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Quando Lgbts Invadem Escola Mundo Trabalho

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Pode falar sobre gênero na escola?

Alexandre Bortolini

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro –


UNIRIO
Pró-reitoria de Extensão e Cultura – PROExC,
projeto “Observatório sobre a realidade da
empregabilidade da população LGBT”
Grupo de Pesquisa Juventude: políticas públicas,
processos sociais e educação, vinculado ao Programa
de Pós-graduação em Educação (PPGEdu)
Editora da Universidade Federal do Estado do Rio
2 de Janeiro – UNIRIO, Rio de Janeiro, 2020
UNIRIO
Reitor: Ricardo Silva Cardoso
Vice-reitor: Benedito Adeodato
Pró-reitor de Administração: Thiago da Silva Lima
Pró-reitor de Extensão e Cultura: Jorge de Paula Costa Avila
Assessora jurídica da Reitoria: Maria Carla Britto de Castro Lima

EQUIPE ACADÊMICA
Coordenador/UNIRIO: Diógenes Pinheiro
Coordenadora/Colégio Pedro II: Cláudia Reis
Estudantes do Programa de Pós-graduação em Educação
(PPGEdu): Andréa Del Pilar Lozano Bohórquez (Mestrado),
Ana Paula de Paiva Figueiredo (Mestrado), Evelyn de Souza
Lima (Mestrado), Francisco Pinto de Azevedo (Mestrado),
Gabriel Monteiro Gonzaga (Mestrado), Karine Rezende
(Mestrado), Luiz Gustavo Prado de Oliveira (Doutorado),
Rachel Alonso de Azevedo (Doutorado)

EQUIPE TÉCNICA
Secretária executiva: Adriana Abib
Administrativo: Marcos Vicente Di Paolo Coelho e Marcelo
Segreto

CONSELHO EDITORIAL
Eric Plaisance
Cerlis/Sorbonne e Professor visitante na UNIRIO, 2020/21
Pedro Pontual
Presidente honorário do Conselho de Educação Popular da
América Latina (CEAAL) e Professor visitante na UNIRIO, 2020/21
Regina Novaes
UFRJ e Professora visitante na UNIRIO, 2019/20
PROJETO GRÁFICO
Estúdio Malabares | Ana Dias

DIAGRAMAÇÃO
Estúdio Malabares | Ana Dias e Anna Letícia Janot

FOTOGRAFIAS
As fotografias que abrem os capítulos foram adquiridas em
“Tem que ter”, o primeiro banco de imagens brasileiro focado
na representatividade LGBTI+.
temqter.org

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Quando LGBTs invadem a escola e o mundo do


trabalho [livro eletrônico]. -- 1. ed. -- Rio
de Janeiro : Diógenes Pinheiro, 2020.
PDF

ISBN 978-65-00-11332-7

1. Educação 2. Diversidade cultural 3. Gênero e


sexualidade 4. LGBT - Siglas 5. Mercado de trabalho -
Brasil.

20-47740 CDD-305.3
Índices para catálogo sistemático:

1. LGBTI+ : Diversidade sexual : Sociologia 305.3

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129


7 Apresentação
sumário
Diógenes Pinheiro e Cláudia Reis

13 Pode falar sobre gênero na escola?


Alexandre Bortolini

45 Construções identitárias na escola: afinal,


do que estamos falando?
Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

69 “Defendo que existam mais homens, mas


não é fácil”: narrativas de professores,
gestores e responsáveis e suas visões sobre
o homem na educação infantil
Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Junior e Matheus Pinheiro

109 A literatura infanto-juvenil LGBT:


construindo identidades
Anna Claudia Ramos

138 Gêneros e sexualidades nos cursos de


licenciatura: um relato de experiência
do estágio de docência (orientação e
realização)
Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva
169 Daniel Cara entrevista a professora Sara York

204 O legado da patologização da


homossexualidade na esfera do trabalho
Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

229 “Desmunhecando deste jeito você não


pode trabalhar aqui”: reflexões sobre bichas
pretas, escolas e possibilidades de trabalho
Paulo Melgaço da Silva Junior

254 O projeto Capacitrans RJ


Entrevista com Andréa Brazil

298 Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades:


elementos para uma análise
Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

327 Educação e mercado de trabalho:


expulsão escolar e a empregabilidade de
travestis e transexuais
Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

349 Lugar de fala de nossas escrevivências


APRESENTACÃO

-
ESTA PUBLICAÇÃO REÚNE VOZES QUALIFICADAS
do campo de estudos sobre direitos de pessoas LGBTs
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais),
que trazem reflexões surgidas tanto da militância social
e política quanto de pesquisas acadêmicas. Em comum,
essas experiências narram as recorrentes, porém distintas
dificuldades experimentadas por pessoas LGBTs para
permanecerem e serem respeitadas na escola e no mundo do
trabalho. Apesar dos avanços conquistados nos últimos anos,
há muitos desafios para a superação da discriminação por
orientação sexual e identidade de gênero, a homotransfobia;
desafios esses, que são agravados pelo fato de inexistirem
leis específicas no Brasil que penalizem a discriminação
de pessoas LGBTs, já que a legislação vigente equipara a
homotransfobia ao racismo, desconhecendo as características
distintas de cada tipo de discriminação. As reflexões aqui
reunidas demonstram a necessidade de se avançar no debate
sobre a construção de um arcabouço legal capaz de garantir
igualdade de direitos a sujeitos muito diferentes, mesmo
dentro do próprio campo LGBT.

7
Porém, a existência da lei não conduz automaticamente
à igualdade de gênero se não houver, também, uma educação
continuada de respeito à diversidade, pois mudanças de
mentalidades levam tempo e demandam um esforço
permanente. No campo da luta política LGBT, é um trabalho
que já envolveu várias gerações de educadores e ativistas
sociais, cujos resultados temos colhido nos últimos anos e
podem ser vistos na expansão das liberdades individuais e na
maior discussão sobre igualdade de oportunidades a partir
das diferenças de gênero, tanto na escola quanto no mundo
do trabalho. Portanto, temos caminhado para uma maior
visibilidade das profundas exclusões vivenciadas por esses
sujeitos e corpos, o que é fundamental para o Brasil superar a
sua marca de ser um país especialmente desigual e violento
para a população LGBT. Por isso, combater a homotransfobia
continua sendo a principal demanda da comunidade LGBT,
o que somente é possível de ser feito com a mobilização
permanente das entidades da Sociedade Civil, mas, também,
com participação fundamental do Estado, em suas várias
instâncias, atuando na formulação de políticas públicas que
incluam a questão LGBT no campo dos Direitos Humanos,
como uma das prioridades para o avanço da democracia no
país, que precisa caminhar em consonância com os anseios e
valores progressistas do século XXI.
Apresentação

Nesse sentido, é essencial se pensar educação e trabalho


como dimensões indissociáveis da vida do/as cidadã/ãos, assim
como propõe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
8
– LDB (Lei Nº 9394 de 20 de dezembro de 1996) ao estabelecer,
em seu primeiro parágrafo, inciso 2º, que “A educação escolar
deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social”.
Portanto, é importante se pensar de forma integrada educação,
trabalho e convívio social como pilares fundamentais de uma
experiência de cidadania mais plena. Partindo dessa ordenação
legal, os textos aqui reunidos são um bom exemplo da potência
atual da luta pelo maior reconhecimento das pessoas LGBTs
– de todas, todos e todes – mostrando que as questões de
gênero têm transversalidades com outros ativismos sociais e
vêm conseguindo se inscrever entre as principais bandeiras no
campo dos Direitos Humanos.
Utilizamos a sigla LGBT, e não LGBTQIA+ e suas
diversas decorrências, não por nenhuma discordância de
fundo, mas simplesmente porque é desta forma que aparece
em todas as conferências nacionais de políticas públicas de
Direitos Humanos da comunidade e nos documentos oficiais
que garantem os direitos conquistados nos últimos anos.
A afirmação da comunidade LGBT se deu às custas de um
intenso e pouco (re)conhecido processo de mobilização política
de coletivos e indivíduos que não desistiram de buscar inserir
a luta pela diversidade de gênero no rol das lutas sociais pela
ampliação da democracia no Brasil. Até no campo político
progressista, as demandas LGBTs ainda são consideradas
Apresentação

muito “identitárias”, expressão que denota uma espécie de


nostalgia sobre um suposto sujeito coletivo, movido por
contradições com o capital. Mesmo dentro do próprio campo
9
de movimentos sociais, as lutas políticas de algumas vertentes
do movimento LGBT ainda são muito pouco conhecidas. Por
isso, justificamos nossa escolha pela sigla LGBT como forma
de valorizar esse capital político construído por gerações de
ativistas e que está presente nas deliberações representativas
da comunidade que pautou o debate nacional, orientou a
formulação de programas governamentais e garantiu o
mínimo ordenamento legal existente no país.
Porém, há que se considerar que o próprio movimento
LGBT apresenta tensões na forma de se expressar política
e identitariamente; tensões que, aliás, estão presentes em
qualquer movimento social, sobretudo em suas fases de
expansão e diversificação dos participantes. Tais tensões
são indícios de vitalidade do campo, que se renovou muito
rapidamente nos últimos anos e, por isso, saudamos esse
momento de crescimento e entendemos que as mudanças na
sigla LGBT expressam a chegada de pesquisadores portadores
de novas identidades de gênero que se apresentam e
reivindicam sua representação no campo. Por isso, cada
autor convidado optou livremente sobre qual sigla usar e não
houve a menor preocupação em se padronizar, pois trata-se,
justamente, de se pensar a e na diversidade.
No debate que se desenrola na sociedade brasileira de
modo mais geral, os movimentos e as bandeiras LGBTs
Apresentação

têm buscado se afirmar driblando preconceitos em um país


ainda bastante conservador, recentemente dominado por
tendências fundamentalistas religiosas que ocuparam a
10
cena política e passaram a ditar normas de comportamento
moral cujo centro é a demonização de qualquer referência
à diversidade de gênero, que recebeu a alcunha esdrúxula
de “Ideologia de Gênero” (sic). Assim, em 2020, a despeito
do muito que caminhamos nos últimos anos, para uma
pessoa LGBT se colocar na cena pública a partir de uma
identidade de gênero que questione a heteronormatividade
ainda é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana,
sempre, pois quem traz no corpo a marca da diversidade é,
no Brasil atual, um transgressor.
Por tudo isso, o título do livro e do ebook é “Quando
LGBTs Invadem a Escola e o Mundo do Trabalho”. Invadir
significa ocupar à força; conquistar; difundir-se; alastrar-
se por; espalhar-se. Com isso, queremos afirmar que as
conquistas alcançadas nas últimas décadas são os frutos de
uma luta social ininterrupta, de espaços conquistados palmo
a palmo, remando contra forças reacionárias, antigas e novas.
Mas sempre haverá novas barreiras a serem ultrapassadas
e esta publicação registra, com satisfação, que um grande
avanço do período recente é a legitimidade e intensidade
teórica trazida pela temática LGBT ao debate acadêmico,
a partir da maior presença de sujeitos LGBTs invadindo,
também, a universidade, ocupando a cena e ampliando, ainda
mais, o debate sobre diversidade no Brasil. Bem-vindes!
Apresentação

Diógenes Pinheiro e Cláudia Reis | Editores

11
interferência cromática sobre foto de Jessica Kindermann | temqueter.org
13
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

sobre

Alexandre Bortolini
gênero
na escola?
Pode falar
SE VOCÊ TRABALHA COM EDUCAÇÃO NO BRASIL,
certamente já ouviu uma palavra que tem ganhado os
holofotes em muitas polêmicas nos últimos anos: GÊNERO.
Talvez você tenha conhecido o termo em alguma aula,
palestra ou livro que leu. Talvez o tenha visto ou ouvido
pela primeira vez em um vídeo ou uma postagem nas redes
sociais. Talvez essa palavra tenha chegado até você pelas
mãos de um especialista ou embalada em fakenews e teorias
da conspiração disseminadas na internet. Diante de tanta
(des)informação, fica difícil construir um entendimento.
O que significa, afinal, “gênero”? Qual a utilidade desse
conceito para a educação escolar? E por que tantas pessoas
têm medo de que essa palavra seja usada na escola? A
proposta deste texto é responder a essas perguntas de
forma simples. Ao longo dos parágrafos, além de uma
explicação geral, você terá também acesso a informações
mais detalhadas sobre cada argumento trazido aqui, podendo
assim se aprofundar um pouco mais no tema. Vamos lá?

Gênero é um conceito construído pelas ciências humanas


no último século. Exato. Não é uma ideologia, nem um
movimento, nem um partido político, mas um conceito
científico. Existem muitas formas de contar a história
desse conceito. Uma das suas origens está na Antropologia,
especialmente em estudos feitos a partir do início do
século XX. Até aquele momento, tudo o que se sabia sobre
as relações entre homens e mulheres vinha da biologia
ou da religião. As explicações que vinham de um campo
ou de outro atribuíam as distinções de comportamento,
corpo e função social de homens e mulheres a uma
“diferença sexual” inata. Produzida por genes ou pela
criação divina, essa diferença já estaria marcada nos
corpos e seria compartilhada por todos os seres humanos,
independentemente do tempo ou da sociedade em que
existissem1 . Essa explicação, no entanto, começaria a ser
questionada a partir de pesquisas etnográficas produzidas por
estudiosos da cultura em sociedades de diferentes partes do

1 Sob o impacto da teoria da evolução de Charles Darwin, cientistas


ocidentais desenvolveram, a partir da segunda metade do século XIX,
teses que apontavam supostas diferenças biológicas como causa do
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

comportamento humano. A ideia de que estava na fisiologia a explicação


do comportamento e das diferenças serviu para justificar a dominação
colonial, a escravidão e a segregação racial. Essas teses deram origem
ao que hoje chamamos de “racismo científico”, um dos fundamentos
ideológicos das políticas eugenistas que se espalharam por todo o mundo
até meados do século XX, inclusive no Brasil, e que tem no Nazismo a sua
expressão mais conhecida. Assim como a “raça”, essas teorias também
explicavam as desigualdades entre homens e mulheres a partir de supostas
diferenças biológicas. Era também na fisiologia que buscavam a “causa”
de comportamentos sexuais à época considerados “desviantes”. É assim
que a palavra “homossexualismo” é criada, por exemplo, para descrever
o que estes teóricos entendiam como uma “deformação” fisiológica que
produziria um “desvio de caráter”. Hoje não é difícil perceber o quanto essas
“teorias” estavam bastante influenciadas pela cultura (racista e machista)
das sociedades que as produziram. Se a existência de raças biológicas já foi
definitivamente negada pela ciência, ainda persiste a ideia de que está no
corpo (genes, neurônios, hormônios) a explicação principal para diferenças
de comportamento, expressão e função social de mulheres e homens.

15
globo que mostravam como diferentes sociedades atribuíam
significados muito diversos ao masculino e ao feminino.
O que esses pesquisadores perceberam? Que o que definia
uma “mulher” ou um “homem” não era uma constante em
todas as culturas, pelo contrário, era possível identificar uma
grande variação cultural dos sentidos de masculinidade e
feminilidade nos mais diferentes povos que habitavam esse
planeta. Variações que contrastavam, às vezes de maneira
bastante radical, com o que esses pesquisadores tinham
como referência em seus países de origem2 . Em algumas
culturas não era necessariamente o corpo, ou só o corpo,
que determinava se uma pessoa era um homem ou uma
mulher. Em outras, era possível para alguns indivíduos
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

transitar por essas posições, sem que isso fosse um problema.


Algumas sociedades inclusive valorizavam pessoas que

2 A antropóloga estadunidense Margaret Mead é uma das pioneiras em


estudos desse tipo. Suas investigações sobre três sociedades da Nova Guiné,
registradas no livro Sexo e Temperamento, de 1935, identificaram variações
muito grandes nos sentidos e funções que cada cultura atribuía a homens
e mulheres. Se entre os Arapesh, Mead encontrou um “temperamento
pacífico” em ambos os sexos, entre os Mundugumor a realidade era
exatamente o contrário e tanto homens quanto mulheres tinham um
“temperamento bélico”. Já entre os Tchambuli, os homens gastavam
tempo se enfeitando enquanto as mulheres trabalhavam e tinham um
“temperamento prático”, em contraste com a cultura norte-americana em
que Mead tinha sido criada. A conclusão da pesquisadora é que, se é possível
encontrar formas tão diferentes de entender o feminino e o masculino nas
diversas sociedades, então os temperamentos que atribuímos a homens e
mulheres não são inatos, mas definidos nas relações sociais (MEAD, 1979).

16
reuniam ao mesmo tempo em si atributos masculinos e
femininos. Outras cultuavam divindades que transitavam ou
misturavam essas posições. Mesmo em culturas onde havia
um limite muito demarcado entre masculino e feminino, o
significado, as características, as práticas e lugares sociais
atribuídos a homens e mulheres podiam ser muito diferentes
daquelas encontradas nas sociedades europeias3 .
Se a Antropologia ajudava a identificar a variação entre
culturas, através da História era também possível perceber
como os sentidos atribuídos a homens e mulheres mudavam
ao longo do tempo. Em uma mesma sociedade o significado
de feminino e masculino se transformava com o passar das
décadas e dos séculos. O lugar e a função social delegada
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

a mulheres e homens, também. De tal forma que, se já era

3 Em The Sacred Hoop: Recovering the Feminine in American Indian Traditions,


Paula Gunn Allen (1992) afirma que muitas sociedades nativas norte-
americanas eram matriarcais, reconheciam mais de duas possibilidades
de identificação sexual que não estavam primariamente definidas pela
anatomia e percebiam práticas “homossexuais” de forma positiva. Em The
Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses, a
pesquisadora nigeriana Oyèrónké Oyèwùmí (1997) defende que o processo
de colonização introduziu novos significados sobre ser mulher e homem
que não existiam previamente na sociedade Iorubá. Segundo a pesquisadora
Rita Segato (2012), entre povos indígenas, como os Warao da Venezuela,
Cuna do Panamá, Guayaquís do Paraguai, Trio do Suriname, Javaés do Brasil
e o mundo inca pré-colombiano, assim como em vários povos originários
dos Estados Unidos e do Canadá é possível encontrar práticas de transição
entre o masculino e feminino, assim como uniões entre pessoas que o
ocidente entenderia como do mesmo sexo.

17
evidente que não era possível dizer que existia uma única
definição de masculino e feminino compartilhada por todas
as culturas, também ficava evidente que a definição que
se tinha no presente não esteve sempre aí, ao contrário, se
modificava com o passar do tempo4 .
Essas pesquisas foram se acumulando e começaram
a colocar em xeque a ideia de uma “diferença sexual”
inata, fixa e universal como causa e explicação da função
social e das relações entre homens e mulheres. Afinal, se
os significados de masculino e feminino variavam tanto
no espaço quanto no tempo, então esses significados não
podiam ser atribuídos a qualquer “natureza” biológica, mas
eram produzidos pelas culturas e se transformavam ao
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

longo da história. A palavra “sexo” já não era mais suficiente


para explicar essa enorme variação cultural. Era preciso
então um novo termo para falar especificamente sobre a
dimensão cultural das relações entre homem e mulher.
E é aí que a palavra “gênero” começa a ser usada por
pesquisadores: para se referir ao caráter social e histórico
das relações entre homens e mulheres e dos sentidos

4 Se observarmos a história das mulheres no Brasil, não é difícil perceber


como seu lugar na sociedade se transformou ao longo dos séculos. De
diversas formas de submissão, que iam do casamento forçado à escravidão,
as mulheres conquistaram a liberdade, o direito de votar e chegaram até a
Presidência da República. Se é certo que ainda existem muitas desigualdades
em relação aos homens, também são inegáveis as transformações do papel
das mulheres na sociedade brasileira. (BIROLI, MIGUEL, 2015)

18
atribuídos ao masculino e ao feminino. Gênero se tornou
então o conceito científico para compreender como uma
série de práticas, relações e significados, antes pensados
como naturais, fixos e universais, eram, em verdade,
produzidos pela cultura5 .
Esse conceito deu muita força a movimentos que
lutavam por uma mudança do lugar da mulher na sociedade
que lhes garantisse direitos iguais aos dos homens. Servia
para desmontar o argumento de que os “papéis” atribuídos
a homens e mulheres eram “naturais”. Se as relações entre
homens e mulheres nem “sempre foram assim”, nem eram

5 Simone de Beauvoir, escritora e ativista francesa, lançou, no seu livro O


Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

Segundo Sexo (1949), a ideia de que não se nasce mulher, torna-se mulher.
Essa afirmação já chamava atenção para a dimensão social da experiência
feminina e remetia a uma distinção entre como nascemos e quem nos
tornamos a partir da vivência na nossa cultura. Mas foi o psicólogo John
Money, neozelandes radicado nos Estados Unidos, o primeiro a usar a
palavra “gênero” para se referir à dimensão social da distinção entre homens
e mulheres. Money trabalhava com crianças intersexo, ou seja, cuja formação
corporal trazia características que tornavam difícil enquadrá-las binariamente
no modelo de dois sexos. No seu trabalho, ele percebeu que as pessoas se
identificavam e se comportavam de acordo com como foram criadas, mais
do que com o sexo ao qual efetivamente pertenceriam. Essa distinção entre
a anatomia e o comportamento foi traduzida conceitualmente como uma
diferença entre sexo (dimensão física) e gênero (dimensão social). O termo
gênero foi rapidamente apropriado por várias teóricas que estudavam a
experiência das mulheres e as desigualdades entre entre os sexos. Gênero
passou a ser - e segue sendo - um termo recorrente no pensamento
científico, usado de formas variadas, mas sempre para se referir à dimensão
social, cultural e histórica da distinção masculino/feminino.

19
assim “em todos os lugares”, isso significa que elas não
estavam pré-determinadas e podiam ser transformadas aqui
e agora. O casamento como destino natural, a maternidade
como missão, a submissão da esposa ao marido, todas essas
noções vão ser fortemente abaladas quando passa a ser a
cultura, e não a natureza, quem determina a função social de
mulheres e homens.6
A sexualidade é um dos aspectos da vida que foram
fortemente impactados a partir do surgimento de uma
perspectiva de gênero. A ideia de uma diferença sexual
inata está na base de uma compreensão das nossas práticas
sexuais e afetivas que naturaliza a heterossexualidade, que
a estabelece como “natural”, a partir da qual todas as outras
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

6 Feminismo é o nome que geralmente atribuímos a um conjunto muito


diverso de movimentos que vem, há décadas, lutando pelos direitos das
mulheres. Esses movimentos ganham expressão importante na virada do
século XIX para o XX, quando em diferentes partes do globo mulheres
lutaram e conquistaram o direito ao voto. Após a Segunda Guerra
Mundial, com a entrada massiva de mulheres no trabalho assalariado e o
desenvolvimento da pílula anticoncepcional, esses movimentos ganham
um novo impulso. A partir principalmente dos anos 80, muitos desses
movimentos começaram a incorporar uma perspectiva de gênero para
questionar de forma profunda a forma como a própria noção de “mulher”
era construída socialmente. Apesar de parecer recente, essa é uma luta
secular. Seja resistindo à escravidão, lutando contra a colonização e
destruição de seus povos ou confrontando a Inquisição, mulheres em
diferentes partes do mundo vem, há muito tempo, batalhando por direitos
iguais e liberdade. (BIROLI, MIGUEL, 2015)

20
serão percebidas como desvio ou doença7. Também nesse
campo foi possível demonstrar, através de pesquisas, como o
exercício da sexualidade humana foi e segue sendo bem mais
diverso e variável do que qualquer modelo supostamente
fixo e universal. Como práticas sexuais hoje condenadas já
foram socialmente valorizadas. Como a definição de família
é bastante variável e pode tomar formas muito distintas em
diferentes culturas8.

7 Entre o conjunto de coisas que definem socialmente o que é ser mulher/


homem está também a dimensão sexual e afetiva. Há uma série de ideias e
discursos que circulam na nossa cultura que dizem sobre como homens e
mulheres sentem (ou deveriam sentir) prazer, como lidam (ou deveriam lidar)
com seus sentimentos e como e com quem se relacionam (ou deveriam se
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

relacionar). Se aquele bebê foi colocado na caixa dos homens, ele vai aprender
que homens devem reprimir suas emoções, que homens podem e devem dar
vazão à sua libido e que o objeto de desejo do homem é a mulher. Se a caixa
foi a das meninas, ela vai aprender cedo que mulheres são mais sentimentais,
destinadas à maternidade e que fazer-se bonita é fundamental para conquistar
seu objeto de desejo afetivo-sexual: os homens. É sobre este ordenamento
de gênero que vamos vivenciar a experiência da sexualidade, tendo a
heterossexualidade como modelo e norma.

8 O termo orientação sexual e afetiva é usado para falar da atração, o desejo


sexual e afetivo que uma pessoa sente por outras. Homo, hetero, bi, pan
ou assexual são formas de “categorizar” esse desejo. Essas categorias,
assim como todas as classificações, não dão conta da enorme diversidade
humana. Podemos então pensar de fato que existem múltiplas expressões
da sexualidade e do afeto. Além disso, que essas práticas e desejos sexuais
e afetivos não são algo sólido e monolítico que, uma vez construído, se
mantém rígido por toda a vida. Nossa sexualidade, nosso modo de amar e
de nos relacionarmos é algo em permanente construção e transformação.

21
Se a sexualidade foi um campo radicalmente afetado pelo
conceito de gênero, ela não foi o único. Uma perspectiva de
gênero passou a ser fundamental para compreender múltiplas
dimensões da experiência humana: a formação das nossas
subjetividades, a construção da nossa identidade, nossas relações
de trabalho e a distribuição dos recursos materiais que ele gera,
a nossa linguagem, os nossos sistemas políticos. Da economia
à educação, da ciência política à psicologia, existe hoje um vasto
campo interdisciplinar de pesquisa científica organizado em
torno desse conceito a que chamamos: estudos de gênero.
Um dos grandes desafios hoje desse campo de estudo
é não só perceber como as relações de gênero variam, mas
como elas foram e seguem sendo produzidas, reproduzidas
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

e transformadas. E é aí que a educação ganha um papel


central. Pesquisas vem se dedicando a entender não só como
as famílias, mas também como as escolas ensinam modos
de ser homem e mulher. Se é certo que muitas crianças já
chegam à escola com noções de gênero que aprenderam em
casa, também a escola desempenha um papel importante no
reforço (ou na transformação) dessas noções. Vale lembrar que
na primeira metade do século passado a educação de meninos
e meninas (daqueles que tinham acesso à escola no Brasil)
ainda era separada. Mesmo quando quase todas as escolas se
tornaram mistas, ainda assim é possível encontrar distinções
na educação dada a meninos e meninas. E agora nós contamos
com um conceito e todo um campo científico capaz de nos
ajudar a perceber como essas diferenças são construídas.
22
É para isso que serve falar sobre gênero na escola.
Para nos ajudar a perceber como nas nossas aulas, livros,
brincadeiras e mais todo tipo de discurso e prática escolar nós
(re)produzimos noções sobre masculino e feminino. E como
esses discursos e práticas afetam a construção da subjetividade
das pessoas que habitam a comunidade escolar. Nos ajuda
a sair do automático e entender os efeitos de certas práticas
pedagógicas que muitas vezes simplesmente repetimos
acriticamente. Gênero é uma forma de refletir sobre nosso
trabalho, sobre nossas relações e sobre nós mesmos. Uma
reflexão que nos ajuda a perceber os efeitos, em nós e nos
outros, das nossas práticas. E que, a partir daí, nos permite
decidir de forma mais consciente que tipo de educação nós
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

queremos e quais as consequências dessas escolhas.


É claro que falar sobre gênero tem efeitos políticos.
Estamos falando justamente sobre nós, nossas práticas, nossas
relações. Fazer uma reflexão crítica sobre isso pode nos
provocar desconforto, tirar algumas certezas do lugar, fazer ver
o que antes estava naturalizado. Mas é também o que permite
a mudança. Nos ajuda a ver e assim poder melhor confrontar
desigualdades e injustiças. E construir de forma mais
autônoma nossas relações e nossa própria identidade. Mas
ainda que o conceito de gênero tenha efeitos políticos, isso
não o reduz a uma “ideologia”, uma invenção, uma abstração.
Ele é fruto de décadas de trabalho científico. Se chegamos
à conclusão que ser homem ou ser mulher é algo que vai
além do sexo biológico, foi a partir de muita pesquisa e muito
23
estudo. Falar sobre gênero na escola também não tem nada a
ver com doutrinação. Ao contrário, é um convite à reflexão, ao
pensamento crítico, que nos faz questionar aquilo que parece
óbvio e construir uma perspectiva autônoma para além das
“ideologias” que nos foram ensinadas desde a infância.
Certamente fazer essa reflexão crítica incomoda muita
gente. Especialmente quem está muito confortável com a
forma como as coisas estão organizadas hoje em dia. Para
quem é beneficiado por esse sistema, a crítica pode ser uma
ameaça. O prenúncio de uma mudança cultural que mexa com
seus privilégios. Um incômodo vivido não só por indivíduos,
mas também por instituições - como forças militares, partidos
políticos ou organizações religiosas - que tem em certas
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

normas de gênero a base da sua organização. Algumas dessas


instituições são historicamente dominadas por homens, tem
a masculinidade como referência e, mais que isso, são espaços
de reprodução de normas de gênero. Não por acaso é dessas
instituições que vem boa parte da reação contra o conceito de
gênero, leia-se, reação à possibilidade de uma crítica a certas
dinâmicas sociais que são fundantes dessas organizações.
É interessante perceber que as pessoas que acusam a
existência de uma “ideologia de gênero” que estaria sendo
disseminada nas escolas não se dão conta de que o que o
conceito de gênero faz é justamente lançar luz sobre uma
série de “ideologias” que hoje regulam nossos modos de ser
e de pensar o corpo, a identidade, a sexualidade e mais tantas
outras dimensões da vida a partir de ideias cristalizadas sobre
24
masculinidade e feminilidade. A verdade é que se existe uma
“ideologia de gênero” dentro das nossas escolas, ela não foi
inventada, mas vem sendo justamente revelada pelos estudos
de gênero. É uma “ideologia de gênero” que está lá há muito
tempo, desde quando nem existia a palavra gênero, mas a
escola já ensinava jeitos de ser homem e de ser mulher. Uma
“ideologia de gênero” que mesmo hoje, quando todas as
escolas são mistas, ainda separa meninos e meninas - nas
filas, nos quadros de chamada, nas aulas de educação física,
nas brincadeiras, nos banheiros. Uma “ideologia” sexista,
que define - e ensina - possibilidades distintas e limitadas
a depender do sexo. Em que meninas e meninos são
enxergados e tratados de formas diferentes. Em que se espera
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

deles e delas comportamentos distintos. E que torna qualquer


pessoa que descumpra essas expectativas (binárias) de gênero
alvo de atenção e intervenção.
Essa “ideologia” sexista que ainda hoje se espalha pelas
nossas escolas prejudica a formação emocional das crianças
e adolescentes. Ensina meninos a não expressarem seus
sentimentos, a não exporem as suas fragilidades, sob pena
de terem a sua “masculinidade” questionada. A agressividade
se torna então a única forma possível de extravasar suas
ansiedades, suas frustrações, suas inseguranças. Por vezes
essa agressividade se torna o padrão que guia a expectativa
de muitos educadores sobre seus alunos. A “indisciplina” é
percebida como uma característica “natural” dos meninos e
a agressividade entre eles encarada como algo relativamente
25
normal, não raro incentivada em jogos e dinâmicas
cotidianas. Ao mesmo tempo, um menino “delicado” ou
“sensível” passa a ser detectado como um “problema” que
demanda “intervenção”. Essa lógica sexista alimenta a
construção de masculinidades tóxicas, ou seja, um modo de
se construir “homem” que tem na violência um elemento
central, na agressividade um modo de se afirmar, e na
invasão do corpo do outro uma prática cotidiana. O assédio
de meninos - quando não de professores - sobre meninas é
naturalizado. Além de nocivo para os outros, essa forma de
construção da masculinidade traz prejuízos também para
os próprios meninos e homens e está entre as causas de
problemas como baixo rendimento, evasão, envolvimento
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

com atos infracionais, depressão e até mesmo suicídio.


Essa “ideologia” sexista subestima a capacidade
intelectual das mulheres e as relega apenas às funções
de cuidado. Às meninas, ensina que seus corpos são um
objeto sexual e que por isso devem estar sob permanente
vigilância. Que serão elas mesmas as culpadas pelos assédios
e violências que venham a sofrer se não “se derem ao
respeito”. Demanda das meninas que sigam um preciso
controle do corpo, das expressões, dos gestos, das roupas
que lhes coloquem no lugar de “mulheres decentes”. As que
descumprem essa “régua moral” serão chamadas de “vadias”.
Sua autonomia será lida como indisciplina e apontada
como razão a justificar desde seu baixo rendimento até as
violências sexuais de que forem vítimas.
26
Essa “ideologia” sexista é ao mesmo tempo racista. E
enquanto repete que “somos todos iguais”, trata meninos
e meninas de formas muito diferentes a depender da sua
cor. Esse racismo pode se apresentar de formas sutis ou
bastante explícitas. Está nas baixas expectativas que muitos
professores têm sobre estudantes negros. Está mesmo no
olhar condescendente que justifica na desigualdade social sua
descrença nas capacidades dessas alunas e alunos. Está nas
falas explicitamente racistas, mas nada incomuns nas escolas
brasileiras, em que meninos negros são enxergados como
“futuros bandidos” e meninas negras como “vadias” que “logo
estarão grávidas” desses mesmos “bandidos”. A criminalização
da juventude negra acontece também nas nossas escolas. Falas
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

racistas não ficam restritas à sala dos professores, mas são


muitas vezes lançadas diretamente sobre os estudantes. Aqui
racismo e sexismo se misturam, para lançar uma imagem
hipersexualizada e brutalizada sobre mulheres e homens
negros. Esses são estigmas a perseguir crianças e jovens
negros e negras, com quem eles e elas invariavelmente terão
de lidar na construção da sua subjetividade em uma sociedade
racista. Estigmas que afetam de forma significativa a sua auto-
imagem, sua autoestima, suas expectativas e possibilidades
de futuro. Estigmas que destroem perspectivas de vida, que
reiteram um lugar de marginalidade, que criminalizam
a cultura negra e periférica, que reforçam a “presunção
de culpa” em que pessoas negras são percebidas de como
potencialmente criminosas, seja nas manchetes de jornal, seja
27
nos conselhos de classe. Presunção de culpa que não poupa
nem mesmo estudantes uniformizados ou crianças vítimas
de abuso sexual que, pela sua cor e condição social, não tem
direito à inocência, nem mesmo ao luto.
Essa “ideologia” sexista é transfóbica, porque condena
qualquer possibilidade de trânsito entre posições definidas
já antes mesmo de uma pessoa nascer e obriga os indivíduos
a assumirem uma identidade de gênero pré-determinada9 .
É uma educação cisnormativa, porque pressupõe que
a uma determinada condição física - nascer com um

9 Segundo o parecer da Resolução no 12 do Conselho Nacional de Combate


à Discriminação de pessoas LGBT (BRASIL, 2015): Identidade de gênero é a
dimensão da identidade de um sujeito que diz respeito a como essa pessoa se
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade presentes em


cada cultura e momento histórico, e como isso se traduz em sua prática social. A
construção desta dimensão da identidade é um processo permanente, complexo
e dinâmico realizado por todos os sujeitos ­mesmo que não seja evidente ­o que
significa que todas as pessoas têm uma identidade de gênero. A identidade de
gênero não necessariamente guarda relação com o sexo atribuído no nascimento
e não tem nenhuma relação com orientação sexual. Esta identidade pode ou
não corresponder à expectativa da maioria das pessoas e instituições com quem
um sujeito tem de se relacionar na vida em sociedade, o que, aliado a processos
de históricos de hierarquização nas relações sociais de gênero, faz com que
a identidade de gênero de algumas pessoas seja reconhecida, enquanto a de
outras, não. Esse não reconhecimento se materializa inclusive em processos de
normalização violentos. O conceito de identidade de gênero permite que se possa
reconhecer o direito de cada pessoa à livre construção da sua personalidade
na relação com as concepções de masculinidade e feminilidade disponíveis na
cultura. Reitera também o direito ao próprio corpo. E se constitui conceito
fundamental para compreender a experiência de pessoas travestis e transexuais ­
embora não se restrinja a elas.

28
pênis ou com uma vagina - corresponderiam certos tipos
distintos de personalidade, expressão e identidade. Uma
correspondência cisgênera que é dita “natural”, mas que
funciona na verdade como uma norma. Norma que será
insistentemente ensinada, reforçada, reafirmada a todo
momento: do chá revelação à loja de brinquedos, do brinco
que fura orelha de bebês até as violências “corretivas” para
ensinar “meninos a se comportarem como meninos” e
“meninas a se comportarem como meninas”. Essa é uma
“ideologia” transfóbica, que violenta qualquer pessoa
que ouse transgredir essa norma e não “corresponder”
às expectativas de corpo, comportamento, expressão ou
identificação que essa mesma norma estabelece. Essa
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

“ideologia” produz uma escola transfóbica, que não só


negligência a proteção de crianças e adolescentes, como
é ela mesma vetor de violência, discriminação e exclusão.
Produz forte impacto nas possibilidades de vida de pessoas
trans, ao lhes negar o direito à educação que é base para a
construção de outros direitos e da própria cidadania. Cria
obstáculos para que completem sua escolarização, não raro
produzindo sua expulsão ainda no início da adolescência
ou mesmo impedindo a sua matrícula quando adultas10. Ao

10 Pesquisas realizadas pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e


Direitos Humanos identificaram um nível de escolarização mais baixo entre
travestis e transexuais, mesmo se comparado com a escolaridade de gays
e lésbicas cisgêneros (CARRARA, RAMOS, CAETANO, 2003; CARRARA et
al. 2006; CARRARA, RAMOS, CAETANO, 2005; CARRARA et al., 2007).

29
vulnerabilizar sua existência e alimentar a transfobia, essa
“ideologia” está entre as causas da menor expectativa de
vida de pessoas trans. Isso mesmo: uma escola transfóbica
contribui para a morte11 .
Essa “ideologia” sexista é também heterossexista, ou
seja, opera como se a heterossexualidade fosse a única e
natural forma de exercício de prazer, afeto e relacionamento.
Reforça essa noção nas imagens dos livros didáticos, na
contação de histórias, nas aulas de biologia. Essa “ideologia”
é homofóbica, bifóbica, lesbofóbica, panfóbica, porque

Diversos estudos qualitativos evidenciam experiências de discriminação,


agressões físicas e verbais, isolamento, negligência, assédio e outras
formas de violência e exclusão vividas por pessoas trans na escola que estão
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

entre as principais causas da interrupção dos seus estudos. (BENTO, 2011;


JUNQUEIRA, 2009; BRUNETTO, 2009; SEFFNER, 2009; PERES, TOLEDO,
2011; SALA, 2014). Em pesquisa realizada pelo Programa Transcidadania
da Prefeitura de São Paulo, 71% das pessoas trans afirmaram ter parado
de estudar com mais de 15 anos de idade, 24% entre 11 e 14 anos e 5%
deixaram os estudos entre 7 e 11 anos. Destas, 55% pararam de estudar
entre o quinto e nono ano do Ensino Fundamental, 23% entre o primeiro e
quarto ano do Ensino Fundamental e 22% no Ensino Médio. A transfobia
foi o motivo apontado pela evasão dos estudos por 45% das pessoas.
(PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2017) Em conjunto, esses estudos evidenciam
uma clara situação de vulnerabilidade de pessoas trans quanto à garantia do
direito à educação.

11 De acordo com o relatório Trans Murder Monitoring, a maior incidência


de assassinatos de pessoas trans entre os anos de 2008 e 2017 concentram-
se na América Latina. Dentre as 2.609 mortes registradas nesse período,
1.100 ocorreram no Brasil, o que nos coloca no lugar de país que mais mata
pessoas trans no mundo (TRANSGENDER EUROPE, 2017).

30
invisibiliza e condena qualquer orientação sexual e afetiva que
não seja a heterossexualidade. Nas escolas onde ela impera,
o preconceito e a discriminação são parte do cotidiano,
afetando de forma marcante a experiência das pessoas que
vitimam12 . Mesmo quando se diz “tolerante”, essa “ideologia”
heterossexista não admite reconhecer e valorizar, em pé de
igualdade, a vivência de lésbicas, gays, bi ou pansexuais. Suas
histórias serão mantidas “no armário” e falar sobre qualquer
coisa fora do padrão heterossexual será descrito como algo
danoso, um “perigo” para as crianças e adolescentes. Ao
mesmo tempo que “condena” a violência, essa “ideologia”
heterossexista alimenta os estigmas que “amolam as facas”
dessa mesma violência que ela ajuda a produzir.
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

12 Estudo realizado pela UNESCO mostra que, na escola, preconceitos e


atos de discriminação contra homossexuais muitas vezes são naturalizados e
banalizados. Nesse estudo, um quarto dos alunos entrevistados afirmaram
que não gostariam de ter colegas homossexuais. O percentual fica maior
ainda quando se trata apenas dos meninos. Entre professores, casos de
discriminação nem sempre são considerados relevantes. Muitas vezes os
professores não só silenciam, mas colaboram ativamente na reprodução
dessas violências. (UNESCO, 2004) Uma pesquisa realizada pela Associação
Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais sobre a
situação de pessoas LGBT na escola retrata “níveis elevados e alarmantes
de agressões verbais e físicas, além de violência física; ao mesmo tempo
expõe níveis baixos de respostas nas famílias e nas instituições educacionais
que fazem com que tais ambientes deixem de ser seguros para muitos
estudantes LGBT, resultando em baixo desempenho, faltas e desistências,
além de depressão e o sentimento de não pertencer a estas instituições por
vezes hostis” (2016, p.13).

31
Essa “ideologia” sexista, heterossexista, transfóbica e
racista define um único arranjo familiar - pai, mãe e filhos
(cisgêneros) como “a” família, invisibilizando e desqualificando
todas as outras formas que uma família pode ter. Além de
heterossexista e cisnormativo, esse “modelo” de família
é machista, porque imagina um homem como “chefe” e
“provedor” da casa. É também um modelo classista (quando
não descaradamente racista), que pressupõe certas condições
(financeiras, de moradia, escolarização etc.) que grande parte
das famílias brasileiras não alcançam. É em relação a esse
“ideal”, que todas as famílias serão medidas. E aquelas que
não se encaixem em algum aspecto desse modelo serão
consideradas “desestruturadas” e percebidas como incapazes
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

de criar adequadamente suas crianças. Famílias expandidas,


em que várias gerações e relações de parentesco convivem na
mesma casa, famílias chefiadas por mulheres sem a presença
de um homem como “chefe”, com netos criados pelos avós, com
dois pais ou duas mães, todas serão consideradas incompletas,
imperfeitas, na comparação com o tal modelo “ideal”. E
apesar de hoje já representarem a maior parte dos domicílios
brasileiros, essa diversidade familiar será sumariamente
apagada dos livros didáticos em favor de um modelo único13.

13 A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) revelou que,


desde 2005, o perfil composto unicamente por pai, mãe e filhos já não
corresponde mais à maioria dos domicílios brasileiros. Na pesquisa de 2015,
o arranjo tradicional encolheu um pouco mais, ocupando apenas 42,3% dos
lares pesquisados. (IBGE, 2017).

32
Essa “ideologia” carregada de sexismo, lgbtfobia e
racismo produz impactos extremamente negativos no
desenvolvimento das crianças, adolescentes e jovens. Ao
contrário do que professa, ela não protege, mas aumenta
a vulnerabilidade. Ao negar informação e estigmatizar
o sexo, ela impede que adolescentes e jovens conheçam
o próprio corpo e consigam construir formas saudáveis
e positivas de relacionamento. Contribui para que
esses jovens se envolvam em relações abusivas, sem
que muitas vezes sejam nem mesmo capazes de
reconhecer as violências que sofrem ou, pior, faz com
que se entendam culpados por aquilo que lhes vitima.
Ao interpretar qualquer discussão sobre sexualidade
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

como “promoção” de sexo “precoce”, deixa adolescentes


iniciarem sua vida sexual sem qualquer informação
sobre métodos contraceptivos e infeções sexualmente
transmissíveis, contribuindo para aumentar os índices
de gravidez na adolescência, a propagação de ISTs e o
recurso ao aborto. Ao negar falar sobre sexualidade na
infância, impede ações pedagógicas voltadas à prevenção
do abuso sexual, que permitiriam crianças reconhecer e
denunciar violências.
Essa “ideologia” sexista prejudica o aprendizado
dos nossos estudantes. Não só daqueles que estigmatiza
como “bandidos” ou “vadias”. Não só daqueles a
quem dirige homofobia ou transfobia. Um ambiente
escolar discriminatório afeta o rendimento de todos os
33
estudantes. Isso mesmo: até as notas caem. E não só a de
um grupo específico, mas de toda a escola 14 .
Essa “ideologia” sexista desrespeita princípios
fundamentais da nossa Constituição e da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação. Mesmo sem a palavra gênero, o
Plano Nacional de Educação segue tendo como diretriz o
enfrentamento de toda e qualquer forma de discriminação15 .

14 Uma pesquisa nacional sobre discriminação no ambiente escolar


desenvolvida entre 2006 e 2009 pelo Ministério da Educação e pela
Universidade de São Paulo mediu o distanciamento social de diretores,
professores, funcionários, estudantes e responsáveis em relação a
determinados grupos socialmente estigmatizados. Entre “pobres, negros,
índios, ciganos, moradores de periferia/favela, moradores de áreas rurais
(...) e pessoas com necessidades especiais, físicas e mentais”, foi em relação
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

a pessoas homossexuais que se verificaram os maiores percentuais de


distância. A pesquisa evidenciou também uma relação entre preconceito
e discriminação no ambiente escolar e o rendimento acadêmico de
estudantes. No quadro comparativo produzido pelo estudo, escolas em
que os escores que medem o preconceito e o conhecimento de práticas
discriminatórias eram mais elevados tendiam a apresentar médias menores
para as avaliações na Prova Brasil. (MAZZON, 2009).

15 O Plano Nacional de Educação define entre suas diretrizes a “superação


das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania
e na erradicação de todas as formas de discriminação” e a “promoção
dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à
sustentabilidade socioambiental.” Nas metas que propõem a universalização
do ensino fundamental para toda a população de 6 (seis) a 14 (quatorze)
anos e do atendimento escolar para toda a população de 15 (quinze) a
17 (dezessete) anos, encontram-se, dentre as estratégias, a necessidade
de fortalecer o acompanhamento e o monitoramento do acesso, da
permanência e do aproveitamento escolar em situações de discriminação,

34
E isso inclui discriminar famílias ou pessoas porque não
seguem o modelo cis-heteronormativo. E não, tirar a menção
explícita a orientação sexual ou racismo ou identidade
de gênero não significa que a escola está desobrigada a
enfrentar a lgbtfobia nem a discriminação racial. Homofobia
é crime no Brasil. A Constituição Federal fala na superação de
quaisquer formas de discriminação, portanto, estão incluídas
aí a homofobia, a lesbofobia, a transfobia e a misoginia,
formas de discriminação já descritas e fundamentadas em
diferentes estudos e pesquisas. E como promover o princípio
da igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola previsto na Lei de Diretrizes e Bases sem enfrentar
diretamente as representações e práticas que estigmatizam,
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

excluem e discriminam mulheres, homossexuais e pessoas


trans? A Constituição afirma também a igualdade entre
homens e mulheres. Como esta igualdade poderia ser
construída no espaço escolar sem discutir questões ligadas ao
conceito de gênero? Na mesma lógica, se a educação escolar,
como aponta a LDB, deve estar vinculada às práticas sociais,
como a escola poderia ignorar as diversas transformações
sociais vividas nas últimas décadas no que diz respeito
às relações de gênero, às práticas sexuais e afetivas e aos
arranjos familiares?

preconceitos e violências na escola e o desenvolvimento de políticas de


prevenção à evasão motivada por preconceito ou quaisquer formas de
discriminação, criando rede de proteção contra formas associadas de
exclusão.

35
Os principais marcos legais que regem a educação
brasileira são enfáticos quanto à necessidade da superação
de desigualdades, discriminações e violências não só na
escola, mas a partir da escola, o que traz implicações diretas
ao currículo. Ignorar estes temas, ou pior, propositalmente
restringir sua abordagem na escola constitui não apenas
negligência, mas franco desrespeito aos princípios que regem
a educação brasileira, fundamentados na Constituição e em
leis específicas16.
Se a base legal impõe o enfrentamento destes temas
na escola, o conjunto das diretrizes educacionais brasileiras
aponta a necessidade de trabalhar questões ligadas a gênero
e sexualidade desde a educação infantil17 até o ensino
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

médio18. Indicam para tanto uma abordagem focada não

16 O Estatuto da Criança e do Adolescente se soma a este conjunto ao


afirmar o direito de toda criança e adolescente à liberdade, incluída aí a
liberdade de opinião, expressão e de crença.

17 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil afirmam,


dentre seus princípios, a necessidade de “construir novas formas de
sociabilidade e de subjetividade comprometidas com a democracia e com
o rompimento de diferentes formas de dominação etária, socioeconômica,
étnico-racial, de gênero, regional, linguística e religiosa.” Isto significa que,
desde a educação infantil, é não só possível, como recomendável, trabalhar
temas ligados a gênero e sexualidade, didaticamente adaptados a esta faixa
etária específica.

18 As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio também fazem


menção explícita a estes temas. Em seu Art. 16, afirmam que “o projeto
político-pedagógico das unidades escolares que ofertam o Ensino Médio

36
na padronização de comportamentos ou na reprodução
de modelos pré-definidos, mas, ao contrário, na reflexão
crítica, na autonomia dos sujeitos, na liberdade de acesso
à informação e ao conhecimento, no reconhecimento das
diferenças, na promoção dos direitos e no enfrentamento
a toda forma de discriminação e violência. Tal qual o PNE,
a Base Nacional Curricular Comum, embora não cite
explicitamente a palavra gênero, dá fundamentação para
que estes temas sejam trabalhados em todas as etapas da
educação básica, em uma perspectiva que promova a reflexão
crítica e os direitos humanos19 .

deve considerar: (...) XV – valorização e promoção dos direitos humanos


Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

mediante temas relativos a gênero, identidade de gênero, raça e etnia,


religião, orientação sexual, pessoas com deficiência, entre outros, bem
como práticas que contribuam para a igualdade e para o enfrentamento
de todas as formas de preconceito, discriminação e violência sob todas as
formas.”

19 Em seu texto introdutório a BNCC afirma que a escola “como espaço


de aprendizagem e de democracia inclusiva, deve se fortalecer na prática
coercitiva de não discriminação, não preconceito e respeito às diferenças
e diversidades”. Entre as competências para o ensino fundamental inclui
“Analisar informações, argumentos e opiniões manifestados em interações
sociais e nos meios de comunicação, posicionando-se ética e criticamente
em relação a conteúdos discriminatórios que ferem direitos humanos”
(Língua Portuguesa); “Identificar as formas de produção dos preconceitos,
compreender seus efeitos e combater posicionamentos discriminatórios
em relação às práticas corporais e aos seus participantes” (Educação
Física); “atuar socialmente com respeito, responsabilidade, solidariedade,
cooperação e repúdio à discriminação” (Ciências); “problematizar

37
Especificamente sobre o tema, em 2018 o Conselho
Nacional de Educação publicou uma resolução (BRASIL,
2018) que define o uso do nome social de travestis e
transexuais nos registros escolares. Pela norma, que tem
força sobre todos os sistemas de ensino, alunes podem
solicitar o uso do nome social durante a matrícula ou
a qualquer momento, por meio de seus representantes
legais, no caso de menores de idade, e sem a necessidade
de mediação para os maiores de dezoito anos. No
primeiro artigo, a resolução é enfática: “Na elaboração e
implementação de suas propostas curriculares e projetos
pedagógicos, os sistemas de ensino e as escolas de educação
básica brasileiras devem assegurar diretrizes e práticas com
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

o objetivo de combater quaisquer formas de discriminação

representações sociais preconceituosas sobre o outro, com o intuito de


combater a intolerância, a discriminação e a exclusão” (Ensino Religioso).
Para o Ensino Médio, indica “• combater estereótipos, discriminações
de qualquer natureza e violações de direitos de pessoas ou grupos
sociais, favorecendo o convívio com a diferença”. Entre as habilidades
a serem desenvolvidas, prevê: “ Investigar e discutir o uso indevido de
conhecimentos das Ciências da Natureza na justificativa de processos de
discriminação, segregação e privação de direitos individuais e coletivos,
em diferentes contextos sociais e históricos, para promover a equidade
e o respeito à diversidade (Ciências da Natureza e suas Tecnologias);
“Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc.,
desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito,
intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos
Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades
individuais” (Ciências Humanas e Sociais Aplicadas)

38
em função de orientação sexual e identidade de gênero de
estudantes, professores, gestores, funcionários e respectivos
familiares”.
A despeito deste arcabouço legal, pesquisas educacionais
evidenciam que nossos ambientes escolares seguem
marcados pela desigualdade, discriminação e violência no
que diz respeito a gênero e orientação sexual. Uma realidade
que contradiz os princípios fundantes do ensino e que
ameaça o direito à educação de grande número de pessoas.
E que nos coloca o compromisso de persistir, mesmo em um
contexto desfavorável, na garantia da liberdade de aprender
e ensinar. Educadores e educadoras que querem trabalhar
gênero e orientação sexual na escola: não se intimidem.
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

Toda a legislação educacional está do nosso lado. Todas as


diretrizes para a educação básica, da educação infantil ao
ensino médio, falam em gênero e sexualidade. A BNCC
nos dá sustentação. Nossas leis e normas educacionais nos
legitimam para fazer essa discussão com nossas alunas e
nossos alunos. Todas as tentativas de aprovar leis proibindo
o ensino de questões de gênero ou sexualidade na escola
foram fracassadas. Ou seja, você, educador ou educadora, está
sim autorizada a falar, debater, ensinar sobre esses temas na
escola. Podem tirar a palavra gênero do PNE. Podem vetar
kit anti homofobia. Podem cortar o financiamento de todas
as políticas educacionais em sexualidade. Enquanto o Brasil
for uma democracia, ninguém pode impedir professora
ou professor de dar a sua aula. De falar de desigualdade,
39
discriminação, preconceito. De fazer pensar, questionar,
para que cada criança, adolescente e pessoa adulta tenha
autonomia para construir sua própria ideia e lugar no mundo.

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American Indian traditions: With a new preface. Beacon Press, 1992.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS,


TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Pesquisa Nacional sobre o Ambiente
Educacional no Brasil 2015: as experiências de adolescentes e jovens
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes
educacionais. Curitiba: ABGLT, 2016.

BRASIL. Conselho Nacional de Combate à Discriminação. Resolução n°


Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

12, de 16 de janeiro de 2015. Estabelece parâmetros para a garantia das


condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais - e
todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não reconhecida
em diferentes espaços sociais - nos sistemas e instituições de ensino,
formulando orientações quanto ao reconhecimento institucional da
identidade de gênero e sua operacionalização. Brasília: CNCD, 2015.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP nº 1,


de 19 de janeiro de 2018 - Define o uso do nome social de travestis e
transexuais nos registros escolares

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. RESOLUÇÃO Nº 5, DE 17 DE


DEZEMBRO DE 2009 - Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. RESOLUÇÃO Nº 2, DE 30 DE


JANEIRO 2012 - Define Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.

40
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVADO
BRASIL DE 1988.

BRASIL. LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE1996 - Estabelece as


diretrizes e bases da educação nacional.

BRASIL. LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990- Dispõe sobre o


Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.

BRASIL. LEI Nº 13.005, DE 25 DE JUNHO DE2014 - Aprova o Plano


Nacional de Educação - PNE e dá outras providências.

BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica;


Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão;
Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional de
Educação; Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais
da Educação Básica. Brasília: MEC; SEB; DICEI, 2013.
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

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43
interferência cromática sobre foto deIsadora Heimig | temqueter.org
Construcões
identitárias
na escola:
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

afinal, do
que estamos
falando?
Cláudia Reis
Carlos Souza Santa Brígida
Joice Farias Daniel
45
AS REFLEXÕES AQUI APRESENTADAS RELATAM A
análise de vivências acumuladas na realização de formação
de professores da Educação Básica, sobretudo Educação
Infantil (EI) e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental (AIF)
no campo do gênero e da sexualidade, por aproximadamente
vinte anos. São flashes de situações vividas como
dinamizadores de discussões entre professores, professoras
cisgêneras em sua maioria, com ênfase na experiência mais
recente ocorrida em 2019. Um curso de extensão, com
noventa horas, que foi ofertado a professores regentes em
EI e AIF de escolas públicas e privadas. Intitulado Crianças
e Infâncias: construções identitárias numa perspectiva
interseccional, o curso teve lugar no Colégio Pedro II (CPII)
e foi realizado em parceria com o Laboratório de Pesquisa,
Estudos e Extensão em Gêneros, Sexualidades e Raça em
Educação e Direitos Humanos (Ge-Ser) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A pesquisa-ação foi a
metodologia escolhida para oportunizar aos cursistas a
experiência de aprendizagem e pesquisa em uma mesma
proposta educativa. O relato apresentado aqui ainda não
apresenta resultados finais dessa pesquisa, contudo indica
as inquietações recorrentes entre professores dessas
modalidades de ensino que buscam formação nas temáticas
identitárias e nossa percepção sobre continuidades e rupturas
ideológicas na cena docente.
1. Introdução
O presente trabalho pretende apresentar algumas
experiências a partir de atividades de formação de
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

professores de Educação Básica no campo do gênero e da


sexualidade, no contexto brasileiro entre a primeira e a
segunda décadas do século XXI, bem como refletir sobre
expectativas, dificuldades, motivações que materializam
a necessidade constante de formação nesse campo. Para
melhor situar esse período no qual as formações ocorreram,
precisamos alinhar esse cenário político educacional.
Em fins do século XX e início do século XXI no Brasil, a
perspectiva democrática, pós-ditadura, se alinha com a
evolução no campo das ciências humanas em relação aos
estudos no campo do gênero e da sexualidade.

Observa-se, desde 1980, na antropologia social e cultural,


assim como em muitas outras disciplinas das ciências
sociais, um aumento significativo na pesquisa e no
interesse acadêmico em relação à sexualidade (...) As
razões para isso são de várias ordens: um contexto mais
amplo de mudança nas normas sociais; a influência
mais específica de movimentos políticos feministas,
gays e lésbicos; o impacto da emergente pandemia do
HIV/ AIDS; e a preocupação crescente com as dimensões
culturais da saúde reprodutiva e sexual (...). Considerados
em conjunto, tais fatores têm se combinado para
estimular um dos campos mais inovadores e criativos
da pesquisa antropológica contemporânea e propiciar

47
importantes oportunidades e desafios para a pesquisa
interdisciplinar e comparativa sobre a sexualidade.
(PARKER, R. In: Louro, G. pág.125, 2000)
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

Nesse período, o currículo escolar começa a receber


a influência das categorias identitárias no campo de
gênero e de sexualidade. Teorias pós-críticas de currículo
passam a abordar categorias identitárias como eixos da
formação discente. Aliado a esse processo de abertura, as
lacunas na formação docente ficaram mais evidentes e,
consequentemente, a oferta de formações nesse campo
começaram a acontecer.
É importante perceber que a discussão sobre as
categorias de formação identitária no âmbito da Educação
Básica tem sido, via de regra, um caminho espinhoso e
disputado politicamente entre várias instituições sociais
incumbidas ou não da educação de crianças e jovens. No
contexto brasileiro atual, sobretudo na segunda década
do século XXI, instituições formais de ensino têm sofrido
ataques sistemáticos que utilizam o combate à ideologização
do ensino como pretexto para interditar e impedir
judicialmente projetos pedagógicos que acolham diferenças
e diversidade na expressão das identidades de estudantes
e educadores. Esse discurso também encontra certo eco
no interior dessas instituições, que reforçam uma postura
conservadora, salientando a necessidade da imparcialidade
e neutralidade pedagógicas. A invisibilidade compulsória

48
desses temas causa impactos em curto, médio e longo prazos
na formação dos sujeitos, como podemos verificar nos dados
levantados sobre assassinatos motivados por ódio, suicídio
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

da comunidade LGBT, entre outras camadas de violência


vivenciada por conta de identidades dissidentes.
Diante desse quadro e da expansão de uma onda
conservadora no país, que conta com expoente máximo a
Presidência da República, pensar espaços de formação no
campo identitário, sobretudo do gênero e da sexualidade,
instiga a pesquisa e a análise sobre esses cotidianos de
formação. A partir de um breve relato do planejamento
e realização de um curso de extensão e a percepção de
recorrências em experiências anteriores, buscaremos levantar
reflexões sobre a percepção docente da construção das
categorias identitárias na formação acadêmica dos estudantes.

2. Relato de uma experiência


A experiência mais recente de formação pré-pandemia,
se deu na oferta de um curso de extensão, destinado a
professores regentes de Educação Infantil e Anos Iniciais do
Ensino Fundamental, preferencialmente das redes públicas
de ensino. A realização do curso, de 90 horas, entre agosto
e dezembro de 2019, se deu para atender metas propostas
pela pesquisa desenvolvida pelo Laboratório Ge-Ser desde
2017. O laboratório foi pensado como um incubador de
várias atividades nas modalidades de pesquisa e extensão

49
que abordassem questões no campo da raça, do gênero e da
sexualidade, dentro e fora dos espaços formais de ensino.
Uma das pesquisas desenvolvidas por esse laboratório sugeria
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

produzir materiais didáticos e estratégias pedagógicas em


parceria com professores de Educação Básica, efetivamente
em regência de classe, ou seja, que estivessem atuando
diretamente com alunos entre seis meses e onze anos de
idade. Então, foi criado um laboratório espelho no Colégio
Pedro II, que desenvolveu as tarefas aqui apresentadas.
Visando analisar as etapas de construção e as vivências
dinamizadas no curso, organizamos o presente trabalho
salientando, incialmente, a categoria interseccionalidade
(AKOTIRENE, 2018), elencada para costurar as questões
de raça, gênero e sexualidade que atravessam a formação
docente e as práticas sugeridas.
Na sequência, apresentamos a metodologia aplicada na
condução do curso e da própria pesquisa, a pesquisa-ação
(THIOLLENT, 2003). Nesse modelo, os participantes são, ao
mesmo tempo, objeto e pesquisadores de todo o processo. As
subjetividades participam ativamente da análise e dos resultados
obtidos e, assim, durante a própria realização do curso
percebemos os impactos que os estudos e vivências propostos
passaram a alterar ou não a prática pedagógica dos docentes.
Buscando evidenciar a gama de tensões que o território
da escola produz ou reproduz entre os fazeres pedagógicos,
ajustamos as lentes para observar melhor como as infâncias
são compreendidas e construídas por todos os atores sociais
50
que transitam no percurso de construção das práticas
pedagógicas entre estudantes da Educação Infantil e dos
Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Ainda hoje, orbitam no
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

espaço escolar diversas concepções de infância que por vezes


dialogam com a prática pedagógica e, em outros momentos
entram em embate com o arcabouço teórico que as legitima.
A partir do mapeamento dessas concepções e da
compreensão do papel da educação na construção identitária
desses sujeitos, desde a tenra infância, propomos analisar
como a escola, os docentes e o currículo tratam a participação
das categorias de gênero e sexualidade nesse processo, através
dos relatos apresentados todas as semanas nas rodas de
conversa do curso de extensão. Nesse artigo, optamos por
localizar a percepção docente nos campos do gênero e da
sexualidade, embora na prática realizada ao longo do curso as
categorias de raça e etnia tenham sido amplamente discutidas.
É preciso descrever brevemente as etapas desses
encontros. Os docentes construíam a cada encontro, em
parceria com a equipe de dinamizadores, atividades práticas
destinadas às turmas nas quais atuavam. Essas atividades
eram sempre relacionadas ao tema que os cursistas estavam
discutindo em cada módulo. No encontro seguinte, as práticas
realizadas em sala de aula eram analisadas por todos os
cursistas, verificando pontos positivos e negativos, assim como
os problemas estruturais ou relacionais que foram enfrentados.
Nesses momentos, nos quais os docentes relatavam as
experiências vivenciadas a partir das provocações sugeridas
51
pelo curso, foram surgindo uma série de obstáculos e
interdições que, muitas vezes, impediam a construção de uma
prática crítica, de teor insurgente. Sendo assim, buscaremos
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

analisar o locus dessas interdições e as conclusões que o grupo


depreendeu, apurando o olhar e esmiuçando suas causas.
Outra questão que merece ser ponderada seria a escolha,
por parte dos dinamizadores do curso, de convidados que
tratassem de forma endógena, os temas apresentados.
O lugar de fala (RIBEIRO, 2017) foi considerado tanto de
pesquisadores, professores ou simplesmente de sujeitos que
vivenciassem as questões teóricas que apresentamos na
discussão da construção dessas identidades. Pretendemos
apresentar o impacto verificado na construção desses
conceitos, quando o interlocutor que aborda a questão com
os docentes traz seus próprios relatos e vivências para serem
estudados pela óptica da mediação pedagógica.
A título de considerações finais, apontaremos questões
que nos chamaram atenção para trabalhos futuros quando as
questões levantadas nesse ensaio possam ser pesquisadas de
forma mais sistemática.

