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Negociação e Conflito: A Resistência Negra No Brasil Escravista

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Aluno : Iago Haniel Gonçalves Morais

DRE: 113152744

João José Reis e Eduardo Silva, Negociação e Conflito: A Resistência Negra no Brasil
Escravista, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, 151 p. ISBN 978-85-7164-066-5

A obra Negociação e Conflito: A Resistência Negra no Brasil Escravista, elaborada em


conjunto por João José Reis e Eduardo Silva tem como ponto de partida fundamental
para o início de uma análise da sociedade escravocrata brasileira no século XIX, com um
maior destaque para o contexto baiano, uma abordagem que tenha como objeto central o
escravo e suas múltiplas condições de existência. João José Reis é professor titular da
UFBA e possui experiência na área de História do Brasil Império, História Atlântica,
História social e cultural da África, da escravidão e do tráfico, resistência escrava e
movimentos sociais. Eduardo Silva é pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa e
trabalha nas áreas relacionadas escravidão, abolição, pós-abolição, classes populares e
cultura negra.

É importante salientar as diversas motivações sociais e políticas por trás da escrita,


organização e publicação da obra. O centenário da abolição da escravatura em 1988, a
escrita e a implementação da Constituição do Brasil no mesmo ano, que determina o
crime de racismo com inafiançável, são acontecimentos históricos marcantes do período
que não podemos deixar de destacar.

Na apresentação podemos observar um embate entre os textos elaborados pelos autores,


com historiografias que enquadram ontologicamente o negro escravizado em dois polos
que não dão conta da complexidade da sua existência na sociedade escravista. A obra
tem como um dos seus principais objetivos romper com narrativas que cristalizam o
escravo; tanto como vítima passiva de um sistema maléfico em que não existe
possibilidade de agência, de resistência e conflito na sociedade, como um herói que
apresenta um caráter revolucionário sempre em busca da liberdade e da superação do
sistema escravista. Os autores colocam essa questão da seguinte forma: “Os escravos
não foram vítimas nem heróis o tempo todo, se situando na sua maioria e a maior parte
do tempo numa zona de indefinição entre um e outro polo”(p.7). A partir de uma proposta
que busca romper com uma dicotomia que “coisifica” e “fetichiza” a figura do escravo,
dando o devido destaque ao poder de barganha, aos avanços e recuos nas negociações
com os senhores, que a obra se desenvolve. Não podemos deixar de salientar que esse
espaço social é cheio de tensões com relações nada harmoniosas.

Na obra que estamos trabalhando, os capítulos redigidos por Eduardo Silva são: “Entre
Zumbi e Pai João”, “A função ideológica da brecha camponesa” e “Fugas, revoltas e
quilombos: os limites da negociação”; e os elaborados por João José Reis são: “Nas
malhas do poder escravista”, “O jogo duro do Dois de Julho” e “O levante dos malês”.

No primeiro capítulo do livro “Entre Zumbi e Pai João”, Eduardo Silva nos introduz
justamente a uma dicotomia que permeia o imaginário coletivo da sociedade escravista no
século XIX. Ele coloca que: “De um lado, Zumbi de Palmares, a ira sagrada, o treme-terra;
de outro, Pai João, a submissão conformada”(p.13). É justamente esse tipo de
cristalização que é necessário romper para que novos olhares perante a condição do
escravo sejam explorados. Esse movimento tem por consequência promover um novo
olhar para o sistema escravista como um todo, pois ao nos desligarmos dessas duas
figuras cristalizadas da existência escrava, nos deparamos com um oceano de pressões,
negociações, barganhas e em até alguns momentos conflitos na sociedade. É importante
salientar que estes conflitos não tinham necessariamente como meta a busca incessante
pela liberdade e pela superação do sistema.

“Além das fugas e insurreições, a liberdade podia ser obtida, ainda, através
da criatividade, da inteligência e do azar. Alguns procuram aproveitar
conjunturas favoráveis, como Bento, escravo do tenente-coronel Fernando
Martins França, que solicitou à Tesouraria Provincial do Paraná empréstimo
da quantia necessária à sua alforria, comprometendo-se, em troca, a
trabalhar como servente pelo tempo necessário” (SILVA, E , 1989).

