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(CRUZ, A. M. L. Da) de Rainha Do Terreiro A Encosto Do Mal Um Estudo Sobre Gênero e Ritual
(CRUZ, A. M. L. Da) de Rainha Do Terreiro A Encosto Do Mal Um Estudo Sobre Gênero e Ritual
(CRUZ, A. M. L. Da) de Rainha Do Terreiro A Encosto Do Mal Um Estudo Sobre Gênero e Ritual
RIO DE JANEIRO
2007
Andréa Lage
RIO DE JANEIRO
2007
LAGE, Andréa M.
De rainha do terreiro a encosto do mal: um estudo sobre o gênero e ritual./
Andréa M. Lage – Rio de Janeiro, 2007.
290 f.
Mas é preciso agradecer ainda àqueles que, mesmo longe dos terreiros,
ajudaram-me a entender o meu objeto de estudo em consonância com o que se constitui de
mais essencial em nosso ser. Sendo assim, agradeço à Yollah e ao José James, pessoas
especialíssimas, que vêm me acompanhando ao longo da vida e que a cada dia me ensinam
mais a ver os matizes e a riqueza do que chamamos “feminino”.
Virgínia Woof
RESUMO
The present study has as main objective to analyze the representations and
practices of rituals created about pombagira, an important entity of the Afro-Brasileira
pantheon. From research carried out in terreiros as well as Sessions of Descarregos of
IURD we present the different aspects of the rites of possessions of pombagira be they of
praise or exorcism. Following Victor Turner ideas, the men and women, taking part on the
rites feel moments of more liberty than the ones they have in their everyday life, but those
men and women also experience moments of conflicts and tensions under the influence of
such an exacerbated feminine entity.
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 14
1.1 A Pombagira ............................................................................................................. 14
1.2 Terreiros e inversões ................................................................................................ 21
1 INTRODUÇÃO
1.1 A Pombagira
O que se verifica é que, nos terreiros são cultuadas entidades marcadas por
um caráter ambivalente, como os exus. Assim, o transitar entre as fronteiras do bem e do
mal confere a pombagira até mais prestígio, o que se vê nas festas e ritos que lhe são
dedicados. Observamos que tanto na umbanda quanto na Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD) tal entidade é vista como um espírito fortemente ligado à sedução, possuindo o
poder de aproximar ou separar radicalmente pessoas em termos de relações amorosas e
sexuais.
pombagiras, as únicas entidades que, na maioria dos terreiros pesquisados, dão consultas
particulares pagas e têm uma freguesia significativa.
Rompendo distâncias ou criando pontes eficazes entre a dicotomia “bem e
mal”, os integrantes e simpatizantes dos terreiros tomam as pombagiras como entidades
prestigiosas, uma vez que, devidamente reverenciadas e presenteadas, são capazes de
atender a quaisquer desejos, sem a menor preocupação com o resultado e o julgamento de
suas ações. Essa capacidade de transitar entre as fronteiras do proibido e do permitido, da
moralidade ligada ao bem e ao mal faz com que essa entidade seja associada à força e ao
perigo potencial, passando, então, a representar o "outro lado da civilização" (BIRMAN,
1983, p. 38), cujo caráter é marginal e ambíguo. Enquanto entidade liminar, a pombagira
surge associada ao "povo da rua" (com todo o seu potencial de desordem) e à sua distância
do "mundo da casa", universo onde devem imperar relações baseadas na lealdade, na
confiança e no afeto.
entre essas duas categorias. Dessa forma, torna-se altamente ambígua, (sobretudo no que
diz respeito às condutas éticas e ao exercício do bem e do mal), atributo que lhe faz
portadora tanto de perigo quanto de poder mágico (DOUGLAS, 1976), qualidades
conferidas aos grupos e indivíduos situados nas "margens", ou seja, em espaços marcados
pela liminaridade.
Mas, afinal, quem é esta personagem que "desce" nos terreiros como uma
entidade portadora de extremo prestígio e de uma respeitabilidade que beira o temor, ao
passo que, em determinados cultos de igrejas evangélicas, surge demonizada e associada a
toda uma sorte de malefícios?
perderam e, sem opção, entraram para o mundo da prostituição e dos cabarés, adquirindo aí
um saber altamente erótico. A pombagira surge ainda relacionada a mulheres que sofreram
demasiadamente e cometeram crimes, passando, por isso, a viver numa condição de
marginalidade. Às vezes, essa situação marginal diz respeito à pobreza material e faz surgir
personagens como a "Maria Mulambo", uma pombagira não raramente temida por seu
poder de gerar miséria e morte.
pesquisado. Afinal, não só uma religião, mas as sociedades e seus grupos definem-se por
suas maneiras peculiares de representar e reinterpretar tal categoria. Tomando de
empréstimo as palavras de Novaes, observamos que “o mal não se reduz àquilo que como
mal se apresenta” (NOVAES, 1997, p. 6). Sendo assim, a vida social, em seu dinamismo,
está sempre a exigir novas caracterizações, qualificações e requalificações do mal. Isso
porque, enquanto noção central para diferentes cosmologias e cosmovisões, o mal pode,
dentre outras possibilidades, apresentar-se como algo domesticável ou incontrolável,
reversível ou irreversível, relativo ou absoluto, aterrorizante ou sedutor (NOVAES, 1997, p.
6 ).
Por enquanto desejamos apenas apontar uma temática a ser tratada ao longo
do texto. Esse assunto será retomado quando focalizarmos, sobretudo, os “males” e
“malefícios” (BIRMAN, 1997) relacionados à pombagira nas representações e práticas
discursivas de grupos neopentecostais.
crenças e diz respeito ao processo de “doutrinar” o espírito. Decorre daí os termos “exu
batizado” em contraposição a “exu pagão”. Como também, “pombogira doutrinada”.
Assim, constatamos no decorrer deste texto que nos interstícios desses ritos
ocorrem significativos mecanismos de inversão, nos quais os indivíduos distanciam-se
temporariamente dos papéis socialmente impostos pela sociedade abrangente, para
vivenciar personagens pertencentes ao mundo mítico afro-brasileiro. Mas, antes de tratar
especificamente desses ritos de inversão no contexto belo-horizontino, torna-se necessário
aprofundar um pouco mais nos referenciais teóricos e etnográficos que embasaram o
desenvolvimento dessas idéias.
fundamental constituída pela oposição “terra dos orixás” (e das demais entidades do mundo
invisível) e a “terra” enquanto mundo concreto que circunscreve o terreiro e está ligado à
sociedade mais ampla. Como conclui Maggie, a terra dos homens localiza-se fora do
terreiro e a terra dos orixás é o próprio terreiro (MAGGIE, 2001).
Tomando como base os terreiros e seus ritos de possessão, nos quais cada
médium se transforma num "outro" aceito pelo grupo e valorizado individualmente, Turner
enfatiza que muitas de suas idéias sobre os rituais se aplicam ali. Para o autor, o médium,
revestido pela máscara ou persona, está afirmando que uma significativa parte de sua vida
25
real transcorre no que ele chama "modo subjuntivo da cultura”, um domínio dotado de
muito mais liberdade do que aquele predominante na sociedade abrangente.
Pois bem, vale aqui também cotejar os ritos dos terreiros relacionados à
pombagira com outros realizados no campo evangélico. Podemos apontar a existência de
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um contraste entre eles, sobretudo pelas diferentes formas como se organizam ritualmente
no "modo subjuntivo da cultura" (TURNER, 1974 b). Afinal, nos terreiros a quebra
temporária de determinados papéis sociais (e, até mesmo, das “inversões” associadas aos
gêneros proporcionadas pela “descida” da pombagira) acontecem, muitas vezes, a partir de
práticas marcadas por um caráter "carnavalesco", ao passo que nos cultos da IURD a
“manifestação” da pombagira implica uma quebra temporária de comportamentos
socialmente padronizados. Nesse segundo domínio focaliza-se e vivencia-se, sobretudo, a
obra demoníaca realizada pelas pombagiras e demais exus.
Na IURD, tais episódios de caráter dramático estão relacionados ao reforço
de idéias e valores que no campo da sexualidade são considerados como “tradicionais”. Nas
Sessões de Libertação e de Descarrego” surgem performances e discursos enfáticos ligados
à condenação da homossexualidade, do adultério e das relações sexuais antes do casamento,
práticas que, neste campo, estão diretamente relacionadas à ação demoníaca da pombagira.
Como se verá posteriormente, dentre os grupos evangélicos pesquisados a pombagira surge
ligada ao exercício da prostituição, da sedução e da homossexualidade, práticas
consideradas pecaminosas, responsáveis pela destruição do indivíduo e, enfim, do código
moral que rege o universo da “família”, categoria fundamental no campo evangélico.
MEYER, 1993, p.10,11) a pombagira da umbanda traz consigo fortes traços dessa diaba
que teria povoado a religiosidade popular brasileira desde finais do século XVII até se
consolidar numa figura de destaque do panteão da umbanda.
A sétima seção focaliza Liz, uma ex-umbandista que abandonou os ritos dos
terreiros para se inserir no campo evangélico, mais especificamente na IURD. Seus relatos
sobre o ambiente familiar em que viveu abordam aspectos relacionados tanto ao imaginário
da pombagira nos terreiros, quanto ao processo reinterpretativo sofrido por essa entidade
nos ritos do neopentecostalismo. Os aspectos mais fortes dessa atividade reinterpretativa de
caráter sincrético surgirão nas Sessões de Descarrego, quando, ao invés de se verem
reverenciadas como entidades repletas de potência, para agir tanto para o bem quanto para
o mal, as pombagiras, já demonizadas, surgem como entidades cujo poder se reduzirá à
criação de malefícios. Tais males vão desde o surgimento de doenças, até a inserção de
homens e mulheres na prática da homossexualidade e da prostituição.
A oitava sessão faz um estudo do lugar ocupado pela pombagira nos ritos da
IURD. Como mencionamos, é nesse campo religioso que a ambigüidade característica dos
exus desaparece, dando lugar a uma reinterpretação que os reduzirá a figuras demoníacas e,
enfim, a “encostos” vinculados ao mal. Essa demonização das pombagiras e dos exus se
evidenciará, sobretudo, nas Sessões de Descarrego e de Libertação da IURD, locais em que
estas entidades se manifestam, para serem queimadas pelo fogo do Espírito Santo. Como
se pôde observar, esses cultos de possessão guardam profundas relações com o universo
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mítico dos terreiros, sendo considerados por alguns autores como fruto de processos
sincréticos que articulam elementos das religiões afro-brasileiras com outros relativos ao
neopentecostalismo (BIRMAN, 1997). Finalmente, na nona seção se dará a conclusão deste
trabalho.
2 MACUMBAS E MALEFÍCIOS
compreender todo um aparato repressivo contra esse campo religioso, desde o período
colonial.
Nesse sentido, a autora destaca que usa o termo macumba “[...] tendo
presente que, em sentido restrito, é o que na literatura se opõe a candomblé ortodoxo; e, em
termos amplos, procurando enfatizar o reconhecimento dessa polaridade e principalmente
do estigma que recai sobre a totalidade do povo-do-santo [...]” (BIRMAN, 1995, p. 7).
quadro cultural e religioso do Estado. Esse lugar periférico ocupado pelo candomblé e pela
umbanda, certamente, está ligado a processos históricos que ocorreram em Minas Gerais e
que acabaram por criar uma identidade religiosa predominantemente católica e bastante
resistente à aproximação com o mundo simbólico afro-brasileiro.
culturais e religiosas vinculadas aos grupos negros. Outras expressões culturais ligadas a
esses grupos, como o samba e a capoeira, foram perseguidas exatamente por serem
consideradas “coisas de negro” e, portanto, qualificadas como “bárbaras”, “não civilizadas”
e “perigosas”, além de inadequadas para se implantarem num ambiente urbano civilizado.
Certamente, a escravidão e o seu legado fizeram com que as populações negras e suas
práticas culturais e religiosas despertassem forte temor nas elites brancas. Valendo-nos das
palavras de Negrão, pode-se dizer que: “[...] a idéia muito ocidental de magia negra,
desenvolvida na Europa medieval, passou a ser identificada como magia, não só voltada
para a prática de malefícios, mas como macumba, coisa de negro” (NEGRÃO, 1996, p. 76).
Nessas notícias, que se repetem desde o final do século pelo menos, aparece
claramente o lugar criminalizado da falsificação, do charlatanismo, da mistificação e da
feitiçaria (MAGGIE, 1992, p. 241).
Pode-se observar que a análise realizada por tais autores mostra-se bastante
atual no que diz respeito ao contexto social belo-horizontino. No entanto, enfatiza-se que
não se trata de absolutizar ou de reduzir a relação fundamentada em estereótipos e em
sentimentos de estranhamento ou medo a uma simples negação do feitiço. Trata-se apenas
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Mãe Rita, outra líder de terreiro que surge ao longo desta etnografia, também
apontou comportamentos de evitação por parte da vizinhança em relação a ela e à sua casa
de candomblé. Como a ialorixá destacou, tratava-se de uma atitude ambivalente, pois as
sessões de seu terreiro contavam com essas próprias pessoas, desejosas de tomar passes e,
sobretudo, de consultar-se com os exus e as pombagiras. Não obstante, e como referimos,
fora do terreiro tais pessoas evitavam cumprimentá-la por receio de serem identificadas
como freqüentadoras daquela casa de candomblé. Havia, além disso, aqueles que preferiam
as consultas particulares pagas, pois, além de tratar de seus problemas com maior calma,
não corriam o risco de serem reconhecidos pelas pessoas presentes nas sessões abertas.
Ainda com relação a essas questões, essa jovem mãe-de-santo fez outro
comentário. Estrategicamente, ela preferiu não colocar nenhuma placa que indicasse o
terreiro situado nos fundos de sua residência, atitude que justificava sustentando-se em dois
motivos principais. Em primeiro lugar, a sua clientela se sentia mais à vontade para
freqüentar o terreiro, nele entrando como se entrasse em uma simples residência. Além
disso, a mãe-de-santo enfatizava também que a ausência da placa favorecia as atividades de
seu pai, um ex-policial que possuía uma firma na parte anterior da residência.
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Num dos últimos encontros com o antigo pai-de-santo, antes que seu filho
(conhecido como Pai Cláudio de Oxóssi) assumisse a liderança daquela casa, conversamos
sobre a presença de pombagiras em seu terreiro. Foi nessa ocasião que me interei de que,
embora a casa estivesse ligada ao candomblé da nação Keto, eram ali acolhidos
candomblecistas de outros terreiros. Nesse sentido, o pai-de-santo argumentava que muitos
desses filhos e filhas-de-santo oriundos de outras casas traziam consigo entidades
pertencentes ao panteão da umbanda (exus, pombagiras caboclos, pretos-velhos, etc.), de
modo que ele não via motivos para evitar a incorporação dessas entidades em seu terreiro.
O antigo babalorixá ainda destacou outro ponto: grande parte dos recursos
financeiros necessários para a sobrevivência do terreiro era proveniente das consultas
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particulares e dos “trabalhos” realizados com as pombagiras e os exus. Uma vez que a
manutenção da casa implicava significativos gastos financeiros, ele não podia abrir mão
dessa importante fonte de recursos. Aqui, vale lembrar que o candomblé é uma religião
minoritária em termos de fiéis e bastante dispendiosa. É daí que decorre a necessidade de os
líderes das casas contarem com um número significativo de clientes, cujas consultas e
encomendas de trabalhos permitam a sobrevivência da casa. É necessário lembrar também
que os ritos e festas significam gastos elevados, sobretudo em razão do baixo poder
aquisitivo de grande parte dos integrantes dessas casas.
duas casas. Uma delas tinha como líder Mãe Mariinha, uma ialorixá ligada a umbanda. A
outra era liderada por Pai Carlos, um babalorixá vinculado ao candomblé da nação Angola.
Um ponto a ser ressaltado diz respeito ao fato de que tanto Mãe Mariinha
quanto Pai Carlos recebiam suas pombagiras em ritos e festas, assim como em sessões
fechadas voltadas para o atendimento de clientes. Era nessas ocasiões que as duas
entidades, “desciam” para conversar, aconselhar e prescrever toda uma sorte de atividades
correlacionadas a práticas mágicas, ou seja, “trabalhos” para abrir caminhos e solucionar
problemas de seus clientes.
em suas festas e ritos. Nesse sentido, pode-se dizer que a maioria dos terreiros visitados
durante a pesquisa enquadrar-se-ia no que informalmente se denomina “umbandomblé” ,
termo utilizado por pesquisadores e, mesmo, por integrantes do campo religioso afro-
brasileiro para classificar as casas onde, além dos orixás, descem também entidades
“tradicionalmente” ligadas ao panteão da umbanda.
