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SEMÂNTICA

E PRAGMÁTICA

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SEMÂNTICA E PRAGMÁTICA

APRESENTAÇÃO

Olá, prezad@ alun@!

Neste módulo estudaremos duas disciplinas: Semântica e Pragmática. Sempre que


iniciamos uma disciplina, nós, como alunos, desejamos logo alguma definição precisa. Trata-se de
um desejo natural, pois é a partir dessa definição que nos situamos em nossa caminhada pela
disciplina. A definição chega a ser um roteiro de viagem, chega a ser até mesmo as “lentes” por
meio das quais observaremos um determinado conjunto de fatos. Toda definição, vale lembrar, é
limitante, mas alguns limites são necessários e, no nosso caso, didaticamente desejáveis.
Uma definição possível para Semântica é “o estudo do significado”. Não só possível como
também muito corrente. Não obstante, essa definição é um modo vago de apresentar a disciplina,
pois a pragmática também é o estudo do significado.
A semântica é uma disciplina que perpassa várias outras e, para alguns linguistas, a
exemplo dos cognitivistas, chega até mesmo a ser o núcleo da gramática, ainda que a separação
dos componentes de uma gramática em disciplinas seja uma questão antes de tudo didática, pois
na prática linguística cotidiana não conseguimos separar tais componentes facilmente. Isentando-
nos de maiores discussões, assumamos que a disciplina semântica é o estudo do significado
linguístico.
A pragmática, ao seu turno, comumente não é vista como uma componente da gramática.
Geralmente é assumida como o uso linguístico que nos dá a habilidade de interpretar e produzir

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significados em situações de interação (real ou virtual). Consequentemente, a disciplina
pragmática é o estudo do significado construído pelo uso linguístico.
No momento, basta-nos essas duas definições para seguirmos em frente. Durante o estudo
das unidades, você verá um pouco do que cada uma dessas disciplinas tratam. E, à medida que
formos avançando nos estudos, as definições de tais disciplinas se mostrarão claras.
Em alguns momentos, você certamente vai dizer a si mesm@ que semântica e pragmática
são duas “viagens”. Não vou tentar convencer você de que não são. Pode até ser que sejam, mas,
se forem, são viagens que precisam ser orientadas por boas bases teóricas, para que possamos
chegar a resultados significativos e interessantes.
Para que possamos então, com a unidade I, iniciar nossos estudos, quero registrar meus
agradecimentos a algumas pessoas que contribuíram de formas diversas e significativas na
elaboração deste módulo:

- A Nilton Barbosa de Souza Filho, Luciana Walesca de Souza Moura e Mônica da Silva Lima,
nossos assessores, pelos julgamentos de gramaticalidade de nativos a respeito dos exemplos
usados em Libras e por se disporem a serem fotografados para tais exemplos;
- A Alexandre Baracuhy Grisi Barbosa por fotografar e editar os exemplos em Libras;

- A Regina de Fátima Freire Valentim Monteiro, nossa tutora de Libras, pela pronta ajuda e
organização nas fotografias e nas gravações.

- À Profª Nayara de Almeida Adriano pelos julgamentos de gramaticalidade e pelo valioso e


incansável trabalho de gravação do material.

Cordiais saudações,
MAGDIEL MEDEIROS ARAGÃO NETO

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UNIDADE I

SIGNIFICADO

Na introdução deste módulo, apresentei a semântica30 como o estudo do significado


linguístico e a pragmática como o estudo do significado construído pelo uso linguístico. Mas o que
é o significado? O que podemos entender por significado? Ao colocar essas duas questões em
cena, estamos pressupondo que existe algo que seja “o significado”. As respostas possíveis, como
você verá ao longo deste capítulo, dependem de quais lentes usarmos, ou seja, de a qual
perspectiva nos filiarmos.
Na filosofia antiga, como mostra Platão, os gregos já se questionavam sobre o que é o
significado. Essa questão girava em torno de outra: existe uma relação natural entre as palavras e
as coisas ou essa relação é convencional?
Os naturalistas acreditavam que existia uma relação entre as palavras e as coisas. Assim,
assumia-se, por exemplo, que existia uma relação natural entre a palavra casa e o objeto que
utilizamos como moradia, i.e., uma relação natural entre casa e um objeto do mundo.
Os não naturalistas, chamados de convencionalistas, negavam a existência de tal relação e
o argumento apresentado era e é muito convincente: se houvesse uma relação natural entre casa
e (alg)uma casa do mundo, então não poderiam existir house, domus, maison, ࠺ࡕ etc. para
nomear o mesmo objeto, pois a relação ocorreria necessariamente entre uma única palavra e um
único objeto, ou seja, de um para um. Assim sendo, uma vez que o objeto estivesse relacionado a
uma palavra, ele não poderia relacionar-se a mais nenhuma outra. Além do mais, que relação
poderíamos perceber entre uma casa e qualquer uma das palavras que significam “casa”? Por mais
que queiramos, de fato é difícil imaginar essa relação.
Alguns estudiosos, a exemplo do filólogo alemão Walter Porzic, tentaram sustentar uma
possível relação natural entre as palavras e as coisas tomando como base as onomatopéias, que
são palavras ditas serem fiéis aos sons que representam: tic-tac para o som de alguns relógios de
parede, au-au para o latido, oinc oinc para o grunhido, e por aí vai. Esse, no entanto, acredita-se

30
Para conhecer um pouco da história da semântica, consulte: TAMBA-MECZ, Irène. A semântica. São Paulo: Parábola, 2006.

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não ser um argumento muito forte, pois, ainda que os sons sejam os mesmos no mundo inteiro, as
onomatopéias não são as mesmas em todas as línguas: em inglês tem-se tick tock para o som de
alguns relógios de parede, bow wow para o latido, oink oink para o grunhido; e em francês
respectivamente tic tac, auf auf e groin groin. Como se pode ver, há semelhanças e diferenças
entre onomatopéias de mesmos sons em línguas diferentes. Assim, mesmo se percebendo certa
relação natural, ou seja, motivação entre as onomatopéias e os sons que elas representam, não
podemos falar em motivação total.
Oposta à relação natural, a convencionalidade não ocorre de forma manifesta, pois não há
uma ocasião em que os falantes de uma língua reúnem-se para convencionar a quais objetos as
palavras devem “se prender”. Trata-se então de uma convencionalidade não explícita, i.e., de uma
relação arbitrária, como assumira o linguista suíço Ferdinand de Saussure. Não obstante, como
também demonstra Saussure, há signos cuja motivação não podemos negar, ainda que eles
tomem como base signos não motivados: dezesseis é um bom exemplo de signo não arbitrário,
pois é motivado de dez, e e seis, ainda que estes três signos não sejam eles próprios motivados. As
onomatopéias, como vimos, também são bastante motivadas, embora não plenamente.
O resultado de toda a discussão acerca da naturalidade ou não da relação entre as palavras
e os objetos é que hoje em dia os linguistas assumem tranquilamente que nas línguas naturais não
há uma relação natural entre as palavras e os objetos. Essa conclusão nos leva a assumir que o
signo linguístico é arbitrário, ou, mais especificamente, que a relação entre significante e
significado é arbitrária.
Pensemos agora nas línguas de sinais. Elas indubitavelmente são línguas naturais, mas,
como mostram Trevor Johnston e Adam Schembri (2007), elas apresentam muita iconicidade, o
que nos leva a repensar a questão da arbitrariedade do signo. Lembremos que o contexto
saussureano era outro, e uma língua tal como Libras seria, naquele contexto, considerada apenas
uma linguagem.
Ao se reconhecer o estatuto de língua natural para as línguas de sinais, é preciso também
reconhecer que há línguas que são mais motivadas que outras, ou seja, menos arbitrárias que
outras, ainda que essa motivação não tenha permanecido muito transparente e ainda que tais
línguas não sejam totalmente motivadas. Parcimônia é necessário e não devemos ser extremistas
nem para as línguas oralizadas nem para as línguas sinalizadas.

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Reconhecemos que entre a palavra espelho e objeto espelho não há uma relação natural,
mas temos que reconhecer uma relação “natural” entre o sinal espelho em Libras31 e o objeto
espelho, essa relação inclusive se mantém presente em outras línguas de sinais, como ASL32 e
Auslan33. O mesmo se pode dizer do signo para casa34 em Libras, mas ele é parcialmente distinto
dos seus equivalentes em ASL35 e Auslan36 que, além de serem o mesmo signo, também
apresentam uma relação “natural” como o objeto casa.
Por outro lado, não é porque há uma relação “natural” entre o signo para casa e o objeto
casa que podemos assumir que em Libras e nas outras línguas de sinais a relação entre os sinais e
os objetos dá-se sempre de forma natural. Lembremos do signo para amarelo em Libras37 e
tentemos estabelecer alguma relação natural, alguma motivação, para esse sinal e o objeto que
ele nomeia: a tentativa será vã. Se algum dia houve uma motivação, ela hoje já não é mais
transparente. Se compararmos o signo para amarelo em Libras com as respectivas versões em
ASL38 e Auslan39, veremos que os três sinais são diferentes e talvez o único que ainda apresente
alguma aparente motivação seja o sinal em Auslan, que para alguns talvez lembre um sol. Neste
ponto você pode argumentar que a não motivação do sinal para amarelo nas línguas citadas é
decorrente do fato de não haver no mundo uma forma específica para a cor amarela. Esse de fato
é um argumento consistente, mas cuidado para não cair no oposto e deduzir que todos os signos
que denotam entidades concretas têm motivação transparente. Se essa dedução fosse adequada
os signos para sapato e para lápis não teriam realizações diferentes nas três línguas em questão.
Os dados mostram então que até mesmo para línguas de sinais, que apresentam maior
iconicidade e, por conseguinte, maior motivação e menos arbitrariedade, é inadequado assumir
que o significado de uma palavra é o objeto que ela nomeia. Assim sendo, voltamos então à
questão inicial: “O que é o significado?”.

31
Disponível em < http://www.acessobrasil.org.br/libras/ >. Acesso: 09 dez. 2011.
32
Disponível em < http://www.signingsavvy.com/sign/MIRROR >. Acesso: 09 dez. 2011.
33
Disponível em < http://www.auslan.org.au/dictionary/words/mirror-1.html >. Acesso: 09 dez. 2011.
34
Disponível em < http://www.acessobrasil.org.br/libras/ >. Acesso: 09 dez. 2011.
35
Disponível em < http://www.signingsavvy.com/sign/HOUSE >. Acesso: 09 dez. 2011.
36
Disponível em < http://www.auslan.org.au/dictionary/gloss/house1a.html?lastmatch=out-1 >.
37
Disponível em < http://www.acessobrasil.org.br/libras/ >. Acesso: 09 dez. 2011.
38
Disponível em < http://www.signingsavvy.com/sign/yellow >. Acesso: 09 dez. 2011.
39
Disponível em < http://www.auslan.org.au/dictionary/words/yellow-1.html >. Acesso: 09 dez. 2011.

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Uma boa resposta, aceita por diversos linguistas, é apresentada pelo filósofo e matemático
alemão Gottlob Frege (1978 [1892]). Frege diz que o significado é uma entidade composta de três
partes: o sentido, a referência e a representação. Como a representação é uma parte do
significado muito pessoal, que diz respeito a como o indivíduo concebe as coisas do mundo, Frege
assume que ela interessa à psicologia e não aos estudos da linguagem. Assim sendo, o significado
linguístico resta constituído de duas partes: o sentido e a referência.
No caso de palavras/sinais, a referência diz respeito a cada um dos objetos a que nos
referimos: a referência de livro, por exemplo, é qualquer um dos objetos que caibam no conjunto
dos livros, ou seja, é um objeto do tipo livro. Assim sendo, a referência estabelece-se numa relação
entre língua e mundo, mais precisamente na relação entre uma palavra/sinal e um objeto do
mundo.
O sentido, ao seu turno, é uma forma linguística de apresentarmos um referente, ou seja, é
uma forma de apresentarmos um objeto. Por ser uma forma linguística, o sentido é
necessariamente comum a uma comunidade linguística, pois ele não pertence exclusivamente ao
indivíduo. Podemos, por exemplo, apresentar o objeto/referente casa como “construção destinada
a moradia” ou como “lugar onde residem pessoas”. Essas duas formas de apresentação do objeto
casa são sentidos da palavra casa. Mas podemos também apresentar o mesmo objeto como
“prédio”, “lar” e “residência” essas outras três formas de apresentação também são outros
sentidos de casa. O sentido, como você pede perceber, é comum a uma comunidade linguística
porque essa comunidade o assume como pertinente e não tem dificuldade para entendê-lo.
As noções de significado, referência e sentido podem ser resumidas pela fórmula em (01) e
visualizadas no quadro abaixo.

(01) SIGNIFICADO = SENTIDO + REFERÊNCIA

SIGNIFICADO
SIGNO SENTIDO REFERÊNCIA
- construção destinada a moradia;
- lugar onde residem pessoas;
- prédio;
- lar;
- residência;
- ...

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Frege, matemático e lógico que era, restringia seus estudos da língua ao âmbito da filosofia
e não tinha muito interesse por questões das línguas naturais. Ele estava mais interessado em uma
máquina de linguagem isenta de ambiguidades. No âmbito da linguística, o trabalho de Frege
influencia o trabalho do britânico John Lyons (1968), que sistematiza outra noção de significado ao
afirmar que o significado semântico é composto de sentido e denotação. O linguista mostra que o
sentido de que Frege tratava interessa à semântica, mas a referência interessa à pragmática
porque diz respeito a entidades específicas que só (re)conhecemos por meio do contexto de
enunciação. Considerando (02) um enunciado a expressão o livro refere-se a um único livro do
mundo: ao livro específico que é citado no contexto de uso.

(02)
O livro está sobre a mesa.

Para complementar a noção de sentido e completar a de significado, Lyons (1968)


assume a noção de denotação presente no trabalho de Platão. A denotação de uma palavra é
o conjunto de todos os elementos aos quais a palavra pode fazer referência. Assim sendo, o
termo livro não denota um livro específico, mas sim qualquer livro do mundo, i.e., qualquer
um dos objetos que caiba no conjunto dos livros. Considerando (02) uma sentença, a
expressão o livro não denota um objeto específico, mas qualquer objeto do conjunto dos
livros. A noção de denotação é interessante porque nos permite falar de livros em geral e não
apenas de livros específicos.
Após a reformulação de Lyons (1968), a noção de significado passa a ser definida pela
equação em (03) e pode ser visualizada no quadro a seguir.

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(03) SIGNIFICADO = SENTIDO + DENOTAÇÃO

SIGNIFICADO
SIGNO SENTIDO DENOTAÇÃO

- construção destinada a moradia;


- lugar onde residem pessoas;
- prédio;
- lar; 40
- residência;
- ... e mais qualquer uma das outras casas do mundo.

