Science">
Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

O Ensinar e o Aprender Na Concepção Crítico-Emancipatória

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 9

Artigos originais

Revista Kinesis, Santa Maria v.36, n.2, p. 22–30, maio-ago. 2018

Revista Kinesis
Centro de Educação Física e Desportos - UFSM
DOI 10.5902/2316546431724
Data de submissão: 18-03-2018
Data de Aceite: 05-07-2018

O ENSINAR E O APRENDER NA CONCEPÇÃO CRÍTICO-EMANCIPATÓRIA


THE TEACH AND THE LEARN IN CRITICAL-EMANCIPATORY CONCEPTION

EL ENSEÑAR Y APRENDER EN LA CONCEPCIÓN CRÍTICO-EMANCIPADORA

Bruno Nascimento de Siqueira


mrbrunonascimento@gmail.com
Universidade Federal de Santa Catarina

Francisco Emilio de Medeiros


francisco.m@ufsc.com
Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO
Discute o ensinar e o aprender na concepção Crítico-Emancipatória. Tem como objetivo apresentar e in-
terpretar esse par dialético nos primeiros livros do professor Elenor Kunz: “Educação Física: Ensino & Mu-
danças (1991)” e “Transformação Didático-Pedagógica do Esporte (1994)”. Pesquisa teórica apoia-se em
elementos metodológicos inerentes à análise temática tratada por Minayo (2008). Conclui que os conte-
údos da Educação Física devem ser abordados de forma ampla pela problematização; que o se-movimen-
tar conduz a uma aprendizagem de um “mundo de significados motores”; e que o ensinar e o aprender
na concepção implica numa formação na Educação Física que desenvolva sujeitos livres e emancipados.
Palavras-Chave: Educação Física. Concepção Crítico-Emancipatória. Ensinar. Aprender.

ABSTRACT
Discusses the teach and the learn in Critical-Emancipatory conception. The purpose is to interpret this dia-
lectical pair in the early books of Professor Elenor Kunz: “Educação Física: Ensino & Mudanças (1991)” y
“Transformação Didático-Pedagógica do Esporte (1994)”. Theoretical research is based on methodologi-
cal elements inherent to the thematic analysis treated by Minayo (2008). We conclude that the contents
of Physical Education should be approached in a broad way by the problematization; that the “moving-
-own” leads to a learningof a “world of motor meanings”; and that educate and learning at conception
implies a formation in Physical Education that develops free and emancipated subjects.
Keywords: Physical Education. Critical-Emancipatory conception. Teach. Learn.

RESUMEN
Discute el enseñar y el aprender en la concepción Crítico-Emancipatoria. Tiene como objetivo interpretar
el enseñar y el aprender en las dos primeras obras del profesor Elenor Kunz: “Educação Física: Ensino
& Mudanças (1991)” and “Transformação Didático-Pedagógica do Esporte (1994)”. La investigación te-
órica se apoya en elementos metodológicos inherentes al análisis temático tratada por Minayo (2008).
Concluye que los contenidos de la Educación Física deben ser abordados de forma amplia por la proble-
matización; que el movimiento se conduce a un aprendizaje de un “mundo de significados motores”; y
que el enseñar y el aprender en la concepción implica una formación en la Educación Física que desarrolla
sujetos libres y emancipados.
Palabras Clave: Educación Física. concepción Crítico-Emancipadora. Enseñar. Aprender.
SIQUEIRA E MEDEIROS - O ENSINAR E APRENDER NA CONCEPÇÃO CRÍTICO-EMANCIPATÓRIA 23

1 Introdução
Este estudo vincula-se às experiências (situações fundadoras) do primeiro autor com a realidade
das aulas de Educação Física, retomadas em três momentos, quando da elaboração de seu trabalho de
conclusão no curso de licenciatura da mesma área de conhecimento.
Primeiramente, num exercício de rememoração por fragmentos referentes às suas vivências nas
aulas de Educação Física na educação básica em uma escola pública, em que estudou por seis anos, da
6ª série ao 3º ano do ensino médio (2007-2012), lembra-se apenas de momentos que considera como de
alegria, pautados pela prática dos esportes típicos de quadra e assim caracterizadas: era comum durante
as aulas de Educação Física, os alunos e alunas (não necessariamente juntos), jogarem futsal ou voleibol,
quando não ping-pong (tênis de mesa) em uma antiga e velha mesa nos fundos do ginásio da Escola.
Ainda o primeiro autor, quando se remete às aulas de Educação Física nos anos iniciais, da 1ª série
à 4ª série (2002-2005), em outra escola pública, destaca recordações de aulas em uma quadra de cimento
não coberta onde eram realizadas brincadeiras e estafetas , tão marcante ao ponto de considerar que a
aula tivesse ocorrido no dia de ontem:

Eu e meus amigos e amigas, um atrás do outro em uma única coluna, esperávamos o sinal do
professor. Há alguns metros de nós, o professor segurava em suas mãos uma corda, cuja outra
extremidade ficava fixada. Ele, com as pernas flexionadas, deixava a corda pouquíssimos centí-
metros do chão. E em seu sinal o primeiro da fila saia correndo eufórico e saltava, transpondo
a altura da corda. Era o momento de comemoração e retorno ao final da fila. Quando o último
completava o objetivo de transpor com um salto a altura da corda, tudo se repetia, no entanto
com a corda mais alta em pequenos centímetros. (Lembrança do primeiro autor, Florianópolis,
2016).

Ainda reportando-se às aulas na educação básica, destaca que na 5ª série, mesma escola dos anos
iniciais, recorda da pratica daquelas modalidades esportivas mais comuns ao ambiente escolar: o futsal,
basquete e handebol, e, curiosamente, não recorda da prática do voleibol. Também lembra da organiza-
ção dessas aulas em relação ao conteúdo e tempo: as modalidades esportivas eram distribuídas ao longo
do ano letivo por meses ou semanas, de tal modo que nestes períodos só praticava-se um dos esportes
mencionados. Já o tempo de aula era dividido em quatro partes de 15 minutos, em que nos primeiros 15
minutos os meninos praticavam o esporte determinado pelo professor, e nos outros 15 minutos as meni-
nas, e assim sucessivamente. Enquanto os meninos jogavam as meninas esperavam e quando chegava o
momento das meninas jogarem os meninos também esperavam.
Das lembranças como estudante da educação básica às experiências como estudante do curso de
licenciatura em Educação Física, o primeiro autor, ainda, revela que seu ingresso, em 2013, neste curso,
na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), deveu-se a sua familiaridade, gosto com a prática de
alguns esportes (futebol, futsal, voleibol...), entretanto, ressalta que logo no primeiro semestre letivo do
curso foi possível perceber que, Educação Física não é sinônimo de Esportes . Destaca do currículo do
curso algumas disciplinas que lhe foram determinantes: ao cursar a disciplina Metodologia - Ensino - Edu-
cação Física (DEF-5871) enfatiza a importância em se conhecer os métodos de ensino da Educação Física
e seus aspectos históricos; e na disciplina Fundamentos Históricos e Pedagógicos da Educação Física
(DEF- 5884) a oportunidade de estudar inúmeros aspectos históricos da Educação Física, com destaque
para o primeiro contato com o conhecido “Movimento Renovador da Educação Física brasileira”, dos
anos 1980 no Brasil. Atribui a essas disciplinas um despertar, uma tomada de consciência em relação às
suas experiências com a Educação Física escolar, assim caracterizada: “muito enraizada e congelada em
mim como coisas sedimentadas e inquestionáveis”. E tal constatação o primeiro autor também atribui
às disciplinas do curso licenciatura que tratam do ensino dos esportes, quer dizer, verifica que na própria
Revista Kinesis, Santa Maria, v.36, n.2, p. 22-30, maio-ago. 2018 24

