Science">
Questões Sobre o Ensino de Gramática Marcos Bispo
Questões Sobre o Ensino de Gramática Marcos Bispo
Questões Sobre o Ensino de Gramática Marcos Bispo
RESUMO:
Este artigo tem como objetivo refletir sobre os fundamentos epistemológicos das
diversas posições acerca do ensino de gramática, de maneira a reunir bases teóricas e
políticas para responder à questão “que gramática ensinar na escola”? A análise eviden-
ciou que: i) o enfoque descritivo, por adotar uma concepção naturalista e cientificista
da gramática, não apresenta respostas satisfatórias às questões que envolvem a padro-
nização linguística; ii) as alternativas para a superação dos impasses decorrentes das
limitações do paradigma descritivo se apresentam de duas formas: a) uma perspectiva
que defende o ensino de língua orientado para o desenvolvimento de competências
de leitura e escrita, em que o ensino de gramática perde especificidade; b) uma pers-
pectiva que postula a especificidade e complementaridade do trabalho com o texto e
com a gramática. Diante da constatação de que muitas práticas de leitura e escrita se
estruturam em torno da língua padrão, conclui-se que a gramática a normativa, em
função de sua importância sociopolítica, deve ser a principal referência nas práticas
de ensino de língua portuguesa.
ABSTRACT:
This article aims to reflect on the epistemological basis of the various opinions on
grammar teaching, in order to gather theoretical and political bases to answer the
question “what kind of grammar should teachers teach in the classroom”? The analysis
showed that: i) the descriptive approach, by adopting a naturalistic and scientificist
conception of grammar, does not present satisfactory answers to the questions that
involve linguistic standardization; ii) the alternatives for overcoming impasses due to
the limitations of the descriptive paradigm come in two forms: (a) a perspective that
favors language teaching guided to the development of reading and writing skills, in
which grammar teaching loses its specificity; b) a perspective that demands the speci-
ficity and complementarity of the activities with text and grammar. In view of the fact
that many reading and writing practices are structured around the standard language, it
is concluded that the normative grammar, due to its socio-political importance, should
be the main reference in Portuguese language teaching practices.
Introdução
Nos últimos vinte e cinco anos, o ensino de gramática se tornou objeto
de intensos debates nos cenários acadêmico e escolar brasileiros, opondo
posicionamentos não apenas distintos mas também conflitantes acerca de sua
pertinência nas aulas de língua portuguesa. Em geral, o processo dialético
desses debates concentra-se na exposição de argumentos contrários ou favo-
ráveis a determinadas concepções de gramática e suas finalidades, de onde se
extraem sínteses ou conclusões parciais favoráveis a um dos lados da disputa.
Com efeito, embora tais debates sejam fundamentais para aclarar os diversos
ângulos dos problemas ligados ao ensino de gramática, as decisões sobre seu
ensino e suas finalidades devem ultrapassar o nível estrito do debate dialético
para constituir um componente das políticas educacionais.
Nesse sentido, é razoável pensar que os debates explicitam também uma
vontade de poder dos debatedores (FOUCAULT, 1979), que pretendem deter-
minar as concepções de gramática que devem orientar o currículo. De um lado,
os defensores da tradição gramatical justificam sua relevância amparando-se
na ampla e inegável importância das regras da chamada gramática normativa
nas práticas sociais institucionalizadas em que se exige do sujeito o domínio
da língua padrão. Além disso, alegam que seu domínio permitirá ao indivíduo
o acesso a toda uma tradição cultural escrita conforme suas regras. Defendem,
portanto, o ensino da gramática normativa tendo em vista a lógica de sua des-
crição interna e sua relevância sociocultural e política. Privar o indivíduo desse
conteúdo da aprendizagem seria o mesmo que limitar sua cidadania.
Por outro lado, um conjunto plural de posições reunidas sob o rótulo da
linguística, ou das ciências da linguagem, defende uma abordagem antinorma-
tiva no ensino de gramática, amparada no pressuposto de que a explicitação das
regras naturais e intrínsecas da língua deve constituir o cerne do ensino. Assim,
por uma questão de coerência, rejeita-se a gramática normativa como referên-
nos quais as interpretações dos atores sociais são extremamente relevantes não
apenas para as conclusões dos estudos, mas para sua própria concepção.