Tanto a abordagem de Frege (1978 [1892]) quanto a de Lyons (1968) se enquadram no


escopo da semântica formal. Essa semântica também se interessa por outra unidade de análise
diferente da palavra/sinal: a sentença. Sentença é uma unidade abstrata situada fora de contextos
de uso, ou seja, é uma unidade que não foi usada em situação efetiva de comunicação. As
sequências em (04) e (05) são exemplos de sentenças. Ao analisá-las, a semântica não observa em
quais contextos elas podem ser efetivamente usadas.

(04)
João beijou Maria.

(05)
Que horas são?
No nível da sentença, a semântica formal é também chamada de semântica verifuncional.
Tal semântica assume que o significado das sentenças, assim como o das palavras, é composto de
sentido e denotação. No entanto, como avalia a denotação das sentenças em termos de condições
de verdade, estabelece que a denotação de uma sentença não é uma coisa ou evento do mundo,

40
Disponível em: <http://www.google.com.br/search?q=foto+de+casas&hl=pt-BR&client=firefox-a&hs=6jC&rls=org.mozilla:pt-
BR:official&prmd=imvns&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ei=C3fyTpeEE4TDgQeL5OGlAg&ved=0CDgQsAQ&biw=1276&bih=6
70>. Acesso em: 09 dez. 2011.

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mas sim as suas condições de verdade. Atrelada à sentença há também a noção de proposição,
que é um específico estado de coisas do mundo. Proposição, como lembra Yan Huang (2007), é
uma noção mais abstrata que a sentença, porém, é por meio de sentenças que a proposição se
manifesta. Se houver, por exemplo, um estado de coisas específico em que um indivíduo chamado
João comeu um determinado bolo, esse estado de coisas só consegue se manifestar
linguisticamente por meio de alguma proposição. Isso, no entanto, não significa que é por meio de
uma única sentença que uma proposição se apresenta, o estado de coisas mencionado acima
pode, por exemplo, ser expresso por pelo menos as três sentenças diferentes: (06), (07) e (08)
abaixo.

(06)
João comeu o bolo.

(07)
O bolo foi comido por João.

(08)
O bolo, João comeu.

Observemos ainda que toda proposição precisa necessariamente receber um valor de


verdade, seja verdadeiro seja falso. Por exemplo: a proposição expressa por (06), (07) e (08) será
verdadeira se for enunciada em uma situação na qual João realmente tenha comido o bolo. Já a
proposição, ou estado de “existir uma presidenta do Brasil e ela ter sido presa política”, em (09)
abaixo, é verdadeira se (09) for enunciada hoje, mas se (09) houvesse sido enunciada em 2009 a

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proposição seria falsa porque não havia alguém que servisse de referência para a presidenta do
Brasil.

(09)
A presidenta do Brasil foi presa política.

A noção de proposição é muito importante, por exemplo, para o trabalho como intérprete.
Ao interpretar sentenças de uma língua para outra, o intérprete deverá transportar uma
proposição da língua fonte para a língua alvo. Se a proposição não se mantiver entre as duas
línguas, o profissional não terá feito um bom trabalho porque terá adulterado o conteúdo
traduzido.
Se as proposições têm valor de verdade, o mesmo não vale para as sentenças, estas têm
condições de verdade. As condições de verdade de uma sentença “[...] são as condições que o
mundo precisa apresentar para que a sentença seja verdadeira.”41 (HUANG, 2007, p. 15). Assim, as
condições para a sentença (09) acima ser verdadeira são: 1) que exista um Brasil; 2) que exista
alguém que seja a presidenta do Brasil; e 3) que essa mesma pessoa tenha sido presa política. Se
tais condições forem satisfeitas, a sentença será verdadeira. Uma sentença será verdadeira apenas
se todas as suas condições forem satisfeitas em algum mundo possível. Se, porém, pelo menos
uma das condições para a sentença ser verdadeira não for satisfeita em algum mundo possível, a
sentença será falsa.
Há uma fórmula “fixa” para se começar a estabelecer as condições de verdade de uma
sentença: “A sentença X é verdadeira se e somente se...(condições)”. Observe na prática como isso
é feito para a sentença (09) acima: a sentença ‘A presidenta do Brasil foi presa política’ é
verdadeira se e somente se em determinado momento simultâneo ao da minha enunciação/fala:
1) existe uma entidade tal que essa entidade seja o Brasil; 2) existe um indivíduo tal que esse
indivíduo seja a presidenta do Brasil e tenha sido preso político. Se considerarmos que todas essas
condições são satisfeitas, diremos que a sentença é verdadeira. Se, por outro lado, considerarmos
que pelo menos uma das condições não é satisfeita, diremos que a sentença é falsa.

41
“[...] are the conditions that the world must meet for the sentence to be true.” (HUANG, 2007, p.15).

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Há, porém, uma observação muito importante que não devemos esquecer: ao
estabelecermos as condições de verdade de uma sentença, estamos apenas avaliando as
condições nas quais a sentença pode ser considerada verdadeira, não estamos verificando no
mundo se a sentença é de fato verdadeira. Isso implica podermos considerar uma sentença
verdadeira ou falsa sem precisarmos checar no mundo se ela é verdadeira ou não. Isso é possível
porque, como sentenças são unidades que não fazem parte do uso efetivo da língua, podemos
apenas prever sob quais circunstâncias elas podem ser verdadeiras ou falsas. Já as proposições,
quando enunciadas, devem receber um valor de verdade, pois uma vez enunciadas elas fazem
parte do uso efetivo da língua e sua verdade pode ser checada no mundo.
A abordagem formal, também chamada denotacional, referencial ou extensional, consegue
dar conta de uma série de questões, mas, segundo alguns linguistas, ela deixa a desejar quando
nos lembramos que há expressões que são não referenciais como de, talvez, no entanto e muito.
Sem dificuldade alguma podemos observar que “Essas palavras certamente contribuem no
significado das sentenças nas quais elas ocorrem e assim ajudam as sentenças a denotarem, mas
elas próprias não identificam entidades no mundo.”42 (SAAED, 2009, p. 26). Outro caso de palavras
não referenciais são as que nomeiam entidades que não existem neste mundo biofísico em que
vivemos, como unicórnio, Saci Pererê e Wolverine.
Também na semântica formal, como lembra Pires de Oliveira (2001), a interpretação de
conectivos pode ser simplificada em excesso. Este é o caso de e e mas que, mesmo tendo sentidos
distintos, recebem a mesma interpretação em semântica formal, o que implica em ter-se que
considerar as sentenças (10) e (11) sinônimas, quando claramente percebemos que não são.

(10)
João chegou e Maria saiu.

42
“[...] This words do of course contribute meaning to the sentences they occur in and thus help sentences denote, but they do not
themselves identify entities in the world.” (SAAED, 2009, p. 26).

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(11)
João chegou mas Maria saiu.

Segundo Oswald Ducrot (1987) o significado, ou mais precisamente a significação, é o valor


semântico da frase e o sentido é o valor semântico do enunciado. A frase, assim como a sentença,
é uma entidade abstrata que, por não pertencer ao contexto de comunicação, serve de objeto
apenas para a análise linguística. Frase e sentença43, porém, não são noções que se recobrem:
sentença diz respeito a uma sequência sintática bem-formada que comporta necessariamente um
núcleo verbal que a estrutura, a exemplo de (10) e (11) acima, a frase, ao seu turno, pode ter essa
mesma estrutura, mas pode também se apresentar sem um núcleo verbal, como (12) e (13)
abaixo. Assim sendo, a noção de frase comporta a de sentença, mas o contrário não é verdadeiro.

(12) (13)
Silêncio! Beijo!

Segundo a semântica argumentativa, as pessoas não se comunicam por meio de frases,


mas sim de enunciados. Os enunciados são as manifestações concretas de frases, são entidades
linguísticas pertencentes à situação real ou virtual de comunicação. Em (10)–(13) temos apenas
quatro frases, se, porém, essas frases forem usadas em uma situação de comunicação, elas, por
meio da enunciação, serão transformadas em enunciados.
A enunciação é, então, o processo pelo qual uma sentença se transforma em um
enunciado numa determinada situação de uso. Podemos imaginar, seguindo a figura abaixo, que a
enunciação é uma máquina na qual entra uma frase, e, depois de um processo interno a tal
“máquina”, essa frase se transforma em enunciado e em seguida sai da máquina para o uso.
43
Ducrot não trabalha com a noção de sentenças, apenas de frase. Faço a comparação para vermos que há pontos em comum
entre as duas teorias.

LETRAS LIBRAS|202
Na semântica formal, quando analisamos sentenças e até mesmo textos, geralmente não
nos preocupamos em observar como tais sentenças e textos poderiam de fato ser usados. A
semântica argumentativa, ao contrário, interessa-se pelo uso linguístico, mas sempre busca ter
como base e finalidade estratégias linguísticas e discursivas, e não elementos do mundo em si.
Disso decorre que, para a semântica argumentativa, se a frase não é uma entidade linguística em
uso, seu valor semântico, seu significado, é bastante estável. Assim sendo, por estar fora de
contexto, a frase em (14) vai sempre significar a mesma coisa: “No presente momento, o relógio
marca 10 horas.”.

(14)
São 10 horas.

Como para a semântica argumentativa a língua não é essencialmente descritiva, mas


essencialmente argumentativa, a crença que permeia toda a teoria é que a língua é um
instrumento do qual nos valemos para realizar os constantes jogos de persuasão e
convencimento. Esses jogos não visam a convencer o outro de alguma verdade do mundo, visam
antes a fazer o outro aceitar ou rejeitar os pontos de vista que colocamos em cena por meio dos
nossos enunciados. Assim, ao enunciarmos, sempre realizamos o ato de argumentar, que se dá
por meio da apresentação de argumentos pelos quais tentamos levar nosso interlocutor a
determinadas conclusões.
Se então a finalidade dos enunciados é argumentar, quando a sentença em (14) é
enunciada na Situação 01 a seguir seu sentido é “Ainda está cedo.”. Esse sentido funciona como

LETRAS LIBRAS|203
argumento a fim de persuadir o locutor A a ficar mais um pouco na festa, ou seja, funciona como
argumento contra a conclusão “Vamos embora.”.

Situação 01:
A quer ir embora de um jantar mas B quer ficar.
A: Vamos embora?
B: Ah, vamos ficar mais um pouco! São 10 horas.

Quando, porém, a sentença em (14) é enunciada na Situação 02, seu sentido, que é
dinâmico, é “Está tarde.”. Esse sentido funciona como uma adesão à proposta de A para ir
embora, ou seja, funciona como argumento a favor da conclusão “Vamos embora.”.

Situação 02:
A e B querem ir embora de um jantar.
A: Vamos embora?
B: Vamos sim. São dez horas.

A dinamicidade do sentido é resultante de um postulado da semântica argumentativa:


cada enunciado é único. Isso significa que, toda vez que (14) passar pelo processo de enunciação,
o resultado será um novo enunciado porque das variáveis que compõem o processo de
enunciação (quem, onde e quando), pelo menos uma será sempre distinta: o quando, pois o
tempo não para. A unicidade do enunciado não implica, porém, que cada novo enunciado deverá
necessariamente ter um sentido diferente dos demais, implica apenas que cada enunciado pode
ter um sentido diferente.
Se, para a semântica formal, (10) e (11), são sinônimas, para a semântica argumentativa
elas são argumentativamente diferentes: em (10) e apenas relaciona dois enunciados João chegou
e Maria saiu; no entanto, em (11) mas, além de relacionar os dois enunciados, apresenta a

LETRAS LIBRAS|204
chegada de João como um evento frustrado devido à saída de Maria que, provavelmente, foi
motivada pela chegada de João.
Por meio da análise de sentenças como (10) e (11) e de possíveis enunciações para (14), a
semântica argumentativa mostra que, em alguns casos, é pouco dinâmico o caráter fortemente
referencial e verifuncional da semântica formal.
Como você já deve ter percebido, não há uma abordagem semântica que dê conta de todas
as questões que existem na língua. Isso, é bom lembrar, não é um défict específico da semântica
ou da linguística, é a condição própria de toda ciência e disciplina. Para se convencer, veja, por
exemplo, que existem diversas físicas, dentre elas: a física nuclear, a física de partículas
elementares, a física quântica, a biofísica e a física estatística. Tudo seria mais simples se uma
única abordagem teórica explicasse todos os fenômenos de sua área, mas o fato é que o mundo e
a língua são maiores do que qualquer teoria.
Das três formas de conceber o significado apresentadas neste capítulo, a primeira
corresponde a uma abordagem filosófica e as duas últimas correspondem a duas correntes
semânticas muito difundidas no Brasil: a formal e a argumentativa. Ao estudá-las, percebemos que
as diversas semânticas não são apenas formas diferentes de abordar o significado e as questões a
ele relativas, elas apresentam também diferentes noções de significado e, por conseguinte,
significados distintos para a palavra significado. Isso implica que, ao darmos uma única resposta
para o que é o significado e o que significa significado, acabamos por assumir algum
posicionamento teórico. Convido você para, na maior parte deste módulo, assumir comigo a
perspectiva de Lyons (1968) de que: SIGNIFICADO = SENTIDO + DENOTAÇÃO. No entanto, por
agora, deixarei em suspenso a noção de significado no âmbito da pragmática. Quando
começarmos a estudar a pragmática, trataremos desse ponto.

LETRAS LIBRAS|205
REFERÊNCIAS

DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes, 1987.


FREGE, Gottlob. Logica e filosofia da linguagem. São Paulo: Cultrix, 1978 [1892].
JOHNSTON, Trevor; SCHEMBRI, Adam. Australian sign language. Cambridge: Cambridge University Press,
2007.
HUANG, Yan. Pragmatics. Oxford: Oxford University Press, 2007.
LYONS, John . Introduction to theoretical linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, 1968.
PIRES DE OLIVEIRA, Roberta. Semântica formal: uma breve introdução. Campinas−SP: Mercado de Letras,
2001.

LETRAS LIBRAS|206
UNIDADE II

VARIAÇÃO DE SIGNIFICADO

Em algum momento de sua vida escolar você escutou seu/sua professor(a) de língua
portuguesa ou de Libras dizer coisas como “Escreva sem ambiguidades.”, “Seu texto está muito
ambíguo.”, “Você poderia ser menos vago(a) quando escreve.”. Se você levou em consideração
essas observações, tomou uma atitude adequada. Devemos procurar, pelo menos nos textos
(escritos e orais) acadêmicos e técnicos, ser o mais pontual possível, não só para ganhar a simpatia
do nosso interlocutor, mas principalmente para ele perceber o mais claramente possível do que
de fato estamos tratando e não fazer interpretações que não desejamos. Ainda a respeito das
observações do seu/da sua professor(a), é possível também que em algum momento você tenha
se sentido traído pelas palavras, como se você quisesse dizer uma coisa, e as palavras dissessem
outra. Não ache que isso acontece só com você, mas mesmo assim tome muito cuidado porque as
palavras não são muito “obedientes.”
Apesar de poder parecer que tudo seria mais fácil se as palavras tivessem apenas um
sentido44, a maioria delas apresenta algum tipo de variação de sentido. A monossemia,
propriedade de uma palavra ter apenas um sentido, não é o que prevalece na língua. Palavras
como alfirme, bolotar e xibaro, que são monossêmicas e não vagas, não são tipos de palavras que
mais usamos. Cotidianamente nos valemos, com muita naturalidade, de palavras semanticamente
mais complexas, seja porque têm mais de um sentido, seja porque são ortográfica e/ou
foneticamente idênticas a(s) outra(s), seja porque são vagas. O fato inexorável com o qual temos
de lidar é que as palavras das línguas naturais, em sua maioria, apresentam alguma forma de
variação de sentido: ambiguidade ou vagueza.
A ambiguidade não só é algo inerente às línguas naturais; é também algo muito curioso.
Ela é a possibilidade de mais de uma interpretação que uma determinada expressão45 linguística

44
Se as palavras tivessem apenas um sentido, teríamos de aprender bem mais palavras do que sabemos para nos comunicar com a
mesma proficiência que fazemos.
45
Você lembra o que eu disse ser uma expressão linguística no capítulo passado?