Com efeito, o contato com Pedro foi extremamente positivo para a pesquisa,
no sentido tanto da viabilização de um amplo espaço de troca de materiais e informações
sobre as religiões afro-brasileiras quanto da minha inserção no terreiro ao qual ele era
vinculado. Afinal, foi a partir de sua intermediação que o líder da casa recebeu-me na
condição de pesquisadora. Se meu encontro inicial com o grupo ocorreu sem maiores
problemas, certamente isso se deve à intermediação de Pedro.
pela pluralidade permitiu-me perceber os vários tipos de relações travados entre líderes
religiosos de diferentes terreiros com a figura da pombagira.
Em termos fenomênicos, isso quer dizer que durante a possessão aqueles que
incorporam as entidades perdem, total ou parcialmente, o controle sobre seus corpos e
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mentes, uma vez que se encontram temporariamente “habitados” por uma alteridade. Tal
crença faz com que os médiuns possuídos pelas entidades sejam vistos como a própria
“presentificação” do “santo” (SEGATO, 1995, p.48) ou do espírito que “desceu” no
terreiro, e não como mera representação ou simbolização de entidades (AUGRAS, 1995;
MAGGIE, 2001; MOTTA, 2006; SEGATO, 1995).
Ao descerem nas festas e ritos dos terreiros, tais deidades dançam e realizam
performances relacionadas aos universos míticos que lhes dizem respeito, sem, no entanto,
comunicarem-se verbalmente com aqueles que as homenageiam. Quanto a isso, enfatiza-se
as seguintes palavras de Motta (2006, p. 103-104) sobre os “transes de êxtase”:
Os orixás manifestam sua identidade por gestos bem determinados, por certos
passos de dança, por ritmos diferentes uns dos outros. É isso que me permite
considerar o transe do candomblé como um transe do corpo, em oposição ao que
denomino transe da palavra [...] é tipicamente mudo tanto mais que se supõe que os
51
orixás só saibam, ou só se dignem, falar em sua língua nagô, a não ser pelas
exclamações anunciando os orikis, os nomes de glória dos deuses.
Influindo tanto nos momentos rituais quanto nas situações da vida cotidiana,
as entidades do mundo invisível exercem um significativo poder sobre os atos do povo-do-
santo e, enfim, sobre as suas maneiras de “ser” e de “estar” no mundo. Nesse sentido, é
preciso enfatizar que o poder de agência atribuído a essas entidades não se limita somente
aos momentos das incorporações, mas se faz presente também por intermédio de visões,
falas, sonhos e presságios.
Com relação aos ritos de possessão, é ainda preciso enfatizar o seu caráter
performativo e simbólico. É por meio de atitudes e gestos performáticos que os ritos se
constroem e se atualizam, tornando-se ocasiões propícias às mediações e atos revestidos de
poder. Por intermédio dessas performances, cuja vivência constitui fator essencial no que
diz respeito à eficácia mágica, acredita-se resolver aflições, apaziguar conflitos e, enfim,
alcançar e realizar desejos.
Nas situações em que o médium ou, como se diz nos terreiros, o cavalo
incorpora um orixá ou um espírito, diz-se que ele “está virado” naquela entidade. Além
disso, é necessário enfatizar que as frases ouvidas e registradas nesses terreiros, na maioria
das vezes, remetem a um forte laço criado entre o orixá (ou o espírito) e o médium que o
recebe, vínculo demonstrado, sobretudo, pelo uso de pronomes possessivos utilizados antes
do nome da entidade. Dentre outras afirmações que destacam esse forte laço entre a
entidade e o seu cavalo, é comum ouvir frases do tipo: “A minha cigana só gosta de bebidas
finas” ou “A minha Padilha é mesmo fatal. Ela não perdoa ofensas”. Trata-se, afinal, de
frases dotadas de pronomes possessivos que, além de marcar um forte vínculo entre o
cavalo e a entidade singularizam-nas diante de outras daquele contexto.
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destacavam um estado de sonolência que antecedia a tomada do corpo pela entidade, e era
nomeado de “barravento”. De maneira geral, antes de se instaurar no corpo dos filhos e das
filhas-de-santo, os orixás e espíritos se anunciavam por meio de determinadas sensações
corporais, tais como arrepios, tremores, suor intenso ou, até mesmo, dor. Esses estados
podiam tanto estar relacionados à incorporação das entidades quanto a sua presença junto a
algum de seus filhos para lhes comunicar algo.
de que a possessão plena constitui um estado a ser alcançado pelos médiuns ao longo de seu
desenvolvimento religioso.
Uma antiga umbandista, há mais de trinta anos ligada aos terreiros relatou
que quando passou a receber seus guias podia notar a “vibração” de cada um deles. Esse
estado era seguido por outro, no qual ela somente podia escutar, bem ao longe, algumas
palavras ou toques de atabaques, sem discernir bem o que via ou o que ouvia. No seu caso
específico, tais fenômenos duraram dois meses até o momento em que teve os sentidos
plenamente tomados pela entidade. Sua mãe-de-santo explicou-lhe que esse estado de
possessão plena só acontecia depois que o anjo da guarda do médium confiasse
inteiramente na entidade que desejava tomar o corpo de seu protegido. Uma vez obtida essa
confiança, o anjo “dava linha” à entidade para que ela se incorporasse no médium de
maneira plena.
uma alteridade movida pela própria vontade. Não é por acaso que, nos terreiros os médiuns
incorporados recebem o nome de “cavalo-de-santo” ou, menos comumente, de “aparelho”.
Tais termos tendem a ressaltar uma tensão existente entre o médium, tido, no limite, como
objeto da vontade da entidade, e essa última, considerada como o sujeito ativo dessa relação
dual.
Uma das idéias fundantes da crença na possessão por espíritos diz respeito
ao poder das entidades de conhecer fatos e acontecimentos não acessíveis aos humanos.
Assim, nos terreiros, tão logo são procuradas pelos consulentes, os médiuns incorporados
por seus guias dizem que vão "correr a gira".
Assim, torna-se comum ouvir certas frases que remetem à atenção e aos
cuidados demandados durante esse ato de correr a gira, pois se trata, muitas vezes, de
situações únicas em termos de vislumbrar eventos significativos.
62
Dentre esses seres que podem ver coisas do mundo invisível, destacam-se as
pombagiras e os exus: senhores dos caminhos e das encruzilhadas, donos das ruas e dos
cemitérios e, enfim, espíritos capazes de percorrer todos os territórios inóspitos e
inacessíveis a outras entidades.
Uma das formas mais comuns encontradas nos terreiros para esse tipo de
problema é um tipo de comunicação triádica, ou seja, baseada na existência de um terceiro
termo situado entre a entidade e o seu cavalo. Este terceiro elemento (na maioria das vezes,
constituído por um integrante do terreiro) geralmente recebe a mensagem da entidade e a
transmite para quem ela é endereçada. Caso esta mensagem diga respeito a uma conversa
da entidade com o seu cavalo, quem a recebe espera a entidade “subir”· para, em seguida,
passá-la ao médium. Daí ser comum o fato dos umbandistas e candomblecistas dizerem que
receberam um “recado” das entidades pedindo-lhes algo, avisando-lhes sobre oportunidades
ou perigos, ou ainda, ordenando-lhes executar uma ação.
Outra maneira de conhecer os desejos e avisos das entidades ocorre por meio
de sua fala com seus cavalos em situações de semiconsciência ou, mais freqüentemente,
nos estágios em que os médiuns ainda estão em estado de vigília.
santo e suas entidades, interpretando sinais, sonhos e, até mesmo, fatos do cotidiano. Um
pai-de-santo relatou o fato de que todas as vezes que sentia dor de cabeça podia observar
que a quartinha da sua Oxum estava seca. Com o intuito de cuidar e agradar seu orixá, esse
zelador-do-santo, imediatamente colocava água nesse recipiente, ação que fazia cessar o
seu mal estar.
Indo além, o autor conclui que o lugar proeminente ocupado pelas “bichas”
naqueles terreiros estaria ligado a dois motivos principais: o primeiro deles relaciona-se ao
fato de a “homossexualidade” masculina e dos cultos de possessão serem definidos como
comportamentos desviantes em relação aos valores dominantes da sociedade mais ampla
(1977, p. 106). O segundo diz respeito diretamente a certas idéias de Douglas (1976) e de
Turner (1974b), autores que destacam o fato de os seres definidos pela sociedade como
sujos e perigosos levarem, freqüentemente, vantagem positiva, na medida em que sua
poluição vincula-os a determinados poderes mágicos (FRY, 1977, p. 56).
Se Fry enfatizou o alto grau de liberdade com que as “bichas” dos terreiros
de Belém, performaticamente, incorporavam espíritos femininos, tentaremos mostrar o
66
Os adés
[...] são indivíduos facilmente confundidos e mesmo referidos como “bichas”. Há
que se compreender a especificidade dessa categoria. Se é, de certo modo, sem
problemas chamar um adé de bicha, não é muito provável que aqueles que se
reconheçam nessa última designação possam usufruir do estatuto e da competência
específica do adé. Sim, porque esse termo não equivale ao termo bicha, tal como é
usualmente empregado no código hierárquico, como descreve Fry (1982). Abarca
algo mais e, ao mesmo tempo, algo de diferente que só tem sentido pleno no
contexto religioso que o produz. O comportamento do adé remete para essa esfera
da sexualidade vinculada a vida no santo; ser chamado de adé, ou reconhecer-se a si
próprio como adé, pode significar como usualmente significa um filho-de-santo que
se auto-referencia como alguém que se relaciona sexualmente com outro do mesmo
sexo biológico que o seu. E mais: que essa relação possivelmente se dá entre o adé
e outro, considerado “verdadeiramente homem”, cujo exemplo mais recorrente é do
ogã. Mas o adé ultrapassa essa designação que se apóia unicamente na prática
sexual desviante e assumida. O personagem que se institui sob este termo na vida
do santo é aquele, na verdade, que é o especialista maior em explorar, através da
possessão, o seu duplo sentido sexual e, assim, o seu sentido enquanto feminilidade
(BIRMAN, 1995, p. 110, 111).
4 VIRANDO NA POMBAGIRA
outras entidades do mesmo gênero (BIRMAN, 1983). Dessa maneira, uma entidade de
mesmo nome, por exemplo, a pombagira "Maria Padilha" recebida num terreiro será
sempre diferente de outra "Maria Padilha" recebida por outro médium, ainda que no mesmo
terreiro ou em outro local de culto. Esse vínculo criado entre o médium e a entidade (um
componente essencial na criação da noção de pessoa nas religiões afro-brasileiras) é
traduzido pelo povo-do-santo por expressões como a "Padilha de Joana”, o "Tranca-ruas de
Mariana” ou, no caso do nome do médium anteceder o nome da entidade, Rosa de Oxalá,
João de Oxum, José de Ogum.
ou, mesmo, considerada “lasciva”. Tal fato faz com que os pais e as mães-de-santo
busquem “doutrinar” tais entidades, para que, durante os ritos públicos não mencionem
termos considerados de baixo calão, não se desnudem, nem façam gestos comprometedores
diante da assistência do terreiro.
Ainda com base nas palavras dessa mãe-de-santo, percebemos como tal
sentimento inicial de rejeição por parte do médium se transformou numa convivência
sustentada por fortes laços afetivos. As palavras da citada ialorixá exemplificam situações
em que os médiuns podiam se beneficiar da companhia amistosa de “suas” entidades. “Ela
[a pombagira] me deixa um recado, me dá uma intuição. Ela tem as previsões dela e não
deixa nada me pegar desprevenida ou ela aparece em sonhos, desdobramentos, naquela
letargia quando você não está nem dormindo, nem acordada”
Tratava-se, sem dúvida, de uma alteridade com quem ela tinha muita
dificuldade de se comunicar. Aliás, ao receber a foto como um presente, essa ambigüidade
aflorou claramente. Segundo suas palavras, ela acolheria a foto com carinho, muito bem
guardada, mas com o verso virado para cima, de modo que não pudesse enxergar o rosto da
pombagira que lhe provocava tanto medo.
Resta ainda outro fator de tensão, representado pelo medo do médium diante
de uma possível vingança a ser desencadeada pela entidade a quem ele negou a posse de
seu corpo: aliás, território essencial para que esse espírito ou orixá possa agir no mundo.
Nunca é demais lembrar que entre o povo-do-santo vigora a crença de que é muitíssimo
perigoso contrariar os desejos das entidades, sejam estas orixás ou espíritos. Assim, os
médiuns não devem se esquivar de receber suas entidades, pois se elas não encontrarem
passagem, poderão “atrasar” a vida de quem as deveria receber de forma correta e generosa.
No caso das pombagiras e exus, esse perigo torna-se ainda maior, na medida em que tais
entidades são consideradas pouco afeitas ao perdão e comumente vingativas.
77
sublinhava a importância de fazer uma festa com todas as bebidas e comidas apreciadas
pela entidade. Nessas ocasiões especiais, ele surgia em cena “virado” na entidade e
portando a indumentária e os enfeites femininos que ela desejava. No entanto o aspecto
pouco usual dessa festa consistia no fato dela não comportar convidados além da
pombagira daquele pai-de-santo.
Além dessa “mescla” entre entidades e cavalos (quase sempre negada pelos
integrantes dos terreiros), nota-se a crença de que as pombagiras deixam certa “ïnfluência”
ou “vibração” feminina naqueles que as incorporam. No caso de indivíduos do sexo
feminino, a proximidade da pombagira aumentaria, ou melhor, exacerbaria o potencial
feminino do médium. Nesse sentido, é comum enfatizar que mulheres ligadas à pombagiras
por meio do transe ou do fato de tê-las como “encosto” tornam-se-iam mais livres, e até
mesmo, “mais mulheres”. Tendo como pistas as conversas e situações observadas, destaca-
se a fala da mãe-de-santo líder de um terreiro de umbanda pesquisado. Depois de salientar o
fato de a pombagira trazer consigo uma energia “totalmente feminina”, a ialorixá fez o
seguinte comentário:
chamados “cortes”), cigarros, entre outras coisas, deve-se ao fato de que, além de serem
tomados como a principal instância de mediação entre os homens e os santos, os exus são
concebidos como entidades ligadas à proteção e à provisão de bens materiais daqueles que
os respeitam.
Consciente dos riscos de lidar com uma entidade que pode acenar para um
determinado pólo e agir no sentido contrário -um tipo de ação que evidencia o caráter
imprevisível, enganoso, ou seja, trickster dos exus- (PRANDI 2005, p. 77), o povo-do-
santo, ao invés de tentar controlar ou anular essa entidade e, no limite, até a exorcizá-la,
aprende a conviver com a sua ambivalência e, inclusive, tirar proveito dela. Tal
convivência, no entanto, pressupõe regras e normas baseadas no conhecimento deste
“outro” com quem se troca. Dessa maneira, existe uma série de requisitos para chamar os
exus, “tratar” deles, solicitar seus favores e depois lhes pedir respeitosamente, para “subir”.
Nesse sentido, aponta-se para a existência de uma lógica inclusiva e avessa àquela da
perspectiva dualista cristã, na qual o bem e o mal são pólos que se excluem mutuamente.
Ao contrário, nesse universo religioso representado pela umbanda e pelo candomblé, quase
sempre, pode-se, por meio das ações dos exus e pombagiras, passar de um pólo a outro sem
maiores problemas no que diz respeito a questões éticas e a modelos morais. A fala de uma
mãe-de-santo da umbanda é elucidativa a esse respeito:
O exu, ele é muito terra. Então, a harmonia do exu é muito humana e se harmoniza
muito mais, você está entendendo? Por ele ser versátil, por ele ser uma entidade que
trabalha conforme a vontade, o pedido da pessoa [...] nem todos os exus medem
conseqüência do que vão fazer [...] apesar de hoje em dia já ter aqueles exus mais
evoluídos, que, na medida que eles vão prestando caridade, eles vão evoluindo,
tomando luz, e muitas vezes têm até uma graduação, mudando de plano: de exu
para caboclo, de exu para baiano, pra boiadeiro, qualquer coisa. Nesse sentido. Da
mesma forma é o fator pombogira.
breve relato de uma antiga mãe-de-santo cujas palavras enfatizam não só o poder dos exus
e pombagiras de “tomarem” o corpo de seus filhos e filhas, como também o fato de esse
gesto causar fortes incômodos aos médiuns, especialmente no caso de disputas entre
espíritos que querem, simultaneamente, possuir um mesmo cavalo:
A minha filha trabalha com o Seu Tranca Ruas, e uma vez a pombagira dela disse
que era ela quem ia “trabalhar”. Aí a pombagira avisou que ela é quem ia “descer” e
não ia dar passagem pro “exum”. A minha filha então passou um mal horroroso,
porque a pombagira não deu passagem pro exum dela.
para essa questão. Alguns orixás eram vivenciados como alteridade absoluta, impondo-se à
revelia de seus filhos e, até mesmo, ameaçando-lhes de morte caso esses não cumprissem
seus desígnios. Outros, embora suas vontades fossem consideradas igualmente soberanas,
eram vistos como modelos de comportamento, que o filho seguia de maneira consciente
(AUGRAS, 1995, p. 116). Com ênfase, essa autora sublinha que o momento do transe era
referido por todos os seus informantes no modo da inconsciência. Nessa direção, Augras
aponta os aspectos mais freqüentemente descritos: “emoção, desfalecimento, inconsciência,
ausência e volta da viagem”. Complementando, Augras observa que, “a experiência do
transe condensa em si todo um roteiro iniciático, onde não falta a vivência da morte, na
paradoxal associação de presença e ausência” (AUGRAS, 1995, p. 116).
do próprio cotidiano, tal como fumar e beber. Assim, alguns filhos ou filhas-de-santo
enfatizavam o fato de detestar cigarros e bebidas alcoólicas, enquanto seus exus e
pombagiras exigiam que eles fumassem e bebessem seguidamente durante as sessões.
