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Nuno Bragança - O Impotente

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O IMPOTENTE

Nuno Bragança
Azeitão, 16 de Agosto de 1966

Eram uma vez duas e um quarto da manhã à porta do dancing «O Canário».


Pela cidade ia conspiração, de luz acesa e janela aberta, tudo euforia de civis de civismo e baixas
patentes descomandáveis. E eu vinha duma sessão dessa música. Horas longas de tabaco e copos de
água, inúteis, que me traziam ensopado em fúrias lentas. Por isso, a finais de reunião, entrara pensando
«O Canário» com intensidades de arrastar comigo um subyersor muito alto e magro.
Ele usava nome, Sancho. E porque era enorme e quase famigerado avançou adiante. Entrámos como um
iate de escaler à arreata.
Sentados no bar, o Sancho encolheu o nariz.
«Loca de burgueses», disse. Mas sorria e afagava-me um ombro, Talvez para lembrar que, de sua ideia
expressa minutos antes, tínhamos noite ganha. O que, na minha inconfessa, significava irmos perder
comboios sucessivos de qualquer mudança válida nos ritmos de ser gente e em País.
Eu puz olhar a farejar a sala até que parou de pata no ar. Peguei no copo e saltei do bar sem prevenir o
Sancho por coisa diferente dum sorriso manso.
Fui sentar-me, grupo descortinado num recanto, perguntei dez coisas para meter no meio delas «Onde
para a Zana?» «Olhe-a», disse um rapaz pintor.

Havia mesmo ao pé da nossa mesa um par em dança lenta, e era ela. Nunca eu viria a saber qual
homem segurava tal mulher. Dois segundos depois de a ter olhado viu-me, e sorriu-se em contraponto.

Estou sentado num dancing e tenho a mão. Ainda em volta de uma bebida de pressão de ar.
Às vezes acontece num sítio destes e em hora assim que o Pecado Original se derreteu num shaker,
acabando-se a mortalidade infantil e as Polícias. Sinto essa harmonia. Por cima dos ombros cansados,
como um xaile da leveza dum suspiro de gato. Pelas luzes das mesas e fumo nos olhos trotam as mais
certeiras notas de piano.
Ando a treinar-me para conspirador, e até deixei um Sancho no bengaleiro. Permitam-me, porém: que
arregace outro género de mangas e talvez a minha noite no morra sem uma pitada de seriedade.
Há exatamente dez segundos que perguntei dez coisas. Ouvi então um homem de pincéis que me disse
«Olhe-a», e atingiu ao fazê-lo a sua razão de ter nascido, crescido e hesitado, pintadamente. A partir
desse instante em que me disse «Olhe-a» (com a autoridade de ser pessoa viva, que pintava) a missão
dele no mundo, pareceu-me, atingiu o fim. E eu sorri das telas todas que porventura ainda pintaria. Tal
os anjos, à gargalhada por cada dinossauro nado após a Evolução ter decidido despedir esse bicho.
Com os olhos na mulher encosto-me aos acordes do pianista Epaminondas, como quem se apoia às
cordas dum ringue. Ela vê-me e nem me deixa o tempo de pensar: começa sorrindo, em contraponto.
Agora levanto-me e vou ter com o par, ando um pouco a roda dele porque a dança interpôs costas de
homem entre a mulher e as minhas mãos, que logo estendo agarradoras, gesto perfeito do instinto
humano.
Ela larga imediatamente o tipo - «estou cansada» - e vai sentar-se sem olhar. Sem me deter, toco-lhe
dois dedos num ombro - «Olá Zana» -; e através da sala até chegar de novo ao bar.
Que saí daquela mesa para faina outra senão sentar-me outra vez chez Sancho: nenhum dos
circunstantes adivinharia.