3. A interseccionalidade como tarefa de percepção identitária


A escolha pela perspectiva teórica da Interseccionalidade para
costurar o curso teve um percurso que vale a pena relatar. Em
meio à turbulência das eleições de 2018 e de um presidente
eleito que não escondia sua má vontade com a população

52
LGBT e com temas de pegada progressistas, preocupamo-
nos desde o início com a nomeação do curso. Queríamos a
aprovação e em conjunto decidimos que não colocaríamos
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

termos que remetessem à sexualidade e gênero no título do


projeto do curso. Compreendemos que naquele momento
era necessária uma estratégia mais conservadora, um nome
que acolhesse nossos anseios e que não afrontassem uma
suposta comissão de avaliação que poderia estar alinhada ao
pensamento governista.
O foco do Laboratório de pesquisa Ge-Ser sempre foi
articular perspectivas teóricas e epistemológicas produzidas
por sujeitos da subalternidade, ou seja, nossas leituras
focavam na desconstrução de um saber que invisibilizou
por décadas sujeitos dissidentes. Em nossos encontros de
estudos, partíamos da perspectiva que falar da dissidência
é falar da pluralidade e não da universalidade humana,
é falar das vozes silenciadas e apagadas da história, é
falar do pensamento lésbico, das homossexualidades, das
bichas pretas, do mulherismo negro, dos estudos queer,
do deslocamento de sentidos, do “cu”, da vagina, do pênis,
do falo. Queríamos abordar tudo isso, mas era necessária
cautela. Naquele contexto político e envolvido/as numa linha
de pesquisa voltada para as diferenças humanas, encontramos
na Interseccionalidade a solução para o nomear o curso.
Mas o que é a interseccionalidade? Um conceito? Uma
metodologia? Uma ferramenta teórica? Por qual razão,
educadoras/es da Educação Infantil e Ensino Fundamental
53
deveriam saber mais sobre esta perspectiva? De início, só por
ser uma abordagem construída por mulheres negras e que
estavam pensando em uma não hierarquias de opressões, já nos
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

seduziu, e na medida que fomos estudando mais percebemos


que a Interseccionalidade é uma forma para pensar sobre o
corpo humano atravessado por suas diferenças e o modo como
lidamos com essas diferenças sem classificá-las.
Carla Akotirene, baseada nos estudos de Kimberlé
Crenshaw, intelectual e jurista afro-estadunidense que
cunhou o conceito de interseccionalidade como teoria crítica
da raça, alega que a Interseccionalidade “é uma sensibilidade
analítica”, “uma maneira sensível de pensar a identidade e
sua relação com o poder, não sendo exclusiva das mulheres
negras, mesmo porque as mulheres não negras devem
pensar de modo articulado suas experiências identitárias”
(AKOTIRENE, 2019, p.14).
Tal perspectiva nos contemplava e, como argumenta
Akotirene (2019), a Interseccionalidade veio até nós como
ferramenta ancestral. Sendo assim, o texto de Carla
Akotirene foi o escolhido para ser a base de nossos estudos
sobre essa perspectiva teórica. Ter escolhido o texto desta
intelectual preta, coaduna-se com nosso olhar voltado para
novas epistemologias de estudos.
E foi assim que costuramos o curso, falando daquilo
que estrutura a sociedade brasileira: Racismo, Sexismo e
Capitalismo. E, deste ponto de vista, foi que as mulheres
negras foram assumindo o protagonismo em nosso
54
curso, pois reconhecemos que elas são as mais atingidas
pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe,
instrumentos primordiais de controle colonial. Não deixamos
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

de chamar atenção para o feminismo de caráter racista e o


movimento negro pelo caráter machista, evidenciando os
pontos de tensões no interior das categorias identitárias.
Tais apreensões geraram debates ao longo do curso,
sustentar uma não-hierarquia de opressão para muitos
participantes era inaceitável. Este foi uma questão teórica que
ficou em aberto para uma parcela do grupo que considera que
a raça ainda é a categoria mais oprimida em detrimento das
outras, por exemplo, uma mulher negra travesti, será morta
porque é negra e não porque é travesti, abrimos o debate.
Mas o que nos encanta na Interseccionalidade é uma
sensibilidade e solidariedade para com o outro. Carla
Akotirene, citando Audre Lord, defende que:

Qualquer ataque contra negras é uma questão lésbica


e gay, porque eu e milhares de outras mulheres
negras somos parte da comunidade lésbica. Qualquer
ataque contra lésbicas e gays é uma questão de
negros, por que milhares de lésbicas e gays são
negros. Não existe hierarquia de opressão. Eu não
posso me dar ao luxo de lutar contra uma forma de
opressão apenas. Não posso acreditar que ser livre
de intolerância é um direito de um grupo particular
(AUDRE LORD, apud KOTIRENE, 2018.p.43).

55
Não é um somatório de identidades, a perspectiva
interseccional analisa quais condições estruturais atravessam
corpos, não abandona uma irmã travesti que está sofrendo
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

transfobia diante de si, mesmo que aquele corpo não venha


com algumas das marcas de opressão, sente a dor do outro.
O pensamento Interseccional nos leva a reconhecer que
também oprimimos e que precisamos estar atentos para isso
e que não se hierarquiza sofrimento. Porém, o coração do
conceito de Interseccionalidade é das mulheres negras, não
podemos esquecer, diz Carla Akotirene.
Por tudo que foi dito, ter escolhido a Interseccionalidade
como teoria para alinhavar os módulos do curso
foi enriquecedor e ter mergulhado no estudo da
Interseccionalidade produzido por Carla Akotirene, uma
mulher preta baiana, é parte dos anseios do Laboratório de
pesquisas Ge-Ser, que busca trabalhar com novas posições
epistemológica, novas escritas acadêmicas e outras posições
de sujeito. A escolha foi acertada e fez eco em todo/as nós.

4. Como incluir professores na tarefa da pesquisa?


A dinamização do curso foi pensada para desenvolver,
ao longo do percurso, estudos, práticas e estratégias
pedagógicas, assim como a análise de resultados dessas
práticas, seja com os estudantes, seja com as equipes das
escolas onde as atividades foram propostas. Desse modo, os
cursistas participavam de um momento de estudos com a

56
equipe do Laboratório Ge-Ser e convidados que apresentavam
trabalhos acadêmicos, didáticos e/ou vivências relacionadas
aos temas estudados em cada encontro. Inspirados pelos
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

estudos no campo da raça, do gênero e/ou da sexualidade,


os dinamizadores do Ge-Ser, em parceria com os docentes,
criavam uma tarefa pedagógica para ser desenvolvida ao
longo da semana com os estudantes. As tarefas foram
registradas de forma escrita, por fotos, vídeos ou através de
expressão artística e eram apresentadas ao grupo no encontro
posterior para análise desses resultados.
Essa perspectiva de trabalho foi norteada pela
metodologia de pesquisa-ação que encaminha o processo
metodológico da seguinte forma:

Como estratégia de pesquisa, a pesquisa-ação pode


ser vista como modo de conceber e de organizar
uma pesquisa social de finalidade prática e que esteja
de acordo com as exigências próprias da ação e da
participação dos atores da situação observada. Neste
processo, a metodologia desempenha um papel de
“bússola” na atividade dos pesquisadores, esclarecendo
cada uma das suas decisões por meio de alguns
princípios de cientificidade (THIOLLENT, 2003, p.26).

Compreendendo, então, a horizontalidade que essa metodologia


propõe, a dinamização dos encontros apresentava uma proposta
com objetivos fechados, os temas de estudo, por exemplo, mas
contava com momentos abertos, onde cursistas e dinamizadores
57
passavam a exercitar a prática analítica dos resultados
apresentados, por intermédio das rodas de conversa, ajustando
as práticas desenvolvidas aos objetivos propostos.
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

As atividades planejadas para desconstruir preconceitos,


estigmas sociais e dogmas encontraram uma gama variada
de resistências até serem dinamizadas com as crianças. Nos
relatos das rodas de conversa, eram percebidas as seguintes
justificativas: “não há espaço no currículo para fazer essa
atividade”; “como teve tiroteio, não deu tempo para fazer
o trabalho”; “a comunidade de lá é muito evangélica, não
dá para falar disso.” O trabalho do grupo, então, passou a
ser analisar esse estado de tensões e verificar as estratégias
possíveis de resistência em busca de propostas insurgentes
no campo das construções identitária.

5. Infâncias e construções identitárias: a sala de aula como


palco de tensões
Propor um curso dessa natureza no contexto atual da
sociedade brasileira, em que o conservadorismo tem
encontrado eco em diversas instituições sociais, sem
dúvidas se mostra um grande desafio. De modo que todo o
percurso proposto, desde o princípio até a conclusão, exigiu
muito cuidado e sensibilidade, de maneira que o curso se
mostrasse propulsor de mudanças no fazer pedagógico de
nossos cursistas. Assim, se considerarmos que o título do
curso em si é o primeiro contato que os leitores que dele

58
tomam conhecimento estabelecem com ele, é significativo
nos propomos a grafar já em seu título as palavras “crianças”
e “infâncias”, demarcando a nossa abordagem mais
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

fundamental: a opção pela pluralidade. Ao tratarmos de um


curso dessa natureza, é fundamental entender o porquê dessa
escolha, pois, em nossa concepção, é impossível pensarmos
escola, pensarmos o chão da escola, sem nos depararmos
com a pluralidade. Por isso, acreditamos que pensar práticas
e ações interseccionais é fundamental para uma prática
pedagógica de qualidade.
Kramer nos auxilia nesse sentido, ao dizer que

A inserção concreta das crianças e seus papéis variam


com as formas de organização da sociedade. Assim,
a ideia de infância não existiu sempre da mesma
maneira. Ao contrário, a noção de infância surgiu com a
sociedade capitalista, urbano-industrial, na medida em
que mudavam a inserção e o papel social da criança na
comunidade (KRAMER, 2006, p.14).

Tomamos o cuidado de realizar um breve percurso histórico do


que se entendia socialmente por infância ao longo do tempo.
Partindo desde a Idade Média, onde, segundo os estudos de Ariés
(1981), o sentimento de Infância nem sequer existia, as crianças
eram vistas como “adultos em miniatura”, até completarem idade
suficiente para ingressarem no mundo do trabalho. Perpassando
por Rousseau (1999), em “Emílio”, que lança um novo olhar
sobre esse sujeito, inaugurando, por assim dizer, um conceito
59
moderno de infância, considerando as crianças como seres
imaginativos, criativos e com características próprias de sua faixa
etária. Perceber esse percurso histórico, as diversas modificações
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

que sofreram ao longo do tempo as concepções tanto de


criança como de infância, é um importante instrumento para a
compreendermos a importância de uma abordagem pedagógica
que considere essa multiplicidade. Pocahy defende que:

Reconhecer a construção sócio-histórica da criança e da


infância nos permite legitimar a importância do tempo
e do espaço na constituição da categoria social infância
e do sujeito que a integra. Isso significa que, ao serem
situadas no tempo e no espaço, a infância e a criança
não podem ser compreendidas homogeneamente, como
se houvesse uma única forma de viver a infância e de ser
criança. Para compreendermos a complexa conjuntura
social de determinado tempo-espaço, cabe reiterarmos
a necessidade de analisar interpretativamente os
fenômenos cotidianos através de marcadores sociais
de identidade e diferença como geração/idade, etnia/
raça, gênero, sexualidade e localização geográfica, para
citar alguns (POCAHY, 2011).” (COUTO; POCAHY;
OSWALD, p. 60, 2018)

Assim, cremos que não faz o menor sentido restringirmos


nossa abordagem à temática da infância de uma maneira
singular, considerando os diversos contextos que
compõem nossa realidade, acreditamos na pluralidade, na
multiplicidade de infâncias.

60
Compreendermos a complexa conjuntura social e a
diversidade que há, por exemplo, em uma cidade como o Rio
de Janeiro, é primordial para entendermos a urgência em
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

construir práticas pedagógicas interseccionais, que levem em


consideração marcadores sociais como gênero, sexualidade,
raça, religião, classe social.
Vale ressaltar que, cotidianamente, nos deparávamos
com essas diferenças discrepantes, com realidades muito
distintas trazidas pelos nosso cursistas, já que contávamos
desde professores que atuavam escolas privadas da Zona
Sul da cidade, alunos de classes mais favorecidas, até
professores atuando em diversas escolas públicas situadas
dentro de favelas, convivendo com conflitos e tiroteios que
constantemente interferem no seu trabalho docente. Sendo
assim, a cada encontro era perceptível a multiplicidade
de infâncias possíveis em nossa cidade e, até mesmo, a
diversidade entre crianças e infâncias dentro do mesmo
contexto social, de acordo com os atravessamentos de
cada uma delas, seja por questões ligadas à sexualidade,
raça, religiosidade ou a todas elas juntos. Tais encontros,
diálogos, discussões só vieram a reforçar a urgência de nós,
fundamental formarmos docentes que saibam e assumam
essa responsabilidade, que se proponham a discutir, a debater
e a desconstruir preconceitos.

61
6.A relevância das categorias identitárias de gênero e
sexualidade na infância
Desde o início dos módulos, observamos que o/as cursistas
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

estavam ansiosos para falar da sexualidade de suas


crianças. Numa das primeiras rodas de conversa, ouvíamos
de mais de um participante, que as “crianças tinham a
sexualidade muito aflorada”, “que não tinham idade para
determinadas coisas”, “que não podiam falar palavrão” e
“que não podiam ver determinadas situações”. Frases que
nos remetiam ao campo das restrições e proibições, cercada
por um imaginário de criança inocente e sem sexualidade.
Também relataram alguns casos de meninos que queriam
ser princesas, que gostavam de usar maquiagem e de
alguns casos de flertes entre meninos. Vale ressaltar
que essas narrativas parecem ter um olhar mais atento
para as crianças de sexo masculino que demonstram
um comportamento diferentes do papel esperado. Não
anotamos nenhum relato que envolvesse meninas. Uma boa
questão para refletir.
No início do módulo sobre sexualidade e gênero,
percebemos também um certo desconhecimento sobre
conceitos ligados à Identidade de Gênero, Identidade
Sexual e Orientação sexual. Havia uma confusão sobre
esses termos e vários estereótipos vinham à tona, como,
por exemplo, confundir sujeitos transexuais com sujeitos
homossexuais. Para descortinar a confusão sobre isso,
focamos no universo LGBT.
62
Adotamos a metodologia de levar convidados em cada
aula e no módulo sexualidade escolhemos convidados e
convidadas que pudessem de falar de suas experiências
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

enquanto sujeito de sexualidade e Gênero dissidentes. Não


é preciso dizer que levar convidados/as que se identificavam
como transexuais e travestis causou bastante impacto e
contribuiu para ter acesso a um saber que combinava a teoria
que estudávamos e prática relatada por esses convidados/as.
Uma dessas convidadas nos recomendou que ninguém poderia
finalizar o curso sem saber o que era um sujeito homossexual e
um transexual, por exemplo, marcando assim as características
identitárias dos grupos que se definem sob a sigla LGBT.

7. Algumas considerações parciais


A experiência vivenciada nesse curso de extensão nos traz
alguns elementos de reflexão sobre as possibilidades de
formação continuada que pretendemos apontar aqui como
caminhos para investigações futuras, sem a pretensão
de concluir definitivamente essa análise. Assim sendo,
elencamos alguns aspectos para examinarmos: a construção
de materiais didáticos e estratégias pedagógicas sob a
perspectiva da interseccionalidade; os desafios pessoais
enfrentados pelos participantes mediante o encontro com
convidados que trouxeram a prática de suas identidades no
cotidiano; e as interdições experimentadas nas instituições
no período de realização do curso.

63
Falar sobre construção identitária na educação formal
não constitui novidade curricular, sobretudo na Educação
Infantil e nos Anos Iniciais do ensino Fundamental. Os
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

documentos norteadores das práticas pedagógicas citam


com muita frequência a importância dessa construção desde
a tenra idade. A interrelação entre as diversas categorias
de formação identitária parece ser um terreno muito árido,
onde docentes buscam apenas tangenciar enfatizando
categorias como nome, gostos pessoais e até chegam a
transitar por algumas diferenças como cor dos olhos e da
pele. Contudo, ao estimularmos reflexões sobre as diversas
possibilidades de construções identitárias entrecruzando
culturas étnicas, gêneros e sexualidades percebemos que,
mesmo docentes com bastante experiência no chão da
escola e em práticas pedagógicas cotidianas, apresentaram
dificuldade substancial em identificar a necessidade desse
trabalho, assim como produzir atividades que contemplassem
a diversidade identitária, por exemplo, nas diferentes
perspectivas expressões de gênero. Ao solicitarmos a criação
de um boneco não-binário pelas crianças, a maioria dos
cursistas alegaram falta de tempo para a realização da tarefa.
Ampliamos o prazo para três semanas e mesmo assim menos
de 20% dos cursistas conseguiram atender a proposta.
Partimos, então, para a observação de alguns entraves
e obstáculos desses percursos. Em alguns casos, professores
afirmaram estar em choque entre as orientações dos líderes
de sua religião e os temas propostos para a realização das
64
tarefas. Em outros casos, ouvimos relatos de docentes que
afirmavam que a equipe técnico-pedagógica adentrava as salas
de aula questionando o teor das atividades que estavam sendo
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

desenvolvidas. A maioria dessas interdições são totalmente


infundadas e sem legitimação legal, porém muitas vezes
encontra eco nas limitações dos valores pessoais docentes e
em nossas rodas problematizamos esse quadro, levando alguns
cursistas inclusive a desistirem da matrícula no curso.
Entendemos que para além dos dados que encontramos
todos os dias nos noticiários, que demonstram a necessidade
de abordarmos as categorias raça, gênero e sexualidade
como prioritárias na construção das identidades dos sujeitos
desde a mais tenra infância, as interdições desse currículo
que é dinamizado no chão da escola também reforçam
essa necessidade. A UNESCO desde o final do século
passado (DELORS, 1998) enuncia a necessidade de firmar
mundialmente a educação em quatro pilares. E dois deles
estão diretamente ligados a esses temas que desenvolvemos
aqui: aprender a ser e aprender a conviver.
Esses relatos apresentados espontaneamente na
trajetória desse curso, em especial, não parecem ser
inéditos. Em outros momentos de formação continuada,
em outros programas, como GDE| Gênero e Diversidade
na Escola e EGeS| Especialização em Gênero e Sexualidade,
esse discurso era recorrente. Na maioria das formações
das quais participamos, era comum ouvir de professoras
e professores a expectativa de que os cursos, formações e
65
palestras resolvessem um problema que estava ocorrendo
naquele momento em sua sala de aula. Sempre a angústia
de conhecer os protocolos de como lidar um menino com
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

comportamento afeminado, uma menina com traços


masculinizados, um grupo de estudantes muito sexualizados.
Em geral, quando informávamos a característica processual
das formações ou informativa de palestras, esses
profissionais tendiam a abandonar as atividades. Esse tipo
de comportamento foi se tornando repetitivo, recorrente em
nossa prática na formação docente.
Percebemos que, embora haja uma tendência pedagógica
no sentido de considerar as categorias identitárias como
formadoras do currículo, na prática a maioria dos docentes
apresentam uma necessidade de enquadrar corpos, desejos
e comportamentos dissidentes em uma lógica que permita
o controle da expressão dessas dissidências. Ao ouvir
recorrentemente que há um caso na escola ou estamos
preocupados sem saber como lidar com o fulano, percebemos
o quanto o dissidente confronta, importuna e realoca o
lugar de conforto dessa educação secular. Contudo, quando
incentivamos alterar a matriz de tratamento do dissidente,
do diferente, do diverso, ainda percebemos muita rejeição
pelo corpo técnico-pedagógico das escolas. Mesmo entre os
profissionais que, a princípio, se mostram abertos a essa pauta.
Deixamos aqui algumas provocações para a continuidade
da investigação. Diante de todo esse movimento que vem
sendo deflagrado no novo século, em que medida a escola e

66
seus atores estão dispostos a realizar mudanças inclusivas,
sobretudo no campo do gênero e da sexualidade? As ondas
conservadoras que vivenciamos atualmente encontram eco
Construções identitárias na escola Cláudia Reis, Carlos Souza Santa Brígida e Joice Farias Daniel

nesses espaços formais de ensino? E a expressão cotidiana


desses corpos e comportamentos dissidentes na escola?
Como essa tensão legítima e real vai se desenrolar?

Referências
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade?. Belo Horizonte:
Letramento; Justificando, 2018.
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro;
Polén, 2019.
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2 ed. Rio de
Janeiro: LTC, 1981.
COUTO J R, D.R.; POCAHY, F.; OSWALD, M.L .M .B. Crianças e
infâncias (im) possíveis na escola: dissidências em debate. Periódicus.
Salvador, BA. n. 9, v. 1, p. 55 – 74. Maio-out. 2018. ISSN: 2358-084
DELORS, J. et al. Educação: um tesouro a descobrir: relatório para a
UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI.
São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 1998.
KRAMER. Sônia. A infância e sua singularidade. In: BRASIL. Ministério
da Educação. Ensino Fundamental de nove anos: orientações para a
inclusão da criança de seis de anos de idade. Brasília: FNDE, 2006.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 12. ed. São Paulo:
Cortez, 2003.

67
interferência cromática sobre foto de Ricardo Matsukawa | temqueter.org
“DEFENDO QUE
EXISTAM MAIS HOMENS,
MAS NÃO É FÁCIL” :
NARRATIVAS DE
PROFESSORES,
GESTORES E
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

RESPONSÁVEIS E
SUAS VISÕES SOBRE
O HOMEM NA
EDUCAcÃO INFANTIL
Jonathan Aguiar
Paulo Melgaço da Silva Junior
Matheus Pinheiro
69
O PRESENTE ARTIGO TEM POR OBJETIVO
compreender os desafios e potencialidades de ser/ter
professor do sexo masculino da/na Educação Infantil.
Apresentamos como base teórica os estudos sobre cuidar
e educar, documentos da legislação brasileira, e os estudos
sobre gênero e masculinidades. Trata-se de um estudo
qualitativo no qual realizamos conversas via WhatsApp com
três professores homens, duas gestoras, e um pai e uma
mãe de uma criança que teve um professor homem na pré-
escola. Em um primeiro momento, os(as) entrevistados(as)
enunciaram em suas narrativas as tensões e dificuldades
enfrentadas pelos professores em suas atividades; já
em um segundo momento, enfatizaram caminhos de
lutas e resistências. O estudo revelou a importância do
trabalho da equipe diretiva na recepção e acolhimento
do profissional. Também mostrou que as questões de
gênero e masculinidades não são determinantes para o
desenvolvimento do trabalho na Educação Infantil. As
relações entre professor, aluno(a) e comunidade escolar
devem ser construídas na base do diálogo, do conhecimento
e da prática pedagógica.
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil”: Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
1. Introdução
Nos últimos anos, têm-se mobilizado estudos acerca da
atuação do homem no magistério, sobretudo no campo da
Educação Infantil (AGUIAR, 2019; SILVA, 2019; PRADO;
ANSELMO, 2019; SCIOTTI; PEREZ; BELLIDO, 2019; SILVA
JÚNIOR; MAIA; IVENICKI, 2018; ABREU, 2018). Com
isso, o que se tem observado, tanto na literatura como nas
nossas vivências, é que os homens ainda são minoria como
professores de crianças. Já pararam para observar os espaços
de Educação Infantil? Qual a figura no imaginário social que
se preocupa com o cuidar/educar das crianças pequenas?
Entretanto, toda a escrita desta investigação tem
como foco o professor homem que trabalha em turmas de
maternal e/ou pré-escola. Tivemos como objetivo norteador
compreender os desafios, as tensões e as potencialidades
de ser/ter professores do sexo masculino da/na Educação
Infantil, por assim vivenciarem um espaço onde a
predominância é do sexo feminino. Nesse sentido, segundo
as palavras de Rabelo (2010), os estudos que se preocupam
com essa temática são relevantes, apresentando “outras
vozes que ecoam nas escolas, ou seja, indivíduos capazes
de exercer esta profissão por gosto e independentemente
do seu sexo, mas que também sofrem com os problemas da
docência” (RABELO, 2010, p. 280). Ao se referir a problemas
da docência, a mesma autora ressalta a dimensão da
discriminação e os estereótipos que se criam a respeito

71
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
desse profissional, que chega à educação para trabalhar com
as crianças pequenas, por assim estarem “fora do lugar”,
disse Rabelo (2013).
Com isso, nos preocupamos em ampliar esta discussão,
incorporando as narrativas de mulheres que são gestoras no
campo da Educação Infantil e também de um grupo familiar,
sendo representado por uma mãe e um pai. Da mesma
maneira, homens que exercem a docência na Educação
Infantil em turmas de maternal e/ou pré-escola. Por fim,
quem acolhe os professores do sexo masculino que chegam à
docência na Educação Infantil? Qual é a visão de uma família
sobre atuação deles no magistério? Há tensões, aprendizagens
e desafios? O homem pode educar crianças? O que eles
pensam sobre essa configuração feminina nos espaços na
pré-escola e no maternal? Qual a visão das mulheres gestoras
quando um homem trabalha com crianças?

2. Metodologia
Este estudo é qualitativo (MINAYO, 2011; IVENICKI;
CANEN, 2016), por se ocupar das particularidades dos
discursos, dos significados, das aspirações, valores e falas
que não conseguem ser quantificáveis. Toda a sua análise
se preocupa com a subjetividade, trazendo reflexões e
críticas diante de um determinado fenômeno a ser estudado
(IVENICKI; CANEN, 2016), como é o caso da atuação dos
homens no magistério: na creche e pré-escola.

72
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
A partir dos objetivos descritos na introdução deste,
artigo realizamos conversas via WhatsApp 1 no mês de
maio de 2020, tendo ao todo sete (7) pessoas participantes
deste estudo. São elas2: três (3) professores homens que
trabalham na Educação Infantil (Felipe, Artur e William);
duas (2) mulheres que atuam como gestoras nesse espaço de
Educação Infantil (Beatriz e Roselene); e uma família: um (1)
pai (Gustavo) e uma (1) mãe (Manuela) de uma criança que
teve um professor homem na pré-escola.
Com essa clareza, é importante esclarecer que os
instrumentos que utilizamos para a produção deste artigo
perpassam a conexão do mundo virtual e real. Isso por
se tratar de uma investigação que se utiliza do aplicativo
WhatsApp para a aproximação entre pesquisadores
e participantes. Scribano (2017), em suas produções,
assinalava que o uso dessa ferramenta no campo das
ciências sociais e humanas implicaria a facilidade de
aproximar distanciamentos. Trocas de mensagens via
áudio, imagens e vídeos nos apresentam potencialidades
para descrever experiências, como “instrumento de
investigación social” (SCRIBANO, 2017, p. 13). Essa
escolha metodológica se dá pelo momento que estamos

1 WhatsApp é um aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas e


chamadas de voz para smartphones.

2 Os nomes das pessoas participantes foram alterados para manter o anonimato e a


ética da pesquisa.

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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
enfrentando de pandemia devido à Covid-19, mas o caráter
ético, epistemológico e científico da pesquisa é de rigor e
credibilidade.
No que diz respeito ao perfil dos participantes desta
pesquisa, os professores homens possuem entre 19 a 24
anos. Os três (Felipe, Arthur e William) possuem curso de
formação de professores (antigo magistério); desse universo,
dois (Felipe e William) estão concluindo a graduação
em Pedagogia; e um (Arthur) já é pedagogo. Sobre a
especificidade da Educação Infantil e o campo de atuação,
Arthur e William trabalham na pré-escola com crianças de 4
a 5 anos e 11 meses; Felipe trabalha na creche com bebês de
aproximadamente 2 a 3 anos.
As duas (2) mulheres gestoras (Beatriz e Roselene)
sinalizaram que estão acima dos 45 anos de idade. Ambas
as profissionais possuem longa experiência na Educação
Infantil: Beatriz tem mais de 31 anos de experiência na
direção de creches e no trabalho com as crianças pequenas,
sendo mestre em educação, assistente social, além de ter
cursado formação de professores. Já Roselene possui 20 anos
de magistério, é especialista em literatura infantil, pedagoga
e normalista (por ter cursado antigo magistério), e atua
como chefe de departamento da Educação Infantil em uma
secretaria municipal de educação.
Manuela e Gustavo, os dois (2) responsáveis que
participaram deste estudo, têm idade acima de 25 anos. Não
possuem Ensino Superior, cursaram somente o Ensino Médio.
74
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
O roteiro da conversa online foi organizado de forma
semiestruturada, com uma única pergunta que foi enviada
individualmente para cada participante, que assim aceitaram
e autorizaram colaborar com este estudo.
Aos professores homens, foram questionados como
enxergam a docência na Educação Infantil e seu lugar de
atuação. Seguindo a mesma premissa para as gestoras,
perguntou-se como estas encaram o fato de existir poucos
homens atuando com crianças, e quais são os seus olhares
quando esbarram com homens na Educação Infantil.
Para os responsáveis, tivemos a seguinte questão
norteadora: “qual é a sua visão quando um homem cuida/
educa o seu filho/filha na creche ou na pré-escola?”.
No entanto, à medida que fomos recebendo as respostas,
ampliamos o diálogo, fazendo poucas intervenções do tipo
“me explica melhor”, “o que você quis dizer sobre isso?” e/ou
“esta é a sua opinião”. O propósito foi que os/as participantes
envolvidos/envolvidas ampliassem as suas narrativas
e se sentissem acolhidos e acolhidas por meio de uma
entrevista que aconteceu de modo virtual, através da troca
de mensagens de voz. Em um segundo momento, após as
conversas de áudio, optamos por transcrevê-las e analisá-las
ao longo deste artigo.
Assim, a realização das entrevistas, apesar de virtuais
por conta da pandemia, foram importantes para a ampliação
da proposta. Conforme Andrade (2014), as entrevistas “não
permitem dizer ‘uma’ ou ‘a’ verdade sobre as coisas e os
75
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
fatos, mas pode-se considerá-las como a instância central
que, somada a outras, traz informações fundamentais
acerca do vivido [...]” (p. 177). Dessa forma, entendemos
que as narrativas fazem parte do discurso, elas integram
as práticas sociais. Ao narrar, o sujeito está se construindo
e estabelecendo relações com o mundo em sua volta.
Assim, a narrativa favorece a feitura, a estruturação da
nossa identidade (SCHIFFRIN, 1994), possibilitando que
modifiquemos nossas relações com os outros e com o mundo
que nos cerca, segundo as ideias de Bastos (2005).
Nessa perspectiva, Delory-Momberger (2008, p. 56)
sublinha que:

[...] a narrativa é não apenas o meio, mas o lugar: a


história da vida acontece na narrativa. O que dá forma
ao vivido e à experiência dos homens [e das mulheres]
são as narrativas que eles [elas] fazem de si. Portanto,
a narração não é apenas o instrumento da formação, a
linguagem na qual se expressaria: a narração é o lugar
no qual o indivíduo toma forma, no qual ele/a elabora e
experimenta a história de sua vida.

Assim, nossas relações interpessoais e nossas histórias de vida


ganham sentido por meio das narrativas autobiográficas. Os/
as narradores podem construir quem são e se posicionarem
como sujeitos a partir das histórias que contam. De acordo
com Silva Junior (2019), ao focalizar o sujeito que é narrado, é
possível dimensioná-lo em contexto mais amplo. Com isso,

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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
torna-se possível compreender as narrativas como resultado
de experiências cotidianas vividas, nas quais, por sua vez,
podem ser consideradas históricas e denunciam o conjunto de
regras que as governou e as produziu.
Por esse caminho metodológico, as pessoas participantes
que narram suas histórias, visões e compreensões neste
estudo, são profissionais que trabalham e que de alguma
maneira vivenciam o universo da Educação Infantil, tanto
como família e, por outras vezes, como profissionais. Cabe
destacar que as escolhas destes participantes perpassaram os
nossos universos pessoais como pesquisadores.

3. Educar/cuidar para além de um gênero: desafios, inclusões


e aprendizagens
A utilização dos termos “educar” e “cuidar”, que assumimos
neste texto, estão imbricados, interligados, integrados,
conforme se constata nos estudos de Guimarães (2008),
Corsino (2009), Kramer et al. (2011), Corsino e Nunes (2018),
no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
– RCNEI (BRASIL, 1998a, 1998b e 1998c), bem como nas
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil –
DCNEI (BRASIL, 2010).
Segundo o RCNEI (1998a), as instituições de Educação
Infantil devem incorporar em seus respectivos espaços e
informar aos seus profissionais, que o cuidar e o educar não
assumem hierarquizações, mas encontram-se nos processos

77
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
de desenvolvimento e aprendizagem da criança e em sua
formação intelectual, social, estética, corporal e emocional.

Educar significa, portanto, propiciar situações de


cuidados, brincadeiras e aprendizagens orientadas
de forma integrada e que possam contribuir para o
desenvolvimento das capacidades infantis de relação
interpessoal, de ser e estar com os outros em uma atitude
básica de aceitação, respeito e confiança, e o acesso,
pelas crianças, aos conhecimentos mais amplos da
realidade social e cultural. Neste processo, a educação
poderá auxiliar o desenvolvimento das capacidades
de apropriação e conhecimento das potencialidades
corporais, afetivas, emocionais, estéticas e éticas, na
perspectiva de contribuir para a formação de crianças
felizes e saudáveis (BRASIL, 1998a, p. 23).

A respeito do ato de cuidar, o mesmo documento expõe:

Contemplar o cuidado na esfera da instituição da


educação infantil significa compreendê-lo como
parte integrante da educação, embora possa exigir
conhecimentos, habilidades e instrumentos que
extrapolam a dimensão pedagógica. Ou seja, cuidar
de uma criança em um contexto educativo demanda
a integração de vários campos de conhecimentos e
a cooperação de profissionais de diferentes áreas. A
base do cuidado humano é compreender como ajudar
o outro a se desenvolver como ser humano. Cuidar
significa valorizar e ajudar a desenvolver capacidades.

78
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro O cuidado é um ato em relação ao outro e a si próprio
que possui uma dimensão expressiva e implica em
procedimentos específicos. O desenvolvimento integral
depende tanto dos cuidados relacionais, que envolvem
a dimensão afetiva e dos cuidados com os aspectos
biológicos do corpo, como a qualidade da alimentação e
dos cuidados com a saúde, quanto da forma como esses
cuidados são oferecidos e das oportunidades de acesso a
conhecimentos variados. (BRASIL, 1998a, p. 24).

Logo, cuidar e educar nos espaços da Educação Infantil


assumem uma dimensão complexa, viva, cujos processos
educativos fazem parte desse percurso no sentido de
ampliar o repertório social, político, estético, cultural,
emocional, brincante das crianças pequenas. Atrelado a
esse movimento, o cuidado existirá desde a dimensão ética,
a construção de valores, e a busca de um enriquecimento
da qualidade alimentar, dos hábitos de higiene, da
saúde emocional e do próprio cuidado consigo e com
o outro. Educação e cuidado caminham juntos. Não há
como separá-los, porque estamos lidando com a vida e o
desenvolvimento humanos. Esse é o lugar da “higiene,
ou mesmo a compreensão do lúdico, do brinquedo e da
brincadeira no fazer educativo” (NUNES, 2009, p. 39).
Por toda essa dimensão que se preocupa com o
cuidado e com a educação de bebês e crianças pequenas, a
problematização que se faz é: quem são os profissionais que
cuidam e educam nessa fase da primeira infância?

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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
Certamente, com base nos documentos (BRASIL,
1996, 1998a, 1998b, 1998c, 2010, 2013) que regulamentam
a Educação Infantil e sua oferta na Educação Básica
para o atendimento de crianças. Todavia, seu foco é no
profissional, sem distinção de sexo, etnia, gênero, orientação
sexual, raça, cor ou religião. Evidenciamos que os mesmos
denominam como “profissionais da Educação” (BRASIL,
2010), “professores”, “professor” (BRASIL, 1998a, 1998b,
1998c) “trabalhadores” (BRASIL, 2010); e quando mencionam
“professora”, ela é expressa uma única vez no corpo do texto
(BRASIL, 1998b), com quatro repetições (BRASIL, 1998c), e
nas referências consultadas para a produção do documento
(BRASIL, 1998a, 1998b).
Interessante ressaltar o cuidado que tiveram ao se reportar,
em sua grande maioria, a professores e profissionais da
educação. Essa intencionalidade é vista na Lei de Diretrizes
e Bases da Educação (LDB), ao referenciar como “docentes”,
“professores”, “profissionais”, nos levando a uma interpretação
que envolve todos e todas as profissionais, e qualquer indivíduo
que atua ou deseja exercer o magistério, sem diferenciação.
Desse modo, garante que o lugar da docência é inclusivo, plural,
para além de único gênero, sexo ou identidade. Refuta que
somente mulheres podem ser professoras e educar/cuidar de
bebês e crianças de até cinco anos e onze meses na Educação
Infantil. Rompe com as narrativas que um dos autores já
se deparou em uma rede social, o Facebook: “o masculino
incomoda tanto quanto o feminino, eu discordo. Se for para
80
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
generalizar, prefiro que seja no feminino. Porque somos a
maioria e generalizar no masculino é uma ideologia machista”
(FACEBOOK, 30/07/2020).
Por outro lado, outra pessoa explica:

Essa questão é bem complicada, mas exige nossa


atenção. Não chego a uma conclusão, mas ela me
deixa reflexiva. Só creio que as lutas afirmativas de
diferentes grupos que sofreram discriminação e
silenciamento por tantos anos não podem competir
entre si. Os homens gays não podem exigir um
lugar masculino, porque não é esse (mesmo) lugar
masculino que querem, mas outro, um 3º lugar ainda.
É fato que as mulheres são maioria, que sempre
foram e, ao mesmo tempo que os homens (héteros),
sempre ocuparam o centro da cena educacional,
sendo diretores, nas funções sempre de mais poder,
mesmo sendo minoritários, no contingente total dos
profissionais. Os homens que querem ser reconhecidos
como homens no magistério não deveriam se oprimir
com o protagonismo feminino gramaticalizado, mas
ter claro que o masculino generalizante da gramática
pega mal, dói na pele (kkk “dói no gênero”). Acho que
os homens gays e os héteros também deveriam apenas
se conformar e ficar orgulhosamente aceitando que o
feminino da linguagem reconhece a força feminina
do magistério, mais verdadeira força do que a força de
poder puro arrogado pelos homens educadores, que se
mantiveram em privilégio. Não sei se me explico bem
(FACEBOOK, 30/07/2020).

81
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
Diante dessas duas narrativas, pode-se observar a falta de
acolhimento do sexo masculino na docência com as crianças
pequenas. Notamos nas investigações de Rabelo (2013), ao
realizar um estudo comparativo entre Portugal/Aveiro e Rio
de Janeiro/Brasil: os professores homens que sentem na pele
discriminações acabam sofrendo por associarem a eles a falta
de cuidado, afeto, por se referirem a eles como “abusadores”
e não comprometidos. Assim, refletimos, problematizamos:
a não inserção do homem também na linguagem diminuiria
as tensões que eles enfrentam no professorado, por assim
habitarem uma profissão que majoritariamente foi sendo
construída em torno do gênero feminino? Realmente,
precisamos desconstruir esse lugar de um único gênero.
Sabemos que o magistério é uma luta de todo e qualquer
indivíduo, até porque uma educação democrática precisa
abrir espaço de diálogo com todas as pessoas. Os documentos
já expõem esse lugar e reconhecimento. Por que as narrativas
e discursos continuam ainda segregando e até criando
barreiras? Fica o convite para se pensar e aprofundar esse
questionamento em outros estudos.
No entanto, consideramos as dimensões da categoria de
gênero como cruciais para compreender as mudanças sociais
e culturais da vida contemporânea, principalmente quando
as correlacionamos com a docência. Scott et al. (1998) destaca
o gênero como uma organização social dos sexos, estando
diretamente articulado às relações humanas, ao cotidiano, às
instituições que assim marcam e provocam hierarquizações

82
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
de poder. Por esse ângulo, Connell (2016) nos revela que
se trata de uma questão de corporificação social, e pode
ser definido como uma estrutura de práticas reflexivas de
corpo, por meio das quais corpos sexuais são posicionados
na história. Essas reflexões nos ajudam a contestar falsos
universalismos em relação a papéis sexuais de homens
e mulheres presentes em diversos discursos, práticas,
documentos, ações e fazeres.
Butler (2015, 2009, 1995) busca desnaturalizar o sentido
biológico do sexo e gênero mostrando que se trata de um
construto culturalmente construído por meio do discurso. O
corpo é, em si mesmo, uma construção, do mesmo modo como
o é a miríade de corpos que constitui o domínio dos sujeitos
com marcas de gênero. Não se pode dizer que os corpos
tenham uma existência significável anterior à generificação
(BUTLER, 2015). Assim, a autora destaca que gênero é
performativo, que se dá pela repetição de atos, gestos e falas
que buscam enquadrar os sujeitos arbitrariamente em modelos
binários, inteligíveis e coerentes com a premissa normativa de
sexo-gênero-desejo (BUTLER, 2015). Nas palavras da autora:

Dizer que o gênero é performativo significa dizer que


existe uma determinada expressão e manifestação,
uma vez que a aparência do gênero, muitas vezes, é
confundida com um sinal de sua verdade interna ou
inerente. O gênero está condicionado por normas
obrigatórias que o fazem definir-se em um sentido
ou outro (geralmente dentro de um quadro binário)

83
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro e, portanto, a reprodução do gênero é sempre uma
negociação de poder. Finalmente, não existe gênero
sem reprodução das normas que ponham em risco o
cumprimento ou o descumprimento de tais normas,
abrindo-se, desse modo, a possibilidade de uma
reelaboração da realidade do gênero através de novas
formas (BUTLER, 2009, p. 322).

Compreender o gênero como performativo nos permite


pensar em possibilidades de manter as normas sociais
impostas, ou buscar caminhos para rupturas, subversões e
deslocamentos, inclusões de indivíduos que se sentem não
envolvidos. Tais noções são fundamentais para refletir sobre
o processo de construção das masculinidades e como o
professor da Educação Infantil pode subverter as expectativas
de papéis de gênero, discursos, narrativas e práticas. Existe
um papel normatizador das masculinidades, ou seja, um
modelo normativo imposto pela sociedade que enfatiza
o papel do homem nas estruturas de poder, destacando a
racionalidade, a virilidade, o gosto pelos esportes, sua força
e agressividade. Por outro lado, aquelas performances de
masculinidade que não se conformam às normas e que
de certa maneira buscam subvertê-las (ao modelo branco,
heteronormativo, eurocêntrico), são consideradas como
masculinidades dissidentes.
Nessa perspectiva, é relevante destacar que no
universo das masculinidades normativas, as expectativas
e os processos de construção do “homem de verdade”
84
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
entendem que estes não estão preparados para trabalhar
com as emoções, com a sensibilidade. Assim, este masculino
também não está pronto para o cuidado com crianças que,
no senso comum, é uma atividade relacionada ao universo
feminino, como nos evidenciam Santos e Ramos (2017);
faz parte também do olhar de algumas mulheres, como foi
enfatizado por Aguiar (2019).
No imaginário coletivo de nossa sociedade, impera uma
ideia muito arraigada (e, portanto, difícil de ser ressignificada)
de que a maternagem, isto é, as práticas sociais de cuidado
e educação destinados às crianças de até cinco anos e onze
meses, são confundidas com a maternidade. A maternidade é
uma especificidade do universo feminino, pois só as mulheres
podem dar à luz a uma criança. Só elas podem trazer ao
mundo um ser novo: essa é a especificidade da maternidade
(SANTOS; RAMOS, 2017).
Em consonância com Santos e Ramos (2017), as
expectativas relacionadas aos papéis de gênero criam uma
série de dificuldades e preconceitos para que professores
homens possam trabalhar na Educação Infantil, seja pelo
medo de abusos sexuais ou pela crença na inabilidade
masculina para lidar com crianças (RABELO, 2010, 2013).
Isso se dá principalmente quando as funções relacionadas
ao “cuidado de crianças” são sempre consideradas de
exclusividade feminina, configurando, no senso comum, a
seguinte lógica: mãe/mulher/professora ou tia. Tanto que
essa concepção contribuiu para a elaboração de um projeto
85
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
de lei (1174/2019)3 , de autoria das deputadas estaduais Janaína
Paschoal, Letícia Aguiar e Valeria Bolsonaro, do Partido
Social Liberal (PSL), de que os cuidados íntimos das crianças
na Educação Infantil do estado de São Paulo somente
poderiam ser feitos por mulheres.
Assim, em uma sociedade heteronormativa e patriarcal,
o fato de haver profissionais homens docentes na Educação
Infantil gera um estranhamento e uma atenção redobrada,
incidindo, principalmente, em algumas funções vistas como
preferencialmente femininas, mas que fazem parte das
prerrogativas do cargo de docente em Educação Infantil,
independentemente do gênero, como, por exemplo, os
cuidados com o corpo da criança (SILVA, 2019; AGUIAR, 2019;
BRASIL, 1998a, 2013; RABELO, 2010, 2013).
É relevante destacar que no processo de construção de
expectativas das masculinidades na docência da Educação
Infantil, para além do modelo de masculinidades normativas,
temos as masculinidades dissidentes. Esse modelo de
masculinidade é colocado como “inferior” ao modelo normativo,
e acaba por sofrer uma série de preconceitos e discriminações.
Em outras palavras, masculinidades dissidentes, de acordo com
Silva Junior e Brito (2018), são aquelas que não correspondem na
modelo normativo, que não atendem ao modelo regulatório de
gênero. Assim, ao associar a homossexualidade à anormalidade,
a ideia do professor da Educação Infantil ser “gay” amplia o

3 https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000292074

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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
medo da pedofilia. Os corpos dóceis e ingênuos das crianças
não podem ser tocados, ter fraldas trocadas ou manipulados por
sujeitos que são considerados fora dos padrões da normalidade.
Fatos como o contato físico com as crianças, a troca de fraldas,
entre outros, justificam os medos que algumas pessoas possuem
em relação a ter professores homens assumindo turmas na
Educação Infantil.
Nesse sentido, Silva (2019) apresenta pesquisa
desenvolvida pelo pesquisador dinamarquês Jan Peeters
(2012), quando ele apresenta problemas do cotidiano
masculino na Educação Infantil:

Comportamentos aceitos para as mulheres, mas


rotulados e suspeitos por parte de homens, passou-se
com um estagiário cuja mãe era ama há dezenas de
anos. Sempre tinha visto a mãe, depois de ter mudado
e limpo um bebê do sexo masculino, a soprar-lhe no
pênis para o bebê sorrir. Durante o estágio, o rapaz
fez o mesmo e foi censurado pelo orientador. Não
deu grande importância porque a mãe o tinha feito
durante toda a vida profissional e os pais das crianças
nunca se tinham queixado. Mas o seu comportamento
tinha sido transmitido à direção da escola, e depois
de uma entrevista, foi-lhe negado o diploma por
“comportamento perigoso” (SILVA, 2019, p. 20).

Destacamos essa citação por acreditarmos que as reações


estão muito próximas das que aconteceriam no Brasil. É
primordial observar como as expectativas de papéis sociais

87
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
de gênero influenciam na avaliação dos atos das pessoas. Os
pais das crianças naturalizavam os trabalhos da cuidadora
na figura da mulher, mãe. O fato de soprar o pênis dos
meninos era visto apenas como uma brincadeira carinhosa.
No entanto, quando o homem (seu filho acostumado ver sua
mãe praticando este ato) repetiu a prática, foi repreendido na
escola, isto porque tal ato não corresponderia às expectativas
do papel normativo do homem.
Nesse sentido, defendemos o argumento de que as
creches, as escolas e instituições que têm como público-alvo
crianças da Educação Infantil, necessitam estar preparadas
para receberem esse professor homem. Acreditamos que
essas questões devam estar postas no projeto político-
pedagógico4 da instituição. Neste plano de ação consta para
além de como a escola valoriza e reconhece as diferenças, as
vozes da comunidade e, principalmente, a voz das crianças
em relação às experiências com esses professores5 . Ao mesmo

4 Vasconcelos (2004) nos ensina que “o projeto político-pedagógico é o plano


global da instituição. Pode ser entendido como a sistematização, nunca definitiva,
de um processo de planejamento participativo, que se aperfeiçoa e se concretiza na
caminhada, que define claramente o tipo de ação educativa que se quer realizar. É um
instrumento teórico-metodológico para a intervenção e mudança da realidade” (p. 169)

5 Será necessário também ouvirmos as crianças, observá-las, conversar com elas,


estar junto delas, para poder entender suas vivências, necessidades e angústias
(SOUZA, 2019) Apesar da fala da autora estar relacionada ao contexto das
relações étnico-raciais na Educação Infantil, nos apropriamos dela para destacar a
importância de ouvir as crianças em todos os momentos.

88
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
tempo, ressaltamos a importância de as instituições de
Educação Infantil implantarem e executarem uma constante
formação continuada das professoras no exercício de seu
trabalho e de qualquer outro profissional que atua nesse
espaço educativo (SOUZA, 2019).
Até porque ninguém nasce professor ou professora, torna-
se docente, conforme as leituras, as experiências, os cursos
que frequentam e os fazeres políticos, práticos e culturais. Na
verdade, Freire (2009) enfatiza o lugar da docência de uma
profissão. Em suas palavras, adverte: “ser professora implica
assumir uma profissão” (FREIRE, 2009, p. 13). Isso significa
que ser docente é uma responsabilidade política, pedagógica,
metodológica, cultural, e primordialmente a um/uma
profissional que se constrói nos espaços de formação inicial
e continuada na interseção com os múltiplos saberes que
compõem a sua vida, as disciplinas que cursou, as experiências
que adquiriu ao longo de sua trajetória como profissional e
ser humano; das instituições que fazem parte e daquelas que
um dia viveu o seu percurso de escolarização e formação. O
exercício da docência e seu entendimento são complexos.
Segundo Cruz (2019, p. 95), “O ofício docente não é
trivial, ainda que muitos pensem que para ensinar basta
saber o conteúdo”. Essa perspectiva colabora para evidenciar
que o que marca a docência é o cuidado em ensinar, a
responsabilidade em aprender e o permitir-se descobrir
docente. Isso implica profissionais da educação, trabalhadores
que conseguem respeitar as diferenças e a pluralidade
89
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
com a qual nos deparamos na escola e nas relações com
outros colegas professores, sobretudo a quebra de uma
educação para além de transmissão de conteúdo. Trata-se
de uma educação emancipatória, que reflita e defenda uma
pedagogia da mudança cujo levante seja para todos, com
todas as pessoas, assim como homens, mulheres e os modos
como preferem ou desejam ser mencionados em sociedade.

4. A docência na Educação Infantil: múltiplos relatos


As pessoas que participaram e assim contribuíram com seus
relatos para a construção deste estudo, como foi dito logo
na parte metodológica, foram, ao todo, sete (7) participantes,
que expuseram as suas ideias, reflexões, problematizações
e desafios do que é ser/ter professor do sexo masculino
exercendo o trabalho pedagógico e o cuidado com bebês e
crianças. Desse grupo, múltiplos olhares, análises podem
ser realizadas, principalmente por haver homens, mulheres,
jovens e familiares de diferentes faixas etárias e processos
formativos que perpassam o Ensino Médio, Ensino Normal
e Ensino Superior, mas que não perderam a sensibilidade de
parar para pensar quem são eles, seus anseios e seus sonhos
no campo educacional.
Dito isso, verificamos quando lemos/ouvimos as falas
dos professores homens em seus respectivos percursos, desde
saída do curso normal (formação de professores), ingresso no
Ensino Superior e sua inserção em instituições de educação

90
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
infantil, se depararem com dificuldades enfrentadas, que
estão relacionadas às questões de gênero (CONNEL,2016,
SCOTT, 1998) e de masculinidades (SILVA JUNIOR e BRITO,
2018). Desse modo, Felipe explica:

O coordenador era homem e me falou assim: “você


está entregando o currículo para quê? Professor da
Educação Infantil, Fundamental, coordenador?” Nesse
estilo, né. Eu falei assim: “meu sonho sempre foi
trabalhar com Educação Infantil” [...] O coordenador me
indagou: “homem trabalhando com Educação Infantil?!
Homem não presta para Educação Infantil”. Veja só, um
coordenador homem, falando isso comigo! Eu achei isso
o cúmulo! Ele continuou: “homem só presta para o 5º
ano [Ensino Fundamental]. [...] Nossa! Chorei horrores,
chorei muito, muito mesmo. Quando saí daquela
instituição me senti horrível. (FELIPE)

A narrativa do professor Felipe evidencia uma realidade


marcante nesse contexto, em que os homens são os maiores
vigilantes de gênero, e como eles fazem questão de preservar
as estruturas da masculinidade normativa (SILVA JUNIOR;
BRITO, 2018). Portanto, quando o coordenador pedagógico
não aceita o desejo de Felipe de querer lecionar e afirma
que o campo da Educação Infantil não é para homem,
certamente está se apoiando no pensamento proposto
por essa masculinidade normativa que nega ao homem as
possibilidades de ensinar, educar e cuidar, em um espaço que

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“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
é marcado pelo feminino. Essa concepção pode ser verificada
também no relato dos outros professores, quando expõem o
desafio de ser primeiramente do sexo masculino.

[...] eu me recordo que teve uma vez que eu quase desisti


do magistério da Educação Infantil e do primeiro
segmento do Ensino Fundamental, que eu amo trabalhar.
Amo lecionar. Foi com uma situação quando eu pertencia
ao quadro de estagiários de uma escola e ia receber uma
promoção, [onde] iria receber uma turma. Fui vetado
por conta de ser do sexo masculino. A coordenadora me
chamou para conversar, depois de estar quase tudo certo,
me falou que não teria há possibilidade de me ter [...]
como professor, porque algumas mães tinham procurado
[ela] e disseram que se fosse um professor homem na
turma [de Educação Infantil] elas não iriam renovar a
matrícula dos [seus] filhos. (ARTUR).

O meu adentrar na carreira de professor da Educação


Infantil foi tranquilo, porém cheia de receios, por ser
homem e trabalhar com a Educação Infantil [...]. Uma
mãe que não ia muito à escola - quem levava a criança
era a avó - querendo me conhecer. Eu lembro que um
dia essa mãe foi buscar sua filha querendo saber quem
era o professor [William], de tanto que filha falava. Ela
não conhecia e precisava saber quem era o homem que
trabalhava com a filha dela. Essas foram as palavras dela,
assim, com um tom muito preconceituoso (WILLIAM).

92
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro Eu sofri preconceito, sim, mas foi com a minha
coordenadora. Ela sempre falou comigo que eu não
servia [para a turma de] maternal, que maternal é mais
para uma figura feminina, mas eu sempre debati muito
com ela: “Por que? O homem também pode cuidar
de uma criança. O pai também pode cuidar de uma
criança e a professora não é mãe de uma criança, ela
é a professora”. A gente sempre bateu muito de frente
por conta disso. Eu sempre falei: “Quero dar aula para o
maternal!” [...]. E eu sempre falei para ela que eu gostava
[...]. Ela dizia que maternal é só para mulher. (FELIPE)

De acordo com essa narrativa exposta por Felipe, os


enfrentamentos e os dilemas da docência resgatam aquilo
que Freire (2009) advertiu: que o magistério é uma profissão.
Em outras palavras, o lugar de mãe, tia, tio, pai, não deve ser
confundido com o exercício da docência, pois nela ocupa
“responsabilidade profissional de que faz parte a exigência
política por sua formação permanente” (FREIRE, 2009, p. 13).
Logo, quando olhamos para os documentos, como a própria
LDB, RCNEI e as DCNEI, os mesmos expressam o valor do
magistério, que pode ser exercido por profissionais, que tanto
podem ser pais, mães ou qualquer outro papel social, mas
que não se perca a criticidade, a reflexão teórica, prática de
ser professor, professora. Deixa claro que não há restrição de
gênero ou qualquer sexualidade.
Ainda sobre o relato de Felipe, ao narrar o que ouviu
de uma coordenadora “maternal é só para mulher”. Ou seja,

93
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
associar a função de professor do maternal à figura feminina,
à maternagem (SANTOS; RAMOS, 2017), a coordenadora
buscou aliar a ideia de que a educação da criança pequena
deve ser restrita ao mundo ou à imagem do feminino. Desse
modo, questiona-se: cuidar e educar seriam tarefas delegadas
ao sexo feminino? Onde estariam os homens que desejam
e sonham trabalhar com bebês? O afeto e o cuidado de si
podem ser atrelados à figura masculina? Para essas questões,
Rabelo (2010) sinaliza:

Concordamos com a importância de uma distribuição


equilibrada de homens e mulheres na educação (assim
como nas demais áreas de trabalho) que garanta a
presença equitativa de mulheres em postos de comando
e em atividades consideradas masculinas, bem como
de homens em profissões consideradas femininas,
demonstrando que ambos os gêneros podem realizar
quaisquer atividades. Enfim, precisamos discutir
nossas definições de gênero e questionar aquilo que
é considerado masculino ou feminino em nossa
sociedade. (RABELO, 2010, p. 923).

De outra forma, nos deparamos com o olhar dos responsáveis,


que reforça a ideia de estranhamento, como já foi dito pelo
professor William, quando assim a mãe de uma criança sente
a necessidade de conhecê-lo. Isso corrobora a fala de Gustavo
e Manuela, responsáveis por uma criança que frequentou uma
turma de pré-escola, na qual havia um professor homem:

94
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro Eu cheguei até ir na escola para conhecer o tal professor.
Não vi nada de estranho, era um rapaz normal. Ele sempre
estava na porta quando as crianças chegavam (GUSTAVO)

Os pais ficaram meio assim, eles estavam preocupados


com o banho das crianças. [Diziam] será que o professor
daria banho nas meninas e nos meninos? Iria trocar
fraldas? Trocar de roupas? (MANUELA).

As pressões da família podem influenciar a contratação


do professor homem. No caso do professor Artur, as mães
impediram sua contração. A fala do pai que foi à escola
para confirmar se o rapaz era “normal” ou “anormal” está
diretamente relacionada à expectativa de performance da
masculinidade do professor. Na narrativa de Gustavo, um
rapaz normal seria aquele que apresenta uma performance
de masculinidade heteronormativa. Esse fato denota o
pavor das masculinidades dissidentes (SILVA JUNIOR;
BRITO, 2018), o medo da sexualidade do professor, dado a
associação da homossexualidade à pedofilia, que é um dos
motivos que dificulta a aceitação dos professores homens no
espaço infantil (RABELO, 2013). Essa afirmação sendo dita
por um homem reforça ainda mais o papel de homens como
vigias de gênero.
Ao mesmo tempo, destacamos a preocupação com o
banho, apresentada pela mãe que falou em nome dos outros
pais. Ela pode ser entendida a partir da preocupação com o
corpo da criança e o medo de que a mesmo seja tocado por

95
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
mãos que não estão relacionadas, em seu imaginário social, ao
ato de cuidar. Nesse caso, observamos um receio da família,
que pode ser interpretado até como falta de conhecimento do
trabalho que é realizado nas instituições de Educação Infantil,
cujo ato de cuidar e educar estão interligados (BRASIL, 1998a;
CORSINO, 2009; NUNES, 2009).
Contudo, quando esse profissional, na figura de
professor, consegue desenvolver seu trabalho, aprendendo,
ensinando e assumindo as especificidades de sua função
(FREIRE, 2009), as diferenças de gênero deixam de ser
a questão central, conforme nos mostra a narrativa de
Manuela: “Acho que quando fala em homem trabalhando
com criança os pais ficam assustados, mas, depois que
conhecem, percebem que não faz diferença”. Essas palavras
são ratificadas pelo professor Felipe, que, ao longo de sua
narrativa, afirmou que “a minha relação com as minhas
mães sempre foi muito tranquila. Foi muito tranquila
mesmo, elas conhecem meu trabalho”. Portanto, o processo
de confiança entre pais, professores e escola deve ser
uma construção diária. É um processo contínuo que não
possui um fim em si mesmo; nesse percurso o que vale é a
convivência e o diálogo, princípios fundamentais para uma
educação inclusiva.
Superar essa etapa, ou seja, ser aceito e respeitado
como profissional pela comunidade escolar, é o que Ramos
(2011) denomina como sendo um período probatório e
comprobatório, em outras palavras, aquele momento que
96
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
ele consegue provar para equipe diretiva e para comunidade
que, para além dos conhecimentos obrigatórios, ele possui
capacidade e habilidade de trabalhar com crianças e resolver
problemas.
Por outro lado, ainda sobre a questão do acolhimento e
respeito ao professor homem no exercício do professorado,
reconhecemos o quão é potente e necessário que se
desenvolva uma cultura, uma prática e uma política
inclusivas para esses que se sentem excluídos, ou que sofrem
discriminação devido ao seu gênero. Para tanto, sugerimos
que a equipe gestora, assim como toda a comunidade escolar,
façam discussões sobre esse tema, oportunizem debates,
reflexões com as famílias no sentido de provocar e propiciar
um espaço profissional cujo interesse seja a pluralidade
e a diversidade que ocupa esse lugar, como a defesa de
uma educação e docência para qualquer indivíduo, sem
restrição de cor, raça ou sexualidade. Essa ideia caminha
com a reformulação e produção de projetos pedagógicos que
possuam esse olhar cuidadoso; essa especificidade faz parte
da docência, principalmente quando se dá a inserção da
figura masculina nesse espaço.
Em diálogo com o exposto acima, defendemos o
argumento de que a construção de um projeto político-
pedagógico (VASCONCELOS, 2004) deve ocorrer com a
participação de todas as pessoas, no sentido de valorizar a
diversidade e a pluralidade de ideias, e assim romper com a
visão engessada que somente a mulher pode ser professora
97
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
de crianças, uma vez que esta possuiria uma maternagem e
prática dos cuidados (SANTOS, RAMOS, 2017).
Seguem as visões que nos chamaram atenção a respeito
desse assunto, e de sua legitimidade quando se constroem
projetos educativos que quebram o lugar da não aceitação,
abrindo-se a possibilidade do respeito, em que os homens
também podem educar/cuidar.

Os confrontos que se têm são aqueles que vão na


contramão do projeto pedagógico, quando as famílias
apresentam seus preconceitos, sua postura. Assim, você
sabe que pai ou mãe, quando vão discutir questões dos
filhos, muitas vezes têm uma postura meio agressiva.
Assim é a questão do patriarcado. Porém, sempre
apresentamos o PPP da escola e discutimos como
valorizamos a diversidade. (BEATRIZ)

Agora trabalho nesta creche. Lá é incrível! É um local que


nos acolhe muito bem, trabalha a diversidade e hoje me
sinto muito acolhido, tanto pelas crianças quanto pelas
famílias. Seja em uma fala, em um abraço, em um aperto
de mão. É importante acrescentar que o trabalho acontece
por conta de uma equipe que nos acolhe. (ARTHUR)

[...] Já na creche que trabalho o apoio da equipe gestora,


explicando que se eu tivesse que trocar uma fralda eu
ia fazer, se tivesse que dar banho eu iria dar, coisas que
anteriormente eu não fazia. Neste espaço eu não tive
nenhum problema, eu conheci outra realidade. Tive

98
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro formação continuada mais efetiva, no sentido de entender
o nosso fazer de cada dia, nossa prática [da docência] e os
saberes que precisamos saber para melhorar nossa prática.
Ainda existe uma luta muito grande por trás disso para
alcançar esses espaços e reverter essa visão engessada
dos papéis sociais, de que o homem pode fazer e do que a
mulher deve fazer. (WILLIAM)

A fala da gestora Beatriz destaca a importância da


organização da escola e da construção do projeto político-
pedagógico (VASCONCELOS, 2004) para enfrentar os
preconceitos e as questões apresentadas pelas famílias e por
toda a comunidade escolar, e suas respectivas resistências
em relação ao homem no magistério. Igualmente, destaca
a preocupação em valorizar a diversidade e, ao mesmo
tempo, indiretamente, problematizar as questões postas pelo
regime patriarcal. Afirmamos que é exatamente este regime
patriarcal que define os papéis do homem e da mulher, e
com isso não aceita esse homem trabalhando na Educação
Infantil, tanto em turmas de maternal como pré-escola.
Nesse sentido, as falas dos professores Wiliam, Felipe
e Arthur reforçam essa visão. Eles mostram que se sentem
acolhidos pela instituição, que possui um projeto político-
pedagógico no qual eles se sentem livres e acolhidos para
realizar as funções de professores de turma, até porque são
habilitados para tal, sem a preocupação com as expectativas
dos papéis de gênero. Assim, nos deparamos com a narrativa
do professor Felipe quando nos contam os desfralde.
99
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro [...] é muito gratificante, até mesmo quando a criança
entra com fraldas e no meado do ano já não tem mais
fraldas, já saíram [sic] das fraldas. E é muito gratificante,
ainda mais ver o desenvolvimento daquela criança, ela
entrou ali com dois aninhos. (FELIPE)

Outro aspecto que deve ser discutido e implementado


nas instituições públicas ou privadas, é que a formação
continuada deve estar atrelada ao desenvolvimento
desses profissionais. Isso para que ocorra uma melhoria
e aperfeiçoamento de sua prática pedagógica, dos saberes
que constituem e forjam a identidade profissional de um
docente, independente de atuar na Educação Infantil ou
Ensino Fundamental, pois a mesma deve estar vinculada a
todo processo formativo daqueles que desejam ou já exercem
um lugar no magistério. Rompe-se, com isso, a ideia de que
um professor ou professora é apenas um transmissor de
conteúdo, como nos apresentou Cruz (2019). Esse profissional
está sempre em busca de conhecimento, mas isso só será
possível com a existência de espaços de formação continuada.

Quando eles chegam e... é muito interessante isso.


Eles chegam jovens, a sua maioria. Quando não são
jovens, são pais também. São mais velhos, têm mais
experiências. E aí, com uma amorosidade incrível,
com seus talentos. Pois bem, muitos deles estão em
formação, na graduação, têm muita gente na área da
educação física, na área de música. E aí, eles levam

100
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro todo esse talento pra dentro da Educação Infantil. Eles
trazem propostas inovadoras de recreação, música. Eles
levam instrumentos musicais. E essa ideia daquele que
vai ser a referência – “Olha lá, hein? Aquele tio vai te ver
-, ele [aluno] acaba sendo a referência daquele tio, que
vai ser mais legal. Daquele mais querido, daquele que a
gente vai brincar, cantar. (ROSELENE)

5. Fim? Novos começos


A frase que emoldura o título do texto - “defendo que existam
mais homens, mas não é fácil” (ROSELENE)- foi extraída
da narrativa de uma das gestoras entrevistadas. Reflete o
que acreditamos como professores e pesquisadores: que a
educação seja um espaço do masculino e do feminino, e que
os homens possam atuar nesse espaço sem restrições ou
preconceito. Nesse sentido, a questão que esteve implícita
ao longo do texto foi como os professores homens estão
sendo recebidos no universo da Educação Infantil, e como
eles estão conseguindo desenvolver seus trabalhos. Para tal,
buscamos narrativas de professores, gestoras e responsáveis
que pudessem ampliar esse debate.
De um modo geral, as narrativas mostraram que as
dificuldades iniciais enfrentadas pelos docentes estão
relacionadas às questões de gênero e masculinidades em
espaços dominados pela feminilização e expectativas de
maternidade. Porém, todos(as) os(as) entrevistados(as)
destacaram as possibilidades de resistência, de luta para

101
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
ocupação desses espaços. Com isso, conseguimos perceber
que as questões de gênero não são determinantes para
o desenvolvimento do trabalho na Educação Infantil. As
relações entre professor(a), aluno(a) e comunidade escolar
foram construídas na base do diálogo, do conhecimento e
da prática pedagógica.
Contudo, é relevante destacar que o acolhimento
da equipe diretiva, a construção do projeto político-
pedagógico, a preocupação com a formação continuada,
foram fatores que contribuíram para que esses professores
pudessem desenvolver seus trabalhos com qualidade. A
gestão escolar tem papel fundamental para a desconstrução
desses preconceitos estabelecidos, cabendo a ela mostrar a
comunidade escolar que os sexos masculino ou feminino
não são de grande relevância – todos são seres humanos.
O que importa nesse aspecto é o trabalho desenvolvido e
o cuidar/educar das crianças para viverem a pluralidade
e a diversidade nas escolas, nas instituições de Educação
Infantil e por toda a sua vida. Homens na educação não
são seres invisíveis, mas sujeitos que também contribuem
para a educação brasileira, para além de um gênero, uma
linguagem, um discurso que os ocultam ou até mesmo ficam
escondidos no meio de tantas mulheres. Apoiamos homens e
mulheres na educação. Estamos na defesa por uma educação
de todos e todas.