denominação, “Centro de Desportos”, que abriga o curso de licenciatura em Educação Física, é possível
perceber a influência determinante do paradigma esportivo. Destaca que ter cursado várias disciplinas
relacionadas diretamente aos esportes (Teoria e Metodologia do Atletismo; Teoria e Metodologia dos
Esportes Adaptados; Teoria e Metodologia do Futebol; Teoria e Metodologia do Futsal; Teoria e Metodo-
logia da Ginástica; Teoria e Metodologia da Natação; Teoria e Metodologia do Voleibol), cujas ementas
repetem a seguinte expressão: “considerar aspectos metodológicos do ensino do esporte”, a qual, o
primeiro autor relacionou com a ideia de método postulada por Negrelli (2005, p. 275): “[...] na teoria
pedagógica, o método de ensino refere-se aos procedimentos para atingir um objetivo na ação educati-
va.” E, na continuidade, concluiu que tais ementas estariam em consonância com o sentido descrito de
método, ou seja, elas indicam a importância de se conhecer e vivenciar diferentes metodologias de ensi-
no para o esporte. Entretanto, ao relacionar com suas vivências nas ditas disciplinas no curso de licencia-
tura em Educação Física, diz recordar de aulas “práticas” destas disciplinas (com exceção da Ginástica )
que podiam ser assim caracterizadas: notadamente pautadas nos princípios do desenvolvimento motor;
com estratégias metodológicas em que o professor determinava aos estudantes a repetição de uma se-
quência de movimentos típicos de cada esporte que iam do mais fácil ao mais complexo; o objetivo com
vistas ao melhor resultado na aprendizagem e domínio corporal da técnica esportiva.
Enfim, as situações acima apresentadas referentes a trajetória do primeiro autor com a Educação
Física - durante a escola de educação básica, bem como estudante do curso de licenciatura em Educação
Física - foram demarcadoras de seu interesse em aprofundar a temática das metodologias de ensino na
Educação Física escolar. E, num primeiro momento esse interesse foi orientado para as contribuições
do Núcleo de Estudos Pedagógicos da Educação Física (NEPEF), vinculado ao Centro de Desportos da
UFSC. Mais especificamente, constituiu desejo e interesse do primeiro autor investigar a produção aca-
dêmica do professor Elenor Kunz, fundador e primeiro coordenador do NEPEF. Assim, o presente artigo
apresenta um fragmento do Trabalho de Conclusão do primeiro autor, cuja a questão de partida ficou
delimitada nos seguintes termos: como o professor Elenor Kunz apresenta o ensinar e o aprender da
concepção Crítico-Emancipatória em suas principais obras ?

2 Metodologia
Para tanto, foi realizada uma pesquisa teórica, com viés qualitativo, e “[...] orientada para a (re)
construção de teorias , quadros de referência, condições explicativas da realidade, polêmicas e discus-
sões pertinentes” (DEMO, 1994, p. 35).
Na análise dos dados foi orientada pelos elementos metodológicos da análise temática, uma modalida-
de de análise de conteúdo tratadas por Minayo (2008). Por fim, caracterizar a reflexão hermenêutica,
conforme assinalada por Minayo (2004), para interpretar os dados levantados nos dois livros pesquisa-
dos. Minayo (2004, p. 218) propõe as seguintes orientações para a reflexão hermenêutica:

(a) o pesquisador tem que ter claro o contexto [...] dos documentos a serem analisados, pois o
discurso implica num saber compartilhado; (b) o pesquisador, como intérprete, deve ter serie-
dade, racionalidade e responsabilidade diante do texto [...] dos documentos; (c) o pesquisador
só entende o conteúdo significativo de um texto de [...] documento quando tiver condições de
trazer à tona as razões de elaboração do autor do texto; (d) assim como o pesquisador busca
compreender o texto, ele também julga e toma partido em relação a ele. Enfim, a hermenêuti-
ca busca a compreensão do texto (no presente caso, os textos dos dois livros analisados) nele
mesmo.

Em termos práticos, a partir da leitura das duas obras, foram destacados trechos que pudessem
indicar respostas à questão de partida da pesquisa. Desse modo, de posse dos trechos destacados (uni-
dades de análise, extraídas das leituras dos dois primeiros livros do professor Elenor Kunz), foi elabora-
do um quadro com as unidades temáticas de análise mais pertinentes com o problema de investigação,
SIQUEIRA E MEDEIROS - O ENSINAR E APRENDER NA CONCEPÇÃO CRÍTICO-EMANCIPATÓRIA 25

bem como seus respectivos núcleos de sentido , e, a partir desse quadro, com o auxilio da literatura
relacionada à temática, se empreendeu uma reflexão de base hermenêutica visando elaborar possíveis
respostas à questão investigativa: como o professor Elenor Kunz apresenta o ensinar e o aprender da
concepção Crítico-Emancipatória em suas principais obras?
A seguir, são apresentados os núcleos de sentidos mais recorrentes que emergiram durante a eta-
pa de leitura dos dois primeiros livros do professor Elenor Kunz: “Educação Física: Ensino & Mudanças”
- (Livro 1) e “Transformação didático-pedagógica do esporte” - (Livro 2).