Portanto, uma fração de tempo em que ela sorriu. Em contraponto, Fenómeno andor de procissão.
Tambores que o precederam e fanfarras ladeantes merecem narração, é certo. E mais merecem, se
possível: escrita. Tempo e trabalho, inevitavelmente; pois se trata de numerosa coisa e muita gente, e
agitada. Milhões, assim por alto. Mas tudo isso periclita como um universo de loiça das Caldas;
que se escaqueirará ou (o que seria pior) permanecerá cristalizado - e portanto ridículo - se não
localizarmos desde o inicio o ponto estratégico que legaliza o facto de eu estar escrevendo: um sorriso;
que me atravessou o amor próprio como um torpedo varando em plena noite um paquete de luxo
iluminado; e que ficou sendo para sempre e desde sempre o lugar geométrico dos meus dias sem nome.
Ali, numa escassa fração de tempo, perdi-me reencontrei-me logo, cabelo doutra cor e roupa até então
desconhecida.
Mais do que morrermos todos, custa-me a dificuldade em dar forma escrita ao que acabei uma vez mais
de rabiscar: que, sentado no bar e novamente ao lado do Sancho, comecei então a desesperada carreira
de impotência que tem sido a minha. Assinalado por revoadas de páginas escritas mentalmente,
humilhação raivosa de filipe arremessando esquadras tantas às canelas duma Inglaterra impermeável.
Pedi um yodka, temendo de antemão quanto me poderia suceder: viveria até ao fim de mim rondando
um sorriso símbolo? Como um alcoólico sem tustas, do lado de fora do local onde se bebe? Mas entrar
escrevendo. Nada mais.

Querida Zana
Estou sentado numa esplanada de Azeitão. O que não é de todo irreverente, ‘se considerarmos como o
tempo mexe.
Há cinquenta e sete mil e quinhentos lustros que ficaste morta: de Norte a Sul e Leste a Oeste. O que -
como adivinhas - perfaz uma cruz à escala natural e deixa uma certa parte de mim à vontade para se
escrever. Pela primeira vez em tantos anos.
Poderia, até, dirigir-me a qualquer daqueles que então mais te rodeavam, nomeadamente os teus
irmãos. E o incestuoso primo Jaime, o teu marido e outros miúdos mais crescidos. Havia nessa
matulagem toda - ah, disso estou certíssimo - suficiente de ti para me bastar, nesta manhã com pó de
Agosto meio antigo.
(Lembras-te de como te irritava a história do telefone? Quando eu marcava o número e respondia a
Teresa. Eu falava com ela, quarto de hora, e desligava. Nem sempre quiseste aceitar a minha versão das
coisas. Ora, nesse ponto só esta te podia esclarecer. Porque - e tanta vez to expliquei, e tu a reguingar –
a sua voz telefónica era um dos catorze espíritos que velavam o teu trono, o sorriso de que aqui tão
imperfeitamente me ocupo. Queria lá saber que o motor humano desse som fosse às vezes a voz duma
tua filha).
Jurei a mim mesmo acabar este trecho antes de me levantar daqui, exatamente porque estou com
medo de sentir a caneta encolher-se numa nega, uma vez mais.
Vezes e vezes debati a hipótese de um sorriso significar, em contraponto. Concerto para nação e sorriso.
Será isso, e possível?
Consultei: historiadores, pugilistas, ligeiros pianistas, revolucionários orto e heterodoxos, algumas
mulheres em meia-noites especiais. Coisa de estudar o assunto com a grande minúcia que ele merece.
Não seria justo omitir que recorri também a certa gente muito ferida pela Terra, e que depois de
convenientemente bem bebida se torna imbatível na arte de abordar problemas insolúveis, passeando
ao longo deles noites inteiras, de mãos atrás das costas e aquele ar solene e sensível de quem discute
com a morte em frente do mar.
Não vou sequer resumir todas as baboseiras que aturei, esses falsos rumos temporários, minha
investigação falhada.
A verdade está por desvendar, doutra maneira. Porque (lembro-me agora) o Sancho, ao sairmos de «O
Canário» (onze minutos depois de nele termos entrado), me pediu que lhe pagasse o que eu bebera, e
que fora uma Sagres e um yodka polaco.
Ao entregar-lhe o dinheiro encontrei-me na rua, e disse para o porteiro do dancing:
«Estou no topo dum cedro e vem aí um pintassilgo partir-me os olhos».
Foi a minha maneira quase rigorosa de informar o mundo. Parecia-me impossível ser-se mais feliz.

NUNO BRAGANGA

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