LETRAS LIBRAS|207
pode apresentar. Não se tem notícia de uma língua natural que não apresente ambiguidades. Isso
é tão verdadeiro que em qualquer língua pupulam textos ambíguos orais ou escritos que geram
interpretações pouco, muito ou totalmente diferentes das esperadas.
“Sem pensar”, diga-me, por favor, o que (01) e (02) significam.

(01) (02)

Agora, pensando, diga-me o que (01) e (02) significam.


Viu que curioso? Quando começamos a pensar, parece que as palavras ganham mais
significados. Na verdade, em “testes” como esse que eu acabei de fazer com você, as palavras não
ganharam mais significados, eles já existiam. Nós apenas paramos para pensar sobre eles e, por isso,
eles começaram a emergir do conhecimento que temos a respeito do léxico/vocabulário de Libras.
(01) e (02) são exemplos de casos que chamamos de polissemia. Polissemia é a
propriedade que um signo, não necessariamente uma palavra pois pode ser também um afixo,
tem de possuir mais de um significado relacionados entre si. Veja que, por se tratar de mais de um
significado, esses significados são diferentes, se não fossem diferentes não seriam mais de um. Ser
diferente, no entanto, não significa ser totalmente diferente, significa “apenas” ter alguma
diferença. Por outro lado, esses distintos significados necessariamente têm alguma relação
semântica entre si.
Veja que há pelo menos três sentidos para (01): 1) “pessoa adulta do sexo feminino”; 2)
“esposa”; e 3) “homem afeminado”. Você percebe que os três sentidos apresentados para (01)
são diferentes entre si, pois apresentam algum valor semântico a mais ou a menos? Você percebe
também que os três sentidos estão relacionados porque todos eles dizem respeito a uma pessoa
do gênero/padrão feminino? Semelhanças e diferenças de sentidos também ocorrem com (02),
como vimos no capítulo 01.
Outro fenômeno que podemos categorizar como sendo ambiguidade lexical é a
homonímia. Homonímia é a relação de identidade formal entre pelo menos dois signos distintos,
conforme podemos observar em (03).

LETRAS LIBRAS|208
(03)

Se eu fizesse o mesmo teste agora e pedisse para você me dizer, sem pensar, um
significado para (03) você poderia dizer-me “fruto da laranjeira.” Essa não seria uma resposta
ruim, pelo contrário, seria uma boa resposta. Mas outra pessoa poderia responder-me “sétimo dia
da semana”. Essa também seria outra boa resposta. Mas o que semanticamente o fruto da
laranjeira tem a ver com o sétimo dia da semana? Será que sábado é o dia de chupar laranja? Ou
será que laranjas devem ser chupadas no sábado? Ou laranjas são mais gostosas quando chupadas
no sábado? A resposta você sabe: é não para as três alternativas e qualquer outra equivalente a
essas. Como não conseguimos perceber nenhuma relação entre os dois sentidos, dizemos que a
forma em (03) representa dois sinais distintos: sábado e laranja. Apesar de em (03) termos
absolutamente a mesma forma, os seus sentidos, “fruto da laranjeira” e “sétimo dia da semana”,
não estão relacionados entre si.
Como resultado, a homonímia lexical acaba por algumas vezes gerar sentenças homônimas
como (04), que pode significar tanto “eu gosto de sábado” quanto “eu gosto de laranja”.

(04)

Não há porém motivo para nos preocuparmos em excesso. Claro que devemos ter muito
cuidado com nossos textos orais e escritos, mas os contextos linguístico e extralinguístico
resolvem a maior parte das ambiguidades. Há inclusive quem, a exemplo de Luciano Oliveira
(2008), diga que a ambiguidade só existe em frases fora de contextos. Desse modo, são os
contextos então que nos informam quando (04) significa “eu gosto de sábado” ou “eu gosto de
laranja”.
Pensando no contexto linguístico, se a partir de (04) formarmos (05), a única interpretação
possível para (04) será “Eu gosto de laranja”.

LETRAS LIBRAS|209
(05)

Eu gosto de laranja porque tem vitamina C.

Como sabemos então que “laranja” é a melhor interpretação para a ocorrência de (03) em
(05)? Por meio de algo chamado isotopia semântica, que é a força composicional segundo a qual
os elementos linguísticos atuam uns sobre os outros e apontam os sentidos possíveis para a
combinatória. Em (06) a isotopia semântica entre (03) e (06) que nos faz interpretar (03) como
“laranja” mas não como “sábado”, pois nosso conhecimento léxico-enciclopédico nos diz que
laranja tem vitamina C mas sábado não tem vitamina C.

(06)
vitamina C

Agora veja que se a partir de (04) formarmos (07), (03) significará apenas “sábado”, porque
(08) não diz respeito a frutas, diz respeito apenas a tempo, e sábado é um período de tempo.

(07)

Eu gosto de sábado porque é quando durmo até tarde.

LETRAS LIBRAS|210
(08)
quando

A homonímia, nos exemplos que vimos, é chamada de perfeita porque são tanto
homófonos quanto homógrafos, em razão de tanto a forma fonológica quanto a forma ortográfica
serem as mesmas. Mas nem sempre esse é o caso. Há também a homonímia em que apenas a
forma fonológica ou a forma ortográfica são a mesma. Quando apenas as formas fonológicas
coincidem, dizemos que se tratam de homônimos homófonos; quando apenas as formas
ortográficas coincidem, dizemos que se tratam de homônimos homógrafos. Esses dois tipos de
homonímia são mais facilmente percebidos em línguas orais.
A abordagem que até o presente momento utilizamos neste capítulo pode ser chamada de
semântica lexical, pois estuda a semântica de itens lexicais levando em consideração suas relações
com outras palavras/sinais, seja fora de contexto, seja em contextos de ocorrência virtuais ou
reais. Ademais, percebe-se facilmente que a semântica lexical vale-se de uma abordagem
sincrônica. Foi por isso que explicitamos a distinção entre polissemia e homonímia nos valendo
apenas da sincronia, ou seja, toda a explicação ocorreu olhando-se para um determinado estado
da Libras: o estado atual. Não obstante, poderíamos recorrer a uma abordagem diacrônica e
compararmos distintos estados da Libras, do português ou de qualquer outra língua para definir
como polissêmicos signos, a exemplo de bofe e bicho, que através do tempo foram incorporando
distintos significados. Na abordagem diacrônica, o que mais importa é a história do signo, seus
significados podem inclusive não mais apresentar nenhuma relação transparente entre si, como,
por exemplo, diversos significados de fazer: “construir”, “arrumar”, “comportar-se”, “percorrer”,
“fingir”, “proferir”, “celebrar” etc.
Já palavras homônimas, na abordagem diacrônica, são as formas idênticas que apresentam
étimos distintos, ou seja, palavras que, a despeito da forma idêntica, apresentam origens distintas,
a exemplo de: manga1, que vem do latim manica e significa “parte de vestimenta”; manga2, que
vem do malaiala manga e significa “fruto da mangueira”; manga3, que vem do espanhol46 manga

46 3
A palavra manga do espanhol vem do latim manica. Assim sendo, manga vem do latim, de forma indireta, por
meio do espanhol.

LETRAS LIBRAS|211
e significa “cercado feito em curral ou à beira de rios para direcionar o gado”; e manga4, que é a
terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo mangar cuja etimologia é incerta.
A abordagem diacrônica já foi critério central e até mesmo critério único para a distinção
entre polissemia e homonímia, mas perdeu sua centralidade com o advento do estruturalismo.
Aliás, para alguns pesquisadores, ela não só perdeu a centralidade como a relevância, pois
relações semânticas e etimológicas que algum dia existiram podem não existir mais. Sem contar
que nem sempre temos registrada a história das palavras, como fazia, por exemplo, a semântica
histórica de Michel Bréal, que traçava uma “biografia” de cada palavra47. A união das duas
abordagens é uma boa alternativa para casos em que apenas a sincronia não nos possibilita dizer
com clareza se estamos diante de um caso de polissemia ou de homonímia. Mesmo assim,
sabemos que as línguas não são “bem-comportadas” e mesmo uma abordagem mista pode não
vir a dar as respostas suficientes.
Para alguns pesquisadores também é possível, ao se distinguir a polissemia da homonímia,
complementar o critério semântico com o morfossintático por meio das classes morfossintáticas/
morfológicas. Por esse critério, uma classe é um “local” onde agrupamos elementos da mesma
espécie, as línguas subordinam-se bem à formação de classes de palavras, e as palavras estão
necessariamente em uma classe ou outra, mas não em duas ao mesmo tempo. Como nos lembra a
física, um mesmo corpo não pode estar em dois locais ao mesmo tempo. Assim sendo, uma
palavra polissêmica pertence exclusivamente a uma classe e nunca a duas, três ou mais classes.
Por outro lado, o caso da homonímia é diferente. Por se tratar de mais de uma palavra,
com a mesma forma mas sentidos não relacionados entre si, ela pode tanto estar na mesma classe
quanto em classes diferentes. Esse é o caso da forma manga, vista acima, que não deixa dúvida
alguma que engloba quatro palavras diferentes, pois seus significados não apresentam relação
alguma. As quatro palavras que a forma manga engloba podem ser classificadas em apenas duas
classes: numa, a dos substantivos, manga1, manga2 e manga3; na outra, a dos verbos, manga4.
Algumas abordagens chegam a tomar a classificação gramatical/morfológica como um
critério decisivo. Esse é o caso da gramática tradicional, que classifica cozido como um caso de

47
Hoje podemos fazer semântica histórica de um outro modo e com um outro objetivo: não mais olhando para a
palavra isolada, mas sim para ela em seus contextos não só de uso, também em seus contextos sociocognitivos. Dessa
maneira, não mais com o intuito de buscar apenas uma história para as palavras e, sim, as causas pelas quais uma
palavra pode nascer, morrer e, principalmente, as causas pelas quais ela pode se modificar.

LETRAS LIBRAS|212
homonímia: cozido1 (verbo no particípio) e cozido2 (substantivo); jogo1 (verbo) e jogo2
(substantivo). Considerar, porém, as classes de palavras como um critério decisivo para a distinção
entre polissemia e homonímia não é um bom método, porque nem sempre as línguas apresentam
classes de palavra bem delimitadas; Libras é uma dessas línguas.
Ainda dentro do escopo da variação de significado, diga-me agora uma coisa: você acha a
Madonna velha? E o Thiago Lacerda, ele é bonito? Você pode responder “sim” às duas questões,
outra pessoa pode responder “não” e mais outra pode responder “mais ou menos”. Por que isso
acontece? Será que não sabemos o que é uma pessoa velha ou bonita? Será que não sabemos
qual o significado de velha e bonito? Certamente sabemos.
Palavras como velho, bonito, bom, gordo, alto, fácil, barato etc. são exemplos de vagueza.
Ou seja, são palavras que denotam propriedades que não temos como medir precisamente. Não
existe um conjunto de propriedades X que se alguém as tiver poderá se classificado como bonito.
Não existe uma idade que uma vez atingida alguém seja considerado sempre velho. É por isso que
Thiago Lacerda é considerado bonito por algumas pessoas, mas não por outras. Mas notemos que
raramente encontraremos alguém que o considere feio, ainda que algum homem machista diga “E
eu lá acho homem bonito!”. Assim sendo, podemos dividir nossas opiniões achando o Thiago
Lacerda bonito ou mais ou menos, mas sabemos que ele não é feio.
A mesma vagueza vale para o ser velha ou não da Madonna. Pode ser que para você, que
tem vinte e poucos anos, ela, como seus cinquenta e tantos anos, seja uma coroa ou uma velha. Já
para a minha avó de 92 anos, a Madonna não é velha, é até jovem. Contudo, para nenhum de nós
a Madonna é uma jovenzinha. Por outro lado, para o meu sobrinho de três anos, você, de vinte e
poucos anos, é velho. Com base nessas avaliações, percebemos outra propriedade importante da
vagueza: por não termos uma medida específica para o atributo que uma palavra vaga expressa, a
verdade ou a falsidade desse atributo pode variar dependendo do ponto de vista que tomarmos
como referência. O seu ponto de vista, o da minha avó de 92 anos e o do meu sobrinho de três
anos são diferentes. Daí, se uma palavra é vaga, os pontos de vista começam a interferir no
sentido. Aliás, observe que até a própria palavra vaga é vaga.
Literalmente, alguém está vivo ou não, é pai ou não; um vegetal é uma laranja ou não, é
uma jaca ou não; e um objeto é um celular ou não, é uma xícara ou não. E também literalmente
alguém pode ser velho para uma pessoa mas não para outra; um vegetal pode ser gostoso para
uma pessoa mas não para outra; e um objeto pode ser barato para uma pessoa mas não para

LETRAS LIBRAS|213
outra. A escalaridade e a comparação são outras propriedades da vagueza. Literalmente alguém
pode estar mais velho do que da última vez que o vimos, pode também ser mais velho do que
outra pessoa, mas não pode ser mais morto; um vegetal pode estar mais gostoso temperado de
determinado modo, pode também ser mais gostoso do que outro, mas não pode ser mais laranja
(referindo-se à fruta); um objeto pode estar mais barato hoje do que ontem, pode também ser
mais barato do que outro, mas não pode ser mais xícara.
Perceba então que a vagueza não se trata de uma questão de mudança do significado das
palavras ao nosso gosto. Bonito significa “alguém de aparência bonita ou atraente” e, sendo
sinceros, só atribuiremos esse predicado a quem realmente achamos bonito. Por reconhecermos
intuitivamente a vagueza, muitas vezes para nos resguardarmos de possíveis acusações, é comum
dizermos: “Na minha opinião,...”, a exemplo de “Na minha opinião, a Madonna não é velha.” ou
“Na minha opinião, o Thiago Lacerda é bonito.”
Com o uso de expressões que marcam opinião (na minha opinião, no meu ponto de vista,
eu acho etc.), fica claro que as palavras vagas não só expressam uma propriedade mas também
um ponto de vista. Como utilizamos constantemente palavras vagas, podemos concluir que não
existe discurso neutro. Nem mesmo o discurso científico. A neutralidade da língua é apenas uma
miragem pela qual alguns se deixam enganar. Ou você assume um ponto de vista, ou assume
outro. É impossível, como afirma a semântica argumentativa, falarmos sem assumir um ponto de
vista.
Diante do exposto até aqui, você pode concluir que há quatro tipos de palavra
semanticamente distintos: monossêmicas, polissêmicas, homônimas e vagas. Monossemia,
polissemia, homonímia e vagueza são sim quatro fenômenos diferentes, contudo curiosamente
mais de um deles podem se apresentar em uma mesma forma de palavra, e a única combinação
impossível é entre monossemia e polissemia.
Com os dois tipos de variação de sentido aqui estudados – ambiguidade e vagueza –,
espero ter ficado claro para você o porquê de toda língua natural ser ambígua e porque tão
frequentemente produzimos e nos deparamos com sentenças e enunciados ambíguos e/ou vagos.
Você, como intérprete de Libras-português, não pode deixar de prestar muita atenção em
fenômenos como a polissemia, a homonímia e a vagueza para não ocorrer o risco de “trair” do
texto (oral ou escrito) que você esteja interpretando. Deve também ter em mente que nem
sempre o autor/locutor de um texto que esteja interpretando produz um texto ambíguo e/ou

LETRAS LIBRAS|214
vago por “maldade” ou por inabilidade. A variação de sentido faz parte da língua e, associada a
diferentes contextos e diferentes conhecimentos de mundo, produz em maior ou menor escala
diferentes leituras para diferentes interlocutores e intérpretes.
Agora, convido você para, no próximo capítulo, estudarmos dois processos de expansão
semântica que tornam as palavras (mais) polissêmicas e, por conseguinte, (mais) ambíguas: a
metáfora e a metonímia.

