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Língua, Texto e Interação
Língua, Texto e Interação
Língua, Texto e Interação
Sumário
Introdução 03
Apêndice 34
Referências 35
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LÍNGUA, TEXTO E INTERAÇÃO
Introdução
Atividade 1
Registre por escrito suas respostas, para discuti-las depois com seus colegas e com
o formador. Além disso, ao final deste Caderno, você vai retornar a esta Atividade e
verificar se você manteria seus conceitos iniciais ou se os reformularia.
Para o formador
Há uma questão apontada por Saussure que repercute ainda hoje nos
estudos lingüísticos e terá importância para as concepções que queremos construir
neste Caderno, além de aparecer também em outros Caderno deste Módulo
(“Conhecimento lingüístico e apropriação do sistema de escrita” e “Produção de
textos escritos: construção de espaços de interlocução”). Trata-se da distinção entre
língua e fala. Para Saussure (1977, p. 21), a língua é um sistema de signos abstrato,
que, ao mesmo tempo, constitui um patrimônio social e um “conhecimento virtual
existente nos cérebros dos falantes” de uma mesma comunidade. Já a fala é a
manifestação concreta da língua, nos textos produzidos pelos falantes. O termo fala
deve ser compreendido em sentido amplo, abrangendo tanto o uso falado quanto o
uso escrito da língua. O que nos interessa aqui, por enquanto, é chamar a atenção
para a diferença entre o conhecimento interior dos indivíduos, “que existe
virtualmente no cérebro de cada um”, e a manifestação externa, o uso concreto
desse conhecimento. A língua é o conhecimento interno que possibilita aos falantes
manifestar-se na fala.
escrita sempre registrava uma versão “oficial” da língua, o que aconteceu foi que
sempre só se estudaram as formas dessa versão oficial da língua. Ao longo da
história, os estudos gramaticais, aliados a necessidades político-sociais de
uniformização e valorização de uma língua nacional, resultaram na legitimação de
uma das variedades da língua como padrão culto e no estabelecimento de um
conjunto de prescrições relativas ao emprego das formas em conformidade com as
descrições da variedade de língua eleita como padrão. Esse conjunto de fatores deu
origem à gramática normativa que é ensinada nas escolas até hoje.
A partir dos anos 60 do século XX, foi se tornando conhecida uma definição
de língua que é lembrada ainda hoje: a língua é um instrumento de comunicação, a
língua é um código que nos serve para a transmissão de informações. Por meio da
língua – código – um emissor comunica determinadas mensagens a um receptor.
Para que a comunicação se efetive, esse código (com suas regras) deve ser
dominado pelos falantes e utilizado de maneira convencionada e preestabelecida.
Por outro lado, muitas teorias lingüísticas se interessam pelo fato de que,
embora manifestando-se externamente na fala e embora sendo um patrimônio
social, da comunidade de falantes, a língua é uma realidade interior dos indivíduos.
Ao longo da história, alguns estudiosos se dedicaram a entender a língua como
atividade mental. Podemos citar dois grandes nomes: Humboldt, do final do século
XIX, e Chomsky, cujos trabalhos vêm sendo publicados e discutidos desde meados
do século XX. Devemos sobretudo a Chomsky a noção de que a língua é um
conhecimento internalizado, construído mentalmente de maneira ativa e produtiva
pelos falantes nos primeiros anos da infância, a partir da convivência social.
Paralelamente à distinção feita por Saussure entre língua e fala, Chomsky
vai distinguir entre a competência lingüística, que diz respeito ao conhecimento
interior do indivíduo, e o desempenho, que corresponde aos usos concretos da
língua pelos falantes. Chomsky, mais tarde, vai designar a competência como
Língua I (de interna, interior) e o desempenho como Língua E (de externa, exterior).
Podemos tomar um exemplo para entender melhor a diferença entre um conceito e
outro. O Ronaldinho Fenômeno tem, sem dúvida, uma competência futebolística
muito desenvolvida; sua capacidade, nessa área, é muito grande. Em cada partida
de futebol ele manifesta essa competência no seu desempenho. E às vezes
acontece que, embora sabendo jogar muito bem, num determinado jogo ele comete
erros, não faz gol. Isso mostra que competência e desempenho são coisas
diferentes. A competência é um saber interno do sujeito; o desempenho é o uso que
ele faz dessa competência em situações concretas.
Embora importante para a compreensão do que seja a língua e muito
importante para o ensino, a concepção que a focaliza prioritariamente como
conhecimento interior e atividade mental, deixa de lado aspectos fundamentais,
relativos à sua dimensão social.