No entanto, para evitar conflitos com sua entidade, era preciso fazer mais do
que incorporá-la. Conforme já enfatizado, Angélica devia também estar atenta a seus
desejos, e até mesmo, a seus pequenos caprichos. Em relação a isso, Angélica relatou que
durante uma única sessão quatro pessoas levaram a ela recados da pombagira solicitando-
lhe uma taça nova para que ela se servisse de água no terreiro. Nessa ocasião, a entidade
estava zangada com a médium uma vez que ela lhe devia este objeto.
Um rápido olhar pela história revela que, nesse contexto, a sexualidade das
meninas é desde muito cedo controlada, em contraste com a valorização precoce da livre
sexualidade dos meninos e rapazes. Torna-se necessário enfatizar que tal liberdade sexual
concedida aos meninos (espera-se, no futuro, “homens de verdade”) vincula-se ao
desempenho exclusivo do papel sexual ativo. Para serem e permanecerem homens, os
indivíduos biologicamente masculinos necessitam desempenhar, única e exclusivamente, o
papel sexual “ativo”, além de evitar sistematicamente performances efeminadas (FRY;
MAC RAE 1985, p. 43, 44).
No mundo dos terreiros, Exu mostra-se ambíguo também no que diz respeito
às categorias feminino e masculino. Nos candomblés das nações Angola-Congo, essa
entidade se manifesta tanto masculinamente quanto femininamente, dizendo respeito à
94
Mesmo nas casas de umbanda que se definem como locais onde se pratica
única e exclusivamente o bem, a presença dos exus é essencial à realização da contramagia,
96
Um ponto polêmico com relação aos atos realizados pelos exus diz respeito
à responsabilidade que lhes é atribuída pela prática do bem e do mal. Nos terreiros
98
pesquisados, notou-se uma forte crença de que os exus não poderiam ser responsabilizados
pelo que faziam, pois desconheciam condutas morais e éticas, e, no limite, a própria noção
de “bem” e de “mal”. Decorre daí a visão de que a responsabilidade sobre o malefício
praticado pelos exus recairia sobre quem acionava a entidade para realizá-lo. Enfatizava-se
que os exus agiriam balizando-se em seus próprios interesses, aderindo às causas que lhes
oferecessem maior lucro em termos de bens materiais.
Todavia, por mais que essa opinião surgisse nas conversas, existiam visões
que situavam os exus como entidades detentoras de discernimento diante das ações que
praticavam. Tal opinião dizia respeito, principalmente, àquelas entidades mais evoluídas e
que já estavam prestes a alcançar o patamar dos caboclos ou das caboclas.
Numa das festas realizadas em homenagem ao exu Tranca Rua das Almas,
no terreiro de candomblé pesquisado, um filho-de-santo declarou que só tinha se
aproximado da quimbanda uma única vez, para se proteger de uma “demanda” que vinha
contra ele, cujo poder já tinha matado uma mãe-de-santo, sua conhecida. Por meio desse
comentário ele quis deixar claro que a sua aproximação com um campo capaz de trabalhar
com o mal se deu em função de sua defesa contra algo que poderia ter posto fim à sua vida.
100
numa espécie de “educação dos sentidos”, que permite às pombagiras “trabalharem” dentro
das normas estipuladas pelos terreiros.
essa leitura e interpretação dos exus como entidades relacionadas a um sistema fortemente
fundamentado em relações pessoais:
O compadre deve ser uma alavanca para a vida social dos filhos, um mediador, uma
pessoa que interfere nos momentos críticos da vida do indivíduo, da mesma forma,
os compadres exus seriam figuras mediadoras, pois interferem nos momentos
críticos da vida do indivíduo que faz despachos para ser atendido. Sendo Exu um
mediador, uma figura ambígua e perigosa, chamá-lo de compadre pode servir para
amenizar simbolicamente o perigo que essa entidade traiçoeira oferece e concretizar
uma aliança entre os que são distantes
Indo além, Augras (2005, p. 293) faz a seguinte afirmação relativa aos
perigos e poderes mágicos conferidos a essa pombagira, atributos que a seu ver têm que ser
compreendidos a partir de um imaginário social no qual são reatualizadas figuras femininas
irreverentes e temerosas, sobretudo porque afirmam plenamente a sua sexualidade:
[...] no es el origen factual lo que permite entender los poderes ambíguos de la
entidade brasileña, sino la permanencia en el imaginário social de una visión
amenazadora de la mujer que afirma su sexualidad, representación que también se
manifesta en las tradiciones populares ibéricas referentes a la própia Maria Padilla
[...].
nas quais o erotismo aparece vinculado ao que se denomina “sagrado”. Nesse sentido,
torna-se necessário distanciar-se de um universo social configurado essencialmente por
dogmas cristãos, para encontrar outras culturas, em que o erotismo feminino seja evocado e
saudado por meio de ritos e cânticos. Tal encontro se dá na umbanda, sobretudo, por meio
das performances e pontos de terreiro.
mais velhos. Os outros membros da família devem prestar-lhes obediência e, até mesmo,
certa subserviência. Às mulheres cabe o decoro e a evitação de determinados
comportamentos, gestos e atitudes que possam comprometer a moral individual e familiar.
Ora, em tais contextos, marcados por forte herança patriarcal, tal inversão
transgride limiares e inverte hierarquias, fato gerador de ambigüidades e perigos. Não é por
acaso que a moral tradicional brasileira acena para os danos potenciais de tais mulheres
sexualmente livres, quase sempre identificadas com as prostitutas. Mostrando-se
extremamente ambígua, essa moral tanto aconselha os homens a manterem distância
considerável dessas figuras femininas (capazes de seduzi-los ou englobá-los por meio de
seus poderes) quanto sublinha a importância dessas mulheres transgressoras. É que sem
elas, reza a moral, “o mundo seria insosso como uma comida sem sal. ”(DAMATTA, 1984,
p.57)
Nesta visita ao terreiro, deparei-me com o salão já lotado para a festa dos
erês, e tive que permanecer em pé junto à porta de entrada. Permaneci ali até o momento
em que Mãe Mariinha passou, colocando ordem na casa, e apontando um lugar vazio
situado num banco lateral. Sentei-me então ao lado de uma senhora, cuja extrema magreza
despertou-me a atenção. Na ocasião aquela mulher estava acompanhada de uma criança e
de um senhor, com quem conversava.
Falou mais detalhadamente sobre uma fase muito difícil de sua vida, em que
esteve muito doente e sofrendo sérias privações de ordem material. Data desta época a
perda de seu pequeno patrimônio, e a sua miserável condição de “mulher da rua” munida
apenas de alguns caixotes de papelão que lhe serviam de abrigo. No entanto, na data de
nossa conversa essa situação já havia se revertido. Tinha uma boa casa, onde morava com
114
seu companheiro, e não passava mais privações. Além de bens materiais, também podia
contar com a ajuda de um senhor aposentado, com quem mantinha uma relação amorosa,
aliás, aquele com quem ela conversava poucos minutos antes.
Antônia comentou que tinha dois exus muito poderosos, mais precisamente:
o Exu Gavião e a pombagira Zureta. Remontando o seu passado, referiu-se à relação
especial que vinha mantendo com aquelas entidades ao longo da vida. Disse que os exus
começaram a manifestar quando ela tinha cinco anos e já era encarregada de tratar das
casinhas dessas entidades, situadas no fundo do terreiro onde morava. Desde então, o seu
exu e a sua pombagira, tratados por ela com um carinho especial, vinham acompanhando-a
pela vida, livrando-a de infortúnios e provendo-lhe de bens materiais. Aquela mulher
enfatizava que mesmo tendo uma vida difícil, de “mulher pobre”, nunca havia sucumbido
aos infortúnios. Nem uma série de doenças, nem a extrema miséria conseguiram lhe tirar a
coragem. Com os dois exus ao seu lado protegendo-a, ela ia vagando pelas ruas e estradas,
arrastando suas tralhas.
assunto enfatizando que tratava dos seus exus com carinho, mas, definitivamente, não
queria desenvolver.
Tratar das entidades significava “ir ao mato, levar farofa e cachaça para o
exu Gavião” e, ao mesmo tempo, dar à Zureta aquilo que a deixava satisfeita: “uma garrafa
de sidra e alguns cigarros acesos, colocados em pé para queimar”.
Antônia referia-se também a sua sorte com os homens, associando esse fato
à sua relação com a pombagira. Nesse ponto da conversa, Antônia destacou um dos
atributos daquela entidade, que, incidindo sobre a sua pessoa tornava-a atraente para os
homens com quem convivia. Tratava-se do poder que a Zureta exercia sobre ela, capaz de
transformar seu “verdadeiro rosto” em outro, belo e feminino. Assim, diante dos homens
116
com quem ela convivia, a sua verdadeira face, “parecida com a de um homem”, dava lugar
à fisionomia de uma bela mulher. Era essa uma das maneiras pelas quais a pombagira
atuava em sua vida, deixando-a bela e desejável para os homens.
Como relata Antônia, a sua convivência com os exus não ocorria por meio
do transe ritual, experiência realizada em terreiros e mediada por pais e mães-de-santo.
Conforme dizia, a sua freqüência às casas de umbanda e de candomblé resumia-se à
participação em festas e consultas, pois ela não queria desenvolver.
Mais do que oferecer presentes aos exus, ela enfatizava que recebia de bom
grado tudo o que era emanado de suas presenças. Era assim que os dois espíritos podiam
atuar na terra, mediados por ela, que, pacientemente, aceitava-os encostados em seu corpo.
Até mesmo nas horas de extremo desconforto, ou seja, nos momentos de “guerra”, ela
jamais havia se negado a atender à vontade daquelas entidades. Nessas ocasiões críticas, ela
redobrava seus esforços, pois, mesmo sentindo que a sua cabeça estava explodindo, ia ao
mato tratar deles, tentando, assim, mitigar o forte desejo dos espíritos por sua pessoa. Era
dessa maneira que renovava seu vínculo com as entidades, ou seja, doando-lhes a sua
pessoa misturada com as dádivas oferecidas (MAUSS, 2003).
Esse relato enfatiza que uma das principais dimensões da convivência entre
pessoas e espíritos, aqui entendidos como “seres sociais” portadores de desejos e
necessidades (CRAPANZANO; GARRISON 1977; BODDY, 1994; LAMBEK, 1980),
fundamenta-se numa infindável, porque obrigatória, troca de dádivas. Comunicando-se por
meio de presentes, que, ao serem trocados, levam consigo algo de seu doador, pessoas e
espíritos estabelecem um forte vínculo fundamentado na noção de reciprocidade (MAUSS,
2003). Esse vínculo traz consigo fortes tensões, na medida em que qualquer descuido com
aquilo que é prometido ou devido aos espíritos pode provocar abalos em suas relações com
os humanos e, conseqüentemente, uma quebra no circuito de prestações e contraprestações
(MAUSS, 2003).
118
Aqui, é necessário enfatizar que no caso dos exus essa quebra de alianças
adquire maior gravidade e perigo, na medida em que se atribui a essas entidades um caráter
autoritário, imperativo, enganoso e quase sempre vingativo. As narrativas proferidas nas
casas de candomblé e umbanda destacam o fato dos exus deixarem de proteger seus
“amigos” e “aliados” ou, mesmo, se vingarem deles ao se sentirem negligenciados. Como
contraponto a essas narrativas, Antônia enfatizava o seu vínculo com as duas entidades.
Para ela, tal aliança revestia-se de enorme importância nas múltiplas dimensões de sua vida.
Antes de tudo, é preciso recordar que Antônia concebia os seus dois exus
como mediadores entre ela e um mundo que, inegavelmente virava-lhe as costas. Vagando
pelas ruas, sem bens, sem família e sem amigos que pudessem lhe oferecer um lugar na
sociedade, restava a proteção daqueles dois espíritos. Afinal, eram eles que, atuando como
espécies de “padrinhos” protegiam-na concedendo-lhe os bens necessários para viver num
mundo altamente pessoalizado.
Essa narrativa mostra como a sua vivência com os seus exus colocava em
cena as noções de “casa” e “rua”, homologamente associadas à relação construída entre as
categorias “feminino” e “masculino”, polaridades essenciais para a compreensão do
universo social brasileiro (DAMATTA,1990; FRY,1977; BIRMAN,1983).
Nesse sentido, pode-se afirmar que o próprio mito construído sobre a figura
do “exu-macho” da umbanda, respeitosamente referido como “o homem”, punha em cena
comportamentos vinculados aos hábitos dos “machões”, personagens vinculados a um
Brasil popular, cujo espaço de liberdade é construído e usufruído nas ruas e bares. É ali que
esses homens passam o seu tempo livre, divertindo-se com amigos e mulheres.
Mas a pombagira exercia outro tipo de ação sobre Antônia. Aqui, faz-se
referência ao poder conferido à entidade de transformar seu rosto masculino em um,
feminino e belo. Tal transformação fazia com que ela “encantasse” os homens, mantendo-
os sob seu poder. Foi assim que ela encontrou a ajuda masculina necessária para tirá-la da
miséria.
No entanto, sua narrativa não destaca esse poder, relacionando-o apenas com
a solução de um problema prático e material. A sua fala conota certo orgulho de ser tão
poderosa ao ponto de conseguir manter junto de si, simultaneamente, os dois homens com
120
6 OUTRAS HISTÓRIAS
Mãe Rita, estudante de psicologia, é uma jovem ialorixá que desde muito
cedo esteve ligada aos terreiros e que aos 25 anos já era responsável pela sua própria casa.
Tal como ela enfatizou com orgulho, havia um tempo significativo que ela recebia uma
“pombagira rainha”, cujo nome era Ana Padilha. O relato dessa mãe-de-santo reflete um
procedimento essencial aos terreiros, referente ao ato de doutrinar entidades. Se esse
procedimento geralmente é apenas mencionado na bibliografia referente à umbanda, aqui
ele será explicado de forma detalhada, a partir do relacionamento entre Mãe Rita e Ana
Padilha.
O terreiro situava-se nos fundos de sua própria residência, onde ela morava
com seus pais e irmãos. Nos trabalhos realizados no terreiro, havia duas sessões semanais,
destinadas, respectivamente, aos pretos-velhos e aos caboclos da casa. Assim como nas
122
Uma das ocasiões mais movimentadas no terreiro era a festa anual que Mãe
Rita celebrava para a sua pombagira, data em que eram afixados avisos no portão da casa
para informar a vizinhança. Com efeito, o fluxo maior de pessoas formava- se durante a
ceia que era oferecida no evento. Nessas ocasiões, a ialorixá preparava uma grande mesa,
contendo frutas variadas, que se constituíam na refeição ritual da pombagira e que eram,
depois, distribuídas para os moradores mais pobres da região. De acordo com Mãe Rita, a
sua pombagira preferia e desejava frutas, porque “não tinha sido tratada com sangue” (no
caso, o sangue obtido, ritualmente, no sacrifício dos animais).
Grande parte dos freqüentadores da celebração anual eram crianças, que iam
ao terreiro atraídas tanto pela beleza das pombagiras quanto pela ceia. O caráter controlável
e familiar dessa festa era enfatizado pela mãe-de-santo nos seguintes termos: “São sessões
tão leves, que têm criança. Tem criança que vem aqui no terreiro porque acha pombagira
bonita, então vai na pombagira e ela tem que carregar. E criança acha isto importante”.
pessoas optavam por este tipo de sessão particular porque não queriam ser vistas valendo-se
das consultas e dos trabalhos do terreiro.
que a pessoa passa, ela tem uma tendência maior para receber uma pombagira. Mas
isto não quer dizer que um homem normal não possa receber essa entidade.
Visando mitigar esse problema, Mãe Rita detalhou o enorme trabalho para
acabar com aquelas incorporações da pombagira. Tal mudança implicou a necessidade de
“assentar” novos orixás na cabeça de seu namorado, fato que teria lhe custado muito
esforço, pois aquela pombagira era muito exigente.
até mesmo a recusar determinados agrados considerados por elas de qualidade inferior.
