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Frankenstein: A Narrativa de Mary Shelley No Cinema

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ISSN: 2317-2347 – v. 8, n.

1 (2019)

Frankenstein: a narrativa de Mary Shelley no cinema / Frankenstein:


Mary Shelley's narrative on screen

Francisco Romário Nunes


Francisco Carlos Carvalho da Silva

RESUMO
O presente artigo traça um breve panorama das adaptações fílmicas da obra Frankenstein or, the modern
Prometheus, de Mary Shelley. Publicado pela primeira vez em 1818, a narrativa continua a exercer
influência nas diversas mídias, especialmente no cinema. Victor Frankenstein, personagem protagonista,
desenvolve experimentos para dar vida a uma criatura monstruosa. Contudo, a criação escapa do controle
de Frankenstein, que é acometido por uma série de crimes trágicos. A partir de algumas discussões sobre
adaptação fílmica como tradução (LEFEVERE, 2007; HUTCHEON, 2013), investigamos de que modo o
romance de Mary Shelley continua sendo reescrito nas telas e quais traços podem ser observados nas
seguintes adaptações: Frankenstein (1931), com direção de James Whale; e Mary Shelley’s Frankenstein
(1994), dirigido por Kenneth Branagh. Os filmes, produzidos em períodos distintos, propiciam leituras
distintas do romance da escritora inglesa. Partimos do pressuposto que as narrativas fílmicas
ressignificam a obra literária a partir dos seus diferentes contextos de produção, contribuindo para criar
novas imagens da história centenária de Mary Shelley.
PALAVRAS-CHAVES: Frankenstein; Literatura; Cinema; Adaptação Fílmica.

ABSTRACT
This article presents a brief overview of Mary Shelley's Frankenstein or, Modern Prometheus film
adaptations. First published in 1818, the narrative continues to exert influence in various media,
especially in cinema. Victor Frankenstein, the story’s central character, develops experiments to generate
life in a monstrous creature. However, the creation escapes from Frankenstein’s control and affects him
by a series of tragic crimes. Based on some theoretical discussions about film adaptation as translation
(LEFEVERE, 2007; HUTCHEON, 2013), we investigate how Mary Shelley's novel continues to be
rewritten on screen and what traits can be observed in the following adaptations: Frankenstein (1931),
directed by James Whale; and Mary Shelley's Frankenstein (1994), directed by Kenneth Branagh. The
films, produced in different moments, address two distinguishable interpretations of the author’s story.
We assume that both films re-signify the literary work according to different contexts, creating new
images of Mary Shelley's centenary story.
KEYWORDS: Frankenstein; Literature; Cinema; Film Adaptation.

1 Introdução

O presente texto objetiva uma análise crítico-descritiva de duas adaptações do


romance Frankenstein, da autora inglesa Mary Shelley: Frankenstein (1931), com
direção de James Whale; e Mary Shelley’s Frankenstein (1994), dirigido por Kenneth
Branagh. O texto busca traçar os modos como cada filme reescreve o romance de Mary


Doutorando em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, Salvador – BA,
Brasil; rom.infor@gmail.com.

Professor Doutor da Universidade Estadual do Ceará – UECE, Quixadá – CE, Brasil;
carlos.oak@hotmail.com.br.

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Shelley em relação com os diferentes contextos de produção. Nesse sentido, podemos


