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Canto e Sexualidade PDF
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INSTITUTO VILLA-LOBOS
LICENCIATURA PLENA EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA
HABILITAÇÃO EM MÚSICA
SOLTANDO OS NÓS
por
ii
FADINI, Maria Eduarda. Soltando os nós: As repercussões corporais da repressão da
sexualidade na infância e sua influência na aprendizagem do canto. 2006. Monografia
(Curso de Licenciatura Plena de Educação Artística com Habilitação em Música), Instituto
Villa-Lobos, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
RESUMO
iii
Quem canta seus males espanta.
(Ditado popular)
iv
DEDICATÓRIAS
v
AGRADECIMENTOS
Aos meus orientadores, Vilma Barbosa-Soares e Helder Parente Pessoa, por toda a
dedicação, por todo o carinho, por todo o material de estudo, por ampliarem e
aprofundarem minha perspectiva profissional e intelectual, por compartilharem com tanto
entusiasmo da gestação desse trabalho, por lerem, relerem e revisarem pacientemente
palavra por palavra dos meus “longuíssimos” períodos; e principalmente, por acreditarem
nessa “missão impossível”.
Aos meus professores de teatro, Tatiana Motta Lima, Rubens Lima Jr. e Luciano Maia, por
colocarem meu corpo de pé.
A Sérgio Britto, Maria Tereza Amaral e Regiana Antonini, por colocarem no palco a atriz,
que tanto ensinou à cantora.
À minha irmã, Carol Fadini, atriz e graduanda em psicologia, por seu apoio e participação
crítica, ativa e criativa, pelo farto fornecimento de livros na área psicológica e pela revisão
dos textos.
À minha irmã de alma, Lys Araújo, musicista, regente de coro, professora de canto, atriz e
clown, por todas as “traduções” e por compartilhar idéias e ideais.
À Isabel Grau, Chefe da Biblioteca Setorial do CLA, por sua amizade e apoio de sempre.
Ao Prof. Dr. José Nunes, por sua inestimável compreensão e orientação em todos os
aspectos.
Ao Dr. Marcos Sarvat, por sua preciosa orientação na área de fisiologia da voz.
Ao meu querido amigo, Leonardo Taveira, cantor, pelo suporte teórico e bibliográfico.
À companheira de sempre, Martha Abrantes por seu socorro e apoio no desespero dos
momentos iniciais.
vi
E, last but not least, one more time, meu marido Roberto Bahal, por absolutamente tudo.
Sumário
Introdução .................................................................................................................... 1
Conclusão ..................................................................................................................... 73
Referências ................................................................................................................... 76
vii
1
INTRODUÇÃO
Este trabalho busca compreender melhor os motivos que levam algumas pessoas a
procurar aulas de canto, apesar de se autodenominarem desafinadas ou com voz feia, e muitas
vezes sem parecer acreditar efetivamente que lhes seja possível cantar. Trataremos da
aprendizagem do canto em adolescentes e adultos a partir de uma abordagem que entende
certas dificuldades de aquisição de conhecimento como oriundas de causas emocionais, e,
portanto, nem sempre removíveis apenas com intervenções técnicas. Não cuidaremos de
desafinação, problemas rítmicos ou disfonias, mas consideraremos as repercussões corporais
das questões psicológicas decorrentes das repressões sofridas na infância.
1
Sobreira, Silvia. Desafinação Vocal. 2003, p. 85
2
Para nortear nosso estudo serão analisadas obras nas áreas específicas de técnica
vocal, musicoterapia e psicologia, esta voltada para a compreensão das repressões, formação
da sexualidade e terapias corporais. Serão descritos casos de alunos de canto popular, numa
faixa etária de 15 a 63 anos, onde se verificam as referidas repercussões da repressão sexual
infantil no aprendizado do canto.
Porém, provavelmente nem os pais nem os demais integrantes dos círculos sociais
da criança avaliam o peso de suas palavras e ações, que muitas vezes parecem não ter
importância. São, com freqüência, as afirmações feitas de forma despretensiosa que geram os
nós, que serão como couraças que as pessoas carregarão por toda a vida, e das quais muitas
vezes tentarão se livrar sem sucesso. O jovem deve poder crescer criando gradativamente
sobre si mesmo o seu próprio olhar. Isso o levará a tornar-se um adulto capaz de administrar
de forma confiante as críticas sofridas durante os seus anos de dependência, e assim construir
condições de ser livre para viver suas escolhas e suportar suas limitações.
3
METODOLOGIA DE PESQUISA
Serão analisados e comparados casos de oito alunos de canto, numa faixa etária de
15 a 63 anos, sendo seis inscritos no curso de canto popular, em um curso livre na cidade do
Rio de Janeiro, e dois alunos particulares. Suas características serão descritas e analisadas a
partir da observação de sua evolução durante as aulas de canto. Faremos uso também de
material bibliográfico nas áreas de música - mais especificamente técnica vocal, fisiologia da
voz e musicoterapia - além de pedagogia, psicanálise e psicologia voltada para a
bioenergética.
*
4
O ato de cantar, sob o ponto de vista funcional, é diferente do ato de falar: esta é a
razão pela qual é preciso o domínio de técnica para desenvolver adequadamente essa
atividade. O controle central do canto está localizado numa área específica do cérebro, sendo
regido pelo hemisfério direito e o trabalho muscular desenvolvido pelo canto ocorre de modo
diferente daquele da fala (sendo necessário, em certos casos, trabalhar-se também a voz falada
através de fonoterapia). Essa característica, porém, não faz com que a fala e o canto estejam
obrigatoriamente dissociados, no que diz respeito à expressão emocional do indivíduo. A voz,
como um todo, é um instrumento privilegiado de expressão da individualidade humana,
carregando em si características particulares e evidenciando também questões emocionais,
mesmo sem a percepção do próprio sujeito.3
2
Cornut, Guy. Prefácio da Edição Francesa In: Dinville, Claire. A Técnica da Voz Cantada. 1993, iii
3
Gouveia, Lidia Maria de. A Fonoaudiologia e o Canto. Universidade Cruzeiro do Sul:
www.geocities.com/Vienna/9177/fonocanto.html
4
Op Cit Cornut (Grifo nosso)
5
técnica vocal, não é possível tratar o aluno apenas como um instrumento composto de tecidos
e órgãos. Em grande parte dos casos as deficiências apresentadas pelo aluno residem no
campo emocional, e se refletem fortemente no corpo, através de tensões localizadas, que
geram problemas com a respiração, emissão e afinação. Mais tarde essas dificuldades podem
vir a se transformar em disfonias, rouquidão e fadiga vocal, podendo chegar a lesões nas
pregas vocais.
5
Sarvat, Marcos. Médico otorrinolaringologista, em depoimento pessoal. (2006) - (Correção do texto original:
“de sangue, de nervos, de músculos, de cartilagens, etc.”)
6
Teixeira, Sílvio Bueno. Estudos sobre a voz cantada. 1970, p. 112
6
Entende-se que um ser humano normal, ou seja, que não manifeste limitação
física ou psíquica que comprometa sua fala, audição ou cognição, esteja apto a desenvolver
uma linguagem e o canto, dentro dos padrões culturais e educativos a que esteja submetido.
Porém, originalmente, o aparelho fonador, em sua estrutura, não apresenta a função específica
da fala e muito menos do canto: ele “não constitui um órgão sensorial ou motor especialmente
adaptado à fonação, isso resulta de uma organização especial dos centros nervosos”.7 “Tudo
nele é uma combinação do aparelho respiratório e parte do aparelho digestivo.”8 A laringe e
as cordas vocais, principais responsáveis pela produção do som, sequer teriam sido
“projetadas” para emiti-lo. Elas fazem parte da deglutição e da respiração como um sistema
de proteção do aparelho respiratório, permitindo a passagem de ar e funcionando como um
bloqueio de modo a não haver obstrução do canal respiratório por alimentos ou saliva.
Marcos Sarvat, frisa que a voz esofágica, desenvolvida por pacientes laringectomizados (que
tiveram removida a laringe) e recuperam a capacidade de falar é uma prova de que o ser
humano é capaz de adaptações profundas no que diz respeito à sua fisiologia.9 “Falamos com
o cérebro e não apenas com a laringe”.10
Além disso, esses dois aparelhos a serviço da voz, têm sempre algumas de suas “peças” em
constante trabalho e não repousam nunca, nas vinte e quatro horas do dia. O diafragma dia e noite
durante a vida toda, não cessa movimentos inspiratórios, chegando a elaborar no correr da vida,
meio trilhão de movimentos, mais ou menos.