Quadro síntese dos núcleos de sentido mais significativos

Proposições relacionadas ao aprender nas obras Proposições relacionadas ao ensinar nas obras
estudadas (Livros 1 e 2). estudadas (Livros 1 e 2).
Aprendizagem ampla dos conteúdos via proble- Objetivos primordiais do ensino na concepção Crí-
matização. tico-Emancipatória: A competência objetiva, social
e da autonomia.
A presença da ação comunicativa (competência A necessária transformação didática do ensino
comunicativa - processo dialógico) nas aulas de dos esportes para alcançar objetivos pedagógi-
Educação Física. cos.
As contribuições dos conteúdos da Educação Físi-
ca para o estudante ser capaz de agir no contexto
social.

3 Proposições sobre o Aprender e o Ensinar na Concepção Crítico-Emancipatória



As reflexões desenvolvidas nesta etapa de análise dos dados buscaram dar respostas à questão
de partida da investigação a partir dos núcleos de sentido mais recorrentes encontrados na leitura dos
dois livros, quais sejam: a) a problematização como pressuposto essencial para a aprendizagem; b) a
concepção dialógica do movimento (se-movimentar) como possibilidade de transcender limites; e
c) por uma formação na Educação Física visando sujeitos livres e emancipados: a competência objetiva,
social e comunicativa.

3.1 A problematização como pressuposto essencial para a aprendizagem


No contexto da pedagogia crítica no Brasil da década de 1980, emerge o Movimento Renovador
da Educação Física Brasileira, que atravessou as décadas de 1980 e 1990. Esse Movimento foi assim de-
nominado porque buscou criticar (no sentido de repensar e questionar) as certezas e convicções que
cercavam o contexto da Educação Física e Esportes brasileira, dentre aquelas questões relacionadas ao
processo de ensino-aprendizagem da Educação Física na escola. E é neste sentido que penso ser válido
retomar o que diz Kunz (2010), ou seja: que esta discussão/reflexão transcende a especificidade da área,
porque é o momento que os personagens deste cenário buscaram pressupostos teóricos e conceituais
em outras ciências e áreas de conhecimento para poder ampliar a discussão e enxergar com “outras
lentes” a própria Educação Física. A concepção de Educação Física Crítico-Emancipatória floresce, preci-
samente, neste período.
O professor Kunz, ao ir realizar seu doutorado na Alemanha, na Universidade de Hannover, acaba
que, não coincidentemente, se aproximando com maior intensidade de teorias e pressupostos das ciên-
cias humanas e pedagógicas de pensadores Alemães e Europeus e Brasileiros. Mas, para poder pensar a
Educação Física no contexto do Brasil, ele deveria se aproximar de algum pensador que compreendesse
a realidade que estava posta, portanto, foi durante este período de doutoramento, na Alemanha, que
Revista Kinesis, Santa Maria, v.36, n.2, p. 22-30, maio-ago. 2018 26

Kunz se apropriou dos escritos do até então desconhecido brasileiro Paulo Freire, por meio de livros tra-
duzidos para a língua alemã.

Um destes conceitos apropriados por ele de Paulo Freire foi o da problematização. Ao realizar
a primeira parte da sua tese, uma investigação empírica em forma de estudo de caso com relação ao
ensino da Educação Física em duas realidades escolares opostas na cidade de Ijuí – RS, Kunz pode per-
ceber que o ensino era realizado apenas na ótica do treinamento esportivo e da atividade física. A única
aprendizagem social existente era que apenas o mais forte sobreviveria nas aulas e seria “convocado
para as equipes de competição” da escola. Além de “consolidar hábitos através de atividades rotineiras
e condutas normativas que contribuíssem para a manutenção da ordem social, em especial, pelo cumpri-
mento de regras e normas sociais” (KUNZ, 2004, p.183). Tendo esse tipo de ensino uma intervenção não
dialógica e com poucas chances de emancipação.
O termo problematização vem do entendimento de que o ensino não pode ser compreendido
como mera transferência conhecimento, como apresenta Freire (1985) ao trazer o conceito de educa-
ção bancária, pois neste entendimento a educação corresponde a um depósito de poupança, fazendo
com que os estudantes se transformem em um objeto de investimento e os professores investidores. O
mesmo autor também ilustra, que o ensino tradicional (a educação bancária), tem como característica o
professor como único detentor de conhecimento e o aluno como um vaso que se torna melhor a cada dia
por deixar ser preenchido por esse importante saber do professor.
No livro, “Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática Educativa”, de Freire (1996),
o autor insiste em dizer que ensinar não é transferir conhecimentos, ou seja, ter compreensão desse
entendimento é de uma necessidade imprescindível ao professor que deseja atuar numa perspectiva de
mudanças na organização tradicional/conservadora da estrutura escolar, isto é, numa perspectiva pro-
gressista de educação.
Assim, uma educação libertadora, que tem como imperativo o pressuposto didático a problematização
dos conteúdos a serem conhecidos só pode ocorrer em situações como a apresentada seguir:

A ação educacional é uma forma muito especial de interações, e ocorre normalmente entre
Adultos (educadores) e Jovens (educandos) [...] nessa ação socialmente regulamentada, os
participantes nas interações, de ambos os lados, devem ser considerados como sujeitos nesta
ação, somente isto possibilita uma Ação Comunicativa na Educação; é pré-condição indispensá-
vel para a mesma (KUNZ, 2004, p. 138).

Nessa passagem é possível notar que a problematização só pode ocorrer quando ambos os lados
da ação educativa são considerados como sujeitos no processo, condição primeira para que aconteça
uma ação comunicativa, e isso exige que as relações entre os participantes tendam à horizontalidade.
Para isso acontecer, Freire (1981) diz que o professor deverá morrer (num sentido metafórico) como
exclusivamente professor e renascer como professor-aluno, e da mesma forma deverá morrer exclusiva-
mente o aluno para nascer o aluno-professor. Em outra passagem Kunz (2004) reafirma essa questão da
seguinte forma:

É pelo diálogo que se consegue que o processo da formação da consciência se desenvolva [...]
esta só será possível quando a relação entre professores e alunos tenderem ao sentido hori-
zontal, ao contrário da relação vertical opressora e alienante da concepção bancária de ensino
(KUNZ, 2004,p. 148).

Tal advertência deve ser considerada nos processos de aprendizagem dos conteúdos da Cultu-
ra de Movimento na Educação Física, em outras palavras, tais processos devem distanciar-se da forma
autoritária, fechada e alienante, típica da tradição escolar, em que o professor domina a verdade ima-
SIQUEIRA E MEDEIROS - O ENSINAR E APRENDER NA CONCEPÇÃO CRÍTICO-EMANCIPATÓRIA 27
culada do ato pedagógico. Além do que esse tipo de ensino não prioriza movimentos emancipados,
mas o seu contrário, um ensino que gera consciências alienadas. Então, a problematização nas aulas de
Educação Física, caracterizada pelo ato pedagógico que ocorre num contexto de ação-reflexão-ação de
experiência do conhecimento, quer dizer, os conteúdos do conhecimento são apresentados na forma
de problemas a serem resolvidos, tal modo que possibilitem e tragam sentidos e interesses comuns aos
participantes dessas aulas.
Nesse sentido, o Livro 1 do professor ElenorKunz contém uma passagem que ilustra a importân-
cia do ensino orientado pela problematização.

A problematização do ensino auxilia desta forma, principalmente, para o rompimento das es-
truturas rotinizadas das constantes reproduções e ações na Educação Física. Através da mesma
pode-se fomentar um processo de permanente criação e descoberta, e para isto ela tem uma
importância fundamental, pois na busca de soluções individuais ou coletivas o aluno vivencia
um agir de “forma independente”, uma cooperação e uma comunicação com o grupo, e com
o professor; adquire assim, um saber, experiências e conhecimentos de maior relevância para
sua emancipação (KUNZ, 2004, p.192).

Notório nessa passagem está a importância do ensino orientado pela problematização como
contraponto à tradição das aulas de Educação Física que se caracterizam por estruturas rotinizadas e
cópias irrefletidas de movimentos e técnicas.
Sintetizando, o professor Elenor Kunz se apropria do conceito de problematização de Paulo Frei-
re porque este indica um processo dialógico na aprendizagem, valorizando nessa trajetória o Mundo
Vivido, isso significa que, antes das crianças estarem nas aulas de Educação Física, elas já existiam como
pessoas que vivem nesse mundo. Essa construção do conhecimento, que pode ser organizada por es-
tratégias de permanente criação e descoberta, oportuniza uma aprendizagem que julgo ampla, pois
caminha em busca da emancipação dos envolvidos para, no fim, mudar de uma aprendizagem copiada e
irrefletida para uma aprendizagem problematizada e consequentemente construída dos sujeitos.

