LIVRO ANTOLOGIA - Prêmio - Proex - de - Literatura - 2 ED PDF
LIVRO ANTOLOGIA - Prêmio - Proex - de - Literatura - 2 ED PDF
LIVRO ANTOLOGIA - Prêmio - Proex - de - Literatura - 2 ED PDF
REITOR
Horcio Schneider
PR-REITOR DE EXTENSO
Luiz F. Branco
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
Biblioteca Central da UFPA, Belm - PA - Brasil
Apresentao
POESIAS
23
ndio Retirante
Max Reis
26 Aluga-se um corpo
28 Se Abarca
33 A lavadeira
37 Nu poema
40 Cobra-Grande
41 Decifraarte
42 Verdadeiro cadafalso
44 La dernire Posie
49 Ecos
50 Poesia e Sonho
52 Partida
53 Remador no PoeMar
Raphael Gomes
55 Anunciao
57 Belm Gerais
59 Ver-a-feira
CRNICAS
65 O Googlielmo
77 Arestas
79 Epifania
95 O andante
CONTOS
145 Jurupari
159 Sonho
193 Amigos.com
201 A bailarina
Poesias
ndio Retirante
Max Reis
I
difcil dizer em cada rima
O que j foi falado pela vida
Desse homem que desce na subida
E de costas d passos para cima
Quando tudo est triste logo anima
Do gog tira um som de melodia
E a tristeza sorri na cantoria
Quem se chega assovia e vai cantando
E quem parte se vai cantarolando
Com o peito repleto de alegria
II
Era o galo cantar de manhzinha
Assanhando as galinhas no poleiro
Que esse homem-menino era o primeiro
A saudar a alvorada da cozinha
E depois do caf, rosca e farinha
J se via no seio da floresta
A pastinha caindo pela testa
E uma faca enfiada no calo
ndio preto, Bai-bai, raio e trovo
Um nativo espreitando pela fresta
POESIAS
23
III
Nesse tempo se andava devagar
Passos curtos, medidos, quase lentos
Como se bafejados pelos ventos
Coa certeza que dava pra esperar
Fala mansa, pausada e sem gritar
Nas conversas alegres da varanda
L crescia o moreno em vida branda
Entre folhas, razes e igap
Imitando o cantar do curi
Onde a hora do tempo no desanda
IV
Mas ningum sabe ao certo o seu destino
Onde e quando chegar sem nem ter ido
E por ser um valente e destemido
Foi seguir as pegadas de um felino
Bem mais certo dizer - um leonino
Na esperana de uma vida feliz
L nas brenhas assim que se diz
Como se na grandeza da cidade
Estivesse uma tal felicidade
Invisvel e a um palmo do nariz
V
Ps o saco de roupa no cangote
E a faquinha na meia do sapato
Nem olhou para trs pra ver o mato
Transformar a tristeza num chicote
Quando o barco acendeu seu holofote
A saudade brilhou em sua pupila
Gota a gota uma dor fazia fila
E no canto dos olhos virou pranto
Noite escura de puro desencanto
Em que o medo no mata, mas mutila
VI
Aportou feito um pobre retirante
Entre as pedras do Beco do Cardoso
O pisar era um tanto temeroso
Nem lembrava a figura de um xavante
Cabisbaixo e com rugas no semblante
Adentrou pela casa meio triste
Da janela que a vida tudo assiste
Vislumbrou casares e a velha igreja
Como em fim de orao disse assim seja
Passarinho no vive sem alpiste
POESIAS
25
Aluga-se um corpo
Eu sou o disponvel.
Sou o ser que disponibiliza sua alma pra qualquer tipo de bicho.
Tenho asas, tenho fogo, tenho dor, tenho amor, tenho mentiras.
No vim para encantar, nem para aborrecer, vim para iludir.
Enquanto tu acreditas em Mim, sou completa.
No cho de madeira lisa e corrida, nas luzes quentes,
Nas msicas que chupam meus ouvidos, no suor que transpira
pela minha pele,
Eu sou quem eu quiser ser.
Sou anjo e demnio, pronta pra me doar pro universo das
mentiras sinceras.
Alimento-me do doce som dos aplausos e me fao rainha
mesmo quando sou mendiga.
POESIAS
27
Se Abarca
Preamar de maro
reponta
devora
Montarias e barreiros
ponta
Afrontado no tijupar
bebem e cantam
o porto
Panema, mundiado
fome
nos sonhos
29
31
A lavadeira
POESIAS
33
Breve perfil de um
transeunte qualquer
POESIAS
35
Nu poema
POESIAS
37
POESIAS
39
Cobra-Grande
Harley Farias Dolzane
Decifraarte
Tocou-me a pele,
rodeando a flor.