questionar: de que forma o cinema reescreve a narrativa de Mary Shelley? Os filmes
contribuíram para popularizar a narrativa Frankenstein? Quais diferenças podem ser
observadas nas adaptações fílmicas?
A fundamentação teórica explora, de forma breve, alguns aspectos dos estudos
de adaptação fílmica por meio dos seguintes autores: Lefevere (2007), Hutcheon (2010),
e Stam (2008). Em seguida, apresentamos o romance em relação com o mito de
Prometeu, que deu origem a história. E, finalmente, analisamos os filmes em seus
diferentes contextos, apontando variações e construções narrativas do cinema.
Partimos do pressuposto que as narrativas fílmicas ressignificam o texto literário
com perspectivas diferentes, cujas transformações tanto no âmbito da linguagem quanto
da cultura contribuem para criar novas imagens da história centenária de Mary Shelley.
Como exemplo, no filme de James Whale, observamos uma mudança no desfecho da
narrativa para gerar um final feliz ao público, que vivia no contexto da Segunda Guerra
Mundial. Já a adaptação de Kenneth Branagh usa a violência tanto para impactar quanto
para produzir maior dramaticidade.
De certo modo, o cinema herdou uma história famosa no meio literário, no
entanto, as adaptações reverberam outros sentidos em comparação com o texto de
partida.

2 A arte do cinema e a adaptação fílmica

Exatamente no final do século XIX, em 1895, pela primeira vez na história a


imagem fotográfica ganhava movimento. Os irmãos franceses Auguste e Louis Lumière
foram os responsáveis pela criação da máquina do cinematógrafo que inicialmente
reproduzia fotogramas em dezesseis quadros por segundo. O cinema, ao longo daqueles
anos iniciais, não passava de pequenos filmes com cerca de quarenta segundos, em que
geralmente retratavam o movimento da vida burguesa nas cidades europeias em plena
belle époque. Dessa época, podemos destacar L'Arrivée d'un train en gare de la Ciotat,
de 1985, ainda lembrado até hoje como o filme que deu início ao ilusionismo
cinematográfico.

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Com o intuito de popularizar o cinema, os primeiros cineastas – com maior


destaque o norte-americano D.W. Griffith – passaram a adaptar histórias consagradas da
literatura. D. W. Griffith, por exemplo, se apropriou da literatura, especialmente
utilizando os romances oitocentistas de Charles Dickens, para produzir filmes lineares e
desenvolver o ponto de vista (MACHADO, 2011). Logo, as companhias de cinema e os
diretores interessados em tornar o cinema uma arte nobre perceberam que o caminho
seria direcionar as lentes das câmeras às páginas de obras literárias. O prestígio da
literatura daria maior credibilidade à imagem em movimento, uma vez que o público
teria curiosidade de rever os clássicos representados nas salas de projeções. Além de
garantir um bom retorno financeiro de um público ávido por novidade, algo que naquele
tempo a invenção do cinema poderia proporcionar no campo da arte.
Com a expansão dessa prática ao longo do século XX, alguns estudiosos
(CATTRYSSE, 1992; STAM, 2008; HUTCHEON, 2013) se debruçaram sobre as
adaptações fílmicas baseadas em textos literários, com o objetivo de investigar como
cada obra se transforma uma vez que o cinema produz novas significações, muitas vezes
com o texto de partida reescrito para se adequar ao sistema receptor.
Lefevere, no livro Tradução, reescrita e manipulação da fama literária (2007),
elabora o conceito de reescritura no campo da tradução literária para compreender como
uma obra se modifica a partir de interesses ideológicos, poéticos e culturais. O autor traz
contribuições relevantes a respeito de como as traduções, entendidas como reescrituras,
fazem parte do sistema literário, criando

[...] imagens de um escritor, de uma obra, de um período, de um


gênero e, às vezes, de toda uma literatura. Essas imagens existiam ao
lado das originais com as quais elas competiam, mas as imagens
sempre tenderam a alcançar mais pessoas do que o original
correspondente e, assim, certamente o fazem hoje. (2007, p. 18-19).

Nesse sentido, a adaptação fílmica também pode ser pensada como um tipo de
reescritura/tradução, uma vez que gera outras imagens de determinada obra literária no
sistema cinematográfico. Não obstante, a ampliação do público é outra característica
observada nesse fenômeno, tendo em vista que o cinema condensa histórias e incorpora
diversos estímulos (sonoros e imagéticos), popularizando-as nas salas escuras do
cinema em diferentes países ao mesmo tempo.