102
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro
Referências
ABREU, Jânio Jorge Vieira de. O curso de pedagogia em instituições
de ensino superior de Teresina – Piauí, Brasil: incluindo ou excluindo
os homens? – Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação,
Araraquara, v. 13. n. esp. 2, p. 1518-1534, set., 2018. Disponível em: <
https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6683086> Acesso em:
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AGUIAR, Jonathan. Uma escola para todos: homens no magistério
também ocupam este espaço. Crítica Educativa, (Sorocaba/SP), v. 5, n.
2, p. 59-72, jul./dez.2019. Disponível em: <http://www.criticaeducativa.
ufscar.br/index.php/criticaeducativa/article/view/435/476 > Acesso em: 11
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BASTOS, Liliana. Contando estórias em contextos espontâneos e
institucionais: uma introdução ao estudo da narrativa. Caleidoscópio,
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www.academia.edu/21840738/Contando_est%C3%B3rias_
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BRASIL. Diretrizes curriculares nacionais para a educação
infantil. Ministério da Educação, Brasília: 2010. Disponível
em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_
docman&view=download&alias=9769-diretrizescurriculares-
2012&category_slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 22
de maio de 2020.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Brasília: 1996.

103
“Defendo que existam mais homens, mas não é fácil” Jonathan Aguiar, Paulo Melgaço da Silva Jr. e Matheus Pinheiro Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>
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BRASIL. Referencial curricular nacional para a educação infantil.
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107
interferência cromática sobre foto de Ricardo Matsukawa | temqueter.org
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

A LITERATU RA
INFANTO-
JUVENIL LGBT:
CONSTRUINDO
IDENTIDADES
Anna Claudia Ramos
109
COMO INDICAMOS NA APRESENTAÇÃO DESSE
TRABALHO, a multiplicidade de vozes nesse campo de
estudos é imensa e, atendendo a essa polifonia e também
a diversidade de linguagens que esse formato oferece,
apresentamos Anna Cláudia Ramos. Nesse encontro,
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

conversamos sobre a trajetória pessoal e profissional dessa


escritora infanto-juvenil que transitou pela escola básica,
namorou com a formação de jovens e se encantou com as
possibilidades transformadoras que a literatura oferece. Para
saber mais, basta clicar na imagem e acessar esse bate-papo.

A LITERATURA
INFANTO-JUVENIL
LGBT: CONSTRUINDO
IDENTIDADES
Anna Claudia Ramos

110
Cláudia Reis - Olá! Bem-vindo, Eu começo a minha trajetória
bem-vinda, bem-vinde. Você em um belo dia na minha
está acessando aqui o conteúdo adolescência, eu estava ainda
exclusivo do nosso ebook. Hoje, no segundo grau, acho que era
nós vamos conversar com Anna segundo grau naquela época, e no
Cláudia Ramos, escritora e meio do ano eu virei pra minha
professora, que sempre trabalhou mãe e falei “mãe, eu quero ser
voltada para a área da infância e professora!”, ela virou pra mim e
da adolescência. Hoje estamos perguntou “como assim minha
aqui com Diógenes Pinheiro, da filha?” “Eu quero ser professora!”.
UNIRIO, coordenador do projeto. E aí eu fui buscar então, naquele
Queremos começar, Anna, meio de ano, uma escola de
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

primeiro agradecendo muito curso magistério, que ainda se


a sua presença, e em segundo chamava normal na época, isso eu
lugar pedindo que você faça a sua estou falando de 1982, e fui fazer
apresentação. Conta para gente curso de magistério. Durante o
um pouco dessa tua trajetória magistério eu já entendia, e já
profissional, de professora, queria trabalhar com literatura
escritora, e sempre envolvido com pra infância, então tudo que me
a infância e com a adolescência. caía nas mãos de livro eu lia, do
que havia naquele momento.
Anna Claudia – Bom, primeiro, Mas eu preciso dizer que
tudo bom, tudo bem pra todos, tudo começou antes disso né?
boa tarde, né? Nesse momento, Na verdade, porque a minha
mas pra quem assistir em outro paixão pelos livros, a minha
momento, bom dia, boa noite paixão pela literatura começa na
– atualmente a gente tem que minha infância – eu sempre fui
dar todos os bons, a gente tá na uma criança muito inventadeira,
internet, nunca sabe quem vai uma criança que tinha nos livros
assistir e em qual hora. Agradecer a possibilidade de viver outras
a Cláudia e Diógenes por esse vidas. Os livros alimentavam
convite para estar aqui nessa muito a minha história e a
participação nesse ebook. Vou minha trajetória. E eu sempre
contar um pouquinho como que respeitei muito a criança, então
começou minha história. sempre quis trabalhar o livro,

111
com criança, e a partir daquele usava essa expressão sem nem
momento que eu escolhi que eu pensar que um dia a gente ia estar
queria ser professora, também falando de plataformas, né? E a
com ser professora, sobretudo gente estaria numa plataforma
para crianças e jovens. virtual aqui, hoje, nem sonhava
Acabo o curso de magistério, com isso.
vou fazer faculdade de Letras. Então o trabalho de Marina na
No meio do ano do primeiro ano biblioteca era muito libertador, e a
da faculdade de Letras, eu então gente trabalhava numa biblioteca
descubro que havia um seminário, ali na Men De Sá, na Lapa, num
um Congresso na verdade, de momento em que a Lapa era
literatura infantil juvenil, era o bem diferente do que é a Lapa
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

primeiro congresso organizado de hoje, então foi um espaço de


pela Fundação Nacional do Livro muita abertura. E fui trabalhar
Infantil-Juvenil, e eu fui fazer também, no ano seguinte, na
esse Congresso. Ao fazer esse Fundação Nacional do Livro
Congresso, me apaixonei, me Infantil-Juvenil porque eu fui
encantei profundamente, mas aluna da Eliana Yunes, na PUC,
eu conheci Marina Quintanilha na cadeira de Literatura Infantil.
Martinez, que, naquela ocasião E Eliana, então, quando ela não
- isso a gente tá falando de 1985, podia dar aulas, quem dava aula
é importante datar – Marina já era o Luiz Machado, escritor, e
trabalhava com biblioteca infantil ela pediu que ele buscasse duas
e com o conceito de espaço estagiárias na sala, pra trabalhar
vivo. Então eu fui trabalhar com na Fundação Nacional do Livro
Marina um ano depois que eu me Infantil, onde ela era uma das
encantei com a apresentação que diretoras na época. E lá fui eu,
ela fez e pedi pra ela “Marina, então trabalhava na Fundação,
quero trabalhar com você”, e fui na Biblioteca, estudava, era uma
trabalhar com ela na biblioteca. loucura a vida. Então comecei
Então eu já comecei ali, naquele muito cedo, trabalhando com
momento, a trabalhar com pessoas que já pensavam a
biblioteca, com esse lugar de literatura numa profundidade
“plataforma de voo” – o livro era muito grande, muito à frente,
a “plataforma de voo”! A gente são pessoas que hoje – Marina já

112
não está aqui mais entre nós – da construção identitária desse
mas deixou plantado em muitas sujeito. E quando você traz
pessoas esse trabalho de biblioteca pra gente essa dimensão da
infantil como um espaço vivo. identidade livre desses seres, acho
Então a minha trajetória, ela que é bem a pegada que a gente
nasce daí, nesse contato com quer pensar aqui.
livro, com criança, com biblioteca,
e com biblioteca sendo esse Anna Cláudia – Se tem uma coisa
espaço de liberdade - não havia que, vamos dizer assim, me irrita,
placa de silêncio na biblioteca vamos usar essa palavra mesmo,
infantil Manoel Lino Costa. Então porque a palavra é essa – é
era muito interessante, isso era quando as pessoas olham pra uma
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

um divisor de águas, com certeza, criança ou pra um adolescente


porque se eu não tivesse tido essa imaginando-os como um vir
formação, talvez o meu trabalho a ser, sabe? É a criança que vai
como escritora, e como professora ser jovem, e o jovem que vai ser
depois, não tivesse esse olhar adulto. Não! A criança é! Ela é
tão livre, e tão atento ao que é a completa pra idade que ela tem,
criança, ao que é a literatura pra o jovem é completo pra idade
criança, e o que é o espaço na que ele tem. Se não a gente fica
criança. Isso é muito importante eternamente nessa incompletude
a gente dizer, que não biblioteca, e não vive o momento, não
a criança ela tinha vez e voz, e até protagoniza aquela infância, não
hoje a gente ainda tá batalhando protagoniza aquela adolescência.
pra criança ter vez e voz, né. Estão sempre comparando o
jovem com “Quando você crescer
Cláudia Reis – Muito bacana você não vai mais ser assim” ou
quando você fala essa coisa do a criança “quando você crescer
protagonismo da criança e do você não vai mais fazer isso”. Isso
adolescente, do jovem, no caso, me dá muita agonia, porque as
né, Anna Cláudia? Porque parece crianças são seres completos, para
que esse aluno, esse aluno “ser aquela idade que elas têm! Assim
sem luz”, esse ser que precisa como nós adultos somos completa
ser iluminado, parece que se nessa idade. Eu não sou completa
confunde um pouco a história pra 70 anos porque eu não cheguei

113
nos 70 anos. Eu sou um ser depois, eu já conheci Marina e fui
incompleto, mas ao mesmo tempo trabalhar com ela na biblioteca,
eu tenho muito a aprender ainda porque aí tinha uma flexibilização
na vida. de horário, e eu consegui
encaixar junto com meu horário
Diógenes Pinheiro – Queria fazer de faculdade, era um quebra
uma pergunta. Aí você virou cabeça pra montar tudo isso,
professora, não é? Queria que esses horários todos. Continuei
você falasse um pouquinho desses trabalho na Fundação Nacional
anos iniciais da docência. Porque do Livro Infantil-Juvenil, na
à docência é uma profissão que Biblioteca, teve um momento que
nos força muito a olhar pro outro, eu tive que parar com a biblioteca,
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

olhar a diversidade. Porque você ficar só com a fundação e com a


chega numa sala de aula, você vê faculdade. E depois quando eu me
um universo na sua frente! De formei, e eu tive filho cedo, vamos
trajetórias, de quereres, de saberes dizer assim - hoje as pessoas
diferentes, e tal. E queria que você falam que é cedo, naquela época
falasse um pouco como que foram era meio que comum ter filho
seus primeiros anos de docência, com aquela idade.
e como é que nasceu o desejo da Quando o meu filho nasceu,
escrita em você, como é que você o meu salário não pagava a creche
virou escritora. da criança, então imagina, com
23 anos, deslanchando uma
Anna Cláudia – Ok, são duas carreira, trabalhando da Fundação
coisas aí pra gente falar, vou Nacional do Livro Infantil-
pegar uma de cada vez. Quando Juvenil, ali com grandes nomes
eu me formei professora eu da literatura infantil e juvenil,
acabei indo dar aula numa escola tendo que fazer uma parada.
em Santa Tereza, pegar uma Foi muito difícil, mas eu optei
turma de Jardim 4 na época. por parar e cuidar do meu filho
Mas logo na sequência, com os naquele momento. E quando ele
horários da PUC, isso ficou muito foi pra escola, aí eu voltei pra esse
complicado e eu tive que parar. Ai ambiente escolar, só que eu voltei
na sequência, agora eu não vou de uma forma muito diferente,
me recordar se um ou dois anos Diógenes, porque eu não voltei

114
pra uma sala de aula como trabalhar com literatura infantil-
professora regente, mas eu criei juvenil, ou trabalhar para infância
um projeto pra escola onde ele foi e para juventude, vamos dizer
estudar, para trabalhar dentro da assim. Isso era um diferencial,
biblioteca na escola, dando aulas porque eu era uma professora que
de literatura infantil juvenil, então eles chamavam de “professora
isso foi bárbaro! Porque me dava especializada”, vamos dizer assim.
uma liberdade profunda, porque Isso me dava uma liberdade
foi um projeto que eu criei, eu profunda, porque eu poderia
desenvolvi, o colégio comprou a trabalho com os livros, e aí eu
ideia, me dava toda a liberdade escolhia pra cada turma aquele
do mundo pra eu trabalhar com livro que tinha a cara de cada
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

os livros que eu desejasse, eles grupo, sabe? Cada livro era muito
tinham uma confiança muito selecionado, era muito escolhido,
profunda no meu trabalho. era muito pensado. Tem uma
Então eu comecei a dar aulas do história que mais pra frente eu
maternal – depois começou a conto, que foi de um grupo de
ter um “maternalzinho”, que as oitava série, nono ano, que um dia
crianças chegavam lá com um me convidou pra debater sobre
ano e oito meses – até o que hoje temas polêmicos.
seria o 9º ano, na época ainda era Mas antes de eu contar essa
oitava série. Então eles tinham história, acho que vale responder
um tempo de aula comigo, e como é que a escritora foi
eu era chamada de “professor nascendo. Porque já trabalhava
de biblioteca”, era “aula de com oficinas literárias, né.
biblioteca”, era muito engraçado. Marina, que eu falo que foi minha
Teve uma bibliotecária que fez fada madrinha, todos os cursos
todo um espaço de reorganização que ela ia dar, ela levava a turma
daquele espaço, que estava mais jovem que trabalhava com
abandonado na escola, na época. ela. Então ela me levou pra dar
E durante 10 anos eu fiquei nesse uma oficina literária com ela,
colégio, e também em outros quando eu ainda nem tinha livros
colégios, com esse trabalho em publicados, e quando essa turma
específico. Então o meu trabalho acabou nesse espaço, as pessoas
como professora sempre foi quiserem continuar comigo,

115
e vieram pra minha casa ter a professora foram seguindo lado
oficinas literárias comigo aqui a lado, até que um dia a escritora
na minha casa - ainda com meu ficou muito espaçosa, começou a
filho bebezinho, antes de eu ir viajar muito, a precisar de tempo.
trabalhar no colégio pra onde ele Aí eu larguei a escola como uma
foi na sequência. E de repente eu professora regular - mas uma
vi as minhas alunas começarem a vez professora você não deixa de
publicar em boas editoras, a partir ser - e hoje no meu trabalho como
do trabalho que eu fazia. Então escritora, eu visito muitas escolas.
comecei a pensar “Opa, se eu estou Esse ano não, né, porque a gente
ajudando tanta gente a criar suas tá no meio da pandemia, mas eu
histórias, a escrever, a melhorar, viajo o Brasil de ponta a ponta
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

e a publicar, está na hora de eu visitando escolas, nesse contato


fazer isso comigo”. E escrever já com os leitores - com as crianças e
era o desejo da mais tenra idade, com os jovens. E isso é incrível, é
assim. Na infância eu descobri uma troca muito profunda.
que eu queria ser escritora, aos
10 anos eu tive certeza absoluta, Cláudia Reis - Tem uma coisa que
quando eu li a bolsa amarela, da você traz aí na sua trajetória que
Lygia Bojunga. A importância dos é muito interessante. Primeiro é
livros na formação dos escritores, essa relação que você estabelece
isso é fundamental, a história de com os seus leitores, que eu acho
cada um. sensacional - não à toa você tem
Aí então eu larguei a turma nome em biblioteca espalhada por
daquele momento e falei “gente, ai né? As crianças ficam muito
eu preciso de um tempo”, aí envolvidas, adolescentes, etc. E
as pessoas continuaram, já essa questão que você já trouxe
estavam comigo há dois anos, e de alguma forma, que é trabalhar
eu fui correr atrás de lançar meu essa construção identitária
primeiro livro. Aí eu lancei meu desses sujeitos. Desses sujeitos
primeiro livro, que se chama autônomos, desses sujeitos que
“Para onde vão os dias que tem uma própria história. E você,
passam”, que eu lancei em 1952, vez ou outra, toca nas questões
e de lá pra cá, o meu trabalho de construção da família,
nunca mais parou. Aí a escritora e construções das identidades, e

116
atualmente você tá trabalhando não tinha essa história, que eu
um tema mais direcionado achava um absurdo brincadeira de
pro jovem, que é a questão da menino e brincadeira de menina.
sexualidade e desse leque das Só que eu sou da década de 60,
sexualidades. então na época... se hoje isso ainda
Aí queria que você falasse tá em voga, imagina na década de
um pouquinho o que te motivou 60, isso era infinitamente pior. Só
a trazer esses temas pra dentro que pra minha sorte - aí acho que
do universo infanto-juvenil. Você as histórias de cada um contam
acabou de falar uma frase que pra muito – eu nasci numa família
gente é muito importante: “Tá aí que respeitava brincadeira de
a importância do livro”. Quando criança, então eu podia brincar do
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

você se depara com Lygia Bojunga que eu quisesse.


e vocês criam esse diálogo, né, Eu conto sempre a história
essa relação dialógica entre o que eu tinha uma mala de
autor e o leitor, independente da bonequinhas e uma mala de
faixa etária. carrinhos... era uma malinha, não
Aí eu queria que você falasse uma mala gigante. E o meu pai e
um pouquinho sobre isso, como a minha mãe, eles me deixavam
é que você traz esses temas pra brincar, então eu tinha carrinhos
dentro da sua obra, e por que que porque eu brincava com o meu
isso aconteceu? Foi de forma não irmão, e eu também tinha um
pensada? Ou você pensou sobre time de futebol de botão, que eu
esse assunto? Você pode dar uma reivindiquei ter um bom porque
palhinha pra gente? o meu irmão me convidava pra
fazer torneio com ele, e ele me
Anna Claudia – Ah, com certeza! dava um time reserva dele, e
Eu vou emendar, Cláudia, e vou eu sempre perdia com aquela
contar a história que aconteceu porcaria daquele time reserva,
no colégio, porque acho que as e eu queria um que fosse do
duas coisas, elas caminham lado mesmo nível, pra poder competir
a lado. Na verdade, tudo começou de igual pra igual com ele. Então
na minha infância, porque eu os meus pais me permitiam
fui uma criança que gostava de brincar. Eles não achavam que se
brincar, e pra mim brincadeira eu brincasse de carrinho... eles

117
não tinham medo que se meu aprendam a respeitar o jeito de
irmão brincasse de boneca, ele ser cada um, independente do que
ia se tornar homossexual, ou se isso seja, sabe?
eu ia me tornar homossexual Então eu comecei desde o meu
porque eu brincava de carrinho primeiro livro, “Para onde vão os
ou futebol. E pra eles tanto fazia dias que passam”, já falando do
quanto tanto não fazia, eles direito de você se entender. Então
queriam que os filhos viessem a menina do livro se perguntava
suas potencialidades. Então é “Quem eu sou?”, “De onde eu
óbvio que isso é um denominador vim?”, “Que que eu estou fazendo
na minha vida, porque eu cresci aqui?”, que são as perguntas
num ambiente onde a gente tinha clássicas que as pessoas fazem
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

que respeitar pessoas porque elas um dia. E eu, muito cedo - você
eram pessoas, elas eram gente, conhecesse livro – “Sempre por
independente de gênero, cor, perto”, que é um livro que traz
classe social. Então é obvio que uma personagem lésbica. Porque
isso tudo está dentro de mim, naquela época que uma editora
e quando a gente vai escrever, me solicitou que escrevesse sobre
quando um escritor ou um artista esse tema, eu fui ler várias coisas,
- vamos colocar num âmbito e tinha várias coisas sob o ponto
até maior - opta por seguir um de vista masculino, então eu
caminho na arte, a sua arte é um resolvo trazer o ponto de vista
reflexo do que está dentro dele, das meninas pra esse livro – isso
eu não tenho a menor dúvida a gente tá falando de 1999, então
em relação à isso. Então se isso acho que o livro está com 20 anos.
já fazia parte da minha vida, isso Na sequência, nos anos 2000, vem
entra na minha obra como uma o “Todo mundo tem família”, e aí
coisa comum, simples, do meu vem uma curiosidade: eu descobri
cotidiano. Então é obvio que eu que o “Sempre por perto” não
vou escolher falar sobre esses entrava nas escolas por conta do
assuntos, porque eu quero que tema, de ter uma personagem
as pessoas aprendam a respeitar lésbica, isso era quase que, enfim...
as crianças, eu quero que as era quase não, era portas fechadas
pessoas aprendem a respeitar os pro livro, com raríssimas exceções
jovens, eu quero que as pessoas o livro foi adotado naquela ocasião.

118
Então quando eu quis fazer de a gente ser, eu diria isso.
o “Todo mundo tem família”, e Porque diferente todo mundo é
eu queria falar sobre diferentes diferente.
famílias, sem fazer juízo de valor E aí o caso que eu gostaria
em absolutamente nenhuma, eu de contar aconteceu com a turma
descobri que se eu colocasse, e de nono ano, que é o que estaria
vamos combinar que esse livro valendo hoje em dia. Eles me
tem 20 anos, tá? Se eu colocasse, chamaram e falaram: “Professora,
20 anos atrás, que duas mulheres a gente queria falar sobre temas
podiam ser uma família, dois polêmicos e a gente escolheu
homens, ou qualquer família um você” “Mas por que eu? Eu só
pouco mais ousada além disso, tenho um tempo de aula com
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

ele não entraria na escola. Então vocês por semana, porque vocês
eu driblei isso escrevendo o não chamam um professor de
seguinte: “quando o casamento português, que tem 5, 6 tempos?”
não dá certo cada um vai pro aí eles falaram “Ah não professora,
seu canto, e aí o pai e a mãe tem que ser você, porque você é
pode ter novas namoradas ou a única professora que não fica
namoradas”, e cabia tudo aqui, de nhe nhe nhe com gente.”. Na
sabe? Cabia o pai ter namorado, época não existia mimimi né,
a mãe ter namorada, uma leitura talvez se existisse era a expressão
que fica ali nas entrelinhas. Hoje, que eles teriam usado. Eu falei
talvez eu pudesse, se a editora “o que é ficar de nhe nhe nhe,
desejasse reeditar esse livro pra gente?” “Ah professora, você é a
uma nova edição, eu já poderia única que fala sobre a vida como
colocar explicitamente todas a vida é, os outros ficam meio que
as constelações familiares que enrolando, não vão no assunto”.
estão aí. Mas o livro traz isso, Aí eu me senti muito horada, e
e ele trazia já um encarte - era começamos uma lista, peguei um
pra crianças brincar e montar a papel, e começamos a listar o que
sua própria família. Então isso que era polêmico - sexo drogas e
uma característica minha: de rock n roll, daí pra todos os cantos
trazer esse olhar do diferente, possíveis e imaginários. E cada
esse olhar nem do diferente, esse item a gente começou a criar sub
olhar das múltiplas possibilidades itens. Um menino então, no dia de

119
discutir sexualidade, ele levantou banho e ficava aquela coisa de
a mão - levantou a mão quase que implicar né: “olha o tamanho do
não querendo aparecer - e disse seu peito”, “o tamanho do seu
“professora, a gente pode falar pênis”, - “ah professora” – “Ah
de homossexualidade?”, tadinho, gente, vocês não falam isso? Se é
quase que ele engoliu a palavra. pra parar de nhe nhe nhe vamos
“É claro”, e todo mundo olhou pra falar sério! Vocês não ficam
cara dele, aí eu falei: “olha, se vai implicando um com o outro? Com
começar com isso antes da gente isso, com aquilo?” Aí eles “ah, é
começar, eu nem começo, eu paro verdade”. “Então um belo dia vaza
aqui”, “não professora, está tudo uma informação que uma menina
bem, tá tranquilo”. é lésbica e que um menino é gay.
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

Aí no dia de trazer esse tema Aí a minha pergunta pra vocês é:


eu resolvi contar uma história. “vocês continuam tomando banho
Eu falei: “se eu perguntar se na frente dessa menina e desse
alguém aqui é preconceituoso, menino?” “Ah, não né professora!
obviamente que eles diriam que Claro que não!” aí eu falei “ah,
que não”, então “gente, vamos então preconceituosa é minha
pensar numa história!”, e aí avó, né? Caíram as máscaras?
eu falei assim “que time vocês Beleza, então agora a gente pode
gostariam de jogar? Os meninos começar a conversar sobre o
e as meninas” eu queria uma assunto”. E aí foi bárbaro, porque
coisa pra fazer bem pra botar as máscaras já tinham desabado,
eles pra pensar. Os meninos iam e a gente começou a pensar “Por
jogar futebol, as meninas iam que que você vai de deixar de
jogar vôlei. Eu combinei que eles tomar banho se você fazia isso
já jogariam há cinco anos - eles há cinco anos? Você acha que só
combinaram – que cinco anos porque ele é gay ou porque ela é
era um tema suficiente pra ter lésbica ela vai começar a dar em
muita intimidade. Então durante cima de você?”
cinco aqueles meninos e aquelas
meninas jogavam nos seus Diógenes Pinheiro – Eu acho que
times, numa escola que tinha um muito legal essa forma como você
ginásio, e um banheiro coletivo. negocia com os valores, e até com
Acabava o jogo, eles iam tomar os preconceitos pra poder chegar

120
nas pessoas. Eu acho que isso e-mail -, então muitas vezes a
é uma tremenda sensibilidade. editora... a editora recebia as
Eu queria que você ref letisse cartas e me passava para eu ler.
um pouco sobre isso, porque Então as escolas elogiando o livro,
que um dos temas que percorre mas com receio de adotar esse
nossa pesquisa é justamente livro na escola. Como eu ouvi
esses preconceitos velados, que uma vez um jornalista que me
as vezes não são explicitados, pergunto: “Ah Anna, você não
mas que tão presentes, tanto no acha que está induzindo os jovens
ambiente de trabalho, quanto no a se tornarem homossexuais com
ambiente escolar. seu livro?” Aí eu pensei “que
Eu queria que você falasse um engraçado né, ninguém pergunta
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

pouco desse ambiente dos anos isso pra um autor de um romance


2000. Você falou um pouquinho policial, se ele estava induzindo
aqui né, mas sobretudo, como o leitor a se tornar um assassino
que você sentiu, por exemplo, em potencial”. Que besteira
quando você fala no “Sempre fazer essa pergunta, porque isso
por perto”, que foi um livro que não cabe, ninguém vai se tornar
não conseguiu entrar. Como que homossexual porque leu um livro,
era essa não entrada? Chegaram porque tem um personagem
a falar com você, ou era uma homossexual, transexual, seja o
interdição tolamente velada? que for. E se você se tornar, e o
Porque isso interessa. livro ajudar, que bom, alguém só
vai fazer alguma coisa inspirada
Anna Claudia – Acho que as duas em algo que viu porque ele se
coisas, Diógenes, eu poderia dizer. traz aquilo dentro de si. Então se
Era um momento que primeiro as alguém traz ali um assassino em
pessoas olhavam pra minha cara potencial em escondido e aquele
querendo entender porque que livro deflagrou aquilo, que que a
eu tinha escrito esse livro, era um gente vai poder fazer? Agora, se
momento em que as pessoas tinha meu livro puder ajudar um jovem
medo de adotar esse livro. As a se identificar, eu acho isso
vezes eu recebia cartas - porque perfeito, porque é o papel do livro
naquela época eram cartas, a ajudar a achar os seus pares, se
gente mal tinha começado a ter sentir acolhido.

121
Então naquele momento foi normal, uma pessoa comum, uma
muito velado, como foi muito pessoa que trabalha, uma pessoa
velado eu não poder dizer quem que luta pela educação, que luta
eu era exatamente, sabe? Foi pela educação de qualidade para
um momento em que eu já era todo mundo, uma pessoa que é
separada do pai dos meus filhos, voluntaria, que faz um monte de
foi um momento que eu me projetos sociais.
apaixonei pela primeira vez por Então, eu acho que a gente
uma mulher, foi um momento tem que falar, sabe? Pra que
que se eu falasse isso na escola isso não seja mais velado, para
era muito complicado, porque eu que as pessoas não sofram
não sei como seria a aceitação, eu mais, e para que a gente acabe
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

precisei que anos se passassem com esse preconceito. Ainda


pra que meu me sentisse segura vai levar muito tempo, acho
pra falar isso. É claro que se as que não vai ser agora, mas
pessoas me perguntassem eu acho que essa pandemia tá
não mentia, mas também não trazendo esse momento ímpar
ficava falando abertamente. Hoje de transformação moral de cada
eu entendo que é preciso falar um. E moral não tem nada a ver
abertamente sobre isso, porque com moralismo, de moral no
eu acho as pessoas têm que parar sentido da ética, de você fazer
de discriminar por questões o que é correto, e aí você ser
de gênero ou de raça, de classe homossexual, transexual, qual
social. Porque caráter, ou você a diferença que isso faz vida de
tem ou você não tem, sabe? Então, alguém? Então deixar de acolher o
eu acho que o exemplo de cada outro por isso, deixar de contratar
um deveria bastar, sabe? Acho que alguém para um trabalho por
hoje, ter medo de falar quem eu conta disso, é você não ter um
sou porque o meu livro poderia mínimo de entendimento do
deixar de ser adotado numa que é humanidade. Então acho
escola, seria deixar de primeiro que, lá nos 2000, em 99, né,
de deixar de ser quem eu sou, e quando “Sempre por perto” foi
de mostrar pra todas as pessoas lançado, era infinitamente mais
que talvez ainda não entenderam complicado, porque eu acho
que: olha só, a Anna é uma pessoa que a gente sofria num silêncio

122
maior. Hoje, mesmo que exista o o que a gente viu nesses anos
preconceito, mesmo que tudo isso 2000, os anos 2000 foram
ainda exista, a gente tem como muito intensos no sentido de
gritar, como falar publicamente, conquistas de identidade. Só que
como se ajudar, como estar eu estou com uma sensação muito
compartilhando como a gente estranha, eu particularmente
está fazendo aqui agora, como não estou muito otimista nessa
tantas lives então sendo feitas, pandemia, porque a gente perdeu
e tantos livros sendo falados. uma dimensão fundamental dessa
E hoje, podendo ser lidos fora afirmação identitária, que era
do ambiente da escola, porque ocupar espaços na cidade, espaços
ele circula no ambiente da nas ruas, e tal.
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

internet, pra que a gente aprenda E eu queria que você falasse


a trabalhar com acolhimento - um pouco desse seu lugar de fala,
acho que a palavra é essa, sabe? como é que você viu esses avanços
Acolher a humanidade, acolher dos anos 2000 em termos de
o direito do outro ser. E eu acho novas identidades, afirmações,
que quem combate, no fundo, no reconhecimento – inclusive
fundo, tem medo de viver as suas das famílias, acho que você
próprias escolhas, sejam lá quais adiantou um tema que só vai ser
elas forem. tematizado com força agora final
dos anos 2000 – e de fato não é
Diógenes Pinheiro – Eu só queria falado, os arranjos familiares,
comentar que eu gostei muito de homo afetivos. E eu queria
você usar a palavra acolhimento, você falasse como você viu essa
porque como eu falei que eu década de avanços, e de repente
trabalho com políticas de inclusão, a gente começa a ver retrocessos,
eu chamava esse primeiro retrocessos... a gente andou ou
ciclo de políticas inclusivas de não andou? Ou nada será como
“acesso e permanência”, e esse antes, de fato?
segundo ciclo que, que trabalha Anna Claudia – Olha... essa
essas demandas mais sutis de pergunta é difícil, mas vamos
identidade, eu tenho chamado lá. Eu acho que nada será como
de “políticas de acolhimento” antes porque a vida não anda
justamente por esse caráter. E pra trás, né? Ela anda pra frente.

123
O meu lado otimista na vida que eu não consigo gostar dele?”
prefere pensar assim, sabe, que e o “Por que que eu não consigo
parece que a gente está tendo um gostar dela?”, nesse momento, no
retrocesso. Eu tenho refletido, formato em que ele vem. Porque
isso ainda não é uma questão esse livro, ele teve uma edição
fechada. Eu tenho refletido sobre anterior só com esse conto. Era
esse assunto, eu não sei se é um de uma ONG, então ele não teve
retrocesso ou se tudo isso que uma edição comercial, e agora ele
parece um retrocesso sempre vem com um novo formato, ele
existiu, só que estava escondido, é escrito por mim pelo Antônio
e agora tá pipocando, tá vindo à Schimeneck, tem um projeto
tona, eu acho que esse momento gráfico da Raquel Matsushita, e
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

as pessoas tão mostrando que elas vai ser editado pelo SENAC.
têm de melhor e de pior, sabe? A gente resolveu fazer esse
Então acho que ante essas livro nesse momento exatamente
coisas estavam escondidas pra ser resistência e marcar nosso
embaixo do tapete, e agora a lugar de fala, sabe? Porque o
gente está levantando o tapete. Antônio escreveu o “porque que
E aí, puf, explodiu. A gente tá no eu não posso gostar dele?” e eu
momento da explosão para poder “porque que eu não posso gostar
ter um momento de limpar isso dela?” e cada um escreveu mais
tudo, e a gente chegar numa nova um conto, então é um livro com
era, numa nova etapa. Eu prefiro quatro contos. Mas o que ele traz
pensar dessa forma. de diferente nesse momento,
É claro que a gente está aí nessa edição? Depoimentos, de
vivendo retrocessos, mas que eles diversas pessoas. De diversas
vão passar, não é há mal que dure pessoas LGBT+, de mães da
pra sempre, sabe? Então acho que diversidade, de pessoas de
a gente mais do que nunca precisa diferentes religiões, trabalhando
ser resistência, fazer o que a gente com a questão do acolhimento,
faz, dar o testemunho, sabe? para que o jovem entenda que ele
Por isso eu tenho falado sobre tem um espaço de ser acolhido,
a minha vida e sobre a minha e que mesmo que ele não seja
história, por isso lançar o livro na sua família, onde ele pode
que a Claudia citou, o “Por que procurar uma ajuda, onde ele pode

124
procurar os seus pares, porque tenho visto na internet, tenho
eu acho que já deu essa história acompanhado de perto, em vários
das famílias não acolherem as perfis no Instagram com duas
pessoas como elas são. Porque na mães, com dois pais, as pessoas
contramão disso as pessoas estão se mostrando, perdendo o medo
aí, atentando contra a sua própria de dizer quem são: “Olha aqui, a
vida, a gente está ai falando do minha família existe, tá? Eu sou
mês né, do Setembro Amarelo, uma família” e família e amor né?
no combate ao suicídio. Quantos A crianças e o jovem, na verdade
jovens LGBT+ se suicidam porque o ser humano, ele só quer alguém
não são respeitados, não são eu estenda a mão e fale “vem
acolhidos, e sofrem horrores. aqui que eu te cuido”. Quem é
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

Então já passou do tempo de isso que não quer ser amado? Então
acontecer. eu acho que eu prefiro pensar
Parece um retrocesso, mas esse momento que parece um
acho que a gente está na verdade retrocesso, como na verdade um
num momento de transição. E momento de grande transição.
toda transição, ela é tumultuada,
toda transição tem aqueles que Cláudia Reis – Bacana isso
vão dar a sua cara a tapa, que vão né Anna, de você trazer essa
dar a sua vida por essa história. perspectiva de uma educação
Eu acho que é isso, a gente tá que não se pressupõe formal.
num momento de testemunho Já que a gente está com uma
e transformação profunda da série de questões na escola, e
humanidade. Claro que vai acabar a escola parece que está ainda,
a pandemia e não vai estar todo amarradinha lá no século XVIII.
mundo fofinho e legal, óbvio E aí você traz que nos anos 2000
que não, mas muita gente já vai pra cá, a gente teve muita coisa...
ter se transformado, e a gente seu livro de 2000 pra cá ainda é
vai poder continuar lutando ineditismo na literatura infanto-
cada vez mais para que esses juvenil, sobre diferentes arranjos
retrocessos que ainda existem familiares, por exemplo.
passem um dia anão existir mais, Então pensar nessa
sabe? Então acho que é a hora perspectiva da educação não-
de a gente marcar território. Eu formal, no sentido de nos auxiliar

125
a construir outras narrativas. sei se a palavra melhor é essa, de
Porque o que nós estamos vendo, “testemunho”, que é você ter que
Diógenes e eu, tanto nos textos mostrar quem você é eticamente,
que nós recebemos para o e-book, no que que você acredita, sabe? A
tanto nas entrevistas que nós gente está vivendo num momento
estamos fazendo, é justamente histórico da humanidade, de
essa mesma reclamação, né? testemunho, mais ou menos como
“Olha, tem um espaço formal de se a gente tivesse lá na idade
educação, que não nos enxerga média - eu vou deixar de pensar o
como seres autônomos, não nos que eu penso, e se você quiser me
enxerga como seres que tem uma queimar beleza, não vou ter medo.
narrativa própria”, e essa narrativa Eu sou uma pessoa que
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

própria que, engraçado... não tem acredita em reencarnação,


a ver com um sistema organizado. acho que lá no passado eu já
E aí eu acho que o teu trabalho amarelei, então agora não vou
nessa linha, ele vem nos auxiliar mais amarelar não, sabe? Lá na
bastante nisso, né Diógenes? época de Jesus eu neguei, não
acreditei, não entendi que que era
Anna Claudia – Cláudia, eu pra fazer... aí fui aprendendo, né?
costumo dizer que trabalhar Vem aí um século, e outros, outro,
dá trabalho, sabe? Trabalhar outro, e nesse aqui não dá mais
dá trabalho... então assim, eu pra gente não ter compromisso,
fiz outro dia uma live, que eu sabe? Não dá mais pra ficar em
perguntava para as pessoas cima do muro, não dá mais pra
assim: “Qual seu compromisso? mais pra deixar de ser quem a
O que você realmente deseja gente é, não dá pra mais pra não
como educador?” Se você recebe, acreditar naquilo na educação é
falando sobre a questão dos PDF’s ter medo, porque quanto mais
indevidos que rolam, se você medo a gente tem, mais a gente já
recebe um PDF, sabe que isso não perdeu, sabe? Eu tenho ficado com
é legal, e você passa a diante, qual essa frase na cabeça, eu escrevi
o seu compromisso ético com a sobre isso outro dia: “quanto
educação, sabe? Então acho que mais medo a gente tem de perder,
a gente tá num momento, e aí eu mais a gente já perdeu”. A nossa
gosto... gosto e não gosto, não identidade, o nosso brilho, o

126
nosso desejo, o nosso sonho. igual a Anna Cláudia Ramos, com
Então tá na hora da gente dar uma é que eu posso começar?” e de
guinada nessa humanidade... vai repente a literatura pode ser uma
dar trabalho cara, vai dar trabalho, boa ajuda nesse sentido, né Anna?
tem dia que eu penso assim “Ah
meu deus do céu, pra que que eu Anna Claudia – Ah com certeza,
escrevi tudo isso? Era tão melhor acho que a literatura abre uma
se eu coubesse, sei lá, só ali porta, uma janela pra dentro da
fazendo alguma coisa”, mas não, gente. E hoje, Claudia, eu diria
a gente vem com isso, tá dentro que tem muita gente fazendo um
da gente, então não dá pra gente trabalho bonito, sabe? Pensando
voltar atrás, sabe? Porque voltar nessas questões todas, né? Eu
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

atrás é como se a gente matasse comecei pensando lá atrás, mas


algo que está dentro da gente. tem muita gente pensando já hoje.
Vou te dar um exemplo, esse livro
Cláudia Reis – E aí pensando aqui, o “Brincadeira de criança”, é
nessa coisa da sua contribuição, de um livro que está fora do mercado
tudo o que você nos trouxe como agora, mas que eu vou reeditar
formação literária, eu gostaria que em algum momento. Ele começa
você falasse um pouquinho das assim: “não existe coisa mais
suas obras que você vem tocando gostosa do que brincar, pode ser
sobre esses temas de construção de qualquer coisa, fazer tudo do
identitária para crianças e jovens. nosso jeito, virar princesa, sereia,
Porque de repente tem pessoas herói, cowboy, pirata, menina, pai,
eu estão nos ouvindo nesse mãe, sei lá... virar o que a gente
momento, que não tem muita quiser, quer ver só?”, “Querer
ideia “Como é que eu começo? eu quero, mas a minha tia vive
Quero pensar de uma forma dizendo que jogar futebol é coisa
diferente, mas eu não tenho muita de menino.”, “Ih, mas que coisa
habilidade pra lidar com o tema”, chata, deixa pra lá, vai ver que ela
como o Diógenes falou: “puxa, eu não sabe que hoje em dia não tem
gosto do jeito que você trata essas mais essa história de brincadeira
questões mais delicadas com os de menina e de menino.”
jovens, por exemplo”, e aí tem Então nesse livro eu vou ter
gente que fala “pô, eu não sei falar as meninas brincando sozinhas,

127
vou ter menina jogando futebol “Sempre por perto”, como o
com menino, vou ter menino ”Não é bem assim a história”, eu
dançando ballet com menina, eu não sei se vocês conhecem esse
vou ter as meninas aprendendo a livro. Ele fala sobre vários casais
brincar sozinha, não tem menino separados, em momentos onde
pra brincar. Vou ter menino o pai é legal, ou a mãe é legal, ou
brincando sozinho, não tem o pai não é bacana, a mãe não é
menina pra brincar, eu vou ter bacana, porque eu também não
- olha como se passa o conceito gosto dessa ideia de que quando
- o menino está cuidando do alguém se separa, só a mulher
bonequinho enquanto a menina é uma vítima, ou o homem,
está pintando. Então a gente enfim... o casal separado pode ter
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

vai passando aqui, essa ideia da muitas histórias, então eu gosto


diversidade, o pai que começa a de trazer a humanidade, sabe, pra
cuidar do filho, e a bonequinha gente pensar nessa questão de
é uma bonequinha negra. Então você, como humanidade, trazer
a gente vi passando ali esse diferença. E aqui vai ter um casal,
acolhimento... quando não tem são duas mulheres, que querem
menino, a menina se fantasia contar pros meninos que estão
de menino. Então isso é uma fazendo uma pesquisa na escola
brincadeira pra criança entender, procurando essas histórias, elas
o “Todo mundo tem família” que querem contar a história delas
já falava das famílias. para que a filha delas não sofra
Eu escrever um livro que preconceito na escola. E esse
acabou indo por esse caminho é um livro que teve a primeira
que é o “Fado padrinho, bruxo edição em 2002, e ano passado eu
afilhado e outras coisinhas mais”, relancei ele, fiz umas alterações
fala a história de um menino no texto, mas relancei.
que no reino todas as meninas Então na verdade eu já venho
iam ser fadas madrinhas e os discutindo essas questões há
meninos magos, e ele não queria muito tempo, pra trazer para a
ser mago, ele queria ser fado, literatura esses temas, que eu
então é toda a busca da trajetória acho que não só uma busca minha
da identidade dele, já pensando pelo direito de você ser quem
nos jovens que tem não só o você é, sabe? Eu separei esses

128
livros que tratam um pouco dessa primeira questão que eu debati
questão do gênero, mas eu vou ter foi a questão racial, essa questão
livro que ter um personagem que da representatividade ela é
ele ficou paraplégico e ele vai ser muito forte - como você falou,
uma pessoa comum, sabe? Ele vai bonecas negras, professoras
aprender a viver com isso. Tem negras, negros em posições de
um livro de uma personagem que destaque na sociedade, e acho
ela é surda, então eu quero trazer que a mesma coisa a gente vê em
esses temas para dentro da vida relação a população LGBT. Ou
e parar mostrar que todo mundo seja, a população LGBT ainda é
cabe na vida, todo mundo cabe no associada, no imaginário médio,
mundo, está na hora do mundo só a questão do artista, o que a
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

aprender a olhar o diverso e gente tem que afirmar é isso,


entender que isso é o normal. estão em todo lugar, em todos as
profissões, em todo o mundo. Eu
Diógenes Pinheiro – É realmente, queria que você falasse um pouco
eu achei muito bonita a forma disso, de como você trabalha essa
como você trabalha com o público questão da representatividade, e a
mais infantil, e pro público mais importância disso na construção
juvenil. Porque a gente também, da identidade, sobretudo em
quando está desenhando as jovens e crianças, que estão numa
políticas que trabalham com fase muito importante, onde a
juventude, juventude de 15 a 29, é representatividade é fundamental
uma faixa muito larga – uma coisa para poder se afirmar.
são meninos e meninas de 15 a 17,
que estão no ensino médio, outra Anna Claudia – Olha Diógenes,
coisa é o jovem adulto de 28, 29 eu diria que tudo começa
anos, que já tem família, e tal. na família, sabe? A família
Então você saber falar pra precisaria ter esse olhar. A gente
vários públicos, e essa questão sabe que não necessariamente
da representatividade, deles isso acontece, mas a família
poderem se ver também. Eu precisaria ter esse olhar mais
tenho pensando muito sobre acolhedor pros seus jovens, pra
isso quando eu comecei a sua criança, para que ela pudesse
trabalhar com inclusão, e a crescer sendo quem ela é. Porque

129
se todas as pessoas pudessem dentro de uma escola, né? Ou
crescer sendo quem elas são, e em qualquer profissão você tem
todos pudessem ser respeitados pessoas. Então você precisaria
porque elas são pessoas, que todas essas pessoas saíssem
independente do gênero, da cor, dos seus lugares “protegidos”,
da classe social, de qualquer vamos dizer assim, como eu
coisa, as pessoas poderiam ter fiquei no meu “lugar protegido”
sua representatividade como durante muitos anos, pra
uma forma comum, vamos dizer mostrar: “olha, a gente é uma
assim. Elas iam crescer num pessoa comum cara, está na hora
mundo onde isso é normal. Então de você me respeitar, está na
eu acho que se a gente não tem hora de você entender tudo isso”.
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

isso na família, a escola teria Então eu acho que trabalhar com


que dar conta também disso, essa questão da identidade é uma
desse olhar acolhedor. A gente questão de a gente trabalhar com
sabe que ainda não tem isso a questão da identidade de ser.
100%, sabe que alguns casos sim, Porque muitas vezes a gente vai
outros não. Então acho que é um pegar aí pessoas com questões
trabalho muito longo mesmo, de que não tem a ver com raça,
esclarecimento, sabe? com gênero, com nada disso.
Então uma das coisas que São pessoas que tão com dores
quando a pandemia passar e eu profundas na alma, porque não se
puder voltar a ir as escolas, o compreendem, não se entendem,
que eu quero fazer é palestrar então acho que a gente precisaria
pra pais e professores. Pra falar estar com um projeto de
sobre a importância de não ter educação mais humanizado, mais
medo daquele livro, sabe? Uma do sentimento, sabe? Parar de
outra que me vem à cabeça ficar nessa educação conteudista
é que se cada um, nos seus e olhar pra essas crianças, e pra
espaços, pudesse se assumir, a esses jovens, que estão chegando
gente ajudaria a humanidade a com uma bagagem muito maior
entender que todas as pessoas do que as crianças que chegaram
LGBT, elas estão em todos os na Terra no passado – essa galera
lugares – você tem ela dentro de que tá chegando agora, eles têm
uma banco, dentro um hospital, muito pra ensinar, está na hora

130
da gente aprender a ouvir o que os próprios pilares da educação,
que as crianças e os jovens tem eles nos dão a dica, né?
pra nos dizer. São quatro pilares, não
Tá na hora dos adultos, é isso? A gente decorou em
que estão com as usas certezas algum momento da nossa vida:
cristalizadas, pararem pra ouvir o o aprender a fazer e aprender a
que eles acham que não é correto, conhecer tem aspectos, para mim,
porque talvez não ser correto muito claramente informativos.
é ficar com ideias cristalizadas Vamos aprender a fazer. Agora,
- sofrendo e fazendo aqueles, existem outros dois aspectos que
talvez que você ama, sofrerem seguram essa casinha aí de pé,
junto. Então eu diria que buscar, que é a identidade desse sujeito
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

hoje, esse lugar das identidades que a gente busca auxiliar formar,
é muito importante. E aí eu vou que é justamente aprender
pra essa história que cada um de a conviver com o outro, e o
nós é responsável, e é coautor, aprender a ser. E parece que na
por fazer lugares melhores para hora da gente montar currículos,
todos, sabe? O professor que está pensar a forma de lidar com essas
na universidade, a professora crianças e com esses adolescentes,
que está na escola, são as mães, a gente desconsidera... aí a
os pais, os tios, os avós, dentro casinha fica pendente só pra um
das casas... como que eu acolho lado, não à toa.
o outro? Mas sobretudo como eu
me acolho? Porque a gente só dá Anna Claudia – É incrível,
o que a gente tem, né? Cláudia, como que nos dias de
hoje ainda existem determinadas
Cláudia Reis – É isso aí Anna. questões, que quando passam de
Você traz um tópico muito uma turma pra outra “Ah, lá vem
importante, que você, nesse aquele aluno” – é taxado, parece
momento, fala a partir do inacreditável, sabe?
lugar da educação não formal. Eu sou mãe de uma menina
Mas você, quando toca nesse que deu muito trabalho na
assunto do ser, a gente não pode escola, muito trabalho. Já contei
esquecer, quem está na escola, no pra vocês que um dia ainda vou
ambiente formal de ensino, que escrever sobre isso. Minha filha

131
com 6 anos botou a mãozinha na uma nova vida, uma nova história.
cintura, balançou a cabecinha e E aí, como que a escola vai encarar
falou: “Mamãe, eu odeio a escola, tudo isso? Como que ela vai lidar
odeio as regras da escola, e eu com tudo isso? Ou como que ela
nunca vou obedecer às regras está lidando com tudo isso nesse
da escola”. E ela levou isso sério, momento? Só mudou do ambiente
então fazer ela se formar foi uma físico pro virtual e continuando
árdua missão. Ela se formou, dando as mesmas aulas do mesmo
acho que isso eu nunca contei pra jeito, ou tá trabalhando com
vocês, num supletivo a distância acolhimento, e o medo que muitas
do Estado, daqueles que você vezes crianças e jovens estão
vai, pega a matéria, estuda, vai sentido durante essa pandemia?
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

lá e faz uma prova. E se formou


no tempo certo, vamos dizer Diógenes Pinheiro - O Anna,
assim, “certo”, que que é certo ou achei fantástica a história da sua
errado... Ela se formou antes até filha, porque eu estou orientando
dos amigos dela, que começaram uma dissertação de mestrado
com ela no colégio, isso porque que trata exatamente disso. Eu
ela repetiu infinitas vezes, várias queria aproveitar esse mote
series. E aí, quando ela foi para dessa história da sua filha pra
esse ensino, que fugia de todas você pensar um pouco, já que
as regras possíveis e imaginárias, você adiantou isso... eu sei que
ela passou. ninguém sabe o que vai ser do
Então é complicado. Acho que futuro pós pandemia, mas a gente
a gente tem que repensar, quem sabe que muitas coisas já vinham
hoje está a frente do trabalho envelhecendo no ambiente
formal com educação, tem que escolar, né?
pensar muito que escola é essa Então queria que você, como
que eu quero pro futuro, sabe? alguém que escreve pra esse
Que tem que caber essas crianças público e está muito próxima
e esses jovens, que pós pandemia dessa realidade, queria saber o que
não vão voltar para escola como que você vê que, de certa forma,
eles eram antes, gente. Não dá vai ficar pra trás, e que no futuro,
pra gente voltar pro normal, não que já aparece hoje com a nova
existe “voltar”, a gente vai viver cara de uma escola acolhedora,

132
inclusiva... O que que você vê saiba que ainda vai existir, vai
nas experiências que você tem voltar, e vão ter coisas que ainda
acompanhando como educadora? não vão ser legais... mas acho
que as pessoas estão começando
Anna Claudia – Olha, Diógenes, a se perguntar “Por que é que eu
essa é uma pergunta difícil de fiquei escondendo tanto tempo?
responder porque eu não estou, Porque que eu deixei de viver
hoje, dentro do ambiente da isso por tanto tempo? Porque que
escola. O que eu tenho feito hoje eu deixei de ser feliz? Por que e
em dia? Algumas participações deixei meu sonho guardado?” E
em lives com aos alunos que aí o sonho é guardado vale desde
leram os livros, então eu estou você aprender a tocar instrumento
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

acompanhando um pouco. musical, a assumir que você ama


Mas eu acho, e aí é só uma um homem ou uma mulher, e
reflexão, não é nada certeiro - até sendo você uma mulher ou um
porque a gente não tem certeza homem, ou seja lá o que for.
de nada na vida, a vida é sempre Enfim, eu acho que não vai mais
uma caixinha de surpresas -, caber isso, sabe? Então acho que
eu acho que o que não vai mais a escola do futuro, ela vai ter que
caber é a gente fingir que o que trabalhar muito mais com esse
existe, não existe, sabe? Não vai professor tutor, que vai dar meios
mais caber, no nosso futuro, não pra esse aluno buscar o que que
acolher todas as pessoas como ele gosta, e o que que ele quer.
elas são, em qualquer lugar, não Mas eu acho que se ela
vai mais caber porque ninguém tivesse tido uma escola que
mais quer voltar pra dentro da tivesse professores tutores - o
caixa, do armário, sabe? Não que que seria isso? – “olha aqui,
vai mais caber isso no mundo, o que que você gosta? Você gosta
sabe? Eu acho que é o primeiro disso? Eu vou te dar meios de
passo, o primeiro momento, da você aprender isso muito melhor,
libertação das pessoas criando eu vou te dar meios de você se
os seus protagonismos, cada um tornar esse profissional que
no seu lugar de fala, nos seus você quer ser muito melhor.” E
espaços, então acho que isso não aí vai valer pra se você quiser
vai caber. Por mais que a gente ser um músico, um médico, um

133
escritor, sabe? Essa é a escola diz Diógenes. Essa conversa
que eu sonho, é a escola onde vai ficar aí, historicamente
cada um vai poder ser visto na guardada, registrada, no e-book.
sua potencialidade... se o cara E além de ser um momento
é bom de moda, então ele vai do nosso tempo, que a gente
aprender a ser aquilo melhor, ele está vivendo aqui, eu acho que
vai estudar, ele vai mergulhar a Anna traz umas reflexões
nos ensinamentos... ele vai criar bastante importantes pra quem
acervo, vai criar referencias, pensa qualquer possibilidade de
sabe? Então pra isso, a gente inclusão, e sobretudo quando
vai precisar de uma escola que pensa essa inclusão no espaço da
vai estar muito mais aberta e escola, né Diógenes? Você quer
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

preparada para lidar com a vida. complementar?


E isso dá trabalho, porque a gente
tem que estar aí, saindo das Anna Claudia – Eu queria falar
caixinhas que muitas vezes as só uma coisinha. Muitas vezes
pessoas querem colocar a gente, e a gente olha pra alguma pessoa,
eu já disse “não me coloquem em por exemplo... vou te dar um
caixa, eu não gosto de caixinhas, exemplo muito objetivo: alguém
eu não gosto de estereótipos que está numa cadeira de rodas,
para isso ou parar aquilo, eu que tem algum tipo de, enfim, de
quero poder ser o que me dá questão, que se comprometeu e
vontade” sabe? E eu quero poder por isso hoje está numa cadeira
trabalhar cada vez mais através de rodas. As pessoas olham para
meus livros, e das palestras que aquela pessoa com se ela fosse
eu faço, pelo esclarecimento com uma coitadinha, ou como se ela
as pessoas. Aprendam a amar e a fosse uma pessoa incapaz de viver.
acolher, acho que esse é caminho, Eu tenho uma ex-aluna, que ela
sabe? Enquanto a gente não teve uma questão neurológica na
aprender isso, a gente vai tomar infância, e ela hoje é uma pessoa
muita surra da vida. extremamente bem sucedida na
vida dela, ela é jornalista, ela é
Cláudia Reis – Eu acho que casada, ela tem uma vida comum,
Anna deixou aqui um legado sabe? Uma vida normal, vamos
bastante importante, como dizer assim, então a gente que

134
parar de olhar para aquele que é de raça, de gênero, ou de seja lá
diferente de a gente achando que o que for. Piadinhas infames não
ele é um incapaz, porque incapaz cabem mais no nosso mundo,
é aquele não é capaz de ser o que está na hora ada gente aprender
quiser ser. o significado mais profundo do
A gente tem que parar de que seja a palavra respeito pelo
olhar pro outro botando algum próximo.
tipo de deficiência que a pessoa
ter ou estar naquele momento, Cláudia Reis – Excelente.
como se fosse algo que ela não Fechando com chave de ouro,
fosse capaz de viver, sabe? E eu Anna Cláudia Ramos, trazendo
acho que viver é muito além aqui não só a trajetória dela dentro
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

disso. Às vezes uma questão da escola, fora da escola, nessa


que acontece, como o meu construção, nessa possibilidade
personagem no livro, “Numa de construções indentitárias.
fração de segundos”, que ele Anna, eu particularmente estou
fica paraplégico, e que ele acha muito satisfeita de você ter aceito
naquele momento que a vida nosso convite, ter estado aqui
dele acabou, ele passa por um conosco, abrilhantando o e-book,
movimento de revolta até ele ter trazendo essa possibilidade de
uma aceitação. Ele vai entender uma nova linguagem dentro
que avida é muito além daquilo, de uma posição acadêmica, e
e que ele pode viver. Então acho tocando nesses assuntos que
que a gente tem que aprender são muito caros para nós que
a acolher. Eu queria deixar estamos, que somos o movimento
essas palavras - imagino que a LGBT, e nós que sofremos toda
gente esteja no final -, da gente essa carga de preconceitos, mas
aprender a acolher o ser humano, nós também estamos pensando
sabe? Da gente aprender a nos educação e pensando sobretudo
acolher, e ter um respeito, sabe? em possibilidade de mudança, né
Se a gente vai estar num ambiente Diógenes?
de escola, aprenda a respeitar todo Aí já peço a Diógenes e Anna
mundo como a pessoa é. Se está que façam suas considerações
num ambiente de trabalho, para finais, pra gente poder fechar aqui
de fazer piadinhas com questões o nosso raciocínio.

135
Diógenes Pinheiro – Eu queria que alguém se espelhe você, e se
só a gradecer a Anna. Acho que torne alguém que vai inspirar o
é fundamental o trabalho de outro que vai fazer um mundo
formação de novas gerações cada melhor. Dá trabalho, mas é isso
vez mais livres, mais livres de gente! Quem disse que viver é
preconceito, podendo se assumir fácil, não é? Viver não é mole não!
na sua integralidade. Acho que o Mas, como diz a música, “nada
fato de você falar com um público será como antes amanhã”. Então
tão jovem é uma esperança pra que o amanhã seja melhor.
gente, ou seja, de que o futuro
realmente é isso sim, é lindo.
Acho que nesse sentido, essa
A literatura infanto-juvenil LGBT entrevista com Anna Claudia Ramos

expressão que eu usei é de uma


amiga antropóloga que eu uso
muito, a Regina Novaes, ela fala
“nada será como antes”, e eu acho
que ela tá certa, pegando o mote
da canção, né, acho que está certa.
Quando a gente vê discursos com
o seu, a gente tem essa esperança
realmente de que o futuro
realmente vai ser melhor do que
o presente.

Anna Claudia - Olha Diógenes, eu


acho que o futuro vai ser melhor
do que o presente quando todo
mundo entender que não depende
do outro, depende a gente. Eu
tenho falado: “Gente, para de ser
espectador do bem, se torna um
agente do bem”, sabe? “Ah, olha,
quando eu vejo aquilo eu acredito
na humanidade”, então vai fazer
aquilo! Vai fazer alguma coisa pra

136
interferência cromática sobre foto de Caroline Lima | temqueter.org
GÊNEROS E
SEXUALIDADES
NOS CURSOS DE
LICENCIATURA :
UM RELATO
Pode falar sobre gênero na escola? Alexandre Bortolini

DE EXPERIÊNCIA
DO ESTÁGIO
DE DOCÊNCIA
(ORIENTAcÃO E REALIZAcÃO)

Alexandre Nabor França


Sergio Luiz Baptista da Silva
138
ESTE TRABALHO TEM POR OBJETIVO FOMENTAR
a discussão sobre a importância do tema em Gêneros,
Sexualidades e Raça no curso de formação de professores
das Faculdades de Educação. Durante um semestre foi
realizado estágio docência na disciplina Educação e Gênero
da Faculdade de Educação, nos quais foram observados
através das narrativas a falta de espaços para vozes
daquelas(es) que sofrem por preconceitos e discriminações
por pertencerem a grupos dissidentes que estão fora dos
padrões sociais normativos. Este trabalho fomenta a reflexão
sobre a importância dos “espaços-tempos” para o resgate
das memórias esquecidas de histórias pessoais como saberes
importante para a construção de aparatos no lidar com as
diferenças e para formação de futuras(os) professoras(es).

1. Introdução: Impasses e desafios na educação


Este trabalho tem como objetivo considerar as narrativas
das(os) alunas(os) da disciplina eletiva “Educação e Gênero”1 ,
não obrigatória, como fatores importantes na formação-
saberes da docência. É importante ressaltar que este

1 Disciplina oferecida pelo curso de Pedagogia de licenciatura para formação inicial


de professores da Faculdade de Educação e também aberto a outros cursos da UFRJ.
trabalho foi resultado de estágio de docência realizado
no primeiro semestre de 2017, na disciplina “Educação e
Gênero” onde foi possível testemunhar as narrativas de
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

alunas(os) em relação às suas dificuldades experienciais


de serem discentes da UFRJ. Segundo as(os) estudantes,
as disciplinas oferecidas pelo Curso de Licenciatura da
UFRJ, não oferecem espaços para as vozes daquelas(es)
que sofrem por preconceitos e discriminações em razão
de pertencerem a grupos dissidentes que estão fora dos
padrões sociais normativos. São vozes de pessoas negras,
gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros e transexuais que,
de alguma forma, foram silenciadas simbolicamente pela
formalidade homogênea constituída pelo discurso colonial
da (re)produção do embranquecimento, da cisgeneridade e
da heteronormatividade dos corpos.
A metodologia das aulas foi composta por atividades
expositivas, seminários em grupo, debates, projeções e
análise de vídeos informativos, palestras de convidados,
rodas de conversas para a formulação de produções didáticas
e para a produção escrita sobre temas correlatos ao programa
da disciplina. O curso foi constituído por um público de
quinze alunas(os) entre 19 e 40 anos, com religião, raça/
etnia, expressão de gênero e orientação sexual diferentes.
É importante salientar também que no decorrer do curso,
as expressões em relação à sexualidade foram fluindo para
autorrevelação das expressões identitárias, orientações
sexuais e autodeclaração étnico racial.
140
As aulas foram iniciadas por um debate sobre as
vivências individuais de cada aluna(o), que puderam se
colocar como partes integrantes na interação com outras
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

experiências. Esse momento foi muito rico, uma vez que


cada um pode expor suas expectativas e perspectivas
diante de seus interesses como formandas(os) em cursos de
licenciatura diversos (Pedagogia, Biologia, Ciências Sociais,
História e Educação Física).
A disciplina “Educação e Gênero” tinha como objetivo
principal formar professoras(es) aptas(os) e encorajadas(os)
a discutir sobre as relações em gêneros, sexualidades e
raça/etnia nas escolas. Além disso, a disciplina oferecia
não só um espaço para reflexão sobre o lugar de cada um
na sociedade, sobretudo refletindo para variados tipos de
opressão suscitados pelas diferenças nas identificações de
gênero, sexualidade e raça, como também espaço de escuta
dos testemunhos trazidos pelos docentes em formação.
Nós, professores da disciplina, tínhamos o cuidado de não
nos colocarmos como aqueles que portavam conhecimento
sob os saberes individuais das(os) alunas(os), no intuito de
nos aproximar da proposta da filósofa Gayatri C. Spivak
(2010), quando pergunta “Pode o subalterno falar?”. Esse
questionamento nos trouxe a base para a problematização
crítica das questões que implicam a formação de intelectuais
que se sobressaem nas culturas colonizadas por um saber
hegemônico hierarquizado em desfavorecimento às histórias
pessoais, territoriais e locais.
141
Segundo Spivak (2010), as implicações que proporcionam
subalternidades podem se constituir simbolicamente em
ações culturais e territoriais como aquelas de menor valor,
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

sobressaindo às ações coloniais hegemônicas. Portanto, para


nós o termo “subalterno” denota subserviência em relação à
figura do dominante. Para a autora,

Tornar visível o que não é visto pode também


significar uma mudança de nível, dirigindo-se a uma
camada de material que, até então, não tinha tido
pertinência alguma para a história e que não havia
sido reconhecida como tendo qualquer valor moral,
estético ou histórico (SPIVAK, 2010, p. 78).

Muitas das narrativas apresentadas pelas alunas do


curso eram falas pessoais e trazidas das salas de aula de
inquietações do não acolhimento à diferença como um
direito existencial no espaço educativo. Nossa preocupação
era manter a pertinência das atividades educativas como um
território aberto para o surgimento de dúvidas, sofrimentos,
alegrias, conquistas e revelações existenciais, cujas
autorreflexões pudessem ser transformadas e aprimoradas,
contextualmente, em potencialidades e empoderamentos.
O programa da disciplina, contemplava bibliografia
significativa sobre os temas centrais, autoras(es) que
proporcionando ref lexões com relação à existência,
multiculturalidade, diferenças identitárias de gênero,
sexualidade e raça/etnias, classe social e religiões.
142
Segundo a educadora Ana Ivenicki,

A multiculturalidade, denota pluralidade cultural


Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

em termos de diversidade de identidades culturais,


individuais ou coletivas, advogando o direito à voz e à
representação das mesmas nos diversos espaços sociais,
educacionais e culturais (IVENICKI ,2016, p. 56).

Estar atento aos marcadores de diferença é importante para


a análise dos fatos que compõem as pessoas envolvidas nas
dificuldades de interação entre classe social, sexualidade,
raça/etnia e gênero como direito existencial em uma
sociedade normativa. A educadora Ana Canen (2007) afirma
que para que haja compreensão das diferenças é preciso o
desprendimento por meio da desconstrução das normas
constituídas nos discursos. Para a autora,

A desconstrução dessas normas e diferenças, nos


discursos e nas linguagens, implica a necessidade de
projetos que possam ir além de denúncias e que incluam
estratégias no sentido de colocar ‘a nu’ o caráter de
construção dessas noções, de forma a desafiá-las, rumo
à construção de identidades individuais, coletivas
e organizacionais abertas à diversidade cultural e
desafiadoras de preconceitos e dogmatismos que
congelam aqueles percebidos como ‘os outros’ (CANEN,
2007, pg. 97).