A língua e outros órgãos da boca, com suas funções digestivas, trabalham em completo desacordo
com que devem agir durante a fonação. Acordado ou dormindo, muitos e muitos movimentos
desses órgãos são prejudiciais e antagônicos à correta e perfeita produção da voz cantada. (...) O
aparelho fonador, quando não está em função, mastiga, ronca, escarra, tosse, chora, ri, pigarreia,
grita, provoca ruídos estranhos, soluça, estala os lábios, beija, assopra, assobia, funga, etc. Não
tem repouso nunca. Em vigília, está a serviço do pensamento, transmitindo imagens e mensagens
através da fala. (...) Em tudo e por tudo o instrumento vocal leva desvantagem sobre os demais que
servem à arte musical.
O violinista, após seus estudos ou execuções públicas, guarda cuidadosamente, seu violino na
caixa própria e o coloca em lugar indicado à sua proteção e conservação.
O instrumento vocal não pode gozar dessa regalia (...) e a sua preservação é mais difícil. Sofre
todas as influências decorrentes de irregular saúde e tudo reflete na voz que é a balança de
emoções, da vida psíquica, da vida mental, da nossa saúde.11 Qualquer enfermidade, seja de
que natureza for, poderá afetar a voz, prejudicando-a sensivelmente, alterando-lhe as qualidades
naturais. 12- Teixeira (1970)
7
Garde, Edouard. La Voix, Paris. 1970, p. 05
(...) ne constitue pas un organe sensoriel ou moteur spécialement adapté à la phonation, laquelle résulte en
definitive d”une organisation spéciale des centres nerveux.
8
Op. Cit. Teixeira. p. 60
9
Sarvat, Marcos. Médico otorrinolaringologista, em depoimento pessoal. (2006)
10
Ibid. (Grifo nosso)
11
Grifo nosso.
12
Teixeira, Sílvio Bueno. Estudos sobre a voz cantada. 1970, p. 60 - 62
7
13
Cabral Rocha, Filomena, et al, Técnica vocal: guia básico para professores. 2002
www.iil.pt/Ficheiros/TECNICA_VOCAL.doc
14
Garde, Edouard. La Voix. 1970, p. 05 “Car si l’on fait du bruit avec son larynx, on parle et on chante avec son
cerveau.”
15
www.ocorpohumano.com.br
9
16
www.zainea.com/voices
10
PRODUTORES
Os pulmões, traquéia, diafragma, músculos intercostais, músculos abdominais, e
músculos extensores da coluna são responsáveis pela coluna de ar que pressiona a laringe,
fazendo vibrar as cordas vocais e produzindo som.
VIBRADORES
A laringe e cordas ou pregas vocais que através da vibração provocada pela
coluna de ar produzem o som fundamental.
RESSONADORES
[A faringe (hipo, oro e nasofaringe), os seios paranasais, as fossas nasais e a
boca]17 ampliam o som através da ressonância.
ARTICULADORES
Lábios, língua, palato mole, palato duro e maxilar inferior articulam e dão forma e
sentido fonético ao som.
SENSORES / COORDENADORES
O ouvido capta, localiza e conduz o som, enquanto o cérebro analisa, registra e
arquiva o som, sendo responsáveis pela lógica, [ritmo e encadeamento]18 do discurso falado
ou cantado.
17
Op. Cit. Sarvat (2006) - (Correção do texto original: “Os seios perinasais: fossas nasais, sinus frontais,
esfenoidais, etmoidais, mastóides; faringe e boca”)
11
1.3- RESPIRAÇÃO19
No que diz respeito à técnica vocal, a respiração adequada ao canto deve ser
ampla, silenciosa e controlada, fazendo com que a entrada e a saída ar estejam equilibradas.
Ao proceder a inspiração instintiva o diafragma se distende, enchendo os pulmões de ar, e na
expiração se retrai, provocando a saída do ar. No canto, travamos uma “luta” com as
necessidades fisiológicas de nosso corpo, fazendo com que, uma vez expandida a cavidade
torácica para a inspiração plena, a distensão do diafragma se mantenha ao máximo até o fim
da expiração, de modo a controlarmos a saída de ar e conseqüentemente a produção sonora.
18
Ibid - (Adicionado ao texto original)
19
O texto a que se refere o item Respiração foi redigido tomando-se como base McCallion - The Voice Book;
Miller - The Structure of Singing - 1998; Lowen, Alexander - Exercícios de Bioenergética -1985 e relacionado a
experiências adquiridas ao longo de dez anos de prática de como professora de canto.
20
McCallion - The Voice Book - 1998, p. 03 e 04
“Babies can scream for hours and not hurt themselves or lose their voices. (…) in response to whatever stimulus
is provoking it to yell, just does it. Because the baby hasn’t learned to get in the way of its own efficient
functioning, it uses its body in the way it was designed to be used. (…) we may say that the baby has GOOD
USE(…)”
21
Lowen, Alexander- Exercícios de Bioenergética -1985, p. 29 e 35
12
22
Miller The Structure of Singing - 1998, p. 41 (Grifo nosso)
13
1.4 - POSTURA23
23
O texto a que se refere o item Postura foi redigido tomando-se como base McCallion - The Voice Book; Miller
- The Structure of Singing; Lowen, Alexander - Exercícios de Bioenergética - 1985 e relacionado a experiências
adquiridas ao longo de dez anos de prática de como professora de canto.
24
Op. Cit. Lowen, Alexander, p. 26
25
Op. Cit. McCallion, p. 08
14
Da mesma forma, é possível obter uma boa postura estando sentado. A cabeça, o
pescoço, as costas e os quadris estarão alinhados, mantendo-se a curvatura natural da coluna;
os ombros estarão “encaixados” e os braços levemente pousados sobre as pernas; a
musculatura abdominal estará firme e perfeitamente adaptada ao posicionamento do tórax; o
peso do corpo será distribuído sobre os ossos da base do quadril e mantendo-se as pernas
ligeiramente separadas, com os pés apoiados inteiramente no chão. Assim, poderá passar
longos momentos nessas posições sem que sinta qualquer tipo de desconforto. Com o passar
do tempo, o aluno levará para o seu dia-a-dia essa nova postura, incorporando reflexos desse
15
“novo corpo” em outras áreas de sua vida, fazendo com que, de uma forma sutil, todo o seu
organismo se reestruture através de uma nova e mais ampla consciência corporal.
Entre o corpo e a voz existe uma íntima relação. É com eles que o cantor
exterioriza sua afetividade e desempenha o papel intermediário entre o
público e a obra musical. Mas para isso é preciso que ele possua uma
técnica precisa e impecável a fim de poder dominar as inúmeras
dificuldades que vai encontrar.26 - Dinville (1993)
26
Dinville, Claire - A Técnica da Voz Cantada - 1993, p. 4
27
Abreu, Felipe - Algumas características em geral associadas ao canto erudito e ao canto popular - Workshop
ministrado pelo GEV na Pro Arte no Rio de Janeiro em 1995.
16
O corpo, colocado numa posição adequada ao canto, ereta e livre de tensões, inicia
um trabalho muscular conjunto para a inspiração, distendendo o diafragma e proporcionando o
apoio respiratório; a laringe estabiliza-se, ampliando seu espaço interno a partir do
afastamento dos pilares laterais que elevam o véu palatino (ou palato mole) e ampliam a parte
posterior da faringe; a língua deve repousar o mais horizontalmente possível, sem provocar
nenhum tipo de obstrução. Então o corpo está pronto para a emissão que propagará a onda
sonora pela faringe e laringe, fazendo vibrar as cordas vocais. Esse som essencial tornar-se-á
inteligível de acordo com as articulações bucais e línguo-palatais, onde cada fonema receberá
uma fôrma, que a cada alteração implicará em um novo trabalho conjunto de todas as etapas
anteriores.
28
Op. Cit. Abreu
29
Op. Cit Dinville. p.43
17
durante uma longa escala, por exemplo. As sensações provocadas pela vibração da voz, dos
graves aos agudos, num glissando ascendente, percorrem como que um semicírculo, oriundo
da base da coluna cervical, que se propaga até o cume do véu palatino. São essas sensações
que deverão ser compreendidas pelo aluno para que ele possa, ao longo do estudo da técnica
vocal, adquirir conhecimento da sua compleição física e dos resultados das ondas sonoras em
seu corpo, podendo preparar os órgãos de ressonância e situar mentalmente o local onde a voz
irá vibrar antes mesmo de emiti-la.
Podemos notar que, tanto na técnica vocal destinada ao canto erudito quanto ao
popular, existem objetivos comuns a serem atingidos, como a correção da postura, a
estabilização do diafragma, a clareza da articulação, a correta emissão do som, a uniformidade
do timbre, a perfeição da afinação, a potência e o domínio da dinâmica vocal, de modo a
manter, em ambos os casos, a personalidade do indivíduo que produz a voz. Pois é isso que
diferencia um instrumento de outro: a personalidade de seu timbre.