Esse grau de exigência é, muitas vezes, explicado a partir de uma espécie de educação dos
sentidos pela qual passam essas entidades no seu processo de evolução. Não raramente esse
aprimoramento no gosto das pombagiras ocorre simultaneamente com o controle de
determinados atos, sobretudo, aqueles referentes à sua sexualidade.
Outro ponto importante salientado pela ialorixá dizia respeito à sua condição
de “médium de berço”; ou seja, de uma pessoa que já nasceu com dons adivinhatórios, com
a capacidade de vidência e de comunicação com espíritos e demais deidades. Nesse sentido,
ela dizia que, por serem portadoras desse tipo de dom, tais pessoas não necessitam passar
126
por ritos de iniciação ligados à “feitura” do santo. No seu caso específico, sublinhava que já
sabia as coisas de seus guias e santos antes de ter qualquer aprendizado nos terreiros. Além
desse poder mediúnico, ela dizia ter nascido com uma marca de pertencimento a Xangô
inscrita na cabeça.
Porque eu já nasci feita. Na realidade eu fiquei de reclusão só para ter o
aprendizado. Eu não tive a necessidade de raspar a cabeça porque eu já tenho o
símbolo do santo na minha cabeça. Quando a mãe-de-santo começou a raspar ela
viu que eu já tinha os dois machados cruzados na minha cabeça, no caso as marcas
do machado de Xangô.
Referindo-se aos seus contatos com as pombagiras, Mãe Rita relata que,
inicialmente, recebia uma entidade “metade exu, metade pombagira”. Dizia que se tratava
da pombagira do Beijo, uma entidade cujo comportamento era marcado pelo fato de ela
beijar qualquer pessoa que estivesse por perto: “Ela beijava todo mundo e ficava aquelas
marcas de chupão, uma coisa horrorosa. Isso era a ralé”, comentava a ialorixá. E, referindo-
se ao panteão da umbanda e às suas leis hierárquicas, a mãe-de santo explicava: “Porque a
gente começa com entidades assim, depois que você chega a níveis mais altos. Depois
dessa pombagira eu incorporei a pombagira Cheira Homem e a Maria Mulambo, e também
o exu Sete Porteiras e o exu da Morte.
Ao classificar as pombagiras de acordo com seus comportamentos, Mãe Rita
comentava que a pombagira Maria Mulando era uma pombagira comum: “é mais ralé... é...
entre ralé e classe média, porque ela tem um comportamento muito vulgar".
127
Tratando de Ana Padilha, a pombagira que recebe já há alguns anos, ela não
só destacava aspectos que a diferenciavam de outras pombagiras, como reforçava o sistema
hierárquico da umbanda (NEGRÃO, 1996). Nesse sentido, as desigualdades entre essas
entidades eram marcadas, sobretudo, por aqueles elementos que caracterizam a sua
moralidade e seus comportamentos sexuais.
Quando eu comecei a incorporar a Ana Padilha ela era muito vulgar. Ela não
aceitava roupa da cintura para cima, nem sutiã. Então foi onde eu tive que doutrinar
ela. Porque eu não incorporava ela no centro justamente por causa disso. Porque
uma bela noite eu estava dormindo e minha irmã falou que eu levantei toda estranha
e acendi a luz do quarto e comecei a falar um tanto de coisas. E ria e falava, ria e
falava.
Mãe Rita então revelou que teria sido bastante rígida com a entidade:
Ah! Você vai fazer isto? Então hoje eu não te recebo. Você vai fazer tal coisa?
Então você me bate. Eu criei ela assim. Ela era muito violenta. Muito violenta
mesmo. Um dia ela chegou e falou assim para o pai-de-santo do lugar em que eu
trabalhava: você não é homem, ponha-se no seu lugar. E ela acabou com ele lá, com
a assistência toda vendo e ouvindo.
Um outro tema abordado por Mãe Rita dizia respeito à história de vida de
Ana Padilha. Nesse sentido a ialorixá dizia saber pouco, pois a pombagira não costumava
falar sobre esse assunto. Contou que Ana Padilha era o espírito de uma moça que vivera na
Espanha, filha de pais ricos e bem situados socialmente. Sentindo-se cerceada pelo
autoritarismo masculino, manifesto pelo pai e pelos irmãos, a jovem teria se rebelado e
abandonado a família. Sem maiores opções de sobrevivência num mundo em que as
mulheres ficavam confinadas à esfera doméstica, Ana Padilha teria aberto um bordel, onde
comandava moças que se prostituíam.
Como enfatizava Pai Carlos, e nisso demonstrava sua preocupação com certa
tradição relativa aos terreiros de candomblé, a casa por ele liderada possuía "raízes" no
famoso terreiro de Joãozinho da Goméia e se ramificava em outros terreiros. O conjunto
formado por tais casas constituía uma espécie de “linhagem”, traduzindo o que é
denominado no candomblé de "família de santo”.
ocupava o ápice da hierarquia, fato que ocasionou certo atraso na pesquisa, em razão de sua
permanente ocupação com as atividades do terreiro ou com questões de ordem pessoal.
bastante refinada, dotada de gestos comedidos e avessos a qualquer tipo de excesso. Suas
performances demonstravam, no máximo, um ar de sedução e um comportamento
autoritário. Afinal, ali, ela representava a “dona do pedaço”, capaz de, energicamente,
comandar a troupe de mulheres de seu cabaré. Se existia um lado mais sombrio e escuso da
entidade, certamente ele não se tornava visível para o público presente nas sessões e festas
do terreiro.
Tal silêncio certamente contribuía para evitar a ênfase no poder mágico das
outras pombagiras do terreiro. Num tipo de grupo cujo ethos era marcado pela hierarquia,
não era de bom-tom elogiar pombagiras que, num mercado religioso altamente competitivo
como o das casas de candomblé, poderiam tornar-se concorrentes de Quitéria.
134
prontamente se mostraram dispostas a conversar. Uma jovem, acompanhada por sua mãe,
demostrava muita ansiedade para saber sobre a eficácia mágica da pombagira, e nesse
sentido me fazia perguntas. Uma outra senhora me confessou estar ali às escondidas do
marido. Ele era católico e não via com bons olhos a visita da esposa aos terreiros. Depois
de colocar-me a par dessa sua situação, a senhora comentou ainda que, antes de procurar a
pombagira, havia feito correntes na IURD. Tendo freqüentado essa Igreja por algum tempo
e sem conseguir a graça desejada, resolveu valer-se dos serviços mágicos religiosos daquela
pombagira.
Indo além, essa senhora também destacou que já no primeiro olhar lançado
sobre tal entidade ficara completamente impressionada com a sua beleza perpassada por
uma expressão de bondade. Nesse sentido salientou uma radical separação entre a face da
136
Vale uma pausa para comentar o fato de essa senhora conferir à pombagira
uma beleza especial, diferente daquela referente à moça que a incorporava. Enfatizar tal
fenômeno significa acreditar na possibilidade de um mesmo indivíduo ser habitado,
temporariamente, por um “outro”, portador de atributos próprios, essenciais à sua
caracterização como um ser social singular. Sendo assim, o rosto que se transfigurava fazia-
o na medida em que um ser deixava, temporariamente, de habitar um corpo para que uma
alteridade, portadora de uma outra face, se presentificasse. Pode-se concluir, então, que a
percepção de uma ou mais faces se alternando num mesmo indivíduo tornava-se fator
indicativo de um sistema de crenças no qual um indivíduo podia ser habitado por diferentes
“seres”, cada qual portador de características que lhe eram próprias.
observação, fui chamada pela iaô. Finalmente, era chegada a hora de conversar com a
pombagira.
Logo que entrei na sala onde Quitéria atendia, senti uma forte sensação de
estranhamento, que parecia ser causada por uma série de elementos. A noite tinha chegado
e a sala estava na penumbra. Apenas um foco de luz incidia sobre a face de Quitéria,
acentuando a sua maquiagem bastante carregada. O seu batom era de um vermelho intenso,
as faces estavam visivelmente pintadas e também os olhos, com sombra em tons de azul. O
seu chapéu, ligeiramente desabado, cobria parte de seu rosto. A entidade tinha um cigarro
colocado no canto dos lábios e uma taça de bebida nas mãos. Quitéria convidou-me para
sentar e me entregou uma taça para que compartilhássemos de sua bebida predileta. Foi
assim que começamos a conversar num clima soft, entrecortado por risos e goles de anis.
Distinguindo-se das outras entidades ali presentes, ela se abstinha de dar as performáticas
gargalhadas que caracterizam o comportamento das pombagiras. Como soube depois, essa
sua finesse estava intimamente ligada à sua história de vida.
moça. Eu tenho pedido muito ao meu cavalo, porque eu tenho coisas para cumprir
aqui, para resolver e achar meu caminho.
preparados para que o homem sinta aquela atração, aquele desejo, aquela
sensualidade.
Assim, a conversa com a entidade foi fluindo até o momento em que ela
começou a relatar a sua história de vida. Mesmo que de forma breve, pontuamos um trecho
da narrativa de Quitéria sobre a sua passagem pela terra.
Vivendo na rua, como prostituta, Quitéria relatou que sofreu toda sorte de
violências. Esses maus-tratos iam desde surras até roubos de seu pequeno patrimônio
adquirido arduamente com seus clientes. Para se defender desses abusos, com outras
prostitutas, teve de matar alguns rufiões, atos que depois de sua morte, levaram-na a viver
entre os espíritos de pouca luz: “Foi assim que eu me tornei pombagira. Foi porque matei
esses homens maus que me roubavam”. Explorada e maltratada, passou a buscar
intensamente um lugar para viver, até que, depois de muita procura, encontrou o cabaré de
uma francesa, com quem, pouco a pouco, foi aprendendo segredos ligados às artes do amor.
Tal prostituta surgiu então como um modelo para Quitéria no que se
relacionava não somente à construção de uma ars erótica como também a uma série de
comportamentos e gestos referentes à finesse das francesas, que compunham os bas-fonds
das cidades brasileiras. Referindo-se à prostituta, Quitéria enfatizou que a imitava em tudo:
142
Existiam aquelas prostitutas que não tinham dinheiro nem para comprar o seu
almoço. Então, o pão com ovo era o alimento delas. Então, elas tinham que se
prostituir por qualquer dinheiro para comprar alguma coisa para comer. E eram
mulheres brigadeiras, eram mulheres que roubavam, que foram presas. Porque há
uma diferença entre as pombagiras: Há aquelas bem encaminhadas, que
comandavam os cabarés, que controlavam situações e bando de mulheres, e há
143
aquelas bem vulgares mesmo, que matavam e roubavam por qualquer coisa. Essas
estragavam muitas famílias.
Aí, eu conheci um delegado que ficou gostando muito de mim. Depois, um coronel
que ficou gostando muito de mim. Eu conheci um homem que era muito forte na
época, que era industrial. Ele gostava muito de uma mulher que trabalhava comigo
num cabaré, uma mulher mais velha. E ele levava o filho dele pro cabaré. O filho
dele começou a freqüentar e logo começou a me ajudar. Aí, foi que eu comecei a
montar um cabaré pra mim, na Avenida Paulista. Eu já estava com mais de trinta
anos. Aí foi que a minha vida começou a melhorar. Eu fui conhecendo as meninas
todas da região e fui pegando as melhores. O coronel me ajudava muito, o industrial
me ajudava muito, e aí eu fui montando uma casa. E aí eu comecei a ter maldade. A
dar valor ao que precisava, dar valor a mim e às minhas coisas.
Como relata Quitéria, a perspectiva que surgiu para ela enquanto prostituta
foi aquela referente às relações com figuras masculinas poderosas. Diante desse fato, a
pombagira colocou à sua disposição aquilo que tais homens, ambiguamente, mais temiam e
mais desejavam nas ditas “mulheres alegres”: a sua sofisticada ars erótica. Aliás, era,
sobretudo, desse saber erótico que ela enquanto pombagira se vangloriava, atribuindo-lhe o
poder tanto de tirá-la da miséria quanto de mantê-la prestigiosa até sua morte. Aqui, a
narrativa de Quitéria menciona a ajuda de tais homens sem vinculá-la a nenhum tipo de
cobrança que lhe tolhesse a liberdade. No nível discursivo, a liberdade vivenciada pela
pombagira era encontrada tanto nos seus relacionamentos com figuras masculinas como no
fato de recusar o papel de mãe. Nesse sentido, a entidade destacava que mais do que não
gostar de crianças, lançava mão do aborto para evitá-las.
garantiu, até mesmo na velhice, o status de parceira predileta dos homens poderosos com
quem conviveu.
mulher as funções desempenhadas no lar. Decorre daí essa tensão relativa aos desejos
femininos e ao poder de mando masculino que circunscreve a figura da pombagira,
colocando em foco, mais uma vez, as oposições entre a mulher sedutora e livre do controle
masculino e a mulher respeitável e subordinada às relações de família e casamento.
Ela tem um andar, um sorriso, um olhar, uma atitude que lhe são próprios;
é preguiçosa, mentirosa, depravada, extremamente simpática ao álcool,
despreocupada do futuro, e muitas vezes destituída de senso moral
(RAGO, 1985, p. 89).
Tais referências, que dão conta dos padrões históricos de conduta, das modas
e modos femininos, defrontam com comportamentos então atribuídos às prostitutas. Tais
148
Se Quitéria escapou dessa condição, tal fato se liga às suas alianças com
homens prestigiosos que a ajudaram em troca de seu saber erótico. Sem o prejuízo de sua
liberdade e, aliás, se utilizando dela e de sua esperteza, ela se estabelece num mundo social
que lhe era adverso valendo-se principalmente da lógica da patronagem.
Tal atributo acaba por inseri-la numa situação ambígua com relação ao eixo
classificatório construído em torno das noções de homem e de mulher, fato que torna a sua
figura repleta de ambivalências e, por conseguinte, dotada de poder. Dessa maneira, caem
por terra estereótipos que reificam a imagem da prostituta explorada, cujos ganhos são
extorquidos pelos rufiões, cuja velhice transcorre solitária, no abandono e na pobreza.
Maria Quitéria se afasta desse tipo de caracterização veiculada por visões moralistas, para
se apresentar como personagem famosa em vida. Aqui, o preço a pagar surge após a sua
morte, quando, condenada por uma doutrina, tem de voltar a terra para responder pelos
crimes que cometeu.
Numa noite de maio, cheguei ao terreiro de Pai Carlos por volta das oito
horas da noite, para mais uma das festas realizadas em homenagem à Maria Quitéria, a
pombagira incorporada pelo pai-de-santo e líder da casa. Encontrei o salão iluminado,
ornamentado com flores de papel colorido e já com algumas pessoas na assistência.
Seguindo o conselho de alguns candomblecistas do terreiro, procurei chegar um pouco
antes do horário marcado para o início da festa, pois se tratava de um evento muito
concorrido, que a cada mês de maio lotava os espaços do terreiro.
De fato, observei que poucos minutos após a minha chegada não havia mais
lugares nos bancos destinados à assistência. Os que chegavam passavam a se aglomerar na
parte lateral do salão e, até mesmo, na escada de acesso ao terreiro.
Tratava-se de uma festa muito atrativa, que fazia convergir para o terreiro
uma diversidade de pessoas ligadas ao povo-do-santo: ialorixás e babalorixás amigos ou
vinculados àquela casa, assim como filhos-de-santo de menor status na hieraquia do
candomblé, além de clientes de Maria Quitéria e simples curiosos. Diante desse público
numeroso e heterogêneo, zelo não poderia faltar.
Conversando com Julieta, uma dessas convidadas que trazia flores, inteirei-
me de que ela era integrante de outro terreiro ligado àquela casa de culto e de que havia
recebido um recado da própria pombagira recomendando-lhe participar da sua festa. Aliás,
ela trazia um buquê de flores, que havia sido cuidadosamente encomendado numa das
floras do Mercado Central de Belo Horizonte, para ser ofertado à Quitéria.
Uma vez virados, esses médiuns foram retirados do salão por outros
integrantes da casa incumbidos de vesti-los e maquiá-los longe dos olhos da assistência.
Seguiu-se então um momento de grande expectativa ligado à aparição de Maria Quitéria e
das pombagiras por ela comandadas. Esta etapa ritual foi marcada por uma drástica redução
de luz no espaço destinado aos médiuns incorporados, elemento essencial para que ali fosse
reproduzido o ambiente do cabaré, onde Maria Quitéria teria trabalhado e vivido antes de se
tornar um espírito.
de salto, chapéu de abas largas sobre um lenço enfeitado com elementos dourados, além de
longas luvas pretas. Em suas mãos destacava-se uma piteira à moda dos antigos cabarés e
nigth clubs da década de 1920. Ela apresentava-se também notoriamente maquiada,
realçando o seu batom vermelho e a sombra azul que usava nos olhos. No decorrer da festa,
esta maquiagem era constantemente retocada, ora por equedis, ora pela própria pombagira.