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Entendido como um novo texto, uma reescrita, a obra adaptada transforma o


texto anterior e propicia outro tipo de interação com o sujeito receptor. Não é mais o
texto escrito apenas, mas o plano da câmera, o enquadramento, o movimento, o som, o
figurino, os atores, a luz, e todos os elementos que compõem a imagem fílmica. Essa
combinação de traços, que pode ser usada até mesmo como analogia ao próprio monstro
criado por Mary Shelley, também gera um prazer. Nesse ponto, o prazer se conecta com
a possibilidade de experimentar a mesma história em uma mídia diferente, o que faz
com que o espectador crie outro tipo de engajamento com a narrativa.
Hutcheon argumenta que (2013, p. 25), “[...] parte desse prazer advém
simplesmente da repetição com variação, do conforto do ritual combinado à atração da
surpresa”. A adaptação, essa outra obra, assim como a criatura que ganha vida nas mãos
de Frankenstein, escapa do gênio criador. Sua potência gera outros fins à medida que
interagimos e produzimos nossas próprias interpretações e experimentamos a obra.
Nesse sentido, um filme, segundo Stam (2008, p. 21), “envolve a colaboração”,
e no campo fílmico “a originalidade total, consequentemente, não é possível nem
desejável”. Portanto, uma forma de compreender essa combinação artística que produz
um filme é por meio da leitura intertextual das mídias, nesse caso, a literatura e o
cinema. Como aponta Stam (2008, p. 22), “as adaptações fílmicas caem no contínuo
redemoinho de transformações e referências intertextuais, de textos que geram outros
textos [...]”, e, a depender dos contextos de produção, as intervenções e apropriações
podem variar a fim de assegurar uma determinada poética e ideologia para um público
específico.
As histórias, portanto, contadas através do cinema, repetem aspectos da
literatura, porém criam variações conforme a linguagem fílmica. Os diretores podem
explorar as potencialidades narrativas oferecidas pelo texto de partida em um maior
grau ou podem promover apagamentos de sentidos. Vale lembrar que o contexto
ideológico e/ou mercadológico também pode interferir no nível de transformação das
narrativas.

3 O nascimento de Frankenstein, de Mary Shelley

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Em 1818, o universo literário recebia Frankenstein or, the modern Prometheus,


escrito pela inglesa Mary Wollstonecraft Shelley. Nascia, naquele ano, uma trágica
narrativa que marcaria gerações de leitores através de um enredo peculiar: um cientista
de nome Victor Frankenstein, impulsionado pelo desejo de desvendar o mistério da
vida, desenvolve estudos filosóficos e químicos acerca do tema. O cientista seleciona
materiais e disseca cadáveres para extrair partes que pudessem ser usadas para produzir
um novo corpo humano. Na finalização do trabalho, no entanto, a criatura construída
por Frankenstein apresenta proporções gigantescas se comparadas a um homem normal,
e todo o emprego dado à árdua tarefa de gerar vida naquele ser acaba por resultar em
uma sequência de eventos trágicos na vida do cientista.
Em prefácio escrito em 1831, publicado em uma edição da Penguin Books de
1994, a autora explica as circunstâncias nas quais escreveu a história. Ela e o marido, o
poeta romântico P. B. Shelley, de visita à Suíça no verão de 1816, foram vizinhos de
outro importante escritor da época, o poeta Lord Byron. O clima, no entanto, não
agradava diante das constantes chuvas, o que fez com que os três permanecessem
confinados por vários dias em casa. Sem outras atividades, os escritores passavam o
tempo lendo histórias, a maioria de fantasmas, quando Lord Byron propôs que todos
escrevessem uma história semelhante. A partir de então, Mary Shelley relata que
começou a pensar sobre uma narrativa; perguntada todas as manhãs seguintes se havia
começado a escrever, a autora respondia negativamente. Para Mary Shelley (1994, p. 8),
inventar não é simplesmente criar algo do vazio, mas do caos. Os materiais devem,
antes de qualquer coisa, ser concebidos. A invenção consiste, segundo a autora, na
capacidade de apreender as potencialidades de um assunto; e no poder de moldar e
talhar as ideias sugeridas pelo tema.
Influenciada pelos avanços científicos do seu tempo, em especial os
experimentos de Charles Darwin, Mary Shelley enfim imaginou uma história. Ela
visualizou um estudante trabalhando em algo que parecia uma máquina, tendo ao seu
lado uma criatura de aparência fantasmagórica demostrando alguns sinais vitais. Com
algumas páginas escritas, P. B. Shelley, seu marido, aconselhou a escritora para que
desenvolvesse a ideia. Dois anos depois, o Prometeu moderno ganhava vida na forma de
um romance.

