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Didática e Práticas Pedagógicas

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INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO

Disciplina: Didática e Práticas Pedagógicas Docente: Ângela Alcântara

Discente: Maria Elis Costa Alencar Período: 1º/Noite

Ano Letivo: 2019.2 Turma: 3311

Exercício I – Resenha Crítica: LACERDA, Mitsi Pinheiro de. “Por uma formação
repleta de sentido”. In: ESTEBAN, Maria Teresa & ZACUR, Edwiges. Professora-
Pesquisadora: uma práxis em construção. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 71-85.

BREVE COMENTÁRIO ACERCA DA CIÊNCIA DO COTIDIANO ESCOLAR E DO


PAPEL DA PROFESSORA-PESQUISADORA

Mitsi Lacerda nos convida a ver – diferentemente do simples olhar, este


entendido como o ato de abarcar com a visão – o nosso educando em sua
integralidade e nos provoca a fazermos algo com aquilo que nossos olhos podem
alcançar. Mas o que fazer com o que vemos, uma vez que a visão do pedagogo de
forma alguma é total, mas ampla em suas limitações e possibilidades? O que
privilegiar na escola sem tomar partido de uma causa parcial? É a Ciência do
Cotidiano Escolar, que tem por objeto a escola concreta, que pode nos oferecer um
instrumento capaz de esboçar respostas para estas e outras indagações sobre o dia
a dia da escola e às quais este breve comentário será insuficiente para esgotar.

A Ciência do Cotidiano Escolar está fundada na práxis da regência de classe,


é um saber-fazer que não se restringe às prescrições dos manuais pedagógicos,
mas que é formulado e atualizado constantemente nos espaços de convivência
formais e informais de ensino. Essa ciência de forma alguma pretende dar conta da
totalidade da instituição escolar, mas pode ser um interessante ponto de partida para
as questões ainda não respondidas sobe a educação. Nas trocas de experiências

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entre educadores, nas produções intelectuais de quem vive os percalços da
profissão e no debate amplo e irrestrito sobre os temas circunscritos à educação e
aprendizagem é que essa ciência é reiterada.

A professora é uma observadora-participante privilegiada desses espaços,


uma vez que pode (e deve) produzir conhecimento a partir da bagagem acumulada
na sua formação e em suas vivências em sala de aula. Através de sua observação
refletida, e não apenas descritiva, da escola é que esse conhecimento será
produzido e servirá para reafirmar ou refutar teorias pedagógicas estabelecidas. O
pedagogo é, nessa perspectiva, não apenas o sujeito instrumentalizado a dar aulas,
mas antes de tudo, aquele que deve refletir sobre a educação em seus aspectos
gerais e específicos.

Logo, a professora-pesquisadora deve assumir o lugar de protagonismo na


ciência do cotidiano escolar, uma vez que é o agente social capaz de mediar a
tensão entre as teorias sobre a educação postuladas pela Universidade e os
resultados que despontam da prática social nas escolas, produzindo um
conhecimento capaz de dar conta de alguns dos imprevisíveis desafios da docência
em um contexto dinâmico e multicultural.

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Exercício II - Narrativa sobre o corpo na escola:

A partir do debate sobre o corpo na escola levantado pelo texto “Os corpos,
suas marcas, suas mensagens” (ARROYO, 2004), resgatarei alguns momentos da
história do meu próprio corpo na escola a fim de compreender o significado que esse
corpo tinha nesse espaço e as consequências disso para a minha formação; esta
não sendo entendida como instrumentalização/capacitação para uma área
específica do conhecimento, mas como sugere a expressão alemã bildung, uma
formação constante que almeja a completude do indivíduo.

Resgatarei essas lembranças a partir de algumas das reflexões do texto para


a construção de uma narrativa1 sobre a minha trajetória escolar, por acreditar que
“pelas nossas lembranças dos tempos de escola, nos abre para pensar como
lidamos agora como mestres com a condição corpórea dos alunos” (ARROYO,
2004. p .123).

CORPO ESTRANHO: FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS DE UM CORPO TRANS2


NAS ESCOLAS REGULARES DOS ANOS 90/2000

“Vou te contar a lenda da bicha esquisita


Não sei se você acredita, ela não é feia (nem bonita)”

(Linn da Quebrada, A Lenda.)