143
Neste contexto, as aulas da disciplina Educação e Gênero
tiveram o cuidado de serem preparadas para atender
as necessidades das alunas(os) no que concerne as suas
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

questões sobre as dificuldades do entendimento de suas


vidas e daqueles que estão sob suas reponsabilidades em
sala de aula. Muitas das narrativas apresentadas falam da
proibição de se falar sobre gêneros, sexualidades e raça/
etnia em sala de aula da educação básica. Lembrando
que maioria do grupo já estava atuando em sala de aula
como regente ou como estagiária/o de Licenciatura.
As dificuldades apontadas se referiam aos medos e aos
silenciamentos sobre os assuntos que não poderiam ser
debatidos, mas que, ao mesmo tempo, se mostraram
necessários a ser discutidos na sala de aula.
Acreditamos que a censura cresceu por meio da onda
conservadora no âmbito escolar estabelecida após 2011,
quando surgiram proposições contrárias às demandas de
articulação contra as discriminações em relação à gênero
e sexualidade nas escolas. Essa proibição se tornou mais
contundente após a censura do então kit anti-homofobia
nas escolas, propositalmente apelidado de “ kit gay”, como
podemos ver no artigo do site ‘Nova Escola” 2 .
Para entendermos sobre o surgimento do kit anti-
homofobia, precisamos compreender que este foi criado

2 https://novaescola.org.br/conteudo/84/conheca-o-kit-gay-vetado-pelo-governo-
federal-em-2011 - Acesso: 29 de abril de 2019.

144
pelo programa “Brasil Sem Homofobia3” (PBSH) com
objetivo concreto de fomentar ações contra violações
e violências históricas à população de Lésbicas, Gays,
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT. O PBSH,


consequentemente, criou um projeto específico para as
demandas da escola denominado “Escola Sem Homofobia”.
Segundo sociólogo Rogério Junqueira,

[...] o programa traz, no seu cerne, a compreensão de


que a democracia não pode prescindir do pluralismo e
de políticas de equidade e que, para isso, é indispensável
interromper a sequência de cumplicidade e indiferença
em relação a homofobia (PBSH, 2009, p. 15).

O projeto “Escola Sem Homofobia” impulsionou a


criação de estudos e pesquisas na área da educação para o
entendimento aprofundado sobre sexualidades, diversidade
sexual, gêneros, identidades e expressões de gêneros com
objetivos precisos para o enfrentamento da homofobia
nas escolas. O programa também traçou estratégias de
ação e metas para a diminuição da discriminação da
população LGBT nas escolas e como resultado elaborou o
material anti-homofobia, pensado como um instrumento
importante do Governo Federal, em conjunto com outros

3 Programa do Governo Federal criado em 2004, no governo do presidente Luiz


Inácio Lula da Silva, para elaborar ações contra o preconceito e discriminação
histórica contra a população LGBT no Brasil.

145
órgãos públicos parceiros4, na luta contra o preconceito e
discriminação em gênero e sexualidade.
Desde 2008, o “kit anti-homofobia” havia sido criado
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

como material elaborado para ser disponibilizado aos


professores da rede pública de educação, com o objetivo de
proporcionar reflexões em relação aos direitos das pessoas
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais no
âmbito escolar. O fator mais crítico foi ocorrido em 2011,
após o pronunciamento da presidente Dilma Rousseff em
rede nacional, sob pressão de parlamentares conservadores
do Congresso Nacional, censurando o material sem uma
avaliação prévia. O porta-voz e ministro da Secretaria-Geral
da Presidência, Gilberto Carvalho, falou em público,

O governo entendeu que seria prudente não editar


esse material que está sendo preparado no MEC.
A presidente decidiu, portanto, a suspensão desse
material, assim como de um vídeo que foi produzido
por uma ONG - não foi produzido pelo MEC - a partir
de uma emenda parlamentar enviada ao MEC, disse
o ministro, após reunião com as bancadas evangélica,
católica e da família (PASSARINHO, 2011).

Após este pronunciamento, houve um crescimento do embate


entre Religião e Educação no Brasil, favorecendo a criação do

4 Organização dos Advogados do Brasil, Conselho Federal de Psicologia,


Movimentos sociais LGBT e Ministério da Educação.

146
movimento “Escola Sem Partido”. É a partir desse episódio
que se fortalece o termo “ideologia de gênero”, criado como
estandarte das vertentes missionárias religiosas. Segundo o
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

antropólogo Marcelo Natividade (2013), a partir de 1980 houve


um grande crescimento de algumas expressões religiosas no
Brasil de reavivamento cristão centrado em denominações
pentecostais, que passam a ocupar mais posições na vida
público e no mundo político.

Num momento em que pesquisas recentes identificam


a perda da capacidade do controle das condutas
pelo religioso, era oportuno investigar novas
modalidades de regulação do sexo, imbricadas a
processos modernizadores que podem envolver tanto
a flexibilização das normas como a intensificação
destas por meio de um apelo aos valores da “tradição”
(NATIVIDADE, 2013, p. 21).

Mesmo com muitas produções acadêmicas a respeito da


discriminação e preconceito contra pessoas LGBT, outros
assuntos também foram motes de censura nas escolas, tais
como feminismo, religiões não-cristãs e as relações étnico-
raciais, pois atentavam para a independência das mulheres,
visibilidades das religiões de matriz africana e contra o racismo
institucional praticado cotidianamente contra negros/indígenas.
Segundo o educador Fernando de Araújo Penna
(Carlotti, 2016), o movimento “Escola Sem Partido” tem a
ver exclusivamente com articulações partidárias, pois foi

147
fomentado no Brasil pelo advogado conservador Miguel
Nagib, em 2014, devido ao fato de sua filha ter realizado
um trabalho escolar de cunho político. Este movimento
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

tomou um percurso dinâmico e jurídico, após inserção de


um projeto de lei criado por Nagib, proibindo qualquer
pronunciamento ou estudo voltado para as questões políticas
em gênero e sexualidade no âmbito escolar.
O projeto se estendia proibindo e penalizando os
professores de se pronunciarem e/ou a realização de aulas
que pudessem ter qualquer teor ideológico e\ou político na
escola. Ao mesmo tempo, proporcionou o surgimento de
uma nomenclatura marginal sobre as teorias de gênero nas
escolas, de teor religioso cristão neopentecostal, reforçando
falaciosamente que as pesquisas e teorias acadêmicas sobre o
assunto foram criações ideológicas dos movimentos sociais
com intuito de subverter o “domínio de Deus” de que o
homem e a mulher foram criados para a procriação.

2. Aprendendo a lidar com as dificuldades pessoais e do


outro em sala de aula
Neste trabalho, por meio de narrativas pessoais podemos
contemplar as dificuldades, as dúvidas e os incômodos
das alunas(os) pela ausência histórica de representações
elementares da diferença humana. A disciplina acontecia
uma vez por semana, durante todo o semestre. O primeiro
dia de apresentações foi sobre os objetivos da disciplina,

148
pois cada aluna(o) poderia se apresentar e escolher um texto
oferecido na bibliografia.
As aulas discorreram os textos e suas narrativas
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

marcadas por uma experiência pessoal. O motivo desta


metodologia foi pensar na possibilidade de juntar a teoria
acadêmica com as experiências vivenciais em um único
espaço para contextualizações de ideias com objetivo de
potencializar os lugares de enunciação das(os) alunas(os).
A formanda em Pedagogia Margarida5, uma jovem
bissexual, branca, moradora de favela e mãe de uma menina
transexual autista, em processo de transição de gênero,
expressa sua dificuldade vivencial na luta contra as barreiras
que ela encontra diariamente na sua universidade e na escola
de sua filha. Segundo Margarida, a territorialidade escolar
impossibilita que sua filha possa transitar e viver plenamente
sua diferença. Como podemos notar em sua fala angustiada
de sofrimento, existe uma cobrança das representatividades
da multiplicidade:

Há uma falta de protagonismo discursivo na sala de


aula de pessoas gays, lésbicas, transexuais, negras e
outras minorias, pois nós nos sentimos frequentemente
excluídas e discriminadas; parece que não existimos.
Eu, por exemplo, sendo mãe de uma menina transexual
autista que está em processo de transição de gênero

5 Mesmo com a autorização para publicação das respectivas narrativas, todos os


nomes citados foram alterados.

149
tenho muitas dificuldades de encontrar uma escola que
compreenda essa diferença (Margarida).
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

Diante destas angústias, podemos refletir sobre o panorama


encontrado na escola como um dispositivo de reprodução
normativa. Margarida nos instiga a pensar na inclusão e no
reconhecimento do território educacional em que sua filha se
encontra, mas ignorada por sua diferença. Que lugar é esse que
privilegia interesses universais e dispensa as multiplicidades
locais? Segundo o sociólogo educacional Richard Miskolci:

Historicamente, a escola foi durante muito tempo


um local de normalizações, um grande veículo de
normalizações estatal. O processo de educar e a
expansão do sistema de ensino foram importantes
para criar as noções contemporâneas. Havia interesse
do Estado em utilizar o aprendizado e a cultura
para unificar politicamente as nações, criando um
sentimento comum de pertença (MISKOLCI 2016, p. 40).

Talvez seja este sentimento de pertença estatal que privilegie


algumas nuances culturais e outras não, fazendo com
que a universalidade educacional proporcione cada vez
mais ausência de entendimento das diferenças locais e
autonomias humanas.
Em outro relato, Cravo, um aluno de Pedagogia,
jovem, negro, não-binário, homossexual e morador de
favela, confirma a fala de Margarida, quando ela coloca sua

150
necessidade de ver professores gays e lésbicas em sala de
aula. Cravo nos diz que, muitas vezes, percebeu que alguns
de seus professores eram gays, mas permaneciam “dentro do
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

armário”. Cravo então enfatiza nos dizendo:

Sempre tive muita dificuldade de me colocar em sala


de aula porque toda minha vida não tive referência
de professores gays em sala. Então, eu me achava um
“peixe fora d’água”, achando que eu não poderia ser
eu mesmo para meus alunos. Mas quando me deparei
neste curso com dois professores assumidamente
gays foi como se tudo mudasse em minha vida em
relação a isso (Cravo).

Segundo Miskolci (2016), a perspectiva do reconhecimento


da diferença, e não da diversidade, implica na possibilidade
da alteridade como condição necessária de inclusão das
idiossincrasias humanas para contemplar não somente
aquilo que nos é estranho, mas também o que nos completa
como ser humano. “A diversidade serve a uma concepção
horizontal de relações sociais que tem como objetivo evitar a
divergência e, sobretudo, o conflito” (Miskolci, 2016, p. 52).
Nesta perspectiva trabalhar com o sentido de
diversidade está na ordem, “de aceitação da tolerância da
diferença”, denotando estar “cada um no seu quadrado”,
sem interferência mútua da discussão das diferenciações
individuais com suas implicações e conflitos sociais,
ao contrário da perspectiva do respeito à diferença que
151
possibilita a criação de instrumentos contra a insegurança
diante de si e de outrem para o trabalho da alteridade na
percepção da multiplicidade em gênero, sexualidade e
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

raça/etnia. E foi por meio deste pensamento que podemos


perceber na fala do jovem Antúrio, gay, negro, periférico
e estudante do curso de licenciatura em Educação Física,
quando expõe seus medos ao dizer que não tem segurança
em demonstrar sua orientação sexual em sala de aula,
porque a maioria de seus professores de educação física
reproduzem discurso do machismo estrutural, o tempo todo,
menosprezando mulheres e gays. Diz ele: “o respeito existe
até o momento em que mostro minha diferença sexual”.
A heterossociabilidade configurada como conduta
social, exige um comportamento imposto a masculinidade
e feminilidade, pois prescrevem como um homem e
uma mulher podem e devem seguir pautados no modelo
construído binariamente em gênero e sexualidade. Portanto,
aquelas(es) que estão, simbolicamente, às margens deste
padrão padecem de violência e do não-reconhecimento
social; são considerados abjetos.
O relato de Antúrio nos possibilita refletir também sobre
as territorialidades nos cursos de formação de professores,
nos quais são dominados pelo comportamento heterossexual
compulsório, na ordem hétero-ideológica. Este reflexo foi
demostrado nas aulas quando ele afirmou sentir incômodo
e repulsa em relação às aulas de educação física no período
em que estava na escola, por se tratar das atividades que
152
evidenciavam a masculinidade excessivamente como conduta
universal. Havia uma problemática das divisões em algumas
atividades consideradas como sendo somente para meninos e
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

outras para meninas, colocando a rivalidade e dificultando a


alteridade entre as identidades e expressões de gêneros.
Em outro relato, uma aluna, afirma sua dificuldade ao
lidar com reconhecimento de sua negritude diante de grupos
que lutam pelos direitos da população negra. Para Violeta,
heterossexual, negra e evangélica é importante que sua
ancestralidade negra possa ser reconhecida para além da cor
de sua pele. Segundo ela, sua ancestralidade está evidenciada
no modo em que percebe a vida ao seu redor, pois sua família
foi constituída pela miscigenação entre negros e brancos.
Violeta nos indaga: “Não consigo entender porque não
fui aceita pelo coletivo acadêmico de luta pelos direitos da
população negra. Sempre me senti negra, mas fui ignorada
por ser considerada de pele “clara” e não escura” (Violeta).
Por meio dos questionamentos de Violeta, trouxemos
a discussão sobre a história do povo negro no Brasil como
elemento central para compreender a importância da
apropriação e identificação ancestral. Por muito tempo na
história social se acreditou que o Brasil não era um país
racista, devido à crença compulsória da “democracia racial”.
Muitos livros didáticos e literários, até pouco tempo atrás,
reproduziam esse falso panorama entre as raças e as etnias,
como se todos fossem vistos e respeitados igualmente, mas
sem a prevalência das diferenciações culturais e históricas.
153
Fizeram-se acreditar que todos nós somos iguais perante
a lei, mas, se pensarmos, essa própria lei foi construída e
constituída por base epistemológica da branquitude6.
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

Segundo a pesquisadora educacional Nilma Lino Gomes


(2017), foi “através da narrativa do mito [da democracia racial],
que é extremamente conservadora, que a igualdade das raças
foi destacada. Trata-se, no entanto, de uma falsa igualdade,
pois ela se baseia no apagamento e na homogeneização das
diferenças” (GOMES, 2017, p. 51).
Os questionamentos sobre raça no curso se acentuaram
após a morte de um estudante negro, pobre e gay no Campus
da UFRJ, Rio de Janeiro, em 2016. Segundo as(os) alunas(os),
os marcadores de diferença que Diego Vieira Machado7
possuía o colocava no mesmo lugar de vulnerabilidade
e insegurança em comparação a muitos outros jovens. A
pergunta que se fazia no grupo era: Diego morreu porque
era negro? Gay? Ou pobre? Não tivemos uma resposta
de antemão. Mas, talvez, a resposta poderia ser por todos
os marcadores de diferença que ele possuía ter e que o
colocavam em um estado de maior vulnerabilidade social
em uma sociedade preconceituosa.

6 “Branquitude é visto como um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os


outros e a si mesmo, em uma posição de poder, um lugar confortável do qual se
pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo” (Piza, 2002).

7 O estudante foi assassinado no Campus do Fundão da UFRJ em 02 de julho de


2016. https://glo.bo/29fqFrg acessado em 08 fevereiro de 2019.

154
Outro questionamento marcante foi sobre o tema da
religião e sexualidade, trazido pela Papoula. Uma jovem
branca, lésbica, espírita e filha de pais judeus ortodoxos
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

de posicionamento político de extrema direita. Ela se


angustiava sob os pronunciamentos deles em posição
contrária à sua por não ter escolhido os costumes judaicos.
Em sua fala transparece, enfaticamente, o medo por eles não
respeitarem suas escolhas e por pertencer uma outra crença
religiosa diferente do seu núcleo familiar. Para Papoula,
a vulnerabilidade é algo real, que fica evidente ao tentar
negociar com sua família judia uma possível aceitação por
ser uma mulher lésbica e espírita. Segundo ela, existe algo
estranho por parte daqueles que se constituem fechados
em uma cultura ortodoxa. Ela nos narra um exemplo,
explicitamente, de viver em contradição com sua família
porque destacam a histórica violência contra o povo judeu,
mas não consideram isso como um fator importante para
se respeitar suas diferenças, mesmo que esteja na posição
de filha e de irmã. E é nesta condição, de uma pessoa
que tenta compreender esta incongruência, que Papoula
defende suas crenças e sua territorialidade em seu lar e
em sua universidade, em tempos políticos contraditórios e
conservadores. Papoula nos indaga com lágrimas nos olhos:

Não consigo entender como meu irmão e meus


pais, sendo judeus, podem defender o deputado Jair
Bolsonaro? Este homem é de extrema direita e sempre

155
se colocou contra gays, lésbicas, negros e mulheres.
Todos nós sabemos o que os judeus passaram na história
pelos nazistas e, agora, meus pais estão do lado de um
nazista. Não compreendo mesmo! Muitas vezes escuto
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

piadas em relação a gays e lésbicas por parte deles, e isso


me impossibilita muito em expor meus sentimentos
diante daqueles que amo (Papoula).

A educadora Guacira Lopes Louro (2009) enfatiza que


a sociedade se constituiu e reiterou historicamente
práticas sociais de grupos dominantes pelo processo da
heterossexualidade como um parâmetro regulatório entre
sexo-gênero-sexualidade. Assim, como se estende as
questões que envolvem raça e etnia, nas quais se padronizou
comportamentos tendo como único modelo o homem branco,
europeu, cristão e burguês, favorecendo o fortalecimento do
embranquecimento e do patriarcado na sociedade brasileira.
Para compreender como esses resultados se processam na
escola, é preciso considerar que raça, etnia, sexualidade e
gênero são assuntos imprescindíveis para a compreendermos
as condições humanas. Porém, as resistências surgem como
ações instrumentais contrárias às normas estabelecidas
historicamente na sociedade, surgem também como
necessidade da existência de representações no espaço escolar
no sentido significativo de valorização de si e do outro.
Falar de gênero é oferecer possibilidades para que o
outro possa refletir sobre as complexidades de uma categoria
que está para além das necessidades primárias biológicas e
156
naturalizantes em que as pessoas foram colocadas por meio
dos processos de socialização dentro da cultura dominante. É
(re)produzir conhecimento a respeito de como lidamos com
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

os nossos corpos e como lidamos e respeitamos o corpo do


outro. Assim como falar sobre as sexualidades nos possibilita
ir além das dimensões afetivas que também podem nos
aprisionar. E falar sobre raça/etnia nos possibilitam refletir
sobre as diferenças culturais e históricas para além das
imposições dos processos de subjetivação da branquitude.

3. Aparatos para o reconhecimento das diferenças


O espaço interativo também estava aberto não só para
as narrativas, mas para sua importância como saberes
informativos. Assim foi possível que, no final da
disciplina, as(os) alunas(os) pudessem concretizar, como
produto final, a criação de aparatos educacionais com
a finalidade de novas fontes criativas de saberes para o
reconhecimento das diferenças.
Uma das atividades mais ricas que aconteceu durante
as aulas foi sobre a contação de história. Nesta atividade,
cada um poderia contar qualquer história sua que tivesse
relação com algum fato importante/marcante na infância.
E todas as histórias demostraram ter elementos relevantes
em relação à dificuldade de entendimento em gêneros,
sexualidades e raça. Porém, a história que mais marcou
o grupo foi a de Antúrio, que nos relatou ter tido quando

157
criança um boneco de pelúcia, de nome Xaropinho8, e
que o mesmo tinha sido arrancado bruscamente de seus
braços por seu pai. Ele nos conta, com lágrimas nos olhos,
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

que Xaropinho o acompanhava para todos os lugares em


que ia, pois se sentia seguro com o boneco por não gostar
de brincar com os meninos de sua rua, que o xingavam
de “bichinha”. O momento mais triste foi quando seu pai
arrancou o boneco dizendo que filho dele era homem
e não brincava com bonecos. Esta violência parecia ter
proporcionado a Antúrio um trauma que perdurou por
muito tempo, como uma exigência de ter de ser homem/
macho. Aquela experiência havia provocado em Antúrio
traumas que levaria para sua vida.
A história de Antúrio, como a da maioria das alunas(os),
foi uma narrativa de situações de subalternidades, na
infância e, frequentemente, em espaços escolares; Em
lugares onde deveriam ser simplesmente filhas(os),
alunas(os) e futuras(os) professoras(es). A dificuldade de
enfrentamento ao preconceito se mostrou estar permeado
de fatores semelhantes a outras histórias narradas. Talvez
seja por isso que o lúdico estava em todos os momentos
da disciplina, não só como requisito bibliográfico, mas
também como aparato importante na tentativa de diluir
o aparecimento de dores emocionais; o jogo e o sorriso
tornaram-se materiais importantes para instigação da

8 Um boneco interativo do programa do programa televisivo do SBT, “Ratinho”.

158
empatia. As narrativas trazidas pelas/os licenciadas(os)
constituíam uma massa de saberes que foram esquecidos e/
ou abandonados historicamente.
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

Os espaços educacionais, em especial a escola, vêm se


mostrando, ainda, como territórios de disputas, cujo poder
se articula por determinadas regras sociais capazes de
evidenciar fatores de produção e reprodução do que venha
a ser gênero e sexualidade como marcadores normativos.
Segundo o educador Michael W. Apple, “as escolas,
portanto, são também agentes no processo de criação e
recriação de uma cultura dominante eficaz. Elas ensinam
normas, valores, disposições e uma cultura, que contribuem
para a hegemonia ideológica dos grupos dominantes”
(APPLE, 1989, p. 58).
Testemunhamos grupos dominantes, em sua maioria,
favorecendo a educação normativa como meio de reprodução
de extratos sociais, com base nos padrões (pré)estabelecidos
da sociedade. Contudo, cria-se uma disputa pelo discurso na
qual a dissidência surge como tudo que escapa a movimentos
que ensejam certa hegemonia na sociedade. As pessoas
consideradas em condição de dissidência em gêneros,
sexualidades e raça são aquelas consideradas sob suspeita
de anormalidades, desvios, doenças e inferioridade devido
ao modo de agir e que despertam muitas interrogações,
estranhamentos e incômodos em uma sociedade que se
pauta por meio de modelos, práticas e ações normativas,
naturalizantes e ahistóricas (COUTO, 2018).
159
A pesquisadora Paula Sibila (2012) afirma que a
educação é algo estruturado na e pela sociedade e que se
transforma de uma época para outra, sendo a escola sua
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

tecnologia de controle. Em seus questionamentos sobre


o papel da escola na atualidade, ela nos faz as seguintes
perguntas: “para que precisamos de escolas agora? Ou
melhor, o que gostaríamos que esse artefato fizesse com os
corpos e as subjetividades que todos os dias transitam por
seus domínios, cada vez mais cheios de grades e tentativas
de controle?” (SIBILA, 2012, p.32).
Tais questionamentos nos fazem refletir, também,
sobre o papel do professor que está neste espaço de
domínio, disputa e controle. Devido a essa preocupação,
perguntamos as(os) alunas(os): vocês se acham
preparadas(os) para falar sobre gêneros, sexualidades e raça
em suas escolas?
Pois bem, muitas dos pronunciamentos expostos
no grupo demostraram a insegurança atrelada ao medo
diante daquilo que poderiam ser colocados, expressos ou
defendidos sob a perspectiva dos estudos em gêneros e
sexualidades em suas aulas. Os fatos estavam muito mais
voltados ao medo de serem julgados simplesmente pela
identidade de gênero ou a orientação sexual, do que serem
professores que estavam lá para fomentar tais assuntos.
Os estudos sobre gêneros, sexualidades e raça
consistem em propor a discussão também sobre
as situações que implicam as posições dissidentes
160
como marginalizadas, a margem, pela supremacia da
cisgeneridade, da heterossexualidade compulsória e das
relações de branquitude como pressupostos de regulação
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

da vida humana.
Toda a centralidade se baseia na pressuposta regulação
do binarismo sexual, homem e mulher, alinhada ao mito da
moral e dos bons costumes ao qual o cristianismo pressupõe a
procriação das espécies como salvação da raça humana. Por isso,
acredita-se que as grades físicas das escolas, que impedem a
violência externa, se colocam também como grades morais que
impedem o questionamento das transformações sociais e suas
contundentes consequências humanas diante das diferenças
em gêneros, sexualidades e raça. Essa forma de subjetivação
vem influenciando vidas a continuarem marginalizadas
pela invisibilização e, consequentemente, apagamento das
potencialidades e aprendizados na escola. Mesmo com tanta
praticidade tecnológica, que nos possibilita sair do espaço
fechado e conservador da escola, parece-nos que as informações
acessíveis sobre gêneros, sexualidades e raça não são suficientes
para que as(os) alunas(os) se sintam seguras(os) a vivenciá-las.
A maioria das alunas(os) disseram não estarem
seguras(os) em falar sobre gêneros, sexualidades e raça nas
escolas devido ao medo das represálias que poderiam sofrer,
tanto como alunas quanto como futuras(os) professoras(es).
Para Sibila (2004), espaço-tempo são momentos congelados
na história das pessoas que devem ser resgatados para o
entendimento de si. A autora nos chama a atenção para
161
uma “arqueologia do eu”, como tentativa de constituir a
individualidade dando sentidos a história de cada um. Em
suas palavras,
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

De acordo com essa visão do mundo e do homem, o


passado tem um “sentido” importantíssimo na definição
do presente e de tudo quanto é. Por isso, impõe-se
mergulhar na interioridade subjetiva de cada indivíduo
à procura dos restos de alguma imagem fundamental
alojada na memória, que permita decifrar o significado
do presente e do “Eu”. Essa viagem introspectiva pode
ser pensada como um autêntico mergulho – pois consiste
em nadar nas sombrias profundezas do sujeito para
desvendar seus enigmas – ou, apelando a outro campo
metafórico igualmente fértil, a proposta equivale a fazer
uma escavação a fim de examinar as diversas camadas
geológicas que foram se acumulando ao longo da história
individual para conformar uma determinada subjetividade.
Ou seja, efetuar uma arqueologia do eu. (SIBILA, 2004, p. 4).

A proposta da criação de aparatos tinha também como


objetivo dar a possibilidade para memórias tão corroídas
pela dor e pelo tempo se transformarem em fatores
significantes para as atividades e os jogos interativos,
que evocariam situações-problema, que seriam diluídas
através das experiências em comum. Estávamos ali juntos,
escavando fósseis emocionais para o surgimento da
arqueologia do eu. Problematizar e suscitar essas questões
implica contextualizar as interfaces que tornavam o
162
entendimento sobre gêneros, sexualidades e raça menos
pesados nas narrativas. Durante toda disciplina, as(os)
alunas(os) puderam falar sobre suas dúvidas e anseios
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

diante do que entendiam sobre gêneros, sexualidades e raça


através de seus entendimentos.
Na avaliação final da disciplina foi proposto a todas(os)
que pudessem oferecer alguma produção individual de
entendimento sobre a disciplina que as(os) ajudaram e que
pudessem também ajudar outras(os) pessoas que tivessem
passado pelas mesmas experiências que elas(es).
Uma das produções avaliativas mais significativa,
para nós, foi o jogo da “Pirâmide das desigualdades sociais
em gêneros e Sexualidades”, oferecido pelo Antúrio,
na qual o objetivo estava em visualizar e refletir sobre
o enquadramento dos marcadores sociais de cada um.
Ao ser colado no quadro em papel pardo uma pirâmide,
mostrava-se dividida em várias camadas entre gêneros
e as sexualidades mais comuns. Em sentido decrescente,
de cima para baixo, em seu ápice estava o homem branco,
heterossexual e cisgênero, cuja contrapartida, na base,
estavam as mulheres negras, lésbicas e transsexuais.
Neste jogo significativo, cada aluna(o) poderia observar na
pirâmide onde se encontraria de acordo com os padrões
da sociedade. Os direitos e deveres estavam relacionados
aos privilégios, amparados em alguns paradigmas
correspondentes ao determinismo biológico, classe social,
cor de pele e comportamentos estigmatizados, o que
163
resulta na diferença visível de tratamento social e acesso
à cidadania, conforme o sujeito se afasta das identidades
impressas e aceitas pela sociedade.
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

E em um outro jogo, também significativo para nós,


Margarida trazia alguns escritos, em tiras de papel, várias
situações rotineiras de preconceitos, discriminações e
estigmatizações mais comuns enfrentados por elas(es) e
narrados durante toda a disciplina. Ela solicitou que cada um
pudesse pegar uma tira, com as frases que marcaram a vida
de cada um, e depois os colocassem colados nos dois corpos,
um homem e uma mulher, desenhados no quadro. Quando
os corpos estavam cobertos pelas tiras, ela então iniciou
um debate sobre como os marcadores são constituídos na
sociedade cis-branca-heteronormativa, através dos históricos
de cada um e como se transformaram em significações de
diferenças. Segundo Margarida, o espaço escolar é o primeiro
e um dos principais territórios de interação que nos permite
estar em contato com o diferente.
Esse posicionamento nos fez parafrasear as reflexões
dos sociólogos Peter L. Berger & Thomas Luckmann (2009),
cujo processo secundário se constituí a partir do momento
que entramos em contato e interação social fora daquele
circunscrito, até então, à família. Assim sendo, acredita-se que
o espaço escolar possa ser este lugar, pois é neste território que
se dão os primeiros momentos em que aprendemos a negociar
com “estranhos”. Diante do exposto no curso, percebemos nos
discursos em sala de aula que as pessoas já sabem quem elas
164
são bem antes de estarem no ambiente escolar, entre amigos
e professores. Porém, é também na escola que estas pessoas
recebem todo o tipo de interdição e significados de reprodução
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

sistemática daquilo que elas deverão ser para além do que é


ser homens e mulheres, ou seja, “a realidade da vida cotidiana
aparece já objetivada, isto é, constituída por uma ordem de
objetos que foram designados como objetos” (BERGER e
LUCKMANN, 2009, p. 38).
O pressuposto aparente se mostra por meio das dúvidas
e anseios de quererem ser o que não podem ser, deparando
com as interdições impostas pelo preconceito e pela
discriminação. Essa necessidade se coaduna como o relatório
final do Seminário promovido pela UNESCO (2013) sobre a
importância da disciplina “Educação e Gênero” nos cursos de
licenciatura de professores, o qual nos aponta que:

No período entre 2003 a 2008, nos cursos de


formação em pedagogia nas universidades que são as
responsáveis pela maioria desses cursos (71%) [...] é
possível constatar que, dentre 989 universidades, há
apenas 41 cursos que incluem gênero e sexualidade,
dentre os quais a grande maioria trata-se de disciplinas
optativas. Desses 41 cursos, apenas têm disciplinas
alocadas em sua grade regular de formação, ou seja,
disciplinas obrigatórias” (2013, p.5).

Portanto, assim como as narrativas apresentadas, a


materialidade a qual a UNESCO se refere vem ao encontro da

165
necessidade pragmática e urgente de que se disponibilizem
disciplinas que discutam gênero e sexualidade, bem como
raça, nos currículos dos cursos de formação de professores,
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

de forma democrática e discursiva. É preciso atentar para


uma política reparativa e afirmativa que edifique o respeito
e o direito à existência das diferenças sexuais e de gênero,
fazendo com que as(os) alunas(os) se sintam mais seguras
para serem quem são, assim como na formação sobre a
temática em gêneros, sexualidades e raça nas escolas.

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da. Juventude e sexualidade. Brasília: UNESCO Brasil, 2004.
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realidade. 30ª edição, Petrópolis, Vozes, 2009.
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educação. Comunicação & política, V 25, nº 2, 2007 p. 091-107
CARLOTTI, Tatiana. O que está por trás do “Escola Sem Partido?”.
Carta Capital - Política, 20 de julho de 2016. Disponível em https://goo.
gl/jSvpzq - Acessado em 21 de agosto de 2017.
GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes
construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: RJ, 2017.
IVENICKI, Ana & CANEN, Alberto. Metodologia da Pesquisa: rompendo
fronteiras curriculares. Rio de Janeiro: Ciências Modernas, 2016.
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problema de todos. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Diversidade
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166
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JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Diversidade Sexual na Educação:
problematizações sobre a homofobia nas escolas. UNESCO, Ministério
Gêneros e sexualidades nos cursos de licenciatura Alexandre Nabor França e Sergio Luiz Baptista da Silva

da Educação: Brasília, p. 85-93, 2009.


LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e
teoria queer. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças.
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NATIVIDADE, Marcelo. As guerras sexuais: diferença, poder religioso e
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PASSARINHO, Nathalia. Dilma Rousseff manda suspender kit anti-
homofobia, diz ministro. Portal G1 - Educação, 25 de maio de 2011.
Disponível em https://goo.gl/HB3HxL - Acessado em 19 de agosto de 2017.
PIZA, Edith. Porta de vidro: entrada para branquitude. In: CARONE, Iray &
BENTO, Maria Aparecida Silva (orgs.) Psicologia Social do racismo: estudos
sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, p. 59-90, 2002.
SIBILA, Paula. A vida como relato nos blogs: mutações no olhar
introspectivo e retrospectivo na conformação do “eu”. VIII Congresso Luso-
Afro-Brasileiro de Ciências Sociais: Coimbra, p. 1-16, 2004. https://www.ces.
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SIBILA, Paula. Redes e Paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2012.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte:
ed. UFMG, 2010.
UNESCO. O perfil dos professores brasileiros: o que fazem, o que
pensam, o que almejam… São Paulo: Moderna, 2004.
UNESCO. Seminário Educação em Sexualidade e Relações de Gênero na
Formação Inicial Docente no Ensino Superior. Relatório final. Fundação
Cravo Chagas, São Paulo, 2013.

167
interferência cromática sobre foto de Patricia Richter | temqueter.org
DANIEL CARA
ENTREVISTA A
PROFESSORA
Daniel Cara entrevista Sara York

SARA YORK
169
ENTREVISTA FEITA VIA CONFERÊNCIA PELA
INTERNET, VIA PLATAFORMA YOUTUBE ONDE
PARTICIPARAM:

Daniel Cara: Cientista político Brasileiro, graduação em


Ciências Sociais, Filosofia, Letras e Ciências Humanas
na Universidade de São Paulo (USP) (1996-2000), foi
presidente do centro acadêmico do curso de Ciências Sociais
da USP, o Centro Universitário de Pesquisas e Estudos
Sociais Ísis Dias de Oliveira (CEUPES), na gestão 1998-1999. É
membro do Conselho Universitário da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp). Jornalista, entrevistador do canal do
Youtube “Jornalistas Livres”

Sara Wagner York: Membra do Grupo de Estudos em


Gênero, Sexualidade e(m) Interseccionalidades na Educação
e(m) Saúde, da UERJ. Ativista pelos direitos LGBTQI+, faz
Daniel Cara entrevista Sara York

parte da Associação Nacional de Travestis e Transexuais


(Antra) no Brasil.
Foi voluntária na ONG Britânica Sahir House, no Reino
Unido, que atua em ações de inclusão de refugiados oriundos
do Médio Oriente e de África. Foi premiada, em 2017, com
a Medalha ALUMNI da Universidade Estácio de Sá pelos
trabalhos científicos desenvolvidos na instituição e na
atuação junto à comunidade.

170
É coeditora do livro Corpos transgressores: políticas
de resistência. É, igualmente, autora de capítulos e artigos
científicos, debruçando-se, especialmente, sobre a vivência
transsexual e travesti e a sua relação com a educação. A
sua investigação centra-se atualmente nos movimentos
transsexual e intersexo na educação e formação. Educacional.

DANIEL CARA
ENTREVISTA A
PROFESSORA
SARA YORK
Daniel Cara entrevista Sara York

Daniel Cara: Boa noite a todas também a vida das pessoas,


e todos! Mais um programa ou seja, questões que de fato
aqui no Jornalistas Livres, toda importam para cada uma e para
quinta-feira às oito e meia da cada um de nós. E hoje eu tenho
noite. Nós entrevistamos uma a honra de entrevistar a minha
pessoa que tem uma colaboração amiga, Sara Wagner York, eu vou
essencial sobre economia, política, apresentar aqui pra vocês quem
educação...Enfim, sobretudo é a Sara que vocês vão ficar de
aquilo que melhora a qualidade queixo caído. A Sara Wagner
de vida das pessoas, que atinge York é mulher trans, travesti,

171
professora, investigadora, pai, tanta gente bacana, que pensa
avó... Isso eu não sabia hein Sara? em educação para gente como
Depois você tem que contar eu e pra gente que nem é como
isso pra gente. Coreógrafa, eu e nem é como você. Gente
Cabelereira, Maquiadora, que talvez vá chegar um dia e vá
Pedagoga, Múltipla e Subversiva e subverter muito mais do que isso
é como ela se apresenta e Mestre que a gente vem tentado fazer!
em Programa de Pós Graduação Muito obrigada pelo convite!
em educação da Universidade da,
aliás, da gloriosa Universidade do Daniel Cara: Ah, foi uma honra te
Estado do Rio de Janeiro, a UERJ, entrevistar Sara, e acho que todo
e ela tem uma dissertação que foi mundo aqui né, tá se perguntando
super elogiada que é intitulada nesse momento assim, qual é a
“Tia, você é homem? Trans / tua trajetória? Como você chegou
da e na Educação: Desafiando até aqui e o que você pode contar
Cistemas” e aí o “Sis” de Sistemas pra gente sobre a sua trajetória?
é com “C”, e ela vai falar sobre Como você se tornou professora?
isso, e ocupando a pós-graduação, Essa é primeira pergunta, qual foi
na qual nessa atividade, nessa o caminho que você trilhou?
tese, ela investigou as políticas de
cotas para Transexuais e Travestis, Sara Wagner: Eh... Eu acho que
nos programas de pós-graduação eu chego Daniel, como eu gosto
Brasileiros. Minha amiga Sara, de dizer que eu sou uma Travesti
Boa noite! DA EDUCAÇÃO e também sou
uma Travesti NA EDUCAÇÃO
Daniel Cara entrevista Sara York

Sara Wagner: Boa Noite meu hoje. Porque educar e trabalhar


querido amigo, Daniel Cara, você com as dinâmicas da educação eu
que é a cara da nossa tentativa já faço há muito tempo. Acho que
de trazer uma educação decente eu tinha quatorze ou quinze anos,
e muito obrigada pelo convite, eu já dava aula de “Baby Class”,
pelo honroso convite. Impossível para quem tem filho e criança,
estar aqui e não agradecer a nossa bem sabe, “Baby Class” são as
maravilhosa “Rede da Campanha aulas iniciais de Ballet Clássico
pelo Direito da Educação”, que faz para as crianças. Então eu já
parte junto com tanta gente boa, era professora nesse momento.

172
Mais tarde eu fui trabalhar com aquela criança que tem “um
montagem coreográfica, cheguei papai e uma mamãe” e a gente
a ter formação de Ballet Clássico sabe há muito tempo que essas
e Jazz. crianças elas já não são, né? Essas
Fui dançar e já era Sara, já crianças, a onde elas estão? Que
usava salto, mas tinha ainda a criança é essa que tem suporte de
possibilidade te estar f luindo “papai e mamãe” como a gente
o que chamaria de “um corpo acha que existe. A maioria das
gay”, por exemplo. E é justamente famílias do Brasil não tem essa
nesse momento que eu acho que composição familiar, inclusive.
eu vou entender que eu era uma Então eu acho que eu venho
Professora, sendo coreografa, assim, educação é isso aí. E mais
trabalhando profissionalmente tarde, fazendo outros trabalhos,
ainda com um grupo incidente eu tive um filho aos dezesseis
um texto do Chico Buarque, anos e esse filho é retirado
que é “O meu Guri”, com um da minha vida, acho que, aos
texto do Zé Nuaidi, que é um cinco, porque “ninguém quer
musical do Chico Buarque e isso ter um Pai que seja como eu”
em noventa e dois. E ali marcar e talvez ser um Pai como eu
muito bem a minha trajetória fizesse muita vergonha a mãe
de educadora e de professora, naquele momento, e esse filho
porque naquele momento, além desaparece, ele some e eu vou
de fazer a direção de um musical, ficar quinze anos sem ver meu
de ser coreógrafa, eu também filho. Quem tem filho sabe, o que
trabalhava com menores de vale um filho, em que você fica
Daniel Cara entrevista Sara York

idade, inclusive alguns desses algumas horas ligando e ele não


atores, trabalhava sobre a atende o telefone e eu fico quinze
dinâmica desse Estado que abusa, anos sem encontrar o meu filho.
desse Estado opressor, desse Nesse período de quinze anos
Estado que não tá nem um pouco muita coisa aconteceu, dessas
preocupado com crianças em um muitas coisas, foram encontrar
modo plural, ele está preocupado um destino possível, uma vida
com um tipo de criança, que possível. E aí, trabalhando,
é aquela criança que pode ser tentando viver até que chego e
uniformizada e bem adequada, desisto com um pouco mais de

173
quinze anos, desisto, tive que preta fabulosa chamada Rita
desistir do meu filho porque eu Monteiro, que foi a primeira VJ
ia enlouquecer, “sem achá-lo da MTV, uma mulher assim,
e procurando e tentando” ... E, massa, é muito bom falar com
dado momento eu desisti desse ela, você iria gostar, e aí ela falou
filho. Eu falei: “Não, ele morreu, assim: “Olha, você vai atender
deixa pra lá e eu não quero mais uma das maiores estrelas, porque
saber disso”. ela quer ser atendida por você” aí
E fui embora tentar outra eu falei: “Ah, mas eu não estou
vida, já tinha formação em cabelo preparada pra atender ninguém
e trabalhando como cabelereira que faça sucesso no Brasil” e ela
me restabeleci rapidamente, fui disse: “Ah, esse você vai querer”
moradora de rua e me restabeleci se chama Elza Soares. Daí eu
com um Salão de Beleza. No falei, “Ah (...)” (risos)
Salão de Beleza no Brasil e para
um Salão de Beleza em Londres Daniel Cara: Ah... Meu Deus do
foi um pulo, porque eu tive uma céu...
formação dada por uma avó,
talvez por isso seja tão caro pra Sara Wagner: (...) E aí eu fui
mim dizer aqui que eu sou uma atender Elza, porque ele iria
avó, e essa geração que tem essa ganhar o prêmio “cantora do
singularidade, essa geração de milênio”. E alí eu acho que (...)
crianças que foram criadas com
avó elas tem “um outro ritmo”, Daniel Cara: E isso em Londres?
a gente compreende como
Daniel Cara entrevista Sara York

esse corpo mais lento, menos Sara Wagner: É. Isso em Londres,


acelerado... Então, a gente tem eu lá no salão no Soho aí eu fui
uma série de comprometimentos atender Elza, porque ele iria
que a gente tem alí, quando a ganhar o prêmio “cantora do
gente fala dessas crianças, “que milênio”. E alí eu faço umas fotos
tem pais mais velhos” que são os com a Elza, tem até uma foto que
avós. E em Londres, trabalhando a gente tá dando um Celinho e
em Londres como cabelereira, foi um dia maravilhoso, e essa
eu atendi uma moça, fui atender foto circula nas redes sociais e
uma moça, a convite de uma eu muito feliz na minha vida,

174
porque lá eu já estava também E aí a pessoa diz:
trabalhando com educação, “Oi Pai, que saudade do seu
trabalhando com população de cheiro meu pai...”
rua, trabalhando com adictos E era o meu filho.
usuários de drogas ilícitas e essa Ele tinha me encontrado em
foto deu uma circulada e apareceu um Facebook , numa foto de Elza
uma coisa lá no meu Facebook Soares... (emocionada)
dizendo: “Favor ligar para o Brasil
urgente”. “Ah, eu vou ligar pro (...)
Brasil? Não conheço esse povo.
Não tenho parente lá, quero que Daniel Cara: Ah, pode chorar...
todo mundo lá morra” (risos) Uma
coisa bem assim, Olavista, “Eu Sara Wagner: É que toda a vez
não quero saber de nada dessa que eu falo disso, são coisas
gente”. Estava muito magoada muito cortantes nas nossas vidas
pelo processo de perda do meu Daniel e que são banalizadas.
filho, mas aí eu falei: “Ah, eu Toda a vez que eu falava do
vou ligar” e umas duas semanas meu filho e da ausência do meu
depois eu liguei. E foi bem filho, parecia que a minha dor
engraçado, porque eu tava bem era menor do que a de outras
me achando, assim né, “a estrela”, pessoas. Sabe? Toda a vez que eu
aí eu ligo e falei: falava da distância e da minha
“Alô” saudade, parecia que o fato de eu
“Alô, quem tá falando?” ter um filho, o meu filho valia
“Aqui é a Sara, de Londres...” menos do que os outros filhos. E
Daniel Cara entrevista Sara York

E dando a carteirada já (risos) eu sou uma mulher que durante


E a pessoa do outro lado esses anos, que passou esses anos
atende assim: procurando esse filho, acho que
“Peraí, só um minutinho...” eu descobri os grandes mestres
E aí eu ouço aquele barulho de espirituais do Brasil; de Chico
gente correndo, e aí a pessoa vai Xavier a João de Deus.
correndo e volta, quando ela volta, Então, todo lugar que me
aí atende a pessoa: falavam: “Olha, tem uma senhora
“Alô” – E eu: ou tem um senhor... A tia Neiva
“Alô, quem é que tá falando – em Brasília, o Daime, a Ayhuasca,

175
qualquer lugar que me dissessem Sara Wagner: (emocionada) Ah,
assim, “olha tem uma senhora olha Deniel, eu fiz toda uma
ali que sabe e que vê carta e maquiagem que agora tá indo...
que sabe como é que é”. Todos
esses lugares, quando diziam, Daniel Cara: Que isso, você tá
eu estava lá. Assim eu conhecí linda! Não se preocupe com isso.
Chico Xavier, assim eu conheci E a sua história faz com que você
João de Deus, assim eu conheci fique ainda mais bonita e ainda
Tia Neiva, assim eu conheci mais brilhante. Só para você aí dar
Manuel Jacinto Coelho, da Ordem uma respirada (...)
Racional, da Cultura Racional,
e assim, eu conheci os grandes Daniel Cara: Sara, a sua história
líderes espirituais desse Brasil e é a nossa história, porque a sua
procurando por um filho. história faz parte da construção
Em todos, o meu filho de quem está aqui assistindo
foi menor, porque era eu. o programa, e de todas as suas
(emocionada) alunas, e de todos os seus alunos,
E quando eu encontro o meu de todxs alunxs como você já
filho, já nesse momento, é, eu me ensinou. (risos) E isso é
preciso fazer alguma coisa que importantíssimo, porque é através
faça isso algum significado e eu das histórias, já diriam os grandes
falei: “Eu vou voltar para o Brasil historiadores, já diria o velho Marx
e vou refazer essa história de dar também. Ontem eu dei aula de
aula. Vou voltar, vou dar aula de Marx e falei dessa questão, porque
Inglês, e dentro de uma escola. Eu a história é na verdade aquilo que
Daniel Cara entrevista Sara York

quero ser uma Professora dentro nos faz humanos. Porque a questão
de uma Escola”. E vou contar essa concreta dos seres humanos é
história, até todo mundo saber que eles imprimem uma marca
que existem essas professoras aqui nesse mundo, infelizmente
(emocionada) muitas vezes essa marca é uma
marca de destruição, mas você tem
Daniel Cara: É isso aí Sara, é isso aí, uma enorme e bela marca de
mesmo, e tem que contar essa construção.
história mesmo. E aí me conta: Você se torna
professora e como é ser Professora

176
(...) fazer uma faculdade e aí eu fui na
Faculdade e passei. Já fiz a prova e
- (Sara Interrompe) - já passei na Universidade, chama
“Universidade”aí ele fala assim:
Sara Wagner: (...) Ah, peraí, antes “Ô Pai, nessa Universidade
disso, eu preciso contar uma coisa qualquer um passa, é só passar
antes... E aí, eu tenho que voltar com a identidade lá que eles te
pro Brasil, e quando eu volto para passam!”
o Brasil, na minha cabeça tá tudo Eu falei – “Ah é?”
muito fácil: Eu chego aqui no “É, isso se chama
Brasil, eu conheço alguém e aí Universidade Privada, no Brasil é
alguém me indica para uma escola assim, nesses Universidades você
pública e eu começa a dar aulas; passa de qualquer jeito. Agora, na
Tudo simples, tudo resolvido. E pública é que é difícil”.
quando eu chego aqui no Brasil E aí, eu fiquei muito
não era nada disso. Tinha que constrangida com o comentário
prestar um concurso público se dele, porque ele estava fazendo
quisesse estar la dentro, tinha que uma piadinha de mau gosto
ser capacitada, tinha que passar e eu achando que eu estava
por um processo exigido pelo MEC maravilhosa na vida, aí ele falou,
e o MEC não facilitava naquele “não, não é assim não”. E eu vou
momento, agora facilita, agora tem prestar o vestibular na UERJ,
uma “outra história por aí”, mas o ingresso no vestibular na UERJ e
MEC àquela altura, o MEC desse passo no vestibular também, e aí
professor que a gente gosta, que eu já estava numa Universidade,
Daniel Cara entrevista Sara York

é o Professo Fernando Haddad, e então eu resolvi concluir as


era um MEC que ele exigia uma duas no mesmo período, e assim,
qualificação, ele tinha todo um eu vou para dentro da sala de
traçado que era pensado “para aula finalmente para tentar fazer
esse professor múltiplo”e aí eu alguma coisa alí que pudesse ser
precisava de um Curso Superior útil. E a gente tá tentando ainda
na área de Educação para poder né? (risos)
entrar e dar aula. E aí eu falo
pro meu filho: “Filho, agora que Daniel Cara: Mas como que é
eu estou aqui no Brasil, eu vou assim; você chega na sala de aula,

177
então você passa aqui, pelo que eu O que significa isso Daniel? Na
tenho informação, pela Estácio de pós-graduação, eu sentei uma vez
Sá, né? ao lado de um colega que falava:
“Eu tô fazendo uma pesquisa,
Sara Wagner: Isso. e falo palavrão com os alunos
do Ensino Fundamental” E eu
Daniel Cara: Na Estácio de Sá desconstruo isso para o aluno do
e na UERJ você se forma e aí Ensino Fundamental, eu explico
você vai dar aulas. Como que como é que esse palavrão pode
é a sua chegada na Escola? reverberar negativamente quando
Primeiro, importante dizer Sara, ele pensa uma série de coisas.
o município que você atua, você Quando eu chego na sala de
atua já no seu município? Ne? aula, numa das primeiras aulas,
eu escrevo lá vários palavrões
Sara Wagner: Eu atuo, mas na lousa, e vou perguntando
hoje eu estou atuando só como quais eles conhecem e quais
Professora de ED pelo EAD eles utilizam e isso numa sala,
da UERJ. Estou professora em uma mesa de pós-graduação
Universitária a distância na ao meu lado, daí eu falei, “Cara,
UERJ. Estou colaborando com a isso é um gênio. Isso é um gênio
“informática na educação’ com maravilhoso!” Porque você mostra
a Professor Ediméia Santos, aqui que é um privilégio do
Ediméia da ABECYBER né? Do homem “cis-hetero”, porque eu
GT vinte seis, então estou com não posso fazer a metade disso. Se
esse pessoal. Sou orientanda do eu colocar um palavrão no quadro,
Daniel Cara entrevista Sara York

Professor Fernando Bocaí, que eu nem volto para a sala de aula.


é uma sumidade no campo da Então, assim, essas nuances
pesquisa da subjetividade e da que acontecem dentro da sala
geração que discute isso tudo, e eu de aula e que não eram vistas
tenho que falar que sou amiga de começam a emergir muito
Luly e da Inês Barbosa, senão eu fortemente, os meus alunos, por
apanho. (risos) exemplo, eles me perguntam com
E eu acho que chego na sala muita facilidade:
de aula, muito colonizada por esse “Ô Tia Sara, você é operada?”
sujeito que manda na sala de aula. No, início, eu fazia meio que

178
desentendida, mas depois eu e tem o “público”. Então eu não
comecei a pensar: posso fazer certas perguntas ao
“Operada de quê?” - e eles Daniel, porque subentendesse
diziam: que: “peraí, isso é do campo da
“Ah Professora, você sabe! intimidade dele”, mas como é
Você fez aquela cirurgia de com a Professora Sara, aí não,
mudança de sexo?” a esculhambação é aberta e aí a
Eu falei – “Amor, isso é muito gente pode fazer o que a gente
íntimo, você já perguntou a algum pode.
professor de matemática se ele já E essas nuances elas
fez cirurgia de fimose?” (risos) começaram na sala de aula a
E aí eu escapava daquela. fazer muita diferença nas escolas
(risos). Porque aí também a gente em que eu passava, porque
começou a questionar: perguntava, o que é que o aluno
“Professora, você já colocou estava tentando dizer? E com
tal coisa” perguntas que também faziam
Daí eu dizia – “Você já essa sala de aula repensar as
perguntou isso pra alguma outra suas dinâmicas de ensino e de
Professora”? aprendizagem.
Daí eu comecei a perceber “Porque que a gente vai
que existia espaço para “alguns poder falar desse corpo público
corpos ocuparem uma sala de aula da Professora Sara, e a gente não
e não tinha para outros”. Então, pode falar desse corpo público da
quem pensa em perguntar para o professora fulana ou professor
Daniel Cara do corpo dele? fulano, porque o corpo desse
Daniel Cara entrevista Sara York

“E aí Daniel, você prótese?” Você professor é privado? Eu me


faz isso? É... Você fez cirurgia, lembro que isso se semelhava
sei lá, hemorroida, né? Ninguém muito àquela ideia que a gente
quer falar disso. Mas com esse tinha de: “Professor não dança,
corpo, como que é visto, digamos, Professor não transa” ... Professor
“público”, que é o corpo Trans na só come então, e de vez em
Educação, ele não tem os registros quando, porque na verdade, ele
de um corpo privado, porque só dá aula e a gente sabe disso.
parece que tudo que é do Daniel, É igual mãe; O dia que a gente
tem o “íntimo”, tem o “privado” descobre que mamãe faz amor, a

179
gente quer morrer... Né? Porque Daniel Cara: Então Sara, só
a gente pensa: “Nossa, ela uma observação, primeiro, eu
também?”. vou mandar um beijo para a
E isso é uma coisa que Cassia Nonato e pela presença
é do sentido do comum, do e participação dela aqui, é
corriqueiro, do cotidiano e importante para todo mundo que
daquilo que atravessa as nossas nos acompanha, que você explique
vidas e que talvez, para algumas esses termos, porque a maior
pessoas, não vai fazer sentido parte das pessoas não conhece,
e para outras pessoas vão fazer inclusive, quero dizer que estamos
TODO o sentido. sendo acompanhados por vários
estudantes da Universidade de
- (CORTE PARA A SARA São Paulo, do curso de pedagogia,
COMENTANDO UM eu quero mandar um abraço
COMENTÁRIO, POSTO para os meus alunos e para as
NA TELA, TRAZIDO PELA minhas alunas, vários estudantes
PARTICIPANTE CÁSSIA de escolas públicas... Então,
NONATO ONDE LÊ-SE: “Em esses termos, para uma parte
todo local em toda instituição o desse grupo ainda são termos
corpo trans é entendido como desconhecidos, então, seria
público. Ridículo, pequeno isso importante que você explique
em pleno ano 2020”) - então. A Cassia ela tem uma filha
que é Trans e ela é Intersexo,
Sara Wagner: A Cassia Nonato, então, o que isso significa?
que vem trazendo aqui pra
Daniel Cara entrevista Sara York

gente um comentário, ela é Sara Wagner: Então, em padrões


uma mãe, é uma parceira, é educacionais, para a escola hoje,
uma aliada e ela é uma mãe de tem o Daniel Cara, como guia,
uma adolescente que é Trans e que a nossa rede produziu e que
que também é intersexo. Então, pensa nessa escola múltipla, nós
assim, essa escola está preparada temos alguma coisa. Nós temos
para a gente poder discutir, para alguma coisa, nós não temos
a gente poder falar com esta tudo. Para alguns padrões de
criança? (...) escola que nunca dialogaram
conosco, por exemplo, essa escola

180
ela nem existe, então esse aluno você já viu, ou seja, isso é MUITA
ele não vai existir. GENTE. É muita gente, um corte
Porque é importante a gente, de 0,7 de uma população toda, ser
aqui, trazer o corpo “Intersexo” e Intersexo no mundo, que tem esse
a Cassia entra tão fabulosamente corpo, e que esse corpo pode ser
trazendo essa memória e essa diferenciado em regime igonodal,
lembrança. Nós gravamos uma ou seja, testículos e ovários, pode
live com as mãe da ABRAI e isso ser correlação a fenótipos, quer
tá na página da ABRAI, que é a dizer “as estruturas externas”,
Associação Brasileira de Intersexo, aquilo que pode parecer mais um
e lá tem muita coisa falando disso. pênis ou mais uma vagina, ou
O mais interessante Daniel, é pode parecer uma outra proporção
que estimasse, a Organização da que a gente não conhece e isso
Nações Unidas, estima que entre está no nosso dia-a-dia, no nosso
0,5 e 1.7% da população mundial cotidiano, está nas ruas do Brasil.
seja Intersexo, ou seja, de cada E essa escola que a gente aprendeu
cem pessoas que nós vemos, que existia, ela não considera
quase duas são Intersexo. esse corpo! Ela não discute com
Mas como assim? Eu vou te esse corpo! Exatamente como a
perguntar:“Você já viu alguma pornografia, eu pergunto a você:
pessoa de cabelo ruivo e que tenha “Quando foi que você aprendeu
cabelo ruivo na sua vida?” coisas sobre sexo”? A gente tá
dando um curso agora que se
Daniel Cara: Ah, sim, sim. chama: “Introdução a Teoria
Queer” pelo PROINICIA da UERJ,
Daniel Cara entrevista Sara York

Sara Wagner: Então, você já e eu estou ministrando esse curso


conheceu alguém que tenha, por com o Professor Rodrigo Torres,
exemplo, vitiligo? e uma das minhas perguntas é:
“A onde você aprendeu sobre sexo
Daniel Cara: Sim. na sua vida? Quem te ensinou a
fazer sexo? Por exemplo, é... Isso é
Sara Wagner: Você já conheceu uma pergunta, e aí, os alunos eles
alguém que fosse... Bem, temos param pra pensar, se foram com
tantas amostragens que são colegas, se foi com parentes, foi
muito superiores a essa. E que com revistinha ou foi com filme...

181
Então perceba, que inclusive, nessa discussão, ou um corpo gay,
enquanto a nossa produção de um corpo lésbico, uma mulher
subjetividade do corpo, “no lésbica, um homem gay... Quando
fazer do prazer”, tá relacionado esses corpos chegam em uma
justamente a uma forma que é Escola eles causam desconforto.
violenta para a mulher. Sempre Por que que causa esse
colocam o homem como uma desconforto? Porque não existia
“grande coisa’ e a mulher como “aquilo” até então. Então esse
“algo menor”, então, todas corpo tende a ser rechaçado, a ser
essas instâncias, elas acabam retirado, até que a gente pega essa
passando por esse “corpo” que é lente e diz: “Não, vamos olhar isso
“naturalizado para a Escola”, o que mais de perto, deixa eu ver aqui
significa, “para você falar, tá ok, de perto se a gente tá normal...” E
porque a gente não vai falar da aí, como dizia o grande poeta: “De
sua genitália”, “eu não vou falar perto, ninguém é normal” Né?
de sexo com o Professor Daniel” Ninguém é normal.
né? “Eu não vou falar de sexo A gente tem todas as nossas
com a Professora Catarina, que é ‘nuances’ das nossas vivências,
a nossa parceira aí né? Ora, com e a gente tenta se aproximar,
a Professora Catarina eu não vou de alguma forma daquilo que é
falar de sexo...Não vou falar, por descrito, nas nossas ciências, bio-
exemplo, de silicone, implante.... medico-patologisantes muitas
“Ah, mas com a Professora Sara, vezes, porque a medicina também
eu posso”. faz esse favor para a gente, porque
Então, todas essas dinâmicas, a medicina foi se desenhando
Daniel Cara entrevista Sara York

“do fazer”, “do pensar a com o que se falava: “Isso aqui é


sexualidade”, “direitos sexuais”, bom” automaticamente a outra
“direitos reprodutivos”, tudo isso, coisa era tido como ruim. Então,
está dentro da sala de aula. E a um homem que tem um falo, um
gente fazia de conta de que não pênis de um jeito, aí fala: “Isso é
existia. okay”, mas então, esse outro aqui,
Quando eu chego nesses provavelmente deve ser ruim.
espaços e não sou eu Sara, mas Todas essas nuances, elas vão
qualquer corpo, ou um corpo dialogar muito com intersexo,
Trans ou um corpo mais agudo com o que a gente vai chamar

182
muito de “Marcas da Diferença”, da sua coordenação, mas também
a diferença como “marca” pensando junto com grandes
social. Acho que é isso. (...) Muita nomes dessa área, e aí, a gente
coisa né? Muita coisa a gente tá pode falar aqui da professora
falando... Liliana, a gente pode falar do
Professor Wagner Santana, gente
Daniel Cara: Sim. Deixa eu da melhor qualidade, e aí você
contar aqui para algumas estão vendo aí na tela. (...)
pessoas, porque algumas pessoas
perguntaram qual foi o guia que - (CORTE PARA A CAPA
você citou e eu aqui passei para a DO GUIA: “GUIA COVID
minha chefa, a Cátia Passos, aqui 19 – EDUÇÃO ESPECIAL NA
na técnica, para ela dispor o link PERSPECTIVA INCLUSIVA -
aqui para as pessoas, mas o guia INFORME-SE E SAIBA COMO
que a Sara cita, é o “Guia Nacional AGIR, COBRAR E TRABALHAR
pelo Direito a Educação”, que PELA EDUCAÇÃO DE MANEIRA
trata da educação na Pandemia na COLABORATIVA) -
perspectiva da inclusiva, inclusive
é o primeiro guia, e a Sara pode Sara Wagner: (...) vocês podem
contar isso pra gente, que ela é ver que é um Guia de Educação
autora com dois nomes que se Especial dentro de uma
apresentam no guia. Então seria perspectiva inclusiva: “O quê que
legal até pra gente você contar significa isso?” Pensar a criança
essa construção que foi feita na com deficiência, mas não apenas
Campanha Nacional pelo Direito isso, pensar em uma criança com
Daniel Cara entrevista Sara York

a Educação, que fica como um deficiência, mas que também,


aprendizado e uma orientação segura nessa página Cátia, para a
para quem nos acompanha aqui gente falar um pouquinho sobre
Sara. essa parte (...)