3.2 A concepção dialógica do movimento (se-movimentar) como possibilidade de transcender limites



No Livro 1, o professor Elenor Kunz com base no alemão Trebels que se orientou pelos estudos
dos holandeses Tamboer, Gordjin e Buytendijk, trouxe para o Brasil uma teoria com fundamentação
antropológica para o Movimento Humano denominada de “concepção dialógica”. Nesse ponto de vis-
ta, o Movimento Humano é interpretado como um “diálogo entre o Homem e o Mundo”. Portanto, o
se-movimentar envolve então o sujeito (aquele que se movimenta) sempre na sua intencionalidade (do
sujeito). Kunz (2004) vai dizer que é por essa intencionalidade que se constitui o sentido/significado do
se-movimentar. Em seguida, Kunz (2004, p.174) acrescenta que o “sentido/significado e intencionalida-
de têm uma relação muito estreita na concepção dialógica do movimento”. O nosso autor, ainda reve-
la que como seres humanos que se movimentam, somos capazes de questionar o mundo de diversas
formas, mas também responder aos questionamentos dele. Nesse sentido, o Movimento Humano se
coloca como uma destas possibilidades e desafios, ou como reforça o nosso autor “[...] somente pela
intencionalidade do se-movimentar é possível superar um mundo confiável e conhecido e penetrar num
mundo desconhecido” (KUNZ, 2004, p.175).
Essa intencionalidade do “se-movimentar”, na concepção dialógica do movimento, vai implicar
num mundo de significados motores que, Kunz (2004) com base no holandês Gordjin, apresenta nos
seguintes termos:

A aquisição de “um Mundo de significados motores” pelo se-movimentar deve ser entendido,
segundo GORDJIN (1975), em três aspectos intencionais, ou como prefere TAMBOER (1985):
“o Movimento Humano é uma atividade intencional, a sua forma é adquirida de três diferentes
Revista Kinesis, Santa Maria, v.36, n.2, p. 22-30, maio-ago. 2018 28
formas de transcender limites”: A forma direta – que surge com a direta transcendência dos
limites, na base de uma intencionalidade espontânea, não pensada [...] A forma apreendida: ela
surge graças a uma transcendência de limites pela aprendizagem, na base de uma intencionali-
dade que se forma pela ideia ou imagem do movimento [...] A forma criativa/inventiva: ela surge
graças a uma transcendência de limites da maneira inventiva, ou seja, de uma intencionalidade
criativa, inventiva (KUNZ, 2004, p.175-176).
Ou seja, a forma direta está relacionada com o modo em que a pessoa vai resolver o problema na
atividade/dinâmica de movimento. Isto é, responder aos momentos de maneira que a pessoa já sabe. A
forma aprendida se apresenta no momento em que a forma direta não seja mais o suficiente, desse, a
aprendizagem pode ocorrer pela imitação de uma intenção de movimento. Pois, nesta transcendência
de limites o aprender do movimento deve ser pela “imitação de uma intenção” e não pela “imitação da
forma”. E por ultimo, na forma criativa/inventiva é o momento em que a pessoa transcende os limites
criando, indo além do movimento padronizado, sendo este o movimento emancipado.
O professor Elenor Kunz, no Livro 1, de forma explícita vai propor uma aproximação teórico-con-
ceitual com pressupostos de Paulo Freire, em que postula uma aprendizagem do se-movimentar dialógi-
co pelo ensino dialógico-problematizador, nos seguintes termos:

A aprendizagem do Se-movimentar não se orienta no ensino das destrezas técnicas e fecha-


das, padronizadas do Movimento Humano, mas abre perspectivas para um redimensionamen-
to e uma apreensão abrangente de campos de atuação pelo “movimento dialógico”. O que
deverá ser percebido no momento da construção/elaboração deste campo de atuação pelos
participantes do processo é o sentido/significado deste Se-movimentar. Desta forma, o Se-movi-
mentar torna-se um diálogo entre Homem e Mundo que exige uma inter-relação dialética entre
Subjetividade e Objetividade, sem jamais nuclear-se para nenhuma destas posições extremas.
[...] Para FREIRE, a aprendizagem não deve ser uma transmissão de informações, técnicas, mas
deve ser um processo dinâmico, vivo, que se realiza pelo diálogo com todos os participantes do
processo e relacionado sempre a situações locais e às vivências, experienciais existenciais dos
educandos (KUNZ, 2004, p.180).