Uma boa técnica vocal proporciona, antes de tudo, tranqüilidade ao cantar, pois
corpo, intelecto e emoções estarão unidos harmoniosamente com um mesmo fim. O aluno
deve estar atento às imagens criadas pelo professor e transpô-las para si, de modo a coordenar
conscientemente esse enorme grupo de órgãos. E o professor, enfim, deve estar ainda mais
18
1.6 – MUSICOTERAPIA
30
Fregtman, Carlos Daniel. Corpo Música e Terapia. 1995, p. 17
31
World Federation of Music Therapy, (WFMT) 1996 - www.musictherapyworld.net/
“Music Therapy is the use of music and/or its musical elements (sound, rhythm, melody and harmony) by a
qualified music therapist, with a client or group, in a process designed to facilitate and promote communication,
relationships, learning, mobilization, expression, organization and other relevant therapeutic objectives in order
to meet physical, emotional, mental, social and cognitive needs. Music Therapy aims to develop potentials
and/or restore functions of the individual so that he or she can achieve better intra and/or interpersonal
integration and, consequently, a better quality of life, through prevention, rehabilitation or treatment.”
32
Correção feita pela Profa. Mte. Vilma Barbosa Soares, no original lia-se “psique”.
19
com clareza sequer a nós mesmos.33 Isso leva o terapeuta a um contato direto com questões
profundas do paciente, não recebendo o filtro da linguagem verbal, manifestando, através da
exploração dos sons vocais, de outros sons corporais e de sons instrumentais, aspectos de sua
patologia que permitem um novo trabalho, além de ajudar a sentir o próprio corpo como
produtor de diversos elementos de comunicação.34
Ruud também nos diz que a música pode dar acesso ao corpo, atingindo os locais
onde as experiências se originam, funcionando como um veículo de autocompreensão e
criando um ponto de partida para a expressão verbal quando penetra em áreas não pesquisadas
do corpo e da mente. Porém, isso deve ser realizado de modo a respeitar-se a posição cultural
pessoal do indivíduo para que a música possa tornar-se um catalisador de suas experiências
pré-verbais. A vida emocional é ampliada e enriquecida e as experiências são acrescidas de
uma profundidade que se configura num ponto de partida para a reflexão e a ação,
expressando imagens ou sentimentos complexos. Pode-se relacionar a isso o fato de que, em
música há possibilidades infinitas, onde o tema, sua repetição e variações, geram uma
multiplicidade sonora ao se combinarem, estabelecendo um sentimento de unidade por conta
da estrutura formal. Essa característica influenciará o indivíduo em sua reorganização
emocional, levando-o a uma compreensão mais ampla e enriquecida de si mesmo.
33
Ruud, Even. Caminhos para a Musicoterapia. 1990, p. 89
34
Op. Cit. Fregtman, p.139
35
Ibid. p.138, 139
36
Op. Cit Ruud, p. 90
20
1.7 - CANTOTERAPIA
Os povos primitivos dotavam o canto de funções das mais diversas, desde cantos de
cura a cantos socializadores. Ainda hoje índios brasileiros e tribos africanas têm em seus
rituais de cura cantos mágicos que atuam como potencializadores dos remédios. Nas religiões
afro-brasileiras o canto está presente como parte da ritualística, mas também como um
elemento que auxilia no transe mediúnico de seus participantes. Os mantras dos hinduístas
também são como um canto que cumpre funções extramusicais. Isso se não contarmos que
todas as manifestações religiosas têm seus cantos e hinos, que cumprem as mais diversas
funções. Porém, somente no século XX o uso das artes como terapia passou a ser alvo de
investigações científicas.38
A Prof. Dra. Adelina Rennó, musicista e psicóloga, doutorada pela USP, situa a
cantoterapia entre a fisioterapia e psicoterapia. É uma atividade que, segundo ela, busca o
desenvolvimento humano como um todo, por meio de várias técnicas e exercícios que são
dirigidos com finalidades específicas. A escolha das músicas não é aleatória, já que a
cantoterapia pressupõe a existência de um terapeuta - alguém com formação específica para o
exercício do cargo, que vai fazer um diagnóstico, determinar uma linha de tratamento e
definir um objetivo.39
37
Werbeck-Svärdström, Valborg – A Escola do desvendar da Voz: Um caminho para a redenção na arte do
canto, 2004, p. 32
38
Rennó, Adelina. Entrevista. In: http://www.vencer.com.br
39
Ibid.
21
40
Rennó, Adelina Entrevista In: Starmedia Vida. www.clipmulher.com.br
41
Ibid.
22
CAPÍTULO II - BIOENERGÉTICA
42
O texto como um todo é baseado na leitura de Reich, Wilhelm. A Função do Orgasmo. 1988 e artigos
relacionados à Bioenergética, publicados em sites na Internet que serão citados detalhadamente na referência.
43
Op. Cit Reich. 1988, p. 255 (Grifo do autor)
23
44
Grifo nosso.
45
Bacri, A. P.; Soares, M. V. Influências dos Bloqueios Corporais na Aprendizagem da Criança. - Centro
Reichiano, 2004 In: www. centroreichiano.com.br/artigos.htm
46
Reich, Wilhelm. A Função do Orgasmo. 1988 p. 197
24
ansiedade que, algumas vezes, poderão se manifestar através de sensações físicas diretas,
como dores, rigidez muscular ou falta de ar, por exemplo.
O medo pode provocar uma tensão na região dos olhos, da cabeça e do pescoço,
imobilizando a “vítima” e gerando desconfortos físicos. Esses medos serão melhor absorvidos
e compreendidos no momento em que se tornarem parte de um processo consciente, sobre o
qual o paciente passe a ter controle. As tensões localizadas na região da boca e laringe podem
ter origem, por exemplo, na contenção do impulso de chorar, provocando náuseas ao
tentarmos liberá-lo. O choro reprimido leva também a tensões faciais, provocando uma
“impermeabilidade” da máscara, através de uma musculatura rígida e inexpressiva.
25
Toda essa tensão corporal provocada pelas couraças acaba por gerar a sensação de
um corpo dividido, não integrado e não unificado. Essa falta de unidade na autopercepção é
causada pela interrupção da corrente de excitação no corpo, sobretudo na região do pescoço e
da pelve, impedindo o fluxo de energia do tórax para a cabeça e do abdômen para os genitais
e as pernas. Ao recuperar essa unidade, permitindo o livre trânsito da energia orgástica,
afloram as lembranças da primeira infância, quando a unidade sensorial do corpo ainda não
havia sido perturbada pela padronização esmagadora da educação.48
47
Op. Cit. Reich 1988 (5 . A Mobilização da “pélvis morta”, p. 282 a 298)
48
Ibid., p. 295 (resumo do texto original)
49
Grifo do autor. Ibid. p. 294
26
invés de enfrentar a luta pela alegria de viver, já que isso acarretaria sofrimento demais, por
ter de enfrentar estruturas sociais rígidas. “O prazer e a alegria da vida são inconcebíveis sem
luta, sem experiências dolorosas e desagradáveis auto-avaliações”.50
Alexander Lowen (1910 - ) conheceu Wilhelm Reich logo que este chegou aos
Estados Unidos, em 1940. Interessou-se por suas idéias, principalmente as que relacionavam o
corpo e a mente, assim como a abordagem econômica do problema da histeria. Além de
estudar sua teoria, tornou-se seu cliente. Mais tarde, quando decidiu aprofundar-se e trabalhar
com a Análise do Caráter, Lowen, na época advogado, mudou-se para a Europa e formou-se
em medicina. Começando a clinicar, sentiu necessidade de ampliar o alvo terapêutico
Reichiano da potência orgástica. Na busca dessa ampliação criou a originalidade de seu
próprio trabalho. A meta terapêutica da Análise Bioenergética inclui outras marcas de saúde
além da potência orgástica, tais como a vitalidade do organismo e sua qualidade de vida.52
50
Grifo do autor. Ibid. p. 175
51
Lowen , Alexander - Prazer: Uma Abordagem Criativa da Vida – 1984, p. 30
52
Azevedo, Renata Philadelpho - Um pouco da vida e obra de Alexander Lowen - 1996 -
http://www.artesdecura.com.br
27
53
Instituto de Análise Bioenergética de São Paulo - O que é a Análise Bioenergética? -
http://www.bioenergetica.com.br
54
Op. Cit. Lowen, p. 30
55
Ibid p.26
56
Ibid p.27
57
De acordo com os estudos em parte da obra de Lowen, acreditamos ser necessário acrescentar aqui também o
termo autopercepção, que é apresentado pelo autor como diferente e complementar do termo autoconsciência
citado por Azevedo
58
Op. Cit. Lowen, p.138 - 145
59
Op.Cit. Azevedo
60
Op. Cit. Lowen, p. 217 - 218
28
61
Op. Cit. Lowen, p. 48
62
Ibid. p.214 - 215
63
Ibid. p.93
64
Ibid. p.138 - 145
29
O professor deve estar consciente dessa sua atuação como um dos pólos do
binômio “professor-aluno” (...) ele se sente encarregado de uma tarefa
especial, diante de cada aluno, mormente quando este apresenta
problemas.65 - Lanz (1979)
65
Lanz, Rudolf - A Pedagogia Waldorf - Caminho para um ensino mais humano, 1979, p.72
30
66
Lowen , Alexander. Prazer: Uma Abordagem Criativa da Vida. 1984, p. 30
32
67
Lowen, Alexander – Exercícios de Bioenergética – O caminho para uma saúde vibrante, 1985, p. 19
(N.T. * Ground em inglês significa chão, base. Grounding, ter base. Grounded, a pessoa que tem base. O termo é
muito usado em linguagem bioenergética designando o contato com o chão e, a partir desse contato, a
conscientização do corpo embasado. Como não encontramos em português a tradução apropriada do termo,
preferimos manter a expressão usada no original)
33
largamente e têm a face relaxada e descontraída. Podemos dizer que muitos deles apresentam
uma expressão de satisfação infantil em seus rostos. Após alguns instantes, o aluno está mais
concentrado em seu corpo e mais estabilizado emocionalmente. Buscamos que a partir daí as
preocupações do dia-a-dia fiquem do lado de fora e o aluno se entregue completamente à sua
autopercepção.