Dona de um estilo ímpar, Quitéria articulava do luxo ao burlesco para marcar a sua figura
de sensual e gloriosa prostituta.
idéias, valores e códigos que não faziam parte da minha própria visão de mundo e do meu
ethos.
com o gosto e o capricho de suas pombagiras. Pessoas que recebem essas entidades relatam
o quanto preocupam-se em atender-lhes o gosto. Isto reflete o cuidado especial
demonstrado na confecção de vestidos com tecidos e modelos que respondam a preferência
e aos pedidos das entidades. Estes são conhecidos, sobretudo, por meio de sonhos,
presságios e sinais, supostamente, atribuídos às entidades.
Tão logo iniciei minhas pesquisas no terreiro, observei que suas lideranças
acentuavam seu valor quanto a aspectos relacionados às suas raízes negras. Tais atitudes e
sentimentos transpareciam fortemente quando os familiares de Mãe Mariinha enfatizavam o
valor das manifestações lúdicas, artísticas e religiosas ligadas aos grupos negros. Dentre
essas, a que mais se destacava, depois da umbanda, era a capoeira. Valendo-se dos
estereótipos que desqualificam essas manifestações culturais no contexto brasileiro, alguns
membros do terreiro se apresentavam jocosamente para mim, dizendo: “Aqui todo mundo é
macumbeiro e capoeirista”.
166
Minha presença nas sessões e festas daquela casa, além das conversas e
entrevistas que realizei com seus membros e freqüentadores permitiram-me notar a
heterogeneidade do terreiro e, inclusive, conscientizar-me da diversidade de mundos
socioculturais aos quais pertenciam tanto os integrantes da casa quanto a sua clientela.
sobretudo, das camadas mais pobres da população, esses umbandistas formavam um grupo
que incluía alguns profissionais liberais: uma psicóloga, um médico, um dentista e um
engenheiro.
contensão sofrida pelas crianças em ritos religiosos. De certo, a própria dinâmica do corpo,
das performances descontraídas e da musicalidade tornavam as sessões da umbanda
atrativas para as crianças.
Aqui vale abrir um parêntese para enfatizar o caráter familiar das relações
que ocorriam naquele terreiro. A liderança da casa vinha se transmitindo dentro da família
de Mãe Mariinha, passando de seu marido, para ela e, depois de sua morte, para um de seus
dois filhos, que era pai-de-santo. Desde o início da pesquisa, era notório o grande
envolvimento de seus famíliares com as atividades do terreiro. Como exemplo, observamos
a presença constante de seus dois filhos nas sessões, fosse ajudando no desenvolvimento do
rito, fosse liderando a orquestra dos atabaques. A esposa de um dos filhos de Mãe Mariinha
também desenvolvia sua mediunidade nas giras e era auxiliada pela Mãe-de-Santo. O filho
desse casal, desde o início da pesquisa e ainda com a idade de sete anos, assistia aos ritos da
casa cantando e por vezes, tocando atabaque. Por volta dos nove anos, ele já podia ser visto
na sessão dos pretos-velhos acendendo os cachimbos das entidades.
pessoa se comporta bem aqui, por que é que ela não vai ser atendida como
as outras pessoas? E também a gente não julga, pois ninguém sabe o dia
de amanhã”.
Aliás, uma das peculiaridades daquele terreiro era que contava com alguns
núcleos familiares em suas sessões. Como dissemos, desde o início da pesquisa percebemos
que a família de Mãe Mariinha adquiria um papel central nos ritos do terreiro. Gilson, um
de seus filhos, era ogã e liderava o coro de atabaques. Seu outro filho, Roberto, era pai-de-
santo e respondia por tudo que acontecesse no terreiro na ausência de sua mãe. Sílvia,
esposa deste último, também integrava o terreiro e desenvolvia a sua mediunidade, sendo
guiada, inicialmente, por sua sogra e, depois, por seu marido. Em algumas sessões, vi essa
moça “virada” nas suas pombagiras, em cenas de possessão marcadas por um extremo grau
de refinamento gestual e performático. Com apenas sete anos, Rafael, filho de Sílvia e
171
Roberto, já estava presente nas sessões do terreiro, cantando junto ao coro de atabaques,
sentado na assistência ou tomando passes juntamente com as outras crianças. Finalmente,
no terreiro sobressaía ainda outra presença ligada à família de Mãe Mariinha. Tratava-se de
Eliane, a referida auxiliar da mãe-de-santo, filha de uma antiga integrante do terreiro.
Aqui, destacamos o rigor dos médiuns no que dizia respeito aos seus
comportamentos durante as sessões. Durante a pesquisa no terreiro, jamais constatei
qualquer evento que pudesse comprometer a moralidade da casa. Nesse sentido, a presença
de Mãe Mariinha era de fundamental importância, pois, enquanto autoridade máxima
daquele espaço, ela não permitia qualquer deslize, fosse por parte de membros da
assistência, fosse por parte dos médiuns da casa. Depois de sua morte, seu filho Roberto
continuou agindo de acordo com as diretrizes de sua mãe, ou seja, zelando pela doutrina da
casa.
Numa das primeiras vezes em que estive no terreiro de Mãe Mariinha, fiquei
sabendo da existência de Maria Bonita, uma pombagira que era incorporada por aquela
172
mãe-de-santo há mais de trinta anos e que, atualmente, descia no terreiro três dias da
semana para "trabalhar". Pouco me foi dito sobre a biografia da mulher, cuja morte a
transformou em pombagira. No terreiro, apenas se ouvia dizer que a entidade era uma
cangaceira. Tardiamente, interei-me de que se tratava do próprio espírito de Maria Bonita,
mulher de Lampião.
Depois de esperar por alguns minutos, até a saída de uma senhora que, ao
término de sua conversa com a entidade, mencionava estar bastante aliviada com relação
aos problemas que a levaram ao terreiro, entrei no local onde Maria Bonita atendia seus
clientes. Encontrei-a sentada no chão, vestida com sua saia colorida em tons de vermelho e
preto. À sua esquerda encontravam-se uma vela branca acesa e dois copos com bebidas
colocados sobre um “ponto riscado". Do outro lado, um pouco mais afastada dela, podia ser
vista uma vasilha rasa contendo pedaços de frango imersos em azeite de dendê. Na sua
frente, havia um maço de cigarros, que foram fumados sucessivamente por ela durante a
consulta.
Assim que adentrei o local de consulta, Maria Bonita cumprimentou-me
dizendo “boa noite”, frase habitualmente dita pelos exus quando saúdam aqueles que os
procuram. Depois de lhe retribuir o cumprimento, sentei-me num banquinho situado à sua
frente enquanto ela pronunciava as seguintes palavras: “Eu já tava indo, mas te vi na
encruzilhada e resolvi ficar. Como é que tá? Tá formosa? ”
173
Antes que eu dissesse qualquer coisa, Maria Bonita retomou um assunto que
há poucos dias fora objeto de minha conversa com o seu cavalo. Em tom afirmativo, a
entidade repetiu de forma enfática o que Mãe Mariinha já havia me dito sobre a relação
entre os espíritos e suas incorporações em homens, em mulheres e em adés. “A primeira
coisa que você tem que saber é que espírito não tem sexo. A vibração do feminino e a do
masculino vem do primeiro santo que a pessoa tem. É o santo de frente que designa se a
vibração é de exu ou de pombogira”.
exu Sete Catacumbas, exu Caveira, exu Sete Cadeados, pombogira Rainha do Cemitério,
pombogira Padilha do Cemitério, Padilha da Calunga, Maria Molambo, Dama da Noite",
dentre outros nomes.
Maria Bonita passou a explicar então que cada "trabalho" demandava certos
materiais, como também certos tipos de exus e de pombagiras situados numa determinada
“faixa de vibração”. As características benignas ou malignas do trabalho independeriam do
território ao qual o exu estaria predominantemente vinculado. Em seguida, tocou num tema
polêmico, relacionado às ações dos exus: "Exu trabalha conforme o pedido do cliente.
Todos têm a mesma faixa vibratória; depende do que é pago. Quem paga mais recebe o que
pediu mais rápido”. Complementando sua afirmativa, Maria Bonita valeu-se da seguinte
metáfora: "Exu é faca de dois cortes". Essa frase trazia implícita a possibilidade da entidade
de atuar em domínios contrários sem se responsabilizar com o desfecho de suas ações.
onde eu me encontrava, era possível ouvir estranhos ruídos, que me lembraram roncos
produzidos por animais. Indagando sobre aqueles sons inteirei-me de que se tratava de uma
“puxada”, uma prática ritual relacionada à “limpeza de carregos”. Conforme me foi dito,
não era mais Maria Bonita que estava no terreiro. Aquela pombagira havia “subido” e dado
lugar a Linda, uma outra pombagira que trabalhava no terreiro e cujos trabalhos ligavam-se
a “carregos” mais pesados.
No entanto, o tom das palavras ditas pela pombagira não remetia a nenhuma
atitude agressiva ligada a ofensas; ao contrário, evidenciava um tratamento jocoso, que
apontava para uma clara oposição entre as "putas" e as "santas", valorizando as primeiras
em detrimento das segundas. Aqui, está-se diante da inversão de um código moral presente
na sociedade brasileira que valoriza e "santifica" as mulheres da casa ou “de família”,
atribuindo “poluição” e “perigo” às chamadas "mulheres da rua", identificadas com as
prostitutas.
177
Ainda nesse percurso, dirigi o olhar para dentro da vila. Numa das esquinas
vi jovens conversando. A movimentação das pessoas em direção à porta do terreiro parecia
não lhes interessar. Lembrei-me das palavras de Eliane sobre os rapazes daquela localidade:
“Eles não querem saber de uma casa de oração. O negócio deles é a droga”. Mais uma vez
seu discurso parecia se confirmar.
Aqueles que saíam de outros bairros, rumo aos terreiros, não paravam em
suas imediações. Chegavam e logo entravam pela porta entreaberta. Como das outras vezes,
fui-me aproximando de sua entrada. Levemente, empurrei a porta e entrei. Descortinou-se
então o espaço onde aconteciam as sessões. Tão logo me situei na sala, vi no chão, à minha
direita, dois “pontos riscados” com um copo cheio de bebida e uma vela acesa sobre cada
um deles. Do lado contrário, encontrava-se uma grande cruz de madeira, e sobre ela uma
toalha de linho extremamente branca. No fundo, situava-se o congá, com variadas
estatuetas de “santos” e “guias” da umbanda.
espíritos as funções de mensageiros e protetores da casa. Acredita-se que sem a ação dessas
entidades o terreiro e seus ritos ficam sujeitos a toda sorte de perigo.
Após esse rito de entrada, tornava-se necessário realizar outra etapa ritual,
não menos importante. Tratava-se da limpeza ou purificação do terreiro. Seria por meio
desse rito que a casa e seus integrantes ficariam livres dos carregos capazes de atrapalhar os
181
Uma vez limpa, a casa podia receber as deidades que seriam chamadas para
trabalhar em seus espaços. Os atabaques sagrados, juntamente com os cânticos e as palmas
ritmadas, evocavam tais deidades que, uma vez no terreiro, anunciavam a sua chegada por
meio de seus pontos cantados.
Tratando-se de uma sessão destinada aos exus, a sua chegada a terra se fazia
por meio de pontos que, simultaneamente, os evocavam e os identificavam. Um primeiro
ponto cantado informava sobre as características daqueles exus que seriam chamados para
participar da sessão, enfatizando a sua condição de “batizados”. Depois de uma breve
ausência dos cantos e toques que pontuavam o rito, escutou-se, seguidamente, um ponto
cantado que anunciava a presença de tais entidades:
casa mantinham-se em pé, eretas, com o queixo ligeiramente projetado para o alto,
evocando certa altivez desafiadora.
Numa de minhas conversas com Roberto pouco tempo após a morte de Mãe
Mariinha, o líder do terreiro comentou que numa gira de exus (incluindo a pombagira, seu
pólo feminino) ocorriam várias situações. Citando as etapas desses ritos, ele as detalhava
nos seguintes termos: “Tem uma parte que os exus vêm, farreiam e cantam perto dos
atabaques. Tem a parte que eles vêm e prestam caridade. Tem a parte das puxadas e do
desenvolvimento. Tem a parte do cuidado e da defesa do consulente.”
eficácia mágica quanto ao laço criado entre o consulente e a entidade. Assim, consultava-se
com a entidade a quem era atribuído maior poder mágico ou com aquelas com as quais já
existiam laços afetivos.
Uma a uma, as pessoas iam sendo chamadas, até que não restasse mais
ninguém para consultar. Resumindo-se a poucos minutos de conversa, tais encontros com
os exus e as pombagiras revestiam-se de privacidade, pois os sons dos cantos e dos
atabaques adquiriam tal volume que, às vezes, não se escutava a voz da própria entidade
durante a consulta.
Numa das sessões que antecederam a festa anual realizada para os exus da
casa, a ialorixá fez uma série de recomendações. O primeiro aviso da mãe-de-santo referiu-
se à contribuição que cada um deveria dar para a compra dos itens necessários à produção
do evento. Nessa ocasião, a mãe-de-santo anunciou que prepararia uma mesa com frutas e
rosas de cores variadas, além de fazer dois tipos de farofa que comporiam a "comida do
chão", oferecidas aos exus. A assistência seria contemplada com algo "gostoso e barato".
Os vinhos ficariam a cargo dos médiuns.
Os ritos iniciais que abriam as sessões já tinham se realizado fora dos olhos
da assistência. Afinal, tratava-se de uma festa que não poderia se prolongar pela
madrugada. Assim, era necessário economizar tempo, sem suprimir qualquer etapa ritual. A
festa começou, então, como as outras sessões, ou seja, marcada pelo som dos sinos da
ialorixá. Seguiram-se alguns pontos cantados para Ogum e em seguida aqueles referentes
aos exus e pombagiras.
que até então permanecera como mera espectadora. Naquela noite, os membros da
assistência poderiam conversar com os exus e pombagiras que elegessem. Como acontecia
nas demais sessões de exu, as entidades permaneceram de pé, realizando determinadas
performances que as dotavam de singularidades. Alguns exus e pombagiras mantinham os
olhos fechados enquanto atendiam os consulentes. Outras entidades, mesmo incorporadas,
permaneciam de olhos abertos, entrecortando suas falas por risadas descontraídas.
Tal como ocorrera nas outras sessões da casa, esta festa transcorreu sem
qualquer tipo de excesso. Algumas das senhoras entrevistadas referiam-se de modo especial
ao comportamento de suas pombagiras. Uma delas, cujo cotidiano oscilava entre suas
atividades domésticas (de mãe e avó) e os trabalhos no terreiro, destacou a importância que
ela conferia à sua entidade. Numa frase curta, dita de maneira enfática e incisiva, afirmou
que não podia passar sem a sua pombagira, pois, afinal, era ela quem lhe trazia alegria.
Poucos minutos antes de sua entidade “subir”, ela ainda dançando e cantando com uma taça
e um cigarro nas mãos, remetia-se exatamente aos sentimentos de júbilo e alegria
comumente atribuídos à pombagira.
No fim da sessão, pouco depois que a sua “leba” subiu essa integrante
referiu-se ao seu prazer em trabalhar no terreiro “fazendo caridade”. Tal como ela disse,
aqueles momentos em que estava trabalhando incorporada, proporcionavam-lhe uma
intensa leveza. Era como se seu corpo “estivesse livre, flutuando no ar”. Aparentando mais
de sessenta anos, dos quais parte significativa fora destinada a trabalhar com os espíritos
dos terreiros, ela dizia que era essa vivência ligada à espiritualidade o que lhe dava força e
alegria para prosseguir na vida.
190
própria liderança do terreiro, motivadas por lógicas que estigmatizam homens efeminados?
Conversas com pessoas do terreiro não respondiam essas perguntas.
Buscando cotejar o que ocorria naquele terreiro com outras casas, referimo-
nos a um outro pai-de-santo da umbanda, que apresentava uma forte recusa em lidar com os
“adés” e os “homossexuais”, categorias de gênero que, segundo suas palavras, ficavam
restritas aos terreiros de candomblé. Criticando essa religião, o pai-de-santo defendia a
idéia de que na umbanda não existiam “homossexuais”. E se caso eles existissem,
certamente, seus comportamentos seriam discretos durante as sessões, evitando qualquer
efeminação. Aliás, explicitando que a pombagira se constituía em um espírito feminino e,
mais que isso, em “espírito sedutor”, esse babalorixá era totalmente contrário à
incorporação de pombagiras por homens, já que, com o passar do tempo, esses poderiam se
192
tornar “vítimas” dos gestos efeminados da entidade e, dentre outros perigos, passar a
“desmunhecar”.
gargalhada pouco discreta e pelo seu jeito sensual de fumar, eram elementos que, de
maneira geral, deixavam os homens vexados e temerosos diante da possibilidade de serem
tomados por gays. Numa sociedade perpassada por idéias e valores homofóbicos, tais
temores não eram infundados, pois, no mínimo, poderiam torná-los alvo de chacotas.
