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Quando Lgbts Invadem Escola Mundo Trabalho
Quando Lgbts Invadem Escola Mundo Trabalho
Quando Lgbts Invadem Escola Mundo Trabalho
Alexandre Bortolini
EQUIPE ACADÊMICA
Coordenador/UNIRIO: Diógenes Pinheiro
Coordenadora/Colégio Pedro II: Cláudia Reis
Estudantes do Programa de Pós-graduação em Educação
(PPGEdu): Andréa Del Pilar Lozano Bohórquez (Mestrado),
Ana Paula de Paiva Figueiredo (Mestrado), Evelyn de Souza
Lima (Mestrado), Francisco Pinto de Azevedo (Mestrado),
Gabriel Monteiro Gonzaga (Mestrado), Karine Rezende
(Mestrado), Luiz Gustavo Prado de Oliveira (Doutorado),
Rachel Alonso de Azevedo (Doutorado)
EQUIPE TÉCNICA
Secretária executiva: Adriana Abib
Administrativo: Marcos Vicente Di Paolo Coelho e Marcelo
Segreto
CONSELHO EDITORIAL
Eric Plaisance
Cerlis/Sorbonne e Professor visitante na UNIRIO, 2020/21
Pedro Pontual
Presidente honorário do Conselho de Educação Popular da
América Latina (CEAAL) e Professor visitante na UNIRIO, 2020/21
Regina Novaes
UFRJ e Professora visitante na UNIRIO, 2019/20
PROJETO GRÁFICO
Estúdio Malabares | Ana Dias
DIAGRAMAÇÃO
Estúdio Malabares | Ana Dias e Anna Letícia Janot
FOTOGRAFIAS
As fotografias que abrem os capítulos foram adquiridas em
“Tem que ter”, o primeiro banco de imagens brasileiro focado
na representatividade LGBTI+.
temqter.org
ISBN 978-65-00-11332-7
20-47740 CDD-305.3
Índices para catálogo sistemático:
-
ESTA PUBLICAÇÃO REÚNE VOZES QUALIFICADAS
do campo de estudos sobre direitos de pessoas LGBTs
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais),
que trazem reflexões surgidas tanto da militância social
e política quanto de pesquisas acadêmicas. Em comum,
essas experiências narram as recorrentes, porém distintas
dificuldades experimentadas por pessoas LGBTs para
permanecerem e serem respeitadas na escola e no mundo do
trabalho. Apesar dos avanços conquistados nos últimos anos,
há muitos desafios para a superação da discriminação por
orientação sexual e identidade de gênero, a homotransfobia;
desafios esses, que são agravados pelo fato de inexistirem
leis específicas no Brasil que penalizem a discriminação
de pessoas LGBTs, já que a legislação vigente equipara a
homotransfobia ao racismo, desconhecendo as características
distintas de cada tipo de discriminação. As reflexões aqui
reunidas demonstram a necessidade de se avançar no debate
sobre a construção de um arcabouço legal capaz de garantir
igualdade de direitos a sujeitos muito diferentes, mesmo
dentro do próprio campo LGBT.
7
Porém, a existência da lei não conduz automaticamente
à igualdade de gênero se não houver, também, uma educação
continuada de respeito à diversidade, pois mudanças de
mentalidades levam tempo e demandam um esforço
permanente. No campo da luta política LGBT, é um trabalho
que já envolveu várias gerações de educadores e ativistas
sociais, cujos resultados temos colhido nos últimos anos e
podem ser vistos na expansão das liberdades individuais e na
maior discussão sobre igualdade de oportunidades a partir
das diferenças de gênero, tanto na escola quanto no mundo
do trabalho. Portanto, temos caminhado para uma maior
visibilidade das profundas exclusões vivenciadas por esses
sujeitos e corpos, o que é fundamental para o Brasil superar a
sua marca de ser um país especialmente desigual e violento
para a população LGBT. Por isso, combater a homotransfobia
continua sendo a principal demanda da comunidade LGBT,
o que somente é possível de ser feito com a mobilização
permanente das entidades da Sociedade Civil, mas, também,
com participação fundamental do Estado, em suas várias
instâncias, atuando na formulação de políticas públicas que
incluam a questão LGBT no campo dos Direitos Humanos,
como uma das prioridades para o avanço da democracia no
país, que precisa caminhar em consonância com os anseios e
valores progressistas do século XXI.
Apresentação
11
interferência cromática sobre foto de Jessica Kindermann | temqueter.org
13
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
sobre
Alexandre Bortolini
gênero
na escola?
Pode falar
SE VOCÊ TRABALHA COM EDUCAÇÃO NO BRASIL,
certamente já ouviu uma palavra que tem ganhado os
holofotes em muitas polêmicas nos últimos anos: GÊNERO.
Talvez você tenha conhecido o termo em alguma aula,
palestra ou livro que leu. Talvez o tenha visto ou ouvido
pela primeira vez em um vídeo ou uma postagem nas redes
sociais. Talvez essa palavra tenha chegado até você pelas
mãos de um especialista ou embalada em fakenews e teorias
da conspiração disseminadas na internet. Diante de tanta
(des)informação, fica difícil construir um entendimento.
O que significa, afinal, “gênero”? Qual a utilidade desse
conceito para a educação escolar? E por que tantas pessoas
têm medo de que essa palavra seja usada na escola? A
proposta deste texto é responder a essas perguntas de
forma simples. Ao longo dos parágrafos, além de uma
explicação geral, você terá também acesso a informações
mais detalhadas sobre cada argumento trazido aqui, podendo
assim se aprofundar um pouco mais no tema. Vamos lá?
15
globo que mostravam como diferentes sociedades atribuíam
significados muito diversos ao masculino e ao feminino.
O que esses pesquisadores perceberam? Que o que definia
uma “mulher” ou um “homem” não era uma constante em
todas as culturas, pelo contrário, era possível identificar uma
grande variação cultural dos sentidos de masculinidade e
feminilidade nos mais diferentes povos que habitavam esse
planeta. Variações que contrastavam, às vezes de maneira
bastante radical, com o que esses pesquisadores tinham
como referência em seus países de origem2 . Em algumas
culturas não era necessariamente o corpo, ou só o corpo,
que determinava se uma pessoa era um homem ou uma
mulher. Em outras, era possível para alguns indivíduos
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
16
reuniam ao mesmo tempo em si atributos masculinos e
femininos. Outras cultuavam divindades que transitavam ou
misturavam essas posições. Mesmo em culturas onde havia
um limite muito demarcado entre masculino e feminino, o
significado, as características, as práticas e lugares sociais
atribuídos a homens e mulheres podiam ser muito diferentes
daquelas encontradas nas sociedades europeias3 .
Se a Antropologia ajudava a identificar a variação entre
culturas, através da História era também possível perceber
como os sentidos atribuídos a homens e mulheres mudavam
ao longo do tempo. Em uma mesma sociedade o significado
de feminino e masculino se transformava com o passar das
décadas e dos séculos. O lugar e a função social delegada
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
17
evidente que não era possível dizer que existia uma única
definição de masculino e feminino compartilhada por todas
as culturas, também ficava evidente que a definição que
se tinha no presente não esteve sempre aí, ao contrário, se
modificava com o passar do tempo4 .
Essas pesquisas foram se acumulando e começaram
a colocar em xeque a ideia de uma “diferença sexual”
inata, fixa e universal como causa e explicação da função
social e das relações entre homens e mulheres. Afinal, se
os significados de masculino e feminino variavam tanto
no espaço quanto no tempo, então esses significados não
podiam ser atribuídos a qualquer “natureza” biológica, mas
eram produzidos pelas culturas e se transformavam ao
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
18
atribuídos ao masculino e ao feminino. Gênero se tornou
então o conceito científico para compreender como uma
série de práticas, relações e significados, antes pensados
como naturais, fixos e universais, eram, em verdade,
produzidos pela cultura5 .
Esse conceito deu muita força a movimentos que
lutavam por uma mudança do lugar da mulher na sociedade
que lhes garantisse direitos iguais aos dos homens. Servia
para desmontar o argumento de que os “papéis” atribuídos
a homens e mulheres eram “naturais”. Se as relações entre
homens e mulheres nem “sempre foram assim”, nem eram
Segundo Sexo (1949), a ideia de que não se nasce mulher, torna-se mulher.
Essa afirmação já chamava atenção para a dimensão social da experiência
feminina e remetia a uma distinção entre como nascemos e quem nos
tornamos a partir da vivência na nossa cultura. Mas foi o psicólogo John
Money, neozelandes radicado nos Estados Unidos, o primeiro a usar a
palavra “gênero” para se referir à dimensão social da distinção entre homens
e mulheres. Money trabalhava com crianças intersexo, ou seja, cuja formação
corporal trazia características que tornavam difícil enquadrá-las binariamente
no modelo de dois sexos. No seu trabalho, ele percebeu que as pessoas se
identificavam e se comportavam de acordo com como foram criadas, mais
do que com o sexo ao qual efetivamente pertenceriam. Essa distinção entre
a anatomia e o comportamento foi traduzida conceitualmente como uma
diferença entre sexo (dimensão física) e gênero (dimensão social). O termo
gênero foi rapidamente apropriado por várias teóricas que estudavam a
experiência das mulheres e as desigualdades entre entre os sexos. Gênero
passou a ser - e segue sendo - um termo recorrente no pensamento
científico, usado de formas variadas, mas sempre para se referir à dimensão
social, cultural e histórica da distinção masculino/feminino.
19
assim “em todos os lugares”, isso significa que elas não
estavam pré-determinadas e podiam ser transformadas aqui
e agora. O casamento como destino natural, a maternidade
como missão, a submissão da esposa ao marido, todas essas
noções vão ser fortemente abaladas quando passa a ser a
cultura, e não a natureza, quem determina a função social de
mulheres e homens.6
A sexualidade é um dos aspectos da vida que foram
fortemente impactados a partir do surgimento de uma
perspectiva de gênero. A ideia de uma diferença sexual
inata está na base de uma compreensão das nossas práticas
sexuais e afetivas que naturaliza a heterossexualidade, que
a estabelece como “natural”, a partir da qual todas as outras
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
20
serão percebidas como desvio ou doença7. Também nesse
campo foi possível demonstrar, através de pesquisas, como o
exercício da sexualidade humana foi e segue sendo bem mais
diverso e variável do que qualquer modelo supostamente
fixo e universal. Como práticas sexuais hoje condenadas já
foram socialmente valorizadas. Como a definição de família
é bastante variável e pode tomar formas muito distintas em
diferentes culturas8.
relacionar). Se aquele bebê foi colocado na caixa dos homens, ele vai aprender
que homens devem reprimir suas emoções, que homens podem e devem dar
vazão à sua libido e que o objeto de desejo do homem é a mulher. Se a caixa
foi a das meninas, ela vai aprender cedo que mulheres são mais sentimentais,
destinadas à maternidade e que fazer-se bonita é fundamental para conquistar
seu objeto de desejo afetivo-sexual: os homens. É sobre este ordenamento
de gênero que vamos vivenciar a experiência da sexualidade, tendo a
heterossexualidade como modelo e norma.
21
Se a sexualidade foi um campo radicalmente afetado pelo
conceito de gênero, ela não foi o único. Uma perspectiva de
gênero passou a ser fundamental para compreender múltiplas
dimensões da experiência humana: a formação das nossas
subjetividades, a construção da nossa identidade, nossas relações
de trabalho e a distribuição dos recursos materiais que ele gera,
a nossa linguagem, os nossos sistemas políticos. Da economia
à educação, da ciência política à psicologia, existe hoje um vasto
campo interdisciplinar de pesquisa científica organizado em
torno desse conceito a que chamamos: estudos de gênero.
Um dos grandes desafios hoje desse campo de estudo
é não só perceber como as relações de gênero variam, mas
como elas foram e seguem sendo produzidas, reproduzidas
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
28
pênis ou com uma vagina - corresponderiam certos tipos
distintos de personalidade, expressão e identidade. Uma
correspondência cisgênera que é dita “natural”, mas que
funciona na verdade como uma norma. Norma que será
insistentemente ensinada, reforçada, reafirmada a todo
momento: do chá revelação à loja de brinquedos, do brinco
que fura orelha de bebês até as violências “corretivas” para
ensinar “meninos a se comportarem como meninos” e
“meninas a se comportarem como meninas”. Essa é uma
“ideologia” transfóbica, que violenta qualquer pessoa
que ouse transgredir essa norma e não “corresponder”
às expectativas de corpo, comportamento, expressão ou
identificação que essa mesma norma estabelece. Essa
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
29
vulnerabilizar sua existência e alimentar a transfobia, essa
“ideologia” está entre as causas da menor expectativa de
vida de pessoas trans. Isso mesmo: uma escola transfóbica
contribui para a morte11 .
Essa “ideologia” sexista é também heterossexista, ou
seja, opera como se a heterossexualidade fosse a única e
natural forma de exercício de prazer, afeto e relacionamento.
Reforça essa noção nas imagens dos livros didáticos, na
contação de histórias, nas aulas de biologia. Essa “ideologia”
é homofóbica, bifóbica, lesbofóbica, panfóbica, porque
30
invisibiliza e condena qualquer orientação sexual e afetiva que
não seja a heterossexualidade. Nas escolas onde ela impera,
o preconceito e a discriminação são parte do cotidiano,
afetando de forma marcante a experiência das pessoas que
vitimam12 . Mesmo quando se diz “tolerante”, essa “ideologia”
heterossexista não admite reconhecer e valorizar, em pé de
igualdade, a vivência de lésbicas, gays, bi ou pansexuais. Suas
histórias serão mantidas “no armário” e falar sobre qualquer
coisa fora do padrão heterossexual será descrito como algo
danoso, um “perigo” para as crianças e adolescentes. Ao
mesmo tempo que “condena” a violência, essa “ideologia”
heterossexista alimenta os estigmas que “amolam as facas”
dessa mesma violência que ela ajuda a produzir.
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
31
Essa “ideologia” sexista, heterossexista, transfóbica e
racista define um único arranjo familiar - pai, mãe e filhos
(cisgêneros) como “a” família, invisibilizando e desqualificando
todas as outras formas que uma família pode ter. Além de
heterossexista e cisnormativo, esse “modelo” de família
é machista, porque imagina um homem como “chefe” e
“provedor” da casa. É também um modelo classista (quando
não descaradamente racista), que pressupõe certas condições
(financeiras, de moradia, escolarização etc.) que grande parte
das famílias brasileiras não alcançam. É em relação a esse
“ideal”, que todas as famílias serão medidas. E aquelas que
não se encaixem em algum aspecto desse modelo serão
consideradas “desestruturadas” e percebidas como incapazes
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
32
Essa “ideologia” carregada de sexismo, lgbtfobia e
racismo produz impactos extremamente negativos no
desenvolvimento das crianças, adolescentes e jovens. Ao
contrário do que professa, ela não protege, mas aumenta
a vulnerabilidade. Ao negar informação e estigmatizar
o sexo, ela impede que adolescentes e jovens conheçam
o próprio corpo e consigam construir formas saudáveis
e positivas de relacionamento. Contribui para que
esses jovens se envolvam em relações abusivas, sem
que muitas vezes sejam nem mesmo capazes de
reconhecer as violências que sofrem ou, pior, faz com
que se entendam culpados por aquilo que lhes vitima.
Ao interpretar qualquer discussão sobre sexualidade
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
34
E isso inclui discriminar famílias ou pessoas porque não
seguem o modelo cis-heteronormativo. E não, tirar a menção
explícita a orientação sexual ou racismo ou identidade
de gênero não significa que a escola está desobrigada a
enfrentar a lgbtfobia nem a discriminação racial. Homofobia
é crime no Brasil. A Constituição Federal fala na superação de
quaisquer formas de discriminação, portanto, estão incluídas
aí a homofobia, a lesbofobia, a transfobia e a misoginia,
formas de discriminação já descritas e fundamentadas em
diferentes estudos e pesquisas. E como promover o princípio
da igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola previsto na Lei de Diretrizes e Bases sem enfrentar
diretamente as representações e práticas que estigmatizam,
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
35
Os principais marcos legais que regem a educação
brasileira são enfáticos quanto à necessidade da superação
de desigualdades, discriminações e violências não só na
escola, mas a partir da escola, o que traz implicações diretas
ao currículo. Ignorar estes temas, ou pior, propositalmente
restringir sua abordagem na escola constitui não apenas
negligência, mas franco desrespeito aos princípios que regem
a educação brasileira, fundamentados na Constituição e em
leis específicas16.
Se a base legal impõe o enfrentamento destes temas
na escola, o conjunto das diretrizes educacionais brasileiras
aponta a necessidade de trabalhar questões ligadas a gênero
e sexualidade desde a educação infantil17 até o ensino
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
36
na padronização de comportamentos ou na reprodução
de modelos pré-definidos, mas, ao contrário, na reflexão
crítica, na autonomia dos sujeitos, na liberdade de acesso
à informação e ao conhecimento, no reconhecimento das
diferenças, na promoção dos direitos e no enfrentamento
a toda forma de discriminação e violência. Tal qual o PNE,
a Base Nacional Curricular Comum, embora não cite
explicitamente a palavra gênero, dá fundamentação para
que estes temas sejam trabalhados em todas as etapas da
educação básica, em uma perspectiva que promova a reflexão
crítica e os direitos humanos19 .
37
Especificamente sobre o tema, em 2018 o Conselho
Nacional de Educação publicou uma resolução (BRASIL,
2018) que define o uso do nome social de travestis e
transexuais nos registros escolares. Pela norma, que tem
força sobre todos os sistemas de ensino, alunes podem
solicitar o uso do nome social durante a matrícula ou
a qualquer momento, por meio de seus representantes
legais, no caso de menores de idade, e sem a necessidade
de mediação para os maiores de dezoito anos. No
primeiro artigo, a resolução é enfática: “Na elaboração e
implementação de suas propostas curriculares e projetos
pedagógicos, os sistemas de ensino e as escolas de educação
básica brasileiras devem assegurar diretrizes e práticas com
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
38
em função de orientação sexual e identidade de gênero de
estudantes, professores, gestores, funcionários e respectivos
familiares”.
A despeito deste arcabouço legal, pesquisas educacionais
evidenciam que nossos ambientes escolares seguem
marcados pela desigualdade, discriminação e violência no
que diz respeito a gênero e orientação sexual. Uma realidade
que contradiz os princípios fundantes do ensino e que
ameaça o direito à educação de grande número de pessoas.
E que nos coloca o compromisso de persistir, mesmo em um
contexto desfavorável, na garantia da liberdade de aprender
e ensinar. Educadores e educadoras que querem trabalhar
gênero e orientação sexual na escola: não se intimidem.
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
Referências
ALLEN, Paula Gunn. The Sacred hoop: Recovering the feminine in
American Indian traditions: With a new preface. Beacon Press, 1992.
40
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVADO
BRASIL DE 1988.
41
CARRARA Sérgio, FACCHINI Regina, SIMÕES Júlio, RAMOS Silvia.
Política, Direitos, Violência e Homossexualidade: Pesquisa 9a Parada
do Orgulho GLBT São Paulo. Rio de Janeiro, CEPESC, 2006; Disponível
em http://www.pagu.unicamp.br/sites/www.ifch.unicamp.br.pagu/files/
julio05.pdf acesso 05/08/2014.
42
IBGE. Novos arranjos familiares: Família mosaico e outras formas de se
fazer um lar. Retratos a Revista do IBGE. Dez 2017
43
interferência cromática sobre foto deIsadora Heimig | temqueter.org
Construcões
identitárias
na escola:
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
afinal, do
que estamos
falando?
Cláudia Reis
Carlos Souza Santa Brígida
Joice Farias Daniel
45
AS REFLEXÕES AQUI APRESENTADAS RELATAM A
análise de vivências acumuladas na realização de formação
de professores da Educação Básica, sobretudo Educação
Infantil (EI) e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental (AIF)
no campo do gênero e da sexualidade, por aproximadamente
vinte anos. São flashes de situações vividas como
dinamizadores de discussões entre professores, professoras
cisgêneras em sua maioria, com ênfase na experiência mais
recente ocorrida em 2019. Um curso de extensão, com
noventa horas, que foi ofertado a professores regentes em
EI e AIF de escolas públicas e privadas. Intitulado Crianças
e Infâncias: construções identitárias numa perspectiva
interseccional, o curso teve lugar no Colégio Pedro II (CPII)
e foi realizado em parceria com o Laboratório de Pesquisa,
Estudos e Extensão em Gêneros, Sexualidades e Raça em
Educação e Direitos Humanos (Ge-Ser) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A pesquisa-ação foi a
metodologia escolhida para oportunizar aos cursistas a
experiência de aprendizagem e pesquisa em uma mesma
proposta educativa. O relato apresentado aqui ainda não
apresenta resultados finais dessa pesquisa, contudo indica
as inquietações recorrentes entre professores dessas
modalidades de ensino que buscam formação nas temáticas
identitárias e nossa percepção sobre continuidades e rupturas
ideológicas na cena docente.
1. Introdução
O presente trabalho pretende apresentar algumas
experiências a partir de atividades de formação de
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel
47
importantes oportunidades e desafios para a pesquisa
interdisciplinar e comparativa sobre a sexualidade.
(PARKER, R. In: Louro, G. pág.125, 2000)
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel
48
desses temas causa impactos em curto, médio e longo prazos
na formação dos sujeitos, como podemos verificar nos dados
levantados sobre assassinatos motivados por ódio, suicídio
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel
49
que abordassem questões no campo da raça, do gênero e da
sexualidade, dentro e fora dos espaços formais de ensino.
Uma das pesquisas desenvolvidas por esse laboratório sugeria
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel
52
LGBT e com temas de pegada progressistas, preocupamo-
nos desde o início com a nomeação do curso. Queríamos a
aprovação e em conjunto decidimos que não colocaríamos
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel
55
Não é um somatório de identidades, a perspectiva
interseccional analisa quais condições estruturais atravessam
corpos, não abandona uma irmã travesti que está sofrendo
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel
56
equipe do Laboratório Ge-Ser e convidados que apresentavam
trabalhos acadêmicos, didáticos e/ou vivências relacionadas
aos temas estudados em cada encontro. Inspirados pelos
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel
58
tomam conhecimento estabelecem com ele, é significativo
nos propomos a grafar já em seu título as palavras “crianças”
e “infâncias”, demarcando a nossa abordagem mais
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel
60
Compreendermos a complexa conjuntura social e a
diversidade que há, por exemplo, em uma cidade como o Rio
de Janeiro, é primordial para entendermos a urgência em
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel
61
6.A relevância das categorias identitárias de gênero e
sexualidade na infância
Desde o início dos módulos, observamos que o/as cursistas
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel
63
Falar sobre construção identitária na educação formal
não constitui novidade curricular, sobretudo na Educação
Infantil e nos Anos Iniciais do ensino Fundamental. Os
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel
66
seus atores estão dispostos a realizar mudanças inclusivas,
sobretudo no campo do gênero e da sexualidade? As ondas
conservadoras que vivenciamos atualmente encontram eco
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel
Referências
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade?. Belo Horizonte:
Letramento; Justificando, 2018.
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro;
Polén, 2019.
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2 ed. Rio de
Janeiro: LTC, 1981.
COUTO J R, D.R.; POCAHY, F.; OSWALD, M.L .M .B. Crianças e
infâncias (im) possíveis na escola: dissidências em debate. Periódicus.
Salvador, BA. n. 9, v. 1, p. 55 – 74. Maio-out. 2018. ISSN: 2358-084
DELORS, J. et al. Educação: um tesouro a descobrir: relatório para a
UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI.
São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 1998.
KRAMER. Sônia. A infância e sua singularidade. In: BRASIL. Ministério
da Educação. Ensino Fundamental de nove anos: orientações para a
inclusão da criança de seis de anos de idade. Brasília: FNDE, 2006.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 12. ed. São Paulo:
Cortez, 2003.
67
interferência cromática sobre foto de Ricardo Matsukawa | temqueter.org
“DEFENDO QUE
EXISTAM MAIS HOMENS,
MAS NÃO É FÁCIL” :
NARRATIVAS DE
PROFESSORES,
GESTORES E
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
RESPONSÁVEIS E
SUAS VISÕES SOBRE
O HOMEM NA
EDUCAcÃO INFANTIL
Jonathan Aguiar
Paulo Melgaço da Silva Junior
Matheus Pinheiro
69
O PRESENTE ARTIGO TEM POR OBJETIVO
compreender os desafios e potencialidades de ser/ter
professor do sexo masculino da/na Educação Infantil.
Apresentamos como base teórica os estudos sobre cuidar
e educar, documentos da legislação brasileira, e os estudos
sobre gênero e masculinidades. Trata-se de um estudo
qualitativo no qual realizamos conversas via WhatsApp com
três professores homens, duas gestoras, e um pai e uma
mãe de uma criança que teve um professor homem na pré-
escola. Em um primeiro momento, os(as) entrevistados(as)
enunciaram em suas narrativas as tensões e dificuldades
enfrentadas pelos professores em suas atividades; já
em um segundo momento, enfatizaram caminhos de
lutas e resistências. O estudo revelou a importância do
trabalho da equipe diretiva na recepção e acolhimento
do profissional. Também mostrou que as questões de
gênero e masculinidades não são determinantes para o
desenvolvimento do trabalho na Educação Infantil. As
relações entre professor, aluno(a) e comunidade escolar
devem ser construídas na base do diálogo, do conhecimento
e da prática pedagógica.
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil”: Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
1. Introdução
Nos últimos anos, têm-se mobilizado estudos acerca da
atuação do homem no magistério, sobretudo no campo da
Educação Infantil (AGUIAR, 2019; SILVA, 2019; PRADO;
ANSELMO, 2019; SCIOTTI; PEREZ; BELLIDO, 2019; SILVA
JÚNIOR; MAIA; IVENICKI, 2018; ABREU, 2018). Com
isso, o que se tem observado, tanto na literatura como nas
nossas vivências, é que os homens ainda são minoria como
professores de crianças. Já pararam para observar os espaços
de Educação Infantil? Qual a figura no imaginário social que
se preocupa com o cuidar/educar das crianças pequenas?
Entretanto, toda a escrita desta investigação tem
como foco o professor homem que trabalha em turmas de
maternal e/ou pré-escola. Tivemos como objetivo norteador
compreender os desafios, as tensões e as potencialidades
de ser/ter professores do sexo masculino da/na Educação
Infantil, por assim vivenciarem um espaço onde a
predominância é do sexo feminino. Nesse sentido, segundo
as palavras de Rabelo (2010), os estudos que se preocupam
com essa temática são relevantes, apresentando “outras
vozes que ecoam nas escolas, ou seja, indivíduos capazes
de exercer esta profissão por gosto e independentemente
do seu sexo, mas que também sofrem com os problemas da
docência” (RABELO, 2010, p. 280). Ao se referir a problemas
da docência, a mesma autora ressalta a dimensão da
discriminação e os estereótipos que se criam a respeito
71
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
desse profissional, que chega à educação para trabalhar com
as crianças pequenas, por assim estarem “fora do lugar”,
disse Rabelo (2013).
Com isso, nos preocupamos em ampliar esta discussão,
incorporando as narrativas de mulheres que são gestoras no
campo da Educação Infantil e também de um grupo familiar,
sendo representado por uma mãe e um pai. Da mesma
maneira, homens que exercem a docência na Educação
Infantil em turmas de maternal e/ou pré-escola. Por fim,
quem acolhe os professores do sexo masculino que chegam à
docência na Educação Infantil? Qual é a visão de uma família
sobre atuação deles no magistério? Há tensões, aprendizagens
e desafios? O homem pode educar crianças? O que eles
pensam sobre essa configuração feminina nos espaços na
pré-escola e no maternal? Qual a visão das mulheres gestoras
quando um homem trabalha com crianças?
2. Metodologia
Este estudo é qualitativo (MINAYO, 2011; IVENICKI;
CANEN, 2016), por se ocupar das particularidades dos
discursos, dos significados, das aspirações, valores e falas
que não conseguem ser quantificáveis. Toda a sua análise
se preocupa com a subjetividade, trazendo reflexões e
críticas diante de um determinado fenômeno a ser estudado
(IVENICKI; CANEN, 2016), como é o caso da atuação dos
homens no magistério: na creche e pré-escola.
