são esvaziadas, sem propostas
alternativas. Os professores, na sua maioria, entregaram-se às posições técnico-positivistas. O
receio gerou a avidez. Muitos anos volvidos, ei-los inscritos em projectos modernistas entretanto
tutelados pelo Ministério da Educação. Nas escolas e salas-de-aula estes projectos mudaram os
cenários. As aprendizagens, essas permanecem cativas dos antigos rituais.
O discurso da política educativa está eivado de valores da modernidade. Estão presentes os
valores dominantes dos três períodos da trajectória da modernidade: a liberdade, a igualdade e a
autonomia. Mas, tal como transparece do discurso e das práticas, o conceito de modernidade que se
estabelece é o que sacraliza os valores e direitos, mas inviabiliza a sua operacionalização. E é neste
campo que ganha sentido considerar as escolas como espaços colectivos de criação de novas
identidades e a existência de sujeitos colectivos capazes de aprofundar as propostas
democratizantes da reforma. A emergência de grupos informais confirma uma situação cultural de
"celebração afirmativa" característica da pós-modernidade. A questão que se nos coloca, e tal como
a equacionou Boaventura Sousa Santos, é a de saber (em Educação) “se podemos pensar o pós-
modernismo numa sociedade semi-periférica, mas sobretudo se podemos pensar e agir pós-
modernamente”352.
351
Santos, B.(1988), O social e o político na transição pós-moderna, comunicação e linguagem, 6/7, p. 35
352
Santos, B., (1988) op. cit., p.36
Os constrangimentos são inúmeros, a começar dentro de nós e a acabar nas contradições do
sistema. Mas faz sentido hoje reorganizar grupos de professores que questionam a primazia e o
autoritarismo do Estado que tendem a legitimá-lo como agente de modernização. Esta crença na
"possibilidade" assenta no facto de, nos espaços intersticiais da reforma detectarmos fragilidades na
prática legislativa e nas práticas sociais, onde o Estado não ultrapassa o domínio da
intencionalidade. “A sociedade tem ainda de cumprir algumas promessas da modernidade, mas tem
de as cumprir à revelia da teoria da modernização”353. As atitudes que diariamente testemunho no
decurso da minha actividade de formador de professores são passíveis de transformação. Para tal
será necessário reinventar essas mini-racionalidades da vida, na lógica de “um possível pós-
-modernismo de resistência”354.
Deveremos precaver-nos contra a tentação de caracterizar o pós-modernismo como cultura
de fragmentação, que remete o professor, como trabalhador de serviços, para micro-racionalidades
engendradas pela "irracionalidade global". Nas contradições entre o discurso da modernização e o
contexto das práticas, onde se misturam atitudes do fim da modernidade e do pós-modernismo, que
cada professor se encontre numa posição crítica pós-moderna: a que conduz à descoberta de que o
maior inimigo está dentro do próprio. Esta descoberta pode ser o ponto de partida para a
compreensão de que «quanto mais global é o problema, mais locais e mais multiplamente locais
devem ser as soluções»355.
353
Santos, B., (1988) op. cit., p.39
354
Santos, B., (1988) op. cit., p.41
355
Santos, B., (1988) op. cit., p.46
356
Situava-se abaixo dos 700.000 alunos, enquanto, dez anos antes (1980/81), rondava os 950.000
A linguagem dos números serve somente para repetir um dado adquirido: a gradual e
acelerada redução na procura de docentes poderia abrir perspectivas optimizadoras no campo da
formação de professores. Mas manteve-se dominante um modelo de formação fechado que se
engendrava a si próprio, sem a caução da prática. Os formadores, recrutados não se sabe sob que
critérios, não se aperceberam da inadequação das suas propostas e da aridez dos supostos saberes
transmitidos. A documentação distribuída no decurso das acções são quase irrepreensíveis
cientificamente, mas inúteis na prática. O modelo adoptado denota total desprezo pela possibilidade
de produção de conhecimentos ao nível da escola e de grupos de professores organizados para a
formação.
“Os armários das escolas são depósitos de documentação inerte. Ninguém a consulta. Os
professores nem os programas lêem”
Nessa escola falava-se de “novas atitudes”, mas mantinha-se, a qualquer preço, o regime de
horário de curso duplo, quando era viável trabalhar em turno integral. Para maior garantia da
manutenção do curso duplo357 recorria-se à cedência de uma sala para o ensino especial que iria
"integrar" uma turma de crianças “especiais”...
Menos de metade dos professores participantes na experiência do lançamento dos novos
programas358 refere "como útil e oportuna a formação que lhes foi proporcionada". Entre estes
professores, muitos declaram, inclusive, não terem recebido qualquer tipo de formação no âmbito
da experimentação dos novos programas. Os técnicos envolvidos na avaliação insistem na
premência de «um maior investimento na formação de professores, através da definição e
implementação de um plano de formação coerente e faseado, no sentido de promover uma
adequação crescente entre os princípios e as práticas». Esse plano, ainda na recomendação dos
técnicos, deveria «ter em atenção aspectos como a regularidade, a descentralização e a resposta às
necessidades de formação expressas pelos professores»359. É ainda significativo neste estudo o facto
dos professores terem manifestado desagrado pela falta de apoio da parte dos organismos regionais
do M.E. (73% dos professores) da DGEB (57%) e das instituições de Ensino Superior (80%).
Finda a reciclagem, (ou sensibilização, como depois se intitulou) tudo voltou à normalidade.
Os professores das escolas seleccionadas para a experiência dos novos programas deslocavam-se às
capitais de distrito para se submeterem a sessões de doutrinação didáctica. Aos restantes, a grande
maioria, o Ministério da Educação enviava, sem periodicidade fixa, alguns "Textos de Apoio aos
Novos Programas" que, à semelhança dos homónimos de 1977, repousam no arquivo morto das
escolas sem qualquer serventia.
O Texto de apoio que acompanha uma sebenta com as novas metodologias no domínio da
iniciação à Leitura e Escrita sugere para 1991/1992:
357
A parte de tarde estava comprometida com uma outra qualquer actividade que mitigasse o magro salário...
358
A experiência teve início no ano lectivo de 1989/90.
359
IIE/ME (1992) A opinião dos professores/1º Ciclo, p.5-6
“Apresentação da brochura em Conselho Escolar, pelo Director da Escola (...) Até ao
final do presente ano lectivo, leitura rotativa, dado só existir um exemplar, da brochura
pelos professores que no próximo ano previsivelmente, vão leccionar o 1º ano”360.
Duplamente ridículo, este Texto de Apoio não apoia: determina (sugerindo) que o Director
de Escola assuma mais uma função, para a qual não precisa ser preparado, acompanhado, nem
(como noutras funções que desempenha) remunerado. A míngua dos recursos é reconhecida dado
que se recomenda a "leitura rotativa" do único exemplar da brochura. Mas o Texto de Apoio vai
mais longe. Para 1992/93, sugere "sessões de auto-formação", "reuniões de professores"... e "a
leitura de textos".
360
Texto de Apoio, DGEBS/ME, 1991/1992, s/d
Bibliografia