Escravidão No Brasil Debates Historiográficos Contemporâneos PDF
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FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. Brasília: UNB, 1963, p.393.
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Anais eletrônicos da XXIV Semana de História: "Pensando o Brasil no Centenário de Caio Prado Júnior”
De acordo com essa interpretação, marcadas pelo paternalismo e mediadas pela ação
do Estado e da igreja, as relações sociais entre senhores e cativos no Brasil produziram
escravos indolentes, passivos e, acima de tudo, submissos a uma grande família patriarcal. O
senhor era visto como camarada e, o escravo, submisso. O resultado dessa visão pode ser
resumido no pressuposto vaticinado por Freyre de que esses escravos seriam talvez mais felizes
no Brasil patriarcal do que, quando na África negra, oprimidos por sobas e, sobretudo, maltratados
nas próprias tribos: vítimas, por vezes, de tirânicas opressões tribais sob o aspecto de ritos
compressores.2
As proposições de Freyre não suscitaram contestação imediata. Pelo contrário,
exerceram influência em outros autores, sedimentando ainda mais os mitos da docilidade do
senhor e a submissão do escravo. A partir dos anos de 1950, porém, uma nova concepção iria
se opor de modo contundente essas idéias, revitalizando os estudos sobre a escravidão negra
no Brasil.
Nos anos 1960 e 70, a temática da escravidão foi retomada de forma mais incisiva,
passando a ocorrer contestação das visões sobre o chamado “cativeiro brando”. A crítica dos
autores revisionistas recaiu, sobremaneira, às postulações feitas por Gilberto Freyre. De
acordo com essa crítica, o sociólogo pernambucano generalizou sua análise, em termos de
espaço e de tempo, ou seja, tomou como referência o que ocorrera apenas no nordeste
canavieiro e no escravo doméstico, e estendeu sua interpretação para as múltiplas realidades
existentes no território brasileiro. Incorre-se, aí, num equívoco metodológico, que ignora a
dinâmica do processo histórico e a historicidade do tema em seu devido espaço, tempo e
circunstâncias.
Nessa perspectiva revisionista, dois enfoques foram evidenciados. Em primeiro lugar,
a idéia de coisificação do escravo, destacada especialmente pela chamada “escola paulista”,
representada por Florestan Fernandes, Emília Viotti, Fernando Henrique Cardoso e Octavio
Ianni. Em segundo lugar, a ênfase na resistência e heroísmo dos cativos, como destacado, por
exemplo, nas obras de Clóvis Moura,3 Luís Luna, José Alípio Goulart e Décio Freitas. Esses
autores destacaram “os rigores terrificantes da escravidão, com seus tormentos e suplícios,
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FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. São Paulo / Recife:
Editora Nacional / Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1979, p. XII.
3
Clóvis Moura foi um dos pioneiros no estudo da rebeldia negra, ao investigar as revoltas baianas
ocorridas na primeira metade do século XIX. Ver MOURA, Clóvis. Rebeliões na senzala. São Paulo: Edições
Zumbi, 1959.
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VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil colonial (1500 – 1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p.
208.
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Id., ibid., p. 208, 209.
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Ver GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José (orgs.). Liberdade por um fio. História dos
quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 13.
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GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990.
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GOMES, Flávio dos Santos. História de quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de
Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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século XIX. São destacadas as conexões mercantis e a proteção que os quilombos podiam
conseguir junto aos vendeiros da região; contatos com os cativos das senzalas e relações de
solidariedade entre grupos quilombolas distintos. Alguns fazendeiros e autoridades locais
comerciavam com os quilombolas e os mantinham prevenidos contra expedições repressoras.
A rede de contatos e troca assim estabelecida também dava mais poder de barganha aos
assenzalados na negociação com os seus senhores. Existiam, portanto, redes de sociabilidades
com enfrentamentos disseminados no cotidiano das relações entre senhores e escravos,
forjados de modo complexo, por meio dos quais homens e mulheres agenciavam sua vida
com lógicas próprias, promovendo experiências sociais concretas que transformavam aquela
sociedade.