72
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
A partir dos objetivos descritos na introdução deste,
artigo realizamos conversas via WhatsApp 1 no mês de
maio de 2020, tendo ao todo sete (7) pessoas participantes
deste estudo. São elas2: três (3) professores homens que
trabalham na Educação Infantil (Felipe, Artur e William);
duas (2) mulheres que atuam como gestoras nesse espaço de
Educação Infantil (Beatriz e Roselene); e uma família: um (1)
pai (Gustavo) e uma (1) mãe (Manuela) de uma criança que
teve um professor homem na pré-escola.
Com essa clareza, é importante esclarecer que os
instrumentos que utilizamos para a produção deste artigo
perpassam a conexão do mundo virtual e real. Isso por
se tratar de uma investigação que se utiliza do aplicativo
WhatsApp para a aproximação entre pesquisadores
e participantes. Scribano (2017), em suas produções,
assinalava que o uso dessa ferramenta no campo das
ciências sociais e humanas implicaria a facilidade de
aproximar distanciamentos. Trocas de mensagens via
áudio, imagens e vídeos nos apresentam potencialidades
para descrever experiências, como “instrumento de
investigación social” (SCRIBANO, 2017, p. 13). Essa
escolha metodológica se dá pelo momento que estamos
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
enfrentando de pandemia devido à Covid-19, mas o caráter
ético, epistemológico e científico da pesquisa é de rigor e
credibilidade.
No que diz respeito ao perfil dos participantes desta
pesquisa, os professores homens possuem entre 19 a 24
anos. Os três (Felipe, Arthur e William) possuem curso de
formação de professores (antigo magistério); desse universo,
dois (Felipe e William) estão concluindo a graduação
em Pedagogia; e um (Arthur) já é pedagogo. Sobre a
especificidade da Educação Infantil e o campo de atuação,
Arthur e William trabalham na pré-escola com crianças de 4
a 5 anos e 11 meses; Felipe trabalha na creche com bebês de
aproximadamente 2 a 3 anos.
As duas (2) mulheres gestoras (Beatriz e Roselene)
sinalizaram que estão acima dos 45 anos de idade. Ambas
as profissionais possuem longa experiência na Educação
Infantil: Beatriz tem mais de 31 anos de experiência na
direção de creches e no trabalho com as crianças pequenas,
sendo mestre em educação, assistente social, além de ter
cursado formação de professores. Já Roselene possui 20 anos
de magistério, é especialista em literatura infantil, pedagoga
e normalista (por ter cursado antigo magistério), e atua
como chefe de departamento da Educação Infantil em uma
secretaria municipal de educação.
Manuela e Gustavo, os dois (2) responsáveis que
participaram deste estudo, têm idade acima de 25 anos. Não
possuem Ensino Superior, cursaram somente o Ensino Médio.
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
O roteiro da conversa online foi organizado de forma
semiestruturada, com uma única pergunta que foi enviada
individualmente para cada participante, que assim aceitaram
e autorizaram colaborar com este estudo.
Aos professores homens, foram questionados como
enxergam a docência na Educação Infantil e seu lugar de
atuação. Seguindo a mesma premissa para as gestoras,
perguntou-se como estas encaram o fato de existir poucos
homens atuando com crianças, e quais são os seus olhares
quando esbarram com homens na Educação Infantil.
Para os responsáveis, tivemos a seguinte questão
norteadora: “qual é a sua visão quando um homem cuida/
educa o seu filho/filha na creche ou na pré-escola?”.
No entanto, à medida que fomos recebendo as respostas,
ampliamos o diálogo, fazendo poucas intervenções do tipo
“me explica melhor”, “o que você quis dizer sobre isso?” e/ou
“esta é a sua opinião”. O propósito foi que os/as participantes
envolvidos/envolvidas ampliassem as suas narrativas
e se sentissem acolhidos e acolhidas por meio de uma
entrevista que aconteceu de modo virtual, através da troca
de mensagens de voz. Em um segundo momento, após as
conversas de áudio, optamos por transcrevê-las e analisá-las
ao longo deste artigo.
Assim, a realização das entrevistas, apesar de virtuais
por conta da pandemia, foram importantes para a ampliação
da proposta. Conforme Andrade (2014), as entrevistas “não
permitem dizer ‘uma’ ou ‘a’ verdade sobre as coisas e os
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
fatos, mas pode-se considerá-las como a instância central
que, somada a outras, traz informações fundamentais
acerca do vivido [...]” (p. 177). Dessa forma, entendemos
que as narrativas fazem parte do discurso, elas integram
as práticas sociais. Ao narrar, o sujeito está se construindo
e estabelecendo relações com o mundo em sua volta.
Assim, a narrativa favorece a feitura, a estruturação da
nossa identidade (SCHIFFRIN, 1994), possibilitando que
modifiquemos nossas relações com os outros e com o mundo
que nos cerca, segundo as ideias de Bastos (2005).
Nessa perspectiva, Delory-Momberger (2008, p. 56)
sublinha que:
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
torna-se possível compreender as narrativas como resultado
de experiências cotidianas vividas, nas quais, por sua vez,
podem ser consideradas históricas e denunciam o conjunto de
regras que as governou e as produziu.
Por esse caminho metodológico, as pessoas participantes
que narram suas histórias, visões e compreensões neste
estudo, são profissionais que trabalham e que de alguma
maneira vivenciam o universo da Educação Infantil, tanto
como família e, por outras vezes, como profissionais. Cabe
destacar que as escolhas destes participantes perpassaram os
nossos universos pessoais como pesquisadores.
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
de desenvolvimento e aprendizagem da criança e em sua
formação intelectual, social, estética, corporal e emocional.
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro O cuidado é um ato em relação ao outro e a si próprio
que possui uma dimensão expressiva e implica em
procedimentos específicos. O desenvolvimento integral
depende tanto dos cuidados relacionais, que envolvem
a dimensão afetiva e dos cuidados com os aspectos
biológicos do corpo, como a qualidade da alimentação e
dos cuidados com a saúde, quanto da forma como esses
cuidados são oferecidos e das oportunidades de acesso a
conhecimentos variados. (BRASIL, 1998a, p. 24).
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
Certamente, com base nos documentos (BRASIL,
1996, 1998a, 1998b, 1998c, 2010, 2013) que regulamentam
a Educação Infantil e sua oferta na Educação Básica
para o atendimento de crianças. Todavia, seu foco é no
profissional, sem distinção de sexo, etnia, gênero, orientação
sexual, raça, cor ou religião. Evidenciamos que os mesmos
denominam como “profissionais da Educação” (BRASIL,
2010), “professores”, “professor” (BRASIL, 1998a, 1998b,
1998c) “trabalhadores” (BRASIL, 2010); e quando mencionam
“professora”, ela é expressa uma única vez no corpo do texto
(BRASIL, 1998b), com quatro repetições (BRASIL, 1998c), e
nas referências consultadas para a produção do documento
(BRASIL, 1998a, 1998b).
Interessante ressaltar o cuidado que tiveram ao se reportar,
em sua grande maioria, a professores e profissionais da
educação. Essa intencionalidade é vista na Lei de Diretrizes
e Bases da Educação (LDB), ao referenciar como “docentes”,
“professores”, “profissionais”, nos levando a uma interpretação
que envolve todos e todas as profissionais, e qualquer indivíduo
que atua ou deseja exercer o magistério, sem diferenciação.
Desse modo, garante que o lugar da docência é inclusivo, plural,
para além de único gênero, sexo ou identidade. Refuta que
somente mulheres podem ser professoras e educar/cuidar de
bebês e crianças de até cinco anos e onze meses na Educação
Infantil. Rompe com as narrativas que um dos autores já
se deparou em uma rede social, o Facebook: “o masculino
incomoda tanto quanto o feminino, eu discordo. Se for para
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
generalizar, prefiro que seja no feminino. Porque somos a
maioria e generalizar no masculino é uma ideologia machista”
(FACEBOOK, 30/07/2020).
Por outro lado, outra pessoa explica:
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
Diante dessas duas narrativas, pode-se observar a falta de
acolhimento do sexo masculino na docência com as crianças
pequenas. Notamos nas investigações de Rabelo (2013), ao
realizar um estudo comparativo entre Portugal/Aveiro e Rio
de Janeiro/Brasil: os professores homens que sentem na pele
discriminações acabam sofrendo por associarem a eles a falta
de cuidado, afeto, por se referirem a eles como “abusadores”
e não comprometidos. Assim, refletimos, problematizamos:
a não inserção do homem também na linguagem diminuiria
as tensões que eles enfrentam no professorado, por assim
habitarem uma profissão que majoritariamente foi sendo
construída em torno do gênero feminino? Realmente,
precisamos desconstruir esse lugar de um único gênero.
Sabemos que o magistério é uma luta de todo e qualquer
indivíduo, até porque uma educação democrática precisa
abrir espaço de diálogo com todas as pessoas. Os documentos
já expõem esse lugar e reconhecimento. Por que as narrativas
e discursos continuam ainda segregando e até criando
barreiras? Fica o convite para se pensar e aprofundar esse
questionamento em outros estudos.
No entanto, consideramos as dimensões da categoria de
gênero como cruciais para compreender as mudanças sociais
e culturais da vida contemporânea, principalmente quando
as correlacionamos com a docência. Scott et al. (1998) destaca
o gênero como uma organização social dos sexos, estando
diretamente articulado às relações humanas, ao cotidiano, às
instituições que assim marcam e provocam hierarquizações
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
de poder. Por esse ângulo, Connell (2016) nos revela que
se trata de uma questão de corporificação social, e pode
ser definido como uma estrutura de práticas reflexivas de
corpo, por meio das quais corpos sexuais são posicionados
na história. Essas reflexões nos ajudam a contestar falsos
universalismos em relação a papéis sexuais de homens
e mulheres presentes em diversos discursos, práticas,
documentos, ações e fazeres.
Butler (2015, 2009, 1995) busca desnaturalizar o sentido
biológico do sexo e gênero mostrando que se trata de um
construto culturalmente construído por meio do discurso. O
corpo é, em si mesmo, uma construção, do mesmo modo como
o é a miríade de corpos que constitui o domínio dos sujeitos
com marcas de gênero. Não se pode dizer que os corpos
tenham uma existência significável anterior à generificação
(BUTLER, 2015). Assim, a autora destaca que gênero é
performativo, que se dá pela repetição de atos, gestos e falas
que buscam enquadrar os sujeitos arbitrariamente em modelos
binários, inteligíveis e coerentes com a premissa normativa de
sexo-gênero-desejo (BUTLER, 2015). Nas palavras da autora:
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro e, portanto, a reprodução do gênero é sempre uma
negociação de poder. Finalmente, não existe gênero
sem reprodução das normas que ponham em risco o
cumprimento ou o descumprimento de tais normas,
abrindo-se, desse modo, a possibilidade de uma
reelaboração da realidade do gênero através de novas
formas (BUTLER, 2009, p. 322).
3 https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000292074
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
medo da pedofilia. Os corpos dóceis e ingênuos das crianças
não podem ser tocados, ter fraldas trocadas ou manipulados por
sujeitos que são considerados fora dos padrões da normalidade.
Fatos como o contato físico com as crianças, a troca de fraldas,
entre outros, justificam os medos que algumas pessoas possuem
em relação a ter professores homens assumindo turmas na
Educação Infantil.
Nesse sentido, Silva (2019) apresenta pesquisa
desenvolvida pelo pesquisador dinamarquês Jan Peeters
(2012), quando ele apresenta problemas do cotidiano
masculino na Educação Infantil:
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
de gênero influenciam na avaliação dos atos das pessoas. Os
pais das crianças naturalizavam os trabalhos da cuidadora
na figura da mulher, mãe. O fato de soprar o pênis dos
meninos era visto apenas como uma brincadeira carinhosa.
No entanto, quando o homem (seu filho acostumado ver sua
mãe praticando este ato) repetiu a prática, foi repreendido na
escola, isto porque tal ato não corresponderia às expectativas
do papel normativo do homem.
Nesse sentido, defendemos o argumento de que as
creches, as escolas e instituições que têm como público-alvo
crianças da Educação Infantil, necessitam estar preparadas
para receberem esse professor homem. Acreditamos que
essas questões devam estar postas no projeto político-
pedagógico4 da instituição. Neste plano de ação consta para
além de como a escola valoriza e reconhece as diferenças, as
vozes da comunidade e, principalmente, a voz das crianças
em relação às experiências com esses professores5 . Ao mesmo
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
tempo, ressaltamos a importância de as instituições de
Educação Infantil implantarem e executarem uma constante
formação continuada das professoras no exercício de seu
trabalho e de qualquer outro profissional que atua nesse
espaço educativo (SOUZA, 2019).
Até porque ninguém nasce professor ou professora, torna-
se docente, conforme as leituras, as experiências, os cursos
que frequentam e os fazeres políticos, práticos e culturais. Na
verdade, Freire (2009) enfatiza o lugar da docência de uma
profissão. Em suas palavras, adverte: “ser professora implica
assumir uma profissão” (FREIRE, 2009, p. 13). Isso significa
que ser docente é uma responsabilidade política, pedagógica,
metodológica, cultural, e primordialmente a um/uma
profissional que se constrói nos espaços de formação inicial
e continuada na interseção com os múltiplos saberes que
compõem a sua vida, as disciplinas que cursou, as experiências
que adquiriu ao longo de sua trajetória como profissional e
ser humano; das instituições que fazem parte e daquelas que
um dia viveu o seu percurso de escolarização e formação. O
exercício da docência e seu entendimento são complexos.
Segundo Cruz (2019, p. 95), “O ofício docente não é
trivial, ainda que muitos pensem que para ensinar basta
saber o conteúdo”. Essa perspectiva colabora para evidenciar
que o que marca a docência é o cuidado em ensinar, a
responsabilidade em aprender e o permitir-se descobrir
docente. Isso implica profissionais da educação, trabalhadores
que conseguem respeitar as diferenças e a pluralidade
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
com a qual nos deparamos na escola e nas relações com
outros colegas professores, sobretudo a quebra de uma
educação para além de transmissão de conteúdo. Trata-se
de uma educação emancipatória, que reflita e defenda uma
pedagogia da mudança cujo levante seja para todos, com
todas as pessoas, assim como homens, mulheres e os modos
como preferem ou desejam ser mencionados em sociedade.
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
infantil, se depararem com dificuldades enfrentadas, que
estão relacionadas às questões de gênero (CONNEL,2016,
SCOTT, 1998) e de masculinidades (SILVA JUNIOR e BRITO,
2018). Desse modo, Felipe explica:
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
é marcado pelo feminino. Essa concepção pode ser verificada
também no relato dos outros professores, quando expõem o
desafio de ser primeiramente do sexo masculino.
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro Eu sofri preconceito, sim, mas foi com a minha
coordenadora. Ela sempre falou comigo que eu não
servia [para a turma de] maternal, que maternal é mais
para uma figura feminina, mas eu sempre debati muito
com ela: “Por que? O homem também pode cuidar
de uma criança. O pai também pode cuidar de uma
criança e a professora não é mãe de uma criança, ela
é a professora”. A gente sempre bateu muito de frente
por conta disso. Eu sempre falei: “Quero dar aula para o
maternal!” [...]. E eu sempre falei para ela que eu gostava
[...]. Ela dizia que maternal é só para mulher. (FELIPE)
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
associar a função de professor do maternal à figura feminina,
à maternagem (SANTOS; RAMOS, 2017), a coordenadora
buscou aliar a ideia de que a educação da criança pequena
deve ser restrita ao mundo ou à imagem do feminino. Desse
modo, questiona-se: cuidar e educar seriam tarefas delegadas
ao sexo feminino? Onde estariam os homens que desejam
e sonham trabalhar com bebês? O afeto e o cuidado de si
podem ser atrelados à figura masculina? Para essas questões,
Rabelo (2010) sinaliza:
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro Eu cheguei até ir na escola para conhecer o tal professor.
Não vi nada de estranho, era um rapaz normal. Ele sempre
estava na porta quando as crianças chegavam (GUSTAVO)
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
mãos que não estão relacionadas, em seu imaginário social, ao
ato de cuidar. Nesse caso, observamos um receio da família,
que pode ser interpretado até como falta de conhecimento do
trabalho que é realizado nas instituições de Educação Infantil,
cujo ato de cuidar e educar estão interligados (BRASIL, 1998a;
CORSINO, 2009; NUNES, 2009).
Contudo, quando esse profissional, na figura de
professor, consegue desenvolver seu trabalho, aprendendo,
ensinando e assumindo as especificidades de sua função
(FREIRE, 2009), as diferenças de gênero deixam de ser
a questão central, conforme nos mostra a narrativa de
Manuela: “Acho que quando fala em homem trabalhando
com criança os pais ficam assustados, mas, depois que
conhecem, percebem que não faz diferença”. Essas palavras
são ratificadas pelo professor Felipe, que, ao longo de sua
narrativa, afirmou que “a minha relação com as minhas
mães sempre foi muito tranquila. Foi muito tranquila
mesmo, elas conhecem meu trabalho”. Portanto, o processo
de confiança entre pais, professores e escola deve ser
uma construção diária. É um processo contínuo que não
possui um fim em si mesmo; nesse percurso o que vale é a
convivência e o diálogo, princípios fundamentais para uma
educação inclusiva.
Superar essa etapa, ou seja, ser aceito e respeitado
como profissional pela comunidade escolar, é o que Ramos
(2011) denomina como sendo um período probatório e
comprobatório, em outras palavras, aquele momento que
96
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
ele consegue provar para equipe diretiva e para comunidade
que, para além dos conhecimentos obrigatórios, ele possui
capacidade e habilidade de trabalhar com crianças e resolver
problemas.
Por outro lado, ainda sobre a questão do acolhimento e
respeito ao professor homem no exercício do professorado,
reconhecemos o quão é potente e necessário que se
desenvolva uma cultura, uma prática e uma política
inclusivas para esses que se sentem excluídos, ou que sofrem
discriminação devido ao seu gênero. Para tanto, sugerimos
que a equipe gestora, assim como toda a comunidade escolar,
façam discussões sobre esse tema, oportunizem debates,
reflexões com as famílias no sentido de provocar e propiciar
um espaço profissional cujo interesse seja a pluralidade
e a diversidade que ocupa esse lugar, como a defesa de
uma educação e docência para qualquer indivíduo, sem
restrição de cor, raça ou sexualidade. Essa ideia caminha
com a reformulação e produção de projetos pedagógicos que
possuam esse olhar cuidadoso; essa especificidade faz parte
da docência, principalmente quando se dá a inserção da
figura masculina nesse espaço.
Em diálogo com o exposto acima, defendemos o
argumento de que a construção de um projeto político-
pedagógico (VASCONCELOS, 2004) deve ocorrer com a
participação de todas as pessoas, no sentido de valorizar a
diversidade e a pluralidade de ideias, e assim romper com a
visão engessada que somente a mulher pode ser professora
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
de crianças, uma vez que esta possuiria uma maternagem e
prática dos cuidados (SANTOS, RAMOS, 2017).
Seguem as visões que nos chamaram atenção a respeito
desse assunto, e de sua legitimidade quando se constroem
projetos educativos que quebram o lugar da não aceitação,
abrindo-se a possibilidade do respeito, em que os homens
também podem educar/cuidar.
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro formação continuada mais efetiva, no sentido de entender
o nosso fazer de cada dia, nossa prática [da docência] e os
saberes que precisamos saber para melhorar nossa prática.
Ainda existe uma luta muito grande por trás disso para
alcançar esses espaços e reverter essa visão engessada
dos papéis sociais, de que o homem pode fazer e do que a
mulher deve fazer. (WILLIAM)
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro todo esse talento pra dentro da Educação Infantil. Eles
trazem propostas inovadoras de recreação, música. Eles
levam instrumentos musicais. E essa ideia daquele que
vai ser a referência – “Olha lá, hein? Aquele tio vai te ver
-, ele [aluno] acaba sendo a referência daquele tio, que
vai ser mais legal. Daquele mais querido, daquele que a
gente vai brincar, cantar. (ROSELENE)
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
ocupação desses espaços. Com isso, conseguimos perceber
que as questões de gênero não são determinantes para
o desenvolvimento do trabalho na Educação Infantil. As
relações entre professor(a), aluno(a) e comunidade escolar
foram construídas na base do diálogo, do conhecimento e
da prática pedagógica.
Contudo, é relevante destacar que o acolhimento
da equipe diretiva, a construção do projeto político-
pedagógico, a preocupação com a formação continuada,
foram fatores que contribuíram para que esses professores
pudessem desenvolver seus trabalhos com qualidade. A
gestão escolar tem papel fundamental para a desconstrução
desses preconceitos estabelecidos, cabendo a ela mostrar a
comunidade escolar que os sexos masculino ou feminino
não são de grande relevância – todos são seres humanos.
O que importa nesse aspecto é o trabalho desenvolvido e
o cuidar/educar das crianças para viverem a pluralidade
e a diversidade nas escolas, nas instituições de Educação
Infantil e por toda a sua vida. Homens na educação não
são seres invisíveis, mas sujeitos que também contribuem
para a educação brasileira, para além de um gênero, uma
linguagem, um discurso que os ocultam ou até mesmo ficam
escondidos no meio de tantas mulheres. Apoiamos homens e
mulheres na educação. Estamos na defesa por uma educação
de todos e todas.
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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
Referências
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interferência cromática sobre foto de Ricardo Matsukawa | temqueter.org
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
A LITERATU RA
INFANTO-
JUVENIL LGBT:
CONSTRUINDO
IDENTIDADES
Anna Claudia Ramos
109
COMO INDICAMOS NA APRESENTAÇÃO DESSE
TRABALHO, a multiplicidade de vozes nesse campo de
estudos é imensa e, atendendo a essa polifonia e também
a diversidade de linguagens que esse formato oferece,
apresentamos Anna Cláudia Ramos. Nesse encontro,
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
A LITERATURA
INFANTO-JUVENIL
LGBT: CONSTRUINDO
IDENTIDADES
Anna Claudia Ramos
110
Cláudia Reis - Olá! Bem-vindo, Eu começo a minha trajetória
bem-vinda, bem-vinde. Você em um belo dia na minha
está acessando aqui o conteúdo adolescência, eu estava ainda
exclusivo do nosso ebook. Hoje, no segundo grau, acho que era
nós vamos conversar com Anna segundo grau naquela época, e no
Cláudia Ramos, escritora e meio do ano eu virei pra minha
professora, que sempre trabalhou mãe e falei “mãe, eu quero ser
voltada para a área da infância e professora!”, ela virou pra mim e
da adolescência. Hoje estamos perguntou “como assim minha
aqui com Diógenes Pinheiro, da filha?” “Eu quero ser professora!”.
UNIRIO, coordenador do projeto. E aí eu fui buscar então, naquele
Queremos começar, Anna, meio de ano, uma escola de
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
111
com criança, e a partir daquele usava essa expressão sem nem
momento que eu escolhi que eu pensar que um dia a gente ia estar
queria ser professora, também falando de plataformas, né? E a
com ser professora, sobretudo gente estaria numa plataforma
para crianças e jovens. virtual aqui, hoje, nem sonhava
Acabo o curso de magistério, com isso.
vou fazer faculdade de Letras. Então o trabalho de Marina na
No meio do ano do primeiro ano biblioteca era muito libertador, e a
da faculdade de Letras, eu então gente trabalhava numa biblioteca
descubro que havia um seminário, ali na Men De Sá, na Lapa, num
um Congresso na verdade, de momento em que a Lapa era
literatura infantil juvenil, era o bem diferente do que é a Lapa
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
112
não está aqui mais entre nós – da construção identitária desse
mas deixou plantado em muitas sujeito. E quando você traz
pessoas esse trabalho de biblioteca pra gente essa dimensão da
infantil como um espaço vivo. identidade livre desses seres, acho
Então a minha trajetória, ela que é bem a pegada que a gente
nasce daí, nesse contato com quer pensar aqui.
livro, com criança, com biblioteca,
e com biblioteca sendo esse Anna Cláudia – Se tem uma coisa
espaço de liberdade - não havia que, vamos dizer assim, me irrita,
placa de silêncio na biblioteca vamos usar essa palavra mesmo,
infantil Manoel Lino Costa. Então porque a palavra é essa – é
era muito interessante, isso era quando as pessoas olham pra uma
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
113
nos 70 anos. Eu sou um ser depois, eu já conheci Marina e fui
incompleto, mas ao mesmo tempo trabalhar com ela na biblioteca,
eu tenho muito a aprender ainda porque aí tinha uma flexibilização
na vida. de horário, e eu consegui
encaixar junto com meu horário
Diógenes Pinheiro – Queria fazer de faculdade, era um quebra
uma pergunta. Aí você virou cabeça pra montar tudo isso,
professora, não é? Queria que esses horários todos. Continuei
você falasse um pouquinho desses trabalho na Fundação Nacional
anos iniciais da docência. Porque do Livro Infantil-Juvenil, na
à docência é uma profissão que Biblioteca, teve um momento que
nos força muito a olhar pro outro, eu tive que parar com a biblioteca,
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
114
pra uma sala de aula como trabalhar com literatura infantil-
professora regente, mas eu criei juvenil, ou trabalhar para infância
um projeto pra escola onde ele foi e para juventude, vamos dizer
estudar, para trabalhar dentro da assim. Isso era um diferencial,
biblioteca na escola, dando aulas porque eu era uma professora que
de literatura infantil juvenil, então eles chamavam de “professora
isso foi bárbaro! Porque me dava especializada”, vamos dizer assim.
uma liberdade profunda, porque Isso me dava uma liberdade
foi um projeto que eu criei, eu profunda, porque eu poderia
desenvolvi, o colégio comprou a trabalho com os livros, e aí eu
ideia, me dava toda a liberdade escolhia pra cada turma aquele
do mundo pra eu trabalhar com livro que tinha a cara de cada
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
os livros que eu desejasse, eles grupo, sabe? Cada livro era muito
tinham uma confiança muito selecionado, era muito escolhido,
profunda no meu trabalho. era muito pensado. Tem uma
Então eu comecei a dar aulas do história que mais pra frente eu
maternal – depois começou a conto, que foi de um grupo de
ter um “maternalzinho”, que as oitava série, nono ano, que um dia
crianças chegavam lá com um me convidou pra debater sobre
ano e oito meses – até o que hoje temas polêmicos.
seria o 9º ano, na época ainda era Mas antes de eu contar essa
oitava série. Então eles tinham história, acho que vale responder
um tempo de aula comigo, e como é que a escritora foi
eu era chamada de “professor nascendo. Porque já trabalhava
de biblioteca”, era “aula de com oficinas literárias, né.
biblioteca”, era muito engraçado. Marina, que eu falo que foi minha
Teve uma bibliotecária que fez fada madrinha, todos os cursos
todo um espaço de reorganização que ela ia dar, ela levava a turma
daquele espaço, que estava mais jovem que trabalhava com
abandonado na escola, na época. ela. Então ela me levou pra dar
E durante 10 anos eu fiquei nesse uma oficina literária com ela,
colégio, e também em outros quando eu ainda nem tinha livros
colégios, com esse trabalho em publicados, e quando essa turma
específico. Então o meu trabalho acabou nesse espaço, as pessoas
como professora sempre foi quiserem continuar comigo,
115
e vieram pra minha casa ter a professora foram seguindo lado
oficinas literárias comigo aqui a lado, até que um dia a escritora
na minha casa - ainda com meu ficou muito espaçosa, começou a
filho bebezinho, antes de eu ir viajar muito, a precisar de tempo.
trabalhar no colégio pra onde ele Aí eu larguei a escola como uma
foi na sequência. E de repente eu professora regular - mas uma
vi as minhas alunas começarem a vez professora você não deixa de
publicar em boas editoras, a partir ser - e hoje no meu trabalho como
do trabalho que eu fazia. Então escritora, eu visito muitas escolas.
comecei a pensar “Opa, se eu estou Esse ano não, né, porque a gente
ajudando tanta gente a criar suas tá no meio da pandemia, mas eu
histórias, a escrever, a melhorar, viajo o Brasil de ponta a ponta
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
116
atualmente você tá trabalhando não tinha essa história, que eu
um tema mais direcionado achava um absurdo brincadeira de
pro jovem, que é a questão da menino e brincadeira de menina.
sexualidade e desse leque das Só que eu sou da década de 60,
sexualidades. então na época... se hoje isso ainda
Aí queria que você falasse tá em voga, imagina na década de
um pouquinho o que te motivou 60, isso era infinitamente pior. Só
a trazer esses temas pra dentro que pra minha sorte - aí acho que
do universo infanto-juvenil. Você as histórias de cada um contam
acabou de falar uma frase que pra muito – eu nasci numa família
gente é muito importante: “Tá aí que respeitava brincadeira de
a importância do livro”. Quando criança, então eu podia brincar do
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
117
não tinham medo que se meu aprendam a respeitar o jeito de
irmão brincasse de boneca, ele ser cada um, independente do que
ia se tornar homossexual, ou se isso seja, sabe?
eu ia me tornar homossexual Então eu comecei desde o meu
porque eu brincava de carrinho primeiro livro, “Para onde vão os
ou futebol. E pra eles tanto fazia dias que passam”, já falando do
quanto tanto não fazia, eles direito de você se entender. Então
queriam que os filhos viessem a menina do livro se perguntava
suas potencialidades. Então é “Quem eu sou?”, “De onde eu
óbvio que isso é um denominador vim?”, “Que que eu estou fazendo
na minha vida, porque eu cresci aqui?”, que são as perguntas
num ambiente onde a gente tinha clássicas que as pessoas fazem
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
que respeitar pessoas porque elas um dia. E eu, muito cedo - você
eram pessoas, elas eram gente, conhecesse livro – “Sempre por
independente de gênero, cor, perto”, que é um livro que traz
classe social. Então é obvio que uma personagem lésbica. Porque
isso tudo está dentro de mim, naquela época que uma editora
e quando a gente vai escrever, me solicitou que escrevesse sobre
quando um escritor ou um artista esse tema, eu fui ler várias coisas,
- vamos colocar num âmbito e tinha várias coisas sob o ponto
até maior - opta por seguir um de vista masculino, então eu
caminho na arte, a sua arte é um resolvo trazer o ponto de vista
reflexo do que está dentro dele, das meninas pra esse livro – isso
eu não tenho a menor dúvida a gente tá falando de 1999, então
em relação à isso. Então se isso acho que o livro está com 20 anos.
já fazia parte da minha vida, isso Na sequência, nos anos 2000, vem
entra na minha obra como uma o “Todo mundo tem família”, e aí
coisa comum, simples, do meu vem uma curiosidade: eu descobri
cotidiano. Então é obvio que eu que o “Sempre por perto” não
vou escolher falar sobre esses entrava nas escolas por conta do
assuntos, porque eu quero que tema, de ter uma personagem
as pessoas aprendam a respeitar lésbica, isso era quase que, enfim...
as crianças, eu quero que as era quase não, era portas fechadas
pessoas aprendem a respeitar os pro livro, com raríssimas exceções
jovens, eu quero que as pessoas o livro foi adotado naquela ocasião.