Sara Wagner: Exato. Eu acho que - (CORTE PARA A SEGUNDA


é fabuloso! O primeiro que eu PÁGINA DO GUIA: “GUIA COVID
tenho a dizer de que eu estou lá 19 – EDUÇÃO ESPECIAL NA
nesse guia, pensando esse guia PERSPECTIVA INCLUSIVA -
com a Andressa Pelana, à partir INFORME-SE E SAIBA COMO

183
AGIR, COBRAR E TRABALHAR sujeitos e militarizar estruturas,
PELA EDUCAÇÃO DE MANEIRA como algumas pessoas tendem
COLABORATIVA) - insistentemente em dizer. Então
eu coloco os dois nomes pra dizer:
Sara Wagner: (...) e a gente pensar “Olha, eu tenho dois nomes, um é
que essa criança é uma criança social e o outro é o registro cível”.
com deficiência, mas que pode E pela primeira vez a gente teve
e vai se tornar um adulto, que que justificar isso, e aí, muito
também tem as nuances dos prontamente eu fiz esse pedido
direitos sexuais e reprodutivos, e a quem estava desenhando esse
em direito ao prazer, tem vários guia que é a Andressa, “Andressa,
direitos que são assegurados a coloca um asterisco e explica
essa criança. que isso é uma parte política de
E aqui, a gente fez uma inserção do nome social a pessoas
coisa meio ousada que foi trazer Trans e Travestis”.
os dois nomes: Eu coloquei o Por que que eu estou dizendo
nome “Sara Wagner York”, que que eu sou Travesti, Daniel?
é meu nome no Instagram, no Seria muito fácil eu dizer que
Facebook, no Midium, onde tem sou uma Professora Trans. Eu
vários textos meus, mas também sou uma mulher Trans, ou eu
coloquei “Sara Wagner Pimenta só sou uma mulher. Poderia
Gonçalves Júnior, porquê Daniel? fazer isso, a partir da Lei de
Porque Sara Wagner York é o 2018, que permite retificação
meu nome social e isso é um documental. Mas a gente
nome que é muito utilizado por “aciona” a Travesti, justamente
Daniel Cara entrevista Sara York

jovens e adolescentes no Ensino porque a palavra Travesti, a


Fundamental e no Ensino Médio mulheres que ainda estão sendo
cada vez mais, e a escola precisa jogadas ao trabalho sexual e não
garantir que se compreendem tem nenhum problema em uma
como Trans ou Travestis o pessoa em decidir por trabalhar
direito ao uso do nome, porque com a venda da sua “hortaliça”,
a função do nome na escola é do seu conhecimento, que é
essa., que é trabalhar com as o que a gente faz, nós somos
diferenças, é socializar a partir professores e nós vendemos
das diferenças e não uniformizar conhecimento ou alguém querer

184
vender o corpo, pra mim, tudo de prostituição no Brasil, e dizer:
faz sentido. Agora, o que não é “Essa pessoa, pode também ser
admissível é que a prostituição uma Professora.
seja o único local que uma Trans E aí com muito orgulho eu
possa estar, e as Travestis no digo: Eu sou uma Travesti da
Brasil, estão sempre relacionadas Educação! Eu sou uma Travesti
a prostituição e de modo na Educação! E isso precisa ser
muito ardiloso pelo sistema repetido, mas às vezes cansa...
governamental, como sujeita de Não é? Às vezes cansa e parece
segunda categoria, como pessoas que a gente tá falando sempre
com menos direitos e a gente a mesma coisa. E por que que
precisa lembrar: “Mulheres Trans a gente tem que repetir muitas
e Travestis são retiradas das e muitas vezes? E aí, você
escolas, são expulsas do Sistema me ajuda muito quando você
Escolar, porque são simplesmente repete também, porque a gente
“Trans”. Então quando começa, tá lutando contra um sistema
bem entre aspas, a “enviadar”, “hegemônico”, onde você vai ser
ou a “ensapatiar”, por exemplo sempre entendido, como uma
né? Se é que existe esse nome, coisa que “você é aceita” e eu
aí a Escola não gosta mais dessa como uma coisa “que talvez a
pessoa, ou ela tolera, desde gente aceite”.
que não fale bobagem, desde Então, eu estava brincando
que não haja de certa forma, e com você e com a Cátia antes da
a gente vem repensando tudo gente começar: “Ô Daniel, você
isso, porque a gente quer uma não sabe que meninos vestem
Daniel Cara entrevista Sara York

Escola que olhe para o Daniel e azul e meninas vestem rosa? Ne?
que diga: “O Daniel é um grande A a gente riu disso e isso é uma
homem da educação”, a gente forma de uma frase dita pela
quer olhar para outros corpos e Ministra da Família desse país,
dizer: “Esses corpos também são que parece que é um absurdo,
da educação”, mas a gente quer mas não é absurdo! O que ela
também olhar para uma Travesti, tá dizendo é: Vamos trocar um
que poderia também compor os pouquinho as palavras: “Se eu
noventa por cento do corpo da disser pra você, ‘meninos vestem
educação, que estão em situação calça e meninas usam saia e

185
vestido’ aí vai fazer sentido”. eu tô sendo apagada? Por que que
Porque você não vê homens por a minha história ela é menor? E o
aí andando de saia ou de vestido. tempo todo a gente fica pensando:
Então quando ela aciona a “cor”, “Quanto serão os outros
ela está falando de “um aspecto”, parceiros?” Eu sei que o Daniel
mas a gente pode intercalar isso já é o meu parceiro... Eu sei que
como múltiplos aspectos e em quem tá aqui ouvindo, pode ter
todos esses aspectos repensados, empatia, pode decidir caminhar
a gente sempre vai entender junto, pode dizer “olha, eu vou
que um corpo feminino ele é conhecer mais essa mulher, vou
subalternizado, ele é diminuído, entender melhor o que ela tá
ele é melhor. Se esse corpo falando”, mas tem muita gente
for feminino e negro, então que vai dizer: “A cloroquina me
ele é muito menor, e se ele for curou” (risos)
feminino, negro e travesti, ele Alguém vai dizer “que a terra
está praticamente condenado a é plana”, e que a minha vida vale
morte, neste país que mata tudo muito porque somos todos iguais.
que é diferente. Começando pela Mas eu digo, na realidade, no dia
história, quando alguém diz: a dia, no cotidiano, a cada passo,
“Eu não quero ouvir isso aí que será que somos todos iguais? Eu
você está falando, essa pessoa sinto isso cotidianamente. E eu
não precisou me dar uma facada, tento criar esse aspecto, para que
porque ela começou matando “alguns alunos meus” possam
e minha história” E aí Daniel, inclusive, estar de igual para
(emocionada) eu volto, lá no igual. Mas eu vejo, que alguns
Daniel Cara entrevista Sara York

começo da nossa conversa para alunos meus que são “negros


perguntar: distintos” se forem gays, ou se
“O meu neto vale menos?” forem pessoas Trans, eles ainda
“O meu filho vale menos?” têm muita coisa para enfrentar.
(emocionada) Porque dentro da minha sala de
Porque se eles não valem aula, talvez eles possam encontrar
menos, porque a minha roupa tá “algum eco” e isso fique menos
condenando toda a minha família, doloroso.
a uma categoria de segunda ou de Mas quantas salas de aulas
terceira ou da morte? Por que que preparadas nós temos preparadas

186
hoje no Brasil para lidar com as de um modo omisso e isso não vai
diferenças? O último ENEM mudar até que a gente entre, em
trouxe para gente isso, no último todas as salas de aula e explique, a
Governo Dilma Rousseff, a gente gente tentou fazer isso, de “baixo
teve uma discussão com os pra cima”. A gente tentou isso
surdos, com a comunidade surda. tentando falar com os Professores,
Naquele momento Daniel, a gente mas infelizmente, a gente ainda
não sabia sequer, como que os precisa vir de “cima para baixo”
alunos que iam e lidavam com e aí de “cima para baixo’ vem a
a diferença, poderiam discutir política de cotas.
esse “capacitismo”, a gente
estava falando de “capacitismo”, Daniel Cara: Sim. Você sabe?
que pode ou não acionar o Deixa eu te contar uma história
conhecimento à partir da sala de bem rápida aqui, sobre essa
Aula, tendo um corpo da diferença “figura” que infelizmente ocupa a
ali ao lado. A gente tinha muitos Presidência da República:
poucos dados naquele momento O ano é 2011 e a Campanha
e isso com uma política que Nacional pelo Direito a Educação
pensava em várias frentes, fez uma Semana de Ação Mundial
imagine agora, que a gente sobre o “Direito a Educação e a
consegue dizer para uma jovem, Diversidade” e era o primeiro
em situação de abuso, a onde ele ano do Governo Dilma, e a
pode encontrar um programa do escolha do tema era, na época
Governo que lhe atenda. E aí, eu que quem coordenava a semana
preciso lembrar aqui, que durante de ação mundial era a Iracema
Daniel Cara entrevista Sara York

esse ano, o Governo Federal Santos do Nascimento, que


tirou de circulação o aborto legal. inclusive te mandou um beijo,
O Aborto Legal, que era um que inclusive, ela queria estar
programa do Governo Federal que aqui junto conosco, mas ela está
dizer que “se uma criança fosse em uma outra atividade, mas
estuprada, ela tinha um lugar para ela recomendou para outros
poder recorrer, a exigir um direito estudantes dela, e certamente,
e a ter a possibilidade de um ela irá acompanhar depois aqui a
aborto para esse motivo”. Então é nossa live e a Iracema organizou
um Governo que tem se colocado a Semana de Ação Mundial,

187
até porque era resposta a toda também na primeira fila. O
articulação política que Eduardo Deputado Tiririca ele chorava. Ele
Cunha e Jair Messias Bolsonaro, não tem um bom desempenho
e outras figuras nefastas que parlamentar não porque ele
a política brasileira tinham falta em muitas sessões, ele
desencadeado e articulado aquilo faz muitas brincadeiras, mas
que tinha-se falado o que era naquele momento era o primeiro
Homofobia, que era o “Kit contra mandato dele, e ele disse pra
Homofobia” que eles batizaram gente assim: “Olha, eu quero
como “Kit Gay”. fazer jus ao mandato fazendo
E aí a gente faz a semana de parte dessa luta”. E o Bolsonaro
ação mundial com muito apoio ficou sabendo, e eu sou de
de uma grande mulher, que é Pirituba, hoje eu não moro mais
a única Governadora de Estado em Pirituba, mas Pirituba nunca
do Brasil, que é a Governadora saiu de mim, quando eu vejo
Fátima Bezerra, na época o Bolsonaro entrando na sala
Deputada Federal, a gente faz a já fazendo provocação, ela na
semana de ação mundial Sara, hora era um Deputado Federal,
lotou como nunca tinha lotado na hora eu saio da mesa e vou
o corredor das comissões, que é enfrentar o Bolsonaro, dizendo
o plenário da CCJ, nunca foi tão que ele não entraria ali, eu nem
lotado na vida daquele plenário, e tinha direito de fazer aqui, ele é
aí a gente lota com um monte de parlamentar e ele poderia entrar
gente e na mesa estava presenta a onde ele quisesse, mas eu peitei
uma mulher trans que ela fala o Bolsonaro e ele ficou, porque
Daniel Cara entrevista Sara York

sobre esses temas que você traz também o Bolsonaro é “cão que
presente “sobre a dificuldade ladra mas não morde” na hora
que ela teve de se formar e H, e tem isso também né? O
porquê ela foi para a educação Bolsonaro ele é extremamente
de jovens e adultos, porque na homofóbico e extremamente
verdade quando ela era criança, machista, mas quando ele se
a escola expulsou ela, e só dois depara, por ser extremamente
parlamentares acompanhavam homofóbico e machista, com
a sessão, Fatima Bezerra na outros homens, porque tinham
primeira fila e o deputado Tiririca outros homens comigo ali,

188
fazendo pressão sobre ele, indo eu discutir com o Bolsonaro,
covardemente ele sai da sala e não ela quase pulou por cima de mim.
entra em discussão, e que eu não (...)
ia as vias de fato até porque não
caberia isso, mas eu fui lá para Sara Wagner: (...) e você lembra
intimidá-lo querendo desrespeitar Daniel, qual era o nome dessa
as pessoas que estavam na sala. mulher Trans?
E aí o que eu quero te dizer
Sara, é que foi a audiência Daniel Cara: (...) Era a Bianca.
pública mais lotada, da história Era a Bianca que estava lá. A
da Campanha Nacional pelo Bianca que ela era da BGLT, e ela
Direito da Educação, e só dois tinha uma fala belíssima, minha
deputados estavam presentes na amiga também né? Participou
mesa e aí eu faço uma crítica para de várias atividades comigo no
a Direita e para a Esquerda, na Conselho Nacional de Educação,
mesa estava uma mulher Trans, ela teve uma fala belíssima e
e eles não queriam aparecer na tinha uma palestra que ela fazia,
foto da atividade porque alí havia que foi a base dessa fala e que
uma mulher Trans, e é por isso chamava atenção pelo fato de que
que eu digo: Faz toda a diferença ela não tinha direito a educação
a Governadora Fátima Bezerra assegurada porque a escola a
no Governo do Rio Grande do expulsou. O Sistema de Ensino a
Norte porque a Fátima Bezerra expulsou.
ela enfrenta todas a brigas que
precisam ser enfrentadas e eu Sara Wagner: Exatamente!
Daniel Cara entrevista Sara York

fico emocionado de dizer isso, Daniel, hoje a gente tem no Brasil,


porque a gente brigou muito pouquíssimas Doutoras Travestis,
para ter parlamentar lá conosco, pouquíssimas, e na Educação nós
mas como a gente vinha com o temos Doutoras, duas, que vamos
“Kit Anti-Homofobia”, ninguém dizer, uma terceira agora, Travesti
tinha e teve a coragem. A Fátima que eu digo. Ainda é uma coisa
Bezerra e reconheço aqui também muito pequenininha, que a gente
o Deputado Tiririca, porque eles conta com muito poucos aliados, e
estavam lá presentes, e bancaram eu acho que aí me permita dizer,
a discussão, a Fátima quando viu porque é muito interessante o que

189
você traz, porque, diz exatamente a aceitar isso, e a pergunta sobre
sobre a sociedade que nós temos, essas demandas é: Quem você
que é uma sociedade que “aplaude vai procurar? Por exemplo: Eu
o filho que migra”, mas que pergunto a você. Daniel, como é
recebe “com pauladas o filhos dos que se preenche diário de classe
outros que vem”. Então, quando o por exemplo? Você é Doutor em
meu filho vai, eu aplaudo, a gente Educação, por uma das mais
faz festa, mas quando o “filho de Universidades respeitadas do
outro alguém vem”, a gente não país e com muitas coisas dentro
recebe do mesmo jeito. da educação que você não saiba!
Imagine que eu falei de vários Essa pode ser uma delas! Mas
assuntos aqui e você conseguiu quando essa pergunta é lançada a
correlacioná-los com uma fala mim, que sou uma mulher
de Bianca que é de 2011, então, Trans e uma Travesti na Educação
são muito poucos os passos que e da Educação, se eu não souber
nós demos. Nós demos alguns essa resposta, eu sou inclusive,
passos que merecem ser pensados inferiorizada por saber menos.
e ditos. Em 2014 a gente tinha a Então, dentro do campo da
possibilidade, ainda, e em 2014, Educação eu preciso saber de:
olha lá quem era o Secretário de Quais são os procedimentos para
Educação hein? Era o Professor colocar o nome social no diário
Fernando Haddad de novo, a escolar, que é um trabalho técnico
gente tem o nome social no e eu sou mestre em educação,
ENEM, isso (...) e me coloca a pensar em outras
coisas, mas se eu não souber
Daniel Cara entrevista Sara York

Daniel Cara: (...) aí era o isso, eu sou deslegitimada dentro


Mercadante. Ministro da desse espaço. Então, o tempo todo
Educação. a gente vem lutando por uma
prática de representatividade que
Sara Wagner: (...) Ah sim, era a gente sabe que só agrega, isso
o Mercadante o Ministro da só agrega a escola. Eu vou te dar
Educação no Governo Dilma. E um exemplo disso, para a gente
a gente já tem a possibilidade do escurecer o exemplo sobre isso:
nome social no ENEM. Isso é um Meus amigos, alguns amigos
avanço porque a escola começa meus passaram para Medicina,

190
amigos brancos, homens heteros, uma outra qualidade não. Eu
bonitos e todo mundo falava “ele escolhi não estar na Medicina, e
merece, é muito difícil passar escolheria MUITAS VEZES ser a
para medicina”. Em 2016 um pedagoga que eu sou, porque aqui
aluno meu me perguntou: “Ah eu aprendi como que se aprende
Professora, como é que você vai esse trabalho tão artesanal que
dar aula de produção de texto se é “aprender para si que é para
você não fez o ENEM? Você já fez aprender como lidar com o outro,
o ENEM?” eu falei “Não” e ele para aprender como facilitar
falou; “Ah, então você tem que compreensões para quem a gente
fazer o ENEM e aí você vai saber acha que, supostamente, a gente
se realmente você vai dar conta ou consegue educar”.
não”. E eu falei: “Ah, então tá, eu
vou fazer o ENEM!” Daniel Cara: Exatamente.
E na época eu passei no Então, só aqui, para eu poder te
ENEM (...) dar um respiro, mostrar aqui
como a nossa live está sendo
- (CORTE PARA SARA acompanhada por muita gente (...)
MOSTRANDO A FOLHA DE SUA
APROVAÇÃO NO ENEM EM - (CORTE PARA DANIEL
MEDICINA) CARA COMENTANDO AS
INTERAÇÕES COM OS
Sara Wagner: (...) então, tá aqui a PARTICIPANTES DA LIVE QUE
prova, ó, eu passei no ENEM com PARABENIZAM SARA PELO
o meu sobrenome. Consegue ver? TRABALHO)
Daniel Cara entrevista Sara York

Daniel Cara: (...) consigo ver. - (CORTE PARA SARA FALANDO


Medicina. Em São João Del Rey. DOS PARTICIPANTES DA
LIVE ALEXANDRE NABOR E
Sara Wagner: (...) Exatamente, FABRÍCIO VILELA)
em Medicina. E eu passei e pude
dizer isso, eu sou uma Professora, Sara Wagner: (...) Deixa eu só
e não é porque eu não tive uma falar sobre dois que você agora
outra opção não, eu não sou citou. Alexandre Nabor, é uma
Pedagoga porque eu não tenho pessoa importantíssima. O

191
Alexandre ele tem um conceito de ser homem, de ser mulher,
que chama “cidadâniedade”. que muitas vezes, muitos de nós
A gente tem vários conceitos somos. Quem nunca ouviu uma
cidadania, de cidadanização, mas mulher ou uma avó dizendo
o conceito de cidadâniedade, que assim: “Eu sou muito mais
foi cunhado por Alexandre Nabor homem do que esse fulano, ou um
e interessantíssimo, porque ele homem falando; ‘Ah, eu faço igual
diz, eu estou dizendo “a muito mulher’; tudo isso são dinâmicas
grosso modo para ser rápida”: Ele de uma performatividade de um
diz que o Estado vem e dá uma roteiro de gênero que a gente não
série de coisas para o indivíduo, pensa. Mas que a todo tempo é
é só ele ir lá e tomar posse, então reforçado em nossa cultura.
por exemplo: O Direito tá aí, é
só você ir na Assitência Jurídica, Daniel Cara: Muito bom,
e você ir lá e fazer o que tem ó, uma outra pessoa aqui te
pra você fazer, o problema é que parabenizando a Cassia Nonato, tá
algumas pessoas não se sentem sinalizando muito aqui no nosso
DIGNAS de ser esse CIDADÃO, chat, comentando a sua fala,
e aí não basta a cidadanização reforçando os argumentos que
acontecer, e aí precisa se pensar você traz, e também agradecer
a “cidadaniedade”, que é o sujeito mais uma vez a Cassia. (...)
se sentir capaz de se sentir
importante minimamente para - (CORTE PARA DANIEL
lutar por essa cidadania que a CARA COMENTANDO AS
gente pensa. Isso é fabuloso! E INTERAÇÕES COM OS
Daniel Cara entrevista Sara York

isso é um conceito de Alexandre PARTICIPANTES DA LIVE QUE


Nabor. PARABENIZAM SARA PELO
O Fabrício Vilela, que é um TRABALHO)
parceiro lá dos estudos Queer, que
é um intelectual e é mestre em Sara Wagner: (...) Temos que
história, e os estudos Queer e a lembrar também Daniel, que a
perspectiva Travesti é exatamente gente não quer criticar, a gente
isso, tá em moda agora, a gente defende uma Escola, mas a
falar esse nome, mas o que é gente defende uma Escola que é
isso? É exatamente esse modo PÚBLICA, ela é laica, ela é para

192
todos, ela é de graça e ela tem que acompanhando esse nossa
ter todos esses viés que precisam conversar, essa nossa conversa
ser ditos, mas mais que isso, é que fala sobre inclusão da
uma educação que é pensada Educação. Eu gostei muito desse
no viés do atendimento que ele conceito da “Cidadaniedade”,
entende que é um cidadão, e que é a cidadania vinculada
àqueles que não sabem ainda que com a ideia da dignidade, de
são merecedores dessa educação. reinvindicação da cidadania,
Porque Educação é Direito! Eu que todos devem ter o poder de
estou indo para a pós-graduação e reivindicar os direitos, porque
para um programa de Doutorado concretamente se trata disso. E a
agora, e eu não vou porque eu sou gente conversa aqui com a Sara
bonita ou a garota sensação, eu York, e querendo reforçar que a
estou indo porque é um direito nossa audiência rotativa, que ela é
meu prosseguir nos meus estudos, professora e mestra em educação,
e isso a gente precisa dizer uma mulher Trans, Pai, Avó e uma
insistentemente. mulher Travesti e ela explicou
a importância reconhecer a
Daniel Cara: É isso aí, e temos identidade dela como Travesti,
a Ana Paula Orlandi, que é mãe dando uma aula para todas e
do meu grande amigo Gabi, e ela para todos nós, e para todxs nós
tá mandando: “`Parabéns Sara, também.
precisamos de vozes corajosas Sara, uma pergunta muito
aqui no Brasil, então um beijo Ana importante que tem muita
Paula. gente querendo acompanhar o
Daniel Cara entrevista Sara York

seu trabalho e conhecer a sua


- (CORTE PARA DANIEL história. Você é autora de livros
CARA COMENTANDO AS né? E é uma autora pujante
INTERAÇÕES COM OS né? Autora de livros, artigos
PARTICIPANTES DA LIVE QUE e também participação em
PARABENIZAM SARA PELO diversas construções acadêmicas
TRABALHO) de construção narrativa e de
construção literária; então, eu
Daniel Cara: E você está queria que você contasse um
vendo aí que tem muita gente pouco dessa sua face “autora”, essa

193
face autora da nossa amiga Sara, “A escola, apesar da gente falar
a minha amiga Sara, então, conta muitas vezes que a escola é isso,
pra gente aqui! a escola é aquilo, é bom a gente
lembrar; não é a Escola. Alguns
Sara Wagner: Daniel, eu acho que sujeitos da Escola se sentem
a gente está construindo novos “os donos da escola’ quando na
moldes, como diz o Paul Preciado: verdade, a Escola é um lugar
“Vai chegar um dia que a gente PÚBLICO! E aí, dentro desse lugar
vai sentir vergonha que a gente que é público, qualquer um de
categorizava pessoas pelo que elas nós manda. E manda com muita
tinham entre as pernas”. E esse categoria.
dia está chegando, esse dia está Então assim, quando alguém
chegando, porque a gente parte diz e coloca “que a escola não
do pressuposto que a gente sabe o presta”, ela precisa muito rever de
que todo mundo tem pelas roupas, que escola é essa de que ela está
pelos cortes de cabelo e pelos falando, porque provavelmente, o
pêlos que ela usa, mas a vida é que ele tem como noção de escola,
muito maior do que isso. é na verdade, UMA PESSOA
E talvez pensar tudo isso a QUE ESTÁ LÁ DENTRO UM
partir dessas análises (...) SERVIÇO QUE NÃO ATENDE
A MAIORIA DAS PESSOAS, que
- (CORTE PARA SARA não atende um determinado
MOSTRANDO A CAPA DO registro MINORITÁRIO em
LIVRO CHAMADO “EDUCAÇÃO prol de um grupo, porque a
EM DISPUTA”) escola não é isso. A escola é
feita, como tudo na vida, é feito
Sara Wagner: (...) e aqui a gente de pessoas, infelizmente, em
tem o “Educação em Disputa” um alguns momentos, tem essas
livro que é feito pelos Professores “emergências”; esses sujeitos mais
Daniel, Jessica e o Rodrigo e que NOCIVOS, por assim dizer, e aí a
foi organizado por eles; A gente gente precisa lutar muito, contra
fala dessa educação que a todo esse tipo de escola (...)
tempo é ameaçada. O tempo a
gente precisa estar fazendo laços - (CORTE PARA SARA
e é muito importante dizer que: MOSTRANDO A CAPA DO
LIVRO CHAMADO “GÊNERO, organizado pela Ana Maria
SEXUALIDADE E GERAÇÃO Barbará e por Sérgio Luiz Baptista
– INTERSECCÇÕES NA da Silva, porque eu quero que todo
EDUCAÇÃO E/M SAÚDE”) mundo que esteja nos assistindo,
Daniel, saiba que isso aqui é
Sara Wagner: (...) esse livro Universidade. A Universidade
aqui, é um livro a qual eu tenho tem um monte e tem algumas
participação em um capítulo; pessoas que a gente nem sabe
que é o “Gênero, Sexualidade e porque existe, mas a Universidade
Geração”, que é organizado pelos tem tanta gente que a gente
Professores Fernando Bocaife, quer beijar na boca, a gente quer
Felipe Carvalho, Nilton... (...) abraçar, a gente quer trazer para
perto e essas pessoas existem.
- (CORTE PARA SARA Gente como você, gente como o
MOSTRANDO A CAPA DO Fernando Horta, que bota a gente
LIVRO CHAMADO “ESTUDOS pra pensar lá na UNB, gente como
SOBRE GÊNERO, IDENTIDADES, as grandes pessoas da UNIRIO, eu
DISCURSO E EDUCAÇÃO – eu falei agora pouco, a Luly, e (...)
HOMENAGEM A JOÃO W.
NERY”) - (CORTE PARA SARA
MOSTRANDO A CAPA DO
Sara Wagner: (...) E esse livro aqui LIVRO CHAMADO “CORPOS
é uma homenagem a João W. TRANGRESSORES – POLÍTICAS
Nery, organizado pelo Professor DE RESISTÊNCIA”)
Dani, da Universidade do Mato
Daniel Cara entrevista Sara York

Grosso e por que que eu estou Sara Wagner: (...) E esse aqui é um
trazendo esse pessoal? (...) outro livro, esse aqui eu organizei
também com Professores daqui,
- (CORTE PARA SARA do Mato Grosso, do Rio de
MOSTRANDO A CAPA DO Janeiro, e aí um livro que eu estou
LIVRO CHAMADO “NOS lendo, que eu ganhei do Alexandre
BABADOS DA ACADEMIA”) Magno, que é um parceiro (...)

Sara Wagner: (...) E esse livro, - (CORTE PARA SARA


“Nos babados da Academia”, MOSTRANDO A CAPA DO

195
LIVRO CHAMADO “EDUCAÇÃO SEXOS’ E CARDIOPATIAS”)
CONTRA A BARBÁRIE”)
Sara Wagner: (...) que é a história
Sara Wagner: (...) É esse aqui, não do Jacob. O Jacob é esse bebê
sei se você conhece? Daniel, que ele nasceu como
uma cardiopatia e ele é intersexo.
Daniel Cara: Conheço. Tá aqui ó?! É um bebê que não tem uma
genitália definida, e tem múltiplas
- (CORTE PARA DANIEL CARA cormobidades. E no primeiro dia
MOSTRANDO O LIVRO QUE de vida intra-uterina, na barriga
ESTAVA ATRÁS DELE EM da mamãe, até o último, ela
UMA ESTANTE, O MESMO era encorajada a abortá-lo pelo
CHAMADO “EDUCAÇÃO sistema de saúde.
CONTRA A BARBÁRIE”) Então, o Sistema de Saúde,
o Governo, ele... “O que você tá
Sara Wagner: (...) É esse aqui dizendo Sara? Deixa eu ver se eu
eu ainda estou lendo, que é do entendi direito: Você está dizendo
Fernando Cássio, que é idealizado que o Sistema de Saúde aborta
por ele, e que tem um trecho lá crianças?”
seu, e me perco nessas aqui né? Sim. Sim, esse Sistema faz
(...) isso! E faz quando uma criança
custa caro para ele. Então
- (CORTE PARA SARA uma criança com “múltiplas
MOSTRANDO A CAPA DE DOS cormobidades”, e que é cardiopata,
LIVROS DE “BELL HOOKS”) e que é intersexo e que custa
Daniel Cara entrevista Sara York

muito dinheiro, essa criança não é


Sara Wagner: (...) Bell Hooks interessante para o Governo, mas
né? Para quem quer ler algo na realidade diz que é “Pró-vida”,
interessante, temos Bell Hooks e e quando na verdade “não quer
esse que eu fiz uma revisão muito mantê-la viva”.
carinhosa (...) E ele faleceu aos dois anos
de idade, o Jacob. E ela conta
- (CORTE PARA SARA essa história. O título do livro é
MOSTRANDO A CAPA DO “JACOB(Y) ‘ENTRE OS SEXOS’
LIVRO: “JACOB(Y) ‘ENTRE OS E CARDIOPATIAS – O QUE FEZ

196
O ANJO”, Então é isso. Histórias lutas pelo direito a educação,
que a gente ignora, que a gente mas quero te dizer que a cada ver
não vê, que a gente precisa muito que eu te encontro, mesmo que
compreender, isso tudo tá dentro seja um encontro a distância, eu
da sala de aula. Tudo isso que a aprendo mais e mais com você,
gente tá falando Daniel, corrobora e é uma pena que a gente tenha
para uma sala de aula excludente e que finalizar um programa e já
sem a diferença e sem a diferença, quero te fazer um pré-convite,
todos nós perdemos. Com a para em uma outra oportunidade
diferença, todo mundo aqui a gente dar sequência a essa
ganha, porque a gente aprende a conversa, para você mostrar o
lidar com o outro, a gente aprende seu trabalho, pra gente tocar em
a respirar, a viver e a ser melhor outros pontos né?
no mundo. Nessa uma horinha que a
gente teve aqui contigo, mas
Daniel Cara: Muito bom Sara! eu queria fazer as duas últimas
Sara, a gente infelizmente tá perguntas que é uma tradição
chegando aqui no fim do nosso do nosso programa, antes de
programa, tudo que é bom uma fazer essas perguntas, eu quero
hora acaba! Uma tristeza isso agradecer à minha chefa, a Cecília
né? Mas todo mundo gostando Bacha, que nos acompanha aqui
demais aqui da entrevista. Eu e que muitas vezes faz a técnica
posso te dizer que é uma das aqui que ajuda a gente a construir
entrevistas que eu estou mais esse programa, ao Fernando Sato,
aprendendo. o “rei do misto-quente”, que é
Daniel Cara entrevista Sara York

O que eu gosto desse quem faz a nossa arte, e dizer que


programa é que eu tenho a o Sato é muito especial e que a
chance de aprender com pessoas gente sente muita falta quando ele
muito especiais e que entrevista não acompanha aqui o programa,
boa, é entrevista que a gente porque ele manda mensagens e te
aprende, e eu estou aprendendo dizer Sara, que o nosso programa
demais com você, já te conheço está sendo acompanhado por
já algum tempo, né? A gente já muitas pessoas e entre elas,
é amigo já de alguns anos aí, de são pessoas que compuseram o
algumas caminhadas, de algumas Ministério da Educação durante

197
os governos Lula e Dilma, e Sara Wagner: (...) e eu chorando
aí vem um recado de Aluízio (emocionada)
Mercadante que, “ele não era o
Ministro na época do nome social, Daniel Cara: (...) É.... Muita
mas era o Ministro da Casa Civil gente importante do debate
e como Ministro da Casa Civil educacional: Então, agora chega
ele orientou à época o Ministro aquele momento triste com duas
da Educação, que era o Ministro perguntas que são importantes
José Henrique Paim”, e dizer que e tradicionais aqui no nosso
ele “tá muito orgulhoso da sua programa, a primeira pergunta,
entrevista, e te manda um abraço Sara, é: Qual é a sua dica cultural?
e um beijo, agradece a sua fala e As pessoas querem saber o quê
ele diz inclusive que ele encerra que a Sara curte fazer, curte ouvir,
a passagem como Ministro da o que que ela curte ler... Enfim,
Educação fazendo uma atividade o que que você indica para todo
no INEP”, uma atividade que mundo que nos acompanha, que
contava com a minha presença está assistindo agora, e que vai
também, a gente lançando o assistir depois como dica cultural,
SINAEB, que era uma ideia da nessa dura pandemia que a gente
Campanha Nacional do Direito a enfrenta no Brasil e no Mundo?
Educação, dos SEDES, que consta
no Plano Nacional do Direito Sara Wagner: Eu acho que eu tive
a Educação, que é o Sistema um problema no olho, e eu não
Nacional de Avaliação da Educação pude enxergar, durante dois dias.
Básica, que iria trazer avaliação Eu sou uma mulher deficiente, eu
Daniel Cara entrevista Sara York

sobre o direito de todas as pessoas tenho um olho cego e de um olho


na educação e que trazia também eu só enxergo esse... E o único
concretamente a agenda LGBTQI+, olho que eu enxergo ficou cego
então, tudo isso aqui foi pedido por dois dias (...)
para eu falar pelo WhatsApp, eu tô
cumprindo aqui uma dura tarefa Daniel Cara: (...) Meu Deus...
de talvez ter dado conta de todas as
mensagens que chegaram. Muita Sara Wagner: E isso foi agora
gente te elogiando, muita gente te dia primeiro de julho, e eu tive
agradecendo (...) vários amigos, mas teve um

198
momento em que eu pensei... E... último abraço. Esse abraço foi
(emocionada) em uma aula inaugural da UERJ.
Teve um momento em que Foi um abraço rápido na aula
eu pensei e eu comentei com inaugural da UERJ desse ano, e
a Joana Marafon que tava aqui aí a gente foi embora. E passado
agora, eu falei: “Ainda bem, que alguns dias, eu tive alguns
eu posso ler meus livros, agora compromissos, e eu recebi a
nas lives. Porque eu pude acessar mensagem que a gente tava em
gente como Jessé de Souza, gente quarentena, e aí eu não saí mais
como você, gente como Iracema, por uma série de complexidades
gente como Fernando Pena, de saúde. E aí você me pergunta
gente como... Tanta gente que né, o que eu aprendi na
faz sentido pra mim através das pandemia? Na pandemia, eu
lives, e eu não precisava “só ler”, aprendi a deixar registros da
então mesmo impossibilitada, minha passagem pela terra em
eu continuei me divertindo com vídeos. Eu quero que; O meu neto
essas pessoas incríveis. olhe (emocionada) e ele acesse
essa live, e ele diga, e eu me
Daniel Cara: Ah, muito bom, emociono toda porque tem mais
então a dica é acompanhar live: de um ano que eu não abraço
“Live contra a Injustiça Social o meu filho e o meu neto, e eu
e de quem quer Justiça Social”, queria que ele visse e dissesse: “A
essa é a dica. Essa é a dica da minha avó era educadora, ela era
Sara. E o que você aprendeu amiga do Daniel e de um monte
durante a Pandemia Sara? Essa de gente bacana e ela era massa”
Daniel Cara entrevista Sara York

é uma pergunta que eu tenho (emocionada).


feito e tem sido importante para
quem acompanha aqui o nosso Daniel Cara: Que lindo! Ó,
programa. vamos aproveitar e mandar um
beijo pro Nicolas, neto da Sara.
Sara Wagner: Daniel, quando Nicolas, um beijo pra você! A sua
eu descobri que eu tava... O avó é uma pessoa espetacular,
último abraço que eu dei, você extremamente especial e ela
não vai acreditar: Mas foi na engrandece, todas e todas,
Presidenta Dilma. Esse foi meu todos e todxs , as pessoas que

199
conhecem ela e que tiveram a sua avó viu? Você tem um prazer
oportunidade de conhecer um enorme! Uma honra de ser neto
pouquinho dela aqui nessa live. de Sara York, minha amiga, Sara,
Eu tenho orgulho de dizer mando um beijo aí para todos
que eu, a Catia e os Jornalistas e todxs que nos acompanham!
Livres a gente só foi um veículo Muita gente aqui emocionada!
para que a Sara pudesse ensinar
a todos, a todas e todxs nós a ser Sara Wagner: Um beijo para todo
um pouquinho mais humano, mundo, eu tô me acabando de
um pouquinho mais atendo, chorar... Porque a gente rí com
um pouquinho mais em de fato muita facilidade. A gente ri de
construir um mundo que seja qualquer piadinha. A gente tá
de fato acolhedor, e é essa a rindo, arreganhando os dentes
experiência que a Sara nos trás, com essa cultura, mas chorar a
sobre a história de luta dela , a gente ainda esconde. E eu gosto
história de superação, a história tanto de chorar, eu acho que
de uma mulher que conseguiu, quando a gente derrama uma
diante de todos os limites que lágrima, a gente tá regando
ainda são impostos, porque a Sara muito aquilo que a gente planta,
ensinou isso aqui pra gente, o e a gente planta muito! A gente
quanto que é difícil ela batalhar vive isso! E é visceral para
todos os dias pelo respeito, por algumas pessoas e eu vejo isso
algo que alguém não deveria cotidianamente nas nossas lutas.
sequer levantar a voz, mas que, Daniel, muito obrigada!
concretamente, pessoas como Muito obrigada! Você é uma
Daniel Cara entrevista Sara York

a Sara nos ensinam que a gente grande mulher que constrói


nunca deve parar de lutar; Como muitas coisas! Pra todo mundo
diriam os gaúchos né? Eu sou que passou nessa live! Eu sou fã
apaixonado pelos Pernambucanos, dos Jornalistas Livres gente! E aí
pelos Gaúchos, pela tradição de não dá (risos) Porque eu só vou
todos os Estados desse rico país encher a bolinha de todo mundo.
chamado Brasil, mas os gaúchos Eu amo o canal. Eu sigo e acho
dizem que: “Não tá morto quem que isso aqui é o futuro do que
peleia”. E a Sara peleia todos os a gente espera ver em nível de
dias, viu Nicolas? Parabéns pela mídia. Uma mídia limpa! Próximo

200
daquilo que é honesto, daquilo vez, conversa com professor e
que é digno, e ético... É isso... com professora, ou se a gente traz
Muito obrigada! uma nova experiência, uma nova
perspectiva, talvez um economista
- (CORTE PARA DANIEL ou um cientista político, ou
FALANDO DA INTERAÇÃO DOS uma cientista política ou um
PARTICIPANTES DA LIVE) economista para a gente discutir
as questões da pandemia.
Daniel Cara: Para quem quer Mas concretamente o que
saber mais da luta da Sara, eu quero dizer é que a Sara, deu
procurem a Sara no Instagram, um SHOW aqui na nossa live; foi
procurem a Sara nas redes sociais. belíssimo, tive alguma forma de
Certamente a Sara, como faz com conhecer o Nicolas, quero poder
todo mundo, ela vai te acolher, conhecer e conversar com ele,
vai conversar contigo, vocês vão que é o neto da Sara, quero ter
se conhecer... Sara é uma pessoa contato e conversar com pessoas
incrível! novas que chegaram aqui no chat.
Meus amigos e minhas E vocês já sabem, quinta-feira
amigas, infelizmente eu tenho que vem, as oito e meia da noite,
que encerrar aqui a nossa live. horário nobre aqui no “Jornalistas
Quero dizer que foi uma live Livres”, a gente vai fazer mais
belíssima, como não poderia uma entrevista, e uma entrevista
deixar de ser com Sara York. que vai lhe ensinar e que vai
Faço um convite a todas e todos poder ensinar a todas as outras
vocês porque aqui eu tenho pessoas que acompanham porque
Daniel Cara entrevista Sara York

um compromisso; eu sempre assim é a educação, a gente


tenho entrevistado professores ensina e a gente aprende juntos,
e professoras. Nós começamos juntas e juntxs! Sara, no final, eu
com o grande Fabiano Melodia, vou aprender a colocar todas as
agora a gente entrevistou a questões aqui certinhas! Quero
Sara. Nós já conversamos com dizer que foi um prazer! Quero
professores e com professoras te mandar mais uma vez um
que trabalhos diferentes e para beijo! Não tô conseguindo nem
a próxima semana, eu estou terminar essa live porque eu não
pensando se a gente mais uma quero sair daqui!

201
Então mais uma vez, Sara,
eu vou te dar o espaço para você
encerrar aí essa live. Dar uma
mensagem ao nosso público e
dizer que tem muita gente te
elogiando aqui no WhatsApp...
Obrigado, Obrigado e Obrigado!

Sara Wagner: Bom, então é isso,


sigam lá. No Instagram eu coloco
muita coisa, no Facebook muito
mais, mas tem um lugar que eu
sou muito zelosa com os textos
que é no Midium. No Midium eu
tenho uma página que é sempre
@sarawagneryork, e lá tem
textos de gente muito fabulosa,
que eu fico tentando traduzir,
é o meu passatempo, é o modo
como a gente faz. Ajuda a gente
fazer uma escola onde eu e meu
neto não precisemos nos sentir
constrangidos como numa festa
de família. É isso.
Daniel Cara entrevista Sara York

202
interferência cromática sobre foto de Cíntia Lazzaroto | temqueter.org
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

O LEGADO DA
PATOLOGIZAcÃO
DA HOMOSSE-
XUALIDADE NA
ESFERA
DO TRABALHO
Nina Hanbury
Moysés Marllon Nascimento
Ricardo Salztrager
204
1. Introdução
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

O TERMO “HOMOFOBIA” DESIGNA, EM LINHAS


gerais, o conjunto das atitudes de rejeição e hostilidade em
relação aos homossexuais (TAMAGNE, 2002). Trata-se, aqui,
de uma definição mais ampla e que serve para sublinhar
um comportamento adverso e mesmo agressivo, embasado
e justificado por argumentos morais, religiosos, políticos e,
surpreendentemente, médicos e científicos. Ele foi empregado
pela primeira vez em 1971 nos Estados Unidos e segundo
Barillo (2000) parece encontrar suas raízes em uma concepção
hierarquizada da sexualidade. De acordo com tal concepção,
o sexo biológico necessariamente determinaria um
comportamento social masculino ou feminino a ele conforme
e, sobretudo, um desejo direcionado ao sexo oposto. Qualquer
configuração que a este esquema escapasse seria classificada
de “anormal”, “desviante”, “perversa” ou “imoral”.
Cabe também destacar a existência de certas gradações
da atitude homofóbica ligadas às expressões de gênero. Por
exemplo, é comum que homens homossexuais detentores
de um comportamento social considerado masculino
sofram menos preconceitos que os ditos “afeminados”. Ou
então que o homossexual ativo geralmente tido como mais
viril seja alvo de um preconceito relativamente menor se
comparado ao passivo. Quanto às mulheres, a homofobia
se manifesta de formas distintas em relação às que se
comportam como femininas e àquelas masculinizadas.

205
Estas gradações refletem a diversidade das expressões de
gênero e sexualidade que desafiam a norma heterossexual
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

de coerência entre sexo, gênero e desejo – o que Butler (2003)


nomeia de matriz heterossexual. É em torno da variedade
destas expressões que a sigla LGBTQI+ (lésbicas, gays,
bissexuais, transexuais, queer, pessoas intersexo, sendo o
sinal de “+” aquele que engloba todas as outras orientações
sexuais, identidades e expressões de gênero) se articula.
Partindo de todo este contexto, nossa proposta é
analisar o legado da patologização da homossexualidade pelo
discurso médico e científico. Nesta medida, constataremos
o quanto a atitude homofóbica foi – e ainda é – por muitas
vezes alicerçada pelo discurso da ciência. Em seguida, nos
voltaremos para uma breve história da luta dos movimentos
sociais contra a homofobia e, por fim, demonstraremos
o quanto a atitude homofóbica interfere no campo da
empregabilidade LGBTQI+.

2. O conceito de homossexualidade
Ao longo dos séculos, são incontáveis os relatos de homens
e mulheres sumariamente perseguidos pelo simples fato
de desejarem alguém do mesmo sexo. Em meio a tanto
absurdo, alguns eram, inclusive, condenados enquanto
criminosos, podendo mesmo ser punidos com a perda
da própria vida. Muitos foram os nomes que receberam
e múltiplas foram as maneiras de a eles a sociedade se
206
referir. Os homens ora eram designados de párias (aqueles
desclassificados e excluídos do convívio social), ora de
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

sodomitas, ora de pederastas. Às mulheres, por sua vez,


eram reservados os termos “tríbades” (carregado de
preconceito) ou “fanchonas” (mulheres com aspectos e
maneiras viris) (ROUDINESCO, 2003). Quando se deu o
advento da sexologia e da psiquiatria ao longo dos séculos
XVIII e XIX, os antigos párias, sodomitas ou pederastas
passaram a ser nomeados de “invertidos” (degenerados
em virtude de uma falha neurológica qualquer) ou de
“uranistas” (anômalos por possuírem alma de mulher em
um corpo masculino).
Embora não haja consenso sobre o fato, é comum
atribuir a criação do termo “homossexualidade” ao médico
húngaro Kertbeny. Este o empregou pela primeira vez em
1869, usando-o para descrever todas as formas de amor
carnal entre indivíduos do mesmo sexo. Rapidamente o
termo se difundiu pelo solo europeu, antes mesmo que se
desse a criação do termo “heterossexualidade”, em 1888.
Podemos dizer que, de maneira geral, tanto a sexologia
quanto o discurso psiquiátrico do século XIX atribuíam a
homossexualidade o caráter de anormalidade ou perversão.
Isto porque, de acordo com Foucault (1988), estes dois saberes
se apoiavam na ideia de um instinto sexual que rege nossa
sexualidade. Tal instinto possuiria tanto um objeto específico
(o homem sendo o objeto da mulher e vice versa) quanto
um alvo único (no caso, o alvo sexual próprio à sexualidade
207
humana seria a união entre os genitais ditos masculinos e
femininos). Nesta acepção, quaisquer manifestações que
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

escapassem a este esquema seriam considerados desvios


ou perversões. Abria-se, assim, espaço para a circunscrição
do campo das anomalias ou anormalidades sexuais. Aí
se incluiriam, além dos homossexuais, os fetichistas, os
voyeuristas, os exibicionistas, os sadomasoquistas, dentre
tantos outros.
Apesar da predominância da ideia de que a
homossexualidade consistia em uma perversão sexual,
alguns médicos, sexólogos e cientistas passaram a lhe
atribuir o caráter de anomalia psíquica ou de distúrbio
de identidade ou personalidade (ROUDINESCO, 2003).
Vale marcar que alguns o fizeram até com boas intenções,
pois tida enquanto distúrbio, a homossexualidade deixava
de ser crime e, portanto, os homossexuais conseguiriam
escapar das legislações por demais opressoras da época.
No entanto, o efeito colateral desta atitude foi devastador:
a homossexualidade deixaria de consistir em um delito,
mas passaria a ser incluída na ordem das doenças e dos
distúrbios orgânicos ou psicológicos. Cabe destacar que
nem todos os psiquiatras classificaram a homossexualidade
como doença em virtude desta “boa intenção”. Pelo
contrário, os discursos moralizatórios e eugenistas
(que almejam a criação de uma raça superior através do
aniquilamento dos tidos como inferiores) eram recorrentes
no discurso científico do século XIX (TAMAGNE, 2002).
208
Seja como for, se a homossexualidade era uma doença ou
um distúrbio, era imprescindível que se buscasse sua causa
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

e, sobretudo, seu tratamento. Deste modo, adveio uma série


de pesquisas encarregadas de encontrar, em vão, as causas da
homossexualidade. Por razões que hoje parecem óbvias, tais
estudos em nada lograram. Foi mesmo curioso ver os mais
diversos sexólogos empenhados em pesquisas sem qualquer
fundamento, imersos em um labirinto do qual era impossível
encontrar saída satisfatória.
Foi exatamente este o cenário que Freud encontrou à
sua frente em fins do século XIX quando se empenhou em
problematizar a concepção de que a homossexualidade era
uma doença ou degeneração. Contra ela, Freud (1905/1996)
ofereceu uma série de argumentos, como o da constatação
de que desejos homossexuais são encontrados em sujeitos
tidos como absolutamente “normais” (com todas as aspas que
se deve atribuir a este último termo). Ou seja, ele sublinha
que não são apenas os doentes nervosos que possuem
tais desejos e que, muito pelo contrário, alguns dos mais
brilhantes homens da história – como Platão ou Leonardo
da Vinci – amavam outros homens. Ademais, a total falta de
provas de que a homossexualidade seria ocasionada por uma
degeneração pesava contra a psiquiatria tradicional.
De fato, a concepção de Freud é outra. Com efeito,
a psicanálise parte do pressuposto de que o sujeito é
originariamente bissexual. Desta forma, se enfatiza que, ao
contrário do que pensava a sexologia, a pulsão ou instinto
209
sexual não possuiria objeto predeterminado e, portanto, de
saída, todos nós seríamos capazes de amar – e efetivamente
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

amamos – tanto homens quanto mulheres. São as vivências


precoces do sujeito que determinam sua homo, hetero ou
bissexualidade adulta. Em outros termos, as experiências
infantis singulares a cada um são cruciais para o processo
de direcionamento de suas libidos para homens, mulheres
ou homens e mulheres, sem contar os que dão preferência
a homens mas ocasionalmente caem nas graças das
mulheres ou os que preferem as mulheres sem jamais
deixar de desejar os homens.
Ademais, se a sexualidade humana não admite
objeto ou alvo específicos, cai por terra a ideia de que
há sexualidades normais e sexualidades perversas ou
desviantes. De fato, Freud denuncia todo o pano de fundo
moralizatório envolvido nesta concepção. Neste sentido,
bastava uma simples observação para se perceber que toda
e qualquer sexualidade admitiria consigo algumas das
manifestações consideradas como perversas para a época:
desejos orais, anais, fetichistas, homossexuais, etc. Por este
viés, o próprio conceito de perversão sexual seria impróprio
ou obsoleto. Quanto aos discípulos de Freud, cabe frisar
que enquanto alguns seguiram suas concepções libertárias
a respeito da homossexualidade, outros praticamente
ignoraram suas ideias, se empenhando na construção de
teorias, no mínimo, normativizantes e moralizatórias sobre
a sexualidade.
210
E foi assim ao longo de todo o século XX: uma
constante luta entre concepções retrógradas e intolerantes
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

e outras mais problematizadoras. Tal luta culminou na


retirada, em 1974, da homossexualidade da lista das doenças
mentais pela American Psychiatric Association. Com ela a
homossexualidade deixou de ser uma “doença mental” para
se transformar em uma “desordem mental” (ROUDINESCO,
2003). Óbvio que isto em nada favoreceu sua afirmação
enquanto manifestação sexual legítima. Apenas em 1987, a
homossexualidade foi retirada totalmente do DSM (Manual
Diagnóstico de Transtornos Mentais) nos Estados Unidos.
A OMS, por sua vez, votou para retirar a homossexualidade
do CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados com a Saúde) no dia 17 de maio de
1990, data hoje conhecida como o Dia Internacional Contra
a Homofobia. No entanto, apesar destas vitórias recentes,
há que se reconhecer que o legado desta patologização da
homossexualidade permanece um desafio para a conquista
de direitos LGBTQI+.
Em suma: este breve percurso histórico serve para
denunciar o quanto, através dos séculos, a homofobia
passou a ser justificada por argumentos efetivamente
científicos, embora de caráter duvidosos. No entanto, não
podemos deixar de marcar que ao lado destas atitudes
pretensamente homofóbicas, os últimos anos também
presenciaram as mais variadas lutas pela afirmação da
homossexualidade enquanto prática sexual efetiva. Ao longo
211
desta luta, foram muitos os questionamentos levantados
pela militância LGBTQI+, sendo para tais eles que agora
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

nos voltaremos. Nos centraremos no caso das lutas


empreendidas em território nacional.

3. As lutas contra a patologização da homossexualidade no Brasil


A pauta da despatologização da homossexualidade vem
sendo levantada pelos movimentos sociais no Brasil desde o
final dos anos 1970. Na época, o movimento era conhecido
pela sigla MHB – Movimento Homossexual Brasileiro.
Com a relativa abertura política que prefigurou o fim da
ditadura militar, os grupos homossexuais começaram
a se articular como organizações políticas ao lado dos
crescentes movimentos negros e feministas. Com a
fundação do Grupo Gay da Bahia em 1980, lança-se uma
campanha nacional para retirar a homossexualidade do
código de doenças, o que culminou, em 1985, na retirada
do parágrafo 302.0 do Código de Saúde do INAMPS. Cinco
anos depois, o Conselho Federal de Psicologia do Brasil
também passou a resolução n° 001/99 contra a patologização
da homossexualidade e, sobretudo, contra as terapias de
reversão sexual (MACEDO, 2018).
Com a chegada do HIV/AIDS no Brasil nos anos 1980s,
muitos militantes se voltaram para a construção de projetos
de combate à epidemia. Conforme aponta Facchini (2011),
a representação inicial da AIDS como “peste gay” levou a

212
uma repatologização da homossexualidade. Surgiu, assim,
a necessidade da construção de uma boa imagem pública
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

da homossexualidade que permitisse a luta pela garantia de


direitos civis e, com isso, observou-se certa desvalorização
dos aspectos considerados marginais da homossexualidade.
Nesta perspectiva, Miskolci (2011) salienta que este processo
de institucionalização dos movimentos homossexuais
brasileiros resultou em certa cooptação que vem a ser
criticada por algumas parcelas do movimento. Entretanto,
há que se reconhecer que os esforços destes militantes
resultaram no que o autor avalia como um dos melhores
programas assistenciais de AIDS do mundo. Em decorrência
do sucesso destes movimentos, houve, inclusive, um
aumento no financiamento advindo do Estado e de outros
órgãos internacionais, o que deu início a um novo tipo de
aliança estratégica entre os movimentos sociais e o Estado.
Neste período, Facchini (2011) aponta também para o
papel da segmentação de mercado, ou seja, o surgimento de
um mercado específico voltado para o – na época – chamado
público “GLS” (Gays, Lésbicas e Simpatizantes). De fato,
na busca pela consolidação de uma imagem pública mais
positiva, os movimentos sociais encontraram um aliado nos
empreendimentos comerciais da época que demonstravam
seu apoio com a exibição da bandeira de arco-íris. Apesar
desse encontro de interesses, a autora salienta que a relação
entre mercado e movimento “não se faz sem conflitos”
(FACCHINI, 2011, p.18). Vale frisar que os limites dessa
213
estratégia se tornam evidentes em casos nos quais “empresas
que defendem a diversidade nas suas campanhas publicitárias
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

(...) também praticam atos LGBTfóbicos” (BRASIL, 2018, p. 15).


Conforme mencionamos, o crescente diálogo entre os
movimentos sociais e o Estado foi fundamental no avanço
da luta pelos direitos no Brasil. Em 1995, foi fundada a
Associação Brasileira de Gays, Lésbica e Travestis (ABGLT).
Ao longo da próxima década, os grupos conquistaram
visibilidade na esfera das políticas públicas do país e foram
conquistando espaço nas áreas da educação, cultura e direitos
civis. Em 2004, é lançado o programa Brasil Sem Homofobia
(BSH) com o objetivo de combater a discriminação. No
documento, reconhece-se que a crescente organização e
visibilidade dos movimentos “têm permitido avaliar com
mais clareza a grave extensão da violação de seus direitos”
(BRASIL, 2004, p. 16). Contra esse cenário, o BSH propôs
ações abrangendo diversos setores da sociedade brasileira,
incluindo os setores públicos e privados. Entre esses,
focalizaremos na próxima seção o “Direito ao trabalho:
garantindo uma política de acesso e de promoção da não-
discriminação por orientação sexual” (p. 16).

4. A situação das pessoas LGBTQI+ no mercado de trabalho


Com o objetivo de promover o direito ao trabalho
da população homossexual, o Brasil sem Homofobia
desenvolveu um programa multifacetado em parceria com
214
o Ministério Público do Trabalho. O programa contava
com Núcleos de Combate à Discriminação no Ambiente de
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

Trabalho, a ampliação de programas de políticas afirmativas,


programas de sensibilização de gestores públicos, dentre
outros (BRASIL, 2004, p. 24). No entanto, cabe lembrar que
apesar desses esforços empreendidos ao longo dos anos,
um estudo feito pela empresa Elancers em 2015 e reportado
no site de notícias G1 apontou que 7% das 10 mil empresas
entrevistadas não contratariam homossexuais, sendo que
o número sobe para 11% no caso de a contratação envolver
cargos que representassem a empresa em público.
Embora em número relativamente reduzido, algumas
pesquisas foram feitas na área. Dentre alguns possíveis
exemplos, podemos mencionar a pesquisa documental de
Costa e Neto (2015) realizada no Centro de Referência de
Direitos de LGBT e Enfrentamento à Homofobia no Estado
da Paraíba. Com ela, os pesquisadores objetivaram verificar
os casos registrados nas instituições de trabalho da cidade
de João Pessoa entre os anos de 2011 e 2013. De acordo com
o relatório dos casos de homofobia, a maioria dizia respeito
“à recusa de atendimento por parte dos funcionários ou
servidores ou mesmo à conivência de superiores que (...) não
tomam medidas para combatê-la” (COSTA & NETO, 2015, p.
141). Fora isso, houve também casos de ofensas e xingamentos
através de termos incisivamente pejorativos. Vale marcar
que a maioria das ocorrências foram voltadas a travestis e
transexuais, o que demonstra que as dificuldades enfrentadas
215
pela comunidade LGBTQI+ são mais agressivas e cruéis
quando nos referimos a pessoas trans, travestis, não-bináries
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

ou de qualquer expressão que fuja da dicotomia masculino/


feminino. Algumas destas ocorrências diziam respeito, por
exemplo, à recusa de reconhecimento dos seus nomes sociais.
Nesta mesma esteira, Garcia e Souza (2010) realizaram
ampla pesquisa com o intuito de examinar as manifestações
de discriminação de homossexuais trabalhadores de bancos
públicos e privados. Ao final da pesquisa, concluíram haver
discriminações diretas e indiretas. Quanto às discriminações
diretas, chamou atenção o fato de um dos bancos analisados,
apesar de conceder plano de saúde a funcionários com
relacionamentos homoafetivos, muito pouco esclarecia em
relação às normas que regulamentavam tal procedimento. Em
outro banco sequer foram constatados benefícios a pessoas em
relações homossexuais estáveis. Já quanto às discriminações
indiretas, foram elencados relatos de piadas no ambiente de
trabalho que, em sua grande parte, serviam para tratar os
homossexuais de forma debochada. Ademais, houve casos
de suspeitas de certa demora para a efetivação de promoções
a funcionários homossexuais, sendo também ressaltadas as
queixas de exclusões do convívio social em lugares informais
como bares e jogos de futebol. Além da óbvia dificuldade de
se formar laços amigáveis ou profissionais dentro da empresa,
saltou aos olhos a ridicularização de homossexuais pelo
corpo gerencial e as mais diversas chacotas sofridas quando
ausentes do recinto de trabalho.
216
Com o compromisso de mudar esta realidade, a ONU –
Organização das Nações Unidas, construiu um Manifesto em
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

prol do “Enfrentando à discriminação contra lésbicas, gays,


bissexuais, travestis, pessoas trans e intersexo em ambientes
corporativos” (Organização das Nações Unidas, 2018). O
manifesto é baseado em 5 padrões. São eles:

1. “Respeitar os direitos humanos” (p. 5), de modo


que todo agente social seja responsável pelo
respeito a tais direitos. Com efeito, no Brasil, toda
a Constituição de 1988 é baseada na Declaração
Universal de Direitos Humanos, o que reafirma
nosso compromisso legal de inclusão sem distinções.
Espera-se que, com isto, as empresas desenvolvam
mecanismos de respeito aos direitos LGBTQI+;
2. “Eliminar a discriminação” (p. 5), o que vale para
qualquer pessoa que interage na organização, do
cliente ao funcionário, acionista ou fornecedores. Este
é um dos fatores decisivos para o respeito com pessoas
LGBTQI+, inclusive nos processos de recrutamento,
seleção, admissão, promoção e nas rotinas de trabalho.
3. “Apoiar” (p. 5), ou seja, salientar a necessidade do
devido apoio aos indivíduos LGBTQI+, sejam eles
funcionários, gerentes, empresários, fornecedores,
clientes, entre outros;

217
4. “Prevenir outras violações de direitos humanos” (p. 5),
isto é, comprometer-se com os direitos LGBTQI+
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

no mercado como um todo, garantindo que seus


parceiros comerciais também não pratiquem
discriminações. Para isso, recomenda-se uma
reflexão mais profunda sobre as diversas formas
pelas quais uma empresa pode se tornar cúmplice da
discriminação LGBTfóbica “através de seus produtos,
serviços ou relações comerciais” (p. 5);
5. “Agir na esfera pública” (p. 6). Com isto, as empresas
deverão usar a sua visibilidade na esfera pública para
demonstrar apoio aos direitos humanos. Ademais,
deverão ser engajadas socialmente e contribuir de
forma incisiva nos debates e embates sociais da sua
comunidade local.

Cabe ressaltar que tal Manifesto da ONU não possuiu como


motivação apenas a questão do acolhimento à população
LGBTQI+ no ambiente de trabalho, encontrando também suas
razões em incisivos dados econômicos. Como exemplo de tais
razões, podemos trazer para a discussão os dados da Harvard
Business Review de que a) empresas que apoiam a diversidade
possuem melhor desempenho no mercado; b) a média de
lucros de corporações que acolhem pessoas LGBTQI+ é
superior que a média e c) funcionários que não expressam sua
identidade LGBTQI+ teriam 73% mais chances de abandonar o

218
cargo do que os assumidos (p. 19). Embora o manifesto aponte
diversos caminhos práticos para o combate à discriminação,
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

vale salientar que ele foi elaborado em parceria com empresas


privadas nacionais e multinacionais, e assim não se propõe a
uma análise mais profunda da divisão generificada do trabalho
e suas implicações para a população LGBTQI+.
Com o objetivo de lançar luz sobre os desafios que ainda
enfrentamos em relação à empregabilidade, nos voltaremos,
por fim, para alguns questionamentos direcionados aos
limites das conquistas institucionais LGBTQI+.

5. Sobre as desigualdades no avanço dos direitos LGBTQI+


Conforme o leitor pôde perceber, no decorrer dos últimos
cinquenta anos, os movimentos brasileiros anti-homofobia
tiveram diferentes nomes, desde o Movimento Homossexual
Brasileiro até a sigla LGBTQI+ que conhecemos hoje.
Tais mudanças foram se empreendendo a partir de
questionamentos levantados sobre a possibilidade de a
própria prática militante estar reproduzindo hierarquias
sociais de gênero, raça e classe. Por este viés, o advento
desta nova nomenclatura marcou a passagem para uma
nova fase de organização dos movimentos brasileiros que
agora visam, sobretudo, à “diferenciação de vários sujeitos
políticos internos ao movimento [com o objetivo de focalizar]
as demandas específicas de cada um desses coletivos”
(FACCHINNI, 2011, p. 16).

219
Com efeito, a expansão da sigla, agora abarcando, para
além de gays e lésbicas, as múltiplas formas de orientações
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

sexuais e de expressões de gênero, se deu a partir dos


questionamentos levantados pelos próprios militantes
e, sobretudo, pelos estudos de gênero e sexualidade das
últimas décadas. Estes, a partir das críticas de Foucault
(1988), vêm se voltando para uma problematização
mais ampla a respeito dos mecanismos de poder que
propagariam a norma heterossexual, sendo justamente
neste contexto que, por volta dos anos 1990, surgiu nos
Estados Unidos, a teoria queer.
Em linhas gerais, a palavra queer, na língua inglesa,
por muitos séculos, “carregou denotações e conotações
negativas [como] estranho, esquisito, excêntrico, de
caráter dúbio ou questionável, vulgar” (LAURETIS, 2015,
p. 397), mas veio a ser usado como termo derrogatório
para homossexuais no final do século XIX. Nos anos
1970, o termo passou por um processo de ressignificação
quando os movimentos de liberação gay passaram a usar
queer com orgulho para descrever as lutas sexuais anti-
normativas, objetivando uma contestação social e política
mais ampla. O termo teoria queer designa, portanto,
“um projeto crítico que [tem] o objetivo de resistir à
homogeneização cultural dos ‘estudos gays e lésbicos’”
(LAURETIS, 2015, p. 398). Com isso, as ref lexões aí em jogo
vêm indicando alguns caminhos para pensar os desafios
da militância nos dias de hoje.

220
No livro “Problemas de Gênero”, Butler (2003), por
exemplo, aponta para o papel da heterossexualidade como
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

determinante da concepção binária de gênero. No que a


autora nomeia de “heterossexualização do desejo”, institui-
se a produção de “oposições discriminadas e assimétricas
entre ‘feminino’ e ‘masculino’ (...) compreendidos como
atributos expressivos de ‘macho’ e ‘fêmea’” (BUTLER, 2003,
p. 39). Em outros termos, ao desmascarar o binarismo
imposto ao sexo biológico como produto da matriz
heterossexual, a teoria queer nos apresenta, portanto,
caminhos para libertar as articulações anti-homofobia para
além dos dualismos homo/hetero e homem/mulher. Assim,
destaca-se que adeptos da perspectiva queer apontam
para a insuficiência de um ativismo que não questione as
categorias binárias sobre as quais a matriz heteronormativa
vem se sustentando.
Outra obra marcante foi “Pensando o sexo” (RUBIN,
1984), na qual a autora discorre sobre o “sistema
hierárquico de valor sexual”, no qual casais heterossexuais,
monogâmicos e reprodutivos configuravam o próprio
topo da pirâmide hierárquica. Por este viés, casais
homoafetivos em relações estáveis e de longa duração cada
vez mais se aproximariam dos padrões de respeitabilidade
deste sistema. Em contrapartida, indivíduos que não
reproduzissem comportamentos sociais associados à
heterossexualidade seriam relegados a posições inferiores
de respeitabilidade social. Entre os grupos que se
221
encontram nos níveis mais baixos da hierarquia, estariam
pessoas transexuais e travestis, assim como trabalhadores
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

do sexo.
De fato, as pessoas trans e travestis passaram a ser
incluídas na sigla desde 1995. Porém, a questão do avanço
nos direitos e demandas específicas à diversidade de gênero
ainda estão entre os menos atendidos pelas políticas de
inclusão. No texto do Brasil Sem Homofobia (BRASIL, 2004),
por exemplo, uma atenção especial foi dada à discriminação
contra travestis e mulheres trans por serem os alvos
mais frequentes de violência LGBTfóbica. Entretanto,
nos relatórios de violência homofóbica elaborados pelo
programa, as mulheres trans e travestis são classificadas
de acordo com seu “sexo biológico”, o que efetivamente
contribui para a postura misógena que atravessa as vivências
de muitas pessoas trans.
Quanto a isto, é necessário marcar que, apesar dos
tantos desencontros, alguns esforços vêm se fazendo,
inclusive, na luta por empregabilidade das pessoas
trans. Ou seja, apesar de a diversidade de gênero, por
muitas vezes, ter representado um ponto cego entre as
iniciativas de empregabilidade LGBTQI+, hoje em dia,
conseguimos vislumbrar cada vez mais iniciativas sendo
empreendidas. Entre estas, destacam-se a criação do portal
de empregabilidade TransEmpregos e os projetos da Casa
Nem pela empregabilidade trans. Tais transformadores
ainda lutam para estender as conquistas dos movimentos
222
LGBTQI+ para as populações mais marginalizadas e
viabilizar a inserção social das pessoas trans e travestis.
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

O TransEmpregos nasceu em 2013 com o objetivo de


combater este cenário de exclusão, buscando facilitar a
inserção de pessoas trans no mercado de trabalho formal.
Conforme destacado no site, a iniciativa começou com o
intuito de fazer uma ponte entre pessoas trans em busca
de empregos e as empresas. Entretanto, logo transpareceu
a necessidade de garantir um ambiente de trabalho que
acolhesse as diversidades. Nisso, o TransEmpregos assumiu
também o trabalho de capacitação das empresas para garantir
um ambiente profissional mais humano e inclusivo. Em meio
a pandemia do COVID-19 de 2020, o TransEmpregos lançou
o projeto TRANS-formAção. O projeto oferece 16 horas de
treinamento gratuito para pessoas trans com o objetivo
de ampliar os conhecimentos digitais, jurídicos e sobre o
mercado de trabalho. Entre os educadores envolvidos no
projeto, um terço são pessoas trans.
A CasaNem, por sua vez, é uma casa de acolhimento a
pessoas LGBTQI+ em situação de vulnerabilidade social no
Rio de Janeiro e, desde 2016, vem organizando uma série
de projetos de apoio a empregabilidade trans. Para além
do sucesso do pré-vestibular comunitário PreparaNem, a
casa oferece o CozinhaNem, CosturaNem, FotografaNem,
entre outros, todos voltados para a capacitação de pessoas
trans nestas respectivas áreas. Em 2020, o CosturaNem foi
um dos idealizadores do projeto “Máscaras do Bem”, em
223
parceria com o Capacitrans RJ e a EcoModas. No projeto de
capacitação em costura, 50 participantes trans receberam
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

uma bolsa auxílio no valor de R$800 e, no total, foram


confeccionadas 17 mil máscaras, todas doadas a outras
pessoas em situação de vulnerabilidade.
Trata-se, portanto, de esforços significativos para
estender os programas assistenciais às parcelas mais
marginalizadas pela hierarquia de respeitabilidade
sexual heterossexista. No entanto, é necessário marcar
que, recorrentemente, tais iniciativas são alvos de
boicotes, principalmente, da parte dos setores mais
conservadores da sociedade. De fato, a conjuntura política
atual vem legitimando estes setores conservadores que
visam ao desmonte dos projetos e conquistas LGBTQI+
das últimas décadas.
Temos, assim, nos dias atuais, uma situação ambígua
em relação à questão da empregabilidade LGBTQI+,
sobretudo, se tivermos em mente a população travesti e
transexual: embora haja iniciativas sendo efetuadas, seu
número extremamente reduzido indica que ainda há um
longo caminho a ser trilhado contra todo o histórico de
patologização destacado neste texto. Por isso, se torna
essencial a atuação incisiva da militância na busca pela
igualdade no gozo dos direitos humanos, a fim de sanar
exclusões sociais e construir uma sociedade mais justa
para todxs.

224
Referências
1 em cada 5 empresas não contrataria homossexuais, diz estudo. G1,
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

São Paulo, 13 maio 2015. Disponível em http://g1.globo.com/concursos-


e-emprego/noticia/2015/05/1-em-cada-5-empresas-nao-contrataria-
homossexuais-diz-estudo.html. Acesso em 1 ago. 2020.
BORRILO, Daniel. L’homophobie, Paris: PUF, 2000.
BRASIL. Secretaria Nacional de Juventude. Diagnóstico da juventude
LGBT: Diagnóstico da juventude brasileira e proposições de ações
estratégicas, 2018. Disponível em https://social.mg.gov.br/images/
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Acesso em 1 ago. 2020.
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227
interferência cromática sobre foto de Patricia Richter | temqueter.org
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

“ Desmunhecando
deste jeito
você não pode
trabalhar aqui ” :
REFLEXÕES SOBRE
BICHAS PRETAS,
ESCOLAS E
POSSIBILIDADES
DE TRABALHO
Paulo Melgaço da Silva Junior
229
ESTE TEXTO SE PROPÕE REFLETIR SOBRE A
experiência de um jovem negro gay afeminado, que se auto
reconhece como bicha preta na escola e no mundo do trabalho,
buscando destacar processos de subjetivação que fogem as
experiências das masculinidades negras cisheteronormativas.
Para atingir os objetivos propostos foi realizado um estudo
qualitativo (IVENICKI e CANEN, 2016) tendo como método
a história de vida (SPINDOLA; SANTOS, 2003). Assim, as
conversas foram realizadas via Whatssap. Os conceitos de
masculinidades (CONNELL 1995, 2016, OLIVEIRA, 2018, SILVA
JUNIOR, 2019), raça (QUIJANO, 2001), interseccionalidades
(CRENSHAW, 2004) iluminaram a discussão teórica. O estudo
apontou para a importância do desenvolvimento de políticas
curriculares e de empregabilidade que possam acolher a
população LGBTQI+, sobretudo as bichas pretas.