Entretanto, alguns alunos podem ter dificuldades de realizar esse exercício; ficam
tontos ou sentem-se sufocar. Para esses alunos daremos especial atenção ao trabalho de
reestruturação corporal, porém de uma forma mais gradativa. Trabalharemos esse mesmo
exercício colocando-os encostados em uma parede, para que se sintam menos vulneráveis, ou
trataremos a percepção da musculatura abdominal e pélvica durante a respiração na
horizontal, deitados com as pernas dobradas e os pés apoiados suavemente no chão. Assim
eles poderão sentir sua coluna em contato com o chão, percebendo sensorialmente e
visualmente a movimentação abdominal, intercostal e pélvica simultaneamente. Essa prática
também encontra relação com os exercícios propostos por Lowen68 para a realização da
respiração abdominal, com a diferença que, em nosso caso, estimularemos o controle da
inspiração e da expiração, e Lowen estimulará a respiração mais natural, sem o controle da
expiração.
68
Op Cit Lowen. 1985, p. 44
34
associada a algo que deve ser retido, como a urina e as fezes, acaba por se reverter em uma
sensação dolorosa. Também acreditamos que os alunos que apresentam essa “paralisia
pélvica” estão diretamente relacionados à questão da “pélvis morta” de Reich.
Fique em pé com os pés separados cerca de 25 cm; artelhos ligeiramente voltados para
dentro de modo a alongar um pouco alguns músculos das nádegas. Incline-se à frente
tocando o chão com os dedos das duas mãos. Os joelhos devem estar ligeiramente
dobrados. Não deve haver peso algum nas mãos; todo o peso deve cair sobre os pés. Deixe
a cabeça pendurada o máximo possível.
Respire vagarosa e profundamente pela boca (esqueça de respirar pelo nariz por enquanto).
Deixe o peso de seu corpo ir para frente, de modo que ele caia no peito do pé. Os
calcanhares podem ficar um pouco erguidos.
Estique os joelhos devagar até que os músculos posteriores das pernas estejam esticados.
Isso não significa, entretanto, que os joelhos devam ficar totalmente esticados ou
trancados.69 - Lowen (1985)
69
Op. Cit. Lowen. 1985, p. 19
36
A maioria dos alunos chega às aulas com a respiração restrita à área do peito e da
garganta; isso traz reflexos terríveis em relação à emissão vocal e também ao equilíbrio
emocional. Muitas vezes é extremamente difícil para o aluno libertar-se desses padrões.
Muitos se sentem tontos e desconfortáveis e tentam pular essa parte da aula, mas são levados
a compreender que sem uma boa respiração não é possível uma boa emissão vocal.
Assim como no canto, para Reich e Lowen a respiração tem papel fundamental e
diz muito sobre o indivíduo. Segundo eles, os padrões respiratórios limitados são frutos de
tensões musculares, que podem ser o reflexo físico dos conflitos psicológicos. “As sensações
são determinadas pela respiração e pelos movimentos”.70 A respiração curta, com tensões no
pescoço, nos causa uma impressão de “nó na garganta”, uma espécie de aprisionamento, que
remonta a um princípio primordial de expressão. Ao lidarmos com a respiração plena,
silenciosa e controlada, pode ser que levemos o aluno ao encontro de sensações adormecidas,
que não sabemos como serão vivenciadas no momento atual. Esse processo não nos diz
respeito diretamente, pois, repetimos, nossa função não é a de um terapeuta. Mas, como
educadores, devemos dar a cada indivíduo a condição de se sentir confortável na sala de aula,
a fim de que todo esse processo seja feito naturalmente, sem grande choques.
70
Ibid p. 31
37
71
Decidimos usar como notação dos vocalizes básicos a numeração dos graus da escala, de acordo com o
método de solfejo por graus. Para melhor compreensão, exemplificamos: numa escala de Dó Maior: I = dó, II =
ré, III = mi, IV = fá, V = sol, VI = lá, VII = si , I” = dó.
39
I - II - III - II - I
I - II - III - IV - V - IV - III - II - I
I - III - V - III - I
I - III - V - I - V - III - I
I - II - III - IV - V - VI - VII - I” - VII - VI - V - IV - III - II - I
Por mais que consigamos trazer o aluno a seu ponto de equilíbrio durante o
processo de aprendizado, quando iniciamos a aplicação prática do trabalho vocal podemos ter
surpresas. É muito comum que o aluno consiga alguma estabilização durante a vocalização e
ao cantar retraia-se completamente. Ressurgirão não apenas as tensões detectadas durante os
alongamentos e os exercícios de reposicionamento corporal, mas também posturas
absolutamente contrárias ao que inicialmente se pode perceber de sua personalidade.
72
Reiteramos: numa escala de Dó Maior: I = dó, II = ré, III = mi, IV = fá, V = sol, VI = lá, VII = si , I” = dó.
40
Por conta de todas as questões emocionais que surgem durante o trabalho, apesar
de considerarmos o estudo aprofundado da técnica vocal fundamental para o bom
desempenho do aluno, na prática, não podemos primeiro esperar conseguir uma estabilidade
corporal e vocal antes de abordarmos o repertório. Os alunos que trazem problemas
relacionados a auto-estima, aceitando rótulos de desafinados ou “voz feia” - o que na maioria
das vezes não é real - necessitam simplesmente do ato de cantar, tanto quanto do trabalho
corporal e vocal. Eles estão em busca de mais do que técnica vocal, muitas vezes, estão em
busca de si mesmos.
nasce”.73 Estes sons são aqueles sons do bebê, que berra e não fica rouco, porque ele não
pensa em como fazê-lo, ele apenas faz.
73
Brown, Oren L. – Discover Your Voice: How to Develop Healthy Voice Habits, 1996, p. 01 “Primal sounds
are involuntary. They are the sounds you were born with.”
42
Ao longo de nosso trabalho percebemos que não existe, sob o aspecto emocional,
exemplo de bom desempenho técnico que substitua o autoconhecimento. O melhor exemplo
de bom desempenho é o crescimento pessoal, colocando-se no próprio aluno os referenciais
de evolução. Procuramos fazer com que nossos alunos reflitam: “Hoje eu estou melhor do
que na semana passada e semana que vem talvez esteja melhor do que hoje. Mas se não
estiver, tenho a certeza que poderei estar novamente, pois em algum lugar do meu corpo
ainda ressoa essa voz.”
Capítulo IV - CASUÍSTICA
4.1 - Caso I
Identificação: 15 anos, sexo feminino, estudante
Autodefinição: Afirmava ter voz feia e ser desafinada.
Questões emocionais: Sofre forte repressão vocal desde a infância,
particularmente por parte da mãe, que se refere à sua voz como um “miado”. Descreve-se
como muito tímida em relação à sua voz. Mantém relacionamentos amorosos positivos, dentro
dos padrões esperados para sua idade.
Histórico vocal: Criada em ambiente pouco ligado à música e às artes em geral.
Objetivos pessoais: Aprender a cantar para provar à mãe que não “mia”.
Anamnese: A aluna apresentava afinação instável, voz nasal de timbre metálico,
respiração alta e pouca projeção vocal. Não apresentava tensões, porém postura muito má,
com os quadris e ombros projetados para trás.