A obra Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil, organizada por João
José Reis e Flávio dos Santos Gomes,9 também demonstra, com importantes contribuições de
vários autores, o alargamento do debate historiográfico ocorrido nas últimas décadas.
Destaca-se, aí, uma nova história social da escravidão, que pauta por inovadores enfoques.
São analisados, principalmente, os modos como os escravos, a despeito da violência e
opressão senhorial, tentavam organizar sua vida recriando estratégias e sociabilidades
vinculadas a práticas culturais reinventadas. Na organização do trabalho, no estabelecimento
de laços de parentesco, práticas religiosas e diversas formas de sociabilidade buscam
reconstruir autonomia e constituir comunidades com culturas e lógicas próprias. Ao se
forjarem como comunidades os cativos recriaram variadas estratégias de sobrevivência e de
enfrentamento à política de dominação senhorial. Não só reagiram às lógicas senhoriais, como
produziram e redefiniram políticas nos seus próprios termos.
Os quilombos, assim, não se constituíram à margem da sociedade ou fora de seu
âmbito; sua capacidade de articulação com vários setores sociais; nunca se mantiveram
isolados. Mantinham relações complexas com o restante da sociedade escravista: escravos,
quilombolas, libertos, pequenos lavradores, taberneiros. Os negros souberam, desse modo,
também cavar seu caminho em direção à liberdade explorando as vias existentes no Brasil do
século XIX, como por exemplo, o pecúlio e a alforria por indenização. Caracterizam-se por
autonomia: seus movimentos estiveram sempre firmemente vinculados a experiências e
tradições históricas particulares e originais. E isto ocorria mesmo quando escolhiam buscar
sua liberdade dentro do campo de possibilidades existente na própria instituição da
escravidão; e lutavam para alargar ou transformar este campo de possibilidades.
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GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José (orgs.). Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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Já Sidney Chalhoub, na obra Visões da liberdade: uma história das últimas décadas
da escravidão na corte, mergulha no mundo da cultura e da ação popular. Numa trama que se
desenvolve nas últimas décadas do trabalho forçado, seus protagonistas são escravos e negros
livres da cidade do Rio de Janeiro, ao final do Século XIX. Seguindo método indiciário,
procura reconstruir os fatos a partir da investigação dos documentos referentes ao processo
histórico de abolição na corte, avançando nos esquemas historiográficos tradicionalmente
postulados. Ao investigar os processos criminais e de obtenção de alforria em que os negros
estavam envolvidos, analisa seus desejos revelados, suas interferências nas operações de
compra e venda a que tinham de se submeter, além de desvendar o papel que a cidade do Rio
Janeiro – transformada em cidade negra, cidade esconderijo – desempenhava em suas vidas.
Recuperando aspectos de experiências dos escravos da corte, seus modos de pensar e
atuar sobre o mundo, Chalhoub mostra que as lutas em torno de diferentes visões de liberdade
e cativeiro contribuíram para o processo que culminou com o fim da escravidão naquele
contexto. Empenha-se por reconstruir as políticas cotidianas usadas por esses homens e
mulheres para enfrentar aqueles que lhes sujeitavam. Mostra como senhores e escravos se
enfrentam no momento em que estes são oferecidos à venda. Escravos e libertos, senhores e
jurisconsultos se confrontam em ações de liberdade colocando em discussão os significados
de ser livre e, portanto, de ser escravo. Negros livres e cativos, no seu esforço de construir
uma vida autônoma, desafiam continuamente seus empregadores e senhores, construindo a
“cidade negra”, cada vez mais impenetrável para as políticas de domínio da escravidão.