REFERÊNCIA

OLIVEIRA, Luciano Amaral. Manual de semântica. Petrópolis: Vozes, RJ: 2008.

LETRAS LIBRAS|215
UNIDADE III

EXPANSÃO DE SIGNIFICADO

Os diferentes aspectos de significado constituem o campo propício para a mudança


linguística no que tange à semântica. A mudança semântica pode ocorrer em duas direções: a
subtração de significado, quando um item torna-se menos lexical e mais gramaticalizado, e a
adição de significado, quando um item torna-se mais polissêmico. As principais causas para
mudança de significado, segundo Stephen Ullmann (1964), são seis: 1) linguísticas; 2) históricas; 3)
sociais; 4) psicológicas; 5) influência estrangeira; e 6) necessidade de um nome novo. Apesar de
muito interessantes, por questões de tempo e espaço, não estudaremos tais causas neste módulo
de semântica e pragmática, indico a leitura de Ullmann (1964) a todos que quiserem conhecer em
detalhe tais causas. Estudaremos, em vez disso, dois processos de expansão semântica, i.e. dois
processos de adição de significado: a metáfora e a metonímia.
A metáfora e a metonímia têm sido estudadas sob várias perspectivas, a mais tradicional
diz que ambos os processos são desvios de significado. Considerados desvios, esses significados
são concebidos como não literais e são chamados de figurativos, porque em tal abordagem tanto
a metáfora quanto a metonímia são simplisticamente vistas como figuras de linguagem, que têm a
finalidade de, com fins estilísticos e retóricos, criar figuras/imagens para ornar o discurso. Segundo
a mesma abordagem, o sinal para leão, em (01), não está com seu sentido literal48 de “felino
selvagem natural de savanas, cujo macho tem juba”, mas, por um desvio de significado, está com
o sentido metafórico de “bravo” e/ou de “forte”.

(01)

48
Sentido literal, na abordagem tradicional, diz respeito ao sentido expresso exclusivamente pelas letras/palavras.

LETRAS LIBRAS|216
A abordagem tradicional, apesar de parecer consistente, é falha em dois pontos: 1) faz-nos
supor que a metáfora não é um processo comum ao nosso dia a dia, mas restrito a campos
discursivos tais como a literatura e a propaganda; e 2) não é explicativa o suficiente para dar conta
das relações cognitivas existentes na metáfora.
Na década de 1980, porém, os estudos sobre a metáfora ganham uma nova roupagem com
as análises de George Lakoff e Mark Johnson (2002)49. Para os autores, a metáfora é o processo
cotidiano por meio do qual compreendemos e experienciamos uma entidade em termos de outra.
Esse processo, dizem Lakoff e Johnson, não pertence exclusivamente ao sistema linguístico, mas a
todo o sistema conceptual e, por ser baseado em nossas experiências com o mundo, é um modo
de estruturação do pensamento. Assim sendo, usar/produzir uma metáfora não mais é entendido
como desviar o sentido de uma palavra, porque “[…] A essência da metáfora é compreender e
experienciar uma coisa em termos de outra […]” (2002, p. 47−48, itálicos dos autores).
Segundo a abordagem da semântica cognitiva, na sentença em (01) acima existe a
metáfora ‘PESSOAS SÃO ANIMAIS’ e por meio dessa metáfora João é entendido em termos de outra
entidade que é o leão, esse entendimento é possível porque se percebem propriedades comuns
entre João e um leão, quais sejam: bravura e/ou força.
Lakoff e Johnson classificaram as metáforas em três tipos: estruturais, orientacionais e
ontológicas. As metáforas estruturais são aquelas que estruturam um conceito a partir de
outro(s). Desse tipo é (01) acima, em que, como já afirmado, o conceito JOÃO é compreendido a
partir do conceito de LEÃO e seus subconceitos BRAVURA e FORÇA. As metáforas orientacionais são
aquelas nas quais se organizam um sistema conceptual em termos de outro(s). Nesse grupo se
enquadram as metáforas que se fundamentam em oposições binárias de orientações espaciais tais
como: DENTRO–FORA, PARA CIMA–PARA BAIXO etc. A partir da metáfora ‘FELIZ É PARA CIMA’ tem-se uma
orientação que pode produzir expressões tais como (02) abaixo. Essa metáfora, como podemos
observar, é resultado da nossa experiência com o nosso corpo: observe que quando você está feliz
sua coluna fica mais ereta e sua cabeça se posiciona para cima em simetria com a linha do
horizonte; mas quando você está para baixo, i.e. triste, sua coluna tende a se curvar e você olhar
para baixo.

49
Original: LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press, 1980.

LETRAS LIBRAS|217
(02)

As metáforas ontológicas, por sua vez, são aquelas resultantes das experiências que
vivenciamos com objetos físicos, sendo o nosso corpo o principal desses objetos. Tais experiências
físicas (cf. LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 76) possibilitam-nos atribuir a eventos, atividades,
emoções etc. o caráter de substâncias e entidades. Em (03), a metáfora ‘ AMOR É UM BEM MATERIAL’
concebe um sentimento, o amor, como sendo uma substância do tipo bem material já que apenas
bens materiais são passíveis de compra.

(03)

Segundo Lakoff e Johnson (2002) a metáfora ontológica apresenta ainda um subtipo: a


personificação, que é o entendimento de objetos físicos como sendo pessoas, permitindo
conceber entidades não humanas como sendo portadoras de características e atividades
humanas. Metáforas como ‘CAMISA É UMA PESSOA’ e ‘QUADRO É UMA PESSOA’ permitem-nos usar, por
exemplo, sentenças como (04) e (05), que não apresentam nenhuma estranheza ainda que ser gay
e ser alegre sejam propriedades inerentes a pessoas.

(04)

(05)

Neste ponto, é necessário termos em mente que as sentenças (01)–(05) não são elas
próprias as metáforas, mas são “apenas” metafóricas. A metáfora está “dentro” dessas sentenças,

LETRAS LIBRAS|218
pois é o processo de: em (01) compreendermos que ‘PESSOAS SÃO ANIMAIS’; em (02)
compreendermos que ‘FELIZ É PARA CIMA’; em (03) compreendermos que ‘O AMOR É UM BEM MATERIAL’;
em (04) compreendermos que ‘CAMISA É UMA PESSOA’; e em (05) compreendermos que ‘QUADRO É
UMA PESSOA’. A metáfora, segundo Lakoff e Johnson (2002), é sempre um processo de
compreensão, ou seja, um processo cognitivo.
Além de ser um processo de compreensão e experienciação de um conceito x em termos
do conceito y, a metáfora é também um processo de expansão semântica, porque o uso constante
de uma metáfora tende a fortalecer essa relação entre os dois conceitos x e y e, quanto mais forte
for a relação, maior será a probabilidade de x se tornar mais polissêmico e incorporar o conceito
de y. Por exemplo: a compreensão constante do conceito LEÃO em termos dos conceitos BRAVO e
FORTE é tão comum que leão se tornou polissêmico, pois incorporou os sentidos metafóricos de
“bravo” e “forte” e, agora, não mais significa apenas “felino selvagem natural de savanas, cujo
macho tem juba” ou “o rei dos animais”. Outros casos como as expressões para baixo, para cima,
por fora, por dentro etc. são também exemplos de polissemia em que pelo menos um dos sentidos
é metafórico, respectivamente: “triste”, “alegre”, “desconhecedor” e “conhecedor”.
Além da metáfora outro processo de expansão semântica é a metonímia, que é um
processo referencial que objetiva o entendimento através da representação de uma entidade por
outra. É um processo no qual podemos usar uma entidade x para nos referirmos a uma entidade y
com a qual x mantém alguma relação. Podemos, a exemplo de (06), usar o nome do autor para
fazer referência a algum livro seu. Podemos, a exemplo de (07), usar o nome de uma cidade para
fazer referência aos seus habitantes (mesmo que não em sua totalidade).

(06)

(07)

LETRAS LIBRAS|219
Sabemos que em (06) se faz referência a algum livro do Saussure e não ao próprio
Saussure, porque ler é um verbo que toma como complemento um objeto que seja do tipo leitura
e humanos não são entidades desse tipo. Assim sendo, a metonímia consiste em no lugar de se
especificar qual o livro, especificar-se o autor, já que há relação entre o autor e sua obra. Já em
(07), há uma metonímia porque se faz referência à população de João Pessoa, mas em vez de se
especificar que trata da população, pois o verbo votar toma como sujeito uma entidade do tipo
humano, especifica-se a cidade na qual a população vive e, por conseguinte, com a qual tem
relação.
No entanto, no que diz respeito às línguas de sinais, o tipo de metonímia mais produtivo
parece ser a parte pelo todo, pois, nesse caso, por meio de uma parte faz-se referência ao todo.
Esse é geralmente o processo metonímico pelo qual as pessoas, cidades e instituições são
nomeadas. Veja em (08), (09) e (10) que os sinais fazem referência a alguma parte das entidades
que eles nomeiam.

(08) O sinal de Amy


Winehouse faz
referência aos seus
cabelos.

(09) O sinal da UFPB faz


referência às três
tochas e três linhas do
brasão da UFPB.

(10) O sinal de Florianópolis


faz referência à Ponte
Hercílio Luz.

LETRAS LIBRAS|220
A metonímia parte pelo todo está também presente em muitos sinais nos quais se
reconhece alguma iconicidade. Veja em (11) que o sinal para casa faz referência apenas a uma
parte da casa: o telhado. Veja também em (12) que o sinal para pássaro faz referência apenas a
uma parte do pássaro: o bico.

(11) (12)

Ainda em língua de sinais é comum o que podemos chamar de metonímia movimento pela
entidade. Neste caso, o sinal de uma pessoa, objeto ou ação faz referência a algum movimento
comum a alguém ou alguma ação realizada com algum objeto. Esse é o caso do sinal para Michael
Jackson em (13), para xícara em (14) e para dançar em (15).

(13) O sinal de Michael Jackson


faz referência a um dos seus
movimentos de dança.

(14) O sinal de xícara faz


referência ao movimento de
levar a xícara do pires à
boca.

(15) O sinal de dançar faz


referência a um dos
movimentos da dança.

LETRAS LIBRAS|221
Assim como a metáfora, a metonímia contribui para a expansão semântica tornando as
palavras e sinais (mais) polissêmicos. Palavra, por exemplo, por meio da metonímia parte pelo
todo pode significar “fala”, “ensinamentos” e “discurso”. Universidade, empresa e igreja são
exemplos em que a metonímia instituição pela(s) pessoa(s) e prédio(s) é responsável pela
polissemia. Cabeça, por exemplo, literalmente significa “extremidade do corpo acima do pescoço”,
mas significa “cérebro” e “inteligência” por metonímia e “inteligente” por metáfora.
Veja, ainda, que as expressões cabeça e cobra com o significado metafórico de
“inteligente” são conotativamente positivas e socialmente indicam fala de pessoas geralmente
jovens, daí, ainda que possa ter o significado social associado a gírias, é elogioso dizer que alguém
é cabeça ou cobra. Mas quando cobra tem o significado de “perigoso” ou “falso” sua conotação é
negativa, disso decorre que é grosseiro dizer que alguém é uma cobra. Aspectos semelhantes
ocorrem com bicho, por exemplo.
Tanto a metonímia quanto a metáfora, por serem processos que utilizamos com muita
frequência nas interações linguísticas diárias, são interpretadas de forma tão natural que no(s)
nosso(s) vernáculo(s) raramente paramos para refletir sobre as interpretações em jogo. Como
prova, leia abaixo a tirinha do Chico Bento e veja que, ao ignorar a metonímia parte pelo todo o
personagem instantaneamente cria o efeito de humor.

50

Por fim, antes de partirmos para o próximo capítulo, veja, no uso da palavra progresso no
último quadro da tirinha do Papa-capim, como a metáfora “PROGRESSO É DESTRUIÇÃO” é uma boa
estratégia para demonstrar a tristeza dos nossos simpáticos personagens e para nos fazer refletir

50
Disponível em: <http://www.monica.com.br/cookpage/cookpage.cgi?!pag=comics/tirinhas/tira309>. Último acesso em: 21 dez.
2011.

LETRAS LIBRAS|222
sobre como compreendemos o progresso e se para nós ele tem uma conotação negativa ou
positiva.

51

REFERÊNCIAS

LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Campinas−SP: Mercado de Letras; São
Paulo: Educ, 2002.

ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1964.

51
Disponível em: <http://www.monica.com.br/comics/tirinhas/tira200.htm>. Último acesso em: 21 dez. 2011.

LETRAS LIBRAS|223
UNIDADE IV

NEXOS DE SIGNIFICADO

Há diversos nexos de significado e todos eles são muito interessantes, no entanto não
teremos tempo de abordar todos eles neste módulo. Por isso, selecionei alguns que são
considerados os mais essenciais. Desse modo, neste capítulo vamos tratar da sinonímia, da
hiponímia, da hiperonímia, da antonímia, da contradição e da contrariedade. Acredito que você irá
gostar bastante de refletir sobre eles de forma mais explícita.
A sinonímia é um nexo entre expressões que têm significados semelhantes: casa e
residência, são bons exemplos. Mas veja, eu falei em significados semelhantes, não falei em
significados totalmente idênticos. Tratar expressões sinônimas como semelhantes nos possibilita
reconhecer que entre sinônimos geralmente existe alguma diferença de significado e que nem
sempre uma das expressões poderá substituir a outra, compare os pares abaixo:

(01) a. A casa de João é aconchegante.


b. A residência de João é aconchegante.