A agressão física e verbal foi uma constante em minha trajetória escolar. Filha
única de mãe solteira (papai foi embora quando eu tinha apenas quatro anos),
sempre frequentei instituições particulares de ensino no Centro do Rio de Janeiro.
Ah! Anos mais tarde, descobri que minha mãe me matriculava nessas escolas
porque tinha muito receio dos preconceitos e bullying que eu poderia vir a sofrer por
ser uma criança afeminada. Ela queria me proteger, mas sabe como é, né? A
transfobia é um fenômeno que não está circunscrito a uma classe social específica,

1 A respeito da narrativa como método de pesquisa sobre o cotidiano escolar, recomendo o artigo
“A Narrativa como Método na História do Cotidiano Escolar” de Nilda Alves.
2 Optei pelo uso do prefixo ‘trans’ (além de) como conceito guarda-chuva, que inclui as diversas
experiências daquelas e daqueles que percebem o seu gênero de forma diversa ao sexo
designado no nascimento.

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pois é estrutural e estruturante da sociedade que vivemos. (...) Comecei a minha
trajetória pelo Colégio Treze de Maio, em Santa Teresa, uma escola de bairro
dirigida por uma família católica vizinha de onde morávamos. Era um ambiente
acolhedor, tenho boas recordações dessa época. Principalmente das professoras e
irmãs gêmeas, as tias Fátima e Cátia, que sempre foram amorosas, transformando
minhas manhãs numa extensão de meu lar. Me sentia segura e amada, era apenas
uma criança. (Os anjos não tem sexo.) Esse sentimento de completude não durou
muito tempo, as primeiras agressões começaram nos anos iniciais de convivência
com os outros alunos. Me lembro de um dia, no pátio, quando estávamos fazendo
uma atividade em roda e de repente levei um soco no rosto. Não devia ter mais do
que seis anos. Na frente de todos, inclusive da tia, levei esse soco e não sabia o por
quê. Sempre fui uma criança amorosa e pacífica, jamais me metia em brigas,
compartilhava o meu lanche com os amiguinhos. O soco veio e fiquei sem
respostas. Só ouvia o meu agressor me xingar, aos berros, de “mariquinha”,
“mulherzinha”, “vira homem, seu viado”… Mas como poderia virar homem se eu era
apenas uma garota? Ser uma garota era tão ruim assim? Eu merecia apanhar por
isso? (…) Aos onze anos fui matriculada na Moderna Associação Brasileira de
Ensino, a MABE, um colégio centenário de médio a grande porte no centro do Rio.
Nessa instituição sofri as piores violências físicas e simbólicas. Era assediada
diariamente pelos garotos, levava chutes e tapas, era ridicularizada em sala de aula,
tendo os mestres como testemunhas passivas. Nesse contexto, o meu corpo já
estava passando pelas primeiras mudanças da puberdade: a androgenia da infância
cada vez mais se distanciava de mim e eu já não conseguia mais me alienar de
minha condição física. As aulas de educação física viraram o meu pior pesadelo.
Nas de natação, lutava a todo custo para não tornar o meu corpo evidente, me
sentia exposta e violentada. Já nas aulas na quadra, o bullying era materializado em
toda a sua perversidade. Os líderes dos times faziam questão de me escolher por
último e, quando sobrava, era motivo de zombaria. O próprio esporte era um
pretexto para a agressão física e verbal. (...) As aulas de informática eram divididas
em dois momentos: o primeiro era destinado às atividades propostas pela professora
e os últimos minutos eram de livre navegação pela Internet. Em uma dessas aulas,
uma colega de classe, a Glayd, me chamou para dar uma olhada no Orkut, ela