Para os negros, de acordo com Chalhoub, o significado da liberdade foi forjado na
experiência do cativeiro. Tinham suas próprias concepções e visões da escravidão, que
transformavam as transações de compra e venda de negros, pois agiam por suas próprias
concepções do que era o cativeiro justo ou mais tolerável: suas relações afetivas mereciam
algum tipo de consideração; os castigos físicos precisavam ser moderados e aplicados por
motivos justos; havia maneiras mais ou menos estabelecidas de como os cativos
manifestavam sua opinião no momento decisivo da venda. Os trabalhadores retratados,
portanto, são ativos e astutos, regem-se por normas próprias e possuem redes significativas de
solidariedade. Rompe-se, desse modo, com a visão de “escravo-coisa”, que situa-os como
seres à margem. Sabem aproveitar das oportunidades do momento, qualidade que os leva a
interferir como atores importantes na grande política, no processo denominado hoje de
abolição.
Em síntese, esse autor busca perceber o que os diferentes sujeitos históricos entendiam
por escravidão e liberdade e como interagiam no processo de produção dessas visões ou
percepções; entende os cativos como sujeitos das transformações históricas, recuperando
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valores, sociabilidades e mediações culturais através dos quais são recriadas diversas
estratégias de sobrevivência e de enfrentamento à dominação senhorial, produzindo e
redefinindo políticas nos seus próprios termos, agenciando sua própria liberdade.
Em termos gerais, nas considerações que apresentam os autores e obras, anteriormente
mencionados neste item, criticam os pólos que sugerem, por um lado, um discurso de
violência da escravidão e da vitimização dos negros e, por outro, uma representação
contundente pontificada de feitos heróicos. Esses pólos tendem a promover duas atitudes:
gerar pena em relação às vítimas, os cativos; ou, fascinação, pela construção representacional
de heróis. Além do que, esse mito da coisificação do escravo acaba por promover imobilismos
na produção historiográfica.
Outro aspecto importante nos enfoques destas novas abordagens é a crítica ao conceito
teleológico da história. Na ênfase dada à chamada “transição” da escravidão para o trabalho
livre - ou do modo de produção escravista para a ordem burguesa – passa-se a noção de
linearidade e de previsibilidade de sentido no movimento da história. Quando se diz que a
decadência e a extinção da escravidão se explicam em última análise a partir da lógica da
produção do mercado – devido à pressão externa do capital - desconsidera-se a ação dos
negros forjando sua própria alforria, para se enfatizar o determinismo marxista do econômico.
Acaba prevalecendo, aí, a idéia de reducionismos grotescos, de determinação do econômico,
além da postulação de uma espécie de exterioridade determinante dos rumos da história, como
se houvesse um destino para fora das intenções e das lutas dos próprios agentes sociais. Por
razões como essas, tais autores contemporâneos ratificam que se deve falar em “processo
histórico”, ao invés de “transição”, em relação às mudanças do modo de trabalho ocorridas no
Brasil do século XIX. Com isso, recupera-se a indeterminação e a imprevisibilidade dos
acontecimentos a partir do sentido que os próprios negros, enquanto agentes sociais, deram às
suas próprias lutas, impulsionando a transformação do mundo de seu tempo.
Também, nesse aspecto, evidencia-se que as representações do dia 13 de maio estão
cada vez mais desmoralizadas enquanto uma data de concessão ou doação da liberdade aos
negros, quer seja pela iniciativa de uma classe dominante, ou pela simples sujeição à pressão
de interesses externos. O processo histórico que resultou no 13 de maio foi construído pela
ação de uma massa de negros que procurou cavar seu caminho em direção a liberdade,
explorando, inclusive, as vias mais ou menos institucionalizadas no ambiente da escravidão
praticada no Brasil do século XIX. Longe de estarem passivos às decisões que envolviam suas
vidas, procuraram mudar sua realidade através de estratégias e regras já previstas, ou então,
forçosamente estabelecidas na sociedade em que viviam.
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