118
Então quando eu quis fazer de a gente ser, eu diria isso.
o “Todo mundo tem família”, e Porque diferente todo mundo é
eu queria falar sobre diferentes diferente.
famílias, sem fazer juízo de valor E aí o caso que eu gostaria
em absolutamente nenhuma, eu de contar aconteceu com a turma
descobri que se eu colocasse, e de nono ano, que é o que estaria
vamos combinar que esse livro valendo hoje em dia. Eles me
tem 20 anos, tá? Se eu colocasse, chamaram e falaram: “Professora,
20 anos atrás, que duas mulheres a gente queria falar sobre temas
podiam ser uma família, dois polêmicos e a gente escolheu
homens, ou qualquer família um você” “Mas por que eu? Eu só
pouco mais ousada além disso, tenho um tempo de aula com
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
ele não entraria na escola. Então vocês por semana, porque vocês
eu driblei isso escrevendo o não chamam um professor de
seguinte: “quando o casamento português, que tem 5, 6 tempos?”
não dá certo cada um vai pro aí eles falaram “Ah não professora,
seu canto, e aí o pai e a mãe tem que ser você, porque você é
pode ter novas namoradas ou a única professora que não fica
namoradas”, e cabia tudo aqui, de nhe nhe nhe com gente.”. Na
sabe? Cabia o pai ter namorado, época não existia mimimi né,
a mãe ter namorada, uma leitura talvez se existisse era a expressão
que fica ali nas entrelinhas. Hoje, que eles teriam usado. Eu falei
talvez eu pudesse, se a editora “o que é ficar de nhe nhe nhe,
desejasse reeditar esse livro pra gente?” “Ah professora, você é a
uma nova edição, eu já poderia única que fala sobre a vida como
colocar explicitamente todas a vida é, os outros ficam meio que
as constelações familiares que enrolando, não vão no assunto”.
estão aí. Mas o livro traz isso, Aí eu me senti muito horada, e
e ele trazia já um encarte - era começamos uma lista, peguei um
pra crianças brincar e montar a papel, e começamos a listar o que
sua própria família. Então isso que era polêmico - sexo drogas e
uma característica minha: de rock n roll, daí pra todos os cantos
trazer esse olhar do diferente, possíveis e imaginários. E cada
esse olhar nem do diferente, esse item a gente começou a criar sub
olhar das múltiplas possibilidades itens. Um menino então, no dia de
119
discutir sexualidade, ele levantou banho e ficava aquela coisa de
a mão - levantou a mão quase que implicar né: “olha o tamanho do
não querendo aparecer - e disse seu peito”, “o tamanho do seu
“professora, a gente pode falar pênis”, - “ah professora” – “Ah
de homossexualidade?”, tadinho, gente, vocês não falam isso? Se é
quase que ele engoliu a palavra. pra parar de nhe nhe nhe vamos
“É claro”, e todo mundo olhou pra falar sério! Vocês não ficam
cara dele, aí eu falei: “olha, se vai implicando um com o outro? Com
começar com isso antes da gente isso, com aquilo?” Aí eles “ah, é
começar, eu nem começo, eu paro verdade”. “Então um belo dia vaza
aqui”, “não professora, está tudo uma informação que uma menina
bem, tá tranquilo”. é lésbica e que um menino é gay.
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
120
nas pessoas. Eu acho que isso e-mail -, então muitas vezes a
é uma tremenda sensibilidade. editora... a editora recebia as
Eu queria que você ref letisse cartas e me passava para eu ler.
um pouco sobre isso, porque Então as escolas elogiando o livro,
que um dos temas que percorre mas com receio de adotar esse
nossa pesquisa é justamente livro na escola. Como eu ouvi
esses preconceitos velados, que uma vez um jornalista que me
as vezes não são explicitados, pergunto: “Ah Anna, você não
mas que tão presentes, tanto no acha que está induzindo os jovens
ambiente de trabalho, quanto no a se tornarem homossexuais com
ambiente escolar. seu livro?” Aí eu pensei “que
Eu queria que você falasse um engraçado né, ninguém pergunta
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
121
Então naquele momento foi normal, uma pessoa comum, uma
muito velado, como foi muito pessoa que trabalha, uma pessoa
velado eu não poder dizer quem que luta pela educação, que luta
eu era exatamente, sabe? Foi pela educação de qualidade para
um momento em que eu já era todo mundo, uma pessoa que é
separada do pai dos meus filhos, voluntaria, que faz um monte de
foi um momento que eu me projetos sociais.
apaixonei pela primeira vez por Então, eu acho que a gente
uma mulher, foi um momento tem que falar, sabe? Pra que
que se eu falasse isso na escola isso não seja mais velado, para
era muito complicado, porque eu que as pessoas não sofram
não sei como seria a aceitação, eu mais, e para que a gente acabe
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
122
maior. Hoje, mesmo que exista o o que a gente viu nesses anos
preconceito, mesmo que tudo isso 2000, os anos 2000 foram
ainda exista, a gente tem como muito intensos no sentido de
gritar, como falar publicamente, conquistas de identidade. Só que
como se ajudar, como estar eu estou com uma sensação muito
compartilhando como a gente estranha, eu particularmente
está fazendo aqui agora, como não estou muito otimista nessa
tantas lives então sendo feitas, pandemia, porque a gente perdeu
e tantos livros sendo falados. uma dimensão fundamental dessa
E hoje, podendo ser lidos fora afirmação identitária, que era
do ambiente da escola, porque ocupar espaços na cidade, espaços
ele circula no ambiente da nas ruas, e tal.
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
123
O meu lado otimista na vida que eu não consigo gostar dele?”
prefere pensar assim, sabe, que e o “Por que que eu não consigo
parece que a gente está tendo um gostar dela?”, nesse momento, no
retrocesso. Eu tenho refletido, formato em que ele vem. Porque
isso ainda não é uma questão esse livro, ele teve uma edição
fechada. Eu tenho refletido sobre anterior só com esse conto. Era
esse assunto, eu não sei se é um de uma ONG, então ele não teve
retrocesso ou se tudo isso que uma edição comercial, e agora ele
parece um retrocesso sempre vem com um novo formato, ele
existiu, só que estava escondido, é escrito por mim pelo Antônio
e agora tá pipocando, tá vindo à Schimeneck, tem um projeto
tona, eu acho que esse momento gráfico da Raquel Matsushita, e
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
as pessoas tão mostrando que elas vai ser editado pelo SENAC.
têm de melhor e de pior, sabe? A gente resolveu fazer esse
Então acho que ante essas livro nesse momento exatamente
coisas estavam escondidas pra ser resistência e marcar nosso
embaixo do tapete, e agora a lugar de fala, sabe? Porque o
gente está levantando o tapete. Antônio escreveu o “porque que
E aí, puf, explodiu. A gente tá no eu não posso gostar dele?” e eu
momento da explosão para poder “porque que eu não posso gostar
ter um momento de limpar isso dela?” e cada um escreveu mais
tudo, e a gente chegar numa nova um conto, então é um livro com
era, numa nova etapa. Eu prefiro quatro contos. Mas o que ele traz
pensar dessa forma. de diferente nesse momento,
É claro que a gente está aí nessa edição? Depoimentos, de
vivendo retrocessos, mas que eles diversas pessoas. De diversas
vão passar, não é há mal que dure pessoas LGBT+, de mães da
pra sempre, sabe? Então acho que diversidade, de pessoas de
a gente mais do que nunca precisa diferentes religiões, trabalhando
ser resistência, fazer o que a gente com a questão do acolhimento,
faz, dar o testemunho, sabe? para que o jovem entenda que ele
Por isso eu tenho falado sobre tem um espaço de ser acolhido,
a minha vida e sobre a minha e que mesmo que ele não seja
história, por isso lançar o livro na sua família, onde ele pode
que a Claudia citou, o “Por que procurar uma ajuda, onde ele pode
124
procurar os seus pares, porque tenho visto na internet, tenho
eu acho que já deu essa história acompanhado de perto, em vários
das famílias não acolherem as perfis no Instagram com duas
pessoas como elas são. Porque na mães, com dois pais, as pessoas
contramão disso as pessoas estão se mostrando, perdendo o medo
aí, atentando contra a sua própria de dizer quem são: “Olha aqui, a
vida, a gente está ai falando do minha família existe, tá? Eu sou
mês né, do Setembro Amarelo, uma família” e família e amor né?
no combate ao suicídio. Quantos A crianças e o jovem, na verdade
jovens LGBT+ se suicidam porque o ser humano, ele só quer alguém
não são respeitados, não são eu estenda a mão e fale “vem
acolhidos, e sofrem horrores. aqui que eu te cuido”. Quem é
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
Então já passou do tempo de isso que não quer ser amado? Então
acontecer. eu acho que eu prefiro pensar
Parece um retrocesso, mas esse momento que parece um
acho que a gente está na verdade retrocesso, como na verdade um
num momento de transição. E momento de grande transição.
toda transição, ela é tumultuada,
toda transição tem aqueles que Cláudia Reis – Bacana isso
vão dar a sua cara a tapa, que vão né Anna, de você trazer essa
dar a sua vida por essa história. perspectiva de uma educação
Eu acho que é isso, a gente tá que não se pressupõe formal.
num momento de testemunho Já que a gente está com uma
e transformação profunda da série de questões na escola, e
humanidade. Claro que vai acabar a escola parece que está ainda,
a pandemia e não vai estar todo amarradinha lá no século XVIII.
mundo fofinho e legal, óbvio E aí você traz que nos anos 2000
que não, mas muita gente já vai pra cá, a gente teve muita coisa...
ter se transformado, e a gente seu livro de 2000 pra cá ainda é
vai poder continuar lutando ineditismo na literatura infanto-
cada vez mais para que esses juvenil, sobre diferentes arranjos
retrocessos que ainda existem familiares, por exemplo.
passem um dia anão existir mais, Então pensar nessa
sabe? Então acho que é a hora perspectiva da educação não-
de a gente marcar território. Eu formal, no sentido de nos auxiliar
125
a construir outras narrativas. sei se a palavra melhor é essa, de
Porque o que nós estamos vendo, “testemunho”, que é você ter que
Diógenes e eu, tanto nos textos mostrar quem você é eticamente,
que nós recebemos para o e-book, no que que você acredita, sabe? A
tanto nas entrevistas que nós gente está vivendo num momento
estamos fazendo, é justamente histórico da humanidade, de
essa mesma reclamação, né? testemunho, mais ou menos como
“Olha, tem um espaço formal de se a gente tivesse lá na idade
educação, que não nos enxerga média - eu vou deixar de pensar o
como seres autônomos, não nos que eu penso, e se você quiser me
enxerga como seres que tem uma queimar beleza, não vou ter medo.
narrativa própria”, e essa narrativa Eu sou uma pessoa que
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
126
nosso desejo, o nosso sonho. igual a Anna Cláudia Ramos, com
Então tá na hora da gente dar uma é que eu posso começar?” e de
guinada nessa humanidade... vai repente a literatura pode ser uma
dar trabalho cara, vai dar trabalho, boa ajuda nesse sentido, né Anna?
tem dia que eu penso assim “Ah
meu deus do céu, pra que que eu Anna Claudia – Ah com certeza,
escrevi tudo isso? Era tão melhor acho que a literatura abre uma
se eu coubesse, sei lá, só ali porta, uma janela pra dentro da
fazendo alguma coisa”, mas não, gente. E hoje, Claudia, eu diria
a gente vem com isso, tá dentro que tem muita gente fazendo um
da gente, então não dá pra gente trabalho bonito, sabe? Pensando
voltar atrás, sabe? Porque voltar nessas questões todas, né? Eu
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
127
vou ter menina jogando futebol “Sempre por perto”, como o
com menino, vou ter menino ”Não é bem assim a história”, eu
dançando ballet com menina, eu não sei se vocês conhecem esse
vou ter as meninas aprendendo a livro. Ele fala sobre vários casais
brincar sozinha, não tem menino separados, em momentos onde
pra brincar. Vou ter menino o pai é legal, ou a mãe é legal, ou
brincando sozinho, não tem o pai não é bacana, a mãe não é
menina pra brincar, eu vou ter bacana, porque eu também não
- olha como se passa o conceito gosto dessa ideia de que quando
- o menino está cuidando do alguém se separa, só a mulher
bonequinho enquanto a menina é uma vítima, ou o homem,
está pintando. Então a gente enfim... o casal separado pode ter
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
128
livros que tratam um pouco dessa primeira questão que eu debati
questão do gênero, mas eu vou ter foi a questão racial, essa questão
livro que ter um personagem que da representatividade ela é
ele ficou paraplégico e ele vai ser muito forte - como você falou,
uma pessoa comum, sabe? Ele vai bonecas negras, professoras
aprender a viver com isso. Tem negras, negros em posições de
um livro de uma personagem que destaque na sociedade, e acho
ela é surda, então eu quero trazer que a mesma coisa a gente vê em
esses temas para dentro da vida relação a população LGBT. Ou
e parar mostrar que todo mundo seja, a população LGBT ainda é
cabe na vida, todo mundo cabe no associada, no imaginário médio,
mundo, está na hora do mundo só a questão do artista, o que a
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
129
se todas as pessoas pudessem dentro de uma escola, né? Ou
crescer sendo quem elas são, e em qualquer profissão você tem
todos pudessem ser respeitados pessoas. Então você precisaria
porque elas são pessoas, que todas essas pessoas saíssem
independente do gênero, da cor, dos seus lugares “protegidos”,
da classe social, de qualquer vamos dizer assim, como eu
coisa, as pessoas poderiam ter fiquei no meu “lugar protegido”
sua representatividade como durante muitos anos, pra
uma forma comum, vamos dizer mostrar: “olha, a gente é uma
assim. Elas iam crescer num pessoa comum cara, está na hora
mundo onde isso é normal. Então de você me respeitar, está na
eu acho que se a gente não tem hora de você entender tudo isso”.
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
130
da gente aprender a ouvir o que os próprios pilares da educação,
que as crianças e os jovens tem eles nos dão a dica, né?
pra nos dizer. São quatro pilares, não
Tá na hora dos adultos, é isso? A gente decorou em
que estão com as usas certezas algum momento da nossa vida:
cristalizadas, pararem pra ouvir o o aprender a fazer e aprender a
que eles acham que não é correto, conhecer tem aspectos, para mim,
porque talvez não ser correto muito claramente informativos.
é ficar com ideias cristalizadas Vamos aprender a fazer. Agora,
- sofrendo e fazendo aqueles, existem outros dois aspectos que
talvez que você ama, sofrerem seguram essa casinha aí de pé,
junto. Então eu diria que buscar, que é a identidade desse sujeito
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
hoje, esse lugar das identidades que a gente busca auxiliar formar,
é muito importante. E aí eu vou que é justamente aprender
pra essa história que cada um de a conviver com o outro, e o
nós é responsável, e é coautor, aprender a ser. E parece que na
por fazer lugares melhores para hora da gente montar currículos,
todos, sabe? O professor que está pensar a forma de lidar com essas
na universidade, a professora crianças e com esses adolescentes,
que está na escola, são as mães, a gente desconsidera... aí a
os pais, os tios, os avós, dentro casinha fica pendente só pra um
das casas... como que eu acolho lado, não à toa.
o outro? Mas sobretudo como eu
me acolho? Porque a gente só dá Anna Claudia – É incrível,
o que a gente tem, né? Cláudia, como que nos dias de
hoje ainda existem determinadas
Cláudia Reis – É isso aí Anna. questões, que quando passam de
Você traz um tópico muito uma turma pra outra “Ah, lá vem
importante, que você, nesse aquele aluno” – é taxado, parece
momento, fala a partir do inacreditável, sabe?
lugar da educação não formal. Eu sou mãe de uma menina
Mas você, quando toca nesse que deu muito trabalho na
assunto do ser, a gente não pode escola, muito trabalho. Já contei
esquecer, quem está na escola, no pra vocês que um dia ainda vou
ambiente formal de ensino, que escrever sobre isso. Minha filha
131
com 6 anos botou a mãozinha na uma nova vida, uma nova história.
cintura, balançou a cabecinha e E aí, como que a escola vai encarar
falou: “Mamãe, eu odeio a escola, tudo isso? Como que ela vai lidar
odeio as regras da escola, e eu com tudo isso? Ou como que ela
nunca vou obedecer às regras está lidando com tudo isso nesse
da escola”. E ela levou isso sério, momento? Só mudou do ambiente
então fazer ela se formar foi uma físico pro virtual e continuando
árdua missão. Ela se formou, dando as mesmas aulas do mesmo
acho que isso eu nunca contei pra jeito, ou tá trabalhando com
vocês, num supletivo a distância acolhimento, e o medo que muitas
do Estado, daqueles que você vezes crianças e jovens estão
vai, pega a matéria, estuda, vai sentido durante essa pandemia?
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
132
inclusiva... O que que você vê saiba que ainda vai existir, vai
nas experiências que você tem voltar, e vão ter coisas que ainda
acompanhando como educadora? não vão ser legais... mas acho
que as pessoas estão começando
Anna Claudia – Olha, Diógenes, a se perguntar “Por que é que eu
essa é uma pergunta difícil de fiquei escondendo tanto tempo?
responder porque eu não estou, Porque que eu deixei de viver
hoje, dentro do ambiente da isso por tanto tempo? Porque que
escola. O que eu tenho feito hoje eu deixei de ser feliz? Por que e
em dia? Algumas participações deixei meu sonho guardado?” E
em lives com aos alunos que aí o sonho é guardado vale desde
leram os livros, então eu estou você aprender a tocar instrumento
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
133
escritor, sabe? Essa é a escola diz Diógenes. Essa conversa
que eu sonho, é a escola onde vai ficar aí, historicamente
cada um vai poder ser visto na guardada, registrada, no e-book.
sua potencialidade... se o cara E além de ser um momento
é bom de moda, então ele vai do nosso tempo, que a gente
aprender a ser aquilo melhor, ele está vivendo aqui, eu acho que
vai estudar, ele vai mergulhar a Anna traz umas reflexões
nos ensinamentos... ele vai criar bastante importantes pra quem
acervo, vai criar referencias, pensa qualquer possibilidade de
sabe? Então pra isso, a gente inclusão, e sobretudo quando
vai precisar de uma escola que pensa essa inclusão no espaço da
vai estar muito mais aberta e escola, né Diógenes? Você quer
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
134
parar de olhar para aquele que é de raça, de gênero, ou de seja lá
diferente de a gente achando que o que for. Piadinhas infames não
ele é um incapaz, porque incapaz cabem mais no nosso mundo,
é aquele não é capaz de ser o que está na hora ada gente aprender
quiser ser. o significado mais profundo do
A gente tem que parar de que seja a palavra respeito pelo
olhar pro outro botando algum próximo.
tipo de deficiência que a pessoa
ter ou estar naquele momento, Cláudia Reis – Excelente.
como se fosse algo que ela não Fechando com chave de ouro,
fosse capaz de viver, sabe? E eu Anna Cláudia Ramos, trazendo
acho que viver é muito além aqui não só a trajetória dela dentro
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
135
Diógenes Pinheiro – Eu queria que alguém se espelhe você, e se
só a gradecer a Anna. Acho que torne alguém que vai inspirar o
é fundamental o trabalho de outro que vai fazer um mundo
formação de novas gerações cada melhor. Dá trabalho, mas é isso
vez mais livres, mais livres de gente! Quem disse que viver é
preconceito, podendo se assumir fácil, não é? Viver não é mole não!
na sua integralidade. Acho que o Mas, como diz a música, “nada
fato de você falar com um público será como antes amanhã”. Então
tão jovem é uma esperança pra que o amanhã seja melhor.
gente, ou seja, de que o futuro
realmente é isso sim, é lindo.
Acho que nesse sentido, essa
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos
136
interferência cromática sobre foto de Caroline Lima | temqueter.org
GÊNEROS E
SEXUALIDADES
NOS CURSOS DE
LICENCIATURA :
UM RELATO
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini
DE EXPERIÊNCIA
DO ESTÁGIO
DE DOCÊNCIA
(ORIENTAcÃO E REALIZAcÃO)
143
Neste contexto, as aulas da disciplina Educação e Gênero
tiveram o cuidado de serem preparadas para atender
as necessidades das alunas(os) no que concerne as suas
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
2 https://novaescola.org.br/conteudo/84/conheca-o-kit-gay-vetado-pelo-governo-
federal-em-2011 - Acesso: 29 de abril de 2019.
144
pelo programa “Brasil Sem Homofobia3” (PBSH) com
objetivo concreto de fomentar ações contra violações
e violências históricas à população de Lésbicas, Gays,
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
145
órgãos públicos parceiros4, na luta contra o preconceito e
discriminação em gênero e sexualidade.
Desde 2008, o “kit anti-homofobia” havia sido criado
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
146
movimento “Escola Sem Partido”. É a partir desse episódio
que se fortalece o termo “ideologia de gênero”, criado como
estandarte das vertentes missionárias religiosas. Segundo o
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
147
fomentado no Brasil pelo advogado conservador Miguel
Nagib, em 2014, devido ao fato de sua filha ter realizado
um trabalho escolar de cunho político. Este movimento
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
148
pois cada aluna(o) poderia se apresentar e escolher um texto
oferecido na bibliografia.
As aulas discorreram os textos e suas narrativas
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
149
tenho muitas dificuldades de encontrar uma escola que
compreenda essa diferença (Margarida).
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
150
necessidade de ver professores gays e lésbicas em sala de
aula. Cravo nos diz que, muitas vezes, percebeu que alguns
de seus professores eram gays, mas permaneciam “dentro do
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
154
Outro questionamento marcante foi sobre o tema da
religião e sexualidade, trazido pela Papoula. Uma jovem
branca, lésbica, espírita e filha de pais judeus ortodoxos
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
155
se colocou contra gays, lésbicas, negros e mulheres.
Todos nós sabemos o que os judeus passaram na história
pelos nazistas e, agora, meus pais estão do lado de um
nazista. Não compreendo mesmo! Muitas vezes escuto
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
157
criança um boneco de pelúcia, de nome Xaropinho8, e
que o mesmo tinha sido arrancado bruscamente de seus
braços por seu pai. Ele nos conta, com lágrimas nos olhos,
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
158
empatia. As narrativas trazidas pelas/os licenciadas(os)
constituíam uma massa de saberes que foram esquecidos e/
ou abandonados historicamente.
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
da vida humana.
Toda a centralidade se baseia na pressuposta regulação
do binarismo sexual, homem e mulher, alinhada ao mito da
moral e dos bons costumes ao qual o cristianismo pressupõe a
procriação das espécies como salvação da raça humana. Por isso,
acredita-se que as grades físicas das escolas, que impedem a
violência externa, se colocam também como grades morais que
impedem o questionamento das transformações sociais e suas
contundentes consequências humanas diante das diferenças
em gêneros, sexualidades e raça. Essa forma de subjetivação
vem influenciando vidas a continuarem marginalizadas
pela invisibilização e, consequentemente, apagamento das
potencialidades e aprendizados na escola. Mesmo com tanta
praticidade tecnológica, que nos possibilita sair do espaço
fechado e conservador da escola, parece-nos que as informações
acessíveis sobre gêneros, sexualidades e raça não são suficientes
para que as(os) alunas(os) se sintam seguras(os) a vivenciá-las.
A maioria das alunas(os) disseram não estarem
seguras(os) em falar sobre gêneros, sexualidades e raça nas
escolas devido ao medo das represálias que poderiam sofrer,
tanto como alunas quanto como futuras(os) professoras(es).
Para Sibila (2004), espaço-tempo são momentos congelados
na história das pessoas que devem ser resgatados para o
entendimento de si. A autora nos chama a atenção para
161
uma “arqueologia do eu”, como tentativa de constituir a
individualidade dando sentidos a história de cada um. Em
suas palavras,
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
165
necessidade pragmática e urgente de que se disponibilizem
disciplinas que discutam gênero e sexualidade, bem como
raça, nos currículos dos cursos de formação de professores,
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
Referências
ABRAMOVAY, Miriam; CASTRO, Mary Garcia; SILVA, Lorena Bernadete
da. Juventude e sexualidade. Brasília: UNESCO Brasil, 2004.
BERGER, Peter L. & LUCKMANN, Thomas. A construção social da
realidade. 30ª edição, Petrópolis, Vozes, 2009.
CANEN, Anna. O multiculturalismo e seus dilemas: implicações na
educação. Comunicação & política, V 25, nº 2, 2007 p. 091-107
CARLOTTI, Tatiana. O que está por trás do “Escola Sem Partido?”.
Carta Capital - Política, 20 de julho de 2016. Disponível em https://goo.
gl/jSvpzq - Acessado em 21 de agosto de 2017.
GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes
construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: RJ, 2017.
IVENICKI, Ana & CANEN, Alberto. Metodologia da Pesquisa: rompendo
fronteiras curriculares. Rio de Janeiro: Ciências Modernas, 2016.
JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Homofobia nas escolas: um
problema de todos. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Diversidade
Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas.
166
UNESCO, Ministério da Educação: Brasília, p. 13-51, 2009.
LOURO, Guacira Lopes. Heteronormatividade e Homofobia. In:
JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Diversidade Sexual na Educação:
problematizações sobre a homofobia nas escolas. UNESCO, Ministério
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
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interferência cromática sobre foto de Patricia Richter | temqueter.org
DANIEL CARA
ENTREVISTA A
PROFESSORA
Daniel Cara entrevista Sara York
SARA YORK
169
ENTREVISTA FEITA VIA CONFERÊNCIA PELA
INTERNET, VIA PLATAFORMA YOUTUBE ONDE
PARTICIPARAM:
170
É coeditora do livro Corpos transgressores: políticas
de resistência. É, igualmente, autora de capítulos e artigos
científicos, debruçando-se, especialmente, sobre a vivência
transsexual e travesti e a sua relação com a educação. A
sua investigação centra-se atualmente nos movimentos
transsexual e intersexo na educação e formação. Educacional.