(02) a. João comprou uma casa.


b. ? João comprou uma residência.

Veja que em (01) casa e residência podem substituir uma a outra sem nenhum problema
semântico. Já em (02) a substituição de casa por residência resulta em uma sentença
relativamente estranha, e para alguns é até mesmo semanticamente inaceitável. Compare agora
os dois pares que seguem.

LETRAS LIBRAS|224
(03) a.
Maria é velha.

b.
Maria é idosa.

(04) a.
Minha casa é velha.

b. *
* Minha casa é idosa.

Considerando o sentido literal, em (03) velho e idoso podem intercambiar-se sem nenhum
problema semântico, mas (04) esse intercâmbio não é possível. Exemplos desse tipo são muito
bons para nos ajudar a desfazer o mito de que sempre podemos substituir uma palavra por
qualquer um dos seus sinônimos. A sinonímia geralmente é imperfeita.
Há, porém, casos de sinonímia perfeita, mas são casos raros e geralmente se
circunscrevem a contextos técnicos. Lyons (1987) lembra o caso de cecite e tiflite que significam
“inflamação do ceco”. Tal tipo de sinonímia é um fenômeno raro, porque parece pouco produtivo
a língua ter mais de uma palavra para significar exatamente a mesma coisa. Dessa
improdutividade decorre que quando acontece sinonímia perfeita, uma das palavras tende a

LETRAS LIBRAS|225
desaparecer: este é o caso de amplexo (palavra do século XIV) que, por significar exatamente a
mesma coisa de abraço (palavra do século XV), caiu em desuso.
A sinonímia caracteriza-se como identidade de significado e, por conseguinte, duas ou mais
expressões são ditas sinônimas quando significam (mais ou menos) a mesma coisa. Em Libras
(05a) e (05b) são sinônimas, mas perceba, comparando as sentenças em (06a) e (06b), que são
sinônimos imperfeitos pois o uso de (05b) em (06b) é semanticamente estranho.

(05) a. b.

Velh@ Idos@

(06) a.

O livro de Maria está velho.

b. *

*O livro de Maria está idoso.

A sinonímia é um nexo de significado que pode estar presente apenas no nível lexical,
apenas no nível sentencial ou em ambos. Vale, no entanto, atentarmos para três pontos. O
primeiro é que a sinonímia lexical pode resultar em sinonímia sentencial se duas ou mais
sentenças, a exemplo dos pares em (01) e em (03) acima, diferem entre si apenas em
palavras/sinais que são sinônimas uma da outra. O segundo é que não é necessário duas ou mais
sentenças apresentarem sinonímia lexical para que sejam sinônimas entre si, como mostra o par

LETRAS LIBRAS|226
em (07) abaixo. O último ponto é que há casos de sentenças que não são sinônimas apesar de
apresentarem palavras sinônimas, como é o caso de (08). Das três observações podemos então
concluir que a sinonímia lexical não implica a sentencial nem vice-versa.

(07) a.

Semântica não é pragmática.

b.

Semântica é diferente de pragmática.

(08) a.

João viu Maria.

b.

Maria enxergou João.

Há dois outros nexos de significados lexicais bem interessantes e que comumente são
confundidos com a sinonímia: a hiponímia e a hiperonímia. Tanto hipo quanto hiper vêm do grego,
o primeiro significa “abaixo” e o segundo “acima”. Onímia também vem do grego e significa
“nome”. Assim sendo, numa taxonomia hipônimo é um nome que está abaixo de outro e
hiperônimo é um nome que está acima de outro. Analisemos essas relações na taxonomia a
seguir, que adaptei da biologia.

LETRAS LIBRAS|227
Além da taxonomia lembrar das aulas de biologia, ela nos ajuda a visualizar as relações de
hiponímia e de hiperonímia lexicais. Veja que a categoria cão está abaixo da categoria canídeo.
Assim, se a categoria cão é nomeada pela palavra cão e a categoria canídeo é nomeada pela
palavra canídeo, então cão está abaixo de canídeo, logo cão é um hipônimo de canídeo e canídeo
é, por consequência, um hiperônimo de cão. E cão em relação a pinscher é hipônimo ou
hiperônimo? Basta olhar mais uma vez a taxonomia e você achará a resposta: cão é hiperônimo de
pinscher porque cão está numa posição mais alta.
Poderíamos também observar as relações de hiponímia e hiperonímia por meio de
conjuntos, como o que segue abaixo.
ser vivo
animal
não-humano
mamífero
canídeo
cão
labrador

pinscher
humano

equídeo

felídeo

raposa
planta

peixe

lobo
ave

...
...
...
...
...
...

LETRAS LIBRAS|228
Valendo-se de conjuntos identificamos a hiponímia e a hiperonímia por meio das relações
de continência: continente e contido. O hipônimo é o conjunto contido e o hiperônimo é o
conjunto que contém, i.e. o continente. Veja que o conjunto dos seres vivos contém dois
subconjuntos: o das plantas e o dos animais. Logo, o ser vivo é hiperônimo de planta e animal. Por
outro lado, planta e animal são hipônimos de ser vivo porque as plantas e os animais estão
contidos no conjunto dos seres vivos. Assim sendo, você consegue perceber que uma vez que o
conjunto dos cães está contido no conjunto dos canídeos, cão é hipônimo de canídeo? Se sim,
você também deve já estar percebendo que cão é hiperônimo de labrador e pinscher porque o
conjunto dos cães contém os conjuntos dos labradores e dos pinscheres.
Neste ponto vale lembrar que hipônimos não mantém nexo apenas com os respectivos
hiperônimos, existe também a co-hiponímia, que é o nexo que todos os hipônimos de um mesmo
hiperônimo mantém entre si. Por exemplo: 1) labrador e pinscher são co-hipônimos, porque
ambos são igualmente hipônimos de cão; e 2) equídeo, felídeo e canídeo são co-hipônimos porque
todos três são igualmente hipônimos de mamífero. Para você ficar mais expert em hiperonímia,
hiponímia e co-hiponímia, sugiro que observe um pouco mais como todos os subconjuntos do
conjunto acima se relacionam. Você chegará aos mesmos resultados se fizer a analise tanto
conjuntística quanto taxonômica.
De imediato podem parecer triviais e pouco práticas as relações de hiponímia e
hiperonímia. No entanto, em nossas interações linguísticas valemo-nos cotidianamente do
conhecimento internalizado que temos a respeito desses nexos. Eles são um dos responsáveis pela
coesão textual.
Para finalizarmos este capítulo, vejamos agora três outros nexos de significado que são
muito utilizados no nosso dia a dia mas talvez você não tenha ainda parado para analisá-los com
um pouco mais de calma: a antonímia, a contradição e a contrariedade.
Antonímia ocorre quando duas ou mais palavras apresentam alguma oposição de
significado entre si a exemplo de bom e ruim. Segundo Oliveira (2008), de acordo com a oposição
realizada, a antonímia pode ser classificada em quatro tipos: oposição gradual/polar, oposição
contraditória/privativa, oposição conversa e oposição equipolente.
A oposição gradual (ou polar) ocorre entre itens que, além de estarem em oposição
semântica, são vagos, pois a vagueza possibilita que se reconheçam graus, ou seja, níveis
diferentes de uma determinada propriedade. Algo pode ser um pouco bom, razoavelmente bom,

LETRAS LIBRAS|229
ou bom, por exemplo. Algo que é pouco bom está um pouco próximo de algo pouco ruim e vice-
versa. Já algo bom ou razoavelmente bom está bem distante de algo ruim ou razoavelmente ruim.
A escala abaixo mostra não apenas essa gradualidade, mas também a oposição entre bom e ruim,
situando-os em polaridades diferentes.

Outros exemplos de oposição gradual são quaisquer palavras que além de vagas têm um
oposto também vago como, por exemplo, bonito/feio, gordo/magro, velho/novo etc. Além de
adjetivos, advérbios podem também se apresentar em oposição gradual: fracamente/fortemente,
tristemente/alegremente etc.
A oposição contraditória (ou privativa) ocorre em pares cujos elementos são excludentes
entre si, não são graduais e a negação de um funciona como sinônimo do outro. No par
vivo/morto encontramos as três propriedades mencionadas: 1) são excludentes entre si, pois ou
alguém está vivo ou está morto; 2) não são graduais, logo literalmente alguém não pode estar
pouco vivo ou pouco morto; e 3) a negação de um é sinônimo do outro, não vivo é a negação de
vivo e sinônimo de morto. Outros exemplos são os pares partir/ficar, vida/morte etc.
A oposição conversa, como afirma Oliveira (2008), ocorre por meio de dois termos que
expressam o mesmo evento ou estado sob perspectivas diferentes. O curioso é que esse tipo de
antonímia gera uma paráfrase, pois uma perspectiva acarreta a outra. Esse é o caso de pai/filho(a)
em (09).

(09) a.
Nilton é pai de Dodô/Alexandre.

b.
Dodô/Alexandre é filho de Nilton.

LETRAS LIBRAS|230
Veja que a e b expressam o evento da paternidade sob duas perspectivas: a do pai e a do
filho. Essas duas perspectivas se acarretam mutuamente, pois se Nilton é pai de Dodô então
necessariamente Dodô é filho de Nilton e vice-versa.
Outros exemplos de oposição conversa são dar/ganhar, comprar/vender, antes de/depois
de etc.
A oposição equipolente é relação de incompatibilidade entre palavras que são co-
hipônimas, pois ao mesmo tempo que essas palavras se aproximam, por terem o mesmo
hiperônimo, elas se opõem devido ao fato de expressarem propriedades diferentes. Cão, lobo e
raposa são então equipolentes porque: 1) se opõem ao nomearem categorias distintas entre si;
mas 2) também têm alguma identidade: serem canídeos. O mesmo vale para os dias da semana:
sábado não tem como antônimo nenhum outro dia da semana específico, no entanto se opõe a
todos eles e por isso é um dia diferente, ainda que compartilhe com todos os outros dias a
propriedade de ser um dia da semana. Repetindo então: a oposição equipolente é a oposição
existente entre co-hipônimos.
Até agora tratamos de nexos de significados de oposições lexicais. Inseridos no nível da
sentença, esses nexos provocam outros nexos de oposição a exemplo da contradição,
contrariedade, subcontrariedade etc. Aqui trataremos apenas da contradição e da contrariedade.
A contradição é o nexo entre duas sentenças que apresentam sentidos impossíveis de
serem verdadeiros ou falsos simultaneamente. Este é o caso de (10a) e (10b) abaixo.

(10) a.

João está morto.

b.

João está vivo.

LETRAS LIBRAS|231
Morto e vivo, como vimos, apresenta oposição entre si, mais precisamente a oposição
contraditória, logo se João está morto João não está vivo, e vice-versa. Noutros termos, se for
verdade que João está morto, é falso que João está vivo e vice-versa: ou a é verdadeira, ou b é
verdadeira, as duas juntas não podem ser nem verdadeiras nem falsas. Como as duas não podem
ser falsas juntas, necessariamente uma delas será verdadeira.
Analisemos agora o par em (11) em que sábado e domingo apresentam relação de
oposição equipolente.

(11) a.
Hoje é sábado.

b.
Hoje é domingo.

Se a for verdadeira, b será falsa e se b for verdadeira, a será falsa. Mas veja um detalhe
muito curioso: na contrariedade as duas sentenças não podem ser simultaneamente verdadeiras,
apenas uma pode ser verdadeira, mas não há nada que impeça ambas de serem falsas. Compare:
1) duas sentenças contraditórias não podem ser simultaneamente falsas; mas 2) duas sentenças
contrárias podem ser falsas ao mesmo tempo. Veja, por exemplo, que se hoje for segunda-feira, as
duas sentenças em (11) são ambas falsas; o mesmo ocorre se hoje for terça, quarta, quinta ou
sexta-feira. O mesmo padrão de valor de verdade de (11) vale para o par em (12) abaixo, pois que
bom e ruim por apresentarem oposição gradual constroem uma escala de opções. Consulte a
escala de oposição gradual acima e veja que um dia de chuva pode não ser bom nem ruim, por
exemplo.

LETRAS LIBRAS|232
(12) a.
Dia de chuva é bom.

b.
Dia de chuva é ruim.

Como você pode ver, os nexos de significados são muito interessantes e são
procedimentos utilizados com muita naturalidade e frequência no dia a dia. Se você está propenso
a se dizer “Pôxa, eu utilizava tudo isso sem saber!”, eu peço que não diga. Você, como nativo de
sua(s) língua(s), sabe, sim, utilizar todos esses nexos de significado, às vezes com um pouco mais
de desenvoltura, às vezes com um pouco menos, mas sabe. O que talvez você não soubesse ainda
era explicitar/explicar esses nexos de significado que fazem parte da sua proficiência em sua(s)
língua(s) mãe(s).

REFERÊNCIAS

OLIVEIRA, Luciano Amaral. Manual de semântica. Petrópolis: Vozes, RJ: 2008.

LETRAS LIBRAS|233
UNIDADE V

PRESSUPOSIÇÃO

Imagine que eu tenho um amigo chamado Zé. Imagine também que hoje de manhã Zé me
liga e nós temos o seguinte diálogo:

Zé: Fala, rapaz! Como tu estás?


Eu: Beleza, e tu?
Zé: Eu estou bem também. Ei, te liguei para contar a nova.
Eu: É mesmo? O quê?
Zé: João parou de fumar.
Eu: João parou de fumar? Quem te disse isso?
Zé: Parou. Ele me disse agora há pouco.
Eu: Rapaz, já ouvi essa história antes. Te garanto que João não parou de fumar.
Se João parou de fumar eu mudo meu nome.
Zé: O médico disse que se ele realmente não parasse de fumar, o tratamento não ia ter
efeito nenhum e fazer químio só ia prejudicá-lo ainda mais.
Eu: Sabe, estou torcendo mesmo pra que ele tenha parado.
Zé: Eu também, cara. Então, vamos comemorar? João parou de fumar!
Eu: Viva! João parou de fumar! Hahaha!!!
Zé: Ei, acabou de chegar um cliente aqui, eu vou lá atender. Depois a gente se fala.
Eu: Tá certo. Abração!