Um entrave sério apontado pelo autor logo no princípio da sua elucidação ocorre quando
ele denuncia o problema da abordagem da escravidão a partir do escravo, tendo como
um grande obstáculo a carência de fontes produzidas pelos próprios escravos. Ele afirma
que de forma distinta do processo de pesquisa da escravidão norte-americana que conta
com uma série de registros produzidos pelos próprios escravos, a historiografia brasileira
se vê praticamente impossibilitada de utilizar a mesma abordagem, pois praticamente
toda população escrava na sociedade brasileira era iletrada. Eduardo Silva nos traz
alguns possíveis caminhos para a superação deste entrave.

“O pouco que temos deve ser adequadamente explorado, eis um primeiro ponto.
Qualquer indício que revele a capacidade dos escravos, de conquistar espaços ou
de ampliá-los segundos seus interesses, deve ser valorizado. Mesmo os aspectos
mais ocultos (pela ausência de discursos) podem ser apreendidos através de
ações. Tantas vezes considerados como simples feixes de músculos, os escravos
falam, frequentemente, através deles. Suas atitudes de vida parecem indicar, em
cada momento histórico, o que eles consideravam um direito, uma possibilidade ou
uma exorbitância inaceitável” (SILVA, E , 1989).

No segundo capítulo do livro “A função ideológica da brecha camponesa” o autor se


coloca em confronto com a historiografia tradicional brasileira que nas suas pesquisas
negligencia a existência de uma economia própria entre uma parcela dos escravos. Ele
aponta duas razões para o atraso de pesquisas no campo. A primeira diz respeito as
correntes historiográficas mais tradicionais que quando se debruçam sobre o tema
tendem a direcionar o olhar para a benevolência dos senhores, deixando de destacar as
pressões e tensões que marcam a experiência escravista. A segunda diz respeito a
correntes que nunca, ou com bastante raridade abordam o tema. Eduardo Silva coloca
que a ausência de um contato profundo com documentos de arquivo prejudicam a
pesquisa e que diante disso os pesquisadores tendem a encaixar a questão em termos
lógico-abstratos. O escravo enquanto propriedade do outro, simples mão de obra, não
teria economia própria, nem agência na sociedade.

Confrontando essa abordagem o autor discorre sobre a ideia de uma brecha camponesa.
Ele coloca a brecha como um mecanismo de controle dos escravos por parte dos
senhores. A cessão de um pequeno pedaço de terra para uso próprio e uma folga
semanal para trabalhar nela forneciam uma válvula de escape para as tensões que
afligiam a sociedade escravista. Mais do que maximização da produção e maior retorno
da produção, os senhores buscam apaziguar os ânimos com os escravos. Portanto não
podemos deixar de colocar a brecha camponesa como mecanismo fundamental de
manutenção da estrutura escravista. A manutenção desta estrutura oscilava como um
pêndulo entre a força e o paternalismo de acordo com Eduardo Silva.
No terceiro capítulo “Nas malhas do poder escravista: a invasão do Candomblé do Accú”
escrito por João José Reis, o autor situa os temas centrais da obra (negociações e
conflitos) no contexto da sociedade escravista baiana. Ele traz ao leitor um panorama
demográfico favorável a incidência de diversos levantes negros que é característico da
região no início do século XIX. Com uma economia fortemente ligada a produção
açucareira, houve uma intensificação no tráfico transatlântico que proporcionou um
crescimento vertiginoso da população negra-mestiça, com destaque para os africanos. Os
escravos que vinham sobretudo da região do golfo do Benim, antigo reino do Daomé
chegaram a representar 60% da população africana no início do século XIX em Salvador.
João José Reis coloca que: “A formidável densidade da população africana na Bahia
favoreceu sua representatividade cultural, suas identidades étnicas e sua disposição de
luta. A mera presença de um número tão grande de africanos intimidava setores
importantes da classe senhorial, e com razão”(p.34).

Neste contexto intensifica-se os laços entre africanos e criolos na sociedade baiana e eles
podem ser observados em diversas esperas sociais, sendo os terreiros de candomblé
uma materialização perfeita dessa simbiose. A religiosidade, o culto aos ancestrais para
além do atlântico e a festa catalisam forças fundamentais que fomentam a política de
constantes insurreições negras na Bahia no início do século XIX.