Iniciou suas aulas sob nossa orientação em agosto de 2004 e continua até o
momento. Durante os primeiros seis meses participou de aulas em dupla, o que foi revertido
para seu aprendizado como algo positivo, pois a outra aluna apresentava uma “tendência
natural” para o canto, que os professores de canto bem conhecem: certas vozes que parecem
ter nascido prontas. Apesar de isso algumas vezes provocar sentimentos de inferioridade, neste
caso, visto que ambas se relacionavam muito bem, a aluna mais adiantada servia de exemplo
sonoro e postural, além de estimular e vibrar com as conquistas da colega. Vale dizer que,
hoje, ambas em aulas individuais, continuam uma relação de amizade e “torcida” pelo
processo de evolução vocal uma da outra.
vocais de nossa parte que a levassem a compreender o que significava uma ressonância
excessivamente nasal em contraste com uma ressonância palatal plena. A afinação também
precisou ser ajustada, primeiramente em relação ao reconhecimento auditivo do som. Muitas
vezes, em situações extremas, após várias tentativas em relação à percepção auditiva,
adotamos a atitude extrema de cantar “dentro do ouvido” da aluna para que ela conseguisse
ajustar sua afinação. Por menos técnico ou pedagógico que essa prática possa parecer, aos
poucos aluna começou a reconhecer quando desafinava e posteriormente obteve o
reconhecimento sensorial da afinação.
Após seis meses, a aluna passou a ter aulas individuais e seu aprendizado deu um
grande salto, o que nos surpreendeu particularmente. Apesar da sua extrema disciplina, a mãe
continuava presente em todo o processo de aprendizado; porém agora a aluna não acreditava
mais no seu julgamento. Sua perseverança fez com que cantasse lindamente na apresentação
de final de ano da escola: um belo soprano, de voz cristalina e afinada. O “miado”, antes nasal
e tímido, se transformara numa voz aguda, brilhante, flexível e estável.
Ainda hoje, após quase dois anos de trabalho disciplinado, temos resquícios de
ressonâncias excessivamente nasais, por conta da voz falada com “sotaque de menina carioca
da zona sul”, mas podemos dizer que foram eliminados 90% da nasalização. A afinação,
estável, não representa mais um mistério para a aluna. Quando, por algum motivo, ela não
45
acerta uma nota, imediatamente identifica o erro e consegue corrigi-lo. Paralelamente, tem
demonstrado cada vez mais entusiasmo em relação à música, dedicando-se com prazer ao
estudo de piano e violão, além de revelar-se uma boa compositora. Nos últimos dois meses,
trouxe para a aula duas composições suas muito bem estruturadas.
A mãe continua “presente” nas aulas, fazendo com que, eventualmente, nossa
aluna ainda duvide de sua voz. Em conversas particulares com essa mãe, identificamos um
processo dicotômico de estímulo e repressão vocal, oscilando entre a crítica e o elogio.
Observamos também uma comparação, por parte da mãe, entre nossa aluna e sua irmã mais
nova. As duas estudam piano na mesma escola, e sobre a filha mais nova a mãe tece os mais
“derramados” elogios, enquanto que, para a mais velha, restam-lhe ainda dúvidas de que seja
capaz de obter realmente sucesso em relação à música.
O que podemos afirmar sobre essa jovem estudante de canto é que a libertação de
sua voz tem, em seu desenvolvimento, um valor muito amplo. Durante o trabalho vocal,
quando a voz ressoa, além do extremo prazer que lhe proporciona, e do qual compartilhamos
alegremente, mostra-se uma prova irrefutável da sua capacidade de enfrentar os obstáculos de
maneira emocionalmente sadia, não criando mágoas e não aceitando rótulos que a limitariam.
4.2 - Caso II
Identificação: 22 anos, sexo masculino, músico e compositor
Autodefinição: Como profissional, reconhecia suas qualidades vocais, como
afinação, improvisação, porém relatava constante fadiga vocal.
Questões emocionais: Sente-se vítima de preconceitos: racial, por ser negro;
social, por morar na Baixada Fluminense; e cultural por tocar em bandas de pagode. Mantém
um relacionamento afetivo estável, porém com relacionamentos paralelos.
Histórico vocal: Canta desde a adolescência e toca diversos instrumentos, como
violão, cavaquinho, instrumentos de percussão em geral.
Objetivos pessoais: Aprender a usar sua voz de modo consciente, obtendo
melhores resultados vocais, liberando-se da fadiga vocal e das tensões que geram um esforço
ao cantar.
Anamnese: Dono de uma belíssima voz, de timbre médio-grave claro e aberto,
apresentava um grande domínio do falsete, sendo extremamente afinado em toda a extensão
vocal, porém, oscilando na região mais grave, por excesso de peso na voz. O domínio pleno
do fraseado rítmico-melódico proporcionava grande facilidade para abertura de vozes e
improvisação. Apesar das qualidades, apresentava uma disfonia na emissão do S, vulgarmente
conhecida como “língua presa” e uma tendência à nasalização do timbre. Identificamos uma
grande tensão na região do maxilar, pescoço, ombros e braços e uma grande retração na região
pélvica.
Esse aluno chegou a nós por conta da produção de seu CD. Sua capacidade vocal
nos surpreendeu, mas ao iniciarmos as aulas pudemos identificar um mau uso da voz, tanto
falada quanto cantada. As tensões corporais estratificadas nos mostraram muito acerca de seus
sentimentos em relação a si mesmo. Apresenta também uma disfonia severa em relação à
pronúncia do S. Para a solução deste problema em particular, atuaremos em conjunto com
uma fonoaudióloga.
Nosso trabalho encontra-se no início; suas aulas ainda não contabilizam dois
meses, mas já fizemos grandes progressos, principalmente em relação ao reconhecimento de
suas tensões. Deve-se a isso o fato de o termos acrescentado a este estudo.
47
Muitos cantores “criam a sua própria técnica vocal” durante a prática profissional,
buscando padrões estéticos que lhes agradem. Em se tratando de música popular, pode até ser
possível que tais profissionais tenham a sorte de, instintivamente, encontrarem sua identidade,
baseando-se em padrões corporais corretos sob o ponto de vista fisiológico. Muitos cantores
populares jamais tiveram problemas em relação à voz. Porém, o mais comum é que esses
problemas surjam e eles tentem adaptar-se, a ponto de mascararem lesões, não percebendo
imediatamente o risco que estão correndo. Isso faz com que o trabalho do professor de canto
seja ainda mais cauteloso e atento a todas as “pistas” que a própria voz evidencie nesse
sentido.
A grande área de tensão que envolve o pescoço e os ombros deste aluno o coloca
numa postura corporal que nos dá a impressão de estar sempre pronto para uma briga, como se
tivesse que se defender constantemente. Efetivamente, esse padrão corporal está de acordo
com sua história: um rapaz negro, de família simples, morador da Baixada Fluminense, que
começou sua carreira cantando em grupos de pagode e sente-se discriminado por tudo isso.
Essa tensão se reflete na emissão vocal baseada na força, pois o aluno realiza um esforço vocal
desnecessário ao falar e cantar. Segundo nos relatou, durante muito tempo ficava
constantemente rouco, mas aos poucos foi se adaptando a isso, e hoje, apesar de tudo, não
sente fadiga vocal ao cantar, apenas ao falar demasiadamente.
Além dessa tensão, apresenta uma imobilidade pélvica que cerceia os movimentos
da musculatura abdominal como um todo. Sua musculatura nessa região está constantemente
contraída, retraída, e a pélvis deslocada para trás, assumindo uma postura também de defesa,
ou, talvez, um reflexo de forte repressão sexual. Esse padrão nos surpreendeu, por se tratar de
um jovem que aparentemente tem uma relação bastante livre com sua sexualidade. Mas, ao
tomarmos contato direto durante os exercícios de relaxamento e reestruturação corporal,
pudemos identificar uma relação entre a “agressividade” do pescoço e dos ombros e a
“repressão” da pélvis. Parece-nos que, de alguma forma, esse aluno tenta controlar seus
48
impulsos sexuais como parte de um comportamento agressivo, diante de um ambiente que ele
sente como hostil. Mas a tensão de defesa dos ombros e do pescoço, ao invés de esconder a
energia agressiva, salienta sua condição de “brigão”, que ele mesmo assume ser; ao passo que
a retração da pélvis tenta bloquear uma grande voracidade sexual, da qual, talvez ao mesmo
tempo, ele se orgulhe e se envergonhe. Ainda não podemos prever como será o processo de
libertação corporal e vocal desse aluno. Mas acreditamos que, por sua disponibilidade ao
trabalho vocal, ele consiga canalizar essas energias contidas para o canto de forma prazerosa,
eliminando os padrões de tensão que impõem uma pressão excessiva à sua voz cantada e
falada.