Para desencadear uma discussão que nos leve a considerar fatos
importantes sobre a dimensão social da língua, que deverão ser incorporados na
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LÍNGUA, TEXTO E INTERAÇÃO
Atividade 2
Para o formador
d) para expressar com satisfação que o autor se julga merecedor de alguma coisa boa
que ele conquistou;
e) para expressar com um tom “maligno”, “perverso” a satisfação do autor por ter
realizado uma vingança, ou ter conseguido prejudicar alguém, ou ter obtido alguma
vantagem ilícita;
f) para expressar com tranqüilidade e racionalidade a convicção do autor de que
merece o que conseguiu;
g) para expressar com exaltação, em situação de disputa, a convicção do autor de que
ele – e não o seu interlocutor – merece o que conseguiu.
passado ele viajará para o Rio de Janeiro”. Outro exemplo de regra morfológica
dominada interiormente por todos os falantes diz respeito ao uso dos prefixos. Os
falantes conhecem o significado dos prefixos mais usuais e os empregam como
prefixos, não como sufixos. As pessoas reconhecem a relação de oposição entre
fazer e desfazer, impedir e desimpedir, integrar e desintegrar, considerar e
desconsiderar, e ninguém usa esse prefixo no lugar de sufixo.
No nível sintático, as regras básicas e conhecidas por todos são relativas à
construção de orações e partes de orações. Assim, por exemplo, um falante da
língua portuguesa, mesmo que nunca tenha entrado na escola, é capaz de formular
uma expressão complexa como “aquele meu primeiro cachorro vira-lata que eu
encontrei na rua” e usá-la com pertinência em frases diversas: “Aquele meu primeiro
cachorro vira-lata que eu encontrei na rua mordeu a perna da minha avó” ou “Eu
gostava muito daquele meu primeiro cachorro vira-lata que eu encontrei na rua”. Por
outro lado, qualquer falante sabe quando as regras de estruturação sintática não
foram obedecidas e é capaz de reconhecer como errada a expressão “meu aquele
vira-lata primeiro que eu encontrei na rua”.
Insistimos: as regras de que estamos falando fazem parte do conhecimento
lingüístico intuitivo dos falantes e são constitutivas da língua. São regras que fazem
o português, o inglês, o japonês e o árabe serem línguas diferentes. São regras
estabelecidas no uso sistemático dos falantes de uma comunidade lingüística, na
história das práticas sociais de linguagem dessa comunidade.
O componente semântico-cognitivo, também de acordo com os “Subsídios
para a reflexão curricular” da Proposta de São Paulo (1988, p. 12), diz respeito ao
“sistema cultural de representação da realidade em que as expressões da língua
podem ser interpretadas”. Esse componente, como conhecimento dos falantes,
abrange os significados potenciais das palavras e os organiza em esquemas
cognitivos, de modo que os falantes não apenas sabem o significado, por exemplo,
de mão como também são capazes de relacionar essa palavra com outras – pé,
cabeça, ombro, barriga, dedo, pescoço, que pertencem ao esquema referente às
partes do corpo humano. Além disso, os falantes sabem que a palavra mão pode
aparecer nas expressões “dar uma mão”, “lavar as mãos”, “mão de fada”, “mão de
pilão”, “mão fechada” e, aí, compor efeitos de sentido diferenciados. Os falantes
sabem, ainda, lidar com a variação de sentido das palavras e expressões conforme
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LÍNGUA, TEXTO E INTERAÇÃO
o contexto em que são usadas e o universo a que se referem; por isso são capazes
de compreender, por exemplo, o sentido da frase “O juiz deu mão”, quando se fala
de uma jogada suspeita, numa partida de futebol. Faz parte também do
conhecimento semântico-cognitivo dos falantes a capacidade de fazer inferências.
Por exemplo: quando alguém ouve “meu primeiro cachorro vira-lata” é capaz de
concluir que quem disse isso teve pelo menos mais de um cachorro vira-lata; quem
ouve “Faz dois anos que o João parou de beber” é capaz de entender que João
bebia antes.
Devemos ressaltar que o componente semântico-cognitivo também é
organizado por regras, estabelecidas social e culturalmente. Os falantes não podem,
individualmente, a seu bel-prazer, atribuir às palavras significados não assumidos
pela coletividade, sob pena de não serem compreendidos; nem podem inferir
qualquer sentido para uma determinada expressão, sob pena de produzirem uma
compreensão inadequada.