1. Um início de conversa
Esta frase está na memória de Wagner1, uma bicha preta, hoje
com 29 anos de idade, cabelereiro, maquiador e representante
de uma importante empresa de produtos de beleza. Ele nos
conta que esta foi a resposta do dono de uma loja de material
de construção quando foi procurar trabalho aos 16 anos.
Naquele momento, como jovem morador da periferia de
Duque de Caxias, ele precisava ganhar algum dinheiro para

1 Nome fictício
ajudar em casa e, como sabia que a loja precisava de ajudante,
ele foi se oferecer para trabalhar. Lá, além de não conseguir
emprego, ainda ouviu que “bicha desmunhecada não podia
trabalhar na casa”. Na memória de nosso interlocutor,
algumas frases marcaram sua infância e adolescência seja na
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

escola ou no cotidiano como: “Preto e bicha não pode existir”,


“Um negão destes viado, o mundo está perdido”, dentre
outras que ele enumerou.
Assim, o objetivo central deste texto é debater a
experiência de um jovem negro gay afeminado, que se auto
reconhece como bicha preta na escola e no mundo do trabalho,
buscando destacar processos de subjetivação que fogem as
experiências das masculinidades negras cisheteronormativas.
Assim, pretendo mostrar, por meio de fragmentos da história
de vida de Wagner como ele se posiciona como bicha preta e
narra acontecimentos, criando significados e resistências para
essa possibilidade de masculinidade negra, subalternizada
pelos próprios grupos de homens negros.
A principal motivação para a realização deste trabalho
foi a necessidade de colocar em xeque visões congeladas e
essencializadas sobre gênero, masculinidades e raça e, com
isso, buscar caminhos que possam valorizar a pluralidade
social e cultural, tentando diminuir e/ou evitar possíveis
preconceitos presentes em nossa sociedade. Utilizo Silva
Junior (2014) para defender a relevância desta pesquisa
quando o autor destaca a abrangência do potencial
discursivo da heteronormatividade que desconsidera
231
outras formas de masculinidades que não atendem às suas
práticas. Essa situação reflete diretamente nos currículos,
prejudicando o entendimento de diversas relações sociais e
culturais presentes na escola.
Ao mesmo tempo, destaco que se no tocante à raça
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

e classe social, os homens negros, vistos pelo padrão


heteronormativo, são os menos escolarizados, sendo
os que possuem uma saída mais rápida da escola, um
aproveitamento considerado ruim por diversos motivos e alta
distorção idade-série. As dificuldades postas nesse quadro de
opressões se ampliam quando pensamos nas bichas pretas,
uma vez que, para além das discriminações sofridas pela
raça e classe social, acrescentam-se as discriminações pela
sexualidade e masculinidades.
Com isso, conhecer suas histórias, vivências e
seus discursos pode contribuir para a sensibilização de
educadores/as e empregadores/as, viabilizando a instituição
de políticas educacionais e de empregabilidade para este
grupo; além disso, busco contribuir para que professores/
as e empregadores/as possam desenvolver novas propostas
de trabalho que evidenciem a diminuição do machismo, da
violência, da homofobia e a valorização da identidade destes
jovens que pouco se veem presente de maneira positiva nos
livros, materiais escolares e na mídia.
Conforme já destaquei em trabalhos anteriores, por
exemplo (SILVA JUNIOR ,2014; 2019; SILVA JUNIOR;
BORGES, 2018), é de fundamental importância acentuar
232
o espaço geográfico no qual o sujeito está inserido, pois
ele permite perceber as tramas de vulnerabilidade e as
desigualdades de oportunidades que são inerentes àquelas
pessoas. Neste caso em específico, Wagner nasceu e
cresceu na periferia urbana de Duque de Caxias. Nesta
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

perspectiva, conhecer a periferia é entender como os


discursos que circulam nos centros urbanos são apropriados
e reinventados, ela é o específico do conjunto. Assim,
Gomes e Silva (2017) nos ajudam a entender a periferia
urbana como um espaço que se faz e desfaz constantemente
de relações específicas, a partir das interseções de idade,
raça, gênero e atravessadas simultaneamente por múltiplas
escalas. Com isso, ser negro, bicha, pobre, adolescente
morador das periferias posiciona e reposiciona o sujeito
constantemente nas diversas escalas das relações de poder
diante de outros sujeitos sociais de diferentes espaços.
Para completar esta linha de raciocínio, recorro a Barnad
(2004) que nos ensina que devemos olhar os sujeitos a partir
de suas múltiplas subjetividades; ou seja, as questões de raça,
masculinidades, sexualidades, classe social, geração devem
ser estudadas de maneira interseccionalizada2 . O sujeito,
visto como um todo em seus múltiplos atravessamentos,

2 É importante destacar que o conceito de interseccionalidade foi cunhado jurista


negra estadunidense Kimberlé Crenshaw em 1989. A proposta é compreender os
processos que se inter-relacionam e são indispensáveis para uma melhor reflexão e
atuação dos diversos segmentos da sociedade que buscam consolidar a democracia
a partir da redução das desigualdades de gênero e raça (CRENSHAW, 2004).

233
permite compreender melhor a complexidade do jogo das
identidades e a escala das desigualdades sociais. Assim,
defendo o argumento de que conseguiremos entender, de
uma forma mais ampla, as relações entre racismo, sexismo,
homofobia a partir da história de vida da bicha preta. Neste
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

sentido, é relevante destacar que, segundo Oliveira (2017),


os estudos interseccionais entre homofobia e racismo no
Brasil ainda são novidade. Este fato, de acordo com Caetano,
Teixeira e Silva Junior (2019), pode estar relacionado com
a pouca representatividade que as bichas pretas possuem
no movimento negro ou no movimento gay e, ao mesmo
tempo, denuncia o número reduzido de pesquisadores nas
universidades de nosso país interessados nesse tema.
Para tentar atingir os objetivos propostos, foi realizado
um estudo qualitativo (IVENICKI; CANEN, 2016), que
buscou dar sentido às particularidades dos discursos e falas
que não podem ser quantificadas, enfatizando reflexões
e críticas diante do tema “ser bicha preta de periferia na
escola e no mercado de trabalho”. Assim, trabalhar com
história de vida é destacar o relato de quem vivenciou o
fato. O método de História de Vida ressalta o momento
histórico vivido pelo sujeito e possibilita penetrar em sua
trajetória histórica e compreender a dinâmica das relações
que estabelece ao longo de sua existência (SPINDOLA;
SANTOS, 2003).
É importante destacar que, para a escrita deste
artigo e apresentação da história de vida do Wagner,
234
realizei conversas abertas informais por meio do
aplicativo WhatsApp 3 no mês de julho. A utilização desta
metodologia foi obrigatória por causa das restrições de
convívio social e deslocamento que estamos vivendo
neste momento, recomendadas pela Organização Mundial
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

de Saúde (OMS) devida à pandemia de COVID-19. O


fato facilitador do encontro foi que o pesquisador já
fora professor do entrevistado quando este estudara no
ensino fundamental e os dois estão conectados pelas
mídias sociais. Desta forma, o primeiro contato virtual
se deu pelo Facebook quando o pesquisador conversou
com o entrevistado sobre o interesse em conhecer e
trabalhar com a sua história de vida. Os demais encontros
aconteceram via WhatsApp e foram marcados por
perguntas de textos e áudios transcritas pelo pesquisador.
O presente trabalho está estruturado da seguinte
maneira: em um primeiro momento, proponho uma breve
reflexão sobre gênero, masculinidades, raça; logo a seguir,
apresento a história e discuto a história de vida do Wagner
e, por fim, as considerações finais.

3 Aplicativo multiplataforma de mensagens de texto e voz instantâneas, chamadas


de voz para smartphones. o envio de imagem, vídeo e documento em PDF, além da
realização de videoconferências envolvendo até quatro pessoas e chamada telefônica
por meio de conexão com a internet.

235
2. Conversas sobre gênero masculinidades e raça
Iniciar uma conversa falando de gênero significa pensar
nas formas como os corpos sexuais são/foram formatados e
posicionados ao longo da história. Scott et al. (1998) destaca
o gênero como uma organização social dos sexos, estando
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

diretamente articulado às relações humanas, ao cotidiano, às


instituições que assim marcam e provocam hierarquizações
de poder. Trata-se de uma das dimensões centrais da
vida social, pois ele acaba por construir e essencializar
noções discursivas do que é ser masculino e feminino nas
sociedades, uma vez que os corpos são as arenas para a
construção de padrões generificados (CONNELL, 2000). A
mesma autora, nos chama atenção ao afirmar que “gênero
é um termo muitas vezes lido como sinônimo de mulheres.
Mas os homens também estão envolvidos em relações de
gênero, e os padrões de masculinidades são construídos por
meio da corporificação social” (CONNELL, 2016, p. 62).
Neste texto, interessa-me pensar nas múltiplas
possibilidades de se vivenciar as masculinidades. Aqui elas
são entendidas como um conjunto de discursos e práticas
que marcam o pertencimento de homens a determinados
grupos sociais. De acordo com Connell (1995, 2000, 2016),
trata-se uma configuração prática em torno da posição dos
homens na estrutura das relações de gênero e seus efeitos
nas experiências físicas, pessoais e culturais.
Nesta perspectiva, existe grande preocupação em criar
normas e regras que tentam associar as masculinidades
236
ao essencialismo biológico, porém as masculinidades são
construídas em práticas diárias nas quais homens buscam
aceitar, rejeitar, recriar possibilidades de engajamento social.
Assim, elas são não podem ser tomadas como realidades
imutáveis e objetivas, estando sempre de acordo com a
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

história e a cultura, bem como sujeitas às relações de poder


(SILVA JUNIOR; BRITO, 2018). Destarte, existem diversos
tipos de masculinidades que coexistem, são produzidas e
hierarquizadas simultaneamente.
Pensando nas relações de poder, podemos posicionar as
masculinidades em grupos distintos, como: masculinidades
dominantes e masculinidades dissidentes. O modelo de
masculinidade dominante está localizado no topo das
relações de poder e nas estruturas patriarcais que destacam
os seus privilégios e deveres dos homens pelo simples
fato de nascerem homens heterossexuais. Este modelo de
masculinidade é denominado por Connell (2000, 2016) como
masculinidade hegemônica que enfatiza a racionalidade,
a força, a aptidão para prática de esportes, a repulsa à
homossexualidade.
Por outro lado, temos as masculinidades dissidentes,
ou seja, aquelas que são construídas como hierarquicamente
inferiores, e estão associadas a estereótipos e a
características relacionadas ao feminino como a fragilidade,
o uso da emoção. Este modelo é denominado por Connel
(2000, 2016) como masculinidades marginalizadas e
por O`Donnell e Sharp (2000) como masculinidades
237
subordinadas, ou seja, aquelas que são produzidas na
exploração e opressão de grupos e minorias sociais4 . Assim
aqueles homens que apresentam uma certa fragilidade,
que deixam transparecer suas emoções, não utilizam da
violência para a solução de problemas, são considerados
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

menos másculos ou gays.


As masculinidades também são racializadas. A exemplo
de Wilchins (2004), entendo raça como uma abstração
que não pode ser relacionada ao determinismo biológico.
Contudo, de acordo com Quijano (2001), foi a invenção
desta categoria chamada raça que permitiu a hierarquização
entre os povos, justificou a violência e a escravidão daqueles
considerados inferiores, constituindo uma história marcada
por dor e sofrimento para os pobres negros.
Por este caminho, o homem negro foi desvalorizado,
desqualificado, animalizado e colocado como o oposto
de colonizador branco, ou seja, foi tratado a partir de sua
dimensão corpórea, emotiva e ameaçadora. É importante
destacar que Wilchins (2004) nos conta como o médico sueco
Charles Lineau (1707-1778) classificou o negro, colocando-o
como aquele que possuía uma inteligência inversamente
proporcional ao tamanho de seu pênis. Com isso, este
homem negro escravizado foi reconhecido como aquele
pronto para realizar trabalhos braçais dada a sua força física,
como reprodutor dado o tamanho de seu pênis e a sua

4 É muito importante lembrar que não se trata de uma minoria numérica.

238
incontingência sexual. Este discurso continuou presente no
imaginário social, mesmo após o término do processo de
escravização. Com isso, o corpo deste homem acabou sendo
relacionado ao sexo, à virilidade e à força.
Então, neste processo de interseção de masculinidades
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

e raça, existe uma visão dúbia entre as masculinidades


negras. Por lado, Connell (2000) irá classificá-las como
marginalizadas, dado todo processo de inferiorização
diante das masculinidades hegemônicas. Por outro
lado, Frosh, Phoenix e Pattman (2002) afirmam que,
na Inglaterra, a masculinidade em garotos negros é
localizada na estrutura falocêntrica, posicionando-os como
superiores aos garotos de outras etnias em relação aos
atrativos sexuais.
A partir de pesquisas realizadas (SILVA JUNIOR, 2014,
2019), posso constatar uma reincidência deste padrão no
Brasil: em um primeiro momento, os homens negros são as
maiores vítimas da violência, assassinatos, do desemprego,
das desigualdades sociais. Por outro lado, a sexualidade, a
força e a masculinidade do homem negro são exaltadas e
reconhecidas, não só entre a comunidade negra, mas por
todos/as, em geral.
Com isso, o corpo do homem negro está marcado
pela hiperssexualização, na qual o pênis (seu tamanho e
desempenho) dá a tônica nas relações entre os homens em
geral, mas principalmente entre homens negros e brancos.
É a partir deste modelo de masculinidade que surge a
239
figura do homem negro ativo, viril, forte. Considerado
como o negão5 , este homem constrói sua masculinidade
entre a exaltação da virilidade esboçada na apresentação do
falo, dos músculos, da força e, sobretudo, no desempenho
sexual. Esses elementos são capazes de orientar a garantia
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

no ideal negão, de determinada superioridade, ainda


que fragilizada, frente às masculinidades brancas (SILVA
JUNIOR, 2014). Como podemos perceber, no jogo das
relações de poder e das expectativas de papéis sexuais, o
homem negro, independente das outras marcas de opressão,
acaba por assumir, a partir de sua sexualidade, uma
postura hierarquicamente dominante para vivenciar sua
masculinidade negra heteronormativa6 . É marcando esta
oposição que surge a bicha preta, que escancara, confunde
este jogo de identidades. Ela mostra para o homem negro
aquilo que ele não quer aceitar e reconhecer, uma vez que,
espera-se que este homem negro hetero ou homossexual

5 A opção por utilizar este termo se deu a partir de pesquisas realizadas nas
comunidades com diversos adolescentes negros (SILVA JUNIOR, 2014; SILVA JUNIOR;
BORGES, 2018) nas quais eles evidenciaram os elogios que as expressões negão e
neguinho trazem a virilidade, a força, a relação de parceria, entre outros atributos.

6 Recorro as mesmas pesquisas por mim realizadas para dizer que estão
considerando masculinidade heteronormativa aquelas relações que nas quais o
homem se coloca como ativo sexual (ou seja, aquele que penetra no ato sexual). Esta
nota se fez necessária, porque muitos entrevistados negros assumiram a prática de
relações sexuais com outros homens (justificada pelo dinheiro recebido, ou troca de
outros favores), mas não se reconheciam como gays ou em relações homossexuais.

240
represente sua força viril ativa e discreta. A bicha preta é
posicionada de maneira diametralmente oposta à do negão
nas relações sociais, principalmente nas periferias urbanas.
Mas quem que é a bicha preta? Antes de responder
à pergunta, é preciso acentuar que o termo “bicha preta”
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

está relacionado a outros nomes com igual força e teor


como: “gay afeminado escandaloso”, “baitola”, “frutinha”,
“biba”, “viado escrachado”, “mariquinha”, entre uma
infinidade de outros. Nesta perspectiva, a bicha preta
será aquela que não interessa por onde ela passa, seja no
asfalto, na quebrada ou ladeira da favela, ela causa e tomba
com as marcas do negão (CAETANO; TEIXEIRA; SILVA
JUNIOR, 2019). Ela coloca em xeque a masculinidade do
homem negro. Pensando em espaços de periferias, onde a
sexualidade deste homem negro é marcada pela virilidade,
força, a bicha preta provoca um estranhamento, uma
desestabilização, uma perturbação.
Neste caso, recorro a Zamboni (2016) para destacar que
ser gay é diferente de ser bicha. Para o autor, bicha é aquela
chamativa, escandalosa, já “o gay afirma-se pela negação
da bicha” (ZAMBONI, 2016, p. 21). Em outras palavras, a
bicha assusta, incomoda porque ela se mostra, ela revela os
homossexuais que não querem ser revelados. Na contramão
do negão, a bicha preta emerge da desqualificação, do
pecado, da anormalidade, do crime, conforme apresenta
Oliveira (2017); com isso, é rejeitada tanto no mercado
afetivo-sexual gay e como no universo negro.

241
Neste contexto, Oliveira (2018) nos mostra que a bicha
nasce do discurso, muitas vezes antes do próprio sujeito
ter consciência do que o termo tenta impor ou de que este
propõe seu aniquilamento. A escola é um dos espaços mais
difíceis para que estas crianças possam socializar, é o local
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

da heteronormatividade: todas as regras de masculinidades


são postas e cobradas dos alunos, desde a divisão das filas, às
brincadeiras e atitudes. Quando a criança é negra, a questão
se complica, ela sofre dupla rejeição: pela sexualidade e pela
raça. Este espaço se torna um dos lugares mais perversos
para estas crianças, que, mesmo sem ter consciência, tentam
escapar das regras impostas pelo jogo heteronormativo, que
busca a cada momento enquadrá-las.
Fora deste contexto e com o passar da idade, as
dificuldades e as lutas contra a rejeição aumentam. Uma
bicha preta carrega consigo as marcas da raça, gênero,
sexualidade, masculinidade, classe social, geracional,
e, quando são hierarquizadas, mostram que a luta pelo
reconhecimento e valorização da identidade ainda será longa.
Aqui coloco uma questão para reflexão: O ano de 2020 está
sendo marcado por uma série de campanhas “Vidas negras
importam”, será que as vidas das bichas pretas, travestis e
transexuais negras estão sendo contadas como estas vidas
que importam? Será que estão sendo consideradas como
vidas que precisam de reconhecimento e dignidade?

242
3. Conhecendo a história de vida
Conheço o Wagner há muitos anos, fui professor dele
no ensino fundamental e nos tornamos amigos nas
mídias sociais. Assim, consegui acompanhar, mesmo que
indiretamente, sua trajetória. Quando fui convidado para
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

escrever este capítulo que tematizava a população LGBTQI+,


pensei em apresentar a trajetória de vida dele para esta
pesquisa. Contudo, como argumentei anteriormente, estamos
vivendo em momento de distanciamento social, então entrei
em contato com ele, falei sobre o texto e do meu interesse em
apresentar a sua trajetória, prometi que utilizaria nome fictício.
Trocamos telefones e passamos a conversar por WhatsApp.
As conversas aconteceram em clima bastante informal.
A motivação central para nossa conversa foi se desenhando
a partir de fatos da história de vida do rapaz, que se
destacam pela forma como ele apresenta seus discursos e
performances como bicha preta, seja na época da escola,
como atualmente nas mídias sociais. Destaquei dois
trechos: o primeiro ocorreu em uma conversa sobre o que é
ser “bicha preta na escola” e o segundo, a respeito da “bicha
preta e empregabilidade”. Conduzi as perguntas. Assim, os
trechos que interessam constituem uma narrativa elicitada
(THREADGOLD, 2005), ou seja, Wagner foi provocado
para que falasse sobre como percebia e vivenciava sua
masculinidade como bicha preta. Ressalto que, para
realizar as transcrições, utilizei as convenções indicadas
por Bastos (2005). Assim, as palavras escritas com letras
243
maiúsculas indicam uma ênfase do narrador, ... uma pausa,
os símbolos ↑↓ indicam frases ditas com uma maior ou
menor entonação.
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

3.1 Ser bicha preta em tempos de escola


Olha professor... eu nem gosto de lembrar ... eu nasci bicha...
mas muito bicha mesmo... desde que lembro de mim eu já
queria ser menina, meus irmãos brigavam ....meu pai brigava
comigo, dizia que não, eu era homem e tinha que brincar com
brinquedos de menino. Acho que a única que nunca brigou
comigo foi minha mãe... ↑ Agora uma frase que lembro que
escutei a vida toda ...de muitas pessoas ... meu pai...meus tios...
irmãos...na rua... Além de preto, viado, toma jeito menino!!
Na escola era a mesma coisa...até o 3º ano não tive problema
...mas do 4º em diante... não sei o que acontecia, eram piadas,
chacotas, brincadeiras de mau gosto... ↑ eu repeti algumas
vezes, muitos professores não tinham paciência comigo....
principalmente os homens, teve um professor de matemática
do último ano que disse que eu podia ser gay, mas não precisa
ser daquele jeito...assim escandaloso....e me lembrou que eu
era preto e pobre e daquele jeito não conseguiria nada na
vida...e olha que ele era da minha cor.... eu era impossível
mesmo.... queria chamar atenção cantava, dançava, gritava
...e brigava também...os meninos que queriam tirar onda
comigo...eu não ficava por baixo...ai baixava um macho que...
eu levar desaforo para casa...de jeito nenhum... - ↑ por isso
244
minha mãe era muito chamada da escola e eu só terminei o
fundamental com quase 17 anos.

Wagner inicia sua fala afirmando que não gosta de


se lembrar dos tempos de escola, as recordações das
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

brigas, da presença da mãe na escola confirmam como


este espaço marcou sua infância e como esse tempo é
perverso para crianças que não vivenciam os padrões
heteronormativos. Neste processo, é interessante destacar
como escola, família e a sociedade em geral buscam
associar gênero e masculinidades às regras da biologia
(CONNELL, 2016; SILVA JUNIOR, 2014), daí a preocupação
em colocar a criança brincando e realizando atividades de
menino.
A associação masculinidades e raça (BARNAD, 2004;
SILVA JUNIOR, 2014) pode ser destacada na frase “além de
preto, viado” - esta expressão pode nos permitir diversas
interpretações. A partir da primeira delas, podemos pensar
nas categorias de opressões (CRENSHAW, 2004). Trata-
se de identidades marcadas por dupla subalternização, o
que amplia a luta pelo reconhecimento. Em uma segunda
leitura, podemos destacar que processo de construção
das masculinidades negras está centrado na estrutura
falocêntrica (FROSH; PHOENIX; PATTMAN, 2002) e a
dificuldade que os homens negros possuem em aceitar
a bicha, uma vez que ela coloca em xeque o modelo de
masculino (CAETANO; TEIXEIRA; SILVA JUNIOR, 2019).
245
A fala do professor de matemática, quando diz ao aluno
que ele pode ser gay, mas não precisa fazer escândalo, revela-
nos as relações entre gay e bicha na sociedade (ZAMBONI,
2016), onde o modelo do gay não afetado é melhor aceito
do que o modelo da bicha preta escandalosa. O mesmo
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

professor, também negro, chamou atenção para a relação


entre os marcadores raciais, de masculinidade e classe social
e as dificuldades de “ser alguém na vida”. Esta afirmação
pode nos revelar como o homem negro vigia as relações de
gênero e raça e sofre incômodo com o posicionamento da
bicha preta (CAETANO; TEXEIRA; SILVA JUNIOR, 2019) e,
em paralelo, como a bicha preta acaba sendo rejeitada no
universo do masculino negro.
O outro fator que nos chama atenção, é como a raça
e o modelo de masculinidade dissidente acabam por
provocar a distorção idade/série, nas pesquisas realizadas
por Silva Junior e Borges (2018) conseguimos perceber isso
em adolescentes negros em relação à escola. Neste caso,
podemos acompanhar como Wagner se desinteressou pela
escola, abandonando-a no final do ensino fundamental.

3.2. Ser bicha preta e a busca pelo trabalho


Eu percebi o preconceito logo quando fui procurar meu
primeiro trabalho com 16 anos. Foi no bairro que eu morava
....eu queria ter meu dinheiro, aí fiquei sabendo que estavam
precisando de atendente em uma lojinha de material de
246
construção. Quando fui conversar com o dono ele primeiro
ficou me olhando.... depois jogou na lata... olha menino,
desmunhecando deste jeito você não vai trabalhar aqui e
nem em outro lugar sério... só em salão de beleza, sei lá... e
disse que eu estava novo e tinha que mudar e falou muita
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

coisa que nem me lembro.... Eu sei que fiz muita coisa para
ganhar dinheiro ... fui empacotador em mercado... trabalhei
vendendo angu na rua...trabalhei em cozinha ... tinha parado
de estudar para trabalhar... Até que consegui um emprego
de carteira assinada num restaurante no Centro perto do
Campo de Santana... os donos tinham uma proposta de
acolhimento de homossexuais, todo mundo que trabalhava
lá era gay, sapatão... eu fui atendente de mesa ... foi lá que
eles me incentivaram a fazer supletivo e terminar meus
estudos.. foi lá também que descobri que tinha jeito e gostava
de trabalhar com beleza, uma amiga me incentivou a fazer
curso... minha mãe apoiou... comecei a fazer penteados afro
arte, maquiagem e designer de sobrancelhas... quando me
firmei um pouquinho, sai do restaurante e abri um salão ...
fiz faculdade e comecei representar uma empresa de beleza e
dou cursos em vários lugares...

Logo no início da narrativa de Wagner, podemos perceber a


dificuldade em conseguir o emprego, a partir das exigências
de um modelo de masculinidade normativa (SILVA JUNIOR;
BRITO, 2018). Ao mesmo tempo, o olhar do possível
empregador, o tempo de silêncio antes de proferir as primeiras

247
palavras como justificativa para não ofertar o trabalho denota
tanto o incômodo que a bicha preta causa em determinados
ambientes, conforme nos mostraram Caetano, Teixeira e Silva
Junior (2019), como o sentimento de anormalidade e o medo da
delação ou desestabilização de outra masculinidades presentes
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

no ambiente, como afirmou Oliveira (2017).


A partir das intercessões gênero e masculinidades, raça
e o mercado de trabalho podemos perceber como acontece a
segregação e a exclusão da bicha afeminada quando as pessoas
tentam classificá-la como inapta para aquele trabalho por ser
escandalosa/desmunhecada/estranha, exigindo uma mudança
de postura. Já aqueles corpos que não se conformam as regras
impostas ficam relegados ao subemprego, principalmente
levando em consideração a baixa escolaridade.
No entanto, um fato chama atenção, o acolhimento,
como os donos do restaurante que ofereceram oportunidade
de emprego e o incentivo de estudar e se encontrar como
profissional. Pequenas políticas, pequenos gestos podem
abrir novos caminhos e possibilidades.

4. Algumas reflexões...
Ao longo deste texto, busquei problematizar a experiência
na escola e no trabalho de um jovem negro que se
autorreconhece como bicha preta. Conhecer a história de
vida de Wagner nos permitiu perceber como a bicha preta,
de uma maneira geral, é vista pelo outro, bem como os seus

248
principais enfrentamentos, sejam no cotidiano escolar como
na busca por trabalho.
É relevante destacar que o texto se refere a moradores
de um local específico. Ou seja, ser bicha preta habitante
de periferia urbana se articula de maneira distinta de outro
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

espaço elitizado, assim como ser negro nestes espaços


se articula de maneira diferente. O espaço influencia
diretamente o processo de co/construção das múltiplas
subjetividades. Isto significa dizer que a história de vida
construída por Wagner é localizada, produzida em espaço
situado, em momentos e com grupos sociais específicos.
Se o rapaz estivesse em outros espaços, certamente iria
interagir com outros grupos e possivelmente construiria
outra história de vida.
Aqui apresentei uma história, que pode se cruzar com
outras diversas histórias de bichas pretas nas escolas e/
ou buscando inserção no mercado de trabalho. Refletir
sobre estas narrativas pode contribuir para pensar em um
currículo (aqui no sentido amplo, ou seja, de todos os atos e
ações escolares e pedagógicas) capaz de problematizar visões
essencializadas, de valorizar as múltiplas subjetividades,
de evitar o sofrimento humano e promover uma educação
para justiça social. Além disso, pode sensibilizar a criação de
políticas de apoio e acolhimento no mundo do trabalho.
Assim, encerro este texto com a fala de Wagner “Eu
não estou rico, mas vivo uma vida confortável, com muito
trabalho ... isso aconteceu porque alguém me incentivou e me
249
fez acreditar que que daria certo, me deu emprego de carteira
assinada e me mandou estudar... eu procuro repetir o mesmo
com as bichas pretas e pobres que conheço”. O que dizer?
Apenas que desejo que este estudo possa contribuir para uma
reflexão e entendimento que favoreça uma aproximação entre
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

escolas, bichas pretas, masculinidades e empregabilidade.

Referências
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institucionais: uma introdução ao estudo da narrativa. Caleidoscópio,
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negões: seus fazeres curriculares em escolas das periferias. Revista
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250
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OLIVEIRA, M. O diabo em forma de gente: (r)existências de gays
“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

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OLIVEIRA, M. Trejeitos e trajetos de gayzinhos afeminados, viadinhos
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2014. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio de
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https://www.revistas2.uepg.br/index.php/rlagg/article/view/11888/pdf3.
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251
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“Desmunhecando deste jeito você não pode trabalhar aqui” Paulo Melgaço da Silva Junior

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Books, 2004.
ZAMBONI, J. Educação bicha: uma a(na[l])rqueologia da diversidade
sexual. 2016. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do
Espírito Santo, Vitória, 2016.

252
interferência cromática sobre foto de Ricardo Matsukawa | temqueter.org
254
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

RJ
projeto
capacitrans
UM DOS PROPÓSITOS MAIS CAROS DESSA PUBLICAÇÃO
trata da visibilidade e do compartilhamento de vozes e
lugares de fala de pessoas que integram a comunidade LGBT,
seja na produção acadêmica como também nos movimentos
sociais.
Convidamos para essa entrevista a travesti, estilista e
empreendedora Andréa Brazil para trazer sua narrativa sobre
as experiências compartilhadas por pessoas transgêneres e
travestis com o mundo do trabalho. Andréa, que também é a
idealizadora do Projeto Capacitans RJ, apresenta o projeto e
faz uma análise de conjuntura da construção das identidades
trans em nossos dias. Vale muito a pena conferir.
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

Basta clicar na imagem.

projeto
capacitrans
RJ
Andrea Brazil

255
Cláudia Reis: Olá você que Andréa Brazil: Basicamente o
chegou aqui, seja bem-vinde ao CAPACITRANS teve duas etapas
nosso conteúdo exclusivo sobre na minha vida, uma parte que
o ebook que você vem lendo. ele foi formalizado, a partir da
Hoje nós vamos conversar com conquista do primeiro edital,
Andréa Brazil, idealizadora do mas tem um histórico aí que vem
projeto CAPACITRANS RJ, um do ano 2000 quando eu precisei
projeto que traz a importante empreender meu primeiro
função de capacitação e negócio, pra não depender mais
integração no mercado de de mercado formal e passar
trabalho para pessoas trans. pelos constrangimentos que eu
passei em mercado formal de
Diógenes Pinheiro: Andréa, mais trabalho e empregos enquanto
uma vez muito obrigado por você gay afeminada, eu transicionei
dispor seu tempo aqui pra falar tardiamente, então eu sofri
pra gente, quando a gente pensou algumas opressões em ambientes
nessa pesquisa achamos essencial de trabalho, tipo “Essa sua voz é
visibilidade pelas próprias muito fina”, “você pode mudar
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

pessoas trans, transgêneros, esse teu visual”, “essa roupa


travestis, LGBTs, e sobretudo para não tá legal”, e “não sei o que”,
educadores como você. Você é e aí assim, eu montei o meu
uma educadora social, que está primeiro salão sem um real no
num projeto inovador, e eu lendo bolso no meu bairro... salão de
entrevistas suas você fala que bairro, a gente pensa que vai ser
o que te mobilizou a fazer esse uma coisa e acaba sendo outra,
projeto de empreendedorismo mas aí quando eu montei o
pras pessoas trans foi sua salão, a primeira coisa imediata
experiência negativa no mercado que eu fiz é, eu quero equipe
de trabalho. E eu queria, como igual a mim, eu quero LGBTs
esse livro vai tratar ainda muito trabalhando comigo, aí eu fui já
desses preconceitos ainda sondando as pessoas e aí eu ia
presentes, eu queria que você em cima das pessoas e daí esse é
falasse um pouco qual foi a sua o conceito de CAPACITRANS, a
principal motivação pra criação essência do CAPACITRANS veio
desse projeto CAPACITRANS. dali, do ano 2000, quando eu

256
abro meu primeiro salão, pelos equipe assumir meu lugar e eu
constrangimentos em ambientes só fico por cima comandando “e
formais de trabalho, por não ser aí como é que foi o movimento
uma travesti ainda e não saber essa semana”, porque eu fui pegar
trabalhar como profissional do um outro trabalho, eu lembro
sexo né... Então eu penso, “tá, de ter feito cabelo de garota de
eu tenho um salão, agora o que programa, interno, aí eu dormia
que eu vou fazer, com que outras a semana inteira em Niterói,
pessoas possam desenvolver, porque era uma renda certa, e a
nem que eu ensine a elas. Aí eu do bairro ficava muito instável
comecei a sondar os LGBTs do pra poucas pessoas trabalhando
meu bairro. E aí veio uma que no salão e todo mundo receber.
ficou minha sócia durante três E aí, eu consegui também entrar
anos, aí veio uma outra que fez depois pra FAETEC, mas antes
parte da equipe durante um bom disso tudo eu também tinha tido
tempo, e aí eu fui passando meus a experiência de ser sido aluna
ensinamentos... e aí eu posso da primeira turma do projeto
dizer que teve o L, B, G, e T. É, Damas do governo César Maia,
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

eu posso dizer que tive todas as ali eu já comecei a observar como


letrinhas, eu tive bissexuais, eu que era um projeto específico
tive gay na minha equipe, eu tive para pessoas trans e travestis, e o
principalmente pessoas trans, né, objetivo era, entre aspas, que elas
e ali a essência já era a pessoa que tivessem uma oportunidade no
ensina para outros iguais. mercado formal, aí eu fui lá para
Só que eu precisei, né, aprender o que era isso lá em 4,
de salão de bairro como eu uma coisa assim. Acho que foi
falei, e eu não queria mais, né, 2004, agora estou meio perdida
trabalhar em emprego formal, nas datas.
já era uma empreendedora de Eu acho que ter vivenciado a
fato, né, mesmo ainda crua, primeira fase do projeto Damas,
precisando me remodelar no que que foi idealizado por Ana
é empreendedorismo, aí eu passo Suzart, todo mundo pensa que
a pegar outros tipos de trabalho foi idealizado por Majorie ..., mas
ligado a cabelo mas de outras não, foi idealizado por Hanna
formas, e aí eu vou deixando a Suzart, Majorie só assumiu depois

257
porque Hanna morreu. e aí tinha formal, e porque só tem que
um núcleo da prefeitura que seguir pras ruas. Porque aí vem
coordenava junto com Hanna uma série de outras questões.
Suzart e as aulas eram para 25, Vem a família que expulsa de casa
30 travestis. E ali eu conheci um adolescente trans, que já está
Luana Muniz, conheci várias tomando hormônio escondido, aí
pessoas trans, um histórico né, e a família descobre, bota na rua,
aí entrega minha idade e acho que aí essa pessoa esse jovem, pré
muitas dela já se foram, inclusive adolescente, ninfeta é aliciada
Majorie Marchi. Majorie depois pro mercado da prostituição,
transformou, criou a ASTRA ali né aí começa ser aliciada pela
que era um plano da Hanna, mas cafetinagem, “ah pra trabalhar
Majorie que foi adiante. Essa coisa na rua tem que pagar”, então isso
do ativismo me acompanha há tudo é uma maneira da gente
muitos anos, muita gente pensa fugir se libertar de alguma forma.
que eu sou ativista agora, há dois O empreendedorismo entra
anos com o CAPACITRANS. Não! na minha vida como uma tábua de
Eu já tenho mais de 15, 20 anos salvação para que eu não dependa
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

dentro do ativismo e Januária nem do mercado de trabalho


me conheceu no comecinho do formal que me discrimina, que
ativismo, do meu ativismo, e ela me exclui, que não me aceita de
ficava sempre de olho em mim, verdade, ou que me usa... usa
cuidando, perguntava “como sempre uma cota só pra fazer uma
é que tá lá, como é que está a média, como é numas empresas
situação da ASTRA?”, porque ela aí, né, que é uma das coisas que eu
já sabia quem era a Majorie... ataco mesmo, que é a empresa que
então a gente tem toda uma fala que é inclusiva que vende a
história aí de luta, de ativismo roupa da Bandeira trans, que vende
e o meu, meu pedaço, digo o tênis da Bandeira trans, mas
assim... meu nicho, eu percebia que não tem trans trabalhando
que era qualificar outras pessoas na equipe. Como também tem
iguais a mim pensando sempre no teatro as pessoas que falam
na exclusão, na invisibilidade, o que quer falar do universo de
nas faltas de oportunidades, na travestis e transexuais e não tem
exclusão no mercado de trabalho pessoas trans na sua equipe de

258
produção, não precisa... “ah eu do CAPACITRANS, não deixei de
não tenho uma atriz pra esse ser presidente da ASTRA mas já
papel porque ela não personifica vou... já vai ter uma nova eleição
bem o personagem’. Beleza, e por agora e eu vou abrir mão do cargo
que que não tem nos bastidores? porque não dá para eu conciliar as
Não tem na direção? não tem na duas coisas. Eu prefiro continuar
consultoria, etc e tal? Hoje eu estou tocando o CAPACITRANS de
Presidenta da ASTRA RIO, mas o forma independente, da forma
CAPACITRANS acabou tomando que tem sido até hoje: com
uma forma, uma proporção muito conquistas de editais, editais de
maior, porque dentro da ASTRA empresas privadas... eu evito a
RIO se tornou a minha pauta, né, ligação com poder público Por
o meu local de fala. Falar sobre que o poder público era para estar
empreendedorismo para que as assumindo essa responsabilidade.
pessoas não dependem do mercado E aí acaba que nós acabamos
de trabalho formal, nem única e fazendo o que o poder público
exclusivamente da prostituição. não faz, é... nós, Indianare,
Então meu local de fala acabou grupos com arco-íris, etc... todos
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

sendo assimilado dentro da... A os grupos de movimento LGBT


ASTRA RIO acabou se tornando acabam fazendo o que o poder
mãe ou “pãe” do CAPACITRANS público não faz. E se não fosse
porque a gente pensa nos homens nosso ativismo de anos, e as
trans também né? E aí essa... essa, que tombaram e que morreram
essa situação toda... foi criado antes da gente... e que tão na luta
também um fórum TT no Rio de muitos anos como Giovanna Baby.
Janeiro, e aí dentro do Fórum TT Se não fossem essas pessoas, a
nós nos unimos: Grupo pela vida, gente não tinha conseguido subir
Transrevolução, Casa Nem, GDN um degrauzinho como a gente
de Niterói... Então a ASTRA acabou tá conseguindo agora como a
se tornando uma parcela dentro de conquista da retificação.
um grupo que coordena o Rio de É um obstáculo a menos
Janeiro inteiro. Quando tem ações, na hora da contratação? É.
uma vai ajudando a outra. Ah, você chega lá, você se
Então, eu não deixei de ser apresenta com seu RG, com
ativista porque eu passei a cuidar sua identidade retificada. Isso

259
facilita? Facilita. Mas continua teria voltado com tanta força e
não resolvendo questões de como CAPACITRANS hoje como
padrões de passabilidade. “Ah ele está. E isso eu agradeço a
não é... qualquer coisa a gente te Indianare Siqueira, que depois
chama”. Beleza, retifiquei botei de algumas decepções dentro
identidade, CPF com meu nome da ativismo, foi na minha porta,
lá, registro atualizado né, anulei porque ela é minha vizinha né,
o antigo, agora eu sou ela, agora... foi na minha porta e me resgatou
ou eu sou ele né, quando é o caso de volta para isso, pro ativismo,
do homem trans, mas ainda existe ela “porque que você tá sumida ?
um critério de embarreiramento Eu sei que o movimento às vezes
social, que é o quê? Padronizações invisibiliza, apaga... mas volta, a
de corpos, passabilidade, gente precisa de você”. E graças a
padronizações... tem que parecer ela... eu tinha me afastado depois
uma mulher, ter que parecer um de tantas decepções, porque o
homem, ser branco, ser loira. Não! ativismo no Rio de Janeiro ficou
E aí continuem invisibilizando muito limitado né a GGG... é só
outros povos dentro da própria os gays que predominam, só os
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

letra T: homens trans pretos, gays que coordena, só os gays né?!


mulheres trans pretas, homens Então ficou um pouco, um pouco
trans fora do padrão corpóreo dessa mágoa dentro.. e algumas
exigido pela sociedade... trans que também não deixavam
Então o CAPACITRANS com outras aparece.
luta contra isso tudo. A gente Eu entendia, por exemplo, eu
tem curso de imagem, que seria tenho uma questão com Majorie
penteado e maquiagem... a gente né, eu era uma das diretoras da
nem fala curso de beleza porque primeira formação da ASTRA
a gente odeia a reprodução desse e óbvio, a Cláudia quando fez a
termo... padronizar Beleza. O que apresentação de todos nós aqui ela
que é beleza para cada pessoa, nos descreve né: Andréa branca,
sabe? O teu padrão de beleza pode Diógenes, Cláudia branca... ela
ser divergente do meu, e assim falou uma coisa que realmente eu
vai. Então, muita coisa a gente reconhecia que seria um problema
desconstrói dentro do ativismo eu como uma das diretoras da
se não fosse o ativismo eu não ASTRA. E enquanto Majorie era

260
Negra, gordinha digamos assim como cabelereira e tal foi
né... Eu não gosto nem de usar fundamental pra você fazer essa
esses termos que eu tenho pavor transição?
de qualquer tipo de discriminação
por causa de padrões corpóreos, Andréa: Sim, eu sou a
né. Então Majorie negra, gorda famosa... eu era a famosa gay
e aí tem toda essa questão “ah afeminada que fazia shows de
Andréa é a Branquinha”. Tem transformismo, né? A gente
um vídeo que foi gravado para chama de... a gente falar fazer
UNAIDS, uma campanha Igual show, não... hoje em dia eu
a você, que eu não ia para ser tenho a palavra que eu uso é
convidada para participar. Aí eu performar. Performar uma
falo do apagamento... eu não ia artista, performar... então eu
ser convidada para participar mas já era o famoso transformista.
eu falei “ ué porque que eu não Mas eu só gostava de sair na
vou, porque eu não posso ir?” noite, quando era para espairecer
“Não, é porque não sabíamos se com as minhas amigas e meus
você ia querer”. Eu entendi que amigues, né... eu gostava de
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

era pelo que aconteceu depois. ir como Andréa, vestida com


No vídeo a gente fala um texto e Andréa. Mas eu ainda vivia a
cada trecho é cortado para uma normatividade da imposição
trans aparecer. Eu apareço quatro de não ser a Andréa. No meu
vezes, eu entendi o recado, é o que primeiro salão eu usava blusa de
as pessoas enxergam, preferem malha, né eu não tinha peitos né,
ouvir, preferem prestar atenção... era uma pessoa afeminada, mas
por que o Brasil é racista, o Brasil que usava uma roupa normativa
é gordofóbico, o Brasil é.. ele não para trabalhar por causa dos
é só LGBTfóbico, ele tem um resquícios de empregabilidade.
monte de falhas... Eu achava que “ah vou abrir um
salão então tenho que ficar igual
Diógenes: Andréa, você falou uma gayzinha disfarçada”. Na
que no início você ainda não minha visão era assim, sabe?
tinha feito a transição. Em que Aquela coisa de cobrança social.
momento você fez e eu queria te E quando o meu cabelo caiu,
perguntar se essa sua autonomia por causa de uma pessoa que eu

261
deixei fazer uma química no meu tenta combater e modificar hoje.
cabelo, eu confiei no trabalho Hoje a gente tomou uma... a
dela, mas eu não sabia que ela gente se estruturou de tal forma
não tava preparada para o meu que uma ajuda a alertar a outra.
tipo de cabelo. E aí meu cabelo Antigamente não, o desespero
caiu, fiquei com vários buracos era a padronização do corpo a
né, caiu...eu não fiquei careca mas qualquer preço. Eu não tenho
eu fiquei com buracos porque eu condições de botar uma prótese
tinha luzes e mechas, e eu tinha então eu vou meter com a
feito uma química incompatível. E bombadeira. Isso há 20 anos atrás.
aí eu me vi com cabelo parecendo Hoje a gente evoluiu isso.
até que eu estava com algum E hoje a gente tá quebrando
problema de saúde grave né. paradigmas de “porque que eu
Então aquilo me assustou muito, tenho que ter esse padrão de
e eu como cabeleireira, a dona de corpo?”, “por que que pra ser
um salão com aquele aspecto? Aí entendida como um travesti eu
eu fui meti o meu primeiro mega preciso ter esse peito enorme,
hair com a Isabelle. essa bunda enorme se eu posso
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

Quando ela fez o meu ter como eu sou?”, “o que que é


primeiro implante, meu primeiro ser trans?” E aí a gente começou
trabalho de mega hair em mim, a bugar o sistema. Mas eu
que eu me olho no espelho eu transicionei de fato aos 27 anos,
falei: Essa sou eu. Isso sem ter hoje eu tenho 47, tenho 20 anos de
transicionado fisicamente, e aí eu transicionada. Por uma questão
comecei o processo hormonal, me de me enxergar, e por estar dona
preparei acabei injetando silicone. do meu próprio negócio. Ou seja,
Não recomendo a ninguém, teve influência? Sim. agora eu
não tive nenhum problema sou minha patroa então eu posso
porque fui moderada, eu não ser Andréa Brazil 24 horas. Eu
saí exagerando, eu nunca tive não preciso mais me adequar à
nenhum problema, mas é uma sistema nenhum. Mal sabia eu
outra questão que acontece muito que eu ia me disfarçar de novo
no nosso universo, a questão de se anos depois para trabalhar na
bombar com silicone industrial, FAETEC. Porque aconteceu isso,
tararatarara, isso tudo a gente eu fui trabalhar numa unidade

262
da FAETEC mesmo sendo do todos os projetos que eu de aula
Governo do Estado e o estado era quantidade de pessoas que
tendo o Rio Sem Homofobia, tinham na sala que era LGBT.
tendo aquele núcleo Rio Sem Na prefeitura, nos meus quatro
Homofobia, agora é Rio sem anos de prefeitura dando aula em
LGBT, eu fui para uma unidade projeto social, a gente sempre
que a coordenadora não permitia tinha uma, duas, três pessoas
que eu me tratasse por Andréa LGBTs, o resto todo era mulheres
e isso foi uma briguinha que eu senhorinhas, mãe de família,
fui vencendo aos poucos. Sem avós... Na prefeitura, há mais de
polemizar, sem causar, sem querer não sei quantos anos atrás, eu
enredo, sem querer alarde, eu fui fiquei 4 anos dando aula na obra
mostrando para ela que não era se social no governo César Maia.
funcionava. Eu falava: enquanto E aí lá, em cada aula... nesse eu
gestora de uma instituição do fui aceita como travesti, nesse eu
Estado, eu acho que a senhora fui por causa do Damas, eu fui
sabe que a gente tem o Rio a primeira a chamar atenção no
Sem Homofobia que combate a Damas. E aí eu já me destaquei
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

transfobia, correto? Eu não posso como... já fui, dei meu currículo,


sofrer perseguição porque... por já consegui uma vaga direto
querer ser tratada como Andréa. E para este tipo de contrato. Não
aí ela foi “pera aí, eu quero ouvir era um emprego fixo mais era
mais sobre isso”. Então ela foi ... contratos renováveis. Eu comecei
ela foi se evoluindo. com uma turma experimental,
Eu tenho muito orgulho de me deram um provador teste, e
ter trazido isso para dentro da eu terminei o meu quarto ano
unidade que eu trabalhei e ter isso de obra social dando aula de
se multiplicado. A FAETEC tinha cabeleireiro para todas as turmas
indo mais coordenação, mais da unidade de Botafogo que era
coordenações que não sabia lidar ao lado do palácio da prefeitura.
com a questão trans, e aí quando Qualquer probleminha com meu
eu dava aula, em todos os projetos nome já... do lado já era o palácio
que eu dei aula, porque eu dei aula da prefeitura. Então eu tenho
também 4 anos na prefeitura, uma um orgulho muito grande dessa
coisa que me chamava atenção experiência. Recebi uma carta de

263
referência, de recomendação, que hoje o que é o CAPACITRANS.
me permitiu depois entrar para Acho que essas experiências me
FAETEC. Então essa experiência... fizeram, né, pegar cada falha
ter feito parte do Damas, ter que existia no sistema e hoje ter
passado por projeto onde eu não um projeto aí que tá tendo tanta
via pessoas trans, mesmo tendo, repercussão graças as forças do
sendo, de graça, mesmo tendo universo, porque eu me considero
oportunidade onde eu via que as agnóstica.
pessoas não ocupavam, por causa
talvez da cisheteronormatividade. Cláudia: Eu queria justamente
Então eu fui percebendo as aproveitar porque a gente pensa
coisinhas que foi transformando, um pouco como tá esse jovem
que foi criando hoje o trans né, porque você tá trazendo
CAPACITRANS. Aí hoje você fala para a gente aqui elementos
assim “ué, mas o CAPACITRANS fantásticos de 20 anos atrás e
é só para as pessoas trans?”. Não, que tem um marco histórico,
prioritariamente pessoas trans, né?! Esse período, tudo isso que
mas a gente aceita mulheres vocês viram, todo esse pavimento
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

em vulnerabilidade, mulheres que vocês vieram fazendo dessa


negras, mulheres bissexuais, trajetória para que a turma
lésbicas, gays afeminados hoje tenha maior visibilidade,
com problemas de inclusão no maior integração, não apenas
mercado, gays que tenham o no mercado de trabalho, mas
lado de show mais importante na sociedade. Saia um pouco
que qualquer outra coisa, então dessa posição de só profissional
vamos transformar essa pessoa do sexo, ou a profissional do
empreendedora para saber que sexo, né. E aí existe uma série de
show não dá dinheiro, o que dá possibilidades... as pessoas trans
dinheiro é os bastidores, é você tem todas as possibilidades que
produzir a roupa, você produzir as quaisquer outras pessoas devem
peças, você produzir uma... fazer em ter, teoricamente pelo menos,
uma produção que paguem para na prática é outra história. Mas
assistir né? Porque só se vestir, se aí eu queria que você falasse um
montar não dá dinheiro, só gasta. pouquinho sobre essa percepção
E é isso que foi transformando dos jovens trans hoje, na área

264
da Educação sobretudo, porque desgovernos aí, então a gente
você vivenciou, você fez aquela tem aí conquistas que estão
coisa da água que contorna os sendo cerceadas. O direito ao uso
obstáculos etc , você teve uma de um banheiro numa escola,
forma de atuação militante o constrangimento pelo uso do
da década de 1990. No ano de nome... então esse tipo de coisa
2000 para cá, a turma tem uma tava indo, diante de nossas lutas...
outra forma de militância, usa está retrocedendo. Existem, não
o escracho, usa lacração, e outra vou ser hipócrita, existe gente que
forma de militância não é nem acha que é tudo glamourização
melhor, nem pior, é só uma outra da prostituição, que é lindo ser
forma... mas essa turma mete o puta, que é fácil. E existe a que
pé na porta mesmo, escracha e já vivenciou isso e que não quer
chega chegando... você acha que, mais só isso como opção. Eu
na sua percepção, o que você ouve costumo ser a... fazer um meio
desses jovens que te procuram termo disso tudo. Quando eu vejo
para fazer sua formação, já houve uma pessoa jovem que só quer
alguma mudança na educação? lacrar, falar lacração mas não
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

Essa mudança não é significativa? praticar na sua própria história.


Como é que você enxerga através Acha que ser trans é só se travestir
desses relatos que você recebe? e dá pinta e aí eu falo “pera aí,
Você falava para a gente assim tá, mas qual é a sua realidade?
“olha, eu quero olhar no olho da Você tem uma família que te
pessoa e quero saber se ela tá com sustenta, que te assume? Você vai
intenção mesmo de fazer uma precisar ir para as ruas para se
modificação de vida e etc. Você sustentar? Se você vai fazer isso
ouve algum relato sobre essa tudo, tem como se sustentar, e
acolhida ou esse afastamento que vai ver de lacração, a escolha é...
a educação tem feito com pessoas acaba sendo individual”. Não a
trans? escolha de ser trans, porque não
se escolhe ser trans. A escolha de
Andréa: Então, a gente sabe que como vai levar isso. muita gente
é um caminho que tá muito fala mal do ativismo, mas se não
complicado ainda, a gente está fosse o ativismo a gente não tinha
vivendo de retrocesso com esses tido essas conquistas. Então já

265
começa por aí. A nova geração E aí eu evito esses, essas
às vezes caga pro ativismo, caga problemáticas né? Muito eu
pro ativismo, e muitas as vezes admiro a Indianare porque ela
mistura as Estações. Eu tô tendo realmente quando acolhe uma
uma percepção de pessoas que, pessoa que tá na rua, jogada
tipo assim, é... fica muito reduzido na rua, ela encara uma braba,
aquela história do local de fala e para ela, porque... e leva às
“ah você é Trans, mas você não vezes, é... calúnia e difamações
é preta”. Beleza, mas você sabe o e injúrias, mentiras, e ela tá
que que eu faço para lutar contra acolhendo aquela pessoa que a
isso? Você consegue enxergar? mãe e o pai jogou na rua. Como
Eu priorizo pessoas trans pretas, o CAPACITRANS não é uma casa
homens trans, mulher trans, de acolhimento, é um projeto de
travestis... Principalmente as capacitação empreendedora, eu
mais vulneráveis, as de maior evito para não ter esses problemas
vulnerabilidade, esses são os meus porque depois vai dizer que
critérios de seleção. Enquanto a gente está transformando
alguns lugares excluem essas, é a pessoa ali em trans, está ali
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

essas que eu pego, sabe? É essas ensinando a pessoa ser trans.


que eu falo “não, é, essa aqui A gente não precisa ensinar, a
precisa realmente mudar a própria pessoa já nasce com aquilo dentro
realidade, é essa que precisa do dela. Muitas trans de menor
apoio da gente, é essa que precisa se hormonizam escondido da
de uma roda de conversa, é família. A família vai perceber
essa que precisa sentir o afeto”. que o peitinho tá crescendo,
Eu posso dizer para vocês que porquê? Porque ela vai escutando
infelizmente, por... exatamente uma com as outras, “ah qual
por alguns problemas que eu hormônio que você tomou?” Foi
já previa, né, alguns... algumas assim comigo só que eu não, eu
situações que eu já previa... então não tinha eu não tinha decisão de
eu evito que estejam... que entrem trânsito enquanto eu não tivesse
na turma trans de menor. Porque uma profissão.
daqui a pouco vão dizer que eu tô Se eu for falar para essa
ensinando a ser trans, que eu tô nova geração a minha resposta
... sabe? é a seguinte: transicionar sem

266
ter como se sustentar, ou para ir você vai precisar de capital de
para as ruas como única opção giro, quanto você gasta para
não é jogada. Porque você pode comer na rua enquanto você tá
chegar aos 18 anos, você pode ali esperando o cliente, quanto
não chegar aos 20 anos. Então, você gasta com multa, com
não vem com esse papinho de pagar a rua... E aí a gente tenta
glamourização da prostituição transformar essa pessoa que é
porque não é fácil, não é. Mas profissional do sexo em uma puta
não estou aqui falando contra, profissional do sexo, uma puta
você tá segura, você tá trabalhado empreendedora no caso.
com alguma rede de parceiras A gente não tá aqui atacando
legais, você tá trabalhando num ser profissional do sexo, a gente
local que te respeita, que não... tá explicando: se você quer
que não fica te cobrando para ser profissional do sexo, seja
você trabalhar nas ruas. Você com todo um preparo, toda
tem algum mínimo... tem uma uma estrutura, nem que seja
família que vai te acolher quando através do empreendedorismo.
você chegar em casa... Eu faço E não adianta vir glamourizar
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

todo esse viés, todo esse recorte. prostituição porque não é fácil.
Você quer ser profissional do Tá ok, se você trabalhar com
sexo? Então vamos transformar executivos Vips, você vai ter um
isso em empreendedorismo outro cachê por mês, mas você
de fato. Vamos ser uma puta vai ter um outro gasto com você.
empreendedora, vamos fazer Agora, se você for obrigado a
um controle de gastos, quantos trabalhar na Central do Brasil, no
programas você precisa fazer, Campo de Santana, no campo de
quanto você precisa reinvestir no São Cristóvão, seu cachê vai ser
seu visual... porque infelizmente outro, a sua imagem não precisa
as pessoas pagam pelo que elas lá grandes reinvestimentos, né?!
olham né, elas vão pela aparência É uma coisa... existe nichos até
ou não, ou também vão pelo para ser profissional do sexo. Eu
tamanho do membro porque falei... Outro dia eu tava numa
também a gente sabe que a outra Live, tava Indianare, eu, Wescla
realidade. Aí a gente vai e tenta Vasconcelos, que foi assessora do
falar para essa pessoa “quanto Tarcísio...

267
Cláudia: que agora é assessora da E aí veio Andréa Brasil, muito
Indianare, né? humildemente, entrando nesse
hall como uma que traz a fala
Andréa: e a Jaqueline Gomes de do transempreendedorismo.
Jesus, aí a gente na sua Live, eu fiz Como uma maneira de falar
uma fala na qual eu falei assim: assim “Oi, tá bom, você quer
Olha que interessante, aqui todo ser profissional do sexo? Então
mundo é do coletivo trans, aqui vamos empreender de forma
é todo mundo lutando pela pauta correta, vamos fazer de forma
trans, pelos Direitos Humanos, mais organizada”. Ou, “ah não,
tararartarar, mas olha como até Andréa, eu não aguento mais
dentro desse coletivo cada uma ser profissional do sexo, eu não
tem o seu nicho. Jaqueline Gomes aguento mais as ruas, eu já tô
de Jesus está aqui no local de fala ficando velha, eu tô cansada,
da mulher... da mulher trans preta, eu tô com medo, eu não quero
da professora, da psicóloga. Wescla pegar COVID ...”. E aí ela... aí
Vasconcellos tá aqui trazendo eu vou e pergunto: qual seria o
a fala, a representatividade seu negócio? “Ah, Andréa, eu
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

das Nordestinas, de Dandara, sou louca por bolo, adoro bolo


que foi assassinada e jogada de pote”. Aí eu vou pesquisando
no carrinho né? Indianare está aonde eu posso tentar dar um
aqui falando das ocupações dos empurrãozinho mínimo que
espaços inoperantes do Estado, do seja, como eu precisei de um
acolhimento, de botar uma casa, empurrãozinho um dia e hoje
espalhar casas de acolhimento o que que tá acontecendo: a
pelo Brasil, pelo mundo né? minha rede só tá crescendo. Eu
Indianare está falando pela tenho muito orgulho de hoje ter
pauta de ser puta porque gosta, empresas que vieram a mim pra
sim, também, tá certa. E ela vai, falar sobre isso. Óbvio que num
fala com o coletivo de tanto de critério de seleção da próxima
profissionais do sexo de mulheres turma eu vejo a maneira que
trans quanto de mulheres cis. aquela pessoa está falando. Se
Então ela tem um local de fala ela realmente está querendo
respeitado. Então ela tem um mudar a história dela ou ela tá
nicho dela. achando que o CAPACITRANS

268
é uma ponte para uma vaga de por você enquanto você está
emprego. Aí ela vai se contentar limitada a isso? Por que que você
com sub emprego. Eu também tá se limitando a isso? Você acha
não sou adepta ao subemprego, que você é só um corpo, você acha
mas se é isso que te serve no que você é só uma bunda e um
momento, a gente tenta fazer a peito? Ou você acha que é uma
ponte também. Mas a gente quer pessoa completa, que tem uma
que você queira mais. bunda, um peito, uma identidade
Hoje eu bato peito e falo: não e uma marca para deixar aí no
troco o empreendedorismo social mercado? Seja de comida, de
por nenhum emprego formal. gastronomia, seja de imagem,
A não ser que me pague muito seja de moda, qual é sua área?
bem. Mas eu amo trabalhar em Seja na universidade... A gente
home office, em aulas online e não trabalha muito essa questão,
aulas presenciais, eu amo o que Cláudia, dentro CAPACITRANS,
eu faço. E aí eu sempre converso mas a gente estimula, por que não
com cada uma delas, com cada é meu local de fala porque eu não
um deles: você ama fazer o sou Universitária. Mas a gente
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

quê?. “Andréa, Ah eu gosto de ouve as irmãs falando “aí agora eu


ser puta!” Beleza, então vamos quero fazer”, aí a gente estimula.
empreender?!Vamos transformar Mas por quê? Porque eu tive que
esse empreendedorismo de aprender a empreender sem ter
fato?! Ou você quer ficar só na feito universidade, mas sempre
lacração?! Aí eu vou observando estudando empreendedorismo.
esses detalhes. Eu fiz a Micro Rainbow
Sim, existe uma grande International, que é um projeto
parcela que ainda acha que ser que se reproduz uma vez por ano
trans é só ser fã de Pabllo Vittar, no Brasil né, no Rio, quer dizer.
e ficar cantando, e rebolar até E aí eu fiz a Micro Rainbow, aí
o chão... beleza, ninguém tá eu aproveitei outra oportunidade
criticando elas, mas aí quando eu que apareceu dentro da Micro
vou e falo a dura realidade: até Rainbow que fui chamada
quando você vai viver só disso? depois para ser monitora deles.
Até quando você vai esperar que Eu fui chama duas vezes pra
as pessoas vão fazer alguma coisa ser monitora deles porque eu

269
me destaquei, né? Aí a Micro fiz um... eu fazia muito jornada
Rainbow ofereceu para uma técnica como vai ser agora essa
turma depois da minha 30 vagas rodada do CAPACITRANS.
de pré acelerador na UNISUAM. Jornada técnica é aquele cursão
Aí eu falei que porra é essa, eu de um dia inteiro sobre um tema.
quero fazer essa porra aí! A vaga Aí eu, um dia inteiro para falar...
era para 30 pessoas abertas. eu fui assistir uma aula acho que
Era só ir lá e se inscrever, fazer de balaiagem, não lembro...e
entrevista. Pergunta quantas aí nesse dia eu só tinha pago,
pessoas foram? Duas. E adivinha com um dinheirinho que eu
ficaram? Quem? André Brazil. E ganhei de um cabelo, aí eu tinha
aí eu era única travesti dentro da pago a matrícula desse curso, a
UNISUAM de Campo Grande, inscrição para esse curso, mas
aqueles olhares nojentos de cima aí quando chegou o dia eu só
embaixo como se eu não pudesse tinha o dinheiro da passagem
estar ali, porque as aulas eram para ir voltar, eu não tinha nem
2 vezes por semana à noite. Era dinheiro para lanchar, para nada.
um projeto dentro da UNISUAM, Falei “mas eu vou assim mesmo,
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

ali é uma universidade de... não eu quero me atualizar”. Eu conto


sei, é classe média? Não sei. sempre isso em aula, pra todo
Então uma Universidade com mundo, né? E aí quando todo
aquele ambientezinho cheio mundo, o curso é jornada é o dia
de playboyzinho né, cheio de inteiro, quando deu a hora do
patricinha me olhando de cima almoço todo mundo “aí,vamos
embaixo. Não vou dizer que eram naquele restaurante aqui, naquele
todos, tinham umas meninas não sei que”, todo mundo se
que me respeitavam no banheiro ajeitando para ir... “vamos,
feminino, ok? Tinha. Mas tinha Andréa”. Aí eu “não, obrigado,
gente que me olhava com arzinho não vou não, vou ficar aqui, eu
de desprezo. Então, eu falo essas não tô me sentindo muito bem”.
histórias. Quando eu me tornei Mentira, eu fui pro banheiro
cabeleireira, há 20 anos atrás, eu comer um pão com ovo que eu
conto para minha aula que para tinha. Eu fui pro banheiro comer
eu ser cabeleireira, eu procurava um pão com ovo porque eu fiquei
estar sempre me atualizando. Eu com vergonha das pessoas me

270
verem, e por que não tinha local amiga das mais bonitinhas da
ali para lanchar. E aí eu falei assim sala de aula, do grupinho das
“ah não, pode ir gente, eu não Meninas Malvadas, virei uma
estou me sentindo muito bem”. Eu delas, eu me aliei à elas. E aí os
tenho muito orgulho de dizer para meninos passaram, ao invés de
todo mundo em cada aula que eu me ameaçar, ficar “pô, Bambi”, na
dou que eu já fui diarista. Eu já fui época meu apelido era Bambi, “pô,
faxineira, eu já sustentei a minha Bambi, me bota na fita da Edna,
mãe com dinheiro de faxina. me bota na fita da Vivi”, sabe? Eu
Eu tenho muito orgulho disso me aliei, eu fiz um jogo, eu era
e quando eu falo isso... a minha amiga delas, não era falsa, mas
mãe, ela tinha um marido que era eu fiz um jogo que o sistema me
um militar, machista, misógino, obrigou a fazer para escapar das
escroto que quase a matou uma agressões.
vez. E aí quando eu conto pras E ainda sim, ainda sim, uma
pessoas que eu sustentava minha vez, eu passei por uma situação
mãe quando ele não assumia nem de extremo constrangimento na
a filha dele, eu trabalhava como sala do Grêmio e que nove garotos
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

faxineira e chegava em casa com me levaram para sala do Grêmio


dinheiro e que eu comprava leite falando que a gente ia ter uma
da minha irmã, eu me emociono, reunião que queria ouvir minhas
mas não é por vitimismo não. É propostas e na verdade foi um
que dói saber que um pai obrigava abuso, uma chacota. E aí quando
minha mãe assinar um recibo eu enfrentei a chacota, quando
de uma lata de leite e eu pegava eu enfrentei aqueles 9 homens
todo meu dinheiro e dava para trancados comigo na sala do
ela. Na escola, quando eu sofria grêmio, quando eles queriam me
os ataques, homofobia, porque dar um bullying né, na época nem
na época ou era gay afeminado, se chamava bullying né, quando
eu não sofria transfobia. Eu tive eles tentaram ousar fazer aquilo,
que ser inteligente. Eu também eu virei o jogo. Eu muitas vezes
sofria perseguição, os garotos eu escapei de ataques Lgbtfóbicos,
viviam naquela coisa de me dando uma de desequilibrada,
ameaçar “eu vou te pegar lá fora”. sabe? Eu falei assim “agora vai
Eu usei uma estratégia, me tornei abrir essa calça aí todo mundo

271
que eu quero um por um em fila”. onde estamos só LGBTs no geral
Quando eu fiz isso eles “opa!”, e brancos, eu falo o privilégio de
tomaram um susto e saíram todo mundo aqui ainda tá acima
correndo. Quando eles pensaram do meu porque o meu privilégio
que me chacotear, eu fiz isso acaba enquanto travesti. Eu sou
reverter contra eles, só que ao famoso traveco, eu sou aquela
eles desistirem da brincadeira e pessoa que é considerada pelos
saírem da sala, eu imediatamente fundamentalistas uma aberração,
me dirigi a direção e denunciei o eu sou a... o homem que se deita
Grêmio. como mulher, eu não sou né...
E assim vai. E não é não existe
Cláudia: Senão, podia virar contra privilégio, não é porque eu sou
você né, Andréa? travesti, travesti Branca, Ok, meu
privilégio Branco? Reconheço
Andréa: Eu fui levada para sala isso. Me abre umas pequenas
do Grêmio, pelos garotos que portas... mas eu não sou padrão
compunham o Grêmio, para de beleza, eu não sou uma Miss,
uma reunião e no final era... era eu não sou uma Léa T, eu não sou
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

isso. E aí eu detonei o Grêmio uma Roberta Close. Eu sempre


da escola, sabe? E assim eu fui falo para as pessoas que a Roberta
fazendo na minha vida. Só que trouxe a visibilidade para gente,
eu entendo, Cláudia, Diógenes, mas ela trouxe da forma que o
não é todo mundo que tem a homem que virou uma mulher.
mesma estrutura que eu. Às vezes Aí até hoje o Sílvio Santos repete
o ciclo de opressão é tão grande esse discurso homofóbico,
que a pessoa não tem cabeça e aí transfóbico LGBTfóbico “ah,
muitas acabam se suicidando. Eu mas qual é teu nome? qual é teu
reconheço meu privilégio mental. nome?”. Isso é chacotear. Ele foi
Gente, não é privilégio de vida pioneiro, mas ele com isso ele
não. Eu sempre falo com as manas trouxe a... o público que gosta da
trans pretas que a gravidade, o chacota, do risível, da... Roberta
local de falar dela é muito mais é trouxe isso de volta. Ela trouxe
... as dificuldades dela são muito visibilidade para as mulheres
maiores do que a minha, mas trans, que elas existem podem
quando eu falo num ambiente existir pelo padrão da beleza dela.