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Para compreendermos melhor a narrativa, é preciso entender a sua referência ao


mito grego de Prometeu. Na mitologia grega, Prometeu é um dos Titãs, uma raça
gigante que habitava a terra antes da criação do homem. Prometeu e seu irmão,
Epimeteu, receberam a missão de fazer o homem e prover a ele e aos outros animais
faculdades necessárias para sua preservação. Assim, Epimeteu distribuiu diferentes
habilidades para os outros animais, mas, na vez do homem, não havia restado nenhuma
dádiva. Com isso, ele busca a ajuda de Prometeu, que auxiliado por Minerva, sobe aos
céus e acende uma tocha na luz do sol. Com o fogo, o homem poderia construir armas e
ferramentas para cultivar, aquecer suas casas, e também, produzir as artes e inventar
dinheiro usado para comercializar os produtos. Contudo, como forma de punição pelo
roubo do fogo dos deuses, Júpiter condena Prometeu. Como castigo, o Titã é
acorrentado em uma montanha rochosa chamada Monte Cáucaso, onde um abutre
devora seu fígado todos os dias. Por ser imortal, Prometeu se cura rapidamente, mas no
dia seguinte o abutre retorna, sendo essa a sua eterna tormenta (BULFINCH, 2000).
O mito de Prometeu é um tema recorrente na literatura, seja entre poetas, seja
entre dramaturgos e romancistas. Segundo Bulfinch (2000), sua representação enquanto
ser cordial para com os homens o coloca como símbolo da resistência contra a opressão.
Além de Mary Shelley, alguns escritores citaram ou reescreveram o mito em suas obras
como em Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, e Paraíso Perdido, de John Milton. O
próprio poeta Lord Byron, por exemplo, usou a temática no seu drama lírico
Prometheus Unbound, de 1820.
Desse modo, a narrativa Frankenstein de Mary Shelley incorpora traços de um
mito clássico venerado na história do Ocidente. A autora inglesa, portanto, produz um
texto em que, diferentemente de Prometeu, o protagonista da história, Victor
Frankenstein, impõe a si mesmo a missão de descobrir o segredo da vida. Nesse sentido,
há uma renovação do mito por meio da linguagem romanesca, cujo personagem tem o
desejo de domínio sobre a vida e a criação humana por meio da ciência racional.
Michael Alexander (2013) argumenta que Frankenstein apresenta reflexões
importantes acerca da cultura, da moral, da filosofia e da psicologia. Seria, na visão do
autor, uma crítica sensível à inteligência vitoriana, período de grandes invenções no
campo da ciência, mas de certos atrasos no meio social e da moral.

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Certamente, adentrando o universo do sobrenatural, o romance inova na


capacidade de criar subterfúgios para retratar a sociedade da época. Nesse contexto,
Ronald Carter e John McRae (1997) apontam que a narrativa segue a tradição gótica
estabelecida pelo escritor William Godwin no final do século XVIII. Segundo os
autores,
No contexto do período romântico na literatura, os escritores ‘góticos’
são centrais na medida em que continuam a tradição que contesta a
ênfase na razão, no controle e na ordem que caracteriza a literatura do
início do século XVIII. Romances góticos como Frankenstein
exploram os recessos mais profundos da psicologia humana, sempre
enfatizando o macabro, o inusitado e o fantástico, e preferindo as
realidades da imaginação subjetiva. Frankenstein enfatiza uma
mudança na sensibilidade e um movimento em direção ao estranho, ao
maravilhoso, ao racionalmente incontrolável e ao psicológico
disjuntivo. Tal mudança também tem repercussões políticas, na
medida em que os mundos representados indicam um claro desafio à
ordem existente e aos modos racionais de pensamento e de
organização social. (1997, p. 265-266).1