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queria me mostrar a foto de um amigo da faculdade de sua irmã. Quando vi a
imagem, não compreendi, ela me mostrava a foto de uma moça, muito bonita por
sinal, e insistia em chamá-la no masculino. Eu achei que ela estava fazendo uma
piada, mas logo me explicou “Ah, o Bruno é um transexual. Ele nasceu menino e
agora virou menina. Quase não dá para perceber, né?”. Transexual!? A
incompreensão se transformou em esclarecimento, mas não apenas no
entendimento da condição daquela pessoa, mas de minha própria existência. Aquele
corpo fazia sentido, era a potência que existia em meu próprio corpo. Eu tinha
salvação! Até aquele dia, a experiência mais próxima de minha autopercepção de
sexualidade e gênero era a da homossexualidade, mas alguma peça não encaixava.
Quando sondava os meninos gays da escola, eles não tinham a forte convicção de
que eram garotas, apenas desejavam outros meninos. Mas ser transexual era
diferente. Eu tinha salvação! Um dia poderia tornar inteligível a mulher que habitava
em mim. (…) Com a compreensão de que era uma mulher trans veio a depressão e
a paranoia. O que faria com aquela informação? Como as pessoas que são como eu
conseguem ter aquela aparência? Será consigo ficar parecida com uma mulher “de
verdade”? Quanto tempo eu vou precisar aguardar para poder me assumir para
mamãe? Quando vai ser o momento certo? E o meu nome? Será que um dia serei
amada?… Essas e outras perguntas me assombraram dia e noite por anos. Lembro-
me de virar noites escondida procurando informações na Internet sobre cirurgias,
tratamento hormonal, processo de mudança de nome e etc. (…) Nas palavras de
meu amigo João W. Nery, a experiência de autodescoberta de uma pessoa trans é
uma viagem solitária (NERY, 2011). A minha durou dos 15 aos 20 anos. (…) No
ensino médio me tornei uma pessoa antissocial e pessimista. O ódio por meu próprio
corpo chegou a limites extremos. Não conseguia ficar um dia sem me debulhar em
lágrimas. A sensação de impotência e incerteza acerca do futuro me angustiaram ao
ponto deu considerar como possibilidade razoável o suicídio. Na escola, tentava
conciliar o turbilhão de emoções com o vestibular. Ah! Nesse momento, eu já tinha
saído da MABE, pois havia conseguido uma bolsa de 50% no Colégio-Curso
Tamandaré, que ficava na Rua da Constituição, uma instituição de ensino tecnicista
que tinha por objetivo de ensino a aprovação de seus matriculados em concursos
militares e vestibulares.(…) No Tamandaré tive a oportunidade de revelar, para

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alguns colegas mais próximos, minha real identidade de gênero e receber tímidos
apoios. No entanto, esse primeiro passo de saída para o mundo não foi o suficiente
para aplacar o meu profundo sentimento de autorrejeição. Saía no meio das aulas e
corria em direção à primeira sala vazia para poder chorar. Eu chorava e me agredia,
sentia que o meu corpo havia virado uma cela, que eu tinha, por um motivo que
desconhecia, ficado presa a um a carne que não me pertencia. Era um sentimento
concreto, material... Nas primeiras fugas, fui repreendida pelos inspetores, mas logo
virou rotina e pude contar com a cumplicidade da coordenadora, Márcia, que me
disponibilizava a chave da sala sob o pretexto de que eu precisava de um lugar
sossegado para estudar. (…) Não sei como sobrevivi ao ensino médio e ainda
passei no curso de Ciências Sociais da UFRJ, mas consegui. A entrada na vida
adulta foi o anúncio da chance de liberdade que eu tanto almejava. Mas não seria
uma liberdade imediata, deveria ser conquistada com o tempo, eu precisava ter
paciência e me sacrificar mais um pouco. (...) Eu quis viver intensamente a
experiência da vida acadêmica, cursava por volta de 10 disciplinas, me inscrevi em 3
núcleos de pesquisa, estava engajada em coletivos LGBTs e feministas autônomos.
Essa imersão foi o meio que encontrei para lidar com a falta de recursos para alterar
a minha realidade, ao ocupar demais a minha mente, eu me alienava
temporariamente de meu próprio corpo. Essa estratégia de sobrevivência funcionou
durante um ano e meio, mas logo as consequências vieram. Cheguei ao terceiro
período da graduação completamente exausta. A estafa veio acompanhada do
agravamento da depressão. Sem recursos psicoemocionais, precisei trancar o curso
de ciências sociais. (…) Afastada da graduação, isolada e com o emocional
destruído, morri socialmente. Lembro-me de ter perdido a noção do tempo, acredito
que cheguei a ficar dois meses sem sair de casa e sem ter contato com as
pessoas… (Me sinto sem forças, não consigo avançar mais nesse ponto de minha
breve existência. Estou entrando em um abismo que não sei se consigo sair… Eu
tenho medo... Vamos mudar de assunto?) (…) Hoje curso pedagogia no ISERJ,
parece que finalmente a vida começou a sorrir para mim. A minha transição de
gênero foi concretizada, adquiri o direito de ser reconhecida como mulher pelo
Estado e muitos dos traumas estão sendo suavizados com a ação do tempo. Hoje
posso afirmar que me sinto confortável no corpo que construí. Contudo, ainda sofro