No quarto capítulo da obra “Fugas, revoltas e quilombos: os limites da negociação”,


Eduardo Silva nos traz uma diversidade de formas de resistência dos escravos no
contexto da sociedade colonial. Desde as resistências clássicas já amplamente estudadas
pela historiografia tradicional como as fugas, revoltas e formação de quilombos, chegando
as ditas resistências do dia a dia como os furtos, roubos, saques, golpes, assassinatos
que são aspectos menos explorados, porém traços marcantes da sociedade escravista.
Ele coloca essas formas de resistência como reações a acordos muitas vezes não
cumpridos pelos senhores. Mais do que um caminho para a liberdade através da
superação do sistema escravista, estas resistências são a materialização do jogo
caracterizado por barganhas e conflitos entre escravos e senhores.

No quinto capítulo “O jogo duro do Dois de Julho”, João José Reis discorre sobre os
eventos precursores e posteriores as guerras de independência na Bahia entre 1822 e
1823. Ele classifica os lados que provocam estas tensões no território baiano de maneiras
bem distintas. O partido português é apresentado com interesses bem mais coesos,
voltados acima de tudo para a monarquia constitucional que surgiu após a revolução
liberal do Porto em 1820. Entretanto o partido brasileiro é apresentado com fortes divisões
sociais, ideológicas, raciais e políticas. Setores apresentam posicionamentos mais
radicais do que outros diante do colonialismo português.

“Não havia objetivo definido ou unidade estratégica dentro do chamado


“partido brasileiro”. Havia desde os que queriam a conciliação da colônia
com a metrópole em bases tradicionais até os que propunham uma ruptura
republicana para o Brasil. As divergências políticas com frequência
equivaliam às clivagens de cor e classe” (REIS, J. J. , 1989).

Os senhores brancos temiam que uma insurreição perante a monarquia portuguesa


catalisasse nos escravos um sentimento libertário desfavorável para o sistema escravista.
A elite presente no lado brasileiro direcionou seus esforços em favor da independência
para evitar uma radicalização do movimento. O autor coloca que seria melhor para essa
elite realizar a revolução antes que a massa, o povo a fizesse. Esse temor era em grande
provocado pela existência de um terceiro partido, o “partido negro”. Composto por negros,
africanos e mulatos, libertos e escravos, estes representavam a maior força política em
termos quantitativos.

No sexto e último capítulo “O levante dos malês” o autor propõe uma análise do levante
dos malês, colocando o conflito como tema central do estudo, deixando de lado neste
momento a negociação como medida de resistência. João José Reis deixa claro para o
leitor que ele propõe um confronto com uma tradição historiográfica com raízes nos
estudos de Nina Rodrigues, que propunha que o levante do malês não tinha relação com
a escravidão. Ela era classificada como uma guerra santa, protagonizada por escravos e
libertos africanos com o objetivo de expansão do Islã. João José Reis desenvolve
argumentos que sustentam a tese de que o levante dos malês é resultado de um
caldeirão de resistências e insurreições que abalavam a sociedade baiana no início do
século XIX. Conceitos como raça, classe e religião estão imbricados quando pensamos
nos fatores que provocaram o levante dos malês de acordo com o autor.

A leitura e análise da obra nos permite adentrar a um embate historiográfico necessário


para alterar o olhar da sociedade brasileira, perante a escravidão e consequentemente
perante os escravos. É de fundamental importância destacar as motivações que
permeiam nosso tempo em relação a esse debate que permanece mais vivo do que
nunca nas escolas e universidades brasileiras. A promulgação da lei 10.639/03 em 2003
que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e a pulverização de
cotas sociais e raciais nas universidades brasileiras nos últimos 15 anos, são forças
catalisadoras de um processo de combate a historiografias tradicionais que reduzem
ontologicamente o papel do negro na sociedade escravista. Quando uma obra é escrita (e
permanece sendo lida por um período de tempo), suas ideias e seus conceitos são como
uma materialização do imaginário social do seu tempo. Confrontar uma imagem do negro
passivo na sociedade escravista foi fundamental no contexto político da militância dos
movimentos negros nos anos 80.

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