O componente discursivo diz respeito às relações entre a língua e os fatores
integrantes de suas condições de uso. Diz respeito à consideração e à interpretação
dos interlocutores quanto:
Como falamos português desde criança, nem nos damos conta de que quem diz
assim e é capaz de interpretar o que o outro diz fez uma porção de operações muito
complexas. Simplificando muito, vamos observar algumas delas.
Em primeiro lugar, os interlocutores consideram vários aspectos do contexto em
que as expressões foram produzidas. A professora, por exemplo, para entender o aluno,
considera a situação imediata (sala de aula), as atitudes dos alunos em relação à
atividade em que estão (infelizmente cansativa), o que ela sabe e sabe que o aluno sabe
sobre o horário habitual da aula e da merenda, etc.; por isso, não somente “decodifica” a
expressão do aluno (como uma pergunta de “sim” ou “não” sobre a hora), mas é capaz
de tirar conclusões a que ele quer fazer chegar, descobrir suas intenções (está na hora
de acabar a aula, o aluno talvez já esteja com fome, etc.). Ela percebe que o aluno não
está fazendo uma pergunta sobre o horário, mas tentando modificar a situação de um
modo determinado.
Interpretar, em um sentido amplo, é isso: relacionar as expressões a uma situação
de fato, na dimensão discursiva da língua (ou seja, considerando as condições da
situação contextual que contribuem para que se dê à expressão o seu sentido, em vez de
se fixar exclusivamente em seu sentido literal).
Mas, obviamente, a professora não conseguirá interpretar a fala do aluno somente
com base nesses aspectos da situação imediata. Ela utiliza, também, aspectos do
sistema com que se representa a realidade em sua cultura. Por exemplo, ela sabe que,
em nossa cultura, o tempo se representa por meio de um sistema estruturado (século,
ano, mês, dia, hora, minuto, segundo), sem o qual ela não poderia entender o que o
aluno quer dizer. Para compreender isto, pensem em outras situações e culturas em que
se usam diferentes sistemas de referência. Imaginem uma cultura em que o tempo se
representa somente pelo movimento do sol e da lua – “tempo do sol subindo”, “tempo do
sol a pino”, “tempo do sol se pondo”. Como interpretar, aí, a expressão “meio-dia e
meio”? Ou imaginem um professor de Geografia que, tendo por base noções com que
opera em sua ciência, dissesse: “Considerando que estamos em pleno solstício de verão,
observem que o sol, na trajetória de seu movimento aparente, se encontra agora quase
em seu zênite” para dizer que é quase meio-dia.
Vejam que é também com base nesse sistema de referência cultural que se podem
relacionar e interpretar palavras como “aluno”, “professora”, “material”, “prova”,
“serventes”; ou “fome”, “merenda”, “almoçar”, “sopa”, e assim por diante. Nesse caso,
estamos considerando um dos aspectos da dimensão semântica da língua (isto é, o
modo pelo qual, na língua, se representa e se organiza a realidade, para que possamos
falar dela).
Nada disso seria, entretanto, possível se as expressões não tivessem sido
produzidas obedecendo a certas regras de “conversação”. Por isso, o aluno selecionou
determinadas palavras de seu léxico ("horas” e não “abóboras”, “é” e não “parece”, “e” e
não “mas”). O aluno ordenou os elementos de sua expressão de um modo determinado;
observem as diferenças de significação de expressões como – “Fessora, que são
horas?”, “Quase num é meio-dia e meio?”, ou a inaceitabilidade de expressões como –
“que fessora são horas”, “meio-dia num é quase e meio?”. Manifestou por essa ordem e
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LÍNGUA, TEXTO E INTERAÇÃO
Estes exemplos mostram bem o que se entende pela expressão “seguir uma
regra”. Seguir uma regra não é o mesmo que “respeitar a gramática” do falante culto.
(Deve-se dizer “meio-dia e meio” ou “meio-dia e meia”? Pode-se dizer “fessora”, “tá bom”,
“pra”?) Seguir uma regra não é parte de um livro de etiquetas: é um processo sistemático
dos falantes que, em uma comunidade lingüística, “jogam” entre si o mesmo jogo da
linguagem. Não é procedimento de uma única pessoa, uma única vez, em uma única
ocasião: segue-se uma orientação instituída na prática, sempre que haja, na construção
das expressões, um uso constante e sistemático dos mesmos recursos expressivos para
levar a determinados entendimentos. E essa é a dimensão gramatical da língua.