49
74
A prima, que buscava aperfeiçoamento vocal com intenção de profissionalizar-se, não foi selecionada como
objeto deste estudo, pois seu insucesso deve-se à sua indisciplina, no que se refere a péssimos hábitos
alimentares, comportamentais e vocais, que a colocavam semanalmente fora de condições adequadas ao trabalho
vocal. As “farras” noturnas durante o fim de semana ainda estavam presentes na aula segunda-feira à noite,
muitas vezes impossibilitando nosso trabalho. Essas questões falam muito sobre os boicotes que essa jovem
estaria se impondo. Não pudemos realizar um trabalho mínimo, por conta de sua indisciplina e do pouco tempo
que dispúnhamos para trabalhar com duas alunas.
50
profissão. Apesar de jovem, aparentava mais idade, e nos relatou um quadro de depressão
profunda no passado e relacionamentos que a levaram a um processo de autodestruição.
Gostava de cantar em festas, mas sempre recebia críticas pelo seu mau desempenho. Apesar
desse quadro, identificamos uma voz com potencialidade, escondida por baixo das couraças
físicas e emocionais.
Com essa aluna colocamos em prática toda nossa vivência em teatro, estimulando
a reestruturação de seu corpo e de sua voz, através da compreensão de suas emoções e
evidenciando suas qualidades em potencial. Muitas vezes criávamos personagens para que ela
pudesse realizar os exercícios que propúnhamos, num jogo lúdico de faz-de-conta.
Descobrimos nessa jovem uma criança ainda muito presente, que se sentia pouco aceita pelos
pais. Não por acaso, tornara-se professora de pré-escola e demonstrava muita capacidade
profissional e prazer em sua área.
75
Esses pontos de tensão relacionam-se com as couraças descritas por Reich e a postura encontra descrição
semelhante no que Lowen refere como “estar com o rabo entre as pernas”.
51
libertação. Por vezes a aluna se assustava com os agudos que conseguia atingir durante as
vocalizações. Ainda apresentava dificuldades com a afinação e o ritmo quando cantava com a
base pré-gravada, mas consideramos que dentro do quadro inicial obtivemos uma melhora de
70%.
Num dado momento, infelizmente, tivemos problemas de saúde que nos afastaram
de nossas atividades regulares, provocando inconstância nos horários, sanadas com a
reposição das aulas. Esse período antecedeu à desistência das aulas por parte desta aluna.
A melhora no quadro geral da aluna era visível e conseguimos obter, pela primeira
vez durante a aula, um bom resultado ao cantar. A voz repentinamente desabrochou e tivemos
uma experiência muito positiva em relação a todos os bloqueios corporais, que, apesar de
ainda estarem presentes, eram cada vez menos evidentes. Foi uma aula feliz e saímos
satisfeitas, com a promessa de retomar músicas que haviam sido abandonadas anteriormente,
agora que havíamos, enfim, descoberto A Voz.
Na semana seguinte, nenhuma das alunas compareceu, e nós soubemos que nosso
trabalho se encerraria ali. De algum modo, talvez tivéssemos ido longe demais. Havia prazer
demais em nossos encontros para alguém que se acostumara tanto à dor e ao sofrimento. Com
efeito, na semana seguinte fizemos nossa última aula. Nossa aluna, inicialmente passiva,
tomou a frente e declarou estar muito insatisfeita com as aulas, com a inconstância de
horários, e não ver nenhum resultado efetivo que a fizesse continuar. “As aulas são sempre as
mesmas, as músicas são sempre as mesmas, não vejo evolução nenhuma nisso.”
4.1 - Caso IV
Identificação: 36 anos, sexo feminino, advogada
Autodefinição: Acreditava ser afinada e “ter boa voz”.
Questões emocionais: Descreve um passado de quadro depressivo profundo, com
tentativas de suicídio, e um histórico de relacionamentos afetivos negativos. Não se recordava
de ter sofrido repressões durante a infância, mas relatava ter recebido uma educação muito
rígida.
Histórico vocal: Participou de corais.
Objetivos pessoais: Cantar com prazer e segurança.
Anamnese: A afinação apresentava-se instável, mas ao executar os vocalizes
com o suporte da professora o problema era solucionado. A voz aguda, porém de extensão
reduzida, com timbre opaco e emissão soprosa, oscilava constantemente, apesar de a aluna
dominar a respiração baixa, por conta da prática regular de tai-chi-chuan e meditação. A
postura mostrava-se bastante estável, por praticar esportes como equitação e esgrima. Ao ser
proposto que cantasse acompanhada de uma base pré-gravada, a afinação mostrou-se ainda
mais imprecisa e a emissão ainda mais insegura, porém não foram identificados problemas
com ritmo.
A aluna buscou o curso livre de música desejando cantar com prazer. Permaneceu
conosco por quatro meses, durante o ano de 2005. Deixou as aulas por incompatibilidade de
horário, mas estava satisfeita com os resultados. Nosso processo de trabalho foi bastante
tranqüilo, pois a aluna demonstrava um bom controle respiratório e postural. O que mais nos
preocupava eram a emissão muito insegura e a afinação muito instável, da qual a aluna não se
dava conta.
eram realizados simultaneamente aos exercícios de respiração e algumas vezes também aos
vocalizes.
Este caso nos deu a chance de experimentar mais profundamente a fusão dos jogos
e exercícios teatrais como suporte para o trabalho vocal. Ao trazer mais energia ao corpo, que
já era dono de uma boa estrutura postural, a respiração tornou-se plena e controlada e a
afinação ganhou mais estabilidade.
Este foi um trabalho de muito curta duração; talvez pudéssemos obter melhores
resultados vocais se a aluna tivesse continuado as aulas. De fato, ela ainda estava distante de
obter controle da voz cantada, mas a rapidez com que assimilava os exercícios e a sua
disciplina e alegria em relação ao processo nos faziam esperar bons resultados no futuro.
Vivenciamos uma grande frustração quando a aluna abandonou as aulas, por conta
de seus compromissos profissionais. Mas analisamos o quadro geral e sua evolução durante
aquele curto espaço de tempo e pudemos considerar que apesar do tempo escasso e avanços
55
4.5 - Caso V
Identificação: 48 anos, sexo masculino, percussionista, atleta.
Autodefinição: Desafinado e sem rimo para cantar, apesar de ser músico.
Questões emocionais: Afirmava ser muito tímido, mas “aventureiro”. Não trouxe
relatos de repressões, mas uma lembrança da infância, muito pobre, como algo presente em
sua vontade de superar obstáculos.
Histórico vocal: Recebeu estímulo familiar para a música durante a infância e
adolescência, tendo experiência com diversos instrumentos musicais, mas sem ter
desenvolvido um estudo formal nessa época, buscando maior especialização já na fase adulta.
Objetivos pessoais: Percussionista de uma banda de MPB no Canadá, onde mora
parte do ano, começou a ser solicitado como cantor por ser o único brasileiro do grupo, e
sentia-se absolutamente incapaz de cantar em público. Procurou aulas de canto para tentar
superar essa limitação.
Anamnese: O aluno apresentava voz média, de timbre bastante opaco e pobre em
harmônicos; emissão instável e soprosa, tanto no que diz respeito à voz falada quanto cantada.
Ao primeiro contato, por telefone, sua voz era quase inaudível; na entrevista, toda a postura
corporal e vocal indicavam insegurança e timidez excessivas, que contrastavam com seu
modo de vida: um estilo aventureiro, viajando de motocicleta pelo mundo. A respiração alta e
curta acarretava oscilação na afinação (imediatamente identificada pelo aluno). Apresentava
boa compreensão das tensões corporais e grande domínio sobre a musculatura, provavelmente
pela prática constante das mais diversas atividades físicas.
aprendido informalmente quando mais jovem. Considerava necessário, já que teria que cantar,
tocar um instrumento harmônico que lhe proporcionasse uma compreensão e domínio
musicais mais amplos.
Este caso nos surpreendeu muito por suas contradições e pelo curto tempo
demandado para a reabilitação vocal. O homem que chegou ao nosso estúdio não se parecia,
corporalmente, com a voz retraída que ouvíramos ao telefone. O porte atlético e jovem, apesar
dos seus 48 anos, contrastava com sua timidez e simplicidade. As origens humildes não o
haviam afastado da música, por conta do pai ter sido músico. Muito jovem, ganhara o mundo
em busca de trabalho, e já havia feito de tudo, desde lavador de pratos a recepcionista de hotel,
passando por mecânico, cozinheiro, etc. Na época, possuía uma pequena fazenda no norte dos
Estados Unidos, que era administrada pelo irmão e a ex-mulher, com quem tinha um filho
adolescente. Arrimo de família, mantinha a mãe e a irmã num sítio em Campo Grande, no Rio
de Janeiro. Viajava de moto pelo mundo, era triatleta e alpinista. Definitivamente, sua voz e
sua timidez não combinavam com seu estilo de vida.