Como mais um exemplo, mostramos outro pai-de-santo que lidava com a sua
pombagira de forma tensa. Trabalhando na maior parte do tempo com um caboclo, esse
babalorixá recebia a sua pombagira uma vez por ano, numa situação bastante peculiar.
Temendo tornar-se objeto de risos e maledicências, fazia uma festa anual para essa
entidade, ocasião em que montava uma farta mesa com as comidas e bebidas prediletas da
pombagira. Vestido e adornado tal como a entidade lhe exigia, o babalorixá a recebia
durante um rito de caráter privado.
194
Apesar de essas idéias terem sido totalmente descartadas por outro filho-de-
santo da casa, acreditei que elas seriam bastante plausíveis, sobretudo porque, de uma
forma ou de outra, evidenciava-se um sentimento de mal-estar, ou um certo
constrangimento a respeito de performances femininas realizadas pelos homens da casa,
fato que contrastava com a liberdade das mulheres de virarem em “exus-machos” e
poderem, inclusive, realizar performances relativas a essas entidades.
Um ponto a ser destacado com relação às giras diz respeito ao fato de esses
eventos trazerem consigo dimensões bastante obscuras para aqueles que as assistem, sem
dominar seus códigos verbais e gestuais, os quais são perpassados por variados tipos e
graus de tensão, decorrentes das incorporações. Trata-se, realmente, de acontecimentos que
se situam entre dois domínios, ligados, muitas vezes, a situações opostas e antagônicas. No
terreiro de Mãe Mariinha viam-se alguns indivíduos cuja vivência da possessão era ainda
imatura no que dizia respeito ao domínio dos códigos e das normas pertinentes à doutrina
da casa convivendo com uma assistência que procurava o terreiro com um determinado
grau de expectativa, relativa não só à eficácia mágica de seus serviços, mas também à
196
Numa das vezes em que estive presente no terreiro, aguardei até o final da
sessão para conversar com o Roberto, o filho de Mãe Mariinha, que passara a liderar a casa.
Um dos assuntos que aflorou nessa conversa dizia respeito à relação entre os homens da
casa com as suas pombagiras, tema que percebi estar fora dos assuntos ali discutidos.
incorporações desses espíritos pelos homens daquele terreiro, o babalorixá explicou que o
fato relacionava-se a medidas tomadas por sua mãe, as quais estavam sendo seguidas por
ele. Eram atitudes ligadas à doutrina da casa, baseadas em certos fundamentos da religião.
Esclarecendo melhor este ponto, afirmou que, mesmo sem ser possível retirar uma
pombagira de alguém, existiam maneiras de afastar tais entidades da cabeça dos médiuns
durante as obrigações, o que evitaria que elas os perturbassem com incorporações não
desejadas ou indevidas.
problema do pessoal reclamando de outras casas e vindo para cá, ou seja, fugindo
das casas onde homens ficavam sujeitos a incorporar pombagiras. Não é ter
preconceito nem nada, é quase que uma defesa mesmo, desde antigamente. Mesmo
porque isso era visto de outras formas.
O preconceito já vem de fora para dentro. Tudo de fora influi nas coisas da
casa. Seja as energias negativas, ou as energias positivas. Tudo influi no
andamento, no jeito que uma casa vai funcionar. Se ela está numa favela ou
se ela está numa zona sul. Se os malandros do morro falam: oh! hoje não
pode ter sessão aí não, porque nós vamos ter tiro até acabar com o mundo.
Ou o pessoal da zona sul fala: oh! esse atabaque só pode tocar até as dez
horas aí. Tudo influi, tudo tem um preconceito. Então é um jeito que a gente
tem de preservar a casa, o médium, o nome de um médium, a cabeça de um
médium, pra ela não ficar dançada.
defendeu seu argumento citando a fala de um médium: “Pô, eu vou lá e o pessoal fica me
chacoteando. Eu tô fazendo uma coisa boa, e o pessoal fica lá, me chacoteando”. E
continuou a sua fala nos seguintes termos:
O médium que é bem preparado, não vai dar atenção pra isso, não vai ter problema
com isso. Com o tempo, o pessoal começa respeitar aquilo ali. Mas, como as coisas
então sendo de alto impacto, tem muita coisa mistificada. E tem várias coisas
erradas por aí. O pessoal rotula tudo, então a gente tem que ter um jeito de se
preservar e barrar certas coisas. Porque, senão, qualquer um que vem de fora fala:
Ah! Ali eu posso fazer uma marmotagem, né? Ah, aqui eu posso me esbaldar. Às
vezes, as pessoas nem são do santo, mas estão ali fazendo cenas e gestos, se
sentindo a vontade. Então é um jeito da gente falar: Opa! Aqui não. É um jeito de
pôr divisa nas coisas. Tudo vai de acordo com a doutrina. Tem muita casa que
aceita, que é normal da casa, os guias, os zeladores, entendem que é normal da
linha, tá tudo certo também. Então, aqui na casa é assim que a coisa funciona. Então
se chega um de fora, eu não ponho um texto para ele: é proibido pegar pombagira,
etc. Nas primeiras incorporações, algumas coisas são permitidas, o que é muito
excesso a gente traz pro canto, não deixa transparecer, né? No próprio espaço ritual
tem maneiras, palavras e jeitos. Então, à medida que a pessoa vai encaixando na
corrente, já vai se autodoutrinando. A energia da pessoa já vai se acomodando.
Como descreve um de seus membros, esse zelo fazia com que as sessões públicas
implicassem uma atitude de constante vigilância por parte da liderança e dos demais
integrantes da casa no sentido de observar e conter, quando necessário, comportamentos,
falas e gestos realizados pelas filhas e filhos-de-santo incorporados, tudo no intuito maior
de preservar a imagem do terreiro.
201
Nas nossas primeiras conversas, Liz mencionou o fato de ser filha de pais
católicos, mas pouco envolvidos com essa religião. Seu pai, o Sr. Gonçalves, era
ferroviário, enquanto a sua mãe, D. Sônia, exercia funções domésticas no lar, onde criou
seus sete filhos.
202
imediatamente, colocava as mãos nos quadris, exibia um sorriso irônico e, com a voz
notadamente feminina se identificava como “Rosinha”.
Assistindo a essas cenas durante toda a sua infância, Liz relata que na época
não conseguia compreender aquele comportamento do pai, homem zeloso com a profissão
e com os filhos. Afinal, o Sr. Gonçalves dizia detestar coisas relacionadas com os espíritos,
fato que Liz relembrava com o seguinte comentário: “Nosso Deus! Ele odiava o
espiritismo. Ele endoidava. Ele falava que aquilo era coisa de mulher sem o que fazer
dentro de casa que ia caçar centro de macumba”.
Somente depois de freqüentar os centros com sua mãe é que Liz disse ter se
conscientizado de que aqueles comportamentos do Sr. Gonçalves eram “obra de
pombagira”, entidade que “baixava” em seu pai, apesar de ele não manter qualquer vínculo
com os centros de umbanda. As pessoas alertavam D. Sônia, dizendo que se tratava de uma
entidade pouquíssimo evoluída e, portanto, perigosa para descer em sua casa. Preocupada
com esse fato, ela procurou um terreiro para afastar a entidade, cuja presença representava
um transtorno para a ordem familiar.
enfatizavam que aquilo era “cachaça posta” em sua vida por mulheres que queriam destruir
a vida do casal.
Uma dessas entidades ou, mais precisamente, a pombagira que descia em sua
madrinha era muito procurada pelas jovens do terreiro, principalmente na véspera dos
bailes semanais realizados naquela casa aos sábados. Como sublinhava Liz, o terreiro
constituía-se em um espaço de sociabilidade, que abrigava tanto ritos religiosos quanto
bailes, eventos nos quais as relações amorosas entre os jovens eram mediadas pelos
espíritos.
206
Depois de se reportar a esta cena, Liz concluiu afirmando que, tal como
aquele exu lhe dissera, pouco tempo depois ela conheceu o homem que futuramente viria a
ser o seu marido. Nessa fala, bastante carregada de afetividade, demonstrou um carinho
especial quando se referiu ao Seu Sete Montanhas, seu “amigo”, e “conselheiro”, seu
“psicólogo” , “pessoa” especialíssima, com quem podia contar nas horas difíceis em que
não tinha a quem recorrer.
fato que, segundo Liz, foi decisivo para que seu pai se desligasse totalmente de seu antigo
lar.
Pontuando a sua fala, Liz relaciona o ódio de sua mãe pela pombagira
interpretando esse sentimento como algo motivado pelo feitiço que teria afastado
definitivamente o Sr. Gonçalves da família. Essa raiva de D. Sônia pela pombagira era tão
intensa que durante os quase trinta anos de trabalho com os espíritos ela se negava a assistir
às incorporações da pombagira Rosa por seu amigo Arnaldo. Eventualmente, quando tal
entidade descia com suas performances femininas, diga-se de passagem, muito admiradas
por Liz, D. Sônia saía do local ou, contrariada, virava o rosto para o lado, repetindo sempre
a mesma frase: “Não adianta, em mim ela [a pombagira] não monta”. Segundo Liz, a
pombagira sabia desse desafeto por parte de D. Sônia, mas não se importava com aquilo.
Ela explicava que essa raiva da mãe pela pombagira, parecia “não ser de coração”, e
justificava:
Eu acho que ela tratava a pombagira como se fosse uma outra pessoa, porque ela
não xingava, ela não dava confiança. Simplesmente saía de perto da pombagira e ia
pra dentro de casa fazer alguma coisa na cozinha ou lavar roupa. E a pombagira
sabia dos seus sentimentos, mas não ligava, porque exu quando toma birra de uma
pessoa, ela tá ferrada.
Refletindo sobre esse fato, Liz enfatizou que um dos trabalhos mais
procurados pelas mulheres que iam até os pés de Pai José referia-se a mudanças de
comportamentos por parte de seus maridos. Além de “amansá-los”, Pai José também tirava-
lhes as amantes colocadas em suas vidas pelas pombagiras. Esse preto-velho valia-se dessas
entidades para livrar as mulheres que o procuravam dos mesmos malefícios que, no
210
entender de seu cavalo, teriam acabado com o seu casamento. Tais situações foram
relatadas por Liz nos seguintes termos.
Tinha casos de donas que chegavam lá chorando, que iam escondidas do marido.
Marido que não deixava a mulher chegar nem no portão, mas que tinha outra
mulher na rua. Marido que chegava tarde, ou dormia fora, sabe? Então Pai José
falava que aquilo era obra de pombagira. Assim ele fazia um trabalho pra
desmanchar aquele serviço feito contra a sua cliente. Ele fazia um trabalho com a
pombagira que tava atrapalhando aquele casamento, pra pombagira deixar aquele
casal em paz. Porque a pombagira atende quem dá o melhor: o perfume melhor, a
roupa mais bonita. Pra receber o melhor ela larga um trabalho e pega um outro.
Anos mais tarde, já com o seu casamento desfeito, Liz relacionou-se mais
diretamente com a pombagira que “descia” em Arnaldo. Referindo-se à relação desse pai-
de-santo com a sua pombagira, contou que essa entidade só descia quando havia algum
trabalho especial. Sublinhando uma dessas situações extraordinárias em que Arnaldo virava
na sua pombagira, Liz dizia:
Tinha umas ricaças que chegavam assim... aquelas louronas que chegavam de carro.
Tinha o dia especial dele receber a sua pombagira. Não era todo dia não. Não era
pra qualquer pessoa não. Eu mesmo vi a pombagira dele descer quando ele estava
com o terreiro de mamãe emprestado. Eu vi algumas vezes, mas era assim, caso
especial. E ele [o Arnaldo ] tinha cavanhaque né? E ela [a pombagira Rosa] tinha
ódio do cavanhaque dele, mas ela não podia mandar raspar, porque tinha uma outra
lei maior do que a dela que não deixava ele raspar. Tinha aquele negócio parecido
com o véu da dança do ventre, um véu assim vermelho que ele usava na boca
combinando com a saia vermelha. E era bonito. Era bonito demais. Ficava assim
uma mulher perfeita, até a voz dele mudava pra voz de mulher.
Esse acontecimento foi referido por Liz como um gesto de extrema amizade
por parte daquele pai-de-santo, que na ocasião lhe disse a seguinte frase: “Ó negona, não é
qualquer um que entra aí não, viu? É porque você tá no meu coração”. No entanto, Liz
penetrou naquele mesmo território da pombagira ainda numa outra ocasião, quando, tempos
depois, ela envolveu-se diretamente com aquela entidade por meio de um trabalho.
Segundo suas palavras, esse fato teria ocorrido na época em que ela se interessou pelo seu
segundo companheiro. Assim, antes de iniciar essa nova relação, Liz se valeu dos poderes
de Rosa, com o intuito de torná-lo fiel.
Liz relata que teria dito para aquele pai-de-santo que só queria ficar com o
Hélio se ele se tornasse um companheiro fiel. A resposta do pai-de-santo foi de que aquele
problema teria solução, argumentando da seguinte forma: “É só tirar a mulherada. Porque
212
tem pombagira que tira as mulheres do caminho dos homens, assim como põe as mulheres
na vida deles também”.
Ao se recordar desse trato que fez com o pai-de-santo, Liz relata detalhes do
trabalho feito com a pombagira Rosa, assim como aspectos referentes ao seu desfecho:
Eu lembro que na época foram vinte e um reais, não sei vinte e um cruzeiros novos,
há treze anos... E o Arnaldo disse: nós vamos entrar lá na casinha e você vai pedir a
ela [a pombagira] o que você quer. E daí eu pedi que queria ficar com o Hélio, mas
sem a mulherada. Era só eu. E ela [a pombagira] fez. A pombagira tirou a
mulherada dele, só que quando completou sete anos, certinho, o Hélio começou a
aprontar. Uma mulher se aproximou dele e tanto fez, tanto fez, que começou um
relacionamento com ele, mesmo sem ele querer. Aí, quando eu fui falar isto com o
Arnaldo, ele me respondeu assim: mas você fez um trabalho e sumiu! Aí eu vi que
eu tinha que ir renovando. Aí eu pensei: então não vale a pena. Eu vi que apesar de
ter vivido na umbanda muito tempo, eu era muito boba. Eu achei que fosse valer
pra sempre. Daí ele falou que era preciso renovar o trabalho. Aí eu respondi que
assim eu não queria mais. Aí a nossa relação foi só desandando. Era preciso uma
espécie de manutenção. E desse jeito eu não queria. O relacionamento foi piorando,
até que acabou.
Segundo Liz, nessa campanha Deus lhe deu “livramento” do trabalho feito
com a pombagira, mas que ainda assim a rival continuou a perturbá-la das mais variadas
maneiras.
Longe dos terreiros, Liz não se valeu mais de trabalhos realizados com as
pombagiras, mesmo nos momentos de dor e angústia. Conforme revelou, nas situações de
aflição, “batia o joelho no chão e orava contra o poder do inimigo”, e assim alcançava a
graça pretendida. Todavia, sem deixar de acreditar nos poderes maléficos daquelas
entidades que povoavam os terreiros e buscando combatê-las, passara a participar das
Sessões de Descarrego da IURD. No entanto, essas deidades ligadas aos terreiros
continuaram a ter um grande poder na sua visão de mundo e na vivência de seu cotidiano.
A mudança após a sua conversão é que passara a referir-se a essas deidades como
predominantemente vinculadas ao mal.
episódios mais significativos. Afinal, era a agência dessa entidade que, além de promover o
amor, explicava os atos violentos e as situações de crise vivenciadas por toda uma família.
Esse espírito feminino surgia no cotidiano de uma família, jogando por terra
um dos pilares centrais de seu sistema de idéias e valores, ou seja, a “masculinidade” do
pai, aquela figura que, além de, objetivamente, cercear comportamentos e definir destinos
num Brasil “tradicional”, encarna a própria noção de ordem. Pois bem, numa sociedade tão
afeita às distinções e hierarquizações entre papéis de gênero e, enfim, à polaridade homem-
mulher, esse espírito feminino, marcado por um alto grau de entropia, levava o pai de Liz a
se apresentar diante de sua família enfeitado femininamente (com uma flor atrás da orelha)
e a ativar gestos vinculados às performances da pombagira Rosinha.