(Proposta curricular para o ensino de língua portuguesa – 1º grau. 3. ed. Estado de São Paulo, 1988,
p. 12-13; adaptação)
Nesta seção, nosso olhar está voltado para duas dimensões constitutivas da
língua e aparentemente contraditórias, de modo a possibilitar aos professores a
compreensão de que a língua é, ao mesmo tempo, conhecimento e atividade.
Como fizemos anteriormente, começamos pela proposição de atividades
que demandam análise e reflexão.
Atividade 3
A Girafa Josefina não morreu no Zoológico de Belo Horizonte por causa dos sacos
plásticos encontrados em seu estômago.
a) Como você entende essa frase? Que função tiveram os sacos plásticos
encontrados no estômago do animal?
Para o formador
Há, pelo menos, duas interpretações possíveis: 1) a Girafa não morreu; os sacos
plásticos encontrados em seu estômago evitaram a sua morte; 2) a Girafa morreu; a
causa da morte não foram os sacos plásticos encontrados em seu estômago. Outras
variações podem ser mencionadas pelos professores, como, por exemplo: a Girafa
morreu, mas não no zoológico de Belo Horizonte.
c) A notícia divulgada pelo rádio tinha como objetivo informar que exames feitos por
veterinários acabaram levando à conclusão de que a causa da morte de Josefina foi a
própria velhice, e não os sacos plásticos encontrados no estômago da Girafa.
Conhecendo esses dados, como você teria redigido a continuação do texto noticioso?
d) Pense: O que permitiu que essa frase, isolada do seu contexto, se tornasse
ambígua? O que há na estrutura da frase que permite que ela possa ser interpretada de
duas (ou mais) maneiras?
Para o formador
Esta atividade tem por objetivo específico propiciar aos professores constatar e
analisar um problema de ambigüidade sintática, que é a possibilidade de a negação
incidir sobre o verbo “morreu” ou sobre o adjunto adverbial de causa “por causa dos
sacos plásticos encontrados em seu estômago”.
Seu objetivo geral é levar os professores a vivenciar o quanto, efetivamente, o
sentido se constrói nas atividades de linguagem contextualizadas estabelecidas pelos
falantes. A língua é um sistema parcialmente determinado, seu uso nas práticas sociais
requer a participação ativa dos sujeitos, dos interlocutores.
O formador deverá discutir com os professores as respostas dadas por eles,
chamando-lhes a atenção para o fenômeno lingüístico que está em pauta. Pode haver
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LÍNGUA, TEXTO E INTERAÇÃO
respostas diferentes das que estão previstas aqui. Caberá ao formador avaliar sua
pertinência.
O Rubinho é um ás no volante.
e) Piada de machão:
f) Dizem que essa frase foi ouvida numa loja de roupas no centro da cidade:
Moço, eu queria calça para menina branca e short para menino preto.
As afirmações 1 e 2 são argumentos para provar que a língua não pode ser
considerada um código, nem um sistema de signos em que a relação entre a forma
sonora significante e o significado fosse considerada fixa, nem mesmo uma
gramática. A análise gramatical tradicional, que classifica os termos da oração, pode
nos possibilitar enxergar em cada interpretação da frase (a) uma estrutura sintática
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LÍNGUA, TEXTO E INTERAÇÃO
diferente, mas não explica por que um ouvinte pode entender essa frase com um
sentido diferente daquele que o falante pretendia. O que queremos frisar, com esse
exemplo, é que o sentido não está pronto, não está dado, naquilo que o falante
enuncia; o sentido é construído na atividade interpretativa realizada pelo ouvinte. O
ouvinte não é um mero recebedor da mensagem enviada pelo emissor, o ouvinte
produz sentido.
O Caderno “Leitura como processo”, que também faz parte deste Módulo,
discute a questão da produção de sentido focalizando a atuação do leitor.
Em (d), a ambigüidade está no verbo anda, que pode ser interpretado como
equivalente de ‘está’ ou de ‘caminha’. E aqui também as interpretações semânticas
diferentes correspondem a estruturas diferentes de composição da frase:
se anda corresponde a ‘está’, a palavra feio é um adjetivo e, na frase,
atribui uma característica ao termo esse pessoal;
se anda corresponde a ‘caminha’, a palavra feio designa o modo como o
pessoal anda – de maneira feia, feiosamente.
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LÍNGUA, TEXTO E INTERAÇÃO
Queremos ressaltar aqui o fato de que as palavras da língua podem ter mais
de um significado e ainda o de que o sentido que os usuários da língua lhes
atribuem depende do contexto em que elas aparecem. Esse é mais um argumento
contra a concepção de língua como código e a favor de uma concepção que leve
em conta a atividade enunciativa e interpretativa dos sujeitos.