Desse modo, a passagem acima nos fornece elementos para compreender que a aprendizagem
do se-movimentar não se encaixa numa perspectiva orientada em princípios que supervalorizem o mo-
vimento fechado e padronizado, até porque nesse entendimento o se-movimentar é um diálogo entre
o homem e o mundo, ou seja, esse “movimento dialógico” se torna evidente porque envolve o sujeito e
sua intencionalidade. Portanto, para uma ampliação (aprendizagem) do Mundo de Significados Motores
é necessário que se considere o sentido/significado da pessoa que se movimenta. Por fim, esse movimen-
to dialógico se preocupa em resgatar o sentido e a intencionalidade do se-movimentar, fazendo com que
nessas transcendências dos limites as crianças, jovens e adultos possam se experimentar, isto é, se-mo-
vimentar de forma emancipada.

3.3 Por uma formação na Educação Física visando sujeitos livres e emancipados: as competências obje-
tiva, social e comunicativa

Por entender que os alunos e alunas vão à escola para estudar e se desenvolver como pessoa, o
professor Elenor Kunz vai advogar que o ensino dos esportes na Educação Física Escolar precisa ir além
do simples ensinamento de habilidades e técnicas do esporte, pois “[...] numa concepção crítico-eman-
cipatória deverá ser incluído conteúdos teórico-prático, que, além de tornar o fenômeno esportivo mais
transparente, permite aos alunos melhor organizar a sua realidade de esporte, movimentos e jogos de
acordo com as suas possibilidades e necessidades.” (KUNZ, 2010, p.34-35). Nesse sentido, o autor vai
propor que o processo de ensino nas aulas de Educação Física seja orientado com base no desenvolvi-
mento de três competências, quais sejam: as competências objetiva, social e comunicativa. A passagem
apresentada abaixo resume a importância dessas competências no processo de ensino proposto pelo
SIQUEIRA E MEDEIROS - O ENSINAR E APRENDER NA CONCEPÇÃO CRÍTICO-EMANCIPATÓRIA 29

professor Elenor Kunz.

O aluno enquanto sujeito do processo de ensino deve ser capacitado para sua participação na
vida social, cultural e esportiva, o que significa não somente a aquisição de uma capacidade de
ação funcional, mas a capacidade de conhecer, reconhecer e problematizar sentidos e significa-
dos nesta vida, pela reflexão crítica (KUNZ, 2010, p. 31).

Quanto à competência objetiva, no esporte, significa dizer que pela melhoria das habilidades prá-
ticas os estudantes conseguem ampliar também seu espaço de atuação, autodeterminação e co-deter-
minação nos momentos de Educação Física, isto é, nas atividades de ensino. Já a competência social é
desenvolvida pela tematização das relações e interações sociais entre alunos-alunos e professor-alunos,
em que essa tematização deve ser problematizadora, ou seja de modo que os estudantes saibam distin-
guir interesses subjetivos e objetivos. E, por último, e não menos importante, a competência comunica-
tiva, a qual deve ser desenvolvida pelo estímulo constante da fala e da expressão dos fatos e fenômenos
ocorridos, de forma a analisar e compreender esses mesmos fatos, coisas e fenômenos, do contexto
imediato das aulas, num nível de abstração hipotética e teórica (KUNZ, 2010). Ou, como enfatiza o autor:
“Conduzir o ensino na concepção crítico-emancipatória, com ênfase na linguagem, é ensinar o aluno a
ler, interpretar e criticar o fenômeno sociocultural do esporte” (KUNZ, 2010, p. 43).
Por meio dessas reflexões é possível retomar na própria história da Educação Física essa carac-
terística de ensino voltada ao adestramento e a domesticação (ao “não precisar” pensar), em especial,
pela prática incansável dos esportes, em busca da dita “perfeição gesto motor técnico”. As reflexões e
estudos de Kunz estavam em consonância com outros autores que também denunciaram essa perspecti-
va fechada e domesticadora de ensino na Educação Física. Dentre os quais destaque para Romero (1998)
que em seu texto ‘O ensino (ou o adestramento) da Educação Física (?), já apontava a necessidade de se
repensar o papel do professor de adestrador para o de educador. Nesse sentido, verifica-se que foi por
essas e outras constatações de limitações do ensino dominante de Educação Física que surgiram novas
propostas de mudanças e de perspectivas para o ensino da Educação Física. A concepção Crítico-Emanci-
patória é uma delas.