Mas esse quadro de desordem não parava por aí. Aqui, é necessário lembrar
que nos momentos de possessão a pombagira Rosinha colocava em cena outro
comportamento, que também remetia a sua figura a uma zona sombria e ambígua criada
pela transgressão de limiares. Desrespeitando convenções relacionadas à comensalidade e à
quebra de normas de higiene doméstica, a pombagira levava seu cavalo a comer como um
animal, abocanhando a comida colocada no prato no chão, como também a se utilizar dela
para sujar as paredes da casa.
216
Assim, o que Liz chamou de “ritual da comida”, pode ser tomado também
como uma quebra de definições e limiares, ou seja, como uma transgressão de regras e
padrões higiênicos socialmente instituídos, capazes de pôr em questão os próprios limites
da humanidade. Nesse sentido, lembra-se as observações feitas por essa ex-umbandista a
respeito de seu pai virado na Rosinha, que o aproximavam de um “bicho” comendo no
chão. Adianta-se aqui, que essa categoria usada por Liz para tratar os exus surgirá
posteriormente ao referir-se às entidades que se manifestam na IURD.
trabalhos supostamente encomendados por outra mulher que queria se vingar do casal.
Afinal, o comportamento do marido sustentava-se na violência e na desordem criada pelo
uso excessivo do álcool, atitude fortemente identificada com a classe dos exus.
de-santo de Recife, que, ao mostrar-lhe o seu assentamento de Tata Caveira, afirmou que
gostava mesmo era de fazer trabalhos para o mal, usando “exus bem pesados, apanhar terra
de cemitério, unha de cadáver, colocar nome de pessoas na boca de cavalo morto e outras
coisas do tipo” que tocam e transgridem tabus referentes à morte.
Nos relatos de Liz sobre o terreiro de sua mãe, a clivagem entre o bem e o
mal surge associada às atividades de D. Sônia e às de Arnaldo. Enquanto a sua mãe
“virada” em Pai José se utilizava dos exus e das pombagiras apenas para desmanchar o mal,
Arnaldo usava essas entidades, da “esquerda”, para fazer feitiços pesados que lhes eram
encomendados ou para revidar demandas endereçadas a ele. Com efeito, esses trabalhos
concretizavam a violência potencial, assim como a desordem atribuída aos exus e às
pombagiras, aspectos negados pela maioria das religiões relacionadas ao cristianismo e que
encontraram lugar em ritos vinculados à umbanda (CARVALHO, 2003, p. 88).
\Em muitos casos, essa violência interna à religiosidade brasileira presente no
campo umbandista se relacionará com os símbolos que evocam terror, como o
cemitério, cujo significado prévio, que é cristão, torna-lo-á associado ao perigo e
aos medos constituídos por um imaginário ligado à negatividade e à morte
(CARVALHO, 2003, p. 99).
Tal como comenta Carvalho (2003, p. 102) “[...], o fascínio desse conhecido
caso policial reside na concretização dessa violência atribuída aos espíritos da ‘macumba’,
ou seja, ao de a pombagira ser considerada a indutora de uma morte real.”
Foi assim que a família de Liz começou a conviver com aquela entidade bem
humorada, cuidadosa e paciente, que se constituía na alteridade radical de D. Sônia,
sobretudo no que dizia respeito a humor, paciência e bons tratos dedicados às crianças.
situada nos baixos patamares hierárquicos da “esquerda” no caso, a pombagira Rosinha, foi
superada por meio de trabalhos que afastaram de uma vez por todas aquele espírito da
família de D. Sônia. O passo seguinte se constituiu na presença de uma entidade da
“direita”, que impôs ordem naquele contexto familiar. No entanto, é necessário sublinhar
que, para afastar a pombagira que atormentava a família, foi necessário afastar do lar o
médium que a incorporava: o próprio marido de D. Sônia.
Como bem aponta Hayes (2005), seguindo pistas sugeridas por Birman
(2005), as características e os comportamentos das entidades são regulados por uma lógica
própria e impõem suas próprias demandas. Ora, tal lógica, geradora de comportamentos e
desejos, pode, muitas vezes, estar em desacordo com os desejos, habilidades e escolhas dos
sujeitos que incorporam as entidades (HAYES, 2005). Esses descompassos implicam
tensões e, até mesmo, indisposições entre essas duas partes, sobretudo no caso de
pombagiras e exus, entidades desordeiras e transgressoras, capazes de representar, muitas
vezes, o avesso da conduta social e culturalmente adequada às várias situações. As
seguintes colocações de Birman auxiliam na compreensão desse descompasso entre as
perspectivas dos médiuns e a de seus espíritos. “As entidades abrem caminhos que nem
sempre a pessoa pode seguir, fecham outros em momentos inconvenientes, prometem
sucesso sem dar ao médium as condições para garanti-lo, punem seus inimigos sem levar
em conta, por vezes, que as médiuns, apesar de tudo, precisam deles ao redor de si.”
(BIRMAN, 2005).
222
No que diz respeito aos filhos, esse afastamento radical do pai também
significou uma importante perda. Afinal, mais que um mero provedor, o Sr. Gonçalves era
um pai amoroso, que dava aos filhos a afetividade negada pela mãe. Assim, os trabalhos
realizados nos terreiros para livrar aquela família da pombagira Rosinha resolveram um
problema, mas criaram outros relacionados à ausência total do esposo e do pai no ambiente
familiar. Depois de cortados os vínculos com a família, o pai nunca mais regressou ao
antigo lar, tendo morrido em Montes Claros sem que os filhos pudessem ao menos se
despedir dele.
Percebendo que o feitiço para afastar o marido de casa surtiu resultados não
esperados, D. Sônia tentou revertê-lo, sem sucesso. A solução encontrada por essa senhora
foi, então, intensificar os “trabalhos” com uma entidade que a ajudou significativamente na
criação dos filhos e, enfim, no ordenamento doméstico. No entanto, é preciso atentar que
essa ajuda, desde o início, significou um preço a pagar.
Como enfatizou Liz, tão logo a mãe começou a trabalhar com o preto-velho
ocorreu uma forte reação por parte da vizinhança. Muitas das senhoras, antigas colegas de
D. Sônia, também esposas de ferroviários, passaram a não cumprimentá-la. Não foram
poucas as vezes que Liz ouviu insultos chamando-a de “tisil, filha de macumbeira largada
pelo marido”. Somente depois de um tempo significativo é que essas mesmas pessoas
passaram, freqüentemente, a procurar Pai José para cuidar, sobretudo, da saúde de seus
filhos e netos.
223
Aqui, surge uma pergunta referente à aceitação da pombagira nesse meio tão
avesso ao feitiço e perpassado por preconceitos referentes à cor da pele e aos aspectos
morais: Qual seria a reação dessa vizinhança se, ao invés de um preto-velho, D. Sônia
recebesse uma pombagira? Arrisca-se dizer que esse tipo de rejeição e descriminação
tenderia a ser maior, pois, além de ser negra, de estar ligada ao feitiço e de ter um marido
absolutamente ausente, D. Sônia passaria também a ser identificada com um tipo de
sexualidade exacerbada. Tal atributo seria muito perigoso e comprometedor para uma
mulher inserida naquele meio, no qual prevalecia um tipo de moralidade conservadora.
problemas do cotidiano. A fala de Liz revela-nos essa relação paternal da entidade com ela
e seus irmãos.
Ele era como se fosse uma pessoa da família. Sabe aqueles pretos-velhos alegres,
sorridentes? Quando a gente queria falar com ele, contar uma coisa que tivesse
acontecido, a gente ia até o toco pra conversar. A gente também ia até ele quando
tinha algum serviço a vista e pedia: Oh, Pai José, a gente, tá arrumando um
emprego, o senhor corre a gira lá pra nós. Aí ele pedia pra gente escrever o
endereço. Aí a gente escrevia e ele ficava trabalhando com aquele papel na mão.
Ele também ajudava quando tinha prova. Ele pedia para chamar a pessoa e falava:
Você vai fazer prova amanhã, então, antes de sair, você faz isto. E com Gláucia,
minha irmã, ele falava: segura sua língua, você está respondendo muito o cavalo.
Não pode fazer isto não. Você tem que segurar a sua boca.
Tem uma coisa que eu aprendi com ele: mesmo que o cavalo esteja errado, se você
calar você ganha.
A relação da minha mãe com Pai José era tipo mulher com marido, ou irmão
mais novo com irmã mais nova. Ela não obedecia ele assim, muito não, sabe?
Quando a gente ficava sabendo de alguma coisa da família através dele, a
gente contava pra mamãe e ela dizia. Eh! Pai José é fofoqueiro![e Liz sorri
lembrando esse fato] Sabe essas coisas, é como se fosse uma pessoa. Mamãe
falava dele como se fosse uma pessoa e não uma entidade. Quando a gente
fazia alguma coisa errada, que não agradasse a ele nem a mamãe, ele
chamava a atenção, até depois que eu estava casada. Na família ele
representava um tipo de autoridade. Era como se fosse um pai pra nós.
Todavia, Liz sublinhava o profundo respeito que nutria por essas entidades,
assim como a sua consciência dos limites que deveria guardar diante delas. Isso foi dito por
ela nos seguintes termos: “Eles [os espíritos] eram percebidos e tratados como mais um da
família, como ‘entidades-pessoas’ ao mesmo tempo. Mas, a gente sabia até onde podia ir
com as brincadeiras. Existia uma barreira invisível que a gente sabia que não podia
transpor. Nós sabíamos dos limites da gente.”
7.5 A “Passagem”
Tudo começou num dia inteiro de incorporação por parte de D. Sônia, que
recebeu um recado de pai José avisando-lhe que viria uma forte demanda oriunda de outro
terreiro. Tratava-se de um feitiço que aquele preto-velho estava desfazendo, cujos autores,
insatisfeitos com a entidade, pretendiam se vingar, lançando sobre seu cavalo um forte
malefício. Zelando por aquela que o incorporava, Pai José prescreveu-lhe um banho feito
com folhas. No entanto, ele avisou que tal providência deveria ser realizada até a meia noite
daquele dia, pois seria esse rito de limpeza que deixaria D. Sônia imune aos carregos
pesados enviados pelo terreiro inimigo.
Apesar de avisada, D. Sônia desobedeceu a sua entidade, dizendo que estava
muito cansada para buscar aquelas ervas. Como resposta ao preto-velho, D. Sônia teria
mesmo resmungado que Pai José achava que ela era tão desocupada quanto ele, e que por
isso poderia ir buscar folhas naquela hora, já tarde da noite.
Liz confirmou que a mãe não tomou o referido banho recomendado por seu
guia e que no dia seguinte já começou a dar sinais de estar acometida por alguma
227
Todas essas atividades rituais dos pais-de-santo fizeram com que o ambiente
daquela casa sofresse uma forte transformação. Acamada e vestida toda de branco, D. Sônia
se via rodeada pelos babalorixás, que periodicamente, realizavam limpezas rituais com
pipocas, item diretamente relacionado com Obaluaê, o orixá que rege a saúde e a doença, a
vida e a morte.
Liz relata que sua mãe permaneceu acamada durante todo o dia, enquanto
seus familiares preparavam a festa. Por volta do anoitecer, os convidados começaram a
chegar e a se acomodar na sala, próximos ao leito de D. Sônia. Instalada nesse espaço e
228
participando da festa como podia, num determinado momento D. Sônia pediu aos seus
filhos a saia branca que costumava usar para receber o seu guia. Ela argumentava que
queria pelo menos saudar a “caixa”, ou seja, o atabaque sagrado que invoca as entidades
dos terreiros.
morreu mesmo, porque ela foi saudar os pretos-velhos e ela chegou a receber.
Na hora em que subiu, o espírito levou ela. Foi por isso que todo mundo
ficou com raiva do Arnaldo, porque ninguém queria entregar a saia e ele
disse: entrega. E ele falou que sabia que isso ia acontecer. Ele disse: se D.
Sônia queria era isso, porque não fazer a última vontade dela? Todo mundo
ficou com raiva, todo mundo desiludiu, desencantou. A gente achou que a
doutrina não valia nada, que era uma bobagem. O dinheiro que a gente
gastou com aquilo tinha sido mal empregado. Agora, eu acho que o único
que tem poder de salvar é Deus.
No caso das relações entre D. Sônia e Pai José, esse tipo de tensão não
existiu, mesmo porque, antes de intensificar os trabalhos com aquela entidade, seu marido
com os maridos das médiuns que lhe servem de cavalo. Pai José surge como
um ente familiar agregado à casa de Liz, que ao invés de demandar atenções para si, doava
carinho e cuidado para os que lhe procuravam.
sentar no toco para os outros. Ela podia estar no tanque lavando roupa, e se
chegasse uma pessoa ela atendia, principalmente se fosse criança. E depois, todo
mundo voltava lá pra agradecer. Foi um lado muito positivo da vida dela. Ela ficou
menos amarga e recebia melhor a gente. Ela mudou muito, principalmente com as
crianças, com os meus filhos, que começaram a ir passar o dia na casa da avó. A
caridade fez com que ela mudasse para melhor. Fez bem pra ela.
Agora, depois que eu passei a não acreditar mais nisso, eu fico pensando: ah! se ela
tivesse dedicado essa vida pra outra coisa, ela não teria morrido. Se ela tivesse se
entregado só pra Deus eu acho que ela estaria viva. Se ela tivesse se tornando
evangélica não precisava ser da IURD não, porque o evangélico só crê em Deus.
Ele é a máxima potência E ela bateu cabeça, se ajoelhou durante muitos anos
diante do que, eu acredito agora ser uma ilusão. Mas olhe, isto tudo o que eu
te disse é com relação ao meu passado. E como se diz, passado é uma coisa
que a gente deixa o vento levar...
232
8 POMBAGIRAS NA IURD
Ainda no que diz respeito a esses rituais, verificou-se que nas várias Sessões
de Descarrego analisadas, percebemos uma homogeneidade no que dizia respeito à
estrutura dos cultos, cuja “oração forte” constituía o eixo principal a partir do qual se
organizavam, outros ritos com suas diversas performances.
Nessa igreja, ocorriam sessões pela manhã e à noite, sendo que essas últimas
eram lideradas por um pastor que, segundo me informaram, tinha sido pai-de-santo na
Bahia. Liz freqüentava esse templo há sete anos. Íamos juntas a algumas sessões e
conversávamos sobre elas durante nossos encontros.
outras sonoridades. Era nesse contexto que todos esses sons se somavam e se chocavam,
trazendo para o ambiente uma cacofonia peculiar.
Naquela noite, experimentei mais uma vez tal prática ritual. Em determinado
momento, um dos obreiros que circulava no meio da assistência chegou junto a mim,
segurou a minha testa com uma das mãos e a nuca com a outra e começou a repetir num de
meus ouvidos as seguintes frases: “Você, pombagira, que está escondida na casa dela, no
quarto dela, trazendo a infelicidade dela, manifeste!”. Depois de pronunciar uma série de
acusações à pombagira que supostamente estaria causando a minha infelicidade, o obreiro
pressionou a minha cabeça por três vezes consecutivas, bradando, seguidamente, num tom
dramático e definitivo a frase: "sai! sai! sai!". Tal ordem era acompanhada por um gesto
brusco que alternava a pressão de suas mãos sobre a minha cabeça com a expansão do seu
gesto no ar, tão logo elas se soltavam. Essas performances traziam consigo uma
expressividade própria, uma dramaticidade ligada ao embate entre as forças envolvidas
237
naquela “batalha espiritual”. Com efeito, durante as pesquisas realizadas nessas Sessões de
Descarrego observei a importância desse momento relativo ao ato de “manifestar” e os
significados que ele adquiria para muitas daquelas pessoas ali reunidas.
Acreditava-se que quanto mais abençoado fosse o indivíduo maior poder ele
teria perante Deus e mais forte seria a sua capacidade de “repreender” e “amarrar”, “em
nome de Jesus”, os vários demônios que se aproximassem dele.
Situada entre os fiéis, notei que bem perto de mim, uma mulher apresentava
sinais de estar “manifestando”. Buscando me inteirar daquela cena, voltei o meu rosto para
aquela direção e, rapidamente, olhei o local onde essa senhora se situava. Tão logo
percebeu essa minha atitude, uma obreira imediatamente caminhou em minha direção para
intervir sobre as forças malignas que, supostamente, estariam atuando sobre a minha
pessoa.
Com efeito, naquele contexto, o meu ato de abrir os olhos fora interpretado
como a "manifestação do espírito da desconfiança". Era "ele", o “inimigo”, que,
supostamente, fazia com que eu agisse daquela maneira, contrária à conduta dos outros
integrantes do rito. A obreira colocou as mãos sobre a minha cabeça e começou a
“repreender” aquele demônio que me impedia de comportar tal como o rito exigia.
Após esse ato, as obreiras entregaram os demônios ao pastor, para que eles
fossem “entrevistados”. Esse ato tornava-se essencial ao rito, pois era por meio da
confissão do demônio que a assistência poderia identificá-los, bem como conhecer os
malefícios que criavam para pessoas desatentas com relação aos seus poderes.