Por outro lado, a solução apresentada para o problema – integração entre
rigor na avaliação dos livros didáticos e melhora na qualidade da formação dos
professores – pode ser vista com uma faca de dois gumes, uma vez que permite
a formulação de críticas ao papel da universidade como instituição formadora
de professores e também como avaliadora dos livros didáticos. Contudo, fica
em aberto ainda o entendimento das razões que levam os autores dos livros
didáticos a desprestigiar as contribuições da linguística ao ensino de língua
portuguesa. Ou seja, a solução proposta pressupõe que os autores possuem as
competências necessárias para realizar a transposição didática dos conceitos,
teorias e métodos científicos ao ensino de língua na educação básica; que os
professores universitários que compõem o quadro de avaliadores do PNLD
possuem as mesmas competências e que estão de acordo quanto a quais saberes
científicos devem fundamentar o ensino; e, ainda, que os conceitos, teorias e
métodos da linguística moderna já se apresentam no estágio de desenvolvimen-
to adequado para substituir a abordagem tradicional na prática pedagógica de
ensino de língua. Mais uma vez, coloca-se em evidência a necessidade de um
enfoque qualitativo nas pesquisas envolvendo o ensino, para verificar todos
esses fatores.
A dogmatização da ciência – a concepção de ciência que vê nesta o
aparelho privilegiado de representação do mundo, que desconsidera qualquer
outra forma de explicação da realidade produzida sem o recurso aos métodos
científicos (SANTOS, 1989) – tem como uma de suas consequências a ruptura
entre o senso comum e os conhecimentos científicos. Diferentemente do que
ocorre nas ciências naturais, levar a termo tal ruptura nas ciências sociais é uma
tarefa muito difícil por dois motivos principais:
Por um lado, porque as ciências sociais têm por objeto real um objeto que fala,
que usa a mesma linguagem de base de que se socorre a ciência e que tem uma
opinião e julga conhecer o que a ciência se propõe a conhecer. [...] Por outro lado,
porque o próprio cientista social sucumbe facilmente à sociologia espontânea,
confundindo os resultados de investigação com opiniões resultantes de sua fa-
miliaridade com o universo social. (SANTOS, 1989, p. 31, 32)
Quando a ciência afirma uma proposição como verdadeira ela lhe confere uma
validade retroativa. A verdade científica elimina o falso. [...] É, portanto, a impo-
sição de critérios próprios da ordem científica à história da ciência que é respon-
sável pela distinção absoluta entre o verdadeiro e o falso na ordem histórica [...].
Assim, a linguística não podia se instituir como ciência que postula as ver-
dades acerca da linguagem em coexistência com outra abordagem pré-científica
representada pela gramática tradicional. O falso deveria ser substituído pelo
verdadeiro. É necessário, então, inventar uma nova tradição.
Ao contrário do que se supunha inicialmente, o desprestígio acadêmico
da gramática tradicional não resultou, ipso facto, em seu desprestígio social.
Na medida em que tem mais dificuldade do que qualquer outra ciência para se
liberar da ilusão da transparência e para realizar, irreversivelmente, a ruptura com
as prenoções; na medida em que, muitas vezes, lhe é atribuída, volens nolens, a
tarefa de responder às questões últimas sobre o futuro da civilização, a sociologia
está, hoje, predisposta a manter com o público, que nunca se reduz completa-
mente ao grupo dos pares, uma relação mal esclarecida que corre sempre o risco
de voltar a encontrar a lógica da relação entre o autor de sucesso e seu público
ou, até mesmo, por vezes, entre o profeta e sua audiência. [...] Ao aceitar definir
seu objeto e as funções de seu discurso em conformidade com as demandas de
seu público, apresentando a antropologia como um sistema de respostas totais
às questões últimas sobre o homem e seu destino, o sociólogo faz-se profeta.
O domínio de uma sintaxe mais elaborada não está ligado a um gênero preciso.
Ele passa pela compreensão e pela apropriação das regras gerais que dizem
respeito à organização da frase e necessita de conhecimentos explícitos sobre o
funcionamento da língua nesse nível. Trata-se, portanto, de desenvolver nos alunos
capacidades de análise que lhes permitam melhorar esses conhecimentos. Para
tanto é essencial reservar tempo para um ensino específico de gramática, no qual
o objeto principal das tarefas de observação e manipulação é o funcionamento
da língua. A bagagem que os alunos terão acumulado ao longo desses momentos
de reflexão específica poderá ser reinvestida, com proveito, nas tarefas de escrita
e de revisão previstas nas sequências. (DOLZ, NOVERRAZ, SCHNEUWLY,
2004, p. 116).