Em (e) e (f), a ambigüidade tem a ver com a estrutura sintática, com a
posição dos termos da oração e as relações que se estabelecem entre eles.
Em (e), é o termo de novo, que pode ser interpretado como relativo a ando
com vontade ou a comer, e isso possibilita duas interpretações diferentes, gerando o
humor da piada:
Em (g), é o termo por você que pode ser interpretado de duas maneiras,
acarretando sentidos diferentes para a frase:
2. foi feito por você = ‘foi feito por sua causa’; ‘foi feito para te agradar’.
indica a causa, o motivo.
primeiro caso, a mãe estaria elogiando a filha e, no segundo, ela estaria querendo
receber elogios ou agradecimentos...
Com os exemplos (e), (f) e (g) quisemos mostrar que a estrutura sintática
aparente não garante a produção de um único sentido para as frases, já que uma
mesma seqüência de palavras pode corresponder a mais de uma estrutura e, com
isso, corresponder também a mais de um sentido. Quem estudou análise sintática
nas aulas de Português deve ter ficado com a impressão de que nada no mundo é
mais certo e garantido. O que se aprende, normalmente, é que, quando se analisa
um termo como objeto direto, é porque ele é objeto direto sempre, em qualquer
circunstância. Vimos aqui que isso não é verdade. Até a estrutura sintática é
“maleável”, aberta ao trabalho de interpretação dos ouvintes e leitores. As pessoas
sabem disso e, contando com a possibilidade de produzir ambigüidades que serão
percebidas pelos interlocutores, se dispõem a brincar com a linguagem, fazendo
piadas e trocadilhos, criando humor ou poesia. Por isso é que dissemos na seção 1
que a concepção de língua como gramática é limitada: ela não considera fatos
importantes e corriqueiros como esse que acabamos de apontar.
A todos os casos da Atividade 3 se aplica uma afirmação feita a propósito
do primeiro exemplo (o do “asno volante”): o sentido não está pronto, não está dado,
naquilo que o falante enuncia, pelo contrário, o sentido é construído na atividade
interpretativa realizada pelo ouvinte; ou seja, o ouvinte não é um mero recebedor da
mensagem enviada pelo emissor, o ouvinte produz sentido.
Isso nos permite concluir que a língua não é um sistema fechado em si
mesmo, que funciona por conta própria, independentemente dos falantes. Pelo
contrário, o que vimos nos leva a pensar a língua como sistema maleável, sujeito à
ação dos falantes, ou mesmo, um sistema que prevê a atividade produtiva e
interpretativa dos seus usuários. Nosso conhecimento lingüístico inclui essa noção.
Nós nos dispomos ao trabalho interpretativo, quando ouvimos ou lemos, e contamos
com o trabalho interpretativo de nossos interlocutores, quando falamos ou
escrevemos.
Antes de prosseguir com a reflexão, propomos a realização de mais uma
atividade.
Atividade 4
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LÍNGUA, TEXTO E INTERAÇÃO
2. Anote alguns exemplos interessantes de falas infantis para discutir com seus colegas
e com o formador. Nessa atividade, atenha-se às questões lingüísticas, procurando
efetivamente analisá-las. Evite o mero relato de histórias engraçadinhas e fatos
pitorescos.
Até esse ponto, esperamos ter deixado claro, com exemplos relativos ao
uso, que a língua é, ao mesmo tempo, conhecimento e atividade. Pretendemos
agora, partindo dos exemplos apresentados na Atividade 4, discutir o processo
inicial de construção do conhecimento lingüístico, para mostrar como esse
conhecimento é sempre atividade e se constrói pelo trabalho mental dos sujeitos.
Os três exemplos situam-se no campo da formação de palavras. O primeiro
foi produzido por um menino que não sabia como se referir à parte da frente do
automóvel. O segundo, por uma menina que estava andando com a mãe, sentiu-se
cansada e pediu à mãe que parasse para que ela pudesse descansar. O terceiro,
pelo filho de uma médica que tinha saído para levar o estetoscópio para consertar.