Tais características remontam a uma tradição literária observável ao longo do


século XIX em autores como Charles Dickens e as irmãs Brontë, na Inglaterra, e Edgar
Allan Poe, nos Estados Unidos. Além disso, Mary Shelley é apontada como uma das
primeiras escritoras a produzir literatura de ficção científica, publicando ainda The Last
Man, de 1826, uma história sobre a destruição da raça humana. O romance Frankenstein
pode também ser caracterizado como o precursor de narrativas pós-modernas
exploradas na literatura do século XX, uma vez que o humano é retratado como uma
espécie de colagem e/ou fragmentos de identidade. Tais temáticas foram bastante
retratadas em romances de ficção científica e/ou futuristas que lidam com a criação de
inteligência artificial como Brave New World (1931), de Aldous Huxley; I, Robot
(1950), de Isaac Asimov; e Do Androids Dream of Electronic Sheep? (1968), de Philip
K. Dick, todos adaptados para o cinema, o que reforça a histórica relação entre a sétima
arte com a literatura, sempre gerando novas leituras e imagens de obras e autores.

1
In the context of the Romantic period of literature, ‘Gothic’ writers are central insofar as they continue a
tradition which challenges the emphasis on reason, control and order which characterizes early
eighteenth-century literature. Gothic novels such as Frankenstein explore the deepest recesses of human
psychology, always stressing the macabre, the unusual and the fantastic and preferring the realities of the
subjective imagination. Frankenstein underlines a shift in sensibility and a movement towards the
uncanny, the marvellous, the rationally uncontrollable and the psychological disjunctive. Such a shift also
has political repercussions in that the worlds depicted represent a clear challenge to the existing order and
to rational modes of thought and of social organization. (Tradução nossa).

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4 A narrativa Frankenstein no cinema

Adaptações fílmicas de Frankenstein remontam ao início do século XX, sendo


uma das primeiras a adaptação intitulada Frankenstein de Mary Shelley assinada pela
produtora de Thomas Edison, por exemplo, no ano de 1910. Ao longo do século
passado, a narrativa foi reescrita nas telas com diversos títulos, ampliando o horizonte
imaginário do texto tanto para o público leitor quanto para os espectadores de cinema.
Dessa forma, a linguagem cinematográfica corroborou a criação de novas imagens da
obra e da escritora inglesa que viveu no período vitoriano.
Como objeto de análise no presente trabalho, utilizamos duas adaptações da
obra: Frankenstein (1931), com direção de James Whale; e Mary Shelley’s Frankenstein
(1994), dirigido por Kenneth Branagh. Como método de estudo, adotaremos uma leitura
contextual para investigar como cada filme reescreve o romance na linguagem
cinematográfica.
O cinema, portanto, representa um elo com a literatura desde os primeiros anos
de sua invenção e desenvolvimento enquanto arte. Duzentos anos após sua primeira
publicação, Frankenstein, de Mary Shelley, é mais uma obra transformada pela
linguagem fílmica que tem sido adaptada em diversos períodos e culturas desde o
advento do cinema. Diante das dezenas de adaptações existentes, foi necessário
fazermos um recorte através de dois filmes produzidos em épocas diferentes -
Frankenstein (1931), de James Whale; e Mary Shelley’s Frankenstein (1994), de
Kenneth Branagh –, com o objetivo de apontar como cada contexto de produção
reescreve a obra de Mary Shelley, além de investigar quais traços narrativos o cinema
altera, adiciona ou apaga em comparação com a narrativa de 1818, tais como
personagens, cenas e espaços.
Os filmes, portanto, possuem contextos de produção distintos, tanto temporal
como tecnicamente, visto que os aparelhos técnicos para filmagem da década de 1930
eram menos avançados, se comparados aos da década de 1990. Além disso, a análise
leva em conta aspectos culturais e poéticas específicas do momento de cada adaptação,
traços que podem determinar como os diretores construíram seus filmes.
Frankenstein (1931), dirigido por James Whale e produzido pela Universal
Pictures dos Estados Unidos, é um dos principais filmes da cinematografia produzida a