Considerações finais
Este artigo teve como objetivo central apresentar reflexões que permitis-
sem responder à questão “que gramática ensinar na escola”? Os debates em
torno desse problema evidenciam que, mais do que uma simples oposição entre
diferentes tipos de gramática, a polêmica contrapõe diferentes concepções
de saberes e ciências: de um lado, a tradição gramatical clássica, um saber
holístico cuja influência perdura até os dias atuais; do outro, a recente tradição
gramatical científica que, orientada por uma concepção descritiva de estudos
gramaticais, busca superar substituir a tradição gramatical, que considera um
estado pré-científico das investigações linguísticas. Além do argumento da
falta de cientificidade da tradição clássica, o paradigma descritivo critica os
problemas metodológicos relativos ao tradicional ensino de gramática. Com
efeito, a discussão aqui apresentada explicitou que esse aspecto da crítica,
na verdade, diz respeito a uma tradição gramatical moderna, que surge no
século XIX, em decorrência do triunfo da racionalidade científica moderna.
O paradigma descritivo se caracteriza por apresentar uma concepção na-
turalista da gramática, segundo a qual caberia ao linguista o papel de descrever
as regras que estruturam o funcionamento da língua, sem qualquer juízo de
valor acerca delas, adotando, com isso, uma postura antinormativa. Para os
linguistas descritivos, é esse modelo que deve nortear o ensino de gramática
nas escolas. Paradoxalmente, mesmo os que defendem um ensino descritivo
da gramática, reconhecem a importância do conhecimento da língua padrão,
explicitada na gramática normativa. Considerando que estamos diante de
objetos com objetivos de naturezas inconciliáveis, como resolver o impasse?
A sociedade em geral tem-se manifestado em defesa da gramática normativa,
enquanto entre os linguistas vigora, de modo geral, um consenso ortodoxo
em defesa da abordagem descritiva. Sem reconhecer a relevância do ensino
de gramática tanto no domínio da língua padrão como no desenvolvimento
c) A escola, mais do que uma simples guardiã da língua padrão, deve ser
vista como uma instituição responsável pela democratização do acesso
a ela. Em sociedades democráticas, é dever do Estado garantir aos cida-
dãos a aprendizagem de sua língua oficial, sob pena de criar e reproduzir
uma sociedade excludente, uma vez que toda a comunicação oficial se dá
através da língua padrão.
1
Conforme assinala Auroux (1992, p. 25), “Espontaneamente, aprendemos a falar nossa língua
cotidiana, falando. Mas há uma coisa que parece segura: desde que exista um sistema de escrita,
para utilizá-lo é preciso aprendê-lo de modo especial. Contrariamente à competência linguística
[natural], é um sistema já completamente formado que é transmitido”. Sendo assim, fica evidente
que não se elabora uma norma padrão para ensinar alguém a falar sua própria língua.
descritiva. Isso não significa que os estudos descritivos devam ser desprezados,
pois podem ser utilizados como importantes recursos pedagógicos em metodo-
logias de ensino que se orientam pelo princípio da aprendizagem significativa2.
Referências
ANTUNES, I. Muito além da gramática: por um ensino de língua sem pedras
no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
______. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola
Editorial, 2009.
______. Gramática contextualizada: limpando o pó das ideias simples. São
Paulo: Parábola Editorial, 2009.
AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Trad. Eni Puccinelli
Orlandi. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992.
BAGNO, M. Gramática pra que te quero? Os conhecimentos linguísticos nos
livros didáticos de português. Curitiba: Aymará, 2010.
BAGNO, M. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Pa-
rábola Editorial, 2011.
BAGNO, M. Preconceito linguístico. 56 ed. rev. e amp. São Paulo: Parábola
Editorial, 2015.
BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J-C; PASSERON, J-C. Ofício de sociólo-
go: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas
Teixeira. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
BOURDIEU, P. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. Trad.
Sérgio Miceli et al. 2. ed. São Paulo: Editora da UNESP. 2008.
CASTILHO, A. Nova Gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto,
2010.
CASTILHO, A.; ELIAS, V. M. Pequena gramática do português brasileiro.
São Paulo: Contexto, 2012.
CHOMSKY, N. Regras e representações: a inteligência humana e seu produto.
Trad. Marilda Winkler Avergbug et al. São Paulo: Zahar, 1981.
DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o
oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.;
2
Na psicologia da aprendizagem de David Ausubel, aprender significativamente é ampliar e
reconfigurar ideias já existentes na estrutura mental e com isso ser capaz de relacionar e acessar
novos conteúdos. No ensino de língua, o professor pode recorrer aos estudos descritivos para
promover a reflexão dos alunos sobre seus conhecimentos linguísticos internalizados como
procedimento metodológico para o ensino da norma padrão.
para o currículo escolar. Trad. Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2002.
ZABALA, A.; ARNAU, L. Como aprender e ensinar competências. Trad.
Carlos Henrique Lucas Lima. Porto Alegre: Artmed, 2010.