Apesar do porte atlético, sua postura no início das aulas era muito retraída, a
cabeça baixa, e a respiração peitoral curta. Não apresentava grandes focos de tensão a não ser
na região dos olhos e da boca. A voz falada era soprosa e trêmula e, apesar de ser brasileiro,
falava com sotaque americano. A voz cantada era praticamente inaudível, mas não
apresentava grandes tensões e a afinação era estável.
concentração foi muito importante nos momentos iniciais para que tomasse consciência dos
desvios posturais e das tensões faciais. Os exercícios enfocavam o suporte abdominal, o
alongamento e o relaxamento dos músculos da face. O trabalho respiratório foi rapidamente
absorvido, pois o aluno, que também praticava ioga e meditação, já conhecia a respiração com
apoio diafragmático. Tivemos apenas que acrescentar a isso o controle da expiração, e
propusemos que essa prática respiratória fosse levada para o dia a dia, de modo que se
tornasse natural e instintiva.
O aluno chegou a ter três aulas por semana, e sua dedicação diária ao treinamento
corporal, respiratório e vocal surtiu muito efeito; exercitava-se ao menos três vezes ao dia.
Trazia sempre relatórios minuciosos dessa prática, e a cada passo demonstrava uma alegria
exultante. Nunca tivemos um aluno tão disciplinado. Sua entrega ao nosso trabalho era total, e
sua humildade diante da figura do professor não o impedia de nada: pelo contrário,
estimulava-o a evoluir cada vez mais, correspondendo às nossas expectativas e normalmente
extrapolando-as em muito. Reconhecia suas limitações e estava realmente disposto a superá-
las, confiando plenamente em nossas orientações.
Os oito meses seguintes foram interrompidos por suas constantes viagens aos
Estados Unidos; mas voltava sempre em forma, pois não deixava de praticar diariamente.
Iniciamos aulas teóricas, praticando leitura e solfejo. Levara para a viagem um CD com os
vocalizes tocados ao piano e um caderno de música com uma série de exercícios teóricos. Ao
retornar, já havia feito muitos progressos. A conscientização corporal e vocal era realmente
surpreendente: já não havia mais a postura tímida, nem a voz inaudível de antes. Muitas vezes
não nos era possível reconhecer sua voz ao telefone, que se tornara clara e firme. Sua postura
adquiriu nova estrutura, não andava mais de cabeça baixa, olhava de frente com um amplo
sorriso e respirava plenamente, sem nenhum traço de ansiedade.
59
4.6 - Caso VI
Identificação: 56 anos, sexo feminino, produtora cultural.
Autodefinição: Afirmava gostar muito de cantar, mas não considerava sua voz
bela; não relatou desafinação ou problemas rítmicos, mas dificuldades com a respiração.
Questões emocionais: Apesar de conviver num meio propício às artes em geral,
não pode ser cantora por preconceitos familiares. Contraditoriamente, relata ter muitos artistas
na família, inclusive uma irmã, atriz e cantora. Tem uma relação familiar tensa, e passou a
infância tentando agradar a todos. Saiu de casa cedo, abandonando por completo qualquer
ambição em relação à música, e vive uma realidade profissional muito estressante. Tem um
casamento estável e feliz, fruto de um amor de infância, concretizado após a maturidade.
Histórico vocal: Criada em ambiente ligado à arte e a cultura, conviveu com uma
geração de artistas importantes em diversas áreas; chegou a cantar semiprofissionalmente
durante a juventude. Tocou piano durante a infância e retomou as aulas recentemente.
Objetivos pessoais: Buscou as aulas de canto por sentir necessidade de fazer
alguma coisa para si mesma que lhe proporcionasse prazer.
Anamnese: Apresentava uma voz médio-aguda de grande extensão, um belo
timbre, jovem e claro (apesar de ex-fumante), naturalmente colocada nas ressonâncias
supralaríngeas, com unidade de timbre, porém mais habituada ao registro de peito, tendo forte
tendência a comprimir as notas agudas. A postura apresentava aparentemente boa
estabilidade, talvez por conta de uma elegância natural do corpo. Porém, ao vocalizar,
surgiam padrões de tensão e desvios posturais refletindo diretamente na respiração e gerando
esforço desnecessário para cantar, particularmente nos agudos. Não teve dificuldade em
cantar com as bases pré-gravadas. Dona de grande personalidade vocal, imprime sua “marca”
imediatamente ao que canta.
Este caso nos chama a atenção particularmente pelas contradições que apresenta e
pela velocidade com que as questões emocionais surgiram. A aluna chegou a nós por conta
das aulas de piano, que pratica no mesmo curso de música onde lecionamos. Sua busca foi
assumida como “terapêutica”. Estava à procura de algo que lhe proporcionasse prazer.
Costuma “dar canja” em shows de amigos recebendo elogios. Sabe que é musical e afinada,
mas não tem pretensões profissionais.
61
As aulas com esta aluna estão apenas no segundo mês, mas em pouco tempo
pudemos identificar padrões de tensão, que nos levaram a compreender pontos delicados em
relação à sua auto-estima. Definimos um trabalho muito franco com referência às questões
corporais e emocionais.
A primeira vista, pareceu-nos difícil lidar com suas tensões, muito estratificadas
na região do pescoço e dos ombros, bem como com a respiração curta, que aparentemente
estavam ligadas à sua profissão, que gera muito stress. O afrouxamento do abdômen e a
imobilidade pélvica nos pareceram contraditórios com o relato de suas relações pessoais e
com a sua aparente harmonia corporal. Ao primeiro contato, sua imagem nos remeteu a uma
mulher forte, elegante e bem resolvida sexualmente. Mas, ao lidarmos com seu corpo e sua
voz, toda essa “construção” corporal desapareceu, dando lugar a um corpo retraído,
envelhecido e ao mesmo tempo infantilizado.
Iniciamos imediatamente o trabalho com repertório, por conta dos objetivos claros
apresentados pela aluna: a busca por algo que lhe proporcionasse prazer. Sua performance é
muito boa, no que diz respeito à afinação, capacidade musical, percepção rítmica;
principalmente, é dotada de grande personalidade interpretativa. Perguntamo-nos porque uma
pessoa dotada de tantas qualidades vocais e musicais não levou adiante o canto como
profissão, já que durante a juventude houve possibilidade para isso. A resposta veio
naturalmente, sem que precisássemos abordar diretamente essa questão.
Perguntamos à aluna o que havia sentido durante esse processo, e ela se disse
muito relaxada e satisfeita com o resultado; mas havia em sua expressão algo de dúvida. Ao
impedirmos o movimento incessante das mãos e neutralizarmos a tensão do pescoço o
63
resultado positivo foi visível, como poderia ainda duvidar de sua capacidade? Perguntamos se
ainda duvidava de que fosse capaz de cantar realmente bem. Nesse momento toda a sua
história veio à tona.
Quando nasceu, os pais desejavam um menino, e, por conta disso, sempre foi
colocada de lado em relação às irmãs. Passou a vida tentando agradá-las, sendo “boazinha”
para todos e mantendo-se na retaguarda, sem chamar a atenção. Começou a cantar na
adolescência e encontrou na música o desejaria fazer de sua vida. Estudou e recebia estímulo
dos amigos com quem tocava. Porém os pais separaram-se, a mãe casou novamente e, por não
se relacionar bem com o padrasto, saiu de casa aos dezessete anos. Teve que trabalhar para
sustentar-se. As irmãs continuaram a viver com a mãe e o padrasto. Desistiu de cantar para
não desagradar à família, pois, para eles, cantoras eram prostitutas. Curiosamente, suas irmãs
seguiram carreiras artísticas, sendo, uma, atriz e cantora, e outra, pianista. Ela, porém, não se
afastou da música, trabalhando como produtora cultural.
Esse relato sincero nos explicou todas as contradições que havíamos percebido, e
pudemos relacionar as tensões, as mãos infantis, os bloqueios respiratórios e a desestruturação
corporal com a sua história. Nosso trabalho está apenas começando e ainda temos um longo
caminho pela frente. Mas já propusemos à aluna que pense em “ressuscitar” a cantora. A
rapidez com que obtivemos uma resposta emocional e verbal provenientes da reestruturação e
estimulação corporal e vocal nos encaminha para a certeza de que não é possível trabalhar-se a
voz do aluno sem tocar em questões que vão muito além da técnica vocal. Esperamos
continuar no caminho certo, para que nossa aluna possa reencontrar sua bela voz, abandonada
no passado.
64
A aluna já freqüentava aulas de canto havia seis meses, com outro professor,
quando foi nos foi transferida pelo curso livre de música onde lecionamos. Nosso trabalho foi
de curta duração, três meses apenas.