A novidade posta em cena por Zé, “João parou de fumar.”, parece ser algo que tenha
exigido bastante esforço de João, não é? Ok, tudo bem! Você pode discordar de mim de que parar
de fumar tenha exigido muito esforço de João, pois você pode pensar ou saber, se você conhecer
bem João, que ele de fato nunca nem teve a intenção de parar de fumar, apenas fazia de contas

LETRAS LIBRAS|234
para agradar à esposa ou aos amigos. Mas um ponto de vista todos nós (Zé, eu e você)
compartilhamos: João fumava. Observe, porém, que em nenhuma parte do diálogo nós
encontramos a sentença ‘João fumava.’, ainda assim assumimos como verdadeira a informação de
que João fumava.
Você pode argumentar que a informação de que João fumava não está explícita no diálogo,
mas de alguma forma ela está lá, ou seja, você pode me dizer: “Ela está implícita.”. E eu posso
perguntar: “Como você sabe que essa informação está lá implícita?”. Você pode não querer
refletir sobre o assunto e me responder com “Ah, eu não sei. Mas está lá sim.”, ou você pode
refletir um pouco e me dizer “Eu sei por causa do verbo parar: é o verbo parar que mostra ou
ativa essa informação implícita. Se que eu digo que alguém parou de fumar é porque essa pessoa
fumava.”. Bingo para você!
A informação implícita que, por meio de um ativador, é apresentada como sendo
compartilhada e assumida como verdadeira em uma interação linguística é chamada, em
semântica e em pragmática, de pressuposto. Um ativador de pressuposição é um elemento
linguístico (afixo, palavra ou expressões em geral) que está presente no posto e coloca em cena,
i.e., ativa, o pressuposto. Em complementaridade à noção de pressuposto existe a de posto, que é
a informação expressa de forma explícita em uma sentença, ou simplificadamente, é a própria
sentença enunciada. Assim sendo, no diálogo acima, (01) é o posto e (02) é o pressuposto. Ou,
dito de outra forma, (01) é a informação posta e (02) é a informação pressuposta.

(01) João parou de fumar.

(02) João fumava.

LETRAS LIBRAS|235
Do diálogo acima podemos retirar as sentenças em (03) abaixo.

(03) a. João parou de fumar. à (Afirmativa)

b. João parou de fumar? à (Interrogativa)

c. João não parou de fumar. à (Negativa)

d. Se João parou de fumar eu mudo meu nome. à(Condicional)

e. João parou de fumar! à(Exclamativa)

As sentenças elencadas em (03) formam o que se chama família de sentenças, que são as
diversas formas gramaticais sob as quais uma relação predicativa pode apresentar-se. Veja que em
(03) todos os elementos da família apresentam as mesmas relações predicativas internas: os
mesmos eventos de parar e de fumar, e o mesmo participante, João. Cada um dos membros da
família, no entanto, tem uma estrutura gramatical diferente, quais sejam: afirmativa,
interrogativa, negativa, condicional e exclamativa52. O resultado das mesmas relações predicativas
que uma família compartilha é que se uma sentença é pressuposto de um elemento da família,
será igualmente pressuposto de toda a família. Se acima eu apresentei (02) como pressuposto de
(01), agora podemos perceber que (02) é pressuposto de toda a família em (03), ou seja, a
informação pressuposta é válida para qualquer membro da família, pois:

a) ‘João parou de fumar.’ pressupõe ‘João fumava.’;


b) ‘João parou de fumar?’ pressupõe ‘João fumava.’;
c) ‘João não parou de fumar.’ pressupõe ‘João fumava.’;
d) ‘Se João parou de fumar eu mudo meu nome.’ pressupõe ‘João fumava.’;
e) ‘João parou de fumar!’ pressupõe ‘João fumava.’.

Poderíamos perguntar o porquê de cada membro da família ter uma estrutura gramatical
diferente e ainda assim não apresentar pressupostos diferentes. A resposta é simples: em todos os
membros o(s) ativador(es) permanece(m) o(s) mesmo(s). No caso da família em (03) o ativador

52
A forma interrogativa negativa é outro membro da família: ‘João não parou de fumar?’

LETRAS LIBRAS|236
parar está presente em todos os membros. Veja, porém, que as sentenças em (04) e (05) abaixo
não pertencem à família em (03), ainda que a ela se assemelhem.

(04) João começou a fumar.

(05) João parou de nadar.

É fácil perceber o motivo pelo qual (04) e (05) não pertencem à família em (03): elas não
são uma das diversas formas gramaticais sob as quais uma determinada relação predicativa pode
se realizar. São relações predicativas diferentes que, por consequência, denotam eventos e/ou
participantes diferentes: em (04) começar substitui parar, e em (05) nadar substitui fumar. Como,
porém, tanto (04) quanto (05) têm ativadores de pressuposição, ambas apresentam pressupostos,
que são respectivamente (06) e (07), pois: a) se João começou a fumar, pressupõe-se que João não
fumava; e b) se João parou de nadar, pressupõe-se que João nadava.

(06) João não fumava.

(07) João nadava.

LETRAS LIBRAS|237
Por outro lado, um mesmo pressuposto pode pertencer a sentenças e famílias diferentes.
O pressuposto em (02), por exemplo, pode pertencer à sentença em (08) abaixo e a sua respectiva
família, pois é pressuposto que se alguém continua a fazer algo é porque tal alguém já fazia esse
algo.

(08) João continua a fumar.

O fato de um pressuposto poder pertencer a mais de uma sentença, não implica que todo
pressuposto pertença a mais de uma sentença. O pressuposto (02) pertence tanto a (01) quanto a
(08), mas, como vimos, não pertence nem a (04) nem a (05).
É tão natural que um pressuposto valha não só para uma sentença mas sim para a toda a
família, que, no diálogo com que abrimos este capítulo, o pressuposto ‘João fumava.’ funciona
como um nexo entre os membros da família porque é ativado em cada parte do texto onde ocorre
algum desses membros. Disso decorre que esse nexo funciona também como um dos elementos
de coesão sobre os quais os interlocutores desenvolvem um diálogo a respeito do fato de João ter
parado de fumar por assumirem como compartilhada a informação implícita de que João fumava.
Um detalhe muito curioso é que se uma informação é compartilhada ela é do conhecimento pelo
menos dos interlocutores, ou seja, é uma informação “velha”, uma informação conhecida.
No entanto, é bom evitar afirmar que o pressuposto é uma informação compartilhada, ou
seja, velha. É melhor afirmar que o pressuposto é apresentado como uma informação assumida
como compartilhada, porque há casos em que essa informação não é velha, isto é, não é do
conhecimento de pelo menos um dos interlocutores. No entanto, ainda assim ela pode ser
apresentada como se fosse compartilhada, esta é, por exemplo, uma estratégia comum do
fofoqueiro.
Como a pressuposição é ativa por algum elemento linguístico, vejamos então uma breve
lista de ativadores de pressuposição.

LETRAS LIBRAS|238
1) Verbos de mudança de estado (Verbos que indicam mudança/alternância de estado.): parar,
findar, começar, iniciar etc.

(09) Posto: João parou de fumar.


Pressuposto: João fumava.

2) Verbos de permanência de estado (Verbos que indicam permanência ou continuidade de


estado.): continuar, permanecer etc.

(10) Posto: João continua/permanece fumando.


Pressuposto: João fumava.

3) Verbos factivos (Verbos que indicam fatos.): lamentar, saber etc.

(11) Posto: Pedro sabe que João parou de fumar.


Pressuposto: João parou de fumar.

4) Verbos implicativos (Verbos que indicam um evento/ação que dependem de outro


evento/ação.): conseguir – ter tentado; acordar – estar dormindo, fechar – estar aberto; abrir –
estar fechado etc.

(12) Posto: João conseguiu parar de fumar.


Pressuposto: João tentou parar de fumar.

5) Iterativos (elementos que indicam repetição): re-, de novo, novamente, outra vez etc.

(13) Posto: João parou de fumar de novo.


Pressuposto: João já tinha parado de fumar alguma vez.

6) Nomes próprios (Nomes que denotam entidades específicas): nomes de pessoas, instituições,
lugares etc.

(14) Posto: João Pessoa é uma cidade arborizada.


Pressuposto: Existe algo que seja João Pessoa.

LETRAS LIBRAS|239
7) Descrições de definidas (expressões que descrevem entidades): estruturas do tipo
“Determinante (+ expressão adjetiva) + Substantivo (+ expressão adjetiva).

(15) Posto: O filho de Maria é alto.


Pressuposto: Existe alguém que é filho de Maria.

Pelos tipos de ativadores de pressuposição listados acima você deve ter reconhecido mais
outra pressuposição presente em (01), (03), (04), (05) e (08): a pressuposição em (16) ativada pelo
nome próprio João. Não é nada raro uma sentença apresentar mais de uma pressuposição. Às
vezes elas apresentam uma quantidade relativamente grande de pressuposições.

(16) Existe um indivíduo chamado João.

Para finalizarmos, vamos nos centrar um pouco mais nas descrições definidas, que são
estruturas do tipo “Determinante (+ expressão adjetiva) + Substantivo (+ expressão adjetiva),
como podemos conferir no quadro abaixo.

SUJEITO PREDICADO
DESCRIÇÃO DEFINIDA à SINTAGMA NOMINAL SINTAGMA
DETERMINANTE EXPRESSÃO SUBSTANTIVO ESPRESSÃO VERBAL
ADJETIVA ADJETIVA
O rapaz sorriu.
O tímido rapaz sorriu.
O rapaz tímido sorriu.
O tímido rapaz franzino sorriu.
O tímido rapaz de azul
O tímido rapaz que estava sorriu.
falando com
Maria

O quadro acima mostra-nos que as descrições definidas não têm uma estrutura muito
rígida, apenas dois constituintes são essenciais: o determinante, comumente um artigo definido, e

LETRAS LIBRAS|240
o substantivo53. As expressões adjetivas são flexíveis não só no que diz respeito à posição e
possibilidade de não ocorrem, mas também no que tange à sua estrutura. Elas não têm estrutura
fixa, pois podem se manifestar sob diferentes estruturas sintáticas desde que tenham função de
adjetivo, no quadro acima: 1) os sintagmas adjetivais tímido e franzino; 2) o sintagma
preposicional de azul; e 3) a oração subordinada adjetiva que estava falando com Maria.
Como as descrições definidas e nomes próprios são ativadores de pressuposição dos quais
nos valemos com muita frequência no nosso dia a dia, o uso de pressuposições é uma prática
cotidiana. O pressuposto ativado pelas descrições definidas e pelos nomes próprios recebe um
nome específico: pressuposto de existência. Esse nome decorre do fato de que somos levados a
pressupor a existência das entidades que são nomeadas e/ou definidas pelos dois tipos de
ativadores em questão. Não obstante, é preciso estar atento a um fato: quando usamos um nome
próprio ou uma descrição definida não estamos atestando que algo ou alguém existe, estamos
apenas pressupondo que esse algo ou alguém exista. Para de fato atestarmos a existência dessas
entidades, precisamos olhar para o mundo, pois a língua não é um espelho do mundo, nem é
usada apenas para se falar sobre entidades e eventos que realmente existem no mundo biofísico
em que vivemos. Atestar a existência de entidades e eventos no mundo não é uma tarefa da
semântica, mas sim da metafísica, da física, da biologia etc. Assim sendo, veja que (17) abaixo
pressupõe, mas não atesta a existência de algum lobisomem. Para sabermos se ele existe,
precisamos pesquisar no mundo (Em todo caso, eu espero que nunca nos deparemos com
algum!).

(17) Maria viu o lobisomem semana passada.

A pressuposição é um fenômeno que muitos estudiosos assumem ser exclusivamente


semântico, pois é ativado por uma marca linguística. Outros, no entanto, assumem que ela é um
fenômeno de interface entre a semântica a pragmática pois pode ser pragmaticamente cancelada,
dentre estes linguistas encontra-se Heronides M. de M. Moura (2000).

53
Para alguns pesquisadores, uma descrição definida pode até mesmo se constituir de apenas um substantivo. Assim sendo, em
‘Rapazes geralmente gostam de malhar.’ pode-se reconhecer uma descrição definida: rapazes, que ativa o pressuposto “Existe algo
que seja equivalente a rapazes.”.

LETRAS LIBRAS|241
Segundo Moura (2000) a pressuposição é dinâmica e podemos cancelar uma pressuposição
por meio de algum encadeamento linguístico que façamos ao posto. Veja que (18) pressupõe (02),
abaixo repetido; mas se a (18) encadearmos ‘porque ele nunca fumou’ temos (19), uma sentença
cuja pressuposição foi cancelada.

(18) João não parou de fumar.


(02) João fumava.

(19) João não parou de fumar, porque ele nunca fumou.

Há muito mais coisas interessantes que podemos aprender a respeito da pressuposição.


Inclusive sob a relevante abordagem da semântica argumentativa de Oswald Ducrot (1987), que
trata a pressuposição como fonte de polifonia usada como instrumento de argumentação. Essa
abordagem, no entanto, fica para estudos futuros se você tiver interesse em se aprofundar sobre
o assunto. Não esqueçamos porém uma coisa: nossas interações linguísticas diárias não se
desenvolvem apenas sobre informações novas, mas também se desenvolvem sobre informações
assumidas como compartilhadas, sejam elas de fato compartilhadas ou não. Essas informações
implícitas assumidas como compartilhadas que chamamos de pressupostos são, assim, uma das
bases sobre as quais se desenvolve a interação linguística.

REFERÊNCIAS

DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes, 1987.

MOURA, Heronides M. de M. Significação e contexto: uma introdução a questões de semântica e


pragmática. Florianópolis: Insular, 2000.

LETRAS LIBRAS|242
UNIDADE VI

ATOS DE FALA

Vimos, na introdução deste módulo, que é possível definir a semântica como o estudo do
significado linguístico. Também vimos que a pragmática54 é a ciência/disciplina que estuda o
significado em uso, ou seja, o significado do falante. Mais precisamente, essa definição de
pragmática quer dizer que tal disciplina se interessa pelo significado em situações reais ou virtuais
de uso, isso implica então se tratar do significado que os falantes produzem e/ou reconhecem em
uso, pois não existe uso sem falante.
É importante termos em mente que para a pragmática significado não tem o mesmo
significado que tem para a semântica. Apesar da sua soberba, Humpty Dumpty, de Alice no país
dos espelhos, caminha por veredas pragmáticas ao afirmar que quando ele usa uma palavra ela
significa exatamente o que ele quer que ela signifique, nem mais nem menos. A personagem peca
pelo exagero, mas sua afirmação ecoa, em 1953, nas Investigações filosóficas do austríaco Ludwig
Wittgenstein, que considerava que o significado de uma palavra era o seu uso. Essa definição é
muito interessante, mas lembrando que a unidade de trabalho da pragmática é o enunciado,
podemos dizer que o significado de um enunciado é o seu uso. Assim sendo, em pragmática
significado significa “uso”; ou nos enquadrando na teoria dos atos de fala, podemos também dizer
que significado significa “ação”. Colocando em prática a noção pragmática de significado, eu
pergunto a você: qual o significado pragmático de (01) abaixo?

(01)

54
Para conhecer um pouco da história da pragmática, consulte: ARMENGAUD, Françoise. A pragmática. São Paulo: Parábola, 2006.