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partir da obra de Mary Shelley. A fotografia indica uma aproximação com a estética do
film noir do período, uma característica dos filmes em preto e branco produzidos nas
décadas de 1930 e 1940, que exploravam narrativas investigativas situadas em um
cenário sombrio. O filme de Whale, no entanto, se insere no gênero terror. A narrativa
altera os nomes dos seguintes personagens: Victor é Henry Frankenstein (interpretado
por Colin Clive), e o amigo Clerval chama-se Victor Moritz (atuado por John Boles).
Mae Clarke faz o papel de Elizabeth. E, por fim, o monstro é interpretado por Boris
Karloff (ver Fig. 1, abaixo), um dos atores ícones do cinema de terror da época. Sua
imagem como o monstro de Frankenstein é uma referência na história do cinema.

Fig. 1 – O monstro de Frankenstein

A narrativa em questão apresenta algumas alterações significativas em


comparação com o texto de partida. Inicialmente, há uma espécie de apresentação do
enredo do filme, com um ator informando o espectador sobre o que a história trata. Em
seguida, o filme mostra um médico roubando um cadáver de um cemitério logo após o
enterro. Ao longo dos poucos mais de sessenta minutos da narrativa fílmica, Henry
Frankenstein é caracterizado por uma loucura acentuada, obcecado por seu experimento
científico. Em resumo, o médico é expulso da faculdade de medicina por desenvolver
práticas médicas ilegais; assim, Henry se isola em uma mansão abandonada afastada da
cidade onde constrói seu laboratório. O cientista possui um ajudante de nome Fritz,
sendo este um personagem adicionado na história, que é responsável por roubar um
cérebro da faculdade onde Henry estudava. O cérebro utilizado no experimento, no
entanto, seria de um criminoso, o que faz com que o monstro, quando construído,
desenvolva uma personalidade violenta.

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O monstro, mantido em cativeiro até então, assassina Fritz, mas na fuga é


contido por Frankenstein e seu antigo professor, Dr. Waldman, que lhe aplica uma
injeção para matá-lo. Contudo, enquanto Frankenstein retorna para sua residência na
Suíça onde os preparativos para seu casamento com Elizabeth estavam sendo
organizados, Dr. Waldman fazia alguns experimentos na criatura adormecida, que
retoma a consciência e assassina o médico. A partir desse momento, o monstro
reaparece para Frankenstein no seu casamento. Por fim, há o clímax da narrativa,
quando Frankenstein é levado pelo monstro até um moinho. Lá, os dois lutam,
Frankenstein é jogado ao chão, e o monstro é incendiado pelos homens que o
perseguiam (ver Fig. 2).
Fig. 2 – Moinho em chamas

Diferentemente da narrativa literária, o filme se encerra com Frankenstein e


Elizabeth vivos, reescrevendo, desse modo, a história de Mary Shelley. Podemos
associar essa construção como uma prática da cinematografia da época, que buscava
finais felizes como forma de agradar ao público, além de tentar fornecer uma espécie de
alento no início dos anos 1930, período ainda sob os efeitos da Grande Depressão
econômica de 1929 nos Estados Unidos. Assim, o cinema funcionaria como uma mídia
capaz de gerar um sentimento de relaxamento e/ou esperança diante dos problemas da
vida. Portanto, o contexto político e histórico em voga na época influenciou no tipo de
reescritura observado no filme, produzindo imagens diferentes do romance, publicado
no século anterior.
O contexto de produção do filme Mary Shelley’s Frankenstein [Frankenstein de
Mary Shelley, em português], do diretor, ator e roteirista Kenneth Branagh, por sua vez,
é totalmente diferente em relação à adaptação de James Whale. Além da modernização
dos equipamentos cinematográficos, a década de 1990 contava com preocupações