272
E aí continuou apagadas as que Diógenes: Você seguiu um
não eram bonitas iguais a ela e as caminho muito especial, que você
que não eram bonitas iguais a ela foi aprendendo nas instituições,
faziam o que? Morriam de fome, aprendendo nos cursos, foi se
se matavam, eram assassinadas. tornando uma educadora, né?
É isso que eu trago sempre em E, de repente você começou a
questão dentro do CAPACITRANS ganhar editais, que é uma coisa
também. Não é só ensinar a muito difícil, já participei de
ser empreendedor, é ensinar a ONG né, além do Observatório
viver nesse mundo que ainda, de Favelas e a gente sabe como é
devagarzinho, ainda tem muito difícil ganhar um edital, precisa
que melhorar para falar realmente todo conhecimento técnico, você
inclusão. Quando eu falo que estava falando da prestação de
eu amo Unilever, a Unilever contas, tudo isso né? Como é
empresa, a Unilever veio a nós do que foi esse caminho, assim...
CAPACITRANS através de uma Em que momento você passa
trans que já trabalhava na equipe de ser uma empreendedora de
deles, Fabíola. Fabíola... ela é sucesso, com seu salão, e funda
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

muito do universo de Show junto o CAPACITRANS e começa a


com Ashley, Ashley era aluna da ganhar editais? Como é que
primeira turma de imagem de foi essa sua trajetória como
penteado. Arrasa, maquiadora, educadora social?
faz penteado, é miss Manauara.
E aí elas se encontraram nesse Andréa: Lembra quando eu
universo. Aí, Ashley falando de falei que eu fiz parte do Projeto
mim para Fabíola, a Fabíola quis Damas? Uma das perguntas que
me conhecer. Eu já tinha a Fabíola tinha lá na entrevista para fazer
no meu Face e ela conseguiu fazer parte era primeiro qual era a sua
a ponte entre eu e a Unilever. situação, como você se virava,
Nisso então virou amor eterno, né, como é que você ganhava
não nos separamos mais. dinheiro, porque era focado na
Inclusive já estamos aí com outras população de prostituição, que
propostas de Projeto Paralelo e fazia vida... e era exatamente
já tem até o nome: TransBrasil focado nesse público. Eu menti,
Sustentabilidade. eu dizia que eu fazia e eu não

273
fazia né, porque eu queria entrar Eu não se como é que vocês vão
pra entender... o que que é esse editar isso aí depois, mas enfim.
projeto que cuida de pessoas Eu era o viadinho do Bairro, e aí
trans... eu queria muito estar ali quando eu me torno cabeleireira
dentro. E uma das perguntas é “o eu passei a ser “ah, a cabelereira,
que você espera daqui?”, inclusive ah o cabelereiro?” Então até
é uma pergunta que eu faço agora a profissão já começou a ser a
no CAPACITRANS: o que você minha... como é que dá o nome...
espera do CAPACITRANS?. E aí a representação né. “ah, o salão é
a pergunta que tinha lá é “o que ali embaixo”, sabe, a pessoa muda
você espera do Projeto Damas ?”, discurso. Enquanto eu era apenas
e aí eu lembro até hoje o que que uma gay eu não era nada para o
eu escrevi... Eu falei que eu queria povo. Só aí eu pensei, quando meu
ser uma multiplicadora. Isso já salão começou a fazer sucesso
tem mais de 15 anos e hoje a gente no primeiro ano, eu achei que ali
tá aí. Só rebobinando a fita aqui eu ia viver daquilo para o resto
um pouquinho... eu abandonei da vida. E aí eu fui enxergar que
um pouco também por decepções salão de bairro não dá futuro para
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

o universo de ser cabeleireiro ninguém, porque é um bairro...


de bairro, porque outro tipo de Zona Oeste, de uma região de
transfobia que a gente... que eu pessoas classe média baixa, nem
sofria no meu bairro, Eu acreditei todo mundo ali tinha dinheiro e
que eu tinha sido respeitada muito fiado, muita intimidade,
quando eu transicionei no meu muita amizadezinha, “depois eu
bairro. Eu acreditei que eu tinha pago”, caderninho... E aí eu tive
atingido “ah, agora eu não era que em algum momento, tive
mais tratado como viado, filho que me reestruturar para explicar
da puta”, porque era assim que para você aonde eu mudei é... vou
tratavam minha mãe, porque chegar nisso agora. eu tinha uma
ela era mãe solo né, minha mãe casa própria. Depois que minha
me criou sozinha. Aí depois de mãe faleceu, minha mãe faleceu
muito tempo ela casou. Então com... quando eu tinha 18 anos.
era assim, o viadinho, filho da Eu continuei trabalhando em
puta, que mora sozinha, sabe? emprego formal depois da morte
Era assim que eu era tratada. dela, demorei um pouquinho

274
né, mas imediatamente comecei acho muito chato isso, de fazer
a morar com LGBTs para não cabelo em troca disso, sabe? eu
ficar sozinha, para não surtar acho muito constrangedor. Eu
né? A minha irmãzinha que hoje passei muito por isso, mas isso
tem ... minha irmã na época não...
tinha quatro anos e eu tinha 18.
Minha mãe faleceu e a casa ficou. Cláudia: E hoje em dia isso
Tive problemas... meu padrasto também tem acontecido.
quis me tomar a casa. Anos se Desculpa, só para aproveitar esse
passaram aí agora minha irmã mote aí, do pagamento através do
maior de idade há uns cinco, seis sexo, isso não é uma coisa que só
anos atrás, a gente sentou eu falei acontecia antigamente né, hoje
assim “vamos vender essa casa?”. em dia a gente acabou de ver
Porque tudo que eu fazia na casa aí recentemente uma violência
a casa quebrava, consertava uma severa contra um rapaz gay que
coisa aqui e quebrava outra. Eu foi jogado de um carro do Uber
arrumava uma coisa quebrava a justamente porque o motorista
outra. E aí eu cansei, eu comecei disse que ele queria pagar o
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

a confrontar também com a trajeto com favores sexuais. Então


transfobia velada do Bairro, as isso tá no imaginário...
pessoas que falavam pelas minhas
costas. “Ah, Você foi lá no salão Andréa: Sempre é assim, a gente
da Andréa, né?”, por exemplo, sempre é visto dessa forma,
vou dar um exemplo bem que mas para trans isso agrava
eu sofri muito com isso. É... as porque bastou ser trans e tudo é
pessoas achavam que os garotos relativo a sexo... outro exemplo
que iam cortar o cabelo comigo, de transfobia velada: a esposa ir
embora eu fosse uma excelente acompanhando o marido, “ah eu
profissional, as pessoas achavam ouvi falar muito bem do corte
que os garotos que cortavam o dela mas eu vou com você”, ou o
cabelo comigo pagavam com marido falar “vai comigo porque
sexo, que era só pra isso que eu eu não tenho coragem de ir
servia, para fazer o cabelo por sozinho?”. Porra, que isso? Eu sou
sexo. E realmente tem um público um bicho? eu sou uma Sharon
e brinca muito com essa coisa, eu Stone? Avassaladora sexual, eu

275
sou tão Sharon Stone, eu sou de coisa. Eu tive namorado que
tão Roberta Close assim? Eu sou a garota na minha porta traz o
tão perfeita assim que nenhum meu namorado, porque eu não
homem vá se sentir seguro e era uma mulher... eu não era
tranquilo de ir sem a esposa cisfóbica, eu não tinha problema
ou precisa a esposa tem que ir, dele ter namorada cis, eu falava
a insegurança dela é tamanha “vai lá, vai fundo, vai na sorte,
eu sou uma ameaça? Então eu mas não se esqueça que você pode
passei muito por isso, a ponto de chegar me encontrar com outro
pegar páginas com comentários aqui também, tá?” Direitos iguais.
com meu nome, “Deia, foi lá na Então eu nunca fiz isso, eu não
Dedéia, passou o Pênis Card”. sou uma trans cisfóbica, eu não
Então, isso tudo me deu uma tenho problemas com mulheres
decepção tão grande do meu cis, elas tinham problema de
bairro, que eu morava, minha falar assim “como assim você tá
casa era de frente para uma... eu com a Andréa Brazil? E eu aqui
chamo de encruzilhada em T. Eu querendo você? Eu tenho vagina,
morava de frente para uma rua, eu sou mulher de fato”. Sabe, esse
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

no meio das duas principais, da tipo de coisa, já passei esse tipo de


principal com uma de frente pra humilhação, já fui humilhada por
mim, então qualquer círculo de uma garota de 16 anos que falou
pessoas que entrassem na minha para mim quando eu namorava
casa tinha três ruas olhando. um garoto que era bem mais
Então, até os meus paqueras não novo que eu e ela começou a
podiam entrar por que se sentiam flertar com ele para me desafiar,
constrangidos. Eu não tinha ela numa esquina gritando aos
direito ao afeto, eu não tenho berros na rua “você quer o que?
direito a ter um romance. Eu fui casar com ele, ter filhos com ele?”,
casada, ok. Eu já fui casada, não isso tudo me fez ter nojo do meu
quero, eu já fui casada três vezes, bairro e eu desisti de lá. Hoje eu
eu já tive namoros consistentes pago para não entrar lá, pago para
de mais 1 ano, de 1 ano e meio, de não entrar. a minha costureira
2 anos com o mesmo rapaz. Hoje é de lá, ela que fecha as minhas
eu não quero nada disso, mas eu peças, eu corto, eu modelo, eu
sofri muito por causa desse tipo crio e a minha costureira uma

276
senhora de lá, que eu tenho cabeleireira aqui não, que aqui é
paixão por ela, uma senhorinha um ponto ótimo”, e aí eu peguei
que eu tenho uma relação com roupas em Petrópolis para
ela de afeto mesmo como se revenda , com cheque pré, eu
fosse minha mãe. Se minha mãe arrisquei na cara e na coragem,
estivesse viva ou talvez tivesse a comecei com cinco, quatro lojas,
idade dela... então ela é uma das com cheque pré, as lojas “tá, a
pessoas que eu conto para costura gente vai abrir uma exceção pra
e ela é mais rápida né, porque você”, vendiam para mim com
ela tem anos de experiência, prazo né, pra pagar. Aí eu comecei
enquanto as meninas ainda estão a encher o meu salão de roupa, e
aprendendo para poder aprender aí eu fazia cabelo, vendia roupa. E
como montar minha equipe aí eu comecei a achar que tava
depois. As minhas meninas que indo bem. Aí, veio a crise do
eu digo é quem fez parte e faz estado no governo do Pezão, um
parte do CAPACITRANS, né. E aí a monte de cliente meu que era do
pergunta do Diógenes foi relativa estado passou a não receber...
a isso, quando que eu comecei a.... aquela crise que a gente já passou
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

e aí eu falei assim: “onde eu tô


Diógenes: Isso, isso... errando? eu queria vender essa
roupa mas eu acho que eu sou
Andréa cont.: O que aconteceu, capaz de fazer essa roupa. por que
quando eu vendi a casa eu ainda que eu tenho que comprar, gastar,
me mantive no mesmo bairro, não investir, ficar cobrindo cheque e
conseguir cortar o cordão ficar desesperada quando o cliente
umbilical. Eu vendi a casa, metade não me paga? por que que eu
para mim, metade para minha mesmo não faço?” Aí eu fui e fiz o
irmã e ainda ficou uma parcela Micro Rainbow. Entendeu? Aí eu
para a gente receber ainda com... comecei a melhorar os meus
que já passaram anos. Continuei projetos de negócio, o que que era
com salão de bairro, só que eu me projeto de negócio, o que que era
mudei pro ponto de ônibus e aí eu projeto de vida. E aí quando eu fiz
continuei com um salão lá. E aí eu o pré acelerador na UNISUAM, eu
comecei a empreender melhor, eu fui entender... aí tive uma aula
falei assim “eu não vou ser só a com Joana Cardoso da Empodere-

277
se 021 uma mulher cis, parceiraça aí eu falei assim “pô, pera aí” aí eu
da causa LGBT, né? Aí ela deu “pá, CAPACITRANS RJ. Aí fui e
uma aula na... lá no pré me inscrevi. Aí te juro, de coração,
UNISUAM, né, pré acelerador. Ela falei “eu vou fazer porque a Joana
aula de captação de recursos. Essa ensinou e eu tenho que correr
aula de captação de recursos é que atrás, eu tenho que acreditar no
me deu a chama, aí eu cheguei em meu projeto”. Eu não fui chamada
casa com a aula dela... ela falou um mês depois para ir pra São
“ah, tem uma plataforma chamada Paulo?? Eu quase caí dura quando
prosas”. Eu cheguei em casa da eu abri meu e-mail e tá lá
aula e já entrei me cadastrando no “parabéns”. 300 inscrições, Eles
prosas. E aí tinha lá “LGBT projeto escolheram 10. Eu fui uma das 10.
como pessoa física” porque isso Quando eu vi aquilo ali eu não
era uma prioridade para mim, acreditei. A outra surpresa, eu há
porque eu queria editais com um tempo atrás precisando
pudesse concorrer como pessoa trabalhar porque eu já não tava
física, porque eu não sabia da mais com salão né, eu já tinha
situação do CNPJ da ASTRA, que desistido de salão, já tinha
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

ainda tá em aberto, porque eu desistido do bairro né, esses


acabei parando porque eu não traumas foram acumulando e eu
tive... a diretoria nova eleita quase desisti do meu bairro. E aí eu saí
não consegue chegar junto até do salão que eu tava alugada,
comigo, então fica difícil fazer porque eu assisti um assalto, um
tudo sozinha. Eu consegui vencer, não, vários no ponto que eu
me inscrevi pro ELAS ... perdão... trabalhava de frente e sofri um
eu me inscrevi pro primeiro ataque transfóbico na minha... no
edital, na verdade era... Na meu salão de um cara que... sabe
verdade era minha segunda essa situação que passou esses
inscrição, a minha primeira dias na internet de uma trans que
inscrição foi Fundo ELAS mas era foi espancada brutalmente? Eu
um que tinha pouquíssimas passei exatamente que ela passou,
chances de eu entrar mesmo, que a diferença que ela tem conhecido
era eu acho que parte cultural. Aí de famosos, e eu não. E aí eu
eu fiz... aí eu vi lá o edital Mais passei por um ataque exatamente
orgulho do Itaú, Mais diversidade, igual. O meu salão ficou banhado

278
em sangue, eu fiquei banhada em tornei quase, basicamente uma
sangue, ele me sufocou, me deu ateísta. Quando o meu teto ficou
um mata leão, eu quase morri e eu preto, eu lembro de ter pensado
achei que eu tinha morrido. Aí eu assim “não acredito que tu,
acordei desmaio... na verdade ele criador, me criou para isso, para
tinha me desmaiado e eu fugi. E eu abrir a guarda para uma pessoa
ele ainda tava dentro do meu que eu pensei que estava
salão, desse salão que eu morava, interessado em mim para ela me
eu morava no salão, e ele ainda matar. Eu não acredito que tu me
estava tentando roubar mais. Na criou para morrer na mão de uma
verdade foi cara que se aproximou pessoa que eu iria afeto”. Aí
de mim, como ele era conhecido apaguei. Ali naquele momento eu
de várias vezes eu vê-lo no bairro me tornei... eu não vou dizer pra
no ponto, eu passei por uma vocês que eu sou ateísta, que eu
situação bem parecida da menina, sou ateísta raiz, mas eu tô quase
a diferença é que a gente não lá. Então, naquele momento, eu
estava num bar, no boteco, tava no cansei do meu bairro, e ali eu fui
meu trabalho, na minha casa, buscando sair, me afastar cada vez
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

onde eu morava e trabalhava. Ele mais e foi nessas lutas aí... Micro
me chamou eu atendi. Eu passei Rainbow, curso de
por tudo que ela passou: agressão, empreendedorismo para LGBT,
mata leão, espancamento... hoje pré acelerador na UNISUAM... aí
eu não... por isso eu não fico mais quando eu estava no pré
com ninguém na minha casa. acelerador na UNISUAM, aí sim,
Nenhum homem, nenhum eu vim com essa proposta d edital
parceiro. Eu não tenho mais mais diversidade do Itaú, fui
intenção de relacionamento por chamada pra São Paulo e um dos
causa disso, porque eu quase meus bicos freelancer foi no Arte
morri, quando eu sufoquei, Rio, lá na Marina da Glória. Eu
quando eu fui asfixiada né, lembro de uma cena, um mês
quando ele me deu um mata leão antes, um mês e meio antes, eu
eu achei que eu tava morrendo. E trabalhando num evento lá de
aí eu lembro daquele momento de exposição de arte em freelancer
ter falado assim... ali naquele que eu consegui graças à parceria
momento eu lembro que eu me com a Casa Nem, com Indianare.

279
Eu consegui esse freelancer, que Power Point, falar do projeto, meu
ali eu já estava me afastando de Power Point travou. Igual a nossa
cabelo né, já tava me afastando entrevista travou aqui também. O
dessa coisa de ser cabeleireiro né, que que acontece, o Ricardo
porque também eu tô cansada Salles, que não é o do meio
disso, eu gosto de aula. Aí eu ambiente escroto né? O Ricardo
lembro de ir lá no Rio Arte e ver DE Salles, lá do Mais Diversidade,
um avião passando e eu falar vira e fala: “você consegue falar
assim “caraca, qual é a sensação do seu projeto sem o Power
de estar dentro de um avião? em Point?” Eu digo, lógico, é o sonho
breve eu vou estar dentro de um”. da minha vida! Aí eu mandei ver,
Dito e feito. foi quando eu fui 10 minutos, parararara, aí sempre
chamada para ir para São Paulo. tem aquelas perguntas no final,
Eles pagaram, é uma coisa boba, das coisas que não tenham ficado
um voo de 45 minutos, mas eu explícitas. Ninguém teve
chorava igual criança dentro do pergunta, só o Salomão perguntou
avião, sabe? Eu “ai, eu tô no avião, assim “Déia, eu entendi
meu Deus”. Aí quando eu tô, perfeitamente seu projeto, só
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

quando eu vivo essas realidades queria entender uma coisa, você já


você pensa quantas outras irmãs tem isso cronometrado? Você tem
não gostaria de ter esse privilégio, um cronograma pra depois...”,
de ter esse sonho realizado. Só Claro que sim, começaremos a
que, não satisfeita, quando chega partir da segunda semana de
em São Paulo, era uma banca, com janeiro, iremos até junho e a
dois gays, duas lésbicas, duas partir de agosto voltaremos para
trans, uma equipe, uma banca né? segunda rodada para mais 20
Eu preparei... eu não tinha um pessoas. Acabou, saí dali achando
notebook. Eu preparei o meu que tava tranquilo. Só que tinham
PowerPoint, minha apresentação, 10 projetos selecionados
no computador do hotel porque eu maravilhosos. No Nordeste,
não tinha um, né? E aí eu região Ribeirinha, Dandala lá do
consegui preparar, mandei para Xingu, Auricélio do Nordeste,
menina que era responsável pela pessoas... Alon, que trabalha a
gente. Nem conto para vocês que inclusão do Diverse libras, sabe...
na hora de eu apresentar o meu Alon é meu amigão, ele tinha um

280
projeto da coisa do... falar em maravilhoso e a gente não pode
libras, né, um projeto específico deixar passar, e a gente conseguiu
LGBT com portadores de mais 160.000, e aí a gente vai dar
necessidades especiais. Então era 40.000 para mais quatro. Aí eu
só projetos admiráveis, eu falava falei “epa, voltei para o jogo”, já
“gente quem sou eu”, Gilmara comecei a me tremer toda. Estava
Cunha do Conexão G, tava lá lá né, quase tendo um troço. Aí ele
concorrendo junto comigo. foi falando, falando, falando,
Gilmara estava lá comigo... ela até daqui a pouco o último projeto foi
tentou me emprestar o notebook Andréa Brazil – CAPACITRANS.
mas a gente se desencontrou no Nossa, todo mundo pulou em
hotel. E eu estava ali numa cima de mim, todo mundo gritou,
situação de extremo privilégio. A vibrou junto, eu caí com todo
gente recebia um aquézinho pra mundo em cima de mim, porque
ficar esses dois dias e meio lá para todo mundo ficou feliz com a
a gente gastar com alimentação, vitória do outro. É isso que me
porque eles só pagavam o hotel. chama atenção em projeto que
Então eu tava ali me sentindo foram vencedores que tem minha
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

privilegiada... um quarto que total admiração. A gente se segue


cabia uma família. Eles botaram até hoje, todos os projetos, isso lá
cada um numa suíte. Então aquilo no começo de 2000, não perdão,
para mim era um sonho que eu em 2018 que eu venci, eu venci o
tava vivendo, não tava acreditando edital em 2018, em dezembro. Foi
E aí quando eles foram falando os formalizado em março, eu lembro
ganhadores dos 50 mil, eram que a gente começou a primeira
quatro que iam ganhar 50 mil. turma no dia 8 de março, uma
Quando falou Auricélio, Dandara, data bem simbólica, no Dia
tarararatarara meus olhos só Internacional da Mulher e um dia
choravam de emoção por elas, antes do meu aniversário. Então
todos esses vencedores e eu já tava isso ficou muito simbólico. Eu tive
me sentindo feliz de ter chegado que ter muita sabedoria para usar
até ali. Só que o Mais Diversidade quarenta mil pra fazer duas
falou “olha, gente desculpa, mas a turmas de 20 alunos durante um
gente deu uma chorada pro Itaú, ano inteiro. Eu não sei como, mas
porque o projeto de vocês é eu consegui. Só que não satisfeita,

281
antes de vencer esse edital, eu em mim. eu reconheço isso, eu
conheci o Padre Luiz Coelho, tenho um orgulho muito grande
numa apresentação da Renata de falar deles. Walter Cavalcante,
Carvalho, atriz que interpreta Ivana Ribeiro que é a
Jesus né? “E se Jesus fosse uma coordenadora da Micro Rainbow,
travesti?” Renata, eu fui na ela foi a primeira fala assim
apresentação dela, que a gente até “vamos contratar Andréa” e aí me
fez um Manifesto contra o deram freelancer dentro da Micro
Crivella que tentou censurar. E aí Rainbow, virei monitora depois
eu me liguei numa galera muito deles, sabe? Eu tive muitas pessoas
foda aí do ativismo, aí eu tem uma cis que olharam para mim. Dentro
foto que tá eu, Indianare, o das letrinhas, eu reconheço que
pessoal lá com a faixa Cure seu muitas eram pessoas cis e lésbicas,
Preconceito, a gente lá fazendo gays e héteros, tá?! Eu tenho que
manifesto contra a tentativa de falar isso, o Walter Cavalcante, ele
censura do Crivella. E aí eu é hetero, ele tinha uma rede
conheci o Luiz Coelho e ele falou chamada Convergência e foi ele
“eu vou querer conversar com que criou um dos líderes daquela
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

você porque eu quero muito União Rio que andou atendendo


ajudar a causa trans, eu acho que Rio de Janeiro nessa pandemia,
as religiões deviam fazer mais que cuidou do Rio de Janeiro com
isso e poucas fazem, de fato hospitais, com maca... ele foi
incluem vocês” e aí ele foi o pegando empresários e fazendo
primeiro a mandar para minha aquelas doações e inclusive ele
casa, antes de eu sonhar em pediu que colocaram meu nome
vencer edital, Luiz foi o primeiro a na lista de doação de cesta básica
acreditar no meu projeto e para todos os alunos do
mandou com os paroquianos CAPACITRANS durante esses três
deles eles arrecadaram dinheiro e meses. Então eu tenho muitos
pagaram, mandaram um quadro e anjos, se é que eles existem né, eu
dez cadeiras que eu tenho até hoje prefiro acreditar em anjos e
aqui, guardadinhos né? Um pessoas em vida, né? Então eu tive
quadro, dez cadeiras para gente grandes pessoas tanto que,
começar as iniciativas. E houve quando eu venci lá em São Paulo,
outras pessoas cis que acreditar a primeira pessoa que eu liguei...

282
As primeiras pessoas foi o Walter, me ajudar a equilibrar as aulas que
foi a Ivana e o padre Luís Coelho eu fico mais com a modelagem e
que foram as primeiras pessoas com as criações, com Universo de
que acreditaram na Andréa. E aí produção de moda. Hoje eu tenho
as coisas foram acontecendo. Eu e a Kelly que é minha ex aluna, foi
o padre criamos uma marca de aluna do CAPACITRANS de
roupas de vestes, de túnicas, ele imagem, profissional do sexo, e aí
falou “você consegue fazer?” e eu ela vem... e eu falei “você acha que
falei “consigo”. E aí a gente criou a você consegue ser minha
marca Transfiguração, só que ele assistente, uma assistente
não satisfeito levou o nome do administrativa, uma faz tudo, uma
CAPACITRANS pra Atlanta, e fez oxitrans, uma mão... uma mão pra
a gente vencer um outro edital em toda obra?” ela “Claro madrinha,
Atlanta. E conseguimos vencer o que você precisar eu topo”, tá
um edital em Atlanta graças à comigo há 9 meses, 10 meses. E aí
paróquia anglicana São Lucas, que a gente está vendo se consegue
ele o recurso, ele tinha tudo que manter, não é muita gente, não é
passar pela igreja porque é um uma empresa, então a gente dá
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

fundo internacional né, e dentro uma bolsa, uma bolsa auxílio para
de paróquias. Então, veio de uma, bolsa auxílio para outra. Isso
Atlanta, passou para a igreja e Tudo graças a esses fundos
todo mês ele “Andréa quando você conquistados, um deles foi o
precisa para o CAPACITRANS ELAS... Foi minha grande
esse mês?” Então a gente teve um surpresa, eu fui pro elas... Fundo
fôlego maior, por isso que eu ELAS e Instituto C&A, e o projeto
consegui levar as duas turmas até era moda sem violência. E a gente
o fim, com formatura e etc. Não combate as explorações, trabalho
satisfeita, eu comecei a consegui análogo à escravidão, tudo isso a
colocar pessoas na equipe do gente... e aí a gente conseguiu
CAPACITRANS. E aí eu comecei, vencer um edital extremamente
chamei Maya, Maya ficou três feminista. E que que isso faz a
meses depois ela precisou sair. Aí, gente enxergar? Finalmente as
veio Ângela Leclery, uma travesti mulheres enxergam as mulheres
de 70 anos que hoje é minha trans em suas mulheridades,
professora de corte e costura, para enquanto tem uns discursos

283
radicais feministas que não nos desde a primeira turma lá do
incluem, o fundo Elas têm com... mês de março de 2019. Os grupos
na contramão enfrentando isso permanecem, então tem o grupo
falando “não, são mulheres trans moda um, grupo moda 2, o grupo
e tem todo direito de estar aqui”. Empreendedorismo 1 o grupo...
E aí eu vi que essa Conquista sabe?! Todos os grupos estão lá
me permitiu mais... mais esses e a gente vai mantendo aquela
10 meses de continuidade. E aí a assessoria né, “o que que tá
gente teve a terceira rodada. Foi faltando? porque que você parou?
o Transmulheridades na moda Por que que você não tá mais
sem violência e que tão saindo falando em projeto? Você agora
grandes empreendedoras, tem a quer emprego formal, é isso?” E
Lorraine, tem a Mary, tem várias a gente vai sempre trabalhando
que estão aí com suas marcas isso. Até que ponto você quer um
de moda surgindo. E aí eu vejo emprego formal? Que a gente... a
que não foi em vão essa minha gente teve a Fabíola lá da Unilever
existência, é ali que tá o resultado foi uma vez da segunda rodada ela
daquela trans que há uns 20 fez parte da banca, aquela banca
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

anos atrás entrou na turma do não era para te criticar, uma banca
Damas e falou que queria ser que só dá toque a Mais. A gente
uma multiplicadora. já passaram tem que... cada apoiador que abriu
pelo CAPACITRANS mais de 60 porta para gente era convidado
pessoas. Posso dizer que dengue de uma formatura. Então a gente
chegou a 100, mas sempre tem sempre teve cinco bancas, cinco
aquelas pessoas que no meio do pessoas numa banca, aí tinha
caminho não era o momento LGB, hétero, Sabe? Aquela banca
delas, desistiram, largaram... a bem diversa? Para dar o toque
gente entende que tudo é seu... “e aí Valter que que você acha
cara da pessoa encontra seu que fulano precisa melhorar?”.
tempo. Então tem outras que se E aí cada um orientava, ajudava,
superam. Lorraine entrou no alguns trabalhos... Padre Luís
Transmulheridades sem saber Coelho conseguiu bico, freelancer,
pegar numa máquina de costura. trabalho e assim vai... a rede só
a gente tem os mesmos... tem foi crescendo e a Unilever teve
os grupos das primeiras turmas uma participação fenomenal nisso

284
porque a Fabíola veio com uma contratar, porque ela é empresa
fala muito bonita na formatura. pioneira e líder no mercado,
Ela falava assim “e qual problema sabe? Então isso tudo é o que a
também de vocês tentarem uma gente está conquistando, e eu,
vaga na Unilever? vocês podem quando venci o primeiro, em um
trabalhar, a gente tem serviço ano acabei vencendo três. Estou
que possam... a gente pode tentar concorrendo ao a outros aí, mas
incluir vocês e que vocês façam já... esses editais internacionais
um dinheirinho para montar que vieram aí em período de
empresa de vocês?”. Olha, eu COVID, eu lembro de ter me
nunca vi uma empresa falar inscrito em 3 ou 4 e não passei,
“trabalha com a gente até você mas tudo bem, eu estava bem, eu
junta dinheiro para montar sua estava feliz porque outras pessoas
empresa”. Eu nunca ouvi uma em emergência conseguiram.
empresa falar assim. Isso para Eu não sou aquela pessoa que
mim não tem preço. Tem todo fica “Ah, que raiva”, sabe? Ah,
valor, por isso que eu babo ovo teve a segunda edição do Mais
mesmo pela Unilever, eu tenho Diversidade Itaú, que eu tentei
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

paixão pela Unilever. Já usava o mais uma vez, pensei “pô, mais
que eu podia né, porque eu era, um ano pode nos ajudar mais ou
eu sempre fui pobrinha. Eu sou pouco, né?”. Não fui aprovada,
pobrinha então uso Surf, mas porque dessa vez tiveram mais
eles têm o Omo, e aí a gente fala de 500 inscrições, O Itaú Mais
desses produtos com a maior Diversidade, a segunda edição.
tranquilidade. Mas o que que aconteceu? O Itaú
E aí hoje, uma das renovou comigo um patrocínio
propostas que eles trouxeram por fora esses dias, então a gente
pra mim, nessa proposta de vai ter essa quarta rodada graças a
sustentabilidade, foi eu dar o esse patrocínio do Itaú.
curso de promotora de venda da E assim a gente vai
Unilever. Que aí a pessoa sai com aprendendo e fazendo, e eu
aquele selo da Unilever, mesmo vou vendo os resultados dos
que ele não trabalhe pra Unilever, meus bebês. Falo que são meus
qualquer empresa com aquele seu bebês mesmo, me chama de
curso dado pela Unilever vai te madrinha, entendeu? Aí eu falei

285
“vocês chamam todo mundo tipo de parceria, e eu tenho um
de madrinha, a Indianare é orgulho gigante dessa preta.
madrinha, Andréa Brazil é A gente tá institucionalizando
madrinha, tem muita madrinha, o CAPACITRANS agora – eu já
mas tá bom, que seja assim, que sou MEI, mas a minha empresa
sejam nós por nós.” de moda é uma coisa, eu só
posso ganhar x, não sei o que lá,
Diógenes Pinheiro: Andréa, negócio de imposto de renda.
fala um pouco disso, dessas Nenhum dinheiro de edital vem
suas alunas. Onde é que estão como MEI, as conquistas de
os negócios delas, quais são as digital vem como pessoa física,
áreas prioritárias, como é que tu exatamente pra eu me precaver,
ensina a trajetória das pessoas que para não passar uma impressão
passaram pelo CAPACITRANS? de sonegação, de desonestidade,
Porque é de fato uma experiência e ultrapassar teto de MEI – o MEI
muito inovadora. é 81 mil por ano – então eu acho
que já passei essa cota aí. Então
Andréa Brazil: Tem de tudo. quando a gente vê essas pessoas
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

Tem desde pessoas que entraram que estão produzindo, eu não sei
de um jeito e mudou no meio porque que eu falei disso agora,
do projeto: “Madrinha, entrei mas vamos lá, que as vezes eu me
pra fazer moda, mas acho que perco... A Cher é um exemplo, ela
meu universo é outro”. Esse mesmo indicou o CAPACITRANS
primeiro exemplo é a Cher. A para essa plataforma Play for
Cher acabou se tornando uma Help, que fez uma campanha
influenciadora digital, ela fala do online, um streaming, aí eles
empoderamento preto, ela tem arrecadaram mil reais, e veio pro
a marca Transcurecer, o canal CAPACITRANS. Isso é um muito
Transcurecer, Cher Machado, no incrível, uma aluna que entrou
Instagram, no Twitter - mas ela como moda, e acabo indo pro lado
se tornou a rainha do Twitter, ela de empreendedorismo.
traz a pauta preta, a causa racial. Ela é professora de física, ela é
E isso já começou a trazer retorno formanda, alguma coisa assim, ela
financeiro pra ela, empresas tá concluindo física, é a famosa
querendo ela fazendo algum nerd. E ela tem esse universo

286
geek também, de streaming, de ela já tem três máquinas: reta,
plataforma, de jogos. Ela é muito overlock e galoneira, ela postou
inteligente. E é uma preta que fala no grupo esses dias! Então
com um local de fala do universo esses resultados, para mim,
trans preta, né? Aí tem o Gabriel, são os resultados que eu levo
que hoje é líder da liga trans para os investidores, que eu
masculina, que está aí envolvido tenho muito orgulho. Pessoas
demais com o ativismo, e tá aí que eu levo hoje... a Fernanda
sendo bem agregado, conversando de Lima, que desistiu das ruas,
com as mandatas, Ericka Hilton, porque vivenciou umas situações
Malunguinho, então ele tá aí indo de violência graves, negócio
pro caminho do ativismo. Mas de cafetina, de prostituição
ele tem também uma cooperativa perigosa. A Fernanda de Lima,
de trabalhos de pessoas trans, ela entrou na repescagem do
a BICOOP, e assim vai rolando CAPACITRANS mulheridades
as paradas, e aí eu vou vendo as na moda... Fernanda de Lima,
pessoas crescendo. ela é de um talento absurdo!
Eu tenho Lorrayne, que saiu Absurdo! Ela tem a questão da
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

do trans mulheridades na moda sustentabilidade na veia! Ela pega


sem violência. Embora ela não um ferro velho e transforma
fosse profissional do sexo, ela seja num móvel. E além de tudo
uma trans que é casada, tem uma ela fez moda com a gente, ela
vidinha normativa, ela não sabia até deu uma sumida das redes,
o que que ela ia fazer, que não estou muito preocupada com
fosse bater em porta de emprego. ela, estou pedindo o pessoal
Hoje ela está aí, abarrotada se mobilizando, ela sumiu das
de encomenda, de biquíni, de redes... Mas ela faz isso mesmo,
calcinha - a gente chama de quando ela está cansada de
calcinha de truque, calcinha certas coisas na internet. Ela
que esconde o babado, que truca era profissional do sexo, então
bem a neca. E aí ela está aí ó, ela mantem os VIPs, aqueles
alavancando a carreira dela - ela que pegam muito bem, então
já comprou as três maquinas dela, uma vez ela me explicou:
ela entrou no CAPACITRANS “Madrinha as vezes eu fujo da
sem saber mexer numa máquina, internet porque os caras não tem

287
limite, são muito chatos, ficam pra família, e nada se fez de útil.
enchendo toda hora, me pede Então se eu morrer amanhã, pelo
foto, aí de vez em quando eu menos eu deixei um legado, então
fujo das internet”. Aí eu entendi, que eu gaste tudo com todos os
porque ela está focada. meus irmãos e irmãs, essa é a
Inclusive aqui onde vão minha proposta. Eu não preciso
ser as aulas aqui da segunda ficar rica, eu não preciso de um
rodada, quando houverem aulas carro para ter status, eu tenho
presenciais, que é nessa casa eu meu motorista voluntário do
estou morando agora, que é uma CAPACITRANS que eu pago com
casa maior, que tem espaço, três um fundo, porque ele faz tudo
quartos, uma sala enorme - ali em prol das minhas meninas:
que vai ser sala de aula... essa casa “Andréa, quer levar cesta básica?
que estou morando hoje - alugada, Eu levo tudo de casa em casa”
óbvio - essa casa eu falei com a Aí eu pago ele tudo o quanto eu
Fernanda, falei: “Fernanda, eu posso pagar. É sempre um valor
quero que você monte o ateliê simbólico, mas ele aceita de
com todas essas coisas, caixote, coração, porque ele estava em
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

tudo que tem aqui”. A gente já vulnerabilidade também, ele vai


programou tudo, eu estou até ser pai pela segunda vez, então é
preocupada com o sumiço dela, um ajudando o outro.
porque eu queria isso para quando Sabe porque ele? Por que eu
a gente retomasse as aulas, falei escolhi ele? Primeiro porque ele
com ela “eu faço questão de pagar, já tinha carro, e segundo porque
eu quero te pagar.” O dinheiro quando eu sofri violência, quando
o que entra tem que me ser útil eu fui espancada, quando eu
para que eu ajude outras iguais a fiquei sozinha no meu bairro, a
mim, o dinheiro não pode ficar. família dele inteira me adotou,
Eu não tenho nenhuma pretensão a família dele toda cuidou de
de guardar fundos, de morrer mim. Eu ia para a casa deles
rica... porque eu não preciso pra almoçar, pra comer, pra me
disso, tantas outras morreram sentir no seio de uma família, e
antes de mim, que foram líder todo mundo ali me tratava como
de movimento de ativismo, que se fosse uma filha, uma irmã,
já se foram, e nada ficou, fica então hoje é o meu momento de

288
retribuir e ter essas pessoas na a gente não pode ter formatura
minha equipe, sabe? com a pandemia, então há
E ele respeita as minhas uma promessa aí de fazer uma
meninas e os meus meninos, isso formatura geral aí quando isso
pra mim é o ponto principal – tudo passar, reunir todo mundo
ele brinca, ele tem uma relação que passou pelo CAPACITRANS
maravilhosa com a Kelly, que é para ter uma festa, nem que seja
minha assistente. A gente ficou um edital só para isso, um edital
3 meses entregando cesta básica para uma festa. E é isso, é nós por
de casa em casa de aluno, eu nós, eu sempre falo isso.
ficava em casa trabalhando de Todos eles estão nas redes,
home office, prestando conta, a gente tem o CAPACITRANS
fazendo isso, fazendo aquilo, RJ no Instagram, aí está todo
fazendo relatoria, e eles indo mundo lá. Nem todo mundo tem
juntos entregar cestas básicas Instagram, mas a gente também
de casa em casa de aluno. E tem a página do Facebook,
ele falava: “Kelly vai comigo! CAPACITRANS RJ. Dentro da
Andréa, eu adoro sua irmã, sua minha página do face tem página
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

irmã é muito legal”, uma relação do CAPACITRANS, e a gente


que eu espero muito que essa também tem o site – criamos um
equipe só vá crescendo. Óbvio site, eu acabei de pagar o domínio
que sempre a predominância, a anual de novo, para a gente
maioria das pessoas da equipe, atualizar de novo agora e colocar
serão pessoas trans, porque são as as novas turmas, as pessoas
mais excluídas de oportunidade, que formaram. O objetivo é
mas se a gente puder, e tiver uma que as pessoas falem assim:
parceria de pessoas que respeitem “Andréa, se a gente quiser fazer
a causa trans, por que não? Se uma festa de 15 anos e precisar
sabe lidar, já convive com uma de uma equipe de maquiador
pessoa que é da família trans, que e cabelereira, você me indica
é adotiva mas é? Se sabe lidar com quantas meninas do capitaras?” É
isso... e além de tudo, toda vez isso que eu quero sabe? “Andréa,
que ele ia com ela, que a gente a gente vai fazer um buffet, a
fez a entrega dos certificados de gente quer uma equipe toda
casa em casa também - porque de pessoas trans, me indica

289
aí três, quatro, cinco nomes”, respeita teu gênero, aí essas
“Andréa, a gente tem vaga para empresas contem comigo para
assistente administrativo, quem tudo, sabe?
das meninas ou dos meninos do Toda vez que postam no
CAPACITRANS se enquadram grupo “vaga no emprego tal”,
no perfil?” Eu quero a gente se a primeira coisa que eu vou é
torne esse espaço, sabe? Eu não naquela pessoa que mandou e
quero que a gente seja trans pergunto: “Você sabe se essa
empregos, mas que a gente seja empresa, ela é inclusiva com
trans oportunidades. Tem a pessoas trans, ou você só viu
Transempregos em São Paulo, e está compartilhando? Para
mas é como eu falo para vocês: eu com isso! Vai pesquisar, vai
não faço questão de reproduzir fuxicar a vida empresa! Vai ver
esse discurso do “ambiente quantas pessoas trans trabalham
formal”, porque a gente está aí lá dentro!” Isso não é difícil
vivendo uma perda de direitos de fazer, esse é o trabalho do
trabalhistas, Indianare falou CAPACITRANS, e é isso que eu
isso muito bem. Trabalhar, procuro reproduzir.
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

morrer de trabalhar, pegar


ônibus, trem lotado, ficar indo Diógenes: Eu queria que
para transporte com pandemia, você, que está aí há mais
é isso que o governo quer, que de 20 anos, trabalhando na
a gente se dane, que morra, e educação, e formando novos
você recebendo lá 800 conto, empreendedores... isso que a
900 conto, 1000 conto, para Cláudia falou, o que que você acha
trabalhar para eles, pra eles só que melhorou no cenário trans,
enriquecerem mais, é isso que a hoje?
gente quer combater. Agora, se
a gente tem uma Unilever, que Andréa: Estava melhorando. Por
faz uma escala cuidadosa, que exemplo... eu vou ser objetiva,
faz um turno de meio período, porque eu falo pra caramba
que dá toda uma assessoria para e já tenho isso na ponta da
você não se contaminar, aí é língua. Estava melhorando
outra história. E ela te inclui, porque a gente conseguiu a
te respeita, respeita teu nome, questão da retificação do nome,

290
que estava trazendo menos fundamentalistas pularem na
obstáculos na contratação. Mas pipoca, ferver no azeite de dendê...
aí vem um grupo aí retrogrado, tinha quem ferver no caldeirão
começa a atacar a gente de do inferno, essas pragas. Porque
novo, começa a querer retirar quando vem uma campanha - dia
direito, aí já começa a botar dos pais - que fez um acordo com
obstáculos de novo. Mas está um trans, com um homem trans,
avançando sim! Quando você o Thammy, para ele fazer uma
tem representatividade trans campanha publicitária nas redes
em novela, desde a malhação dele, tinha nada dele ser “garoto
até novela das 9, reconheço propaganda”, não era ele que
que, de forma positiva – quando aparecia no comercial da Rede
é feita né, quando não é uma Globo, as pessoas são medíocres
palhaçada igual à do Agnaldo e mesquinhas. E aí você vê esse
Silva, de colocar a Nanny People silêncio todo agora com Flordelis,
com nome de homem, aquilo né? Agora... que silêncio! Cadê
foi uma palhaçada, a novela dele esse povo fundamentalista? Cadê
realmente é transfóbica, não esse povo?
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

posso falar que é diferente. E Eu tenho um garoto que foi


é caricata em relação aos gays, meu aluno na obra social, há
vê o Crô aí em fina estampa, é muitos anos atrás, eu tinha um
uma caricatura do homossexual, carinho enorme por ele, eu tinha
acho que não é por aí. Novelas até um affair por ele, não vou
que tratam essa questão de fato, negar. Mas agora, anos depois,
acho que trouxeram muitos que a gente se reaproximou -
caminhos. Trouxe a questão do nunca enquanto professora dela
homem trans, que vai reprisar porque eu sempre respeitei esse
agora, depois que sair essa novela espaço de distanciamento. Eu
chata, vai vir “A força do querer”, tinha uma paixão por ele que caiu
então a gente vai voltar a se falar por terra. Ele todo dia fazendo
de homens trans, com aquele uma postagem agressiva, porque
trabalho brilhante da Carol. ele é pai solteiro, ele é pai solo,
Então isso faz com que as mulheres largaram o filho
as pessoas nos enxerguem, com ele, não sei que babado foi
mas também faz um os esse. Aí ele veio pagar de bom pai

291
porque cria os filhos - e não faz vamos ser honestos. Então todas
mais que obrigação -, e veio atacar as religiões que pregam inclusão
um homem trans, veio atacar o da boca pra fora, elas têm o meu
Thammy. Eu entrei numa guerra, repúdio, então é por isso que eu
num conflito com ele, ele falou estou cada vez mais desistindo
“olha, você pode me excluir” e eu de todas elas. Aí quando eu tenho
falei “não, não vou te excluir não, um padrinho, padre da paroquia
sabe por que? Porque você vai ter anglicana, São Lucas, que tem
que aprender a conviver com a uma fala que destoa de todos eles,
diversidade”. Eu vou mandar uma como não amar? Como não ser
mensagem para ele hoje, foi bom apaixonada? Não é porque doa pra
a gente ter tocado nesse assunto, projeto não, é porque cuida! Sabe
vou perguntar: “Nossa, cadê seus o que que ele fala pra gente, o
manifestos contra a deputada padre Luiz Coelho? Ele fala assim:
Flordelis? Cadê seus argumentos “Andréa, tem como você levar
para a mãe que transava com umas meninas do CAPACITRANS
o filho que virou marido, que lá pra gente falar sobre a vitória
nem sei o que... Cadê seus do fundo de Atlanta? Mas olha,
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

argumentos? Você fez postagem elas podem chegar depois da


dia e noite atacando um homem missa, tá? Elas não precisam
trans, o Thammy, porque ele ia chegar para assistir missa, não”.
fazer campanha do dia dos pais, Quando que a gente encontra uma
mas você não fez uma menção a pessoa religiosa que não tenta te
uma mãe, que é uma deputada!”. catequizar porque te ajuda? Isso é
E ele e os amiguinhos dele o que falta no país de hoje.
tudo religioso, né? O câncer da Então o que está acontecendo,
humanidade é o fundamentalismo respondendo a tua pregunta,
religioso. E isso eu falo pra Diógenes, a gente estava
qualquer religião, seja católicos, avançando por causa do ativismo
evangélicos, até a umbanda que de anos, de muitas de nós. Chegou
discrimina, do candomblé que o momento do protagonismo
discrimina, que fala que você é trans, para que a gente comece a
mulher trans, não pode receber caminhar pelas nossas próprias
orixá feminino... porque tem pernas, sem ficar a sombra dos
transfobia também no candomblé, GGG – não tem nenhum ataque

292
gratuito aqui, os movimentos ali com um discursinho “que
que fazem isso a gente sabe agora eu sou do Senhor, que eu
quem são, eu não preciso citar destransicionei”, eu penso “Nossa,
nomes – então a gente precisou a lavagem cerebral foi boa aí”. E
buscou um protagonismo trans eu tenho essa visão e não adianta,
sim, tá? A gente precisa que as ninguém deixa de ser aquilo que
lésbicas radicais que nos excluem nunca foi uma escolha, ela não
e não nos respeitam enquanto pode deixar de ser. Não é uma
identidade feminina... elas estão escolha ser homossexual e não e
mais próximas do que discurso uma escola ser trans. Existe um
do opressor bolsonarista, do que momento que você se enxerga
de um discurso liberal, de um enquanto trans – “Ah, realente
discurso da esquerda, vamos eu sou gay. Não, eu sou bi!
dizer assim, do discurso de Caramba, eu achava que eu era
inclusão, quando elas nos atacam, gay, mas eu sou bissexual porque
rotulando genitália a gênero, eu gosto de mulheres também,
sabe? É triste, é triste. eu gosto de homens e mulheres!”
Quando você vê esses As pessoas se descobrem! E isso
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

movimentos entrando e ebulição, não pode ter nada a ver com o


fervendo, né? Sabe a pipoca, diabo da profissão da pessoa,
quando ela está explodindo? É meu deus! Isso não pode ter
exatamente porque ela está se nada a ver com o talento que
sentindo ameaçada, porque tá essa pessoa tenha. O que que
incomodada com o protagonismo tem a ver identidade, orientação
de quem viveu no silenciamento sexual, ou identidade de gênero,
durante anos, é isso que está com talentos? Então eu sempre
acontecendo. Os evangélicos posto: “Talentos trans existem,
estavam no poder nos silenciando, talentos LGBI existem!”. A gente
então quando eles veem a gente teve o caso de uma intersex na
aparecendo, eles voltam a tentar turma que até então passava
nos silenciar de novo, mas não batido - a gente tem o caso do
vão conseguir. Nós não vamos Amiel, que é mais conhecido, e
mais voltar pros armários, nem o caso da Esther, que era minha
destransicionar. E cada vez que aluna do CAPACITRANS de
eu vejo uma trans aparecendo empreendedorismo. Esther teve

293
que ir pra Minas, e foi pega de puta: “Não, não são nossos
surpresa pela pandemia, que filhos não! Nós não temos filhos
proibiu a volta... e eu acho que ela escrotos e ladrões iguais a eles!”.
acabou se virando por lá mesmo. E ser puta não é demérito, ser
A Ester é uma trans que é, na puta é um trabalho! Bom para
verdade, uma pessoa intersex, que quem sabe ser, não para uma
contou a história dela lá numa burra igual a mim, que não sei
roda de conversa sobre violências, ser profissional do sexo porque
que emocionou a todo mundo. não sei cobrar. Nesse ponto eu
Ela emocionou mulheres cis não sou empreendedora... eu
presentes, ela emocionou outras sei vender minha moda, mas
meninas trans. não sei vender meu corpo,
Outras coisa que a gente acabo dando de graça. Isso
combate dentro das aulas do tudo eu vou trabalhando nas
CAPACITRANS é a padronização. aulas também, sabe, enquanto a
A gente não aceita nenhum tipo gente vai contando, vai ouvindo
de desmerecimento da que não várias histórias...olha, daria
seja tão bonita ou tão perfeita um livro, um livro, se fosse
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

quando ao outra. A gente briga contar as histórias de todas elas


contra isso dentro da sala de ali. Tem história lindas, tem
aula. Eu mesma quando percebo histórias muito sofridas... e deles!
uma fala errônea, uma fala Desculpa, eu não sou adepta do
preconceituosa, uma fala que te silenciamento dos homens trans.
diminua, eu falo: “mana, nunca, O CAPACITRANS abriu
nunca diminua uma irmã igual a muito espaço e local de fala
você. Você é privilegiada porque para eles também, e foi uma
você é mais bonita? Beleza, mas coisa que eu sempre fiz
você enquanto trans também questão. É CAPACITRANS? É
sofre as mesmas discriminações CAPACITRANS sim - “Ah, não
que nós sofremos, então qual porque não CAPACITRANS
é a sua postura? Você acha que LGBI?” - Não! Porque ai já é outro
é bonito isso, você fazer isso?”, conceito, e foi até uma temática
falas racistas.... Isso eu aprendi que foi debatida comigo e com
muito com Indianare. A gente Indianare, ela falou: “mas pra
mudou o discurso de filho da LGB já tem um monte”, ai eu

294
falei “então, CAPACITRANS para Caminhar, a gente estava
capacitar sempre pessoas trans, caminhando - respondendo
mas a gente não vai fazer o que sua pergunta Diógenes, dei
os outros movimentos fazem uma volta ao mundo pra falar
com a gente, a gente não vai isso -, estávamos caminhando,
virar as costas se baterem pra graças aos grupos ativistas, mas
lá!” – “Andréa, eu sou mulher também retrocedemos muito
cis, mãe de dois filhos, mas eu com muita gente que deu facada
tenho uma relação bissexual, nas nossas costas, se aliando a
já fiquei com mulher, posso?” bolsonarismo. Agostinho é uma
“Pode! Vem sim, vem com tudo, representatividade podre pra
estamos juntos, se respeitar os gente, é um gay que é chaveirinho
meninos e meninas da turma, de hétero e de bolsonarismo, e
vai ser irmã igual qualquer outra outros tantos aí. Esse tipo de coisa
pessoa”. Porque a gente nasceu que faz agente dar dois passos
de mulheres cis, de pessoas, entre para trás, porque as pessoas
aspas né, a gente nasce de uma passam a achar assim: “A lá!
“mulher cis”. Eu tenho toda uma Como que o presidente aceita!”
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

gratidão pela minha mãe, que me Aceita? E lembra do discurso dele


criou praticamente sozinha, então humilhando a Ellen Page? Olha
eu enxergo muito essas mulheres como ele falou com ela: “Ah, você
como possíveis mães de um LGBT, até que é bonitinha, se eu fosse
é assim que eu penso, então por mais novo...” Como assim, sabe?
isso que a gente não vira as costas. Que homem nojento, homem
E a predominância, como eu falei desprezível! “Eu não te estupro
no começo da entrevista: sempre porque você não merece”, sabe? É
trans, mulheres trans, travestis, aquela famosa frase, enquanto era
homens trans, gays afeminados, só pra apontar os defeitos do PT e
as famosas POC, porque essas dos outros partidos é fácil, mas as
que são discriminadas, porque corrupções e a as podridões dele,
são pintosas, as não-binárias, as eles não querem enxergar, e é isso
pessoas que não querem definição que estava fazendo esse cabo de
de gênero, não é ela nem ele, é guerra. O que está acontecendo
elu, ai a gente vai desconstruindo aí é esse cabo de guerra, eles
isso tudo dentro das aulas. estavam no poder nos silenciando,

295
a gente começou a parecer, e
aí eles estão voltando a querer
apagar a gente. Mas vai ser difícil,
não vão conseguir.

Diógenes: A gente queria que


nesse material tivesse a fala de
pessoas reais, como você, de
educadores que estão enfrentando
esses desafios. Então foi uma
aula de educação, de educação
social, de movimentos sociais,
tudo junto. Foi realmente um
privilégio.
Projeto Capacitrans RJ entrevista com Andréa Brazil

296
interferência cromática sobre foto de Ricardo Matsukawa | temqueter.org
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

Trabalho e
tra (ns)vesti -
(gêneres) lida-
des : elementos
para uma
análise
Dandara Felícia Silva Oliveira
Marco José de Oliveira Duarte
298
O MUNDO DO TRABALHO E DAS PESSOAS
transvestigêneres é um tema pouco tratado academicamente
na literatura científica tanto no campo dos estudos de gênero
e sexualidade, como nas áreas de conhecimento científico
que tomam o trabalho como objeto de estudos. Apresenta-
se um texto-ensaio, a partir de uma pesquisa qualitativa
em curso, contudo, suspensa, atualmente, em decorrência
da pandemia da COVID-19, mas que, metodologicamente,
analisa alguns dados que se baseiam na revisão da literatura
e no começo de um trabalho cartográfico de campo. Para
tanto, a produção textual trata de forma introdutória e
teoricamente do conceito do trabalho e suas relações, para,
consequentemente, focar na problematização da inserção da
população transvestigêneres no mercado do trabalho marcado
pelas relações capitalistas. Questões e marcadores sociais são
tomados, pelo víeis da vulnerabilidade, subalternidade e da
precariedade do trabalho e da vida, e, em particular, sobre
as condições, modos de existência e da cidadania precária
que se expressam na sociabilidade das transvestigêneres.
As fragilidades das políticas públicas e a lógica da exclusão e
do aniquilamento para com esses sujeitos é mais acentuado
ainda no momento presente e histórico marcado pelas crises
do capital e pelo discurso de ódio que contraditoriamente se
produz resistências coletivas na sociedade brasileira.
1. Introdução
Esse trabalho tem por objetivo tratar sobre pessoas
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

transvestigêneres (travestis e mulheres transexuais e


transgêneros) e o mundo do trabalho, na medida em que se
observa a diminuta produção teórico-acadêmica sobre esse
objeto. Propõe-se, portanto, ao tratar de alguns elementos
teórico-conceituais no campo dos estudos do trabalho, uma
aproximação preliminar para a construção de uma visão
analítica crítica sobre o tema, particularmente, tendo em
conta que uma das autoras é uma transvestigênere negra,
periférica e, atualmente, a primeira nessa condição como
estudante de mestrado da área de Ciências Sociais Aplicadas
em uma universidade pública do interior de Minas Gerais.
Desta forma, não tendo como não registrar essa
singularidade, principalmente porque, segundo dados do
dossiê produzido pela Associação Nacional de Travestis
e Transexuais (ANTRA), o Brasil é o país que mais mata
pessoas trans no mundo e quase quatro vezes mais do que
o segundo lugar, o México.

no ano de 2018, lembrando incansavelmente do


aumento da subnotificação desses dados, ocorreram
163 assassinatos de pessoas transgêneros, sendo 158
travestis e mulheres transexuais, 4 homens transgênero
e 1 pessoa não-binária. Destes, encontramos notícias
de que apenas 15 casos tiveram os suspeitos presos,
o que representa 9% dos casos (BENEVIDES, B. G.;
NOGUEIRA, 2018, p. 15).

300
Cabe sinalizar que um outro elemento desse processo de
assassinatos que os/as corpos/as transvestigêneres estão
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

marcados/as está relacionado ao racismo, visto que também


é tanto um marcador estrutural de opressão, como um dos
marcadores sociais da diferença, que deve ser mencionado nessa
análise. A maioria absoluta dos dados tratados no relatório da
ANTRA, particularmente, no quesito raça, aponta que 82% das
pessoas foram indicadas como pretas ou pardas. Esse dado é
corroborado pelo Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), ao demonstrar que “o assassinato
entre mulheres negras cresceu 29,9%, enquanto o de mulheres
não negras teve crescimento de 4,5%” (IPEA, 2019 p. 38).
Acrescenta-se, junto a esse conjunto de indicadores
de morte e raça, a triste e perversa realidade da evasão
escolar dessas pessoas que, segundo o relatório da ANTRA
(2018, p. 47), chega 82%, quase a totalidade da comunidade
transvestigêneres no Brasil. A associação da violência e
as expulsões do lar e da escola fazem com que o número
de anos de frequência de escolarização de pessoas
transvestigêneres no Brasil seja de apenas quatro anos. Com
essa realidade posta em números, é facilmente explicável o
motivo pelo qual 90% das pessoas transvestigêneres ocupam
o mercado da informalidade ou da prostituição no Brasil
(BENEVIDES, B. G.; NOGUEIRA, 2018, p. 48).
As políticas públicas para a população de lésbicas, gays,
bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, não-binares,
intersexuais e mais (LGBTQI+) e, principalmente, para a
301
população transvestigêneres pouco avançaram desde a
Constituição cidadã de 1988. Portanto, ainda que os esforços
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

tenham sido hercúleos de parte significativa da militância,


com vontade política,

as ações compreendidas do Programa Brasil sem


Homofobia (BSH) tiveram o protagonismo da execução
centralizados nas mãos de ONGs de ativismo, o que
demonstra, a falta de expertise no debate sobre a
efetivação dos direitos LGBT, que pode ser reflexo de
uma histórica desresponsabilização do Estado com a
prestação de serviços sociais a essa população, que se
iniciou com a epidemia da AIDS (IRINEU, 2014, p. 197).

Desse modo, mesmo com a crescente visibilidade de


identidades transvestigêneres na cena política e dos poucos,
mas importantes, estudos acadêmicos sobre a temática das
transidentidades e trabalho, o debate sobre o referido tema,
segundo Almeida (2014), ainda tem pouca representatividade
numérica na produção acadêmica.
Portanto, como estávamos no início do processo de
investigação e fomos tomados de surpresa nesse contexto da
pandemia do novo coronavírus (COVID-19), com tudo que
isso implica, tivemos que suspender a realização da pesquisa
qualitativa sobre o percurso de pessoas transvestigêneres no
mercado de trabalho em uma cidade do interior de Minas
Gerais. Assim, esse trabalho, de forma embrionária, pretende
evidenciar alguns elementos críticos, além de gerar subsídios

302
analíticos para que se possa pensar ações e políticas públicas
de inserção dessa população no mercado formal de trabalho
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

como uma forma de favorecer a inclusão social, a cidadania


e a dignidade desse/as sujeitos/as marcadas/os por sua
dissidência sexual e de gênero na sociedade do trabalho.

2.Trabalho e relações sociais no capitalismo


O trabalho, atividade desenvolvida pelo ser humano,
através de seus meios e instrumentos de trabalho, é uma
relação social constitutiva da dinâmica mesma do modo
de produção econômica da sociedade (MARX, 2001). Essa
é, portanto, a atividade ontológica que nos diferencia dos
animais e, consequentemente, merece destaque pela análise
em todas as nuances que apresenta no emaranhado das
relações sociais capitalistas. Marx (2001), em O capital,
define que o trabalho não é só uma atividade em que o
ser humano age em sociedade, mas, também, o processo
histórico que faz surgir o ser social (MARX, 2001).
Desta forma, Marx ao pautar a relação capital e trabalho,
situando o papel central da força de trabalho, revela, em
Capital e Trabalho Assalariado (MARX, 1987) que assim como
o açúcar ou um metro de pano, “a força de trabalho é vendida
ao capitalista burguês por determinado valor, e que a única
diferença da mercadoria força de trabalho para a mercadoria
açúcar, por exemplo, é a forma de medida, uma é medida em
gramas, a outro em horas” (MARX, 1987, p. 9). É nessa relação de
303
troca no capitalismo que se percebe o processo de reificação e
de alienação das/os trabalhadoras/es, qual seja, quanto mais a/o
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

trabalhador/a transforma a sua relação social de modificação das


coisas em coisa, mais ela/e se aliena de si mesma/o, uma vez que
no fim ela/e não consegue mais fazer surgir o “ser” em si, tudo
o que ela/e tem é a força de trabalho, explorada pelo capital.
É nesse contexto, portanto, que Marx (2001, p. 471), ao
teorizar sobre a contradição principal na relação capital
e trabalho, analisa como absoluta e histórica, “a lei da
acumulação capitalista”, afirmando que quanto maiores a
riqueza social e tudo aquilo que a perpassa, quais sejam,
capital em funcionamento, seu crescimento, grandeza
absoluta do proletariado e força produtiva do seu trabalho,
tanto maior será o exército industrial de reserva. Essa
força de trabalho disponível é diretamente proporcional
à força expansiva do capital. Esse exército cresce e, com
isso, cresce a riqueza dos capitalistas. Entretanto, quanto
maior esse exército industrial de reserva, maior será a
população cuja miséria aumenta juntamente com os piores
trabalhos. Desta forma, quanto maior a camada mais pobre
da classe trabalhadora, maior o pauperismo geral da classe
trabalhadora. Essa análise marxista faz-nos compreender
as questões tanto de subalternização, como de precarização,
não só do mundo do trabalho, mas principalmente da relação
intrínseca entre o mundo da vida (BUTLER, 2019), dado
sua relação dialética, em que se situa as/os ditos invisíveis,
lixadas/os e precarizados/as.
304
Assim, ao contextualizar as contribuições marxistas
para os dias atuais, diversos autores nos levam a entender e
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

corroboram o fato de que o método do materialismo histórico


dialético pode nos ajudar a analisar várias outras categorias,
para além daquelas em que Marx se debruçou. De acordo com
Oliveira et al (2013, p. 187), “pode-se considerar que categorias
analíticas surgem, como um de seus fins, para analisar os
fenômenos sociais existentes, não tendo fim em si mesmas,
pois se alteram de acordo com a realidade social e só são
válidas com a participação humana” pois “assim como do
movimento dialético das categorias simples nasce o grupo, do
movimento dialético dos grupos nasce a série e do movimento
dialético das séries nasce todo o sistema” (MARX, 1982, p. 105).
Netto (2011), apoiando-se na obra de Cerqueira Filho,
A “questão social” no Brasil, e também em Iamamoto
(1982), afirma que a questão social está fundamentalmente
vinculada ao conflito capital e trabalho e, utilizando-se da
definição em Iamamoto (2001), esclarece que a questão social
é a “manifestação no cotidiano da vida social da contradição
entre o proletariado e burguesia” (NETTO, 2011, p. 17). Por
conseguinte, afirma Netto (2011, p. 17), a questão social no
sentido universal do termo, é o “conjunto de problemas
políticos, sociais e econômicos que o surgimento da classe
operária impôs no curso da constituição da sociedade
capitalista” (NETTO, 2011, p. 17).
Segundo Iamamoto (2001, p. 11), “a questão social
é o conjunto das expressões da desigualdade social, que
305
acontecem nas sociedades capitalistas maduras e que não
acontecem sem a intervenção do Estado”. Tem seu início
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

no caráter coletivo da produção, “contraposto à apropriação


privada da própria atividade humana – o trabalho – das
condições para sua realização e dos seus frutos” (IAMAMOTO,
2001, p. 20-1). A questão social, continua o autor, expressa,
portanto, “disparidades econômicas, políticas e culturais das
classes sociais, que são mediadas por relações de gênero, raça e
territorialidades, colocando em causa as relações entre amplos
segmentos da sociedade e o poder do Estado”.
É nesse sentido, contudo, que é necessário focar na
lógica da exploração/dominação/opressão e nos marcadores
sociais de diferença e de desigualdade próprias do sistema
capitalista. Conforme Marx e Engels (2007), em A ideologia
alemã, ao afirmarem que contrária à filosofia alemã que
desce dos céus à Terra, a relação social é construída da terra
para o céu, ou seja, é a vida real, material e concreta que
caracteriza o processo de desenvolvimento dos reflexos e das
repercussões ideológicas do processo vital. Portanto, para
os autores, “não é a consciência que determina a vida, mas
sim a vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS,
2007, p. 94). Sendo assim, pode-se aferir então que valores,
normas, relações e instituições que são criadas pelos sujeitos
históricos em relação e, portanto, são frutos de uma realidade
social que tem o trabalho como matriz estruturante desse
edifício denominado de sociedade capitalista.