LETRAS LIBRAS|243
O enunciado (01) pode significar várias coisas: pedido, reclamação, repreensão etc. Ou
seja: o significado pragmático de (01) é cada um dos usos ou cada uma das ações que realizamos
ao utilizar tal enunciado. Se eu usar o enunciado em tela para pedir uma informação a respeito
das horas, esse enunciado significará um pedido; se nós usarmos o mesmo enunciado para
reclamar do atraso de um ônibus, tal enunciado significará uma reclamação; e se um diretor usar o
mesmo enunciado para repreender um subalterno que chegou atrasado, o mesmíssimo enunciado
significará uma repreensão. Desse modo, fica claro que o significado pragmático é cada um dos
usos que fazemos de um enunciado, ou, dito de outra forma, cada uma das ações de realizamos
ao enunciarmos algo.
Diante do exposto, você já percebeu que o contexto extralinguístico é muito importante
para a pragmática. Esse contexto envolve entidades como enunciado, enunciação, locutor,
alocutário e interlocutores55. Além de variáveis como quem, quando, onde, por que, como etc.
Como vimos no primeiro capítulo, o enunciado é a realização concreta de uma sentença/frase e a
enunciação é o processo pelo qual uma sentença se transforma em um enunciado.
O locutor, ao seu turno, é aquele que produz um enunciado e por ele se responsabiliza,
seja esse enunciado oral ou escrito. O alocutário é aquele para quem o locutor enuncia. Locutor e
alocutário são interlocutores entre si.
O processo pragmático de produção de enunciados pode ser resumido da seguinte forma:
com determinadas intenções interacionais em relação a seu alocutário (real ou virtual), o locutor
produz um enunciado situado temporal e localmente.
O processo pragmático de interpretação (e análise) pode ser resumido da seguinte forma:
o alocutário (ou analista) tenta identificar qual o significado de tal enunciado e para isso leva em
consideração variáveis como o que foi enunciado, onde e quando ocorreu o enunciado, quem o
enunciou e com que intenção o enunciou.
Tanto a produção quanto a interpretação e a análise podem parecer complicadas demais,
no entanto são processos que realizamos de forma muito natural nas nossas interações
cotidianas.
A pragmática, considerando esses processos, levantou uma série de questões muito
interessantes para os estudos da linguagem. Esses estudos, vale ressaltar, eram inicialmente

55
Existe também o enunciador, que aqui não abordaremos apesar de se tratar de uma figura muito cara especialmente à
semântica argumentativa.

LETRAS LIBRAS|244
realizados na filosofia (como sempre!), mais especificamente na filosofia da linguagem56. O grande
momento, porém, que a pragmática fez-se reconhecer como fundamental à linguística foi no início
dos estudos dos atos de fala, mais precisamente com a publicação de How to do things with
words57, do britânico John Langshaw Austin, em 1962.
A teoria dos atos de fala afirma que quando nos comunicamos automaticamente
realizamos diversos atos por meio da língua. Esses atos, vale enfatizar, não correspondem apenas
aos atos de comunicar pensamentos e sentimentos ou descrever o mundo, são de diversos outros
tipos a exemplo de convidar, ameaçar, declarar, pedir etc.
Austin não se deteve nas primeiras evidências e mostrou que cada enunciado não realiza
apenas um ato específico, porém três atos articulados entre si: locucionário, ilocucionário e
perlocucionário.
O ato locucionário é o ato de se dizer algo, de produzir uma locução, ou seja, o ato de
produzir um enunciado. Por exemplo, é o ato de enunciar (02) abaixo.

(02) Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!

O ato ilocucionário é a ação posta em cena por meio do ato locucionário, ou seja, a ação
realizada ao enunciarmos algo. Por exemplo, ao enunciar (02) acima o locutor não realiza só o ato
locucionário, que é ação de enunciar, realiza também um outro ato, o ilocucionário, que é a ação
de batizar.
O ato perlocucionário é a consequência do ato ilocucionário. Por exemplo, ao enunciar
(02) acima o locutor realiza os atos locucionário e ilocucionário já mencionados e como
consequência deste segundo ato tem-se o ato perlocucionário de alguém tornar-se batizado.
Há, porém, algo muito parecido com o ato perlocucionário: o propósito ilocucionário.
Como o ato perlocucionário é a consequência do ilocucionário, ele não dependente
exclusivamente do locutor. Quando, por exemplo, um assaltante ameaça a alguém, o propósito
ilocucionário do assaltante, ou seja, seu objetivo, é deixar esse alguém amedrontado para que
possa então roubar-lhe. Pode ser que esse alguém de fato fique amedrontado. No entanto, pode

56
Para conhecer um pouco da história da Pragmática, consulte: ARMENGAUD, Françoise. (2006) A pragmática. São Paulo:
Parábola.

57
Traduzido sob o título Quando dizer é fazer.

LETRAS LIBRAS|245
ser que esse alguém, em vez de se sentir amedrontado, fique indignado e bata no assaltante.
Nesta segunda situação o ato perlocucionário não é o ameaçado sentir-se amedrontado, mas sim
o ameaçado bater no assaltante (Espero que nunca passemos por uma situação assim, mas caso
ela aconteça não tente reagir ao assaltante!). O propósito ilocucionário é o que o locutor
pretende causar no alocutário. No exemplo do assalto acima observe que o propósito
ilocucionário é o mesmo se o alocutário sentir-se ou não ameaçado, mas o ato perlocucionário é
diferente em uma reação e na outra.
Apesar de os três atos de fala realizarem-se de forma articulada, o ato ilocucionário, além
de ser o eixo da teoria dos atos de fala, é o ato em função do qual os outros dois são originados,
pois: 1) o ato locucionário existe para por em cena o ato ilocucionário; e 2) o ato perlocucionário
existe como um produto do ato ilocucionário. O ato ilocucionário, vale ressaltar, não se realiza de
forma aleatória, ele é fruto de uma força chamada de força ilocucionária. Essa força se faz
reconhecível por meio de performativos, sejam eles explícitos ou não.
Um performativo explícito, ou direto, é um verbo que pode não só nomear uma ação mas
também realizá-la. Um enunciado que tem um verbo performativo é chamado de enunciado
performativo explícito. Esse verbo, no entanto, precisa estar na primeira pessoa (singular ou
plural) do presente do indicativo, a exemplo de (02) acima e (03) abaixo.

(03) Eu prometo cumprir com a verdade.

Diferentemente, veja que ao se enunciar sentenças como (04) e (05) abaixo, não se está,
simultaneamente à enunciação, prometendo algo nem fazendo um batismo, porque o verbo
performativo não se encontra no tempo propício para realizar a ação: o presente. Ao se enunciar
(04)–(07) abaixo, não se está, simultaneamente à enunciação, prometendo algo nem batizando
alguém, porque: 1) em (04) e (05) o tempo não é o adequado para realizar a ação, presente do
indicativo; e 2) em (06) e (07) a pessoa gramatical não é a adequada para realizar a ação, primeira
singular (eu) ou plural (nós/a gente).

(04) Eu prometi/prometerei cumprir com a verdade

(05) Eu te batizei/batizarei em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!

LETRAS LIBRAS|246
(06) Eles/vocês prometem cumprir com a verdade

(07) Ele te batiza em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!

Podemos porém realizar promessas sem necessariamente usarmos as formas eu prometo


ou nós prometemos. Enunciados que realizam promessas e outras ações de forma indireta, são
chamados de performativos implícitos porque não têm nenhum verbo performativo.
Para realizarem atos, os enunciados performativos implícitos valem-se de diversos outros
recursos, sejam linguísticos-discursivos sejam suprasseguimentais. Espíndola (2010, p. 22) cita

[...]o modo imperativo do verbo (Devolva o dinheiro! ao invés de Eu ordeno que


devolva o dinheiro.); advérbios (Você viajará amanhã sem falta!) em que a
locução adverbial sem falta aumenta a força do que fora enunciado; uso de certas
partículas conectivas gera, de forma sutil, o efeito de um performativo (portanto
com a força de concluo que, contudo com a força de insisto que etc.); recursos
supra seguimentais (tom de voz, ênfase em determinado segmento do enunciado
etc.); recursos não verbais (gestos, sinais etc.) e as circunstâncias de
proferimentos.

Veja uma aplicação de dois desses recursos na tirinha abaixo: o tom da voz do Calvin
(gritos), e o uso de verbos no imperativo pela mãe do Calvin.

Folha de São Paulo, 23 de maio de 2004.

Ainda que de alguma forma todos os enunciados sejam performativos e assumamos que
todo e qualquer enunciado apresenta os três atos de fala, não basta simplesmente enunciarmos

LETRAS LIBRAS|247
para realizarmos algo. É preciso que os enunciados atendam às chamadas condições de felicidade,
que são as condições sob as quais a ação realizável pelo enunciado se realiza de fato, ou seja, são
as condição sob as quais o enunciado obtém sucesso. Essas condições estão dividas em três
grupos:

A.1 – Deve haver um procedimento convencionalmente aceito, que apresente um


determinado efeito convencional e que inclua o proferimento de certas palavras, por
certas pessoas, e em certas circunstâncias; e, além disso, que

A.2 – as pessoas e as circunstâncias particulares, em cada caso, devem ser adequadas ao


procedimento específico invocado.

B.1 – O procedimento tem de ser executado por todos os participantes, de modo


correto e

B.2 – completo.

C.1 – Nos casos em que, com freqüência, o procedimento visa às pessoas com seus
pensamentos e sentimentos, ou visa à instauração de uma conduta correspondente por
parte de alguns dos participantes, então aquele que participa do procedimento, e o invoca
deve de fato ter tais pensamentos ou sentimentos, e os participantes devem ter a
intenção de se conduzirem de maneira adequada, e, além disso,

C.2 – devem realmente conduzir-se dessa maneira subsequentemente.


(AUSTIN, 1990, p. 131)

As condições de felicidade têm o propósito de nos mostrar que não basta usarmos
performativos na primeira pessoa do presente do indicativo para sairmos por aí realizando os atos
que eles nomeiam, é preciso que os enunciados ocorram nos contextos adequados. Um padre ao
enunciar Eu vos declaro marido e mulher realiza de fato um casamento se e apenas se as
circunstâncias, procedimentos e envolvidos forem adequados, pois não basta ser padre para
realizar casamentos, outras condições precisam ser satisfeitas.
Veja, por exemplo, que um padre da igreja católica: 1) realiza casamentos em igrejas,
praias, casas, mas não em motéis, porque neste caso as circunstâncias são seriam adequadas; 2)

LETRAS LIBRAS|248
não realiza casamentos sem consultar se os nubentes aceitam serem casados nem sem estes
dizem o famoso Sim porque este seria um procedimento inadequado; nem 3) realiza casamento
entre pessoas do mesmo sexo, porque o catolicismo exige que o casamento ocorra entre pessoas
de sexos diferentes. Por outro lado, ainda que as circunstâncias, procedimentos e nubentes
envolvidos sejam totalmente adequados ao casamento católico, eu não realizarei casamento
algum se eu enunciar Eu vos declaro marido e mulher porque eu não sou uma pessoa adequada
para realizar esse ato, já que não sou padre. Eu posso até me atrever a pronunciar o enunciado em
questão quantas vezes eu quiser em alto e bom som, mas os nubentes não terão seu estado de
casados reconhecidos pela igreja, e, pior ainda, os nubentes poderão, juntamente comigo, serem
acusados de farsa.
Quando se viola alguma ou algumas das condições de felicidade gera-se uma infelicidade,
isto é, um insucesso. Esse insucesso pode ser uma falha ou um abuso. Uma falha ocorre quando
se viola alguma(s) das condições A.1, A.2, B.1 e B.2. Todos os exemplos do parágrafo
imediatamente acima constituem em falhas.
Um abuso, ao seu turno, ocorre quando se viola alguma ou as duas condições C.1 e C.2.
Comete abuso, por exemplo, aqueles que se casam no catolicismo e não cumprem os votos de
fidelidade. Comete abuso o padre que não respeita os votos de castidade. Comete abuso também
quem promete algo e não cumpre. Comete abuso o advogado que não segue a lei. Comete abuso
o político que não trabalha a favor do seu país. Ou seja, é muito comum as pessoas cometerem
abusos, porque geralmente se “esquecem” de se conduzirem de maneira adequada após
determinados atos. Veja que essa noção de abuso é tão curiosa que, se comprovado o abuso, o
ato que ele viola pode ser desfeito: um casamento pode ser cancelado e padres, advogados e
políticos podem ser destituídos de sua função (Pena que nestes três últimos casos as condições de
felicidade não sejam muito respeitadas.).
Para finalizarmos este capítulo, é válido observamos que a assunção, por parte de Austin,
de que há dois tipos de enunciados performativos implica em se reconhecer dois tipos de atos de
fala: os diretos e os indiretos. Ambos foram pormenorizadamente estudados pelo estadunidense
John Rogers Searle em Speech Acts58, de 1969.

58
Obra traduzida sob o título Atos de fala.

LETRAS LIBRAS|249
Os atos de fala diretos são aqueles que se realizam de forma direta por meio de um
performativo. Exemplos são o ato de prometer por meio do verbo prometer, em (03) acima, e o
ato de batizar por meio do verbo batizar, em (02) também acima.
Os atos de fala indiretos são aqueles que não se realizam de forma direta. Eles se realizam
por enunciados que não apresentam performativos e muitas vezes adquirem um significado
diferente do seu significado literal. A proposta de Searle é que os atos de fala indiretos contém
dois outros atos de fala: o primário e o secundário. (08) abaixo é um bom exemplo para explicitar
essa questão.

(08)
Estou com sede.

Quando utiliza um enunciado como (08), você realmente quer apenas informar ao seu
interlocutor que você está com sede? Sei que sua resposta foi Não (Dizem que semanticistas e
pragmaticistas às vezes “advinham” pensamentos!). Comumente, quando produzimos enunciados
do tipo de (08), mais do que informar a respeito da nossa sede, estamos fazendo um pedido (de
água). Poderíamos realizar o mesmo pedido por meio do enunciado (09) abaixo. Essa possibilidade
de usar (09) em lugar de (08), mostra-nos: 1) que (08) e (09) são pragmaticamente sinônimas, mas
não são semanticamente sinônimas; e 2) que (08) não está sendo usada em seu sentido literal,
mas (09) está.

(09)
Me dê água.

A conclusão a que chegamos então a respeito de (08) é que esse enunciado realiza dois
atos ao mesmo tempo: 1) o ato de informar, que é um ato secundário, porque é o menos

LETRAS LIBRAS|250
importante para o contexto; e 2) o ato de pedir (água), que é um ato primário, porque é o mais
importante para o contexto, já que corresponde à real intenção do locutor. Assim sendo: como
(08) não apresenta um performativo, realiza um ato de fala indireto, que se desdobra em dois
outros: o primário, que é o ato mais importante porque corresponde à real intenção do locutor, e
o secundário, que é o ato menos importante porque não corresponde à real intenção do locutor.
Em um ato de fala indireto, o ato secundário é desencadeado pelo sentido literal/semântico do
enunciado, e o ato primário é desencadeado pelo sentido não literal/pragmático.
Searle ficou curioso a respeito de como somos capazes de reconhecer um ato de fala
indireto primário e disse que “A estratégia inferencial é estabelecer, primeiramente, que o
propósito ilocucionário primário diverge do literal e, em segundo lugar, qual seja o propósito
primário.” (p. 53). O estabelecimento do propósito ilocucionário dá-se baseado nos princípios da
cooperação, que veremos no próximo capítulo, e da polidez.
O princípio da polidez mostra que nas mais diversas situações sociais cotidianas nos é
exigido que a interação ocorra de forma mais polida. Como, no entanto, nem sempre as pessoas
se sentem muito à vontade para usar (constantemente) expressões como por favor e por
gentileza, elas preferem utilizar os atos de fala indiretos e assim, por exemplo, fazer pedidos de
modo menos formal e dar ordens de modo menos autoritário. Se a Emy Winehouse estivesse viva
e fosse a secretária do diretor de uma empresa e este lhe dissesse (10) abaixo, você teria dúvida
de que, mas do que fazer um pedido, ele estaria dando uma ordem a ela?