4 Conclusão
Em relação às proposições relacionadas ao ensinar e ao aprender da concepção Crítico-Emancipa-
tória nas duas obras investigadas, pode-se apresentar as seguintes conclusões:
- que o professor Elenor Kunz se apropria do conceito de problematização de Paulo Freire porque esse in-
dica um processo dialógico na aprendizagem, valorizando nessa trajetória o Mundo Vivido, isso significa
que, antes das crianças estarem nas aulas de Educação Física, elas já “existiam como pessoas que vivem
nesse mundo”. Nesse sentido, a problematização enaltece o diálogo entre o estudante e o professor, só
sendo possível quando essa relação entre os envolvidos tende a “horizontalidade”. Portanto, essa cons-
trução do conhecimento, que pode ser organizada por estratégias de permanente criação e descoberta,
oportuniza uma aprendizagem que julgo ampla, pois caminha em busca da emancipação dos envolvidos.
Para, no fim, mudar de uma aprendizagem copiada e irrefletida para uma aprendizagem problematizada
e consequentemente construída;
- que o professor Elenor Kunz postula que uma aprendizagem do se-movimentar não se encaixa numa
perspectiva orientada em princípios que supervalorizem o movimento fechado e padronizado, até por-
que nesse entendimento o se-movimentar é um diálogo entre o homem e o mundo, ou seja, esse “movi-
mento dialógico” se torna evidente porque envolve o sujeito e sua intencionalidade. Portanto, para uma
ampliação (aprendizagem) do mundo de significados motores é necessário que se considere o sentido/
significado da pessoa que se movimenta. Por fim, no meu entendimento, esse movimento dialógico se
preocupa em resgatar o sentido e a intencionalidade do se-movimentar, fazendo com que nessas trans-
Revista Kinesis, Santa Maria, v.36, n.2, p. 22-30, maio-ago. 2018 30

cendências dos limites as crianças, jovens e adultos possam se experimentar, isto é, se-movimentar de
forma emancipada.
- que o professor Elenor Kunz aponta que o ensinar numa perspectiva crítico-emancipatória na Educação
Física deva almejar a formação de pessoas livres e esclarecidas, com princípios que busquem que além
de uma ação funcional, que nos esportes, via uma transformação didática e pedagógica possa possibi-
litar experiências de um se-movimentar emancipado. No entanto, essa só se apresenta possível numa
organização de aula que oportunize os estudantes a adquirirem as competências objetiva, social e co-
municativa. Pois, esses são elementos imprescindíveis para que se alcance um ensino que seja crítico e
emancipatório.
Por fim, com base nas palavras do protagonista dessa concepção, não podemos considerar essa
concepção de ensino como aquela que é a detentora do “monopólio da verdade”, tão pouco aquela que
irá salvar a Educação Física escolar, e, para evitar isso sua apreensão e aplicação nos contextos escolares
deve distanciar-se das formas “mecanizada e irrefletida”, pois, sua contribuição é atual e muito valiosa
para as necessárias e imprescindíveis mudanças no ensino da Educação Física.

Referências
DEMO, Pedro. Pesquisa e construção de conhecimento - metodologia científica no caminho de Haber-
mas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Ter-
ra, 1996, Coleção Leitura.

____________. Pedagogia do Oprimido. 14.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

KUNZ, Elenor. Educação Física: ensino e mudanças. 3. ed. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2004.

____________. Transformação didático-pedagógica do esporte. 7. ed. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2010.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento. 11 ed. São Paulo: Hucitec, 2008.

_____________________________. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8 ed.


São Paulo: Hucitec, 2004.

ROMERO, Elaine. O Ensino (ou o adestramento) da Educação Física (?). Revista Brasileira de Ciências e
Movimento, n.2, v.1, p.41-42, 1988.

Você também pode gostar