Este caso nos chamou atenção pelo fato de que a aluna apresentava, de modo
geral, bastante segurança em relação à sua capacidade vocal e corporal. Inicialmente nos
pareceu dotada de controle vocal e respiratório, mas, ao longo dos exercícios iniciais,
identificamos desconexão entre as ações respiratórias e vocais. Não apresentava grandes
65
Por conta de suas dificuldades, procuramos fazer com que fosse prazerosa a
retomada do contato com o corpo, mas cada vez mais a aluna mostrava-se desconfortável e
descontente com nossos métodos. Procuramos explicar a necessidade de equilíbrio corporal
para obter uma respiração adequada que a auxiliasse no canto, mas ela preferia passar
diretamente para os vocalizes e as músicas, não dando importância sequer aos exercícios de
respiração. Por ter cantado em um coral por sete anos tinha adquirido bastante desenvoltura ao
vocalizar, e acreditava ter um bom domínio respiratório, o que, em absoluto, não era real.
corporal direta, durante a prática do canto com as bases pré-gravadas. Enquanto a aluna
cantava, direcionávamos sua postura, de modo a recolocá-la no eixo, e estimulávamos a sua
respiração a partir da incentivação direta do trabalho muscular adequado. Quando ela adquiria
a postura envelhecida e retraída, alongávamos-lhe os ombros, os braços, o pescoço e o peito,
de modo a obtermos uma movimentação mais ampla e condizente com sua postura natural.
A aula foi quase toda realizada no chão, com as luzes apagadas, apenas deixando
entrar a claridade natural pelas pequenas janelas da sala. Isso proporcionou um ambiente mais
tranqüilo e favorável aos nossos objetivos. Buscamos orientar a aluna a voltar os olhos para si
mesma, em etapas que se iniciaram dos pés até a cabeça e do umbigo para dentro do
abdômen, num ritmo que favorecesse a respiração plena, lenta e pausada. Pedimos que
visualizasse uma linha, com desenho elíptico como imagem de unificação da visualização do
ápice do eixo, no alto da cabeça, com sua base localizada no meio das pernas, exatamente no
centro dos órgãos sexuais. Adotamos o mesmo procedimento a partir do umbigo e seu ponto
de reflexo nas costas.
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Utilizamos como ritmo o próprio ciclo respiratório da aluna, que nesse momento
encontrava-se mais amplo e pausado. Os exercícios vocais foram realizados a meia voz,
alternando-se cada série com um exercício de respiração.
O aluno chegou a nós buscando um apoio para a prática da dança de salão que
iniciara havia um ano. Alegava não ter ritmo e “não ter voz” e acreditava que as aulas de
canto o ajudariam a entender a música, melhorando seu desempenho. Fazia sessões de RGP e
obteve apoio de sua fisioterapeuta e de sua terapeuta para isso. Ambas compreendiam que a
aula de canto poderia auxiliá-lo, a primeira em relação à postura e a respiração e a segunda
em relação à timidez. Ele acreditava também que isso o ajudaria nos relacionamentos
pessoais, e, como gostava muito de música, acreditava que seria uma atividade prazerosa.
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Nosso trabalho durou aproximadamente oito meses e foi marcado por uma série
de problemas pessoais do aluno. Sua vida familiar e profissional atribulada fazia com que
carregasse grande tensão corporal. Tínhamos que lutar a cada dia para desfazer os focos de
tensão espalhados por todo o corpo. A insegurança e a ansiedade marcavam sua expressão
facial, deixando-o com uma tensão concentrada na área dos olhos e boca. A respiração era
naturalmente abdominal, porém muito tensa e restrita a ciclos curtos. Quando seu estado
emocional mostrava-se mais instável, a respiração tornava-se peitoral e pesada.
Sua voz pequena e velada oscilava entre a emissão plena e o falsete, sem muito
controle. Não tinha consciência das sensações corporais de ressonância, nem o discernimento
entre graves e agudos. Mesmo com todas essas restrições, ganhamos mais uma oitava em sua
extensão e o aluno espantava-se com o volume que podia produzir durante os vocalizes. Uma
voz grave, de timbre escuro e cheio começou a surgir. Em pouco tempo ele vocalizava sem o
nosso suporte vocal.
Seu estado emocional era muito irregular, e por vezes não conseguíamos sequer
trabalhar os vocalizes, dedicando mais tempo ao relaxamento e à respiração, bem como ao
canto, incluído como parte do relaxamento. Sua voz começava a embargar, e ele mais de uma
vez chorou durante as aulas. Os exercícios de respiração provocaram esse tipo de reação tanto
quanto os vocalizes.
Seus progressos vocais eram duradouros e seu entusiasmo era crescente. Trouxe-
nos uma imensa lista de músicas que gostaria de cantar; a maioria delas estava muito acima de
sua atual condição vocal. Mas consideramos positivos o seu ânimo e sua confiança na escolha
do repertório. Selecionamos duas mais acessíveis, pois era importante um repertório que se
adequasse ao seu momento vocal. Nosso objetivo para um futuro próximo era “Travessia” de
Milton Nascimento. Dissemos que teríamos um longo caminho pela frente e ele concordou
em fazer o possível para atingir esse objetivo. Particularmente, acreditávamos que esse dia
chegaria em breve, pois ele mostrava-se muito disciplinado, dedicando-se diariamente aos
exercícios de respiração, postura e ressonância.
Durante uma grande crise profissional e familiar, o aluno desistiu de sua busca
pelo prazer. Nossa última aula foi marcada por um profundo sentimento de derrota de sua
parte, contra o qual lutamos infrutiferamente. Ele chorou muito e disse saber que não tinha
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direito ao prazer e a felicidade. Amava profundamente as aulas de canto, mas não conseguia
se permitir ser feliz enquanto tantos problemas aconteciam à sua volta. Perguntamos o que sua
terapeuta pensava em relação ao abandono das aulas de canto e ele nos confessou que
abandonara a dança também. Segundo ele, sua terapeuta partilhava da mesma opinião que
nós: não devia sacrificar-se mais uma vez, pois em toda sua vida carregava esse abandono
constante de tudo que amava.
Considerações finais
Existe em todos nós, professores, a esperança de fazer com que os alunos sejam
bem sucedidos em suas descobertas: é isso que nos impulsiona. A perda de um aluno a
caminho de sua redescoberta corporal e vocal é muito frustrante. Temos, porém que manter
nossos propósitos e olhar atentamente para esses desistentes. O processo segue o curso
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possível dentro da relação estabelecida entre professor e aluno, o que não quer dizer que a
desistência deste signifique para o professor um fracasso profissional.
Talvez esses alunos tenham sido levados pela reorganização corporal e vocal a um
impasse: teriam que se colocar frente a frente com suas limitações, para que fosse possível
superá-las. E será que eles de fato queriam superá-las? Torna-se mais simples abandonar o
processo e voltar aos padrões antigos, que, por serem conhecidos, não oferecem ameaças. Mas
e nós professores, como ficamos diante dessa desistência? Devemos nos sentir culpados por
forçar demais o aluno? Por vezes pensamos que deveríamos ter sido menos exigentes,
deixando que o aluno fizesse tudo à sua maneira, sentindo-se mais confortável. Talvez assim
ele não abandonasse as aulas. A pergunta que fica é: de que adiantaria? Estaríamos fechando
os olhos aos conceitos básicos de nosso trabalho, cujo fundamento é a reestruturação corporal
e vocal.
Um professor de canto não pode ensinar a um aluno a cantar sem antes levá-lo a
reconhecer-se em si mesmo. É do reconhecimento do seu próprio corpo que o aluno parte, em
busca de uma nova imagem, mais equilibrada e harmoniosa, onde a respiração estará plena, o
corpo estará firmemente equilibrado e a voz, enfim, estará liberta.
*
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CONCLUSÃO
Pensando nessas questões, tão comuns aos profissionais que se dedicam ao estudo
e ensino da voz cantada, e a partir de experiências ditadas por nossa busca, descrevemos a
metodologia aplicada em sala de aula e os resultados obtidos. Ao trabalhar as ressonâncias e
tensões corporais o professor acaba por colocar o aluno frente a questões delicadas, que
podem ser as origens dessas tensões que “amarram” o canto.
Por isso, aquele que decidir dedicar-se ao ensino do canto deve ter em mente que
à sua frente não está um aluno em busca de técnica vocal, mas um ser múltiplo, que deixará
em suas mãos muito mais do que suas cordas vocais, mas toda a sua estrutura individual. E é
somente através da compreensão dessa estrutura que poderemos um dia “entregar a batuta ao
regente” e observá-lo, a “tocar” todo o seu corpo como uma orquestra cuja sonoridade plena,
então poderemos chamar de A VOZ.
***
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Referências
Imagens:
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