DANIEL CARA
ENTREVISTA A
PROFESSORA
SARA YORK
Daniel Cara entrevista Sara York
171
professora, investigadora, pai, tanta gente bacana, que pensa
avó... Isso eu não sabia hein Sara? em educação para gente como
Depois você tem que contar eu e pra gente que nem é como
isso pra gente. Coreógrafa, eu e nem é como você. Gente
Cabelereira, Maquiadora, que talvez vá chegar um dia e vá
Pedagoga, Múltipla e Subversiva e subverter muito mais do que isso
é como ela se apresenta e Mestre que a gente vem tentado fazer!
em Programa de Pós Graduação Muito obrigada pelo convite!
em educação da Universidade da,
aliás, da gloriosa Universidade do Daniel Cara: Ah, foi uma honra te
Estado do Rio de Janeiro, a UERJ, entrevistar Sara, e acho que todo
e ela tem uma dissertação que foi mundo aqui né, tá se perguntando
super elogiada que é intitulada nesse momento assim, qual é a
“Tia, você é homem? Trans / tua trajetória? Como você chegou
da e na Educação: Desafiando até aqui e o que você pode contar
Cistemas” e aí o “Sis” de Sistemas pra gente sobre a sua trajetória?
é com “C”, e ela vai falar sobre Como você se tornou professora?
isso, e ocupando a pós-graduação, Essa é primeira pergunta, qual foi
na qual nessa atividade, nessa o caminho que você trilhou?
tese, ela investigou as políticas de
cotas para Transexuais e Travestis, Sara Wagner: Eh... Eu acho que
nos programas de pós-graduação eu chego Daniel, como eu gosto
Brasileiros. Minha amiga Sara, de dizer que eu sou uma Travesti
Boa noite! DA EDUCAÇÃO e também sou
uma Travesti NA EDUCAÇÃO
Daniel Cara entrevista Sara York
172
Mais tarde eu fui trabalhar com aquela criança que tem “um
montagem coreográfica, cheguei papai e uma mamãe” e a gente
a ter formação de Ballet Clássico sabe há muito tempo que essas
e Jazz. crianças elas já não são, né? Essas
Fui dançar e já era Sara, já crianças, a onde elas estão? Que
usava salto, mas tinha ainda a criança é essa que tem suporte de
possibilidade te estar f luindo “papai e mamãe” como a gente
o que chamaria de “um corpo acha que existe. A maioria das
gay”, por exemplo. E é justamente famílias do Brasil não tem essa
nesse momento que eu acho que composição familiar, inclusive.
eu vou entender que eu era uma Então eu acho que eu venho
Professora, sendo coreografa, assim, educação é isso aí. E mais
trabalhando profissionalmente tarde, fazendo outros trabalhos,
ainda com um grupo incidente eu tive um filho aos dezesseis
um texto do Chico Buarque, anos e esse filho é retirado
que é “O meu Guri”, com um da minha vida, acho que, aos
texto do Zé Nuaidi, que é um cinco, porque “ninguém quer
musical do Chico Buarque e isso ter um Pai que seja como eu”
em noventa e dois. E ali marcar e talvez ser um Pai como eu
muito bem a minha trajetória fizesse muita vergonha a mãe
de educadora e de professora, naquele momento, e esse filho
porque naquele momento, além desaparece, ele some e eu vou
de fazer a direção de um musical, ficar quinze anos sem ver meu
de ser coreógrafa, eu também filho. Quem tem filho sabe, o que
trabalhava com menores de vale um filho, em que você fica
Daniel Cara entrevista Sara York
173
quinze anos, desisto, tive que preta fabulosa chamada Rita
desistir do meu filho porque eu Monteiro, que foi a primeira VJ
ia enlouquecer, “sem achá-lo da MTV, uma mulher assim,
e procurando e tentando” ... E, massa, é muito bom falar com
dado momento eu desisti desse ela, você iria gostar, e aí ela falou
filho. Eu falei: “Não, ele morreu, assim: “Olha, você vai atender
deixa pra lá e eu não quero mais uma das maiores estrelas, porque
saber disso”. ela quer ser atendida por você” aí
E fui embora tentar outra eu falei: “Ah, mas eu não estou
vida, já tinha formação em cabelo preparada pra atender ninguém
e trabalhando como cabelereira que faça sucesso no Brasil” e ela
me restabeleci rapidamente, fui disse: “Ah, esse você vai querer”
moradora de rua e me restabeleci se chama Elza Soares. Daí eu
com um Salão de Beleza. No falei, “Ah (...)” (risos)
Salão de Beleza no Brasil e para
um Salão de Beleza em Londres Daniel Cara: Ah... Meu Deus do
foi um pulo, porque eu tive uma céu...
formação dada por uma avó,
talvez por isso seja tão caro pra Sara Wagner: (...) E aí eu fui
mim dizer aqui que eu sou uma atender Elza, porque ele iria
avó, e essa geração que tem essa ganhar o prêmio “cantora do
singularidade, essa geração de milênio”. E alí eu acho que (...)
crianças que foram criadas com
avó elas tem “um outro ritmo”, Daniel Cara: E isso em Londres?
a gente compreende como
Daniel Cara entrevista Sara York
174
porque lá eu já estava também E aí a pessoa diz:
trabalhando com educação, “Oi Pai, que saudade do seu
trabalhando com população de cheiro meu pai...”
rua, trabalhando com adictos E era o meu filho.
usuários de drogas ilícitas e essa Ele tinha me encontrado em
foto deu uma circulada e apareceu um Facebook , numa foto de Elza
uma coisa lá no meu Facebook Soares... (emocionada)
dizendo: “Favor ligar para o Brasil
urgente”. “Ah, eu vou ligar pro (...)
Brasil? Não conheço esse povo.
Não tenho parente lá, quero que Daniel Cara: Ah, pode chorar...
todo mundo lá morra” (risos) Uma
coisa bem assim, Olavista, “Eu Sara Wagner: É que toda a vez
não quero saber de nada dessa que eu falo disso, são coisas
gente”. Estava muito magoada muito cortantes nas nossas vidas
pelo processo de perda do meu Daniel e que são banalizadas.
filho, mas aí eu falei: “Ah, eu Toda a vez que eu falava do
vou ligar” e umas duas semanas meu filho e da ausência do meu
depois eu liguei. E foi bem filho, parecia que a minha dor
engraçado, porque eu tava bem era menor do que a de outras
me achando, assim né, “a estrela”, pessoas. Sabe? Toda a vez que eu
aí eu ligo e falei: falava da distância e da minha
“Alô” saudade, parecia que o fato de eu
“Alô, quem tá falando?” ter um filho, o meu filho valia
“Aqui é a Sara, de Londres...” menos do que os outros filhos. E
Daniel Cara entrevista Sara York
175
qualquer lugar que me dissessem Sara Wagner: (emocionada) Ah,
assim, “olha tem uma senhora olha Deniel, eu fiz toda uma
ali que sabe e que vê carta e maquiagem que agora tá indo...
que sabe como é que é”. Todos
esses lugares, quando diziam, Daniel Cara: Que isso, você tá
eu estava lá. Assim eu conhecí linda! Não se preocupe com isso.
Chico Xavier, assim eu conheci E a sua história faz com que você
João de Deus, assim eu conheci fique ainda mais bonita e ainda
Tia Neiva, assim eu conheci mais brilhante. Só para você aí dar
Manuel Jacinto Coelho, da Ordem uma respirada (...)
Racional, da Cultura Racional,
e assim, eu conheci os grandes Daniel Cara: Sara, a sua história
líderes espirituais desse Brasil e é a nossa história, porque a sua
procurando por um filho. história faz parte da construção
Em todos, o meu filho de quem está aqui assistindo
foi menor, porque era eu. o programa, e de todas as suas
(emocionada) alunas, e de todos os seus alunos,
E quando eu encontro o meu de todxs alunxs como você já
filho, já nesse momento, é, eu me ensinou. (risos) E isso é
preciso fazer alguma coisa que importantíssimo, porque é através
faça isso algum significado e eu das histórias, já diriam os grandes
falei: “Eu vou voltar para o Brasil historiadores, já diria o velho Marx
e vou refazer essa história de dar também. Ontem eu dei aula de
aula. Vou voltar, vou dar aula de Marx e falei dessa questão, porque
Inglês, e dentro de uma escola. Eu a história é na verdade aquilo que
Daniel Cara entrevista Sara York
quero ser uma Professora dentro nos faz humanos. Porque a questão
de uma Escola”. E vou contar essa concreta dos seres humanos é
história, até todo mundo saber que eles imprimem uma marca
que existem essas professoras aqui nesse mundo, infelizmente
(emocionada) muitas vezes essa marca é uma
marca de destruição, mas você tem
Daniel Cara: É isso aí Sara, é isso aí, uma enorme e bela marca de
mesmo, e tem que contar essa construção.
história mesmo. E aí me conta: Você se torna
professora e como é ser Professora
176
(...) fazer uma faculdade e aí eu fui na
Faculdade e passei. Já fiz a prova e
- (Sara Interrompe) - já passei na Universidade, chama
“Universidade”aí ele fala assim:
Sara Wagner: (...) Ah, peraí, antes “Ô Pai, nessa Universidade
disso, eu preciso contar uma coisa qualquer um passa, é só passar
antes... E aí, eu tenho que voltar com a identidade lá que eles te
pro Brasil, e quando eu volto para passam!”
o Brasil, na minha cabeça tá tudo Eu falei – “Ah é?”
muito fácil: Eu chego aqui no “É, isso se chama
Brasil, eu conheço alguém e aí Universidade Privada, no Brasil é
alguém me indica para uma escola assim, nesses Universidades você
pública e eu começa a dar aulas; passa de qualquer jeito. Agora, na
Tudo simples, tudo resolvido. E pública é que é difícil”.
quando eu chego aqui no Brasil E aí, eu fiquei muito
não era nada disso. Tinha que constrangida com o comentário
prestar um concurso público se dele, porque ele estava fazendo
quisesse estar la dentro, tinha que uma piadinha de mau gosto
ser capacitada, tinha que passar e eu achando que eu estava
por um processo exigido pelo MEC maravilhosa na vida, aí ele falou,
e o MEC não facilitava naquele “não, não é assim não”. E eu vou
momento, agora facilita, agora tem prestar o vestibular na UERJ,
uma “outra história por aí”, mas o ingresso no vestibular na UERJ e
MEC àquela altura, o MEC desse passo no vestibular também, e aí
professor que a gente gosta, que eu já estava numa Universidade,
Daniel Cara entrevista Sara York
177
então você passa aqui, pelo que eu O que significa isso Daniel? Na
tenho informação, pela Estácio de pós-graduação, eu sentei uma vez
Sá, né? ao lado de um colega que falava:
“Eu tô fazendo uma pesquisa,
Sara Wagner: Isso. e falo palavrão com os alunos
do Ensino Fundamental” E eu
Daniel Cara: Na Estácio de Sá desconstruo isso para o aluno do
e na UERJ você se forma e aí Ensino Fundamental, eu explico
você vai dar aulas. Como que como é que esse palavrão pode
é a sua chegada na Escola? reverberar negativamente quando
Primeiro, importante dizer Sara, ele pensa uma série de coisas.
o município que você atua, você Quando eu chego na sala de
atua já no seu município? Ne? aula, numa das primeiras aulas,
eu escrevo lá vários palavrões
Sara Wagner: Eu atuo, mas na lousa, e vou perguntando
hoje eu estou atuando só como quais eles conhecem e quais
Professora de ED pelo EAD eles utilizam e isso numa sala,
da UERJ. Estou professora em uma mesa de pós-graduação
Universitária a distância na ao meu lado, daí eu falei, “Cara,
UERJ. Estou colaborando com a isso é um gênio. Isso é um gênio
“informática na educação’ com maravilhoso!” Porque você mostra
a Professor Ediméia Santos, aqui que é um privilégio do
Ediméia da ABECYBER né? Do homem “cis-hetero”, porque eu
GT vinte seis, então estou com não posso fazer a metade disso. Se
esse pessoal. Sou orientanda do eu colocar um palavrão no quadro,
Daniel Cara entrevista Sara York
178
desentendida, mas depois eu e tem o “público”. Então eu não
comecei a pensar: posso fazer certas perguntas ao
“Operada de quê?” - e eles Daniel, porque subentendesse
diziam: que: “peraí, isso é do campo da
“Ah Professora, você sabe! intimidade dele”, mas como é
Você fez aquela cirurgia de com a Professora Sara, aí não,
mudança de sexo?” a esculhambação é aberta e aí a
Eu falei – “Amor, isso é muito gente pode fazer o que a gente
íntimo, você já perguntou a algum pode.
professor de matemática se ele já E essas nuances elas
fez cirurgia de fimose?” (risos) começaram na sala de aula a
E aí eu escapava daquela. fazer muita diferença nas escolas
(risos). Porque aí também a gente em que eu passava, porque
começou a questionar: perguntava, o que é que o aluno
“Professora, você já colocou estava tentando dizer? E com
tal coisa” perguntas que também faziam
Daí eu dizia – “Você já essa sala de aula repensar as
perguntou isso pra alguma outra suas dinâmicas de ensino e de
Professora”? aprendizagem.
Daí eu comecei a perceber “Porque que a gente vai
que existia espaço para “alguns poder falar desse corpo público
corpos ocuparem uma sala de aula da Professora Sara, e a gente não
e não tinha para outros”. Então, pode falar desse corpo público da
quem pensa em perguntar para o professora fulana ou professor
Daniel Cara do corpo dele? fulano, porque o corpo desse
Daniel Cara entrevista Sara York
179
gente quer morrer... Né? Porque Daniel Cara: Então Sara, só
a gente pensa: “Nossa, ela uma observação, primeiro, eu
também?”. vou mandar um beijo para a
E isso é uma coisa que Cassia Nonato e pela presença
é do sentido do comum, do e participação dela aqui, é
corriqueiro, do cotidiano e importante para todo mundo que
daquilo que atravessa as nossas nos acompanha, que você explique
vidas e que talvez, para algumas esses termos, porque a maior
pessoas, não vai fazer sentido parte das pessoas não conhece,
e para outras pessoas vão fazer inclusive, quero dizer que estamos
TODO o sentido. sendo acompanhados por vários
estudantes da Universidade de
- (CORTE PARA A SARA São Paulo, do curso de pedagogia,
COMENTANDO UM eu quero mandar um abraço
COMENTÁRIO, POSTO para os meus alunos e para as
NA TELA, TRAZIDO PELA minhas alunas, vários estudantes
PARTICIPANTE CÁSSIA de escolas públicas... Então,
NONATO ONDE LÊ-SE: “Em esses termos, para uma parte
todo local em toda instituição o desse grupo ainda são termos
corpo trans é entendido como desconhecidos, então, seria
público. Ridículo, pequeno isso importante que você explique
em pleno ano 2020”) - então. A Cassia ela tem uma filha
que é Trans e ela é Intersexo,
Sara Wagner: A Cassia Nonato, então, o que isso significa?
que vem trazendo aqui pra
Daniel Cara entrevista Sara York
180
ela nem existe, então esse aluno você já viu, ou seja, isso é MUITA
ele não vai existir. GENTE. É muita gente, um corte
Porque é importante a gente, de 0,7 de uma população toda, ser
aqui, trazer o corpo “Intersexo” e Intersexo no mundo, que tem esse
a Cassia entra tão fabulosamente corpo, e que esse corpo pode ser
trazendo essa memória e essa diferenciado em regime igonodal,
lembrança. Nós gravamos uma ou seja, testículos e ovários, pode
live com as mãe da ABRAI e isso ser correlação a fenótipos, quer
tá na página da ABRAI, que é a dizer “as estruturas externas”,
Associação Brasileira de Intersexo, aquilo que pode parecer mais um
e lá tem muita coisa falando disso. pênis ou mais uma vagina, ou
O mais interessante Daniel, é pode parecer uma outra proporção
que estimasse, a Organização da que a gente não conhece e isso
Nações Unidas, estima que entre está no nosso dia-a-dia, no nosso
0,5 e 1.7% da população mundial cotidiano, está nas ruas do Brasil.
seja Intersexo, ou seja, de cada E essa escola que a gente aprendeu
cem pessoas que nós vemos, que existia, ela não considera
quase duas são Intersexo. esse corpo! Ela não discute com
Mas como assim? Eu vou te esse corpo! Exatamente como a
perguntar:“Você já viu alguma pornografia, eu pergunto a você:
pessoa de cabelo ruivo e que tenha “Quando foi que você aprendeu
cabelo ruivo na sua vida?” coisas sobre sexo”? A gente tá
dando um curso agora que se
Daniel Cara: Ah, sim, sim. chama: “Introdução a Teoria
Queer” pelo PROINICIA da UERJ,
Daniel Cara entrevista Sara York
181
Então perceba, que inclusive, nessa discussão, ou um corpo gay,
enquanto a nossa produção de um corpo lésbico, uma mulher
subjetividade do corpo, “no lésbica, um homem gay... Quando
fazer do prazer”, tá relacionado esses corpos chegam em uma
justamente a uma forma que é Escola eles causam desconforto.
violenta para a mulher. Sempre Por que que causa esse
colocam o homem como uma desconforto? Porque não existia
“grande coisa’ e a mulher como “aquilo” até então. Então esse
“algo menor”, então, todas corpo tende a ser rechaçado, a ser
essas instâncias, elas acabam retirado, até que a gente pega essa
passando por esse “corpo” que é lente e diz: “Não, vamos olhar isso
“naturalizado para a Escola”, o que mais de perto, deixa eu ver aqui
significa, “para você falar, tá ok, de perto se a gente tá normal...” E
porque a gente não vai falar da aí, como dizia o grande poeta: “De
sua genitália”, “eu não vou falar perto, ninguém é normal” Né?
de sexo com o Professor Daniel” Ninguém é normal.
né? “Eu não vou falar de sexo A gente tem todas as nossas
com a Professora Catarina, que é ‘nuances’ das nossas vivências,
a nossa parceira aí né? Ora, com e a gente tenta se aproximar,
a Professora Catarina eu não vou de alguma forma daquilo que é
falar de sexo...Não vou falar, por descrito, nas nossas ciências, bio-
exemplo, de silicone, implante.... medico-patologisantes muitas
“Ah, mas com a Professora Sara, vezes, porque a medicina também
eu posso”. faz esse favor para a gente, porque
Então, todas essas dinâmicas, a medicina foi se desenhando
Daniel Cara entrevista Sara York
182
muito de “Marcas da Diferença”, da sua coordenação, mas também
a diferença como “marca” pensando junto com grandes
social. Acho que é isso. (...) Muita nomes dessa área, e aí, a gente
coisa né? Muita coisa a gente tá pode falar aqui da professora
falando... Liliana, a gente pode falar do
Professor Wagner Santana, gente
Daniel Cara: Sim. Deixa eu da melhor qualidade, e aí você
contar aqui para algumas estão vendo aí na tela. (...)
pessoas, porque algumas pessoas
perguntaram qual foi o guia que - (CORTE PARA A CAPA
você citou e eu aqui passei para a DO GUIA: “GUIA COVID
minha chefa, a Cátia Passos, aqui 19 – EDUÇÃO ESPECIAL NA
na técnica, para ela dispor o link PERSPECTIVA INCLUSIVA -
aqui para as pessoas, mas o guia INFORME-SE E SAIBA COMO
que a Sara cita, é o “Guia Nacional AGIR, COBRAR E TRABALHAR
pelo Direito a Educação”, que PELA EDUCAÇÃO DE MANEIRA
trata da educação na Pandemia na COLABORATIVA) -
perspectiva da inclusiva, inclusive
é o primeiro guia, e a Sara pode Sara Wagner: (...) vocês podem
contar isso pra gente, que ela é ver que é um Guia de Educação
autora com dois nomes que se Especial dentro de uma
apresentam no guia. Então seria perspectiva inclusiva: “O quê que
legal até pra gente você contar significa isso?” Pensar a criança
essa construção que foi feita na com deficiência, mas não apenas
Campanha Nacional pelo Direito isso, pensar em uma criança com
Daniel Cara entrevista Sara York
183
AGIR, COBRAR E TRABALHAR sujeitos e militarizar estruturas,
PELA EDUCAÇÃO DE MANEIRA como algumas pessoas tendem
COLABORATIVA) - insistentemente em dizer. Então
eu coloco os dois nomes pra dizer:
Sara Wagner: (...) e a gente pensar “Olha, eu tenho dois nomes, um é
que essa criança é uma criança social e o outro é o registro cível”.
com deficiência, mas que pode E pela primeira vez a gente teve
e vai se tornar um adulto, que que justificar isso, e aí, muito
também tem as nuances dos prontamente eu fiz esse pedido
direitos sexuais e reprodutivos, e a quem estava desenhando esse
em direito ao prazer, tem vários guia que é a Andressa, “Andressa,
direitos que são assegurados a coloca um asterisco e explica
essa criança. que isso é uma parte política de
E aqui, a gente fez uma inserção do nome social a pessoas
coisa meio ousada que foi trazer Trans e Travestis”.
os dois nomes: Eu coloquei o Por que que eu estou dizendo
nome “Sara Wagner York”, que que eu sou Travesti, Daniel?
é meu nome no Instagram, no Seria muito fácil eu dizer que
Facebook, no Midium, onde tem sou uma Professora Trans. Eu
vários textos meus, mas também sou uma mulher Trans, ou eu
coloquei “Sara Wagner Pimenta só sou uma mulher. Poderia
Gonçalves Júnior, porquê Daniel? fazer isso, a partir da Lei de
Porque Sara Wagner York é o 2018, que permite retificação
meu nome social e isso é um documental. Mas a gente
nome que é muito utilizado por “aciona” a Travesti, justamente
Daniel Cara entrevista Sara York
184
vender o corpo, pra mim, tudo de prostituição no Brasil, e dizer:
faz sentido. Agora, o que não é “Essa pessoa, pode também ser
admissível é que a prostituição uma Professora.
seja o único local que uma Trans E aí com muito orgulho eu
possa estar, e as Travestis no digo: Eu sou uma Travesti da
Brasil, estão sempre relacionadas Educação! Eu sou uma Travesti
a prostituição e de modo na Educação! E isso precisa ser
muito ardiloso pelo sistema repetido, mas às vezes cansa...
governamental, como sujeita de Não é? Às vezes cansa e parece
segunda categoria, como pessoas que a gente tá falando sempre
com menos direitos e a gente a mesma coisa. E por que que
precisa lembrar: “Mulheres Trans a gente tem que repetir muitas
e Travestis são retiradas das e muitas vezes? E aí, você
escolas, são expulsas do Sistema me ajuda muito quando você
Escolar, porque são simplesmente repete também, porque a gente
“Trans”. Então quando começa, tá lutando contra um sistema
bem entre aspas, a “enviadar”, “hegemônico”, onde você vai ser
ou a “ensapatiar”, por exemplo sempre entendido, como uma
né? Se é que existe esse nome, coisa que “você é aceita” e eu
aí a Escola não gosta mais dessa como uma coisa “que talvez a
pessoa, ou ela tolera, desde gente aceite”.
que não fale bobagem, desde Então, eu estava brincando
que não haja de certa forma, e com você e com a Cátia antes da
a gente vem repensando tudo gente começar: “Ô Daniel, você
isso, porque a gente quer uma não sabe que meninos vestem
Daniel Cara entrevista Sara York
Escola que olhe para o Daniel e azul e meninas vestem rosa? Ne?
que diga: “O Daniel é um grande A a gente riu disso e isso é uma
homem da educação”, a gente forma de uma frase dita pela
quer olhar para outros corpos e Ministra da Família desse país,
dizer: “Esses corpos também são que parece que é um absurdo,
da educação”, mas a gente quer mas não é absurdo! O que ela
também olhar para uma Travesti, tá dizendo é: Vamos trocar um
que poderia também compor os pouquinho as palavras: “Se eu
noventa por cento do corpo da disser pra você, ‘meninos vestem
educação, que estão em situação calça e meninas usam saia e
185
vestido’ aí vai fazer sentido”. eu tô sendo apagada? Por que que
Porque você não vê homens por a minha história ela é menor? E o
aí andando de saia ou de vestido. tempo todo a gente fica pensando:
Então quando ela aciona a “cor”, “Quanto serão os outros
ela está falando de “um aspecto”, parceiros?” Eu sei que o Daniel
mas a gente pode intercalar isso já é o meu parceiro... Eu sei que
como múltiplos aspectos e em quem tá aqui ouvindo, pode ter
todos esses aspectos repensados, empatia, pode decidir caminhar
a gente sempre vai entender junto, pode dizer “olha, eu vou
que um corpo feminino ele é conhecer mais essa mulher, vou
subalternizado, ele é diminuído, entender melhor o que ela tá
ele é melhor. Se esse corpo falando”, mas tem muita gente
for feminino e negro, então que vai dizer: “A cloroquina me
ele é muito menor, e se ele for curou” (risos)
feminino, negro e travesti, ele Alguém vai dizer “que a terra
está praticamente condenado a é plana”, e que a minha vida vale
morte, neste país que mata tudo muito porque somos todos iguais.
que é diferente. Começando pela Mas eu digo, na realidade, no dia
história, quando alguém diz: a dia, no cotidiano, a cada passo,
“Eu não quero ouvir isso aí que será que somos todos iguais? Eu
você está falando, essa pessoa sinto isso cotidianamente. E eu
não precisou me dar uma facada, tento criar esse aspecto, para que
porque ela começou matando “alguns alunos meus” possam
e minha história” E aí Daniel, inclusive, estar de igual para
(emocionada) eu volto, lá no igual. Mas eu vejo, que alguns
Daniel Cara entrevista Sara York
186
hoje no Brasil para lidar com as de um modo omisso e isso não vai
diferenças? O último ENEM mudar até que a gente entre, em
trouxe para gente isso, no último todas as salas de aula e explique, a
Governo Dilma Rousseff, a gente gente tentou fazer isso, de “baixo
teve uma discussão com os pra cima”. A gente tentou isso
surdos, com a comunidade surda. tentando falar com os Professores,
Naquele momento Daniel, a gente mas infelizmente, a gente ainda
não sabia sequer, como que os precisa vir de “cima para baixo”
alunos que iam e lidavam com e aí de “cima para baixo’ vem a
a diferença, poderiam discutir política de cotas.
esse “capacitismo”, a gente
estava falando de “capacitismo”, Daniel Cara: Sim. Você sabe?
que pode ou não acionar o Deixa eu te contar uma história
conhecimento à partir da sala de bem rápida aqui, sobre essa
Aula, tendo um corpo da diferença “figura” que infelizmente ocupa a
ali ao lado. A gente tinha muitos Presidência da República:
poucos dados naquele momento O ano é 2011 e a Campanha
e isso com uma política que Nacional pelo Direito a Educação
pensava em várias frentes, fez uma Semana de Ação Mundial
imagine agora, que a gente sobre o “Direito a Educação e a
consegue dizer para uma jovem, Diversidade” e era o primeiro
em situação de abuso, a onde ele ano do Governo Dilma, e a
pode encontrar um programa do escolha do tema era, na época
Governo que lhe atenda. E aí, eu que quem coordenava a semana
preciso lembrar aqui, que durante de ação mundial era a Iracema
Daniel Cara entrevista Sara York
187
até porque era resposta a toda também na primeira fila. O
articulação política que Eduardo Deputado Tiririca ele chorava. Ele
Cunha e Jair Messias Bolsonaro, não tem um bom desempenho
e outras figuras nefastas que parlamentar não porque ele
a política brasileira tinham falta em muitas sessões, ele
desencadeado e articulado aquilo faz muitas brincadeiras, mas
que tinha-se falado o que era naquele momento era o primeiro
Homofobia, que era o “Kit contra mandato dele, e ele disse pra
Homofobia” que eles batizaram gente assim: “Olha, eu quero
como “Kit Gay”. fazer jus ao mandato fazendo
E aí a gente faz a semana de parte dessa luta”. E o Bolsonaro
ação mundial com muito apoio ficou sabendo, e eu sou de
de uma grande mulher, que é Pirituba, hoje eu não moro mais
a única Governadora de Estado em Pirituba, mas Pirituba nunca
do Brasil, que é a Governadora saiu de mim, quando eu vejo
Fátima Bezerra, na época o Bolsonaro entrando na sala
Deputada Federal, a gente faz a já fazendo provocação, ela na
semana de ação mundial Sara, hora era um Deputado Federal,
lotou como nunca tinha lotado na hora eu saio da mesa e vou
o corredor das comissões, que é enfrentar o Bolsonaro, dizendo
o plenário da CCJ, nunca foi tão que ele não entraria ali, eu nem
lotado na vida daquele plenário, e tinha direito de fazer aqui, ele é
aí a gente lota com um monte de parlamentar e ele poderia entrar
gente e na mesa estava presenta a onde ele quisesse, mas eu peitei
uma mulher trans que ela fala o Bolsonaro e ele ficou, porque
Daniel Cara entrevista Sara York
sobre esses temas que você traz também o Bolsonaro é “cão que
presente “sobre a dificuldade ladra mas não morde” na hora
que ela teve de se formar e H, e tem isso também né? O
porquê ela foi para a educação Bolsonaro ele é extremamente
de jovens e adultos, porque na homofóbico e extremamente
verdade quando ela era criança, machista, mas quando ele se
a escola expulsou ela, e só dois depara, por ser extremamente
parlamentares acompanhavam homofóbico e machista, com
a sessão, Fatima Bezerra na outros homens, porque tinham
primeira fila e o deputado Tiririca outros homens comigo ali,
188
fazendo pressão sobre ele, indo eu discutir com o Bolsonaro,
covardemente ele sai da sala e não ela quase pulou por cima de mim.
entra em discussão, e que eu não (...)
ia as vias de fato até porque não
caberia isso, mas eu fui lá para Sara Wagner: (...) e você lembra
intimidá-lo querendo desrespeitar Daniel, qual era o nome dessa
as pessoas que estavam na sala. mulher Trans?