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estéticas diferentes, especialmente porque o público de cinema possuía outra


maturidade. As preocupações político-ideológicas também eram outras, não havendo a
necessidade de gerar nenhum tipo de função catártica entre os espectadores.
O filme de 1994 é estrelado por Kenneth Branagh que, além de diretor, também
assume o papel de Victor Frankenstein; Robert de Niro atua como o monstro; e Helena
Carter interpreta Elizabeth. A narrativa fílmica de Branagh segue uma linha semelhante
à apresentada no livro de Mary Shelley, especialmente ao modo como a história se
desenvolve, com Victor Frankenstein sendo encontrado no Polo Norte pelo capitão
Robert Walton, quando aquele passa a relatar a sua história desde o princípio. Notamos
que o próprio nome da escritora no título do filme sugere um intertexto explícito, ou
mesmo uma homenagem à figura da escritora. No entanto, o diretor faz algumas
alterações importantes ao longo da história, gerando um certo teor de dramaticidade e
acentuando a violência, característica do cinema contemporâneo, com um público ávido
por ação e drama. A própria escolha do elenco também influencia no tipo de interação
exigido para a ampliação dos espectadores.
Inicialmente, Victor Frankenstein é apresentado como um jovem estudioso.
Porém, a morte da mãe no parto do irmão mais novo cria um motivo para o personagem
desejar a vida eterna e pôr fim ao sofrimento humano. Na faculdade de medicina ele
conhece o professor Krempe, com quem compartilha experiências eletromagnéticas com
o intuito de gerar a vida em matéria morta. Após a morte de Krempe, Victor herda a
tarefa de continuar os seus estudos e constrói uma máquina capaz de realizar o seu
desejo.
Mesmo desaconselhado pelo amigo Henry Clerval (interpretado por Tom
Hulce), Victor dedica-se à missão de descobrir o segredo da vida. Ele fabrica um ser a
partir de diferentes partes de cadáveres e usa o cérebro do próprio professor Krempe
para concluir seu trabalho. Com o sucesso do experimento, Victor percebe que sua
criação, no entanto, consistia em um erro, um defeito que jamais poderia ser posto em
prática. Após o nascimento do monstro, Victor, acreditando que ele estaria morto,
retorna para Genebra onde, finalmente, casar-se-ia com Elizabeth. Dessa forma, o filme
explora bem a atmosfera do gótico presente no livro de Mary Shelley ao mesmo tempo
em que constrói uma narrativa psicológica em que tanto Victor quanto a criatura estão
implicados.

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A loucura do monstro é realçada quando ele perambula pelas ruas e é expulso


pelos moradores. Ao fugir do laboratório de Victor, ele carrega consigo o diário usado
ao longo do processo de sua fabricação, e é a partir desse objeto que a narrativa liga
ambos os personagens novamente no restante do filme. A criatura passa um período nos
arredores de uma cabana na floresta onde uma família reside. Lá ele aprende a ler e a
comunicar-se. Nesse aspecto, observa-se uma aproximação com o romance de Mary
Shelley. Na ocasião, o monstro percebe a sua real fisionomia e abominável aparência, o
que espanta a família do local. Esse é um momento de transição importante na narrativa,
quando o monstro decide vingar-se do seu criador (ver Fig. 3).