Sugando-te.
lendo-te e relendo-te,
ptala por ptala,
desfolhando-te ou folheando-te.
Decifrando tuas entrelinhas,
descubro teus Mistrios...
POESIAS
41
Verdadeiro cadafalso
o teu corpo
que puxa
para baixo,
esse traidor.
olhos de mulher amada voltaro
feche o teu,
por hora, olhos cegos
negros, mortos te aguardam.
teus papis desfiados
rebrilham sob o sol
mais uma promessa que se cumpre
por um pecado que se inventa.
POESIAS
43
La dernire Posie
Maiana Saln Correia Pereira
POESIAS
45
POESIAS
47
Domnio...
Domnio...
Animais grotescos
Roldanas
Corpos suados e homens fortes
Engrenagens
Alavancas
Bceps e carne
Vida e beleza
Revolta!
Nunca estive to perto da Revelao,
De me ver no fundo do rio, apodrecendo,
Sabendo que estou amarrado ncora selvagem,
Pois sou apenas um homem,
Entregue projeo de tela
Repetitiva e natural.
Nunca estive to perto de ceder...
A vida inteira a um passo
E um passo dado por uma vida inteira
No descompasso do tempo,
Na tartaruga que vive mais de cem anos,
Enfraquecendo a minha nfima grandeza:
Chego a achar que j vivi demais.
Sou opaco, um co farejando o osso,
Um amigo querendo estender o ombro,
Lutando contra o prprio desejo.
Nunca estive to perto,
Mesmo sabendo que sempre estive to longe.
48 II PRMIO PROEX/UFPA DE LITERATURA
Ecos
I
Algum precisa gritar no vcuo
Desalinhar os portos
POESIAS
49
Poesia e Sonho
POESIAS
51
Partida
Remador no PoeMar
Raphael Gomes
Rema Remador...
Um horizonte te espera
Em agonia, em Quimera?
Em espumas de amor...
Rima Rimador...
Verso-Leviat de Dor...
Rema Rimador...
No horizonte estendida
Em inalcanvel fragor!
Qual poente amante
Cu e mar arfantes
Em delrio. Estupor
53
Ao Firmamento do Mar
com
rima
O
Eo
reMar
poeMar...
Anunciao
POESIAS
55
Belm Gerais
Rita de Cssia Paiva
pela noite
Que Minas Chega
Ao Guajar
Vem da Ponta da Areia
Do Morro Velho
Encontra o amo do ndio daqui
Aragem canta como flechas
Na dana das aves noturnas
O rio, calado,
Ouve a histria do ouro
De outra terra
Que cresce, excntrica,
Do centro de mim mesma
Esse no meu cho...
Mas a fora dessa dana
Da folha e da lana
De Damiana e da mata
POESIAS
57
Ver-a-feira
59
Crnicas
CRNICAS
63
O Googlielmo
65
CRNICAS
67
- Aproveito para deixar meu recado a Watson, que a estas horas deve
estar orgulhoso do seu feito: vencer a espcie humana no tarefa to difcil
(a est a natureza com suas intempries, como exemplo). Difcil, caro Wat
(posso cham-lo assim? desafio-o a me alcunhar tambm com um apelido
carinhoso), um congnere estender as mos a um derrotado e levantarlhe do cho por curiosidade, Watson, se o teu inventor cair com afeco
cardaca ao teu lado, e no houver ningum por perto, tu podes ajud-lo?
(bem sei que podes em frao de segundos listar todos os remdios existentes
nas terras mais remotas), mas o que quero saber se podes encostar as mos
ao peito do teu tecnlogo e prestar-lhe uma massagem... Erro crasso meu,
tu no tens mos.
69
71
fora da terra das letras por um bom tempo, atado pelas aracndeas
teias da burocracia do servio pblico. Retorno, como que do exlio,
tentando adaptar-me novamente minha terra. As passagens pela
Especializao e pelo Mestrado servem como alento a este velho
escriba, pois permitem-no palmilhar, uma vez mais, corredores
ainda impregnados pela agradvel atmosfera da Academia dos anos
80. Decerto, sua fragrncia ir exalar para sempre atravs do portal
espao-tempo do tnel das letras.
CRNICAS
73
75
da vida, da vida daquele garoto. Seus olhos eram vermelhos, mas sua
viso no era marejada por pranto. Ento seriam vermelhos por dio? O
mais provvel: um entorpecente qualquer. Tal garoto deveria drogar-se
incansavelmente.
Certa vez ele passou s pressas, corria bastante, e atrs um
segurana de loja. O jovenzinho foi puxado pela gola da camisa,
ladrozinho!.
Ele havia roubado um cordo de ouro. A vtima passava a
mo no pescoo e chorava, por dor, revolta, talvez. O garoto chorava
desesperadamente,
tio, no fui eu.