E aí o que eu quero te dizer
Sara, é que foi a audiência Daniel Cara: (...) Era a Bianca.
pública mais lotada, da história Era a Bianca que estava lá. A
da Campanha Nacional pelo Bianca que ela era da BGLT, e ela
Direito da Educação, e só dois tinha uma fala belíssima, minha
deputados estavam presentes na amiga também né? Participou
mesa e aí eu faço uma crítica para de várias atividades comigo no
a Direita e para a Esquerda, na Conselho Nacional de Educação,
mesa estava uma mulher Trans, ela teve uma fala belíssima e
e eles não queriam aparecer na tinha uma palestra que ela fazia,
foto da atividade porque alí havia que foi a base dessa fala e que
uma mulher Trans, e é por isso chamava atenção pelo fato de que
que eu digo: Faz toda a diferença ela não tinha direito a educação
a Governadora Fátima Bezerra assegurada porque a escola a
no Governo do Rio Grande do expulsou. O Sistema de Ensino a
Norte porque a Fátima Bezerra expulsou.
ela enfrenta todas a brigas que
precisam ser enfrentadas e eu Sara Wagner: Exatamente!
Daniel Cara entrevista Sara York
189
você traz, porque, diz exatamente a aceitar isso, e a pergunta sobre
sobre a sociedade que nós temos, essas demandas é: Quem você
que é uma sociedade que “aplaude vai procurar? Por exemplo: Eu
o filho que migra”, mas que pergunto a você. Daniel, como é
recebe “com pauladas o filhos dos que se preenche diário de classe
outros que vem”. Então, quando o por exemplo? Você é Doutor em
meu filho vai, eu aplaudo, a gente Educação, por uma das mais
faz festa, mas quando o “filho de Universidades respeitadas do
outro alguém vem”, a gente não país e com muitas coisas dentro
recebe do mesmo jeito. da educação que você não saiba!
Imagine que eu falei de vários Essa pode ser uma delas! Mas
assuntos aqui e você conseguiu quando essa pergunta é lançada a
correlacioná-los com uma fala mim, que sou uma mulher
de Bianca que é de 2011, então, Trans e uma Travesti na Educação
são muito poucos os passos que e da Educação, se eu não souber
nós demos. Nós demos alguns essa resposta, eu sou inclusive,
passos que merecem ser pensados inferiorizada por saber menos.
e ditos. Em 2014 a gente tinha a Então, dentro do campo da
possibilidade, ainda, e em 2014, Educação eu preciso saber de:
olha lá quem era o Secretário de Quais são os procedimentos para
Educação hein? Era o Professor colocar o nome social no diário
Fernando Haddad de novo, a escolar, que é um trabalho técnico
gente tem o nome social no e eu sou mestre em educação,
ENEM, isso (...) e me coloca a pensar em outras
coisas, mas se eu não souber
Daniel Cara entrevista Sara York
190
amigos brancos, homens heteros, uma outra qualidade não. Eu
bonitos e todo mundo falava “ele escolhi não estar na Medicina, e
merece, é muito difícil passar escolheria MUITAS VEZES ser a
para medicina”. Em 2016 um pedagoga que eu sou, porque aqui
aluno meu me perguntou: “Ah eu aprendi como que se aprende
Professora, como é que você vai esse trabalho tão artesanal que
dar aula de produção de texto se é “aprender para si que é para
você não fez o ENEM? Você já fez aprender como lidar com o outro,
o ENEM?” eu falei “Não” e ele para aprender como facilitar
falou; “Ah, então você tem que compreensões para quem a gente
fazer o ENEM e aí você vai saber acha que, supostamente, a gente
se realmente você vai dar conta ou consegue educar”.
não”. E eu falei: “Ah, então tá, eu
vou fazer o ENEM!” Daniel Cara: Exatamente.
E na época eu passei no Então, só aqui, para eu poder te
ENEM (...) dar um respiro, mostrar aqui
como a nossa live está sendo
- (CORTE PARA SARA acompanhada por muita gente (...)
MOSTRANDO A FOLHA DE SUA
APROVAÇÃO NO ENEM EM - (CORTE PARA DANIEL
MEDICINA) CARA COMENTANDO AS
INTERAÇÕES COM OS
Sara Wagner: (...) então, tá aqui a PARTICIPANTES DA LIVE QUE
prova, ó, eu passei no ENEM com PARABENIZAM SARA PELO
o meu sobrenome. Consegue ver? TRABALHO)
Daniel Cara entrevista Sara York
191
Alexandre ele tem um conceito de ser homem, de ser mulher,
que chama “cidadâniedade”. que muitas vezes, muitos de nós
A gente tem vários conceitos somos. Quem nunca ouviu uma
cidadania, de cidadanização, mas mulher ou uma avó dizendo
o conceito de cidadâniedade, que assim: “Eu sou muito mais
foi cunhado por Alexandre Nabor homem do que esse fulano, ou um
e interessantíssimo, porque ele homem falando; ‘Ah, eu faço igual
diz, eu estou dizendo “a muito mulher’; tudo isso são dinâmicas
grosso modo para ser rápida”: Ele de uma performatividade de um
diz que o Estado vem e dá uma roteiro de gênero que a gente não
série de coisas para o indivíduo, pensa. Mas que a todo tempo é
é só ele ir lá e tomar posse, então reforçado em nossa cultura.
por exemplo: O Direito tá aí, é
só você ir na Assitência Jurídica, Daniel Cara: Muito bom,
e você ir lá e fazer o que tem ó, uma outra pessoa aqui te
pra você fazer, o problema é que parabenizando a Cassia Nonato, tá
algumas pessoas não se sentem sinalizando muito aqui no nosso
DIGNAS de ser esse CIDADÃO, chat, comentando a sua fala,
e aí não basta a cidadanização reforçando os argumentos que
acontecer, e aí precisa se pensar você traz, e também agradecer
a “cidadaniedade”, que é o sujeito mais uma vez a Cassia. (...)
se sentir capaz de se sentir
importante minimamente para - (CORTE PARA DANIEL
lutar por essa cidadania que a CARA COMENTANDO AS
gente pensa. Isso é fabuloso! E INTERAÇÕES COM OS
Daniel Cara entrevista Sara York
192
todos, ela é de graça e ela tem que acompanhando esse nossa
ter todos esses viés que precisam conversar, essa nossa conversa
ser ditos, mas mais que isso, é que fala sobre inclusão da
uma educação que é pensada Educação. Eu gostei muito desse
no viés do atendimento que ele conceito da “Cidadaniedade”,
entende que é um cidadão, e que é a cidadania vinculada
àqueles que não sabem ainda que com a ideia da dignidade, de
são merecedores dessa educação. reinvindicação da cidadania,
Porque Educação é Direito! Eu que todos devem ter o poder de
estou indo para a pós-graduação e reivindicar os direitos, porque
para um programa de Doutorado concretamente se trata disso. E a
agora, e eu não vou porque eu sou gente conversa aqui com a Sara
bonita ou a garota sensação, eu York, e querendo reforçar que a
estou indo porque é um direito nossa audiência rotativa, que ela é
meu prosseguir nos meus estudos, professora e mestra em educação,
e isso a gente precisa dizer uma mulher Trans, Pai, Avó e uma
insistentemente. mulher Travesti e ela explicou
a importância reconhecer a
Daniel Cara: É isso aí, e temos identidade dela como Travesti,
a Ana Paula Orlandi, que é mãe dando uma aula para todas e
do meu grande amigo Gabi, e ela para todos nós, e para todxs nós
tá mandando: “`Parabéns Sara, também.
precisamos de vozes corajosas Sara, uma pergunta muito
aqui no Brasil, então um beijo Ana importante que tem muita
Paula. gente querendo acompanhar o
Daniel Cara entrevista Sara York
193
face autora da nossa amiga Sara, “A escola, apesar da gente falar
a minha amiga Sara, então, conta muitas vezes que a escola é isso,
pra gente aqui! a escola é aquilo, é bom a gente
lembrar; não é a Escola. Alguns
Sara Wagner: Daniel, eu acho que sujeitos da Escola se sentem
a gente está construindo novos “os donos da escola’ quando na
moldes, como diz o Paul Preciado: verdade, a Escola é um lugar
“Vai chegar um dia que a gente PÚBLICO! E aí, dentro desse lugar
vai sentir vergonha que a gente que é público, qualquer um de
categorizava pessoas pelo que elas nós manda. E manda com muita
tinham entre as pernas”. E esse categoria.
dia está chegando, esse dia está Então assim, quando alguém
chegando, porque a gente parte diz e coloca “que a escola não
do pressuposto que a gente sabe o presta”, ela precisa muito rever de
que todo mundo tem pelas roupas, que escola é essa de que ela está
pelos cortes de cabelo e pelos falando, porque provavelmente, o
pêlos que ela usa, mas a vida é que ele tem como noção de escola,
muito maior do que isso. é na verdade, UMA PESSOA
E talvez pensar tudo isso a QUE ESTÁ LÁ DENTRO UM
partir dessas análises (...) SERVIÇO QUE NÃO ATENDE
A MAIORIA DAS PESSOAS, que
- (CORTE PARA SARA não atende um determinado
MOSTRANDO A CAPA DO registro MINORITÁRIO em
LIVRO CHAMADO “EDUCAÇÃO prol de um grupo, porque a
EM DISPUTA”) escola não é isso. A escola é
feita, como tudo na vida, é feito
Sara Wagner: (...) e aqui a gente de pessoas, infelizmente, em
tem o “Educação em Disputa” um alguns momentos, tem essas
livro que é feito pelos Professores “emergências”; esses sujeitos mais
Daniel, Jessica e o Rodrigo e que NOCIVOS, por assim dizer, e aí a
foi organizado por eles; A gente gente precisa lutar muito, contra
fala dessa educação que a todo esse tipo de escola (...)
tempo é ameaçada. O tempo a
gente precisa estar fazendo laços - (CORTE PARA SARA
e é muito importante dizer que: MOSTRANDO A CAPA DO
LIVRO CHAMADO “GÊNERO, organizado pela Ana Maria
SEXUALIDADE E GERAÇÃO Barbará e por Sérgio Luiz Baptista
– INTERSECCÇÕES NA da Silva, porque eu quero que todo
EDUCAÇÃO E/M SAÚDE”) mundo que esteja nos assistindo,
Daniel, saiba que isso aqui é
Sara Wagner: (...) esse livro Universidade. A Universidade
aqui, é um livro a qual eu tenho tem um monte e tem algumas
participação em um capítulo; pessoas que a gente nem sabe
que é o “Gênero, Sexualidade e porque existe, mas a Universidade
Geração”, que é organizado pelos tem tanta gente que a gente
Professores Fernando Bocaife, quer beijar na boca, a gente quer
Felipe Carvalho, Nilton... (...) abraçar, a gente quer trazer para
perto e essas pessoas existem.
- (CORTE PARA SARA Gente como você, gente como o
MOSTRANDO A CAPA DO Fernando Horta, que bota a gente
LIVRO CHAMADO “ESTUDOS pra pensar lá na UNB, gente como
SOBRE GÊNERO, IDENTIDADES, as grandes pessoas da UNIRIO, eu
DISCURSO E EDUCAÇÃO – eu falei agora pouco, a Luly, e (...)
HOMENAGEM A JOÃO W.
NERY”) - (CORTE PARA SARA
MOSTRANDO A CAPA DO
Sara Wagner: (...) E esse livro aqui LIVRO CHAMADO “CORPOS
é uma homenagem a João W. TRANGRESSORES – POLÍTICAS
Nery, organizado pelo Professor DE RESISTÊNCIA”)
Dani, da Universidade do Mato
Daniel Cara entrevista Sara York
Grosso e por que que eu estou Sara Wagner: (...) E esse aqui é um
trazendo esse pessoal? (...) outro livro, esse aqui eu organizei
também com Professores daqui,
- (CORTE PARA SARA do Mato Grosso, do Rio de
MOSTRANDO A CAPA DO Janeiro, e aí um livro que eu estou
LIVRO CHAMADO “NOS lendo, que eu ganhei do Alexandre
BABADOS DA ACADEMIA”) Magno, que é um parceiro (...)
195
LIVRO CHAMADO “EDUCAÇÃO SEXOS’ E CARDIOPATIAS”)
CONTRA A BARBÁRIE”)
Sara Wagner: (...) que é a história
Sara Wagner: (...) É esse aqui, não do Jacob. O Jacob é esse bebê
sei se você conhece? Daniel, que ele nasceu como
uma cardiopatia e ele é intersexo.
Daniel Cara: Conheço. Tá aqui ó?! É um bebê que não tem uma
genitália definida, e tem múltiplas
- (CORTE PARA DANIEL CARA cormobidades. E no primeiro dia
MOSTRANDO O LIVRO QUE de vida intra-uterina, na barriga
ESTAVA ATRÁS DELE EM da mamãe, até o último, ela
UMA ESTANTE, O MESMO era encorajada a abortá-lo pelo
CHAMADO “EDUCAÇÃO sistema de saúde.
CONTRA A BARBÁRIE”) Então, o Sistema de Saúde,
o Governo, ele... “O que você tá
Sara Wagner: (...) É esse aqui dizendo Sara? Deixa eu ver se eu
eu ainda estou lendo, que é do entendi direito: Você está dizendo
Fernando Cássio, que é idealizado que o Sistema de Saúde aborta
por ele, e que tem um trecho lá crianças?”
seu, e me perco nessas aqui né? Sim. Sim, esse Sistema faz
(...) isso! E faz quando uma criança
custa caro para ele. Então
- (CORTE PARA SARA uma criança com “múltiplas
MOSTRANDO A CAPA DE DOS cormobidades”, e que é cardiopata,
LIVROS DE “BELL HOOKS”) e que é intersexo e que custa
Daniel Cara entrevista Sara York
196
O ANJO”, Então é isso. Histórias lutas pelo direito a educação,
que a gente ignora, que a gente mas quero te dizer que a cada ver
não vê, que a gente precisa muito que eu te encontro, mesmo que
compreender, isso tudo tá dentro seja um encontro a distância, eu
da sala de aula. Tudo isso que a aprendo mais e mais com você,
gente tá falando Daniel, corrobora e é uma pena que a gente tenha
para uma sala de aula excludente e que finalizar um programa e já
sem a diferença e sem a diferença, quero te fazer um pré-convite,
todos nós perdemos. Com a para em uma outra oportunidade
diferença, todo mundo aqui a gente dar sequência a essa
ganha, porque a gente aprende a conversa, para você mostrar o
lidar com o outro, a gente aprende seu trabalho, pra gente tocar em
a respirar, a viver e a ser melhor outros pontos né?
no mundo. Nessa uma horinha que a
gente teve aqui contigo, mas
Daniel Cara: Muito bom Sara! eu queria fazer as duas últimas
Sara, a gente infelizmente tá perguntas que é uma tradição
chegando aqui no fim do nosso do nosso programa, antes de
programa, tudo que é bom uma fazer essas perguntas, eu quero
hora acaba! Uma tristeza isso agradecer à minha chefa, a Cecília
né? Mas todo mundo gostando Bacha, que nos acompanha aqui
demais aqui da entrevista. Eu e que muitas vezes faz a técnica
posso te dizer que é uma das aqui que ajuda a gente a construir
entrevistas que eu estou mais esse programa, ao Fernando Sato,
aprendendo. o “rei do misto-quente”, que é
Daniel Cara entrevista Sara York
197
os governos Lula e Dilma, e Sara Wagner: (...) e eu chorando
aí vem um recado de Aluízio (emocionada)
Mercadante que, “ele não era o
Ministro na época do nome social, Daniel Cara: (...) É.... Muita
mas era o Ministro da Casa Civil gente importante do debate
e como Ministro da Casa Civil educacional: Então, agora chega
ele orientou à época o Ministro aquele momento triste com duas
da Educação, que era o Ministro perguntas que são importantes
José Henrique Paim”, e dizer que e tradicionais aqui no nosso
ele “tá muito orgulhoso da sua programa, a primeira pergunta,
entrevista, e te manda um abraço Sara, é: Qual é a sua dica cultural?
e um beijo, agradece a sua fala e As pessoas querem saber o quê
ele diz inclusive que ele encerra que a Sara curte fazer, curte ouvir,
a passagem como Ministro da o que que ela curte ler... Enfim,
Educação fazendo uma atividade o que que você indica para todo
no INEP”, uma atividade que mundo que nos acompanha, que
contava com a minha presença está assistindo agora, e que vai
também, a gente lançando o assistir depois como dica cultural,
SINAEB, que era uma ideia da nessa dura pandemia que a gente
Campanha Nacional do Direito a enfrenta no Brasil e no Mundo?
Educação, dos SEDES, que consta
no Plano Nacional do Direito Sara Wagner: Eu acho que eu tive
a Educação, que é o Sistema um problema no olho, e eu não
Nacional de Avaliação da Educação pude enxergar, durante dois dias.
Básica, que iria trazer avaliação Eu sou uma mulher deficiente, eu
Daniel Cara entrevista Sara York
198
momento em que eu pensei... E... último abraço. Esse abraço foi
(emocionada) em uma aula inaugural da UERJ.
Teve um momento em que Foi um abraço rápido na aula
eu pensei e eu comentei com inaugural da UERJ desse ano, e
a Joana Marafon que tava aqui aí a gente foi embora. E passado
agora, eu falei: “Ainda bem, que alguns dias, eu tive alguns
eu posso ler meus livros, agora compromissos, e eu recebi a
nas lives. Porque eu pude acessar mensagem que a gente tava em
gente como Jessé de Souza, gente quarentena, e aí eu não saí mais
como você, gente como Iracema, por uma série de complexidades
gente como Fernando Pena, de saúde. E aí você me pergunta
gente como... Tanta gente que né, o que eu aprendi na
faz sentido pra mim através das pandemia? Na pandemia, eu
lives, e eu não precisava “só ler”, aprendi a deixar registros da
então mesmo impossibilitada, minha passagem pela terra em
eu continuei me divertindo com vídeos. Eu quero que; O meu neto
essas pessoas incríveis. olhe (emocionada) e ele acesse
essa live, e ele diga, e eu me
Daniel Cara: Ah, muito bom, emociono toda porque tem mais
então a dica é acompanhar live: de um ano que eu não abraço
“Live contra a Injustiça Social o meu filho e o meu neto, e eu
e de quem quer Justiça Social”, queria que ele visse e dissesse: “A
essa é a dica. Essa é a dica da minha avó era educadora, ela era
Sara. E o que você aprendeu amiga do Daniel e de um monte
durante a Pandemia Sara? Essa de gente bacana e ela era massa”
Daniel Cara entrevista Sara York
199
conhecem ela e que tiveram a sua avó viu? Você tem um prazer
oportunidade de conhecer um enorme! Uma honra de ser neto
pouquinho dela aqui nessa live. de Sara York, minha amiga, Sara,
Eu tenho orgulho de dizer mando um beijo aí para todos
que eu, a Catia e os Jornalistas e todxs que nos acompanham!
Livres a gente só foi um veículo Muita gente aqui emocionada!
para que a Sara pudesse ensinar
a todos, a todas e todxs nós a ser Sara Wagner: Um beijo para todo
um pouquinho mais humano, mundo, eu tô me acabando de
um pouquinho mais atendo, chorar... Porque a gente rí com
um pouquinho mais em de fato muita facilidade. A gente ri de
construir um mundo que seja qualquer piadinha. A gente tá
de fato acolhedor, e é essa a rindo, arreganhando os dentes
experiência que a Sara nos trás, com essa cultura, mas chorar a
sobre a história de luta dela , a gente ainda esconde. E eu gosto
história de superação, a história tanto de chorar, eu acho que
de uma mulher que conseguiu, quando a gente derrama uma
diante de todos os limites que lágrima, a gente tá regando
ainda são impostos, porque a Sara muito aquilo que a gente planta,
ensinou isso aqui pra gente, o e a gente planta muito! A gente
quanto que é difícil ela batalhar vive isso! E é visceral para
todos os dias pelo respeito, por algumas pessoas e eu vejo isso
algo que alguém não deveria cotidianamente nas nossas lutas.
sequer levantar a voz, mas que, Daniel, muito obrigada!
concretamente, pessoas como Muito obrigada! Você é uma
Daniel Cara entrevista Sara York
200
daquilo que é honesto, daquilo vez, conversa com professor e
que é digno, e ético... É isso... com professora, ou se a gente traz
Muito obrigada! uma nova experiência, uma nova
perspectiva, talvez um economista
- (CORTE PARA DANIEL ou um cientista político, ou
FALANDO DA INTERAÇÃO DOS uma cientista política ou um
PARTICIPANTES DA LIVE) economista para a gente discutir
as questões da pandemia.
Daniel Cara: Para quem quer Mas concretamente o que
saber mais da luta da Sara, eu quero dizer é que a Sara, deu
procurem a Sara no Instagram, um SHOW aqui na nossa live; foi
procurem a Sara nas redes sociais. belíssimo, tive alguma forma de
Certamente a Sara, como faz com conhecer o Nicolas, quero poder
todo mundo, ela vai te acolher, conhecer e conversar com ele,
vai conversar contigo, vocês vão que é o neto da Sara, quero ter
se conhecer... Sara é uma pessoa contato e conversar com pessoas
incrível! novas que chegaram aqui no chat.
Meus amigos e minhas E vocês já sabem, quinta-feira
amigas, infelizmente eu tenho que vem, as oito e meia da noite,
que encerrar aqui a nossa live. horário nobre aqui no “Jornalistas
Quero dizer que foi uma live Livres”, a gente vai fazer mais
belíssima, como não poderia uma entrevista, e uma entrevista
deixar de ser com Sara York. que vai lhe ensinar e que vai
Faço um convite a todas e todos poder ensinar a todas as outras
vocês porque aqui eu tenho pessoas que acompanham porque
Daniel Cara entrevista Sara York
201
Então mais uma vez, Sara,
eu vou te dar o espaço para você
encerrar aí essa live. Dar uma
mensagem ao nosso público e
dizer que tem muita gente te
elogiando aqui no WhatsApp...
Obrigado, Obrigado e Obrigado!
202
interferência cromática sobre foto de Cíntia Lazzaroto | temqueter.org
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
O LEGADO DA
PATOLOGIZAcÃO
DA HOMOSSE-
XUALIDADE NA
ESFERA
DO TRABALHO
Nina Hanbury
Moysés Marllon Nascimento
Ricardo Salztrager
204
1. Introdução
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
205
Estas gradações refletem a diversidade das expressões de
gênero e sexualidade que desafiam a norma heterossexual
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
2. O conceito de homossexualidade
Ao longo dos séculos, são incontáveis os relatos de homens
e mulheres sumariamente perseguidos pelo simples fato
de desejarem alguém do mesmo sexo. Em meio a tanto
absurdo, alguns eram, inclusive, condenados enquanto
criminosos, podendo mesmo ser punidos com a perda
da própria vida. Muitos foram os nomes que receberam
e múltiplas foram as maneiras de a eles a sociedade se
206
referir. Os homens ora eram designados de párias (aqueles
desclassificados e excluídos do convívio social), ora de
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
212
uma repatologização da homossexualidade. Surgiu, assim,
a necessidade da construção de uma boa imagem pública
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
217
4. “Prevenir outras violações de direitos humanos” (p. 5),
isto é, comprometer-se com os direitos LGBTQI+
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
218
cargo do que os assumidos (p. 19). Embora o manifesto aponte
diversos caminhos práticos para o combate à discriminação,
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
219
Com efeito, a expansão da sigla, agora abarcando, para
além de gays e lésbicas, as múltiplas formas de orientações
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
220
No livro “Problemas de Gênero”, Butler (2003), por
exemplo, aponta para o papel da heterossexualidade como
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
do sexo.
De fato, as pessoas trans e travestis passaram a ser
incluídas na sigla desde 1995. Porém, a questão do avanço
nos direitos e demandas específicas à diversidade de gênero
ainda estão entre os menos atendidos pelas políticas de
inclusão. No texto do Brasil Sem Homofobia (BRASIL, 2004),
por exemplo, uma atenção especial foi dada à discriminação
contra travestis e mulheres trans por serem os alvos
mais frequentes de violência LGBTfóbica. Entretanto,
nos relatórios de violência homofóbica elaborados pelo
programa, as mulheres trans e travestis são classificadas
de acordo com seu “sexo biológico”, o que efetivamente
contribui para a postura misógena que atravessa as vivências
de muitas pessoas trans.
Quanto a isto, é necessário marcar que, apesar dos
tantos desencontros, alguns esforços vêm se fazendo,
inclusive, na luta por empregabilidade das pessoas
trans. Ou seja, apesar de a diversidade de gênero, por
muitas vezes, ter representado um ponto cego entre as
iniciativas de empregabilidade LGBTQI+, hoje em dia,
conseguimos vislumbrar cada vez mais iniciativas sendo
empreendidas. Entre estas, destacam-se a criação do portal
de empregabilidade TransEmpregos e os projetos da Casa
Nem pela empregabilidade trans. Tais transformadores
ainda lutam para estender as conquistas dos movimentos
222
LGBTQI+ para as populações mais marginalizadas e
viabilizar a inserção social das pessoas trans e travestis.
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
224
Referências
1 em cada 5 empresas não contrataria homossexuais, diz estudo. G1,
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
225
FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade volume 1: A vontade de
saber. Petrópolis: Vozes, 1988.
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
226
RUBIN, Gayle. Thinking Sex: notes for a radical theory of the politics
of sexuality. In: PARKER, Richard; AGGLETON, Peter (Org.). Culture,
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
227
interferência cromática sobre foto de Patricia Richter | temqueter.org
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
“ Desmunhecando
deste jeito
você não pode
trabalhar aqui ” :
REFLEXÕES SOBRE
BICHAS PRETAS,
ESCOLAS E
POSSIBILIDADES
DE TRABALHO
Paulo Melgaço da Silva Junior
229
ESTE TEXTO SE PROPÕE REFLETIR SOBRE A
experiência de um jovem negro gay afeminado, que se auto
reconhece como bicha preta na escola e no mundo do trabalho,
buscando destacar processos de subjetivação que fogem as
experiências das masculinidades negras cisheteronormativas.
Para atingir os objetivos propostos foi realizado um estudo
qualitativo (IVENICKI e CANEN, 2016) tendo como método
a história de vida (SPINDOLA; SANTOS, 2003). Assim, as
conversas foram realizadas via Whatssap. Os conceitos de
masculinidades (CONNELL 1995, 2016, OLIVEIRA, 2018, SILVA
JUNIOR, 2019), raça (QUIJANO, 2001), interseccionalidades
(CRENSHAW, 2004) iluminaram a discussão teórica. O estudo
apontou para a importância do desenvolvimento de políticas
curriculares e de empregabilidade que possam acolher a
população LGBTQI+, sobretudo as bichas pretas.