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com as consequências do que psicossomatizei nesses difíceis anos de vida escolar.
Apesar de controlada, a depressão ainda está presente em minha vida e de vez em
quando reaparece, mas felizmente consegui desenvolver recursos psicoemocionais
para lidar com esses momentos de conturbação. Me tornei uma pessoa ansiosa com
alguns episódios inexplicáveis de crise de pânico. Durante essas crises, a minha
musculatura torna-se extremamente rígida e sinto dores absurdas, dependendo da
intensidade, não consigo sequer levantar da cama. (…)

Escrevi sobre o meu corpo em mutação por acreditar no poder curativo da


escrita e por considerar que as minhas palavras podem servir de alerta para os
educadores acerca do combate à transfobia na escola e a prevenção do suicídio
entre jovens LGBTQIA+.

O corpo do(a) aluno(a) trans é um corpo incompreendido e, por este motivo, é


agredido e rejeitado. Olhar para esse corpo como educador é um árduo exercício,
pois precisamos nos despir da transfobia internalizada e colocar o amor na frente do
preconceito. O corpo desse(a) aluno(a) é um corpo que reivindica um
reconhecimento que, às vezes, não é apreendido pela visão. E, justamente por não
estar sempre à vista, é que precisamos desenvolver um olhar imaginativo para
incluir essa corporeidade ainda em trânsito.

Acolher o(a) aluno(a) trans é, antes de tudo, garantir que este(a) tenha seus
direitos humanos e civis assegurados na escola 3. Certamente, o(a) jovem trans
precisa ter a sua identidade de gênero respeitada e reconhecida, mas apenas isso
não basta. A escola precisa ser um ambiente amoroso e acolhedor, para além da
legislação vigente, para que as pessoas trans se sintam seguras na expressão de
suas diversidades de gênero.

No começo desse exercício, mencionei a bildung, e é nesta concepção de


formação que continuo insistindo. Privar pessoas de vivenciarem os papéis de
gênero aos quais se sintam mais confortáveis, reduzindo o gênero a um suposto

3 O acesso e permanência nas escolas, a garantia do uso do nome social, a utilização do banheiro
e uniforme conforme o gênero autopercebido são apenas algumas das reivindicações trazidas
pela comunidade trans em relação ao espaço escolar. Nesse sentido, temos os Princípios de
Yogyakarta (2007) como importante documento norteador acerca da aplicabilidade do Direito
Internacional dos Direitos Humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero.

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dimorfismo sexual, é uma violência simbólica com graves consequências no
processo de individuação. Aquele indivíduo que é privado de exteriorizar aspectos
fundamentais da própria personalidade na infância torna-se um adulto disfuncional
no cuidado de si e nas relações interpessoais. Independente dos estudos que
corroboram com as minhas afirmações, acredito que o meu relato traz materialidade
para o debate sobre como as instituições de ensino estão lidando com os corpos de
crianças e jovens trans.

Portanto, uma educação inclusiva (para e com a população LGBTQIA+) deve


considerar a diversidade sexual e de gênero no seu planejamento. Trazer essa
temática para a escola não beneficiará apenas os humilhados, mas principalmente
os exaltados, que terão a oportunidade de construir e afirmar suas masculinidades e
feminilidades de uma forma menos violenta.

Referências:

ALVES, Nilda. “A Narrativa como Método na História do Cotidiano Escolar”. In:


CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 1., 2000, Rio de
Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2000. p. 1-10.

ARROYO, Miguel G. “Os corpos, suas marcas, suas mensagens”. In: _________.
Imagens Quebradas: trajetórias e tempos de alunos e mestres. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2004. p. 121-138.

PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA. Princípios sobre a aplicação da legislação


internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de
gênero. Brasília, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007.

NERY, João W. Viagem Solitária: memórias de um transexual 30 anos depois. - 1


Ed.- São Paulo: Leya, 2011.

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Exercício III – Remexer na “Gaveta dos Guardados”:

QUEM TEM MEDO DE ÁLGEBRA? ANEDOTA DE UMA FUTURA


PEDAGOGA COM PÂNICO DE MATEMÁTICA

A proposta desse texto em muitos pontos dialoga com o exercício anterior,


mas resolvi abrir de vez a caixa de Pandora e explorar outras fragilidades. No
momento que escrevo, essa gaveta está aberta há menos de uma semana e ainda
estou no processo de compreender o que vejo nela. Na ocasião, havia sido
convidada a participar de uma oficina de origami em minha própria faculdade. Na
inocência, fui. Eu mal sabia o que me aguardava, se tivesse ao menos lido o cartaz
do evento, talvez nem entrasse na sala... Enfim, cheguei à oficina e me deparei com
um simpático senhor dobrando e desdobrando folhas coloridas e utilizando termos
vagamente familiares para ensinar a sua arte. Ali estava a armadilha! Enquanto nos
ensinava a construir uma meiga coruja de papel, utilizava as formas geométricas
que apareciam a cada dobradura para que começássemos a raciocinar
matematicamente. Triângulos isósceles, trapézios e uma infinidade de figuras eram
o pretexto necessário para que calculássemos mentalmente seus ângulos internos e
lembrássemos de nossos tempos de escola. (…) Lembrar do meu desempenho em
matemática na escola é frustrante, pois internalizei a ideia de que sou incapaz de
raciocinar matematicamente… Acho que consigo localizar o momento que essa
crença limitante surgiu em minha trajetória escolar… Foi no ensino fundamental que
tive uma professora de matemática extremamente rígida e conteudista, a professora
Fátima, que era conhecida por suas provas extremamente difíceis e por ser muito
exigente nas avaliações. Lembro de ter ficado em recuperação no primeiro ano que
cursei matemática com essa professora e que isso foi algo novo e desesperador,
uma vez que nunca havia passado por aquela experiência até então. A impressão
que eu tinha era de que por mais que me esforçasse, nunca era suficientemente boa
nos cálculos. Cheguei a acreditar por muitos anos que o problema deveria estar em
mim. (…) De recuperação, me vi obrigada a fazer as famosas aulas particulares da
professora Fátima (sim, a mesma que havia me posto naquela situação). Sempre
ouvia de meus colegas que se eu fizesse reforço com ela, com certeza seria
aprovada… Não posso reclamar do conteúdo e do auxílio que tive durante os

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encontros, mas hoje vejo algo de problemático nessa dinâmica, tendo em vista que
fui, de certa forma, induzida a fazer aulas particulares para ser aprovada em uma
disciplina que não compreendia em sala de aula. (…) Uma questão agora me surge:
se uma professora não é eficaz em instrumentalizar seus alunos numa área
específica do conhecimento em sala de aula, por que deveria acreditar que ela seria
capaz em aulas particulares? Acho no mínimo curioso que esse clima de
insegurança fosse reiterado justamente por quem mais lucrava com o baixo
desempenho escolar da turma. Toda aula, o mesmo discurso: “Vocês vão morrer na
praia se não se dedicarem mais nos estudos. Esse é o conteúdo, não vou mudar. O
problema é de vocês e de seus pais que pagam o colégio. Eu estou avisando.” (…) A
partir de então, sou assombrada pelo fantasma da matemática. Desenvolvi uma
espécie de pânico relacionado a tudo que envolve álgebra e geometria, quando
tenho de lidar com algo relacionado ao raciocínio matemático, sinto minhas mãos
suarem frio, o meu coração acelera e um medo irracional surge em meu íntimo.
Evito qualquer situação que eu tenha de lidar com os números, dispenso até os
relógios analógicos por considerar de partida complexos demais. (…) A oficina de
origami serviu como o estopim para essa questão vir a tona novamente. Talvez
precise encontrar novos métodos de aprender (e ensinar) matemática. O origami,
por exemplo, pode ser um mediador interessante para a minha compreensão das
ciências exatas. Se a matemática fez sentido para mim naquele dia, poderá fazer
nos outros... Ainda não tenho uma resposta definitiva sobre o assunto. Estou em
processo.