Fig. 3 – O monstro jura vingança a Frankenstein

Os eventos seguintes são marcados por uma extrema violência, o que gera maior
dramaticidade ao filme. Destacamos as mortes do irmão pequeno de Victor pelas mãos
do monstro, e a morte de Justine na forca, acusada injustamente de assassinar a criança.
Vale ressaltar que, esteticamente, a narrativa possui quadros com pouca duração em
segundos, além de rápidas mudanças de cenas que valorizam o movimento e a ação dos
personagens. Essa construção fílmica – montagem acelerada – permeia toda a narrativa,
juntamente com a trilha sonora e planos frontais dos rostos dos personagens,
especialmente do monstro, que muito bem definem o tom do filme na geração de um
drama violento.
Um dos momentos mais marcantes da narrativa é o encontro de Victor
Frankenstein e sua criação nas montanhas gélidas da região de Genebra. A criatura
demonstra o desejo de ter uma companheira e ordena que Victor construa uma fêmea
para ele. Aparentemente, o cientista decide proceder com o plano, mas abandona o
projeto quando vê o corpo de Justine sendo entregue pela criatura para que Victor lhe

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devolvesse a vida. A partir desse momento, a narrativa acentua a aparência demoníaca


do monstro, especialmente quando ele adentra o quarto de Elizabeth, arranca-lhe o
coração e mostra-o para Frankenstein como prêmio por sua vingança (Fig. 4).

Fig. 4 – O monstro assassina Elizabeth

Desesperado pela morte de sua amada, Victor leva o corpo de Elizabeth para o
seu laboratório com o propósito de revivê-la. Frankenstein consegue trazê-la de volta a
partir do corpo de Justine, no entanto, aterrorizada pela sua aparência, Elizabeth ateia
fogo ao próprio corpo e se joga do prédio. Essa construção representa uma novidade nas
narrativas produzidas a partir de Frankenstein. É exatamente esse episódio no filme que
o diferencia das demais adaptações e do próprio romance de Mary Shelley, pois o filme
de Branagh modifica a história com o intuito de criar, no espectador, maior apelo visual,
bem como um conflito extra do ponto de vista da dramaticidade.
Por fim, a narrativa se encerra no Polo Norte, local onde Victor havia sido
encontrado pelo capitão Walton. Victor morre logo após terminar de contar a sua
história. O monstro, por sua vez, chora a perda do seu “pai”. A sequência final do filme
apresenta a criatura com o corpo do seu criador nos braços, enquanto as chamas
consomem ambos.
Fig. 5 – O monstro segura o corpo de Frankenstein entre chamas

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ISSN: 2317-2347 – v. 8, n. 1 (2019)

O fogo, aqui, tem um papel diferente em relação à adaptação de 1931, na qual o


monstro demonstra medo e morre sozinho no moinho de vento. Em Mary Shelley’s
Frankenstein, no entanto, criador e criatura perecem juntos. Nesse sentido, a história
permanece em movimento, criando novas imagens se comparada à narrativa da escritora
inglesa e às demais adaptações produzidas.

Conclusão

À guisa de conclusão, observa-se que ambas as adaptações de Branagh e de


Whale ampliam o imaginário acerca da obra Frankenstein, especialmente por consolidar
a história literária no sistema cinematográfico em épocas diferentes, o que coloca o
romance como uma espécie de texto fonte para o cinema.
Whale reescreve a narrativa de Mary Shelley no cinema de modo que os
personagens principais representem outro sentido narrativo como provável resposta para
o público da década de 1930 nos Estados Unidos. Branagh, por sua vez, traduz a obra
reforçando traços de violência e conflitos psicológicos, características do cinema
contemporâneo. Assim, diferentes interpretações ocorreram no processo de adaptação
dos filmes. Os contextos culturais de produção influenciam na forma como cada
narrativa fílmica é construída e, portanto, torna-se necessário investigá-los para
compreender as obras, suas diferentes leituras e sentidos emitidos.
Dessa forma, o cinema, através das várias adaptações/traduções ao longo de sua
existência, e em particular os filmes aqui analisados, transformou um personagem
literário em um ícone da sétima arte, o qual continuará sendo reescrito e revivido nas
telas enquanto existir imaginário humano.

REFERÊNCIAS
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Recebido em: 20/05/2018


Aceito em: 10/08/2018

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