1. Um início de conversa
Esta frase está na memória de Wagner1, uma bicha preta, hoje
com 29 anos de idade, cabelereiro, maquiador e representante
de uma importante empresa de produtos de beleza. Ele nos
conta que esta foi a resposta do dono de uma loja de material
de construção quando foi procurar trabalho aos 16 anos.
Naquele momento, como jovem morador da periferia de
Duque de Caxias, ele precisava ganhar algum dinheiro para
1 Nome fictício
ajudar em casa e, como sabia que a loja precisava de ajudante,
ele foi se oferecer para trabalhar. Lá, além de não conseguir
emprego, ainda ouviu que “bicha desmunhecada não podia
trabalhar na casa”. Na memória de nosso interlocutor,
algumas frases marcaram sua infância e adolescência seja na
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior
233
permite compreender melhor a complexidade do jogo das
identidades e a escala das desigualdades sociais. Assim,
defendo o argumento de que conseguiremos entender, de
uma forma mais ampla, as relações entre racismo, sexismo,
homofobia a partir da história de vida da bicha preta. Neste
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior
235
2. Conversas sobre gênero masculinidades e raça
Iniciar uma conversa falando de gênero significa pensar
nas formas como os corpos sexuais são/foram formatados e
posicionados ao longo da história. Scott et al. (1998) destaca
o gênero como uma organização social dos sexos, estando
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior
238
incontingência sexual. Este discurso continuou presente no
imaginário social, mesmo após o término do processo de
escravização. Com isso, o corpo deste homem acabou sendo
relacionado ao sexo, à virilidade e à força.
Então, neste processo de interseção de masculinidades
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior
5 A opção por utilizar este termo se deu a partir de pesquisas realizadas nas
comunidades com diversos adolescentes negros (SILVA JUNIOR, 2014; SILVA JUNIOR;
BORGES, 2018) nas quais eles evidenciaram os elogios que as expressões negão e
neguinho trazem a virilidade, a força, a relação de parceria, entre outros atributos.
6 Recorro as mesmas pesquisas por mim realizadas para dizer que estão
considerando masculinidade heteronormativa aquelas relações que nas quais o
homem se coloca como ativo sexual (ou seja, aquele que penetra no ato sexual). Esta
nota se fez necessária, porque muitos entrevistados negros assumiram a prática de
relações sexuais com outros homens (justificada pelo dinheiro recebido, ou troca de
outros favores), mas não se reconheciam como gays ou em relações homossexuais.
240
represente sua força viril ativa e discreta. A bicha preta é
posicionada de maneira diametralmente oposta à do negão
nas relações sociais, principalmente nas periferias urbanas.
Mas quem que é a bicha preta? Antes de responder
à pergunta, é preciso acentuar que o termo “bicha preta”
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior
241
Neste contexto, Oliveira (2018) nos mostra que a bicha
nasce do discurso, muitas vezes antes do próprio sujeito
ter consciência do que o termo tenta impor ou de que este
propõe seu aniquilamento. A escola é um dos espaços mais
difíceis para que estas crianças possam socializar, é o local
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior
242
3. Conhecendo a história de vida
Conheço o Wagner há muitos anos, fui professor dele
no ensino fundamental e nos tornamos amigos nas
mídias sociais. Assim, consegui acompanhar, mesmo que
indiretamente, sua trajetória. Quando fui convidado para
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior
coisa que nem me lembro.... Eu sei que fiz muita coisa para
ganhar dinheiro ... fui empacotador em mercado... trabalhei
vendendo angu na rua...trabalhei em cozinha ... tinha parado
de estudar para trabalhar... Até que consegui um emprego
de carteira assinada num restaurante no Centro perto do
Campo de Santana... os donos tinham uma proposta de
acolhimento de homossexuais, todo mundo que trabalhava
lá era gay, sapatão... eu fui atendente de mesa ... foi lá que
eles me incentivaram a fazer supletivo e terminar meus
estudos.. foi lá também que descobri que tinha jeito e gostava
de trabalhar com beleza, uma amiga me incentivou a fazer
curso... minha mãe apoiou... comecei a fazer penteados afro
arte, maquiagem e designer de sobrancelhas... quando me
firmei um pouquinho, sai do restaurante e abri um salão ...
fiz faculdade e comecei representar uma empresa de beleza e
dou cursos em vários lugares...
247
palavras como justificativa para não ofertar o trabalho denota
tanto o incômodo que a bicha preta causa em determinados
ambientes, conforme nos mostraram Caetano, Teixeira e Silva
Junior (2019), como o sentimento de anormalidade e o medo da
delação ou desestabilização de outra masculinidades presentes
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior
4. Algumas reflexões...
Ao longo deste texto, busquei problematizar a experiência
na escola e no trabalho de um jovem negro que se
autorreconhece como bicha preta. Conhecer a história de
vida de Wagner nos permitiu perceber como a bicha preta,
de uma maneira geral, é vista pelo outro, bem como os seus
248
principais enfrentamentos, sejam no cotidiano escolar como
na busca por trabalho.
É relevante destacar que o texto se refere a moradores
de um local específico. Ou seja, ser bicha preta habitante
de periferia urbana se articula de maneira distinta de outro
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior
Referências
BARNARD, I. Queer race. Nova York: Lang, 2004.
BASTOS, L. C. Contando estórias em contextos espontâneos
institucionais: uma introdução ao estudo da narrativa. Caleidoscópio,
São Leopoldo, v.3, n. 2, p. 44-47, 2005.
CAETANO, M., TEIXEIRA, T.; SILVA JUNIOR, P.M. Bichas pretas e
negões: seus fazeres curriculares em escolas das periferias. Revista
Teias, Rio de Janeiro, v. 20, n. 59, p. 39-55 out/dez. 2019.
CONNELL, R. W. Gênero em termos reais. São Paulo: nVersos, 2016.
CONNELL, R. W. Políticas de masculinidade. Educação e Realidade,
Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 185–206, 1995.
CONNELL, R. W. The men and the boys. Berkeley: The University of
California Press, 2000.
CRENSHAW, K. W. A Intersecionalidade na discriminação de raça e gênero.
In: V.V.A.A. Cruzamento: raça e gênero. Brasília, DF: Unifem. 2004.
FROSH, S.; PHOENIX, A.; PATTMAN, R. Young masculinities. New
York: Palgrave, 2002.
GOMES, F. B.; SILVA, J. M. Necropolíticas espaciais e juventude
masculina: a relação entre a violência homicida e a vitimização de jovens
negros pobres do sexo masculino. Geousp – Espaço e Tempo, São Paulo,
v. 21, n. 3, p. 703 717, 2017.
250
IVENICKI; A; CANEN, A. Metodologia da pesquisa: rompendo
fronteiras curriculares. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2016.
O`DONNELL, Mike.; SHARP, Sue. Uncertain Masculinities. Londres:
Routledge, 2002.
OLIVEIRA, M. O diabo em forma de gente: (r)existências de gays
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior
251
SPINDOLA, T.; SANTOS, R. S. Trabalhando com história de vida:
percalços de uma pesquisa (dora?). Revista da Escola de Enfermagem da
USP, São Paulo, v. 37, n. 2, p. 119- 126, 2003.
THREADGOLD, T. Performing theories of narrative: theorizing
narrative performance. In: THORNBORROW, J.; COATES, J. (orgs.). The
sociolinguistics of narrative. Amsterdam: John Benjamins, p. 261-278, 2005.
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior
252
interferência cromática sobre foto de Ricardo Matsukawa | temqueter.org
254
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
RJ
projeto
capacitrans
UM DOS PROPÓSITOS MAIS CAROS DESSA PUBLICAÇÃO
trata da visibilidade e do compartilhamento de vozes e
lugares de fala de pessoas que integram a comunidade LGBT,
seja na produção acadêmica como também nos movimentos
sociais.
Convidamos para essa entrevista a travesti, estilista e
empreendedora Andréa Brazil para trazer sua narrativa sobre
as experiências compartilhadas por pessoas transgêneres e
travestis com o mundo do trabalho. Andréa, que também é a
idealizadora do Projeto Capacitans RJ, apresenta o projeto e
faz uma análise de conjuntura da construção das identidades
trans em nossos dias. Vale muito a pena conferir.
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
projeto
capacitrans
RJ
Andrea Brazil
255
Cláudia Reis: Olá você que Andréa Brazil: Basicamente o
chegou aqui, seja bem-vinde ao CAPACITRANS teve duas etapas
nosso conteúdo exclusivo sobre na minha vida, uma parte que
o ebook que você vem lendo. ele foi formalizado, a partir da
Hoje nós vamos conversar com conquista do primeiro edital,
Andréa Brazil, idealizadora do mas tem um histórico aí que vem
projeto CAPACITRANS RJ, um do ano 2000 quando eu precisei
projeto que traz a importante empreender meu primeiro
função de capacitação e negócio, pra não depender mais
integração no mercado de de mercado formal e passar
trabalho para pessoas trans. pelos constrangimentos que eu
passei em mercado formal de
Diógenes Pinheiro: Andréa, mais trabalho e empregos enquanto
uma vez muito obrigado por você gay afeminada, eu transicionei
dispor seu tempo aqui pra falar tardiamente, então eu sofri
pra gente, quando a gente pensou algumas opressões em ambientes
nessa pesquisa achamos essencial de trabalho, tipo “Essa sua voz é
visibilidade pelas próprias muito fina”, “você pode mudar
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
256
abro meu primeiro salão, pelos equipe assumir meu lugar e eu
constrangimentos em ambientes só fico por cima comandando “e
formais de trabalho, por não ser aí como é que foi o movimento
uma travesti ainda e não saber essa semana”, porque eu fui pegar
trabalhar como profissional do um outro trabalho, eu lembro
sexo né... Então eu penso, “tá, de ter feito cabelo de garota de
eu tenho um salão, agora o que programa, interno, aí eu dormia
que eu vou fazer, com que outras a semana inteira em Niterói,
pessoas possam desenvolver, porque era uma renda certa, e a
nem que eu ensine a elas. Aí eu do bairro ficava muito instável
comecei a sondar os LGBTs do pra poucas pessoas trabalhando
meu bairro. E aí veio uma que no salão e todo mundo receber.
ficou minha sócia durante três E aí, eu consegui também entrar
anos, aí veio uma outra que fez depois pra FAETEC, mas antes
parte da equipe durante um bom disso tudo eu também tinha tido
tempo, e aí eu fui passando meus a experiência de ser sido aluna
ensinamentos... e aí eu posso da primeira turma do projeto
dizer que teve o L, B, G, e T. É, Damas do governo César Maia,
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
257
porque Hanna morreu. e aí tinha formal, e porque só tem que
um núcleo da prefeitura que seguir pras ruas. Porque aí vem
coordenava junto com Hanna uma série de outras questões.
Suzart e as aulas eram para 25, Vem a família que expulsa de casa
30 travestis. E ali eu conheci um adolescente trans, que já está
Luana Muniz, conheci várias tomando hormônio escondido, aí
pessoas trans, um histórico né, e a família descobre, bota na rua,
aí entrega minha idade e acho que aí essa pessoa esse jovem, pré
muitas dela já se foram, inclusive adolescente, ninfeta é aliciada
Majorie Marchi. Majorie depois pro mercado da prostituição,
transformou, criou a ASTRA ali né aí começa ser aliciada pela
que era um plano da Hanna, mas cafetinagem, “ah pra trabalhar
Majorie que foi adiante. Essa coisa na rua tem que pagar”, então isso
do ativismo me acompanha há tudo é uma maneira da gente
muitos anos, muita gente pensa fugir se libertar de alguma forma.
que eu sou ativista agora, há dois O empreendedorismo entra
anos com o CAPACITRANS. Não! na minha vida como uma tábua de
Eu já tenho mais de 15, 20 anos salvação para que eu não dependa
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
258
produção, não precisa... “ah eu do CAPACITRANS, não deixei de
não tenho uma atriz pra esse ser presidente da ASTRA mas já
papel porque ela não personifica vou... já vai ter uma nova eleição
bem o personagem’. Beleza, e por agora e eu vou abrir mão do cargo
que que não tem nos bastidores? porque não dá para eu conciliar as
Não tem na direção? não tem na duas coisas. Eu prefiro continuar
consultoria, etc e tal? Hoje eu estou tocando o CAPACITRANS de
Presidenta da ASTRA RIO, mas o forma independente, da forma
CAPACITRANS acabou tomando que tem sido até hoje: com
uma forma, uma proporção muito conquistas de editais, editais de
maior, porque dentro da ASTRA empresas privadas... eu evito a
RIO se tornou a minha pauta, né, ligação com poder público Por
o meu local de fala. Falar sobre que o poder público era para estar
empreendedorismo para que as assumindo essa responsabilidade.
pessoas não dependem do mercado E aí acaba que nós acabamos
de trabalho formal, nem única e fazendo o que o poder público
exclusivamente da prostituição. não faz, é... nós, Indianare,
Então meu local de fala acabou grupos com arco-íris, etc... todos
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
259
facilita? Facilita. Mas continua teria voltado com tanta força e
não resolvendo questões de como CAPACITRANS hoje como
padrões de passabilidade. “Ah ele está. E isso eu agradeço a
não é... qualquer coisa a gente te Indianare Siqueira, que depois
chama”. Beleza, retifiquei botei de algumas decepções dentro
identidade, CPF com meu nome da ativismo, foi na minha porta,
lá, registro atualizado né, anulei porque ela é minha vizinha né,
o antigo, agora eu sou ela, agora... foi na minha porta e me resgatou
ou eu sou ele né, quando é o caso de volta para isso, pro ativismo,
do homem trans, mas ainda existe ela “porque que você tá sumida ?
um critério de embarreiramento Eu sei que o movimento às vezes
social, que é o quê? Padronizações invisibiliza, apaga... mas volta, a
de corpos, passabilidade, gente precisa de você”. E graças a
padronizações... tem que parecer ela... eu tinha me afastado depois
uma mulher, ter que parecer um de tantas decepções, porque o
homem, ser branco, ser loira. Não! ativismo no Rio de Janeiro ficou
E aí continuem invisibilizando muito limitado né a GGG... é só
outros povos dentro da própria os gays que predominam, só os
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
260
Negra, gordinha digamos assim como cabelereira e tal foi
né... Eu não gosto nem de usar fundamental pra você fazer essa
esses termos que eu tenho pavor transição?
de qualquer tipo de discriminação
por causa de padrões corpóreos, Andréa: Sim, eu sou a
né. Então Majorie negra, gorda famosa... eu era a famosa gay
e aí tem toda essa questão “ah afeminada que fazia shows de
Andréa é a Branquinha”. Tem transformismo, né? A gente
um vídeo que foi gravado para chama de... a gente falar fazer
UNAIDS, uma campanha Igual show, não... hoje em dia eu
a você, que eu não ia para ser tenho a palavra que eu uso é
convidada para participar. Aí eu performar. Performar uma
falo do apagamento... eu não ia artista, performar... então eu
ser convidada para participar mas já era o famoso transformista.
eu falei “ ué porque que eu não Mas eu só gostava de sair na
vou, porque eu não posso ir?” noite, quando era para espairecer
“Não, é porque não sabíamos se com as minhas amigas e meus
você ia querer”. Eu entendi que amigues, né... eu gostava de
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
261
deixei fazer uma química no meu tenta combater e modificar hoje.
cabelo, eu confiei no trabalho Hoje a gente tomou uma... a
dela, mas eu não sabia que ela gente se estruturou de tal forma
não tava preparada para o meu que uma ajuda a alertar a outra.
tipo de cabelo. E aí meu cabelo Antigamente não, o desespero
caiu, fiquei com vários buracos era a padronização do corpo a
né, caiu...eu não fiquei careca mas qualquer preço. Eu não tenho
eu fiquei com buracos porque eu condições de botar uma prótese
tinha luzes e mechas, e eu tinha então eu vou meter com a
feito uma química incompatível. E bombadeira. Isso há 20 anos atrás.
aí eu me vi com cabelo parecendo Hoje a gente evoluiu isso.
até que eu estava com algum E hoje a gente tá quebrando
problema de saúde grave né. paradigmas de “porque que eu
Então aquilo me assustou muito, tenho que ter esse padrão de
e eu como cabeleireira, a dona de corpo?”, “por que que pra ser
um salão com aquele aspecto? Aí entendida como um travesti eu
eu fui meti o meu primeiro mega preciso ter esse peito enorme,
hair com a Isabelle. essa bunda enorme se eu posso
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
262
da FAETEC mesmo sendo do todos os projetos que eu de aula
Governo do Estado e o estado era quantidade de pessoas que
tendo o Rio Sem Homofobia, tinham na sala que era LGBT.
tendo aquele núcleo Rio Sem Na prefeitura, nos meus quatro
Homofobia, agora é Rio sem anos de prefeitura dando aula em
LGBT, eu fui para uma unidade projeto social, a gente sempre
que a coordenadora não permitia tinha uma, duas, três pessoas
que eu me tratasse por Andréa LGBTs, o resto todo era mulheres
e isso foi uma briguinha que eu senhorinhas, mãe de família,
fui vencendo aos poucos. Sem avós... Na prefeitura, há mais de
polemizar, sem causar, sem querer não sei quantos anos atrás, eu
enredo, sem querer alarde, eu fui fiquei 4 anos dando aula na obra
mostrando para ela que não era se social no governo César Maia.
funcionava. Eu falava: enquanto E aí lá, em cada aula... nesse eu
gestora de uma instituição do fui aceita como travesti, nesse eu
Estado, eu acho que a senhora fui por causa do Damas, eu fui
sabe que a gente tem o Rio a primeira a chamar atenção no
Sem Homofobia que combate a Damas. E aí eu já me destaquei
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
263
referência, de recomendação, que hoje o que é o CAPACITRANS.
me permitiu depois entrar para Acho que essas experiências me
FAETEC. Então essa experiência... fizeram, né, pegar cada falha
ter feito parte do Damas, ter que existia no sistema e hoje ter
passado por projeto onde eu não um projeto aí que tá tendo tanta
via pessoas trans, mesmo tendo, repercussão graças as forças do
sendo, de graça, mesmo tendo universo, porque eu me considero
oportunidade onde eu via que as agnóstica.
pessoas não ocupavam, por causa
talvez da cisheteronormatividade. Cláudia: Eu queria justamente
Então eu fui percebendo as aproveitar porque a gente pensa
coisinhas que foi transformando, um pouco como tá esse jovem
que foi criando hoje o trans né, porque você tá trazendo
CAPACITRANS. Aí hoje você fala para a gente aqui elementos
assim “ué, mas o CAPACITRANS fantásticos de 20 anos atrás e
é só para as pessoas trans?”. Não, que tem um marco histórico,
prioritariamente pessoas trans, né?! Esse período, tudo isso que
mas a gente aceita mulheres vocês viram, todo esse pavimento
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
264
da Educação sobretudo, porque desgovernos aí, então a gente
você vivenciou, você fez aquela tem aí conquistas que estão
coisa da água que contorna os sendo cerceadas. O direito ao uso
obstáculos etc , você teve uma de um banheiro numa escola,
forma de atuação militante o constrangimento pelo uso do
da década de 1990. No ano de nome... então esse tipo de coisa
2000 para cá, a turma tem uma tava indo, diante de nossas lutas...
outra forma de militância, usa está retrocedendo. Existem, não
o escracho, usa lacração, e outra vou ser hipócrita, existe gente que
forma de militância não é nem acha que é tudo glamourização
melhor, nem pior, é só uma outra da prostituição, que é lindo ser
forma... mas essa turma mete o puta, que é fácil. E existe a que
pé na porta mesmo, escracha e já vivenciou isso e que não quer
chega chegando... você acha que, mais só isso como opção. Eu
na sua percepção, o que você ouve costumo ser a... fazer um meio
desses jovens que te procuram termo disso tudo. Quando eu vejo
para fazer sua formação, já houve uma pessoa jovem que só quer
alguma mudança na educação? lacrar, falar lacração mas não
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
265
começa por aí. A nova geração E aí eu evito esses, essas
às vezes caga pro ativismo, caga problemáticas né? Muito eu
pro ativismo, e muitas as vezes admiro a Indianare porque ela
mistura as Estações. Eu tô tendo realmente quando acolhe uma
uma percepção de pessoas que, pessoa que tá na rua, jogada
tipo assim, é... fica muito reduzido na rua, ela encara uma braba,
aquela história do local de fala e para ela, porque... e leva às
“ah você é Trans, mas você não vezes, é... calúnia e difamações
é preta”. Beleza, mas você sabe o e injúrias, mentiras, e ela tá
que que eu faço para lutar contra acolhendo aquela pessoa que a
isso? Você consegue enxergar? mãe e o pai jogou na rua. Como
Eu priorizo pessoas trans pretas, o CAPACITRANS não é uma casa
homens trans, mulher trans, de acolhimento, é um projeto de
travestis... Principalmente as capacitação empreendedora, eu
mais vulneráveis, as de maior evito para não ter esses problemas
vulnerabilidade, esses são os meus porque depois vai dizer que
critérios de seleção. Enquanto a gente está transformando
alguns lugares excluem essas, é a pessoa ali em trans, está ali
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
266
ter como se sustentar, ou para ir você vai precisar de capital de
para as ruas como única opção giro, quanto você gasta para
não é jogada. Porque você pode comer na rua enquanto você tá
chegar aos 18 anos, você pode ali esperando o cliente, quanto
não chegar aos 20 anos. Então, você gasta com multa, com
não vem com esse papinho de pagar a rua... E aí a gente tenta
glamourização da prostituição transformar essa pessoa que é
porque não é fácil, não é. Mas profissional do sexo em uma puta
não estou aqui falando contra, profissional do sexo, uma puta
você tá segura, você tá trabalhado empreendedora no caso.
com alguma rede de parceiras A gente não tá aqui atacando
legais, você tá trabalhando num ser profissional do sexo, a gente
local que te respeita, que não... tá explicando: se você quer
que não fica te cobrando para ser profissional do sexo, seja
você trabalhar nas ruas. Você com todo um preparo, toda
tem algum mínimo... tem uma uma estrutura, nem que seja
família que vai te acolher quando através do empreendedorismo.
você chegar em casa... Eu faço E não adianta vir glamourizar
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
todo esse viés, todo esse recorte. prostituição porque não é fácil.
Você quer ser profissional do Tá ok, se você trabalhar com
sexo? Então vamos transformar executivos Vips, você vai ter um
isso em empreendedorismo outro cachê por mês, mas você
de fato. Vamos ser uma puta vai ter um outro gasto com você.
empreendedora, vamos fazer Agora, se você for obrigado a
um controle de gastos, quantos trabalhar na Central do Brasil, no
programas você precisa fazer, Campo de Santana, no campo de
quanto você precisa reinvestir no São Cristóvão, seu cachê vai ser
seu visual... porque infelizmente outro, a sua imagem não precisa
as pessoas pagam pelo que elas lá grandes reinvestimentos, né?!
olham né, elas vão pela aparência É uma coisa... existe nichos até
ou não, ou também vão pelo para ser profissional do sexo. Eu
tamanho do membro porque falei... Outro dia eu tava numa
também a gente sabe que a outra Live, tava Indianare, eu, Wescla
realidade. Aí a gente vai e tenta Vasconcelos, que foi assessora do
falar para essa pessoa “quanto Tarcísio...
267
Cláudia: que agora é assessora da E aí veio Andréa Brasil, muito
Indianare, né? humildemente, entrando nesse
hall como uma que traz a fala
Andréa: e a Jaqueline Gomes de do transempreendedorismo.
Jesus, aí a gente na sua Live, eu fiz Como uma maneira de falar
uma fala na qual eu falei assim: assim “Oi, tá bom, você quer
Olha que interessante, aqui todo ser profissional do sexo? Então
mundo é do coletivo trans, aqui vamos empreender de forma
é todo mundo lutando pela pauta correta, vamos fazer de forma
trans, pelos Direitos Humanos, mais organizada”. Ou, “ah não,
tararartarar, mas olha como até Andréa, eu não aguento mais
dentro desse coletivo cada uma ser profissional do sexo, eu não
tem o seu nicho. Jaqueline Gomes aguento mais as ruas, eu já tô
de Jesus está aqui no local de fala ficando velha, eu tô cansada,
da mulher... da mulher trans preta, eu tô com medo, eu não quero
da professora, da psicóloga. Wescla pegar COVID ...”. E aí ela... aí
Vasconcellos tá aqui trazendo eu vou e pergunto: qual seria o
a fala, a representatividade seu negócio? “Ah, Andréa, eu
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
268
é uma ponte para uma vaga de por você enquanto você está
emprego. Aí ela vai se contentar limitada a isso? Por que que você
com sub emprego. Eu também tá se limitando a isso? Você acha
não sou adepta ao subemprego, que você é só um corpo, você acha
mas se é isso que te serve no que você é só uma bunda e um
momento, a gente tenta fazer a peito? Ou você acha que é uma
ponte também. Mas a gente quer pessoa completa, que tem uma
que você queira mais. bunda, um peito, uma identidade
Hoje eu bato peito e falo: não e uma marca para deixar aí no
troco o empreendedorismo social mercado? Seja de comida, de
por nenhum emprego formal. gastronomia, seja de imagem,
A não ser que me pague muito seja de moda, qual é sua área?
bem. Mas eu amo trabalhar em Seja na universidade... A gente
home office, em aulas online e não trabalha muito essa questão,
aulas presenciais, eu amo o que Cláudia, dentro CAPACITRANS,
eu faço. E aí eu sempre converso mas a gente estimula, por que não
com cada uma delas, com cada é meu local de fala porque eu não
um deles: você ama fazer o sou Universitária. Mas a gente
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
269
me destaquei, né? Aí a Micro fiz um... eu fazia muito jornada
Rainbow ofereceu para uma técnica como vai ser agora essa
turma depois da minha 30 vagas rodada do CAPACITRANS.
de pré acelerador na UNISUAM. Jornada técnica é aquele cursão
Aí eu falei que porra é essa, eu de um dia inteiro sobre um tema.
quero fazer essa porra aí! A vaga Aí eu, um dia inteiro para falar...
era para 30 pessoas abertas. eu fui assistir uma aula acho que
Era só ir lá e se inscrever, fazer de balaiagem, não lembro...e
entrevista. Pergunta quantas aí nesse dia eu só tinha pago,
pessoas foram? Duas. E adivinha com um dinheirinho que eu
ficaram? Quem? André Brazil. E ganhei de um cabelo, aí eu tinha
aí eu era única travesti dentro da pago a matrícula desse curso, a
UNISUAM de Campo Grande, inscrição para esse curso, mas
aqueles olhares nojentos de cima aí quando chegou o dia eu só
embaixo como se eu não pudesse tinha o dinheiro da passagem
estar ali, porque as aulas eram para ir voltar, eu não tinha nem
2 vezes por semana à noite. Era dinheiro para lanchar, para nada.
um projeto dentro da UNISUAM, Falei “mas eu vou assim mesmo,
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
270
verem, e por que não tinha local amiga das mais bonitinhas da
ali para lanchar. E aí eu falei assim sala de aula, do grupinho das
“ah não, pode ir gente, eu não Meninas Malvadas, virei uma
estou me sentindo muito bem”. Eu delas, eu me aliei à elas. E aí os
tenho muito orgulho de dizer para meninos passaram, ao invés de
todo mundo em cada aula que eu me ameaçar, ficar “pô, Bambi”, na
dou que eu já fui diarista. Eu já fui época meu apelido era Bambi, “pô,
faxineira, eu já sustentei a minha Bambi, me bota na fita da Edna,
mãe com dinheiro de faxina. me bota na fita da Vivi”, sabe? Eu
Eu tenho muito orgulho disso me aliei, eu fiz um jogo, eu era
e quando eu falo isso... a minha amiga delas, não era falsa, mas
mãe, ela tinha um marido que era eu fiz um jogo que o sistema me
um militar, machista, misógino, obrigou a fazer para escapar das
escroto que quase a matou uma agressões.
vez. E aí quando eu conto pras E ainda sim, ainda sim, uma
pessoas que eu sustentava minha vez, eu passei por uma situação
mãe quando ele não assumia nem de extremo constrangimento na
a filha dele, eu trabalhava como sala do Grêmio e que nove garotos
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
271
que eu quero um por um em fila”. onde estamos só LGBTs no geral
Quando eu fiz isso eles “opa!”, e brancos, eu falo o privilégio de
tomaram um susto e saíram todo mundo aqui ainda tá acima
correndo. Quando eles pensaram do meu porque o meu privilégio
que me chacotear, eu fiz isso acaba enquanto travesti. Eu sou
reverter contra eles, só que ao famoso traveco, eu sou aquela
eles desistirem da brincadeira e pessoa que é considerada pelos
saírem da sala, eu imediatamente fundamentalistas uma aberração,
me dirigi a direção e denunciei o eu sou a... o homem que se deita
Grêmio. como mulher, eu não sou né...