306
3. Trabalho e interseccionalidades
Para se pensar a questão da opressão de gênero, sexualidade
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

e raça na sociedade e, particularmente, relacionado ao


mercado de trabalho faz necessário recorrer a Engels
(2006, p. 18), quando afirma que “o primeiro antagonismo
de classes que apareceu na história coincide com o
desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a
mulher, na monogamia; e a primeira opressão de classes,
com a opressão do sexo feminino pelo masculino”. É,
portanto, a partir dessa afirmativa, que segundo Saffioti
(2009, p. 20), “essas limitações infringidas à realização plena
da mulher são inerentes ao modo de produção capitalista em
qualquer variância histórica”.
Assim, se sob a égide do capitalismo as relações
patriarcais balizam as normas e hierarquias de gênero esse
uso é mais perverso. Contudo, na particularidade da sociedade
brasileira, se tomarmos como parâmetro a construção
histórica da formação social e econômica do Brasil, veremos,
como aponta Saffioti (2004, p. 125), “que restava a mulher
negra escravizada, para além da função do sistema produtivo
de bens e serviços, um papel sexual que acentuava ainda
mais a sua reificação”. É através dessa exploração sexual que
se criam os dois modelos de mulher, aquelas com casamento
legal, de um lado, e, de outro, aquelas que não tinham esse
direito. É nesse contexto que se definiu a exploração do
trabalho feminino no país, pois, por mais que a modernização
e implantação do capitalismo dependente pudesse criar novos
307
postos de trabalho, essas mulheres nunca seriam totalmente
absorvidas nesses novos segmentos. A estrutura patriarcal-
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

racista e a herança cultural da baixa valorização da mulher,


particular, das negras, fizeram com que se expelisse a força de
trabalho feminina do mercado formal de emprego.
Como afima Saffioti (2004),

é difícil lidar com esta nova realidade, formada pelas


três subestruturas: gênero, classe social, raça/etnia, já
que é presidida por uma lógica contraditória, distinta
das que regem cada contradição em separado. [...] O
importante é analisar estas contradições na condição
de fundidas ou enoveladas ou enlaçadas em um nó.
Não se trata da figura de um nó górdio nem apertado,
mas do nó frouxo, deixando mobilidade para cada
uma de suas componentes. Não que cada uma dessas
contradições atue livre e isoladamente. No nó, elas
passam a apresentar uma dinâmica especial, própria do
nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma condiciona-se à
nova realidade, presidida por uma lógica contraditória.
[...] novelo – patriarcado-racismo-capitalismo –
historicamente constituída (SAFFIOTI, 2004, p. 125).

Nesse modelo patriarcal, racista e capitalista brasileiro, que


marca a interseccionalidade dos sistemas de opressões,
podemos pensar que os marcadores que particularizam as
pessoas transvestigêneres são uma chave interpretativa-
analítica que ajuda a entender relações sociais, processos
de poder, lugares sociais marcados por exclusão e

308
vulnerabilidades, negação de direitos e exploração no
mercado de trabalho como elementos constitutivos da
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

questão social no capitalismo contemporâneo.

4. Quando as pessoas transvestigêneres adentram o


mercado de trabalho
A partir da concepção de Iamamoto (2001, p.10) sobre a
questão social, que afirma que é “impossível dissociar
existência material das condições de trabalho e a forma social
pela qual essa se realiza”, não se pode ignorar que as relações
de trabalho não são iguais para todos os sujeitos da classe
trabalhadora, na medida em que a exploração capitalista
produz uma população sobrante, como afirmamos, um
contingente não-empregável que transita às margens do
trabalho, em permanente situação de instabilidade de vida.
Essa é a situação das pessoas transvestigêneres, sob um corte
de classe social (MARINHO, 2020).
Com a ascensão burguesa e a consolidação do modo
de produção capitalista no Brasil se impôs, também,
uma determinada moral sexual baseada em um único
modelo e modo de existência dos corpos, gêneros e
sexualidades no tecido social, que tem sua legitimidade na
cisheteronormatividade, no binarismo de gênero e na família
nuclear burguesa, enquanto tripé basilar, único e legítimo
de um regime de verdade sobre os gêneros e sexualidades.
Portanto, os sujeitos, na sociabilidade capitalista, que são

309
identificados como à margem, as/os ditos dissidentes sexuais
e de gênero, sofreram processos contínuos de criminalização,
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

patologização e perseguição política e econômica, inclusive com


alto número de mortes, reforçando a precarização do trabalho
e, consequentemente, as segregações ocupacional e territorial.
Sabe-se que o modelo de família nuclear burguesa
serve, ainda hoje, à classe dominante como um meio
barato de “manutenção, perpetuação e disciplina da força
de trabalho, incubando normas sexuais rígidas e papéis de
gênero definidos” (WOLF, 2009, p. 41), ainda que exercidas
por práticas inconscientes. Segundo Biondi (2017, p. 145),
“essas práticas são, em grande medida, uma continuação dos
regramentos oitocentistas acerca da sexualidade, aglutinados
naquilo que se convencionou chamar de moralidade
vitoriana”. Essa moralidade consiste num reforço dos papéis e
normas de gênero e qualquer discussão que coloque em xeque
ou em prova essa contradição é, desta forma, rapidamente
condenada, desmoralizada, criminalizada ou patologizada.
Assim, pode-se afirmar que a pressão sobre as/os
sujeitos/as a fim de criarem uniões aptas à procriação é um
fator exercido pelo capital atrelado à lógica do trabalho, com
o intuito de criação de mais trabalhadores/as para exploração.
O livre exercício da sexualidade e a adequação às identidades
de gênero, como é o caso das pessoas transvestigêneres,
restringem-se aos imperativos econômicos capitalistas
relativos à disponibilidade da mercadoria força de trabalho.
Somente dessa maneira, portanto, podemos entender porque
310
a sociedade patriarcal-capitalista-racista priva do direito à
igualdade os/as sujeitas/os que se identificam como LGBTQI+,
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

mas, particularmente, as transvestigêneres, dado que não


lhes é possível desfrutar de um consumo compensatório e
segregacionista. Percebe-se, com isso, que a precarização do
corpo e da vida das pessoas transvestigêneres, e sua imensa
inserção na prostituição, pode ser entendida como uma
instituição fundamental para manutenção da contraditória e
hipócrita moral burguesa sob a égide do capital.
Contudo, cabe destacar que, a partir das décadas de 1960
e 1970, a crise de produção fordista/taylorista começa a impor
sobre o capital e a sociedade uma reestruturação produtiva
conformada na redução de trabalhadores/as dentro dos
sistemas produtivos, com o aumento da produtividade trazendo
resultados alarmantes para o mundo do trabalho, tais como
desregulamentação do direito do trabalho em escala global,
terceirização da força de trabalho e derrota do sindicalismo
autônomo, dentre outros. Na última década no Brasil
presenciou-se a reafirmação da terceirização como modalidade
de gestão, instituindo um novo tipo de precarização que passa a
dirigir a relação capital-trabalho em todas as suas dimensões.
É nesse sentido que, no mercado de trabalho, é cada
vez mais forte a reafirmação da força de trabalho como
mercadoria, para exploração da mais-valia, que subordina os/
as trabalhadores/as a uma lógica de flexibilidade, superfluidade
e descarte. Criando, com isso, insegurança e instabilidade
no trabalho em graus nunca alcançados. Desse modo, a
311
terceirização é colocada como a principal estratégia patronal,
usando de suas diversas modalidades, tais como “cooperativas,
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

pejotização, organizações não governamentais, além das redes


de subcontratação, que vêm pautando as relações de compra
e venda de trabalho fetichizadas em relações interempresas/
instituições” (ANTUNES; DRUCK 2013, p. 219).
Pode-se afirmar, a partir de Iamamoto (2001, p. 20), que
a mais-valia “é a finalidade direta e o móvel determinante
da produção”. Sendo assim, a tentativa de diminuição ao
mínimo do preço de custo se transforma na alavanca mais
poderosa para intensificar a força produtiva do trabalho
social, que aparece como força produtiva do capital. A
partir dessa análise percebe-se a alta precarização do/a
trabalhador/a e muito mais ainda nas populações oriundas
dos setores populares, periféricos e de favelas, na medida
em que esse sujeito, inteiramente alijado da riqueza e tendo
como única potência a capacidade de sua força de trabalho,
só pode se realizar encontrando algum lugar no mercado de
trabalho gerenciado pelos empresários capitalistas.
É nesse contexto que muitas pessoas transvestigêneres
ocupam e inserem no mercado de trabalho, majoritariamente,
no setor terciário da economia, os ditos serviços formais ou
informais, como limpeza, beleza, alimentos telemarketing
ou call center e a prostituição, em sua maioria, sobretudo, no
caso daquelas/es mais pobres, negras/os, sem escolarização,
expulsas/os de casa e da escola quando jovens e, geralmente,
sem se inserir formalmente em nenhum dos benefícios dos

312
programas socioassistenciais governamentais, além das
dificuldades quanto a documentações e sobre a garantia de
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

uso do nome social.


Segundo Saffioti,

em outras palavras, os preconceituosos – e este


fenômeno não é individual, mas social – estão
autorizados a discriminar categorias sociais,
marginalizando-as do convívio social comum, só
lhes permitindo uma integração subordinada, seja
em certos grupos, seja na sociedade como um todo
(SAFIOTTI, 2009, p. 17).

Dessa maneira, e a partir do pensamento de Safiotti (2009,


p. 17), “compreende-se que as relações patriarcais de gênero”,
no cenário contemporâneo, têm reflexo direto na vida da
população transvestigêneres. As subordinações que essa
população vivencia na inserção no sistema produtivo fazem
parte de um contexto mais geral marcado pela insegurança,
em parte patrocinada pelo próprio Estado. Esse contexto,
portanto, pode ser confirmado por alguns estudos a respeito
do Programa Brasil sem Homofobia – BSH (BRASIL, 2004).
O referido programa, lançado em 2004, pelo governo Lula,
tinha, como ações principais,

o apoio a projetos de fortalecimento de instituições


públicas e não governamentais que atuam na promoção
da cidadania homossexual e/ou no combate à homofobia;
a capacitação de profissionais e representantes do

313
movimento homossexual que atuam na defesa de
direitos humanos; a disseminação de informações sobre
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

direitos, de promoção da autoestima homossexual e o


incentivo à denúncia de violações dos direitos humanos
do segmento GLTB (BRASIL, 2004, p. 11).

O BSH se dividia em onze eixos e cinquenta e três ações


que colocariam em pauta o debate sobre a sexualidade
e o direito à cidadania LGBT, que vinha buscando seu
reconhecimento enquanto classe subalterna e oprimida.
Porém, o que temos assistido nos últimos anos são ações
e programas, tanto dos governos federal, estaduais e
municipais que são marcados pela fragilidade e problemas
na estrutura, ocasionado pela,

a) ausência de respaldo jurídico que assegure sua


existência como política de Estado, livres das incertezas
decorrentes das mudanças na conjuntura política, da
homofobia institucional e das pressões homofóbicas
de grupos religiosos fundamentalistas; b) dificuldades
de implantação de modelo de gestão que viabilize a
atuação conjunta, transversal e intersetorial, de órgãos
dos governos federal, estaduais e municipais, contando
com a parceria de grupos organizados da sociedade
civil; c) carência de previsão orçamentária específica,
materializada no Plano Plurianual (PPA), na Lei de
Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária
Anual (LOA); e d) reduzido número de servidoras
públicas especializadas, integrantes do quadro

314
permanente de técnicas dos governos, responsáveis
por sua formulação, implementação, monitoramento e
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

avaliação (MELLO; BRITO; MAROJA, 2012, p. 418).

Diante dessas fragilidades expostas para garantia de políticas


e direitos de LGBTQI+, mas, particularmente, relacionada
às vidas precárias de pessoas transvestigêneres, Almeida
e Marinho (2019), em uma pesquisa qualitativa realizada
com pessoas transgêneros fluminenses, trazem uma
adjetivação para definir o mercado de trabalho para pessoas
transvestigêneres, “um campo minado”. Essa expressão,
segundo os autores, surgiu através de uma narrativa coletada
no trabalho de campo, através de uma entrevista com um
homem trans, branco, 24 anos ao afirmar que, “ah, o mercado
de trabalho para as pessoas trans é um campo minado,
porque a gente fica com medo de que a qualquer momento
possa acontecer alguma situação constrangedora, algum tipo
de violência e transfobia explícita” (ALMEIDA; MARINHO,
2019, p. 122 – grifos nossos).
Essa caracterização pelos autores revela bem
como é a experiência no mercado de trabalho para as
pessoas transvestigêneres. Portanto, a transfobia sofrida
corriqueiramente na vida social pode ser aprofundada
nas relações de trabalho e esse medo é real, constante e
ameaçador, ainda mais no contexto de desconstrução do
trabalho ou de despossessões, bem como da degradação do
mundo do trabalho em geral.

315
É nesse sentido que a pesquisa acima vem corroborar
as nossas primeiras aproximações e impressões no trabalho
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

de campo com pessoas transvestigêneres em uma cidade


mineira, ao revelar que o setor de serviços está na cena da
contratualidade trabalhista dessas sujeitas no mundo do
trabalho. Isso se evidencia na busca de um emprego, seja no
setor de limpeza, no setor do telemarketing ou call center,
revelando um trabalho precário e mal remunerado. Mesmo
em outras ocupações, como o setor de alimentos e a área da
educação pública, essas pessoas ocupam geralmente cargos
com traços da informalidade e precariedade, uma vez que
a racionalidade do capital também penetra nos serviços
públicos.
Ressalta-se que

os serviços, sejam eles públicos ou privados, também


adentram às novas morfologias do mundo do
trabalho no contexto da reestruturação produtiva e da
globalização da economia, já que reorganizam a divisão
social e técnica do trabalho e gestam novas formas de
acumulação capitalista no âmbito da mundialização do
capital” (ALMEIDA; MARINHO, 2019, p. 123).

Para esmiuçar um pouco mais a questão da inserção da


pessoa transvestigêneres no mercado de trabalho precarizado
e de sua visão restrita de inclusão no referido mercado,
concordamos com os autores quando afirmam que

316
no campo dos estudos sobre trabalho e gênero, o trabalho
precário é majoritariamente feminino e o setor de
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

limpeza é um dos polos da bipolarização do emprego


feminino, um tipo de ocupação de menor prestígio social
– na contraposição das carreiras universitárias de maior
responsabilidade, prestígio e salários – fundamentalmente
por interseccionar a mão de obra feminina com os
marcadores de raça negra e a baixa escolaridade
(ALMEIDA; MARINHO, 2019, p. 123 – grifos dos autores).

Portanto, é imperioso reconhecer que são as pessoas


transvestigêneres que estão na base desta pirâmide, se
tomarmos as transidentidades, na medida que existe uma
diferenciação social e científica entre as identidades travestis
e transexuais construída na história recente. A travesti é uma
identidade da América Latina, constituída como um termo
cultural de massa no Brasil para a pessoa que, designada
homem ao nascer pelo seu órgão genital, adota o gênero
feminino, e que fora historicamente associada à imagem de
violência, marginalidade e prostituição.

A família, a escola, o mercado de trabalho e


outros espaços de socialização são excludentes e
discriminatórios para as travestis, dessa maneira
esses fatores acabam sendo alguns dos motivadores
para que elas acabem optando por trabalharem como
prostitutas. Porém, o processo de ida das travestis
para prostituição deve ser considerado não somente
na perspectiva do trabalho, mas também como um

317
processo de afirmação da identidade travesti (RIBEIRO
et al., 2019, p. 380)
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

Com relação ao termo transexual, há pouco tempo circulante


no país, foi importado dos países da Europa e América do
Norte. Essa representação das travestis exerce influência
sobre suas condições de vida e embora não existam
informações levantadas sobre o tema, “algumas estudiosas do
mesmo observam variáveis de classe que colocam as travestis
associadas às camadas mais populares e as transexuais com
as camadas médias” (LEITE JÚNIOR, 2008, p. 211).
Na referida pesquisa empírica (ALMEIDA; MARINHO,
2019) da qual se extraem alguns dos resultados, uma das
entrevistadas é uma travesti, que, pelo que se descreveu, era
a mais pobre, de território de favela, com baixa escolaridade
e inserida numa das ocupações de trabalho mais degradantes
e sem qualquer regulamentação, a prostituição. Portanto,
além “da informalização nas trajetórias de trabalho” das
transvestigêneres, que observamos em nosso trabalho de
campo e dos autores acima pesquisados, podemos demarcar
também que “as dificuldades de acesso ao mercado formal
de trabalho, mesmo com boa escolaridade e nível superior,
tem íntima com o fato da constância de um nome civil em
seus documentos não condizer com sua aparência social”
(ALMEIDA; MARINHO, 2019, p. 125).
Embora o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2018,
após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), tenha

318
publicado provimento autorizando a retificação do prenome e
do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN),


diretamente nos cartórios (BRASIL, 2018), sem necessidade
de autorização judicial, da comprovação de realização de
cirurgia de redesignação sexual e/ou de tratamento hormonal
ou patologizante, assim como de apresentação de laudo
médico ou psicológico, o acesso ao serviço é dificultado
por um conjunto de problemas, tais quais, a cobrança dos
serviços, a dificuldade e barreiras quanto à garantia de
gratuidade, as exigências de documentos fora do provimento
e a demora na tramitação dos processos.

5. Considerações finais
É urgente observar o contexto que se encontra atualmente
o mundo do trabalho no Brasil, principalmente com as
características de um Estado neoliberal e um governo de
extrema-direita, com militares e fundamentalistas nos
postos de poder, marcado pela desdemocratização, que
vem aprofundar ainda mais as crises políticas, econômicas
e sanitárias, particularmente após o advento da pandemia
de COVID-19, repercutindo nas perdas dos direitos sociais
para população como um todo, aprofundando a exploração,
subalternização e precarização do trabalho e da vida, em
particular, impetrada pela política de morte no âmbito da
governamentalidade e da biopolítica.

319
É nesse sentido que Bento (2014) nos chama atenção para
as gambiarras e para a cidadania precária dessa população, ao
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

afirmar que,
a cidadania precária representa uma dupla negação:
nega a condição humana e de cidadão/cidadã de sujeitos
que carregam no corpo determinadas marcas. Essa
dupla negação está historicamente assentada nos corpos
das mulheres, dos/as negros/as, das lésbicas, dos gays e
das pessoas trans (travestis, transexuais e transgêneros).
Para adentrar a categoria de humano e de cidadão/
cidadã, cada um desses corpos teve que se construir
como “corpo político”. No entanto, o reconhecimento
político, econômico e social foi (e continua sendo) lento
e descontínuo (BENTO, 2014, p. 167).

É, portanto, sobre os direitos fundamentais, apesar da


judicialização desses, que a gambiarra legal se dá, mas,
particularmente, no mercado de trabalho, frente à crise
que se aprofunda com o aumento assustador do índice
de desemprego, mão de obra parcialmente alocada
e subutilizada e redução dos postos de trabalho. Nos
movimentos sociais, a narrativa hegemônica do poder
é de “marginalização, criminalização e perseguição”
(FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 2018, p. 30), seja no campo
ou na cidade, no quilombo ou na favela, e particularmente,
nas ruas, locais de trabalho de muitas transvestigêneres que
têm suas vidas mais precárias e ceifadas precocemente de
forma violenta.

320
Portanto, a morte e o aniquilamento do outro pelo
cisheterosexismo-terrorista não se limita, exclusivamente, ao
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

corpo, mas se manifesta na impossibilidade de se viver uma


vida com dignidade, com garantia de direitos e com políticas
públicas. É nisso que reside a precarização da vida na sua
expressão estrutural e normativa em que a maioria das pessoas
transvestigêneres se encontra e é relegada na sociedade
brasileira, com dificuldade para obter condições dignas de
trabalho, emprego e renda, saúde, educação, moradia.
O lugar de desumanização, exclusão, violência e morte
que são afetadas as/os sujeitos/as das dissidências sexuais
e de gênero, e, em particular, as transvestigêneres, pela
transvestifobia, produz-se um não-lugar, uma vida de não-
cidadania, um cotidiano marcado por discursos de ódio e
intolerância, que desde cedo acometem as subjetividades
dessas pessoas quando são expulsas de suas casas, da escola
e de outros territórios existenciais de pertencimento.
Nos últimos anos temos assistido a uma ofensiva
neoconservadora racista, anti-gênero e anti-LGBTQI+,
jornadas essas que têm se operado não só no Brasil, mas
no mundo. Mas, principalmente, valores moralistas e
dispositivos de disciplinamentos, com predominância de
proposições essencialistas e biologicistas, vêm crescendo e
assumindo os centros de poder e decisão, buscando, não sem
resistências, se impor como um modelo único e excludente,
como regime de verdade a toda uma população. Essas
conduções excludentes e de retrocessos são vivenciadas,
321
particularmente, por transvestigêneres em todos os campos
das políticas públicas, seja no trabalho, na saúde, na educação,
Trabalho e tra(ns)vesti(gêneres)lidades Dandara Felícia Silva Oliveira e Marco José de Oliveira Duarte

na assistência social.
Mesmo assim, emerge o exercício da resistência coletiva e
organizada sobre o as tentativas de apagamento das diferenças,
de práticas normalizadoras e da disciplina que fabrica os
preconceitos morais e a produção do ódio. É necessário ensaiar
formas curriculares, práticas de saúde, locais e relações de
trabalho que possam produzir novas formas de como acolher
as subjetividades, as novas estéticas da existência, desconstruir
criativamente as fronteiras sexuais e de gênero. Pois, talvez um
dia, as diferenças sexuais e de gênero percam a importância
no campo do trabalho, educação, saúde, mesmo dentro das
relações sociais capitalistas vigentes.

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interferência cromática sobre foto de Ricardo Matsukawa | temqueter.org
EDUCAcÃO E
O legado da patologização da homossexualidade Nina Hanbury, Moysés Marllon Nascimento e Ricardo Salztrager

MERCADO DE
TRABALHO:
EXPULSÃO
ESCOLAR
E A EMPREGA-
BILIDADE DE
TRAVESTIS E
TRANSEXUAIS
Diego da Silva Santos
327
Sergio Luiz Baptista da Silva
O PRESENTE ARTIGO TEM COMO OBJETIVO
abordar os desafios dos processos de escolarização, a partir
da experiência de expulsão escolar, e, por conseguinte,
da inserção de jovens travestis e transexuais no mundo
do trabalho, por meio dos relatos das colaboradoras da
dissertação de mestrado realizada e orientada pelos
autores. A vivência escolar esbarra em micro transfobias,
comumente não enxergadas pelo corpo docente ou pelos
demais atores escolares. A vivência do invisível nas dores
do existir no cotidiano escolar, de pessoas travestis e
transexuais, é por vezes para elas um impedimento do
término dos estudos. Isto, enquanto reflexo e produto
da transfobia socialmente vigente, leva a marginalização
profissional e a dificuldade de vislumbrar uma carreira
ou profissão, como evidenciada pela pergunta de uma
das colaboradoras que conduziu a referida pesquisa: Uma
travesti pode ser advogada?

1.Introdução
A pesquisa de mestrado intitulada “Uma travesti pode
ser advogada? O CIStema educacional e o desafio da
permanência na escola de travestis e transexuais jovens
moradoras da Rocinha, RJ” foi concebida e conduzida a partir
da pergunta de uma das colaboradoras da pesquisa, muito
antes da investigação acontecer. A referida pergunta era:
“Uma travesti pode ser Advogada?”.
A profundidade que esta simples pergunta continha
é desconcertante. Essa formulação nos coloca frente
às consequências concretas da marginalização que são
impostas socialmente àquelas e àqueles que são encarados
como desvio da ordem normal, biológica, dos corpos, dos
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

gêneros e dos sexos. Ao escutar essa pergunta, somos


obrigados a encarar uma realidade da qual muitos de nós,
especialmente pessoas cisgêneras1, apenas ouvimos falar
de longe, no máximo: a forma como as pessoas que estão
excluídas na sociedade se estruturam enquanto indivíduos
sem uma real possibilidade de uma vida plena, de acesso
a diretos humanos básicos e fundamentais. Neste caso, o
direito de sonhar um futuro a partir de seu próprio desejo:
o direito a uma trajetória escolar. O direito à educação; o
direito a sonhar com uma carreira e profissão no futuro.
A partir desta pergunta pudemos estudar a escolaridade
de jovens travestis e mulheres transexuais. O objetivo do
estudo foi analisar quais fatores estavam envolvidos nos
processos de escolarização e expulsão escolar desse público,
contrapondo a cisgeneridade como ponto de análise, não

1 Pessoas que se identificam com o mesmo gênero que é imposto a partir do sexo
biológico atribuído ao nascimento; o gênero e imposto pois espera-se que quem
nasce com vagina se identifique e viva como mulher, e quem nasce com pênis se
identifique e viva como homem

329
só pela pesquisa ser realizada e orientada por pessoas
cisgêneras, mas como pela escola ser identificada enquanto
um território cisgênero, heterossexual e normativo.
Para entender a cisgeneridade, tomamos como base
os estudos de Viviane Vergueiro (2013, 2015). As jovens
colaboradoras da pesquisa são oriundas do programa
ViraVida, programa social que ocorre no território da
Rocinha, cujo objetivo é atender adolescentes e jovens em
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situações múltiplas de vulnerabilidades sociais visando a


inclusão laboral, social e cidadã de suas/seus usuárias/os,
por meio da elevação de escolaridade, desenvolvimento
psicossocial e inserção produtiva no mercado de trabalho.
Inicialmente, foi levantado o histórico de todas as
travestis e transexuais, ex-alunas do ViraVida, e constatado
que a maioria delas não permaneceu estudando ou finalizou
o ensino médio. Para responder à questão mobilizadora da
pesquisa – por que, em sua maioria, essas alunas trans e
travestis abandonavam a escola e não conseguiam concluir
a educação básica? –, foram entrevistadas, segundo a
metodologia de narrativas de vida, cinco alunas e ex-alunas
do programa, travestis e transexuais, e, pelo método de
entrevistas semi-estruturadas, quatro gestoras/es cisgêneras/
os das escolas nas quais essas ex-alunas estudaram. A revisão
bibliográfica dos estudos sobre o tema nas principais bases
de dados e a discussão dos conceitos e categorias empregadas
na pesquisa, tais como cisgeneridade, travesti, transexuais,
abjeção e passabilidade, privilegiou autoras trans e travestis,
330
como Luma Nogueira de Andrade, Jacqueline Gomes de
Jesus, Megg Rayara Gomes de Oliveira, Adriana Sales, entre
outras, na tentativa de não endossar uma epistemologia cis,
todavia não impedindo o diálogo com autores cisgêneros
como Foucault, Butler, Bourdieu e Berenice Bento.
O estudo de algumas categorias análise – inserção,
acolhimento, permanência e expulsão na/da escola – foi
necessário para contextualizar a visão das colaboradoras
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

ex-alunas e suas respectivas gestoras das escolas/colégios,


alinhadas à discussão de políticas públicas e direitos
humanos na educação. Emergiu daí uma necessidade de
problematizar o conceito de mobilização para educação,
desenvolvido por Charlot (2000; 2001; 2005; 2012; 2013).
Entre os processos envolvidos na dinâmica de
permanência e expulsão da escola (SANTOS, 2019),
encontram-se a experiência de ter passabilidade cis para
se encaixar no mundo e parecer “normal”, os problemas
e estratégias para reconhecimento do nome social e uso
do banheiro, sociabilização no espaço escolar, situações
de exclusão e inclusão, a ida para a Educação de Jovens e
Adultos (EJA) como uma alternativa de continuidade dos
estudos e as doloridas vivências escolares, cujos olhos
cisgêneros não conseguem apreender. Mesmo que parte da
gestão/direção escolar se esforce na tentativa de construir
uma ação de inclusão, essas tentativas não consideraram
como parte problemática e causadora de desconfortos
as características estruturais do pensamento cis-
331
heteronormativo. Este talvez seja um problema estrutural da
sociedade e é possível enxergá-lo acontecer da mesma forma
com as discussões raciais.

2. Empregabilidade
Empregabilidade é um termo oriundo dos mecanismos
do capitalismo para individualizar o sujeito na sua
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performance profissional. Refere-se aos atributos de uma


pessoa que a tornam capaz de obter e manter o emprego. É
a responsabilização do sujeito por um processo social que
caberia ao estado garantir: trabalho e renda materializados
em emprego e profissão. Contudo, socialmente não
partimos de locais equânimes, pois os menos favorecidos
possuem menores chance de exercitarem empregabilidade
devido aos processos de segregação e exclusão sociais
que inibem esses sujeitos de desenvolverem-se enquanto
cidadãos plenos.
Quando esses marcadores sociais da diferença se
cruzam, ou seja, grupos menos favorecidos socialmente,
ou grupos excluídos e indesejados socialmente possuem
identidades que se interseccionam, as chances de
empregabilidade vão se reduzindo cada vez mais. Tomemos
o exemplo de moradores da favela. A vivência em um
território restrito e estigmatizado, sem parâmetros mais
abrangentes de circulação na cidade, contribui para que o
lugar seja o ponto de partida e de chegada da existência de
332
moradores de favelas, pois, muitas vezes, o próprio sujeito
não se reconhece como cidadão, como pertencente à polis, à
cidade (SILVA, 2007, p. 228).
O início de um planejamento da vida profissional
costuma coincidir com a adolescência. Como define Soares
(2002), este é um período de vida muitas vezes chamado
de nascimento existencial, no qual aspectos da identidade
adulta já começam a ser pensados, questionados e definidos,
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

tais como a sexualidade, a vida afetiva e a escolha de uma


profissão (SOARES, 2002, p.19).
Se a adolescência já é um período conturbado, a
descoberta de uma identidade travesti ou transexual pode
tornar o processo ainda mais complexo, difícil e complicado.
Imbrincado nesse mosaico identitário, as possibilidades de
empregabilidade e subsistência financeiras amparadas numa
trajetória profissional se tornam um caminho bloqueado
pela sociedade, estruturalmente racista, machista, lgbtfóbica.
Como é possível construir um processo de escolhas mesmo
quando escolher não é um verbo disponível?

(...) A habitação de um campo atravessado por estigmas


e criminalizações poderia apenas mostrar-nos uma
paralisação da vida que ali existe. Contudo, justamente
pela possibilidade de habitar e de experimentar tal
campo é que o movimento se fez imprescindível,
se fez efeito e transformação. As subjetividades que
ali se inventaram, afetadas pelo encontro com a
intervenção, afirmaram novas possibilidades de ser,

333
novas possibilidades de mover, criaram novos caminhos
e outras bifurcações para expressar-se, caminhos para
construírem para si mesmos, a cada encontro, novas
potencialidades para suas afirmações e escolhas.
(CASTRO, A.C.; BICALHO, P.P.G. 2013, p. 121).

As possibilidades de profissionalização esbarram num


contexto de baixa escolaridade, longos períodos de
afastamento da escola – sintomas de uma doença maior,
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como veremos a seguir – e um mercado de trabalho exigente.


O site da Central Brasileira de Notícias (CBN) publicou,
em 2018, uma série de reportagens sobre a vivência de
transexuais e travestis na sociedade, como, por exemplo, na
escola e no trabalho. Os jornalistas Sabóia e Martini (2018),
em uma das reportagens, afirmam que os órgãos oficiais não
medem a escolaridade de pessoas transexuais ou travestis
no Brasil, nem mesmo o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) sabe dizer quantas pessoas trans
existem no Brasil; o então Ministério da Educação e Cultura
(MEC – no atual governo apenas Ministério da Educação)
não contabiliza a escolaridade dessas pessoas, cabendo a
organizações independentes esse tipo de levantamento.
A falta de números oficiais dificulta a criação de políticas
públicas de inclusão. Apesar da falta de dados oficiais, vem
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) uma pista importante:

334
Desde o abril, o CNPq permite a inclusão do nome
social no currículo Lattes, que funciona como um
histórico escolar de estudantes e pesquisadores
brasileiros. Em pouco mais de um mês, 5.502 pessoas
passaram a usar o nome social. Ao contrário do nome
civil, o social reflete o gênero com o qual a pessoa trans
realmente se identifica. Do total de currículos, noventa
e duas pessoas informam terem cursado um mestrado e
76 se tornaram doutores. Mas a falta de números oficiais
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expõe a invisibilidade na qual vivem os transgêneros na


academia (SABÓIA E MARTINI, 2018, não paginado).

O resultado da interrupção da escolarização é a forte


presença deste público na informalidade: estimativas da
ANTRA 2 apontam que apenas 10% do grupo trabalham
registrados. Segundo reportagem publicada pelo Diário
de Cuiabá3 , o Brasil concentra 82% da evasão escolar de
travestis e transexuais – a informação vem do defensor
público João Paulo Carvalho Dias, que é presidente da
Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados
do Brasil e membro conselheiro do Conselho Municipal
de LGBT em Cuiabá. Para ele, é necessário reverter e
disseminar políticas públicas para o público LGBT, além da

2 Fonte: <http://especiais.correiobraziliense.com.br/transexuais-sao-excluidos-do-
mercado-de-trabalho>. Acesso em 20/05/2018.

3 Fonte: < http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=490505>. Acesso


em 29/01/2019.

335
realização de ações afirmativas a fim de mudar esse cenário
em que nosso país se encontra. Portanto, são imprescindíveis
estratégias de inclusão e intervenções visando minimizar
a expulsão desse público na escola. Tomo o sentido de
expulsão escolar (SANTOS, 2019) a partir do uso de exclusão
feito por Adriana Sales (2018):

Os elementos de exclusão, sofrimentos e evasão da


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escola, nos tempos formais de ensino, vigente na


legislação educacional no Brasil, atravessaram as
experiências das mesmas e as resistências, o retorno e a
necessidade em estar (conquistar) na escola são latentes
nos discursos das participantes. (SALES, 2018, p. 222).

Como argumenta Salles (2018), quando os espaços


institucionais, como a escola, desenvolvem estratégias de
seleção (exclusão) de certas expressões de gêneros, chegando
a transformar tais posições em políticas públicas – como
o veto à discussão de gênero e diversidade na escola –,
que excluem qualquer pessoa (e, neste caso, as travestis),
percebemos as violências estruturais de modo latente; é
preciso também criar um ambiente escolar acolhedor a
todos, que valorize o respeito à diversidade e à diferença,
responsabilizando toda a comunidade escolar na construção
de espaços de cidadania, na atuação da inclusão e na
desconstrução de atitudes preconceituosas geradoras de
discriminação e violência social.

336
3. Expulsão escolar
A escolha pela investigação das categorias inserção,
acolhimento e permanência para entender a expulsão se
deu pelo entrecruzamento entre a leitura da bibliografia
disponível a respeito do tema e a escuta das narrativas
das colaboradoras da pesquisa. Como é a inserção num
espaço escolar heterocentrado de pessoas divergentes da
cis-heteronorma? Como ocorre o acolhimento na escola
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dessas pessoas? Quais os desafios da permanência na escola?


Mirella, Patrícia, Fernanda, Pyetra e Aurora4 , colaboradoras
da pesquisa desenvolvida, concederam a escuta de suas
narrativas e, assim, um caminho para encontrar respostas a
essas perguntas que originaram este artigo.
A visão da cisgeneridade, encarnada nas falas das gestoras
e do gestor das últimas escolas nas quais as colaboradoras
estudaram, precisou também ser analisada. Foram
interlocutoras para aproximação de respostas satisfatórias para
entender o processo de expulsão escolar. Andrade (2015, p.127)
enxerga a escola como um espaço que ensina ou se propõe a
ensinar uma programação de conteúdos e de valores morais,
sendo um espaço de boas intenções, próximos das honrarias

4 Tendo por base a postura teórico-metodológica da prof.a Berenice Bento (2017),


na busca pelo protagonismo das colaboradoras na pesquisa que originou este
artigo, a metodologia de entrevistas narrativas foi utilizada com o objetivo de deixá-
las em evidência, com a validade de seus discursos tão necessária quanto as citações
de acadêmicas e acadêmicos; por isso, seus nomes reais foram mantidos, com seu
consentimento e desejo.

337
de Deus e da família, uma representação do Estado, em nome
do progresso e da civilização. Para Bortolini e Pimentel (2018),
o projeto colonial que originou a sociedade brasileira, em
uma ordem oligárquica, tal e qual outras sociedades latino-
americanas, é um projeto político e econômico que tem na
racialização, na ordem do gênero e na sexualidade regulada
instrumentos últimos que permitem a sua realização.
O poder de disciplinar corpos na escola está presente
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

na fala de um dos gestores das escolas analisadas, trazendo


informações do que é permitido na ordem a qual a escola
deseja submeter seus alunos e alunas, desvelando o olhar do
machismo sobre o comportamento feminino, uma vez que o
tipifica como “sem recato” enquanto cabe às próprias meninas
o controle de seu comportamento para evitar constrangimentos
– em nenhum momento voltando-se para uma educação dos
meninos sobre seus comportamentos e atitudes, sobre assédios,
por exemplo. Outra diretora demonstra ser uma espécie de
guardiã da sexualidade, impedindo que comportamentos
sexualizados ocorram no espaço da escola – vigilância dos
corpos para que sobre eles seja exercido o controle e sua
docilização (FOUCAULT, 1975, p. 46).

Eu só não permitia pra todos, independente se é hétero,


homo, de se beijarem, se agarrarem dentro da escola,
mas tinham namorada, tudo mais, eu sabia quem
namorava quem, mas isso era problema deles (Pérola,
gestora da escola Ômega).

338
Andrade (2015, p.15) afirma que “a escola para a maioria
das travestis permanece um sonho, enquanto a esquina (a
margem) é ainda a realidade [...]”. Pensar na escola como um
lugar de potente transformação social para as travestis é umas
das provocações feitas em seu trabalho, assim como as formas
por meio das quais esta instituição promove a regulação das
experiências e expressões desse grupo. Algumas das falas
ouvidas nas entrevistas e nas narrativas de vida endossam
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

a visão desta autora, pois escutamos experiências de quem


manifestava grande desejo de estudar, assim como também
escutamos experiências de quem não conseguia estar no
espaço escolar, mesmo com desejo pela escolarização.
Bernard Charlot (2000) analisa as situações escolares
buscando entender como elas acontecem em meio a relações
que o estudante estabelece no processo de aprendizagem.
Ele destaca que, para entender como as situações escolares
de aprendizagem acontecem, deve-se levar em conta as
relações que a pessoa estabelece com o mundo ao seu redor,
com o outro enquanto interlocutor, consigo mesmo, com os
objetos do mundo, com o saber de uma maneira geral. Essas
relações ocorrem de formas diferentes umas das outras e
ajudam a descrever a história percorrida pelo sujeito em
diferentes momentos de sua vida na sua relação com o saber
(ou o ato de aprender).
Porém, quais processos explicam o fato de que parte
das colaboradoras apreenderam saberes escolares, tendo
algumas finalizado seus processos de escolarização, enquanto
339
boa parte não assimilou, abandonando suas trajetórias de
escolarização? Charlot (2001) indica que, na relação com o
saber, existe também uma amálgama entre sentido e eficácia
de aprendizagem: uma pessoa só consegue se apropriar dos
conhecimentos desde que façam sentido para ela.
Assim, a compreensão de sentido envolve de que
maneira a pessoa relaciona um saber e com as suas
relações com o mundo, pois precisa entender as partes
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

do funcionamento do mundo ao seu redor e conseguir


interpretá-lo; com os colegas a seu redor, devido aos
encontros e trocas com outras pessoas que também
estão a buscar e compreender o universo ao seu redor;
e consigo mesmo, pois somente a partir dos dois
momentos anteriores é possível entender a própria vida
e as maneiras possíveis de conduzi-la. Há a construção
de uma mobilização para a educação tendo o espaço da
escola como um local de socialização, a escola, contudo,
não conseguindo se apresentar como um espaço de
desenvolvimento, o que leva a algumas alunas e alunos
a priorizar o trabalho para sua subsistência, fruto da
produção subjetiva do capital na pobreza.
As falas das colaboradoras revelam que o movimento
individual e subjetivo para a educação está atravessado
por diferentes marcadores sociais e diversas situações
determinadas. Algumas narrativas expõem muito sofrimento
nessa trajetória escolar e, apesar de ocorrerem mobilização
para educação, dando um sentido para o saber enquanto um
340
fato importante para a formação pessoal e profissional, a
experiência negativa na escola pode empurrar as travestis e
transexuais a desistirem do caminho escolar.

(...) fico triste porque eu não quero isso pra minha vida,
eu não quero ser tratada como só mais uma, como
uma qualquer, que só quer estudar pra ter o diploma
da escola, eu não quero isso, eu quero fazer medicina,
eu tenho sonhos, eu tenho coisas que eu quero fazer
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

futuramente, mas eu fico meio que me perguntando o


que é que eu tô fazendo ali dentro, se é realmente aquilo
ali que vai me fazer bem, porque a escola não tem o
incentivo necessário, porque a escola não ensina, não
passa uma visão, chego até a tirar nota de disciplina que
eu nunca estudei (Aurora).

(...) Só gostava de estudar mesmo. Ah, mas não tinha


momento nenhum bom, educação física, não tinha nada
bom. Não tinha nada, assim, que desse prazer na escola
(Mirella).

Ainda persistem práticas que visam desqualificar e


ridicularizar travestis e transexuais no ambiente escolar.
A resistência, em parte do corpo escolar, na adoção plena
do nome social, dificuldades no acesso ao banheiro, a EJA
noturna como um dos poucos espaços escolares possíveis,
pois a noite se tornando guardiã, enquanto durante o dia
eclodem maiores desrespeitos e dificuldades de convivência
no espaço escolar ou mesmo não parecer ser transexual

341
para “parecer normal”, não chamar atenção e se disfarçar5
como uma proteção para estar na escola. As situações de
micro transfobias, atos banais cotidianos que emergem
indistinguíveis aos olhos cisgêneros, nos mostram que elas
são levadas a desistirem.
A fala dos gestores das escolas encarna o olhar cisgênero
ou cisnegerificador (pois, enquanto age, mimetiza o uso),
reflete o quanto as pessoas não cisgêneras (trans) são vistas
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

como estranhas no território da escola. São exotificadas por


parte do grupo docente, mesmo quando há uma tentativa de
trato normatizante ou normalizado. Muitas vezes, descritas
como parte identitária do grupo de orientação sexual, quando
a compreensão teórica nos leva à identidade ou identidades
de gênero. Nesse sentido, é possível dizer que pessoas trans
são vistas como sujeitos que precisam se enquadrar e seguir
uma norma6, afinal, a escola, que deveria ser um espaço de
encontro, de troca de saberes e acolhimento, passa a ser o
espaço de normatização, vigília e punição.

5 Para uma discussão mais aprofundada sobre o termo passabilidade, a partir da


visão e de estudos de diversas pessoas trans sobre o tema, ver Santos (2019).

6 E a norma está de alguma forma mensurada pela passabilidade, que não diz
respeito à fenotipia do organismo, mas a códigos morais de comportamento,
expressão de gênero e sexualidade.

342
4. Inclusão pela exclusão social
Se a expulsão escolar ocorre com uma grande parte da
população travesti e transexual, o estigma da associação
destas pessoas com atuações profissionais marginalizadas
parece se enraizar no imaginário social. Muitos estudos
sobre a população da Sigla T versam sobre a prostituição. Em
contrapartida, Andrade (2015) ressalta que diversas pesquisas
sobre travestis focalizam a prostituição e o objetivo último
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

de seu estudo era colocar travesti como protagonista em


outros espaços sociais, como a escola – visava, assim, alargar
o campo de pesquisas e pensar travestilidades no centro das
instituições, ao invés de limitá-las às margens da sociedade.
A autora deixa entender como a imagem da travesti é
associada no imaginário social à puta. Com seu livro,
Andrade propõe a ampliação da subjetividade das travestis,
evidenciando as principais dificuldades de reconhecimento
social que elas enfrentam no cotidiano escolar.
Mesmo para quem consegue evitar a expulsão escolar, o
mercado de trabalho reserva outras agruras (SANTOS e SILVA,
2019; 2020). O projeto social onde um dos autores do artigo
trabalha tem por um dos objetivos inserir jovens oriundos de
favelas no mercado de trabalho. As colaboradoras da pesquisa
que originou este artigo são ex-participantes deste projeto.
Uma das possibilidades profissionais ofertadas foi numa rede
hoteleira e a gerente responsável pela unidade não tinha
problema algum em aceitar candidatas trans, desde que elas
“não parecessem” ou estivessem escondidas sob os uniformes.
343
Muitas das vagas que surgem, tanto para as alunas trans
quanto para as alunas e alunos cis vindos da favela, remetem
a trabalhos que marcam lugares sociais subalternizados; o
que pode caracterizar uma inclusão pela exclusão social.
Para Sawaia (2001), as políticas econômicas atuais, de
cunho neoliberal, acabam por provocar não propriamente
políticas de exclusão, mas de inclusão precária e marginal,
pois incluem pessoas nos processos econômicos, na
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

produção e circulação de bens e serviços estritamente em


termos daquilo que é conveniente e necessário para que a
reprodução do capital seja mais barata e eficiente. Declina
o caráter perigoso das classes dominadas que, de uma
certa forma, adequam-se ao funcionamento do sistema em
favor dos dominantes. A exclusão é estruturante do sistema
capitalista, que exclui para poder incluir de uma nova forma.
Tomemos como exemplo, para ilustrar o argumento
acima, a fala da Atriz Renata Carvalho, travesti e ativista,
publicada em seu perfil do Facebook e reproduzido
em Santos et al (2019). Atualmente, Renata milita pelo
movimento “Representatividade Trans Já – Diga sim ao
talento Trans” contra o Fake Trans, nas artes, evidenciando a
prática como um apagamento das pessoas Ts e intersexo nas
produções artísticas em geral.
O que Renata fez nesse manifesto foi uma corajosa
denúncia. Sua luta é por uma saída da abjeção profissional,
especialmente pela fetichização das narrativas trans,
travestis, transgêneras e intersexo A inclusão pela exclusão,
344
ela denuncia, ocorre quando as narrativas trans podem ser
usadas por atores cis sem que pessoas trans ou travestis
estejam participando de peças de teatro, como no exemplo
que ela aponta o caso que ocorreu em uma peça encenado
no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), no Rio de
Janeiro, em 2018, justamente no mês da visibilidade trans,
sem que houvesse nenhuma pessoa T ou intersexo presente.
Uma exploração dessas vivências, mas sem o protagonismo
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

de quem é responsável por vivenciá-las, é uma das práticas


de apagamento que acredita estar evidenciando o tema que
silencia. É justamente isso o que Sawaia chama da nova
forma de incluir do capitalismo contemporâneo.

5. Considerações finais
É somente por meio da mobilização social de protagonismo
dos grupos sociais marginalizados que se torna possível
a essas realidades estarem cada vez mais visíveis dentro
dos sistemas legais e políticos. Em curto prazo, isso pode
propiciar um maior reconhecimento da humanidade da
população T e a legitimidade de suas várias demandas,
como o direito à educação, emprego e renda. Mas, por outro
lado, são esses corpos que estão excluídos da cidadania,
subalternizados e tratados desigualmente a tal ponto que
sequer cooptados pelo capital foram totalmente, mesmo
que tenha acontecido uma emergência e popularização da
temática trans na mídia e na produção acadêmica. Esses
345
corpos, contudo, possuem um potencial de desestabilizar
as normas sociais vigentes (SANTOS et al, 2019). Assim,
deslocados, propõem uma revolução da norma, e não
mais uma tentativa vã de se enquadrar nela. Os ativismos
locais dos corpos excluídos podem ser uma saída contra
hegemônica, de forma pungente.
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

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346
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SANTOS, Diego Silva et al. Rituais brutais nas mortes de travestis e
transexuais: o que a abjeção da população T denuncia?. POLÊM!CA, [S.l.],
v. 19, n. 1, p. 111-130, dez. 2019. ISSN 1676-0727. Disponível em: <https://
www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/polemica/article/view/46676>.
Acesso em: 10 ago. 2020. doi:https://doi.org/10.12957/polemica.2019.46676.
SANTOS, Diego da Silva.; SILVA, Sergio Luiz Baptista. Como ser
transexual e/ou travesti num universo simbólico heterossocial? A
“carreira bicha” na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro: Revista Caminhos
da Historia, v. 24, n. 1, p. 28-40, 25 maio 2020.

347
SAWAIA, Baader. Introdução: exclusão ou inclusão perversa? In SAWAIA,
Baader (org.) As artimanhas da exclusão. Análise psicossocial e ética da
desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 7-13.
SILVA, Jaílson. Um espaço em busca do seu lugar: as favelas para
além dos estereótipos. In M. Santos & B. K. Becker. (Orgs.), Território,
territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial (pp. 209-230). Rio de
Janeiro: Lamparina, 2007.
VERGUEIRO, Viviane. Explorando Momentos de Gêneros Inconformes
– Esboços Autoetnográficos. Seminário Internacional Desfazendo
Educação e mercado de trabalho Diego da Silva Santos e Sergio Luiz Baptista da Silva

Gênero, Natal (RN): Agosto de 2013. Disponível em: <https://


s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/31743388/V_viviane_-_
Explorando_momentos_de_generos_inconformes.pdf?AWSAccess
KeyId=AKIAIWOWYYGZ2Y53UL3A&Expires=1526906802&Signat
ure=94FmuGnjRgmyqw09oncQOxGKlSM%3D&response-content-
disposition=inline%3B%20filename%3DExplorando_momentos_de_
generos_inconform.pdf>. Acesso em: 21/04/2018.
VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades
de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade
como normatividade. Dissertação (mestrado). Universidade Federal da
Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton
Santos, Salvador, 2015.

348
LUGAR DE FALA
DE NOSSAS
ESCREVIVÊNCIAS
ESTE PROJETO FOI NORTEADO POR ALGUMAS
PREMISSAS BÁSICAS. Uma delas sugere o
compartilhamento de conhecimentos e vozes construídos a
partir de seus lugares de fala, conforme nos enuncia Djamila
Ribeiro (2019). Essas vozes vêm transitando com maior
visibilidade no âmbito da academia, mas já transitavam fora
dela. Outro pilar importante se expressa na representação
Lugar de fala das nossas escrevivências

identitária dos participantes, a partir da representação sobre


si mesmos.
Diante disso, escolhemos apresentar as pessoas
envolvidas na produção desse material a partir de sua
própria narrativa de apresentação. Algumas escolheram
contextualizar seu cenário acadêmico, outras trouxeram sua
diversidade identitária no campo do gênero e da sexualidade
e outras, ainda, explicitaram gostos e formas de ser ver e se
relacionar com o mundo. Enfim, a proposta foi exatamente

349
apresentar essa diversidade. Escolhemos acrescentar a
imagem de todas as pessoas, uma vez que entendemos que
todo corpo é político e que a presença de determinados
corpos em espaços acadêmicos traz, em essência, um traço
importante de vitória e reexistência.

Alexandre
Bortolini
Lugar de fala das nossas escrevivências

Bixa quarentona, ativista pela liberdade sexual e de


gênero desde 1999. Começou sua atuação política em
pré-vestibulares comunitários, leu muito Paulo Freire e
aprendeu o valor do diálogo pedagógico como ferramenta
350
de transformação social. Participou de projetos de educação
sexual e promoção da saúde entre jovens gays da periferia
do Rio e ajudou a construir as paradas do Orgulho que
tomaram as ruas do Brasil nos anos 2000. Por dez anos
coordenou o Projeto Diversidade Sexual na Escola, na UFRJ,
fazendo oficinas, cursos e material didático sobre gênero
e sexualidade. Fez mestrado pesquisando os caminhos
didáticos que educadoras encontravam para discutir esses
temas na escola. Trabalhou no Ministério da Educação
durantes os últimos anos do governo Dilma, acompanhando
justamente a agenda da diversidade sexual e de gênero.
Representou o MEC no Conselho Nacional LGBT e escreveu
o parecer que fundamenta a Resolução nº 12, aquela que
orienta o reconhecimento da identidade de gênero nas
escolas brasileiras. Hoje é doutorando na USP e está dedicado
à pesquisa sobre o papel das políticas educacionais em
diversidade sexual e de gênero na nossa história política
recente, seja o quanto elas alargaram a nossa democracia,
Lugar de fala das nossas escrevivências

seja o quanto o ataque ao “kit gay” e à “ideologia de gênero”


serviram de ponto de apoio para a expansão de projetos
reacionários.

e-mail: bortolini.alexandre@gmail.com

351
Nabo França
Alexandre
Psicólogo; Especialista em Gênero, Sexualidade, política
públicas e Direitos Humanos; Mestre em políticas públicas
em direitos humanos. Pesquisador do Laboratório de
Lugar de fala das nossas escrevivências

Pesquisas e Estudos em Gêneros, Sexualidades e Raça em


Educação e Direitos Humanos GE-SER/NEPPDH- UFRJ.
Psicólogo e aconselhador em pesquisas para novas profilaxias
em HIV Fiocruz RJ. Coordenador e entrevistador do Canal
Programa ContArtigoS nas redes sociais.

e-mail: alexnmfranca83@gmail.com

352
Andréa Brazil
Travesti, TransAtivista, TransFeminista, Idealizadora e
Coordenadora Geral do Capacitrans RJ, Criadora da Marca
Andréa Brazil Moda Além de Gêneros.
Lugar de fala das nossas escrevivências

Para conhecer mais acesse: http://capacitransrj.com.br/

353
Anna Claudia
Ramos
Como me apresentar? Antes de tudo, uma eterna
inventadeira de histórias. Descobri que virar escritora era
uma forma de poder continuar a brincar. Sou mulher, sou
Lugar de fala das nossas escrevivências

mãe do Elias e da Layla, já adultos, sou professora e escritora


com mais de oitenta livros publicados entre infantis, juvenis e
adultos. Desde 1989 sou professora de oficinas literárias. Sou
graduada em Letras, pela PUC-Rio e mestre em Ciência da
Literatura, pela UFRJ. Mas também sou espírita, pesquisadora
das temáticas espirituais, no momento fazendo um curso
de Neurociências do Comportamento pra quem sabe um
futuro doutorado mesclando Espiritualidade e Literatura.
Adoro esportes, remo, pedalo e pratico yoga. Não sei viver
sem esportes e livros. Viajo mundo afora ministrando
354
palestras e oficinas sobre minha experiência com leitura,
com bibliotecas comunitárias e escolares, e como escritora
e especialista em literatura infantil e juvenil. Participo de
diversos projetos literários e de incentivo à leitura e das mais
importantes Feiras de Livro do Brasil e do Exterior.

Para conhecer mais sobre meu trabalho, acesse


www.annaclaudiaramos.com.br
Lugar de fala das nossas escrevivências

355
Santa Brígida
Carlos Souza
Sou educador, companheiro da Jéssica, filho da Ildenia,
mulher preta de muita coragem e luta, pai orgulhoso de
duas gatinhas (Maju e Amora) e uma cadela arteira (Lisa).
Lugar de fala das nossas escrevivências

Carioca, vascaíno, amante de futebol, da natureza e dos


animais. Cria da escola pública e da favela, normalista e
graduado em Pedagogia pela UFRJ. Professor de Educação
Infantil do município do RJ com muito orgulho. Integrante
do Laboratório de Pesquisa, Estudos e Extensão em Gêneros,
Sexualidades e Raça em Educação e Direitos Humanos (Ge-
Ser) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

e-mail: carlos_santabrigida@hotmail.com

356
Cláudia Reis
Sapatã, ativista LGBT, filha do caminhoneiro Expedito e da
costureira Marisa, primeira da família a chegar no nível
superior. É mãe da Nina Bastet e da Nega Chanel (gatas) e
mora atualmente com elas. O filho Shiva (cachorro) foi morar
Lugar de fala das nossas escrevivências

com a outra mãe ao término do casamento. Transita nas


escolas, como professora, por mais de trinta anos. Passou
pelas graduações de História, Psicologia e Pedagogia e se
aventurou no Mestrado em Educação pela Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro. Tem interesse profundo
no tema da inclusão, sob os mais variados aspectos e entende
que uma sociedade democrática se constrói tendo por base
o respeito às identidades. Estuda gênero e sexualidade na
educação, sobretudo na modalidade de Educação Infantil.
357
Leciona no Colégio Pedro II para crianças entre 8 e 9 anos de
idade e coordena nessa instituição um laboratório espelho
em parceria com a UFRJ, o Laboratório de Pesquisa, Estudos
e Extensão em Gêneros, Sexualidades e Raça em Educação e
Direitos Humanos (Ge-Ser), onde é responsável pelo núcleo
de Infâncias. Será eterna orientanda de Diógenes Pinheiro
(seu orientador na fase do mestrado) e viajou com ele nessa
aventura de reunir aqui esses trabalhos tão relevantes para
colaborar na discussão sobre comunidade LGBT, educação e
trabalho.

e-mail: msclaudiareis@gmail.com
Lugar de fala das nossas escrevivências

358
Dandara Felícia
Silva Oliveira
Travesti, Preta, Periférica, Graduada em Gastronomia e
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de
Lugar de fala das nossas escrevivências

Juiz de Fora, tornando-se a primeira travesti mestranda da


UFJF. Atua no canal RevoluTrans. Colaboradora do Programa
de Extensão Centro de Referência GBTQI+ (CeR-LGBTQI+) da
UFJF e pesquisadora do GEDIS/UFJF/CNPq.

e-mail: contato@dandarafelicia7.com.br

359
Diego da Silva
Santos
Gay, tio da Manu, padrinho da Antonella e pai de dois
gatos, a PCD Moira (cega) e o espezinhado Artemis. Escritor
de contos, Taurino amante das artes, especialmente da
Lugar de fala das nossas escrevivências

literatura. Especialista em Gênero e Sexualidade pelo IMS/


UERJ e Pós graduado em Teoria psicanalítica pela UVA.
Mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos pelo
NEPP-DH/ UFRJ. Psicólogo clínico e Social, graduado
em Psicologia pela PUC-Rio. Foi pesquisador do LIPIS, na
PUC-Rio, do Ganimedes, do LARDECOGEN e do GE-SER,
na UFRJ. Hoje dedica-se a escrivinhação do seu primeiro
romance.

e-mail: diesantos.psicologia@gmail.com

360
Diógenes
Pinheiro
Cientista Social, pesquisa sobre juventude, políticas públicas
educacionais e processos de mudanças sociais no Brasil.
Professor, Pesquisador e Extensionista da Escola de Educação,
Lugar de fala das nossas escrevivências

Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-graduação


em Educação da UNIRIO. Carioca, cinquentão, branco,
hetero e cis, pensa que a bandeira da diversidade de gênero
se inscreve entre as mais importantes lutas no campo dos
Direitos Humanos na atualidade e acredita que qualquer
maneira de amar vale a pena.

e-mail: diogenes.pinheiro@unirio.br

361
Joice Farias
Daniel
Defensora dos Direitos Humanos, Professora de História
e Historiadora, Membra do GE-SER – Laboratório de
Pesquisa, Estudos e Extensão em Gêneros, Sexualidades
Lugar de fala das nossas escrevivências

e Raça em Educação e Direitos Humanos – NEPP-UFRJ.


Psicanalista em Formação.

e-mail: joicevidatw@yahoo.com.br

362
Jonathan Aguiar
Favelado, gay, tio-dindo da Manu, pai da Kiara - filha de qua-
tro patas. Amante das artes, embriagado com poesias. Para
todo início “ser humano” assim como doutorando em Edu-
Lugar de fala das nossas escrevivências

cação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro sendo bol-


sista CAPES. Mestre em Educação pela UFRJ. Psicopedagogo.
Graduado em Pedagogia pela UFRJ. Pesquisador Científico
do Laboratório de Pesquisa, Estudos e Apoio à Participação e
à Diversidade em Educação (LaPEADE - UFRJ). Membro do
Observatório Internacional de Inclusão, Interculturalidade e
Inovação Pedagógica (OIIIIPE).

e-mail: escritorjonathan@gmail.com

363
Oliveira Duarte
é

Marco José de
a

Militante dos Direitos Humanos, bixa, não-branca,


periférica, ativista LGBTQI+, das lutas antimanicomiais,
antiprobicicionista, antirracista e antirracismo religioso.
Lugar de fala das nossas escrevivências

Pós-Doutor em Políticas Sociais, Doutor em Serviço Social,


Docente da Faculdade de Serviço Social e do Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade
Federal de Juiz de Fora e do Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Pesquisador do CNPq. Líder do GEDIS/UFJF/CNPq e
Coordenador do Programa de Extensão Centro de Referência
LGBTQI+ (CeR-LGBTQI+) da UFJF.

e-mail: majodu@gmail.com

364
Matheus
Pinheiro
Um ser brincante, favelado, gay e um aventureiro no campo
da literatura infantil. Escoteiro e Graduando em Pedagogia
pela CNEC que apoia mais homens na educação e nos
Lugar de fala das nossas escrevivências

espaços não escolares.

e-mail: matheus.pinheiro1305@gmail.com

365
Moysés Marllon
Nascimento
Marllon Nascimento Discente em Pedagogia da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), extensionista
do grupo Experiências em Diversidades na Universidade -
Lugar de fala das nossas escrevivências

EDUNI, formado em Gestão de Pessoas pela UNIGRANRIO,


pós-graduação em Gerenciamento de Projetos pela UNESA.

e-mail: moysesmarllon@gmail.com

366
Hanbury
Nina
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Memória
Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO). Possui graduação em Relações Internacionais pela
London School of Economics an Political Science.
Lugar de fala das nossas escrevivências

e-mail: ninahanbury@gmail.com

367
Paulo Melgaço
da Silva Junior
Mineiro de Belo Horizonte, professor na Educação Básica,
ensino superior e pós-graduação. Em todos os campos que
atua sua preocupação central é a luta pelos direitos humanos
Lugar de fala das nossas escrevivências

e, principalmente, por problematizar junto aos alunxs e


profissionais os discursos e visões essencializadas que
subalternizam o outro, que aprisionam, oprimem corpos e
causam sofrimentos, a partir da raça, gênero, sexualidades
e masculinidades. Atualmente, é professor colaborador no
Programa de Pós-graduação no Ensino das Artes Cênicas,
vice diretor e professor na Escola Estadual de Dança Maria
Olenewa (pertencente ao Theatro Municipal do Rio de
Janeiro) e professor de arte na Secretaria Municipal de Duque
de Caxias. Em relação a sua formação, é Pós Doutor e Doutor
368
em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Mestre em Educação Comunicação e Cultura pela Faculdade
de Educação da Baixada Fluminense (UERJ). Graduado em
Desenho e Plástica pela Fundação Universidade de Artes –
Aleijadinho.

e-mail: ppmelgaco@uol.com.br

Saltztrager
Ricardo
Lugar de fala das nossas escrevivências

Doutor em Teoria Psicanalitica pela UFRJ e Professor


Associado ao Programa de Pós Graduação em Memória
Social da UNIRIO.

e-mail: ricosalz@gmail.com
369
Wagner York
Sara
... ou Sara Wagner Pimenta Gonçalves Jr (uso de nome social e
civil como escolha política). Mulher trans, travesti, professora,
pai, avó, coreógrafa, cabeleira, maquiadora, pedagoga. É mestre
Lugar de fala das nossas escrevivências

pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade


do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no Brasil, com a dissertação
intitulada Tia, você é homem? Trans da/na Educação: Des(a)
fiando “Cistemas” e Ocupando a Pós-Graduação na qual
investigou as políticas de quotas para transsexuais e travestis
nos programas de pós-graduação brasileiros.
Membra do Grupo de Estudos em Gênero, Sexualidade
e(m) Interseccionalidades na Educação e(m) Saúde, da UERJ.
Ativista pelos direitos LGBTQI+, faz parte da Associação
Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) no Brasil.
370
Foi voluntária na ONG Britânica Sahir House, no Reino
Unido, que atua em ações de inclusão de refugiados oriundos
do Médio Oriente e de África. Foi premiada, em 2017, com
a Medalha ALUMNI da Universidade Estácio de Sá pelos
trabalhos científicos desenvolvidos na instituição e na
atuação junto à comunidade.
É coeditora do livro Corpos transgressores: políticas
de resistência. É, igualmente, autora de capítulos e artigos
científicos, debruçando-se, especialmente, sobre a vivência
transsexual e travesti e a sua relação com a educação. A
sua investigação centra-se atualmente nos movimentos
transsexual e intersexo na educação e formação educacional.

e-mail: sarayork@live.com.pt
Lugar de fala das nossas escrevivências

371
Baptista da Silva
Sergio Luiz
Homem negro cis, gay, paulista que mora no Rio, Professor
Associado II da Faculdade de Educação e o Programa de Pós-
graduação em Políticas Públicas e em Direitos Humanos
Lugar de fala das nossas escrevivências

(PPDH), UFRJ. Leonino, com ascendente em Peixes e lua em


capricórnio; Filho de Ogum com Odé e Líder do Laboratório
de Pesquisa e Estudos em Gêneros, Sexualidades e Raça em
Educação e em Direitos Humanos (GESER).

e-mail: serggioluiz@uol.com.br

REFERÊNCIAS
RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala, São Paulo, Pólen, 2019.

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Lugar de fala das nossas escrevivências

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