(10) Srta. Winehouse, a senhorita pode fazer o relatório?

Precisaríamos de muito mais páginas pela frente para conhecermos de forma mais precisa
os tratamentos dados aos atos de fala. Não obstante, com o conteúdo aqui apresentado você já
tem plenas condições de seguir investigações sobre o tema. Por ora, peço que você analise (e
divirta-se com) a tirinha abaixo. Observe que nela o humor é construído pela infelicidade dos atos
ilocucionários do primeiro quadro: Hagar realiza diversos atos de fala que não atingem seus
propósitos ilocucionários, pois o único ato perlocucionário que eles desencadeiam na Helga é a
ordem que ela dá, ao então já cabisbaixo, viking.

LETRAS LIBRAS|251
Folha de São Paulo, 12 de outubro de 2000.

REFERÊNCIAS

AUSTIN, John L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990 [1962].

ESPÍNDOLA, Lucienne. Pragmática da língua portuguesa. In: ALDRIGUE, Ana C. de Souza; LEITE, Jan Edson
Rodrigues (orgs.). Línguagens: usos e reflexões. v. 6, João Pessoa: Editora da UFPB, 2010.

SEARLE, John R. Os actos de fala. Coimbra: Livraria Almedina, 1984 [1969].

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Abril, 1975[1957].

LETRAS LIBRAS|252
UNIDADE VII

MÁXIMAS CONVERSACIONAIS

Você gosta de cozinhar? Se sim, você pode achar a receita baixo bastante fácil. Se não,
você pode achar que a receita abaixo é complicada demais, pois, ao contrário das gelatinas de
caixinha, os ingredientes não vêm já precisamente dosados em um pacotinho.

Bolo de abacaxi59

Receita enviada por João Paulo De Sousa Lima

45min
1 porções
33 votos (opine)

Ingredientes

Massa:
1 xícara de manteiga
1 xícara de açúcar
3 ovos
1 xícara de Maizena
1 xícara de farinha de trigo
2 colheres (chá) de fermento
1 pitada de sal
1 colher (chá) de essência de baunilha
½ xícara de leite

Caramelo:
4 colheres (sopa) de açúcar
1 lata de abacaxi em calda, em fatias
100g de ameixas pretas, sem caroços

59
Disponível em: <http://tudogostoso.uol.com.br/receita/588-bolo-de-abacaxi.html>. Último acesso: 22 abr. 2009.

LETRAS LIBRAS|253
Tabela de conversão de medidas Imprimir lista de compras

Modo de Preparo
01 Bata a manteiga com o açúcar e os ovos até obter um creme esbranquiçado
02 Acrescente a Maisena, a farinha, o fermento, o sal e a essência de baunilha,
alternado
com o leite
03 Misture e reserve
04 Caramelize com o açúcar uma forma redonda grande
05 Arrume as fatias de abacaxi e coloque em cada orifício das rodelas, uma ameixa
06 Despeje delicadamente a massa por cima
07 Leve ao forno médio, cerca de 45 minutos
08 Deixe esfriar um pouco e desenforme, virando sobre um prato

Receitas culinárias, receitas médicas, manuais de instruções, livros didáticos, códigos


jurídicos são alguns gêneros textuais que comumente acreditamos serem pontais. Acreditamos
que quem produz um texto nesses gêneros é um locutor muito cooperativo com o seu
interlocutor, pois se não for: a receita pode dar errado, a montagem inadequada de um móvel ou
brinquedo pode acabar por estragá-lo, o estado de saúde do paciente pode agravar-se, o aluno
pode não saber o que um exercício solicita como resposta e um advogado pode perder uma causa
como consequência de uma interpretação inadequada. O mundo talvez fosse melhor se esses
problemas não acontecessem, mas eles acontecem. Mesmo em textos orais nos quais os
interlocutores estão face a face e os mal-entendidos podem ser desfeitos na mesma hora em que
surgem, é possível haver algum desencontro interpretativo entre os interlocutores em uma dada
interação.
A partir do que eu expus no parágrafo acima, você pode começar a imaginar que a
interação linguística é um caos, um cada-um-que-se-salve. Mas não é esse o real estado das
nossas interações linguísticas. Quando estamos cognitivamente sãos e em estado de auto-
controle, e queremos de fato nos comunicar com alguém, somos bastante cooperativos na
produção dos nossos textos.
De forma geralmente muito intuitiva, além de nos certificarmos quem é nosso interlocutor
(real ou virtual), “calculamos” qual o seu nível de conhecimento sobre o tema abordado, sobre a
língua usada, sobre as formas de interação e até mesmo sobre os gêneros textuais. A partir dessas
informações, produzimos nossos textos, orais ou escritos, focando um determinado tema,

LETRAS LIBRAS|254
evitando obscuridades, dosando a quantidade de informações e buscando apresentar evidências
para o conteúdo exposto. Ao realizarmos esses procedimentos, estamos praticando a interação
tomando como base o princípio da cooperação, um dos pontos fortes dos estudos pragmáticos.
O princípio da cooperação, desenvolvido pelo britânico filósofo da linguagem Herbert Paul
Grice (1982, p. 86), é o princípio de rege a comunicação e postula que se “[...] Faça sua
contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo propósito ou
direção do intercâmbio conversacional em que você está engajado.”. O princípio em questão
postula quatro categorias/grupos que colocam em cena algumas máximas para que a cooperação
realize-se de forma adequada.
A categoria da quantidade diz respeito à quantidade de informações apresentadas em
uma interação. Essa categoria fundamenta-se em duas máximas: “1. Faça com que sua
contribuição seja tão informativa quanto requerido (para o propósito corrente da conversação). 2.
Não faça sua contribuição mais informativa do que é requerido.” (Grice, 1982, p. 87).
A categoria da qualidade diz respeito à veracidade do que é dito. Essa categoria também
se fundamenta em duas máximas: “1. Não diga o que você acreditar ser falso. 2. Não diga senão
aquilo para que você possa fornecer evidência adequada” (Grice, 1982, p. 87).
A categoria da relação diz respeito ao tópico e foco da conversação. Tal categoria
fundamenta-se em apenas uma máxima: “Seja relevante” (Grice, 1982, p. 87).
Por fim, a categoria do modo diz respeito aos modos pelos quais deve ficar claro o que se
diz. Essa categoria fundamenta-se em quatro máximas: “1. Evite obscuridade de expressão. 2.
Evite ambiguidades. 3. Seja breve (evite prolixidade desnecessária). 4. Seja ordenado” (Grice,
1982, p. 88).
Segundo Grice, quando se obedece às quatro categorias apresentadas, a comunicação dá-
se de forma cooperativa. No entanto, como observa o próprio autor, nem sempre respeitamos tais
categorias. Às vezes o desrespeito é intencional, outras vezes é involuntário. O desrespeito
involuntário às máximas pode ser resultado da falta de habilidade textual, falta de conhecimento a
respeito da situação de uso, desatenção, instabilidade emocional e diversos outros fatores.
Voltemos agora à receita com que iniciamos este capítulo. Ao analisá-la tomando como
critério as máximas conversacionais, perceberemos que ela atende: 1) à máxima da relação, pois
realmente trata da elaboração de um bolo de abacaxi; e 2) à máxima qualidade, pois nela só se diz
o que se acredita ser verdade para que possamos produzir adequadamente o bolo em questão.

LETRAS LIBRAS|255
No entanto, no que diz respeito às máximas da quantidade e do modo, a recita ora
analisada apresenta algumas falhas. A máxima da quantidade é ferida em dois pontos específicos:
1) quando se fala em forno mas não se diz qual o tipo de forno (De lenha? De fogão? Elétrico?
Microondas?); e 2) quando se fala da medida “xícara” mas não se diz o tipo de xícara relevante
(Xícara de chá ou de café?). Essas informações podem parecer irrelevantes para quem sabe
cozinhar, mas para quem está apenas se aventurando pelo mundo da culinária informações desse
tipo precisam ser completas. Para argumentar a favor do que acabei de dizer, veja que quando a
medida “colher” é mencionada na receita, para evitar dúvidas, diz-se qual o tamanho da colher.
As falhas na máxima do modo, ao seu turno, são resultantes da vaguesa60 presente na
receita, que gera expressões obscuras para quem não tem bom conhecimento culinário. Exemplos
dessas expressões vagas são pitada (Qual a quantidade de uma pitada de sal?), esbranquiçado
(Esbranquiçado como o quê?), grande (Qual o tamanho de uma forma redonda grande?),
delicadamente (Como se despeja uma massa delicadamente?), médio (Qual a temperatura de um
forno médio?), cerca de (Quanto tempo é cerca de 45 minutos? 43 minutos? 48 minutos? 40
minutos?), um pouco (Quanto tempo leva para um bolo esfriar um pouco?).
Tendo observado as falhas nas máximas do quantidade e do modo, você sabe agora
possíveis motivos pelos quais muitas vezes tentamos seguir uma receita a risca mas no final não
conseguimos o resultado esperado. Analise outras receitas sob a perspectiva das máximas
conversacionais e você perceberá problemas semelhantes.
Pensando agora em receitas médicas, você já se deu conta de que muitas vezes o médico
escreve e/ou fala algo equivalente a Tomar um comprimido três vezes ao dia nas principais
refeições e quando chega a hora de tomar o medicamento você fica em dúvida? Esse é um
exemplo típico em que um médico fere na máxima da quantidade, pois ele acaba por não informar
tudo que é necessário: falta informar se é antes, durante ou depois das principais refeições que o
medicamento precisa ser tomado.
Outro exemplo muito comum de desrespeito não intencional às máximas é a fuga do tema
em redações. Quem foge ao tema, fere a máxima da relação porque produz um texto sem
relação/relevância com o tópico proposto.

60
Tipo de variação de sentido estudada no capítulo II.

LETRAS LIBRAS|256
Há, no entanto, casos em que ferimos as máximas intencionalmente. Quando fazemos isso
criamos uma implicatura conversacional, que é uma informação implícita decorrente da
desobediência intencional a pelo menos uma máxima conversacional. Observe o diálogo abaixo
entre namorado e namorada.

DIÁLOGO

Namorado:
Aquela casa é boa.

Namorada:
Você me ama?

Em princípio pode parecer que o diálogo acima não é o melhor exemplo de diálogo que se
possa imaginar, pois o namorado fala sobre uma casa e a namorada fala sobre amor. No entanto,
diálogos que, a exemplo desse, ferem a máxima da relação são comumente intencionais. Veja que
em um contexto em que o casal de namorados está passeando, o namorado enuncia Aquela casa
é boa e a namorada responde com Você me ama?, mais do que informar algo sobre uma casa, o
namorado pode estar realizando um pedido de casamento, e a namorada, mais do que estar
fazendo uma pergunta, pode estar estabelecendo uma condição para aceitar tal pedido.
Um exemplo muito comum de desrespeito intencional à máxima da relação é quando,
tentando ser polidos, refutamos a um convite falando sobre outra coisa como se o convite não
fosse o tópico da conversação. É exatamente isso o que acontece quando alguém propõe Vamos
ao cinema hoje! e nós respondemos Tenho que estudar para uma prova. Em situações assim, mais
do que realizarmos o ato de informar que temos de estudar para uma prova (ou de mentirmos
que temos de estudar para uma prova), nós estamos realizando o ato de rejeitar o convite feito.
Com esse procedimento, já que por delicadeza ou por covardia não preterimos claramente o

LETRAS LIBRAS|257
convite, deixamos a encargo do nosso interlocutor a tarefa de reconhecer a implicatura
conversacional.
Para finalizarmos este capítulo, analisemos na charge abaixo outro uso estratégico das
máximas conversacionais. Na charge, o interlocutor de Bento XVI considera, ou finge considerar,
que o Papa está listando o que a Igreja Católica não aceita e, para polemizar, pergunta ao Papa se
a pedofilia é aceita, já que, como sabemos, a Igreja muitas vezes tentou fazer vistas grossas no que
diz respeito a padres pedófilos. Sabiamente, para se livrar da pergunta embaraçosa, o Papa Bento
XVI solicita que seu interlocutor respeite a máxima da relação, i.e. não mude de assunto.

61

Diante do exposto, fica evidente a existência do princípio de cooperação e das máximas


propostos por Grice. Fica evidente também que, de alguma forma, estamos atentos a tais
máximas e, mesmo que inconscientemente, é comum tentarmos respeitá-las. Não obstante, há
situações nas quais deliberadamente desobedecemos às máximas com o intuito de gerar
implicaturas conversacionais por meio das quais realizamos atos de fala indiretos justificados, pelo
menos supostamente, pelo princípio da polidez.

61
Disponível em: <http://colunistas.yahoo.net/posts/6080.html>. Último acesso em: 01 nov. 2010.

LETRAS LIBRAS|258
Veja que para produzirmos um texto coerente e coeso precisamos estar atentos também
às máximas conversacionais, independentemente de o texto ser oral ou escrito. Desrespeitar as
máximas, vale lembrar, constitui-se um problema textual apenas quando não é intencional nem
bem elaborado. Quando é intencional e bem elaborado o desrespeito às máximas torna-se um dos
recursos para a produção de textos criativos e eficientes. A criatividade e a eficiência textual, vale
lembrar, não é um “dom” exclusivo de chargistas, propagandistas e literatos, é um “dom” de todo
ser humano. No nosso dia a dia os textos geralmente são muito criativos e eficientes, prova disso é
que todos os dias produzimos textos novos (orais ou escritos) e geralmente conseguimos
estabelecer interações satisfatórias. Assim sendo, convido você, nas suas próximas produções
textuais, a usar de forma consciente das máximas conversacionais.
Ao findarmos este capítulo, findamos também o módulo de semântica e pragmática. Os
conteúdos das duas disciplinas, como você deve ter percebido, ora se aproximam ora se afastam.
Contudo, mesmo quando há afastamento, nunca é total, pois o interesse das duas disciplinas é o
significado: o significado linguístico para semântica e o significado do uso para a pragmática.
Findamos aqui o módulo de semântica e pragmática, mas os estudos do significado continuam
sendo campos profícuos para todos que neles queiram investir.

REFERÊNCIA

GRICE, Herbert Paul. Lógica e conversação. In: DASCAL, M (1982). Fundamentos metodológicos da
linguística – v. IV: Pragmática. Campinas.

LETRAS LIBRAS|259
LETRAS LIBRAS|260

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