E assim vai. E não é não existe
Cláudia: Senão, podia virar contra privilégio, não é porque eu sou
você né, Andréa? travesti, travesti Branca, Ok, meu
privilégio Branco? Reconheço
Andréa: Eu fui levada para sala isso. Me abre umas pequenas
do Grêmio, pelos garotos que portas... mas eu não sou padrão
compunham o Grêmio, para de beleza, eu não sou uma Miss,
uma reunião e no final era... era eu não sou uma Léa T, eu não sou
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
272
E aí continuou apagadas as que Diógenes: Você seguiu um
não eram bonitas iguais a ela e as caminho muito especial, que você
que não eram bonitas iguais a ela foi aprendendo nas instituições,
faziam o que? Morriam de fome, aprendendo nos cursos, foi se
se matavam, eram assassinadas. tornando uma educadora, né?
É isso que eu trago sempre em E, de repente você começou a
questão dentro do CAPACITRANS ganhar editais, que é uma coisa
também. Não é só ensinar a muito difícil, já participei de
ser empreendedor, é ensinar a ONG né, além do Observatório
viver nesse mundo que ainda, de Favelas e a gente sabe como é
devagarzinho, ainda tem muito difícil ganhar um edital, precisa
que melhorar para falar realmente todo conhecimento técnico, você
inclusão. Quando eu falo que estava falando da prestação de
eu amo Unilever, a Unilever contas, tudo isso né? Como é
empresa, a Unilever veio a nós do que foi esse caminho, assim...
CAPACITRANS através de uma Em que momento você passa
trans que já trabalhava na equipe de ser uma empreendedora de
deles, Fabíola. Fabíola... ela é sucesso, com seu salão, e funda
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
273
fazia né, porque eu queria entrar Eu não se como é que vocês vão
pra entender... o que que é esse editar isso aí depois, mas enfim.
projeto que cuida de pessoas Eu era o viadinho do Bairro, e aí
trans... eu queria muito estar ali quando eu me torno cabeleireira
dentro. E uma das perguntas é “o eu passei a ser “ah, a cabelereira,
que você espera daqui?”, inclusive ah o cabelereiro?” Então até
é uma pergunta que eu faço agora a profissão já começou a ser a
no CAPACITRANS: o que você minha... como é que dá o nome...
espera do CAPACITRANS?. E aí a representação né. “ah, o salão é
a pergunta que tinha lá é “o que ali embaixo”, sabe, a pessoa muda
você espera do Projeto Damas ?”, discurso. Enquanto eu era apenas
e aí eu lembro até hoje o que que uma gay eu não era nada para o
eu escrevi... Eu falei que eu queria povo. Só aí eu pensei, quando meu
ser uma multiplicadora. Isso já salão começou a fazer sucesso
tem mais de 15 anos e hoje a gente no primeiro ano, eu achei que ali
tá aí. Só rebobinando a fita aqui eu ia viver daquilo para o resto
um pouquinho... eu abandonei da vida. E aí eu fui enxergar que
um pouco também por decepções salão de bairro não dá futuro para
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
274
né, mas imediatamente comecei acho muito chato isso, de fazer
a morar com LGBTs para não cabelo em troca disso, sabe? eu
ficar sozinha, para não surtar acho muito constrangedor. Eu
né? A minha irmãzinha que hoje passei muito por isso, mas isso
tem ... minha irmã na época não...
tinha quatro anos e eu tinha 18.
Minha mãe faleceu e a casa ficou. Cláudia: E hoje em dia isso
Tive problemas... meu padrasto também tem acontecido.
quis me tomar a casa. Anos se Desculpa, só para aproveitar esse
passaram aí agora minha irmã mote aí, do pagamento através do
maior de idade há uns cinco, seis sexo, isso não é uma coisa que só
anos atrás, a gente sentou eu falei acontecia antigamente né, hoje
assim “vamos vender essa casa?”. em dia a gente acabou de ver
Porque tudo que eu fazia na casa aí recentemente uma violência
a casa quebrava, consertava uma severa contra um rapaz gay que
coisa aqui e quebrava outra. Eu foi jogado de um carro do Uber
arrumava uma coisa quebrava a justamente porque o motorista
outra. E aí eu cansei, eu comecei disse que ele queria pagar o
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
275
sou tão Sharon Stone, eu sou de coisa. Eu tive namorado que
tão Roberta Close assim? Eu sou a garota na minha porta traz o
tão perfeita assim que nenhum meu namorado, porque eu não
homem vá se sentir seguro e era uma mulher... eu não era
tranquilo de ir sem a esposa cisfóbica, eu não tinha problema
ou precisa a esposa tem que ir, dele ter namorada cis, eu falava
a insegurança dela é tamanha “vai lá, vai fundo, vai na sorte,
eu sou uma ameaça? Então eu mas não se esqueça que você pode
passei muito por isso, a ponto de chegar me encontrar com outro
pegar páginas com comentários aqui também, tá?” Direitos iguais.
com meu nome, “Deia, foi lá na Então eu nunca fiz isso, eu não
Dedéia, passou o Pênis Card”. sou uma trans cisfóbica, eu não
Então, isso tudo me deu uma tenho problemas com mulheres
decepção tão grande do meu cis, elas tinham problema de
bairro, que eu morava, minha falar assim “como assim você tá
casa era de frente para uma... eu com a Andréa Brazil? E eu aqui
chamo de encruzilhada em T. Eu querendo você? Eu tenho vagina,
morava de frente para uma rua, eu sou mulher de fato”. Sabe, esse
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
276
senhora de lá, que eu tenho cabeleireira aqui não, que aqui é
paixão por ela, uma senhorinha um ponto ótimo”, e aí eu peguei
que eu tenho uma relação com roupas em Petrópolis para
ela de afeto mesmo como se revenda , com cheque pré, eu
fosse minha mãe. Se minha mãe arrisquei na cara e na coragem,
estivesse viva ou talvez tivesse a comecei com cinco, quatro lojas,
idade dela... então ela é uma das com cheque pré, as lojas “tá, a
pessoas que eu conto para costura gente vai abrir uma exceção pra
e ela é mais rápida né, porque você”, vendiam para mim com
ela tem anos de experiência, prazo né, pra pagar. Aí eu comecei
enquanto as meninas ainda estão a encher o meu salão de roupa, e
aprendendo para poder aprender aí eu fazia cabelo, vendia roupa. E
como montar minha equipe aí eu comecei a achar que tava
depois. As minhas meninas que indo bem. Aí, veio a crise do
eu digo é quem fez parte e faz estado no governo do Pezão, um
parte do CAPACITRANS, né. E aí a monte de cliente meu que era do
pergunta do Diógenes foi relativa estado passou a não receber...
a isso, quando que eu comecei a.... aquela crise que a gente já passou
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
277
se 021 uma mulher cis, parceiraça aí eu falei assim “pô, pera aí” aí eu
da causa LGBT, né? Aí ela deu “pá, CAPACITRANS RJ. Aí fui e
uma aula na... lá no pré me inscrevi. Aí te juro, de coração,
UNISUAM, né, pré acelerador. Ela falei “eu vou fazer porque a Joana
aula de captação de recursos. Essa ensinou e eu tenho que correr
aula de captação de recursos é que atrás, eu tenho que acreditar no
me deu a chama, aí eu cheguei em meu projeto”. Eu não fui chamada
casa com a aula dela... ela falou um mês depois para ir pra São
“ah, tem uma plataforma chamada Paulo?? Eu quase caí dura quando
prosas”. Eu cheguei em casa da eu abri meu e-mail e tá lá
aula e já entrei me cadastrando no “parabéns”. 300 inscrições, Eles
prosas. E aí tinha lá “LGBT projeto escolheram 10. Eu fui uma das 10.
como pessoa física” porque isso Quando eu vi aquilo ali eu não
era uma prioridade para mim, acreditei. A outra surpresa, eu há
porque eu queria editais com um tempo atrás precisando
pudesse concorrer como pessoa trabalhar porque eu já não tava
física, porque eu não sabia da mais com salão né, eu já tinha
situação do CNPJ da ASTRA, que desistido de salão, já tinha
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
278
em sangue, eu fiquei banhada em tornei quase, basicamente uma
sangue, ele me sufocou, me deu ateísta. Quando o meu teto ficou
um mata leão, eu quase morri e eu preto, eu lembro de ter pensado
achei que eu tinha morrido. Aí eu assim “não acredito que tu,
acordei desmaio... na verdade ele criador, me criou para isso, para
tinha me desmaiado e eu fugi. E eu abrir a guarda para uma pessoa
ele ainda tava dentro do meu que eu pensei que estava
salão, desse salão que eu morava, interessado em mim para ela me
eu morava no salão, e ele ainda matar. Eu não acredito que tu me
estava tentando roubar mais. Na criou para morrer na mão de uma
verdade foi cara que se aproximou pessoa que eu iria afeto”. Aí
de mim, como ele era conhecido apaguei. Ali naquele momento eu
de várias vezes eu vê-lo no bairro me tornei... eu não vou dizer pra
no ponto, eu passei por uma vocês que eu sou ateísta, que eu
situação bem parecida da menina, sou ateísta raiz, mas eu tô quase
a diferença é que a gente não lá. Então, naquele momento, eu
estava num bar, no boteco, tava no cansei do meu bairro, e ali eu fui
meu trabalho, na minha casa, buscando sair, me afastar cada vez
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
onde eu morava e trabalhava. Ele mais e foi nessas lutas aí... Micro
me chamou eu atendi. Eu passei Rainbow, curso de
por tudo que ela passou: agressão, empreendedorismo para LGBT,
mata leão, espancamento... hoje pré acelerador na UNISUAM... aí
eu não... por isso eu não fico mais quando eu estava no pré
com ninguém na minha casa. acelerador na UNISUAM, aí sim,
Nenhum homem, nenhum eu vim com essa proposta d edital
parceiro. Eu não tenho mais mais diversidade do Itaú, fui
intenção de relacionamento por chamada pra São Paulo e um dos
causa disso, porque eu quase meus bicos freelancer foi no Arte
morri, quando eu sufoquei, Rio, lá na Marina da Glória. Eu
quando eu fui asfixiada né, lembro de uma cena, um mês
quando ele me deu um mata leão antes, um mês e meio antes, eu
eu achei que eu tava morrendo. E trabalhando num evento lá de
aí eu lembro daquele momento de exposição de arte em freelancer
ter falado assim... ali naquele que eu consegui graças à parceria
momento eu lembro que eu me com a Casa Nem, com Indianare.
279
Eu consegui esse freelancer, que Power Point, falar do projeto, meu
ali eu já estava me afastando de Power Point travou. Igual a nossa
cabelo né, já tava me afastando entrevista travou aqui também. O
dessa coisa de ser cabeleireiro né, que que acontece, o Ricardo
porque também eu tô cansada Salles, que não é o do meio
disso, eu gosto de aula. Aí eu ambiente escroto né? O Ricardo
lembro de ir lá no Rio Arte e ver DE Salles, lá do Mais Diversidade,
um avião passando e eu falar vira e fala: “você consegue falar
assim “caraca, qual é a sensação do seu projeto sem o Power
de estar dentro de um avião? em Point?” Eu digo, lógico, é o sonho
breve eu vou estar dentro de um”. da minha vida! Aí eu mandei ver,
Dito e feito. foi quando eu fui 10 minutos, parararara, aí sempre
chamada para ir para São Paulo. tem aquelas perguntas no final,
Eles pagaram, é uma coisa boba, das coisas que não tenham ficado
um voo de 45 minutos, mas eu explícitas. Ninguém teve
chorava igual criança dentro do pergunta, só o Salomão perguntou
avião, sabe? Eu “ai, eu tô no avião, assim “Déia, eu entendi
meu Deus”. Aí quando eu tô, perfeitamente seu projeto, só
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
280
projeto da coisa do... falar em maravilhoso e a gente não pode
libras, né, um projeto específico deixar passar, e a gente conseguiu
LGBT com portadores de mais 160.000, e aí a gente vai dar
necessidades especiais. Então era 40.000 para mais quatro. Aí eu
só projetos admiráveis, eu falava falei “epa, voltei para o jogo”, já
“gente quem sou eu”, Gilmara comecei a me tremer toda. Estava
Cunha do Conexão G, tava lá lá né, quase tendo um troço. Aí ele
concorrendo junto comigo. foi falando, falando, falando,
Gilmara estava lá comigo... ela até daqui a pouco o último projeto foi
tentou me emprestar o notebook Andréa Brazil – CAPACITRANS.
mas a gente se desencontrou no Nossa, todo mundo pulou em
hotel. E eu estava ali numa cima de mim, todo mundo gritou,
situação de extremo privilégio. A vibrou junto, eu caí com todo
gente recebia um aquézinho pra mundo em cima de mim, porque
ficar esses dois dias e meio lá para todo mundo ficou feliz com a
a gente gastar com alimentação, vitória do outro. É isso que me
porque eles só pagavam o hotel. chama atenção em projeto que
Então eu tava ali me sentindo foram vencedores que tem minha
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
281
antes de vencer esse edital, eu em mim. eu reconheço isso, eu
conheci o Padre Luiz Coelho, tenho um orgulho muito grande
numa apresentação da Renata de falar deles. Walter Cavalcante,
Carvalho, atriz que interpreta Ivana Ribeiro que é a
Jesus né? “E se Jesus fosse uma coordenadora da Micro Rainbow,
travesti?” Renata, eu fui na ela foi a primeira fala assim
apresentação dela, que a gente até “vamos contratar Andréa” e aí me
fez um Manifesto contra o deram freelancer dentro da Micro
Crivella que tentou censurar. E aí Rainbow, virei monitora depois
eu me liguei numa galera muito deles, sabe? Eu tive muitas pessoas
foda aí do ativismo, aí eu tem uma cis que olharam para mim. Dentro
foto que tá eu, Indianare, o das letrinhas, eu reconheço que
pessoal lá com a faixa Cure seu muitas eram pessoas cis e lésbicas,
Preconceito, a gente lá fazendo gays e héteros, tá?! Eu tenho que
manifesto contra a tentativa de falar isso, o Walter Cavalcante, ele
censura do Crivella. E aí eu é hetero, ele tinha uma rede
conheci o Luiz Coelho e ele falou chamada Convergência e foi ele
“eu vou querer conversar com que criou um dos líderes daquela
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
282
As primeiras pessoas foi o Walter, me ajudar a equilibrar as aulas que
foi a Ivana e o padre Luís Coelho eu fico mais com a modelagem e
que foram as primeiras pessoas com as criações, com Universo de
que acreditaram na Andréa. E aí produção de moda. Hoje eu tenho
as coisas foram acontecendo. Eu e a Kelly que é minha ex aluna, foi
o padre criamos uma marca de aluna do CAPACITRANS de
roupas de vestes, de túnicas, ele imagem, profissional do sexo, e aí
falou “você consegue fazer?” e eu ela vem... e eu falei “você acha que
falei “consigo”. E aí a gente criou a você consegue ser minha
marca Transfiguração, só que ele assistente, uma assistente
não satisfeito levou o nome do administrativa, uma faz tudo, uma
CAPACITRANS pra Atlanta, e fez oxitrans, uma mão... uma mão pra
a gente vencer um outro edital em toda obra?” ela “Claro madrinha,
Atlanta. E conseguimos vencer o que você precisar eu topo”, tá
um edital em Atlanta graças à comigo há 9 meses, 10 meses. E aí
paróquia anglicana São Lucas, que a gente está vendo se consegue
ele o recurso, ele tinha tudo que manter, não é muita gente, não é
passar pela igreja porque é um uma empresa, então a gente dá
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
fundo internacional né, e dentro uma bolsa, uma bolsa auxílio para
de paróquias. Então, veio de uma, bolsa auxílio para outra. Isso
Atlanta, passou para a igreja e Tudo graças a esses fundos
todo mês ele “Andréa quando você conquistados, um deles foi o
precisa para o CAPACITRANS ELAS... Foi minha grande
esse mês?” Então a gente teve um surpresa, eu fui pro elas... Fundo
fôlego maior, por isso que eu ELAS e Instituto C&A, e o projeto
consegui levar as duas turmas até era moda sem violência. E a gente
o fim, com formatura e etc. Não combate as explorações, trabalho
satisfeita, eu comecei a consegui análogo à escravidão, tudo isso a
colocar pessoas na equipe do gente... e aí a gente conseguiu
CAPACITRANS. E aí eu comecei, vencer um edital extremamente
chamei Maya, Maya ficou três feminista. E que que isso faz a
meses depois ela precisou sair. Aí, gente enxergar? Finalmente as
veio Ângela Leclery, uma travesti mulheres enxergam as mulheres
de 70 anos que hoje é minha trans em suas mulheridades,
professora de corte e costura, para enquanto tem uns discursos
283
radicais feministas que não nos desde a primeira turma lá do
incluem, o fundo Elas têm com... mês de março de 2019. Os grupos
na contramão enfrentando isso permanecem, então tem o grupo
falando “não, são mulheres trans moda um, grupo moda 2, o grupo
e tem todo direito de estar aqui”. Empreendedorismo 1 o grupo...
E aí eu vi que essa Conquista sabe?! Todos os grupos estão lá
me permitiu mais... mais esses e a gente vai mantendo aquela
10 meses de continuidade. E aí a assessoria né, “o que que tá
gente teve a terceira rodada. Foi faltando? porque que você parou?
o Transmulheridades na moda Por que que você não tá mais
sem violência e que tão saindo falando em projeto? Você agora
grandes empreendedoras, tem a quer emprego formal, é isso?” E
Lorraine, tem a Mary, tem várias a gente vai sempre trabalhando
que estão aí com suas marcas isso. Até que ponto você quer um
de moda surgindo. E aí eu vejo emprego formal? Que a gente... a
que não foi em vão essa minha gente teve a Fabíola lá da Unilever
existência, é ali que tá o resultado foi uma vez da segunda rodada ela
daquela trans que há uns 20 fez parte da banca, aquela banca
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
anos atrás entrou na turma do não era para te criticar, uma banca
Damas e falou que queria ser que só dá toque a Mais. A gente
uma multiplicadora. já passaram tem que... cada apoiador que abriu
pelo CAPACITRANS mais de 60 porta para gente era convidado
pessoas. Posso dizer que dengue de uma formatura. Então a gente
chegou a 100, mas sempre tem sempre teve cinco bancas, cinco
aquelas pessoas que no meio do pessoas numa banca, aí tinha
caminho não era o momento LGB, hétero, Sabe? Aquela banca
delas, desistiram, largaram... a bem diversa? Para dar o toque
gente entende que tudo é seu... “e aí Valter que que você acha
cara da pessoa encontra seu que fulano precisa melhorar?”.
tempo. Então tem outras que se E aí cada um orientava, ajudava,
superam. Lorraine entrou no alguns trabalhos... Padre Luís
Transmulheridades sem saber Coelho conseguiu bico, freelancer,
pegar numa máquina de costura. trabalho e assim vai... a rede só
a gente tem os mesmos... tem foi crescendo e a Unilever teve
os grupos das primeiras turmas uma participação fenomenal nisso
284
porque a Fabíola veio com uma contratar, porque ela é empresa
fala muito bonita na formatura. pioneira e líder no mercado,
Ela falava assim “e qual problema sabe? Então isso tudo é o que a
também de vocês tentarem uma gente está conquistando, e eu,
vaga na Unilever? vocês podem quando venci o primeiro, em um
trabalhar, a gente tem serviço ano acabei vencendo três. Estou
que possam... a gente pode tentar concorrendo ao a outros aí, mas
incluir vocês e que vocês façam já... esses editais internacionais
um dinheirinho para montar que vieram aí em período de
empresa de vocês?”. Olha, eu COVID, eu lembro de ter me
nunca vi uma empresa falar inscrito em 3 ou 4 e não passei,
“trabalha com a gente até você mas tudo bem, eu estava bem, eu
junta dinheiro para montar sua estava feliz porque outras pessoas
empresa”. Eu nunca ouvi uma em emergência conseguiram.
empresa falar assim. Isso para Eu não sou aquela pessoa que
mim não tem preço. Tem todo fica “Ah, que raiva”, sabe? Ah,
valor, por isso que eu babo ovo teve a segunda edição do Mais
mesmo pela Unilever, eu tenho Diversidade Itaú, que eu tentei
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
paixão pela Unilever. Já usava o mais uma vez, pensei “pô, mais
que eu podia né, porque eu era, um ano pode nos ajudar mais ou
eu sempre fui pobrinha. Eu sou pouco, né?”. Não fui aprovada,
pobrinha então uso Surf, mas porque dessa vez tiveram mais
eles têm o Omo, e aí a gente fala de 500 inscrições, O Itaú Mais
desses produtos com a maior Diversidade, a segunda edição.
tranquilidade. Mas o que que aconteceu? O Itaú
E aí hoje, uma das renovou comigo um patrocínio
propostas que eles trouxeram por fora esses dias, então a gente
pra mim, nessa proposta de vai ter essa quarta rodada graças a
sustentabilidade, foi eu dar o esse patrocínio do Itaú.
curso de promotora de venda da E assim a gente vai
Unilever. Que aí a pessoa sai com aprendendo e fazendo, e eu
aquele selo da Unilever, mesmo vou vendo os resultados dos
que ele não trabalhe pra Unilever, meus bebês. Falo que são meus
qualquer empresa com aquele seu bebês mesmo, me chama de
curso dado pela Unilever vai te madrinha, entendeu? Aí eu falei
285
“vocês chamam todo mundo tipo de parceria, e eu tenho um
de madrinha, a Indianare é orgulho gigante dessa preta.
madrinha, Andréa Brazil é A gente tá institucionalizando
madrinha, tem muita madrinha, o CAPACITRANS agora – eu já
mas tá bom, que seja assim, que sou MEI, mas a minha empresa
sejam nós por nós.” de moda é uma coisa, eu só
posso ganhar x, não sei o que lá,
Diógenes Pinheiro: Andréa, negócio de imposto de renda.
fala um pouco disso, dessas Nenhum dinheiro de edital vem
suas alunas. Onde é que estão como MEI, as conquistas de
os negócios delas, quais são as digital vem como pessoa física,
áreas prioritárias, como é que tu exatamente pra eu me precaver,
ensina a trajetória das pessoas que para não passar uma impressão
passaram pelo CAPACITRANS? de sonegação, de desonestidade,
Porque é de fato uma experiência e ultrapassar teto de MEI – o MEI
muito inovadora. é 81 mil por ano – então eu acho
que já passei essa cota aí. Então
Andréa Brazil: Tem de tudo. quando a gente vê essas pessoas
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
Tem desde pessoas que entraram que estão produzindo, eu não sei
de um jeito e mudou no meio porque que eu falei disso agora,
do projeto: “Madrinha, entrei mas vamos lá, que as vezes eu me
pra fazer moda, mas acho que perco... A Cher é um exemplo, ela
meu universo é outro”. Esse mesmo indicou o CAPACITRANS
primeiro exemplo é a Cher. A para essa plataforma Play for
Cher acabou se tornando uma Help, que fez uma campanha
influenciadora digital, ela fala do online, um streaming, aí eles
empoderamento preto, ela tem arrecadaram mil reais, e veio pro
a marca Transcurecer, o canal CAPACITRANS. Isso é um muito
Transcurecer, Cher Machado, no incrível, uma aluna que entrou
Instagram, no Twitter - mas ela como moda, e acabo indo pro lado
se tornou a rainha do Twitter, ela de empreendedorismo.
traz a pauta preta, a causa racial. Ela é professora de física, ela é
E isso já começou a trazer retorno formanda, alguma coisa assim, ela
financeiro pra ela, empresas tá concluindo física, é a famosa
querendo ela fazendo algum nerd. E ela tem esse universo
286
geek também, de streaming, de ela já tem três máquinas: reta,
plataforma, de jogos. Ela é muito overlock e galoneira, ela postou
inteligente. E é uma preta que fala no grupo esses dias! Então
com um local de fala do universo esses resultados, para mim,
trans preta, né? Aí tem o Gabriel, são os resultados que eu levo
que hoje é líder da liga trans para os investidores, que eu
masculina, que está aí envolvido tenho muito orgulho. Pessoas
demais com o ativismo, e tá aí que eu levo hoje... a Fernanda
sendo bem agregado, conversando de Lima, que desistiu das ruas,
com as mandatas, Ericka Hilton, porque vivenciou umas situações
Malunguinho, então ele tá aí indo de violência graves, negócio
pro caminho do ativismo. Mas de cafetina, de prostituição
ele tem também uma cooperativa perigosa. A Fernanda de Lima,
de trabalhos de pessoas trans, ela entrou na repescagem do
a BICOOP, e assim vai rolando CAPACITRANS mulheridades
as paradas, e aí eu vou vendo as na moda... Fernanda de Lima,
pessoas crescendo. ela é de um talento absurdo!
Eu tenho Lorrayne, que saiu Absurdo! Ela tem a questão da
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
287
limite, são muito chatos, ficam pra família, e nada se fez de útil.
enchendo toda hora, me pede Então se eu morrer amanhã, pelo
foto, aí de vez em quando eu menos eu deixei um legado, então
fujo das internet”. Aí eu entendi, que eu gaste tudo com todos os
porque ela está focada. meus irmãos e irmãs, essa é a
Inclusive aqui onde vão minha proposta. Eu não preciso
ser as aulas aqui da segunda ficar rica, eu não preciso de um
rodada, quando houverem aulas carro para ter status, eu tenho
presenciais, que é nessa casa eu meu motorista voluntário do
estou morando agora, que é uma CAPACITRANS que eu pago com
casa maior, que tem espaço, três um fundo, porque ele faz tudo
quartos, uma sala enorme - ali em prol das minhas meninas:
que vai ser sala de aula... essa casa “Andréa, quer levar cesta básica?
que estou morando hoje - alugada, Eu levo tudo de casa em casa”
óbvio - essa casa eu falei com a Aí eu pago ele tudo o quanto eu
Fernanda, falei: “Fernanda, eu posso pagar. É sempre um valor
quero que você monte o ateliê simbólico, mas ele aceita de
com todas essas coisas, caixote, coração, porque ele estava em
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
288
retribuir e ter essas pessoas na a gente não pode ter formatura
minha equipe, sabe? com a pandemia, então há
E ele respeita as minhas uma promessa aí de fazer uma
meninas e os meus meninos, isso formatura geral aí quando isso
pra mim é o ponto principal – tudo passar, reunir todo mundo
ele brinca, ele tem uma relação que passou pelo CAPACITRANS
maravilhosa com a Kelly, que é para ter uma festa, nem que seja
minha assistente. A gente ficou um edital só para isso, um edital
3 meses entregando cesta básica para uma festa. E é isso, é nós por
de casa em casa de aluno, eu nós, eu sempre falo isso.
ficava em casa trabalhando de Todos eles estão nas redes,
home office, prestando conta, a gente tem o CAPACITRANS
fazendo isso, fazendo aquilo, RJ no Instagram, aí está todo
fazendo relatoria, e eles indo mundo lá. Nem todo mundo tem
juntos entregar cestas básicas Instagram, mas a gente também
de casa em casa de aluno. E tem a página do Facebook,
ele falava: “Kelly vai comigo! CAPACITRANS RJ. Dentro da
Andréa, eu adoro sua irmã, sua minha página do face tem página
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
289
aí três, quatro, cinco nomes”, respeita teu gênero, aí essas
“Andréa, a gente tem vaga para empresas contem comigo para
assistente administrativo, quem tudo, sabe?
das meninas ou dos meninos do Toda vez que postam no
CAPACITRANS se enquadram grupo “vaga no emprego tal”,
no perfil?” Eu quero a gente se a primeira coisa que eu vou é
torne esse espaço, sabe? Eu não naquela pessoa que mandou e
quero que a gente seja trans pergunto: “Você sabe se essa
empregos, mas que a gente seja empresa, ela é inclusiva com
trans oportunidades. Tem a pessoas trans, ou você só viu
Transempregos em São Paulo, e está compartilhando? Para
mas é como eu falo para vocês: eu com isso! Vai pesquisar, vai
não faço questão de reproduzir fuxicar a vida empresa! Vai ver
esse discurso do “ambiente quantas pessoas trans trabalham
formal”, porque a gente está aí lá dentro!” Isso não é difícil
vivendo uma perda de direitos de fazer, esse é o trabalho do
trabalhistas, Indianare falou CAPACITRANS, e é isso que eu
isso muito bem. Trabalhar, procuro reproduzir.