Esses casos exemplificam um fenômeno muito freqüente no processo inicial de
construção do conhecimento lingüístico: as crianças são capazes de criar palavras
para atender suas necessidades comunicativas. Em geral, as palavras criadas,
embora não sejam correntes, são formas possíveis de acordo com o sistema da
língua. No caso 1, o menino aplica a frente o sufixo –eira, que ele identifica em
traseira, formando o substantivo frenteira. Processo semelhante acontece no caso
3, com o sufixo –dor. No caso 2, a menina pode ter criado o substantivo canso como
contrário de descanso, a partir da relação que reconhece, por exemplo, entre feito e
desfeito, abotoado e desabotoado, protegido e desprotegido. Ou então, pode ter
derivado o substantivo canso do verbo cansar, a partir da relação que reconhece
entre verbos como abraçar, pular, cantar e substantivos como abraço, pulo e canto.
O interessante é que, para criar essas palavras, foi necessário inferir regras
lingüísticas e aplicá-las. As crianças não estão repetindo palavras já ouvidas, nem
tiveram aulas de gramática para aprender os processos de derivação e formação de
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LÍNGUA, TEXTO E INTERAÇÃO
Atividade 5
1. Piada de português.
2. Piada de caipira:
A exploração dessas piadas, bem como a das piadas (a) e (e) da Atividade 3,
foi inspirada no artigo “Pelo humor na lingüística”, de Sírio Possenti,
publicado na Revista DELTA, v. 7, n. 2, de agosto de 1991 (p. 491-520).
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LÍNGUA, TEXTO E INTERAÇÃO
1. A estrutura gramatical das frases da língua não garante uma única possibilidade
de interpretação, um único sentido.
2. O sentido de uma frase ou de um texto (uma piada é um texto) não depende
exclusivamente das palavras e de sua organização em frases.
3. Para se atribuir sentido a uma frase ou a um texto, além de considerar o
vocabulário e a estrutura gramatical (isto é, as palavras e as relações que se
estabelecem entre elas na frase), é preciso levar em conta as relações entre o
texto e o contexto.
4. Para o processo de produção de sentido são relevantes:
O contexto histórico-cultural – É o fato de pertencermos ao mesmo
contexto histórico que possibilita partilharmos os conhecimentos, crenças
e valores necessários à compreensão das piadas e frases comentadas.
Por exemplo, não foi preciso explicar aqui quem são Rubinho, Jô Soares
e Sirvo Santos, porque quem vive na sociedade brasileira
contemporânea possui esses conhecimentos.
A situação de interlocução – As circunstâncias em que acontece o uso
da língua permitem aos interlocutores partilharem informações
necessárias ao sentido das frases e textos. Na interação oral, esse papel
cabe aos elementos do ambiente; na interação à distância, mediada pela
escrita, é o “suporte” do texto que cumpre essa função (jornal, revista,
livro didático, folheto de propaganda, etc.). Por isso, em alguns exemplos
explorados neste Caderno foi preciso explicar quando e onde as frases
foram usadas. Seria difícil entender as piadas do português e do caipira
sem saber em que situação ocorreram os diálogos que elas apresentam.
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LÍNGUA, TEXTO E INTERAÇÃO
8. A língua muda no tempo, evolui, tem história. Sua história ainda não acabou,
ainda está se fazendo, pela ação dos falantes. Nem mesmo a história do dialeto
padrão já está pronta e acabada. O próprio dialeto padrão vai mudando com o
tempo, pela ação dos falantes.
Atividade 6
1. Que implicações as concepções de língua e texto podem ter na sua prática de sala
de aula?
2. Qual seria uma resposta coerente com os pontos de vista defendidos neste Caderno
para a segunda pergunta apresentada na Introdução: “deve-se ou não trabalhar, no
começo do ensino básico, conceitos gramaticais como masculino e feminino, singular
e plural, classes de palavras, conjugação verbal?”Qual o objetivo desta última
pergunta?
Atividade 7 (auto-avaliação)
Atividade 1
Atividades 2 e 3
Atividade 4
Questão 1: as respostas foram desenvolvidas no próprio corpo do Caderno.
Questão 2: respostas pessoais, a serem discutidas com os colegas do grupo de
estudos e com o formador.
Atividade 5
Atividade 6
Atividade 7
Referências
PERINI, Mário Alberto. Para uma nova gramática do português. São Paulo: Ática,
1985.
POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
POSSENTI, Sírio. Pelo humor na lingüística. Revista DELTA. São Paulo: ABRALIN,
v. 7, n. 2, p. 491-520, ago. 1991.
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática. Campinas: Mercado de Letras,
1996.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 1977.
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LÍNGUA, TEXTO E INTERAÇÃO
VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. 4 ed., São Paulo: Martins Fontes,
1991.