Referência:

ARROYO, Miguel G. “Gaveta dos guardados”. In: _________. Imagens Quebradas:


trajetórias e tempos de alunos e mestres. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p. 239-252

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Exercício IV – Reflexão sobre a visão a partir do documentário JANELA da Alma
(Original). Direção de João Jardim e Walter Carvalho. Rio de Janeiro: Copacabana
Filmes e Produções, 2001. 1 DVD (73 min.)

O OLHO QUE NADA VÊ E TUDO SENTE

“Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo
normalizou-se aos meus olhos.”

(Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo)

A fome de Carolina de Jesus fez com que ela visse o mundo com o seu
estômago. Por ver com o estômago e sentir fome com os olhos é que Carolina viu
tudo a sua volta amarelo. Seria essa a cor de seu suco gástrico implorando por
alimento a ser digerido? Não sabemos, o que podemos concluir é que ao ver o
mundo com o seu estômago, Carolina desloca as funções de seus órgãos,
transformando o olho em um órgão tátil, onde a visão expressa vontades e não a
simples contemplação. É sobre esse deslocamento de funções que irei me debruçar.

Wim Wenders, em Janela da Alma (2001), também nos propõe parecido


deslocamento das funções dos órgãos quando afirma que “Felizmente, a maioria de
nós é capaz de ver com os ouvidos de ouvir… e ver com o cérebro, com o estômago
e com a alma. Creio que vemos em parte com os olhos, mas não exclusivamente”.
Com isso, não quero pensar no olho como um órgão da visão objetiva, mas na
subjetiva, que transforma o sentido em sentimentos. Me importa pouco o
microscópio ou a luneta, quero a visão do caleidoscópio, que embaralha a
percepção e nos transporta para lugares imaginários, que jamais poderão ser
reproduzidos na contrapartida material, uma vez que a experiência do ver
concretamente é apenas um estímulo para um estado de elevação posterior. Me
importa o ver, mas quero alcançar o além do ver, que é o próprio sentir.

O olho chora! Quer maior prova de que o olho é o órgão das emoções? Ao
chorar, transbordamos aquilo que não cabe mais em nossos espíritos. É através do
pranto que damos vazão ao que nos escapa em intensidade, seja no amor ou no

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medo. A visão é parte integrativa da memória afetiva, uma vez que através de
projeções imagéticas que conseguimos acessar sensações e sentimentos do
presente e do passado. Projetar uma lembrança é sempre acrescentar elementos ao
que foi visto e nem por isso deixar de ser real, é dar intensidade a alguns aspectos e
ignorar outros. É sentir na distância.

A sinestesia me parece ser a figura de linguagem norteadora desse texto.


Misturando os sentidos é que podemos alcançar a completude do ser. Mas não é só
isso, embaralhamos porque às vezes só um órgão não dá conta, precisamos do
auxílio de outros. A visão da infância de Marcel Proust está contida no sabor das
madeleines, como um portal para o passado que precisa ser aberto pelo paladar e
digerido pela visão. Sentir por inteiro é se permitir como um todo. Somos em
conjunto, a separação em partes é puro método para a nossa, ainda, limitada
consciência humana. Portanto, qual seria o seu gatilho individual para o despertar
dessa nova visão integrativa que, além de ver, sente?

O olho que nada vê e tudo sente é o ajna que abraça o abismo de nossa
existência em seu arco-íris de possibilidades. É compreender, como compreendeu o
pirotécnico Zacarias em seu leito de morte, que “Amanhã o dia poderá nascer claro,
o sol brilhando como nunca brilhou. Nessa hora os homens compreenderão que,
mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque a minha existência se transmudou em
cores e o branco já se aproxima da terra para exclusiva ternura dos meus olhos.“
(RUBIÃO, 2010.)

Referências:

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. São Paulo:
Ática, 2014.

PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006. (Em Busca do
Tempo Perdido: v. 1).

RUBIÃO, Murilo. Obra Completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010

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