No entanto, essas acusações não bastavam. Era preciso que a cena ritual
colocasse em foco, e com cores fortes, a situação de “humilhação” da pombagira, que por
obediência ao poder divino, tinha que se identificar. Mais uma vez, observava-se uma
significativa inversão. Se nos terreiros as entidades que desciam se anunciavam
voluntariamente, por meio dos pontos cantados e festejados, nas Sessões de Descarrego as
pombagiras eram fustigadas até dizerem o seu nome.
diante daquelas cenas, que a colocavam face a face com o seu medo do demônio. Como ela
relatava, tratava-se do temor de dar “brechas” e assim, permitir que o demônio atuasse em
sua vida, levando-a a cair em pecados relativos ao sexo e à prostituição. Justificando esse
temor, a jovem se expressou nos seguintes termos: “A palavra não diz que o diabo veio ao
mundo para matar, roubar e destruir? Então, a gente não pode querer isso para a gente,
pode?” Para resolver essa angústia, a única solução vista por ela seria a de se manter repleta
do Espírito Santo, pois onde ele estivesse não existiria espaço para a entrada e permanência
do demônio.
Voltando às etapas do rito, estava claro que não era fácil submeter aquelas
entidades demoníacas ao domínio do bem. Para isso, os condutores do rito não mediam
esforços. Inicialmente, o pastor “entrevistava” alguns dos demônios ali presentes para que
eles se identificassem e confessassem o mal que estavam praticando contra aqueles que se
encontravam sobre o seu poder. Em seguida, o pastor desafiava essas entidades, fazendo-as
render-se publicamente diante do poder divino.
Decorria daí o pedido feito pelo pastor aos presentes para que se
dispusessem a doar. Partindo de quantias mais elevadas, o pastor ia abaixando o valor das
ofertas, ao mesmo tempo em que ressaltava que, por se tratar de doações essenciais à
“queima” dos “demônios”, quanto mais necessárias fossem no dia-a-dia de seus donatários,
mais valiosas se tornariam diante dos olhos de Deus.
Em seguida, o pastor solicitou outro tipo de ação, que levaria à “queima” dos
demônios ali presentes. Nesse sentido, foi pedido à assistência para que se mantivesse de
pé, com os braços levantados e as mãos voltadas na direção daquelas mulheres que tinham
“manifestado”. Concentrados e envoltos pela fé, os indivíduos ali reunidos deveriam dizer
três vezes a palavra “queima” e, depois desse gesto, dizer também três vezes a palavra
“sai”, seguida de outro movimento, no qual os braços e as palmas das mãos estariam
voltadas para trás, como se jogassem ou expulsassem o demônio para longe.
Depois de outras tantas ações anunciadas pelo pastor, cujo objetivo principal
era a realização de “campanhas” voltadas ao descarrego, o rito terminou com a derrota do
demônio. Uma vez "queimado" e neutralizado pela força do Espírito Santo, o diabo saiu de
245
cena tal como havia entrado, ou seja, pelo clamor daqueles que, acreditando no poder de
Deus, encontravam-se ali reunidos em busca de purificação.
do Outro, nos movimentos que gera e nas modificações que cria na própria cultura, pelos
traços que deixa e pelo impacto que produz [...]”
das pessoas e dos acontecimentos que as envolvem” (BIRMAN, 1997, p. 71). As pessoas,
por sua vez, vinculam-se aos espíritos por diversos motivos e razões. Seja por herança, seja
porque trabalharam com os espíritos, ou porque “deram brechas” para que eles tomassem
conta de sua vida. Pouco importa o motivo. O que não se pode é perder de vista a
perspectiva de que os espíritos são entes que se definem sempre por meio da relação
privilegiada estabelecida com as pessoas. Não há como fugir dessa relação. Da mesma
forma, as pessoas são sempre concebidas em relação ao vínculo que estabelecem com os
espíritos. Não há como escapar desse elo estabelecido entre indivíduos e espíritos seja esta
aliança tênue ou forte. Birman (1997, p.72) afirma que “[...] o desejo de qualquer espírito,
na leitura destes religiosos, é, pois, de ‘entrar’ e de permanecer ‘perturbando’ as pessoas,
fazendo com que estas experimentem os infortúnios mais diversos [...]”.
possuem, todas, o caráter de uma purificação: a cada momento é preciso ‘limpar’ o corpo, a
pessoa e o ambiente da presença do mal.”
Tal como relatou Liz, uma senhora que fora obreira da IURD, contou-lhe
que o ato de “repreender” e “amarrar” os demônios acontecia a partir da percepção de que o
mal causado a uma pessoa resultava de um problema espiritual. Buscando impedir a ação
demoníaca, as pessoas poderiam fazer valer o “poder das palavras” e cortar aquele mal,
“repreendendo” e “amarrando” os demônios que o causou. Uma vez despojado de seu
poder e sem legalidade para agir no corpo e na vida daquela pessoa, o demônio procuraria
“brechas” para atuar em outras vidas, deixando os fiéis.
Várias pessoas ligadas a IURD reiteravam que tal frase enfatizava o poder
de Jesus, pois, afinal, se não fosse Ele, quem seríamos nós para “repreender”, “amarrar” e
“queimar” demônios? Só a partir de Jesus isso seria possível. Era a “Ele” que se devia
251
recorrer para intervir nas coisas do mundo. Até mesmo ao pastor era atribuída a condição
de mero intercessor perante a divindade. Deus, Jesus e o Espírito Santo consistiam na fonte
de onde emanava todo o poder de ação sobre as coisas do mundo, fossem elas materiais ou
espirituais.
Tal crença somava-se a outra, representada pela idéia de que aqueles que
clamavam e serviam a Deus com fé e dedicação recebiam mais facilmente as graças divinas
baseadas no merecimento. Essa noção se sustentava na idéia de que os servos do senhor
mantinham constantemente sua atenção nas artimanhas do inimigo, buscando levar uma
vida sem pecados, sustentada na atenção e na vigília com relação à presença demoníaca, na
oração e na prática do jejum sacrificial e purificador.
Eram esses três elementos que, articulados e perpassados por outras práticas
rituais purificadoras fundamentadas na fé, dotavam os indivíduos de poder, tanto durante as
sessões de Descarrego quanto ao longo da vida cotidiana. Ao contrário de um dom
concedido a alguns poucos eleitos, esse poder dependia da postura ética e interiorizada de
uma vida entregue a Jesus, somada a práticas rituais purificadoras que, semanalmente, eram
realizadas na igreja durante as Sessões de Descarrego e as Sessões de Libertação.
pombagira era vista como um demônio dotado de atributos especiais, que a distinguiam de
outros diabos. Tratava-se de “encostos femininos” dotados de poderes especiais, sobretudo
na área da sexualidade, espíritos que, no domínio sexual, tinham o poder de “desviar”
maridos e esposas do casamento, de fazê-los prostituir e de levá-los ao adultério, dentre
outras ações consideradas pecaminosas.
Percebidas nos ritos da Igreja, assim como nos pequenos atos do cotidiano,
as pombagiras deveriam ser mantidas “amarradas”, para não interferirem na obra de Deus
nem impedirem os indivíduos de se entregarem à glória do Espírito Santo. Se nas Sessões
de Descarrego a atuação dessas entidades se evidenciava por meio de performances rituais,
na vida diária esses gestos surgiam entrelaçados nos atos aparentemente banais do
cotidiano. Assim, tão logo fossem percebidos deveriam ser “amarrado em nome de Jesus”.
Mas como reconhecer se uma pessoa estaria ou não movida pela força
demoníaca da pombagira? Diante dessa questão, as opiniões variavam, mas em alguns
pontos se convergiam. Um desses pontos de convergência consistia na maneira de olhar da
pombagira, algo que dotava aquele que a incorporava de uma expressão absolutamente
sedutora. Essa sedução não emanava de trajes ou acessórios, mas vinha à tona a partir de
determinados tipos de olhar, somados a outros gestos, como a maneira sedutora de segurar
o cigarro ou de cruzar as pernas.
Como foi enfatizado por uma obreira da IURD, era bastante comum
surpreender alguém fazendo determinado gesto ou, mesmo, portando um olhar sedutor e,
poucos instantes depois, “manifestar” o espírito ou o “encosto” da pombagira. Essa
capacidade de seduzir por meio de artimanhas foi revelada por uma senhora que antes de
entrar para a IURD freqüentou durante anos um terreiro. Referindo-se a esse poder sedutor
da pombagira, ela relatou que durante o tempo em que recebia essa entidade tornou-se alvo
da paixão de um rapaz bastante mais jovem que ela. Ao explicar essa paixão do rapaz, ela
se referia ao poder da pombagira em mudar-lhe a face, fazendo com que o jovem visse o
rosto de uma mulher belíssima e irresistivelmente sedutora. Mesmo sabendo desse poder
ardiloso da pombagira, ela dizia que o fato de ser alvo da paixão desse rapaz começou a
253
Na hora em que o pastor chega, já começa com a oração forte e aí ele manda
todo mundo levantar, fechar os olhos e começar a fazer seus pedidos. Aí ele
começa a clamar a Deus, quase uns quinze minutos. Depois, o pastor pede
que todo o mundo levante as mãos, feche os olhos, e então ele começa a orar
por todos que estão lá, para poder descarregar. É no momento que tem a
manifestação. A oração que ele faz é reforçando os nossos pedidos com as
palavras dele. Ele intercede. É uma interseção pelos pedidos que a gente faz
a Deus. Aí, quando ele faz essa oração, ele diz: se tiver algum demônio, Meu
Deus, que estiver aí numa pessoa, manifeste agora. É o momento que ele
manda manifestar o que tiver de mal escondido no corpo da pessoa, na casa
da pessoa, na vida dessa pessoa.
umbanda. Evidenciava-se que ela percebia os gestos das obreiras e obreiros como uma
repetição dos atos realizados pelos filhos e filhas-de-santo dos terreiros, que se valendo de
um certo repertório corporal e gestual protegiam os médiuns iniciantes na gira.
Citamos outro exemplo oriundo dos terreiros e ressignificados por meio dos
ritos da IURD e, sobretudo, das Sessões de Descarrego.
258
Depois de relatar tal cena, Liz estabeleceu uma correlação direta entre
aquelas falas e gestos do pastor e as frases ditas por sua madrinha no seu terreiro de
umbanda:
Porque no centro de umbanda, onde tinha esses tipos de exu ruim, só mandava subir
[os exus]. Porque na igreja manda queimar e no centro manda subir. Porque quando
a pessoa que tava com o exu rodava no centro onde tinha uma pilastra bem no meio
da sala, a minha madrinha gritava: cuidado com a matéria, cuidado com a matéria,
não machuca ela não! Não machuca ela não! Era para o exu não deixar machucar a
pessoa. Por isso é que quando esses trens ruins vão embora a pessoa não sente nada.
Se cair não machuca e nem sente dor. É tanto, que dia de exu no centro era na sexta
feira, chamava dia de “puxada”, dia de fazer “puxada”. Aí o pessoal vestia
totalmente de branco, e na Universal é a mesma coisa. Dia de descarrego o pastor se
veste da cabeça aos pés de branco e ainda fica em jejum pra poder queimar os
bichos. Para poder ter força, porque eles [os bichos] não podem sobre ele [o pastor]
de jeito nenhum se ele [o pastor] tiver em jejum e em oração.
na praça, que o meu corpo rolava no meio da praça, num lugar cheio de roseiras. Eu
escandalizei o bairro inteiro. E foi preciso que o pessoal do terreiro, o pai-de-santo
viesse, na época, e me levasse. E eu acordei três dias depois, amarrada no terreiro.
Já tinha três dias e três noites que eu estava nas mãos daquele demônio, daquela
pombagira.
Nesse sentido, Ruth referiu-se a uma verdadeira “reforma moral” sofrida por
ela desde a sua conversão. Conforme dizia, a sua vida tinha mudado radicalmente desde
que "conhecera Jesus”. Ao invés de beber e de se prostituir, como dizia ter feito na época
em que freqüentava os terreiros, tornara-se uma “mulher de Deus”. Sua vida afetiva e
sexual desregrada tinha se transformado em outra radicalmente oposta. Ela tinha se casado,
261
tinha filhos e dividia seu tempo parte com Jesus, parte com seu trabalho e com suas
atividades de mãe e esposa. No entanto, fora longo e difícil o caminho de sua “libertação”.
Com efeito, nos terreiros, longe de ser concebida como uma das faces do
demônio, a pombagira é uma entidade ao mesmo tempo ligada aos pólos do bem e do mal.
Reconhecida como uma deidade exigente, poderosa e, não raramente, vingativa, a
pombagira é muitíssimo bem tratada e até mesmo reverenciada pelo povo-do-santo.
9 CONCLUSÃO
Podemos afirmar que essa entidade traz consigo uma dimensão dionisíaca,
manifesta na expressão da alegria, no prazer desmedido, no amor ilícito, na paixão violenta,
que, no limite, pode gerar a morte. Se nos terreiros pesquisados essa dimensão marcada
pelo “excesso” é considerada um traço positivo, desde que passível de certo controle, o
mesmo não ocorre na IURD, campo religioso no qual a pombagira surge como uma
entidade feminina demoníaca, associada exclusivamente ao mal.
Aqui, vale abrir um parêntese e situar essa entidade num imaginário gestado
num período de longa duração, com suas figuras femininas liminares: tais como Maria
Padilha, a cortesã do século XIV, ou, seja, a “Outra”, a amante real capaz de enfeitiçar seu
parceiro, o Rei de Castela, e tornar-se senhora de suas vontades. Dona de infindáveis
feitiços, Padilha atua pelos séculos como poderosa diaba e, depois, como pombagira,
resolve questões amorosas sem se importar com o bem ou com o mal.
Assim, tomados por tais entidades, ou apenas sob a sua poderosa vibração,
potencializada durante ritos e festas, indivíduos e grupos ligados aos terreiros partilham e
vivenciam um universo imaginário e performático mais livre do que aquele constrangido
pelas normas e valores da sociedade mais ampla.
Como foi enfatizado ao longo deste estudo, a possessão pela pombagira traz
consigo certos cuidados e preocupações por parte daqueles que se sentem mais próximos
dessa entidade. No caso dos homens, mostramos alguns comportamentos que marcam uma
forte evitação de se tornar cavalo dessa entidade.
266
médiuns da casa deveriam ser os primeiros a dar exemplo aos visitantes e novatos. Tal
postura ficou clara quando, quase no final da pesquisa, o babalorixá da casa me explicou
que tão logo os homens recém ingressos no terreiro entravam em contato com a vibração da
pombagira havia um procedimento doutrinário que evitava a sua “virada” naquela entidade.
Informados desse procedimento, aqueles que estivessem auxiliando nas giras levavam esses
médiuns para o fundo do salão, lugar onde o espírito era “doutrinado” sem que essas
pessoas ficassem expostas aos olhos da assistência.
Mas, nossa incursão pelos terreiros mostrou que as tensões trazidas pela
incorporação da pombagira não se restringiam somente aos homens, inseridos numa
sociedade homofóbica como a brasileira (FRY, 1985; MOTT, 1996). Mesmo que em menor
grau, tais conflitos também diziam respeito às mulheres.
268
Enfatizamos que esse ato de doutrinar espíritos vincula-se não somente aos
aspectos religiosos da umbanda, visto que implica a evolução das entidades no plano
espiritual, mas também relaciona-se à necessidade do próprio terreiro de se manter inserido,
sem maiores problemas, na sociedade abrangente, com seus códigos de conduta e regras
morais.
espécie de “puta recatada”, e a Zureta, pombagira que, de maneira explícita, declarava seus
interesses sexuais pelos homens presentes nas sessões.
de-santo de maneira alguma, pois, afinal, era muito perigoso, podia “até desmunhecar o
homem”.
Ao proferir essa opinião por meio de tais frases, essa filha-de-santo nos
remete a um contexto sociocultural no qual o ato de "desmunhecar" é visto como algo
extremamente negativo, ridicularizado e estigmatizado (FRY, MAC RAE, 1985, p. 41).
Aliás, como bem observam Fry e MacRae (1985), nesse Brasil popular, onde
os papéis sexuais são rigidamente separados, aos homens e às mulheres são atribuídos
determinados comportamentos, funções e gostos que se tornam elementos fundamentais na
construção de suas identidades sociais e sexuais.
acrescentar outro item à lista dessas proibições e dizer que “homem que é homem não vira
em pombagira” ou, pelo menos em público. É esse tipo de lógica social que permite-nos
entender a proibição e o temor diante da possibilidade de os “homens-mesmo” receberem”
pombagiras.
brasileiro como o malandro, aquele personagem da cena social brasileira que, nas antigas
rodas de baralho, nos botequins e mercados, surgia bebendo cerveja e cachaça, sempre
cercado de mulheres.
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