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
290
que estava trazendo menos fundamentalistas pularem na
obstáculos na contratação. Mas pipoca, ferver no azeite de dendê...
aí vem um grupo aí retrogrado, tinha quem ferver no caldeirão
começa a atacar a gente de do inferno, essas pragas. Porque
novo, começa a querer retirar quando vem uma campanha - dia
direito, aí já começa a botar dos pais - que fez um acordo com
obstáculos de novo. Mas está um trans, com um homem trans,
avançando sim! Quando você o Thammy, para ele fazer uma
tem representatividade trans campanha publicitária nas redes
em novela, desde a malhação dele, tinha nada dele ser “garoto
até novela das 9, reconheço propaganda”, não era ele que
que, de forma positiva – quando aparecia no comercial da Rede
é feita né, quando não é uma Globo, as pessoas são medíocres
palhaçada igual à do Agnaldo e mesquinhas. E aí você vê esse
Silva, de colocar a Nanny People silêncio todo agora com Flordelis,
com nome de homem, aquilo né? Agora... que silêncio! Cadê
foi uma palhaçada, a novela dele esse povo fundamentalista? Cadê
realmente é transfóbica, não esse povo?
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
291
porque cria os filhos - e não faz vamos ser honestos. Então todas
mais que obrigação -, e veio atacar as religiões que pregam inclusão
um homem trans, veio atacar o da boca pra fora, elas têm o meu
Thammy. Eu entrei numa guerra, repúdio, então é por isso que eu
num conflito com ele, ele falou estou cada vez mais desistindo
“olha, você pode me excluir” e eu de todas elas. Aí quando eu tenho
falei “não, não vou te excluir não, um padrinho, padre da paroquia
sabe por que? Porque você vai ter anglicana, São Lucas, que tem
que aprender a conviver com a uma fala que destoa de todos eles,
diversidade”. Eu vou mandar uma como não amar? Como não ser
mensagem para ele hoje, foi bom apaixonada? Não é porque doa pra
a gente ter tocado nesse assunto, projeto não, é porque cuida! Sabe
vou perguntar: “Nossa, cadê seus o que que ele fala pra gente, o
manifestos contra a deputada padre Luiz Coelho? Ele fala assim:
Flordelis? Cadê seus argumentos “Andréa, tem como você levar
para a mãe que transava com umas meninas do CAPACITRANS
o filho que virou marido, que lá pra gente falar sobre a vitória
nem sei o que... Cadê seus do fundo de Atlanta? Mas olha,
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
292
gratuito aqui, os movimentos ali com um discursinho “que
que fazem isso a gente sabe agora eu sou do Senhor, que eu
quem são, eu não preciso citar destransicionei”, eu penso “Nossa,
nomes – então a gente precisou a lavagem cerebral foi boa aí”. E
buscou um protagonismo trans eu tenho essa visão e não adianta,
sim, tá? A gente precisa que as ninguém deixa de ser aquilo que
lésbicas radicais que nos excluem nunca foi uma escolha, ela não
e não nos respeitam enquanto pode deixar de ser. Não é uma
identidade feminina... elas estão escolha ser homossexual e não e
mais próximas do que discurso uma escola ser trans. Existe um
do opressor bolsonarista, do que momento que você se enxerga
de um discurso liberal, de um enquanto trans – “Ah, realente
discurso da esquerda, vamos eu sou gay. Não, eu sou bi!
dizer assim, do discurso de Caramba, eu achava que eu era
inclusão, quando elas nos atacam, gay, mas eu sou bissexual porque
rotulando genitália a gênero, eu gosto de mulheres também,
sabe? É triste, é triste. eu gosto de homens e mulheres!”
Quando você vê esses As pessoas se descobrem! E isso
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
293
que ir pra Minas, e foi pega de puta: “Não, não são nossos
surpresa pela pandemia, que filhos não! Nós não temos filhos
proibiu a volta... e eu acho que ela escrotos e ladrões iguais a eles!”.
acabou se virando por lá mesmo. E ser puta não é demérito, ser
A Ester é uma trans que é, na puta é um trabalho! Bom para
verdade, uma pessoa intersex, que quem sabe ser, não para uma
contou a história dela lá numa burra igual a mim, que não sei
roda de conversa sobre violências, ser profissional do sexo porque
que emocionou a todo mundo. não sei cobrar. Nesse ponto eu
Ela emocionou mulheres cis não sou empreendedora... eu
presentes, ela emocionou outras sei vender minha moda, mas
meninas trans. não sei vender meu corpo,
Outras coisa que a gente acabo dando de graça. Isso
combate dentro das aulas do tudo eu vou trabalhando nas
CAPACITRANS é a padronização. aulas também, sabe, enquanto a
A gente não aceita nenhum tipo gente vai contando, vai ouvindo
de desmerecimento da que não várias histórias...olha, daria
seja tão bonita ou tão perfeita um livro, um livro, se fosse
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
294
falei “então, CAPACITRANS para Caminhar, a gente estava
capacitar sempre pessoas trans, caminhando - respondendo
mas a gente não vai fazer o que sua pergunta Diógenes, dei
os outros movimentos fazem uma volta ao mundo pra falar
com a gente, a gente não vai isso -, estávamos caminhando,
virar as costas se baterem pra graças aos grupos ativistas, mas
lá!” – “Andréa, eu sou mulher também retrocedemos muito
cis, mãe de dois filhos, mas eu com muita gente que deu facada
tenho uma relação bissexual, nas nossas costas, se aliando a
já fiquei com mulher, posso?” bolsonarismo. Agostinho é uma
“Pode! Vem sim, vem com tudo, representatividade podre pra
estamos juntos, se respeitar os gente, é um gay que é chaveirinho
meninos e meninas da turma, de hétero e de bolsonarismo, e
vai ser irmã igual qualquer outra outros tantos aí. Esse tipo de coisa
pessoa”. Porque a gente nasceu que faz agente dar dois passos
de mulheres cis, de pessoas, entre para trás, porque as pessoas
aspas né, a gente nasce de uma passam a achar assim: “A lá!
“mulher cis”. Eu tenho toda uma Como que o presidente aceita!”
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil
295
a gente começou a parecer, e
aí eles estão voltando a querer
apagar a gente. Mas vai ser difícil,
não vão conseguir.
296
interferência cromática sobre foto de Ricardo Matsukawa | temqueter.org
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
Trabalho e
tra (ns)vesti -
(gêneres) lida-
des : elementos
para uma
análise
Dandara Felícia Silva Oliveira
Marco José de Oliveira Duarte
298
O MUNDO DO TRABALHO E DAS PESSOAS
transvestigêneres é um tema pouco tratado academicamente
na literatura científica tanto no campo dos estudos de gênero
e sexualidade, como nas áreas de conhecimento científico
que tomam o trabalho como objeto de estudos. Apresenta-
se um texto-ensaio, a partir de uma pesquisa qualitativa
em curso, contudo, suspensa, atualmente, em decorrência
da pandemia da COVID-19, mas que, metodologicamente,
analisa alguns dados que se baseiam na revisão da literatura
e no começo de um trabalho cartográfico de campo. Para
tanto, a produção textual trata de forma introdutória e
teoricamente do conceito do trabalho e suas relações, para,
consequentemente, focar na problematização da inserção da
população transvestigêneres no mercado do trabalho marcado
pelas relações capitalistas. Questões e marcadores sociais são
tomados, pelo víeis da vulnerabilidade, subalternidade e da
precariedade do trabalho e da vida, e, em particular, sobre
as condições, modos de existência e da cidadania precária
que se expressam na sociabilidade das transvestigêneres.
As fragilidades das políticas públicas e a lógica da exclusão e
do aniquilamento para com esses sujeitos é mais acentuado
ainda no momento presente e histórico marcado pelas crises
do capital e pelo discurso de ódio que contraditoriamente se
produz resistências coletivas na sociedade brasileira.
1. Introdução
Esse trabalho tem por objetivo tratar sobre pessoas
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
300
Cabe sinalizar que um outro elemento desse processo de
assassinatos que os/as corpos/as transvestigêneres estão
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
302
analíticos para que se possa pensar ações e políticas públicas
de inserção dessa população no mercado formal de trabalho
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
306
3. Trabalho e interseccionalidades
Para se pensar a questão da opressão de gênero, sexualidade
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
308
vulnerabilidades, negação de direitos e exploração no
mercado de trabalho como elementos constitutivos da
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
309
identificados como à margem, as/os ditos dissidentes sexuais
e de gênero, sofreram processos contínuos de criminalização,
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
312
programas socioassistenciais governamentais, além das
dificuldades quanto a documentações e sobre a garantia de
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
313
movimento homossexual que atuam na defesa de
direitos humanos; a disseminação de informações sobre
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
314
permanente de técnicas dos governos, responsáveis
por sua formulação, implementação, monitoramento e
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
315
É nesse sentido que a pesquisa acima vem corroborar
as nossas primeiras aproximações e impressões no trabalho
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
316
no campo dos estudos sobre trabalho e gênero, o trabalho
precário é majoritariamente feminino e o setor de
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
317
processo de afirmação da identidade travesti (RIBEIRO
et al., 2019, p. 380)
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
318
publicado provimento autorizando a retificação do prenome e
do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
5. Considerações finais
É urgente observar o contexto que se encontra atualmente
o mundo do trabalho no Brasil, principalmente com as
características de um Estado neoliberal e um governo de
extrema-direita, com militares e fundamentalistas nos
postos de poder, marcado pela desdemocratização, que
vem aprofundar ainda mais as crises políticas, econômicas
e sanitárias, particularmente após o advento da pandemia
de COVID-19, repercutindo nas perdas dos direitos sociais
para população como um todo, aprofundando a exploração,
subalternização e precarização do trabalho e da vida, em
particular, impetrada pela política de morte no âmbito da
governamentalidade e da biopolítica.
319
É nesse sentido que Bento (2014) nos chama atenção para
as gambiarras e para a cidadania precária dessa população, ao
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
afirmar que,
a cidadania precária representa uma dupla negação:
nega a condição humana e de cidadão/cidadã de sujeitos
que carregam no corpo determinadas marcas. Essa
dupla negação está historicamente assentada nos corpos
das mulheres, dos/as negros/as, das lésbicas, dos gays e
das pessoas trans (travestis, transexuais e transgêneros).
Para adentrar a categoria de humano e de cidadão/
cidadã, cada um desses corpos teve que se construir
como “corpo político”. No entanto, o reconhecimento
político, econômico e social foi (e continua sendo) lento
e descontínuo (BENTO, 2014, p. 167).
320
Portanto, a morte e o aniquilamento do outro pelo
cisheterosexismo-terrorista não se limita, exclusivamente, ao
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
na assistência social.
Mesmo assim, emerge o exercício da resistência coletiva e
organizada sobre o as tentativas de apagamento das diferenças,
de práticas normalizadoras e da disciplina que fabrica os
preconceitos morais e a produção do ódio. É necessário ensaiar
formas curriculares, práticas de saúde, locais e relações de
trabalho que possam produzir novas formas de como acolher
as subjetividades, as novas estéticas da existência, desconstruir
criativamente as fronteiras sexuais e de gênero. Pois, talvez um
dia, as diferenças sexuais e de gênero percam a importância
no campo do trabalho, educação, saúde, mesmo dentro das
relações sociais capitalistas vigentes.
Referências
ALMEIDA, G. S. Direito ao trabalho e pessoas transexuais: trajetórias
e condições de trabalho, relações com a divisão sexual do trabalho e
com a generificação das profissões (Projeto de pesquisa). Rio de Janeiro:
Laboratório Integrado de Diversidade Sexual e de Gênero: Políticas e
Direitos (LIDIS), FSS/UERJ, 2014.
ALMEIDA, G. S.; MARINHO, S. Trabalho contemporâneo e pessoas
trans: considerações sobre a inferiorização social dos corpos trans como
necessidade estrutural do capitalismo. Revista Sociedade e Cultura,
Goiânia, v. 22, n. 1, p. 114-134, jan./jun. 2019.
ANTUNES, R.; DRUCK, G. A terceirização sem limites: a precarização do
trabalho como regra. O Social em Questão, Rio de Janeiro, ano XVIII, n.
34, p. 19-40, 2015.
322
BENEVIDES, B. G.; NOGUEIRA, S. N. B. (Org.). Dossiê: assassinatos
e violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018. Brasília:
Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA),
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
323
Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/
relatorio_institucional/190605 _atlas_da_violencia_2019.pdf>. Acesso
em: 29 jul. 2020.
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
324
PARADIS, C. G. A prostituição no marxismo clássico: crítica ao
capitalismo e à dupla moral burguesa. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, n. 26, vol. 3, e44805, 2018. Disponível em: <https://
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte
325
interferência cromática sobre foto de Ricardo Matsukawa | temqueter.org
EDUCAcÃO E
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager
MERCADO DE
TRABALHO:
EXPULSÃO
ESCOLAR
E A EMPREGA-
BILIDADE DE
TRAVESTIS E
TRANSEXUAIS
Diego da Silva Santos
327
Sergio Luiz Baptista da Silva
O PRESENTE ARTIGO TEM COMO OBJETIVO
abordar os desafios dos processos de escolarização, a partir
da experiência de expulsão escolar, e, por conseguinte,
da inserção de jovens travestis e transexuais no mundo
do trabalho, por meio dos relatos das colaboradoras da
dissertação de mestrado realizada e orientada pelos
autores. A vivência escolar esbarra em micro transfobias,
comumente não enxergadas pelo corpo docente ou pelos
demais atores escolares. A vivência do invisível nas dores
do existir no cotidiano escolar, de pessoas travestis e
transexuais, é por vezes para elas um impedimento do
término dos estudos. Isto, enquanto reflexo e produto
da transfobia socialmente vigente, leva a marginalização
profissional e a dificuldade de vislumbrar uma carreira
ou profissão, como evidenciada pela pergunta de uma
das colaboradoras que conduziu a referida pesquisa: Uma
travesti pode ser advogada?
1.Introdução
A pesquisa de mestrado intitulada “Uma travesti pode
ser advogada? O CIStema educacional e o desafio da
permanência na escola de travestis e transexuais jovens
moradoras da Rocinha, RJ” foi concebida e conduzida a partir
da pergunta de uma das colaboradoras da pesquisa, muito
antes da investigação acontecer. A referida pergunta era:
“Uma travesti pode ser Advogada?”.
A profundidade que esta simples pergunta continha
é desconcertante. Essa formulação nos coloca frente
às consequências concretas da marginalização que são
impostas socialmente àquelas e àqueles que são encarados
como desvio da ordem normal, biológica, dos corpos, dos
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva
1 Pessoas que se identificam com o mesmo gênero que é imposto a partir do sexo
biológico atribuído ao nascimento; o gênero e imposto pois espera-se que quem
nasce com vagina se identifique e viva como mulher, e quem nasce com pênis se
identifique e viva como homem
329
só pela pesquisa ser realizada e orientada por pessoas
cisgêneras, mas como pela escola ser identificada enquanto
um território cisgênero, heterossexual e normativo.
Para entender a cisgeneridade, tomamos como base
os estudos de Viviane Vergueiro (2013, 2015). As jovens
colaboradoras da pesquisa são oriundas do programa
ViraVida, programa social que ocorre no território da
Rocinha, cujo objetivo é atender adolescentes e jovens em
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva
2. Empregabilidade
Empregabilidade é um termo oriundo dos mecanismos
do capitalismo para individualizar o sujeito na sua
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva
333
novas possibilidades de mover, criaram novos caminhos
e outras bifurcações para expressar-se, caminhos para
construírem para si mesmos, a cada encontro, novas
potencialidades para suas afirmações e escolhas.
(CASTRO, A.C.; BICALHO, P.P.G. 2013, p. 121).
334
Desde o abril, o CNPq permite a inclusão do nome
social no currículo Lattes, que funciona como um
histórico escolar de estudantes e pesquisadores
brasileiros. Em pouco mais de um mês, 5.502 pessoas
passaram a usar o nome social. Ao contrário do nome
civil, o social reflete o gênero com o qual a pessoa trans
realmente se identifica. Do total de currículos, noventa
e duas pessoas informam terem cursado um mestrado e
76 se tornaram doutores. Mas a falta de números oficiais
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva
2 Fonte: <http://especiais.correiobraziliense.com.br/transexuais-sao-excluidos-do-
mercado-de-trabalho>. Acesso em 20/05/2018.
335
realização de ações afirmativas a fim de mudar esse cenário
em que nosso país se encontra. Portanto, são imprescindíveis
estratégias de inclusão e intervenções visando minimizar
a expulsão desse público na escola. Tomo o sentido de
expulsão escolar (SANTOS, 2019) a partir do uso de exclusão
feito por Adriana Sales (2018):
336
3. Expulsão escolar
A escolha pela investigação das categorias inserção,
acolhimento e permanência para entender a expulsão se
deu pelo entrecruzamento entre a leitura da bibliografia
disponível a respeito do tema e a escuta das narrativas
das colaboradoras da pesquisa. Como é a inserção num
espaço escolar heterocentrado de pessoas divergentes da
cis-heteronorma? Como ocorre o acolhimento na escola
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva
337
de Deus e da família, uma representação do Estado, em nome
do progresso e da civilização. Para Bortolini e Pimentel (2018),
o projeto colonial que originou a sociedade brasileira, em
uma ordem oligárquica, tal e qual outras sociedades latino-
americanas, é um projeto político e econômico que tem na
racialização, na ordem do gênero e na sexualidade regulada
instrumentos últimos que permitem a sua realização.
O poder de disciplinar corpos na escola está presente
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva
338
Andrade (2015, p.15) afirma que “a escola para a maioria
das travestis permanece um sonho, enquanto a esquina (a
margem) é ainda a realidade [...]”. Pensar na escola como um
lugar de potente transformação social para as travestis é umas
das provocações feitas em seu trabalho, assim como as formas
por meio das quais esta instituição promove a regulação das
experiências e expressões desse grupo. Algumas das falas
ouvidas nas entrevistas e nas narrativas de vida endossam
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva
(...) fico triste porque eu não quero isso pra minha vida,
eu não quero ser tratada como só mais uma, como
uma qualquer, que só quer estudar pra ter o diploma
da escola, eu não quero isso, eu quero fazer medicina,
eu tenho sonhos, eu tenho coisas que eu quero fazer
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva
341
para “parecer normal”, não chamar atenção e se disfarçar5
como uma proteção para estar na escola. As situações de
micro transfobias, atos banais cotidianos que emergem
indistinguíveis aos olhos cisgêneros, nos mostram que elas
são levadas a desistirem.
A fala dos gestores das escolas encarna o olhar cisgênero
ou cisnegerificador (pois, enquanto age, mimetiza o uso),
reflete o quanto as pessoas não cisgêneras (trans) são vistas
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva
6 E a norma está de alguma forma mensurada pela passabilidade, que não diz
respeito à fenotipia do organismo, mas a códigos morais de comportamento,
expressão de gênero e sexualidade.
342
4. Inclusão pela exclusão social
Se a expulsão escolar ocorre com uma grande parte da
população travesti e transexual, o estigma da associação
destas pessoas com atuações profissionais marginalizadas
parece se enraizar no imaginário social. Muitos estudos
sobre a população da Sigla T versam sobre a prostituição. Em
contrapartida, Andrade (2015) ressalta que diversas pesquisas
sobre travestis focalizam a prostituição e o objetivo último
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva
5. Considerações finais
É somente por meio da mobilização social de protagonismo
dos grupos sociais marginalizados que se torna possível
a essas realidades estarem cada vez mais visíveis dentro
dos sistemas legais e políticos. Em curto prazo, isso pode
propiciar um maior reconhecimento da humanidade da
população T e a legitimidade de suas várias demandas,
como o direito à educação, emprego e renda. Mas, por outro
lado, são esses corpos que estão excluídos da cidadania,
subalternizados e tratados desigualmente a tal ponto que
sequer cooptados pelo capital foram totalmente, mesmo
que tenha acontecido uma emergência e popularização da
temática trans na mídia e na produção acadêmica. Esses
345
corpos, contudo, possuem um potencial de desestabilizar
as normas sociais vigentes (SANTOS et al, 2019). Assim,
deslocados, propõem uma revolução da norma, e não
mais uma tentativa vã de se enquadrar nela. Os ativismos
locais dos corpos excluídos podem ser uma saída contra
hegemônica, de forma pungente.
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva
Referências
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resistência à ordem normativa. Rio de Janeiro: Metanóia, 2015.
BENTO, Berenice. Transviad@s: Gênero, Sexualidade e Direitos
Humanos. Salvador: EDUFBA, 2017.
Bortolini, A., & Pimentel, T. (2018). Direito à educação de pessoas
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Disponível em: < https://revistadh.mdh.gov.br/index.php/RCDH/article/
view/24>. Acesso em 31/01/2019.
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: Elementos para uma
teoria. Porto Alegre: Artes médicas sul, 2000.
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Alegre: Artmed, 2001.
CHARLOT, Bernard. Relação com o saber, formação dos professores e
globalização: questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005.
CHARLOT, Bernard. A mobilização no exercício da profissão docente.
Transcrição da Palestra de Aberturado I Colóquio Internacional de Formação
Inicial e Continuada de Professores de Línguas Estrangeiras, proferida em
16 de março de 2012. Em: Revista Contemporânea de Educação, vol.7, n.
13, janeiro/julho de 2012. P. 10-26. Disponível em: < https://revistas.ufrj.br/
index.php/rce/article/view/1655/1504>. Acesso em: 18/07/2017.
346
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber às práticas educativas. São
Paulo: Cortez, 2013.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1975.
MARTINI, Paula; SABÓIA, Gabriel. Pesquisadores trans ainda
enfrentam desconfiança sobre sua produção acadêmica. CBN – País.
Não paginado. 29 de Maio de 2018. Disponível em: <http://cbn.
globoradio.globo.com/media/audio/185983/pesquisadores-trans-ainda-
enfrentam-desconfianca-s.htm>. Acesso em: 28/05/2018.
SALES, Adriana. Travestis brasileiras e escolas (da vida): cartografias do
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva
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Baader (org.) As artimanhas da exclusão. Análise psicossocial e ética da
desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 7-13.
SILVA, Jaílson. Um espaço em busca do seu lugar: as favelas para
além dos estereótipos. In M. Santos & B. K. Becker. (Orgs.), Território,
territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial (pp. 209-230). Rio de
Janeiro: Lamparina, 2007.
VERGUEIRO, Viviane. Explorando Momentos de Gêneros Inconformes
– Esboços Autoetnográficos. Seminário Internacional Desfazendo
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva
348
LUGAR DE FALA
DE NOSSAS
ESCREVIVÊNCIAS
ESTE PROJETO FOI NORTEADO POR ALGUMAS
PREMISSAS BÁSICAS. Uma delas sugere o
compartilhamento de conhecimentos e vozes construídos a
partir de seus lugares de fala, conforme nos enuncia Djamila
Ribeiro (2019). Essas vozes vêm transitando com maior
visibilidade no âmbito da academia, mas já transitavam fora
dela. Outro pilar importante se expressa na representação
Lugar de fala das nossas escrevivências
349
apresentar essa diversidade. Escolhemos acrescentar a
imagem de todas as pessoas, uma vez que entendemos que
todo corpo é político e que a presença de determinados
corpos em espaços acadêmicos traz, em essência, um traço
importante de vitória e reexistência.
Alexandre
Bortolini
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: bortolini.alexandre@gmail.com
351
Nabo França
Alexandre
Psicólogo; Especialista em Gênero, Sexualidade, política
públicas e Direitos Humanos; Mestre em políticas públicas
em direitos humanos. Pesquisador do Laboratório de
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: alexnmfranca83@gmail.com
352
Andréa Brazil
Travesti, TransAtivista, TransFeminista, Idealizadora e
Coordenadora Geral do Capacitrans RJ, Criadora da Marca
Andréa Brazil Moda Além de Gêneros.
Lugar de fala das nossas escrevivências
353
Anna Claudia
Ramos
Como me apresentar? Antes de tudo, uma eterna
inventadeira de histórias. Descobri que virar escritora era
uma forma de poder continuar a brincar. Sou mulher, sou
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355
Santa Brígida
Carlos Souza
Sou educador, companheiro da Jéssica, filho da Ildenia,
mulher preta de muita coragem e luta, pai orgulhoso de
duas gatinhas (Maju e Amora) e uma cadela arteira (Lisa).
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: carlos_santabrigida@hotmail.com
356
Cláudia Reis
Sapatã, ativista LGBT, filha do caminhoneiro Expedito e da
costureira Marisa, primeira da família a chegar no nível
superior. É mãe da Nina Bastet e da Nega Chanel (gatas) e
mora atualmente com elas. O filho Shiva (cachorro) foi morar
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: msclaudiareis@gmail.com
Lugar de fala das nossas escrevivências
358
Dandara Felícia
Silva Oliveira
Travesti, Preta, Periférica, Graduada em Gastronomia e
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: contato@dandarafelicia7.com.br
359
Diego da Silva
Santos
Gay, tio da Manu, padrinho da Antonella e pai de dois
gatos, a PCD Moira (cega) e o espezinhado Artemis. Escritor
de contos, Taurino amante das artes, especialmente da
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: diesantos.psicologia@gmail.com
360
Diógenes
Pinheiro
Cientista Social, pesquisa sobre juventude, políticas públicas
educacionais e processos de mudanças sociais no Brasil.
Professor, Pesquisador e Extensionista da Escola de Educação,
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: diogenes.pinheiro@unirio.br
361
Joice Farias
Daniel
Defensora dos Direitos Humanos, Professora de História
e Historiadora, Membra do GE-SER – Laboratório de
Pesquisa, Estudos e Extensão em Gêneros, Sexualidades
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: joicevidatw@yahoo.com.br
362
Jonathan Aguiar
Favelado, gay, tio-dindo da Manu, pai da Kiara - filha de qua-
tro patas. Amante das artes, embriagado com poesias. Para
todo início “ser humano” assim como doutorando em Edu-
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: escritorjonathan@gmail.com
363
Oliveira Duarte
é
Marco José de
a
e-mail: majodu@gmail.com
364
Matheus
Pinheiro
Um ser brincante, favelado, gay e um aventureiro no campo
da literatura infantil. Escoteiro e Graduando em Pedagogia
pela CNEC que apoia mais homens na educação e nos
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: matheus.pinheiro1305@gmail.com
365
Moysés Marllon
Nascimento
Marllon Nascimento Discente em Pedagogia da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), extensionista
do grupo Experiências em Diversidades na Universidade -
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: moysesmarllon@gmail.com
366
Hanbury
Nina
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Memória
Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO). Possui graduação em Relações Internacionais pela
London School of Economics an Political Science.
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: ninahanbury@gmail.com
367
Paulo Melgaço
da Silva Junior
Mineiro de Belo Horizonte, professor na Educação Básica,
ensino superior e pós-graduação. Em todos os campos que
atua sua preocupação central é a luta pelos direitos humanos
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: ppmelgaco@uol.com.br
Saltztrager
Ricardo
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: ricosalz@gmail.com
369
Wagner York
Sara
... ou Sara Wagner Pimenta Gonçalves Jr (uso de nome social e
civil como escolha política). Mulher trans, travesti, professora,
pai, avó, coreógrafa, cabeleira, maquiadora, pedagoga. É mestre
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e-mail: sarayork@live.com.pt
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371
Baptista da Silva
Sergio Luiz
Homem negro cis, gay, paulista que mora no Rio, Professor
Associado II da Faculdade de Educação e o Programa de Pós-
graduação em Políticas Públicas e em Direitos Humanos
Lugar de fala das nossas escrevivências
e-mail: serggioluiz@uol.com.br
REFERÊNCIAS
RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala, São Paulo, Pólen, 2019.
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Lugar de fala das nossas escrevivências