Uma criana que muito sabe da vida, com sua ingenuidade
comprometida, chorava desesperadamente,
tio, no fui eu, no fui eu.
A vida ensina-nos a mentir... Ou a mentira uma herana que j
trazemos de bero? Mas ser que o garoto teve bero? Dvida.
Pessoas e opinies: os pais, apedreje-os, Estado, o culpado,
pessoas e opinies: circulares. E isso espanta, porque a todo o momento
vejo a repetio paradoxalmente entrecruzada com a passagem, com
envelhecimento, com a queda do que antigo, com florescimento da
morte catalogada em pginas de jornal. As coisas passam, e uma essncia
permanece, uma essncia medocre, esteticamente horrenda e mal
cheirosa, mas que merece contemplao, estaticamente move-se a um
fim que parece nunca terminar.
76 II PRMIO PROEX/UFPA DE LITERATURA
Arestas
CRNICAS
77
Epifania
79
, a certeza que temos que para alm das suas chamas algo
consome dentro de ns. Apesar do frio, do silncio, do escuro, sempre
fazemos questo de deixar consumir e doer, ainda que sem remdio,
algo dentro de ns. Quem sabe essa descoberta nos mostre o quanto
ainda precisamos dar corpo s formas que temos nos espelhos e
chamas de dentro de nosso quarto.
Agora ela est acesa...
Amor.
CRNICAS
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83
85
Acordar naquela manh no foi difcil. Algo novo estava comeando. Uma nova rotina, eu poderia dizer. Mas para os sonhadores
como eu, uma nova jornada. J estava tudo pronto, atrasos logo no
primeiro dia so inadmissveis. Sa de casa no horrio previsto para que
nibus, trnsito e outros possveis fatores no me retardassem.
Estava confiante. A cada passo, dado com vontade, meu
pensamento no saa da rbita positiva. Vai dar tudo certo, era o
que eu pensava, no vou fazer nenhuma besteira. Quando menos
espero, uma pedra, como dizem todas as lnguas, cortou meu barato.
Tropecei to feio que eu mesma ri da situao. Creio que o dia, o
destino e a situao to s me permitiam rir naquele momento, j
que nenhum sinal de tristeza ou de m sorte se aproximaria de mim
naquele dia.
J no nibus sempre no nibus minha mente comeou a
voar. Imaginei os ternos e os termos. Os saltos finos e os assassinos.
A retrica e a lrica. Tudo nesse mundo me atraa. Ser que ver esse
mundo por sua outra tica me faria am-lo ainda mais ou me faria
pessimista? Meu intuito era olhar de perto. Ver e ouvir, mas acima de
tudo, sentir e compreender. Afinal, uma deciso fora tomada, porm,
CRNICAS
87
89
91
CRNICAS
93
O andante
95
97
99
O pssaro amarelo
Ives de Oliveira Souza Jnior
101
O ltimo pulsar
Schirlei Stock Ramos
103
105
CRNICAS
107
O ltimo romntico
Trcio Heitor de Sousa Moreira
109
Os embalos da vida
111
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Pedgio identitrio:
uma experincia na escola da rua
Auriclia Silva Monte
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117
119
LXX
Amarelada na parede a folhinha marca 1979. O universo
carioca com um crepsculo triste, chuvoso, em tom cinza desmaiado,
no entende a despedida de Dalcdio. Incontrolavelmente, o vento s
aumenta o seu bufar, tambm em desalentos. O sol com um brilho
acanhado esconde-se atrs de nuvens pesadas, inibidas, ensopadas em
um choro juvenil, preso, pressentindo a ausncia do pai. O Rio como
um todo, abruptamente, molha-se em chuva-choro, lamentando o
repouso eterno do operrio do romance amaznico.
E a quietao tem data certa. A ltima pgina de sua saga
revela o dia 16 de junho em semblante frgil, fastigioso, cheio de um
frime como quem recebera a visita fulminante de traas e tende a
esfacelar. A corroso do tempo imprime nesta lauda as marcas do
cansao, desgaste total, e comprometimento, at no derradeiro momento, com as imagens simples e angustiantes, de sua terra. Como
arteso da palavra, o romancista do Maraj na ltima folha de seu
Romance-Vida, necessita de sua ferramenta em punho, e assim, em
sacrifcio, sangra o papel com letras vacilantes, gagas, porm impregnadas de sinceridade:
CRNICAS
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CRNICAS
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CRNICAS
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Contos
135
leite frio. Sentia um prazer imenso daquele som etreo dos anjos
varrendo os areais o passar das vassouras na areia fina, que o vento
movimentava incessantemente desde a fundao do mundo. Deus
tremia de gozo com o rudo dos gros descendo pelas dunas em
remoinhos leves, o deserto de toda a criao se revirando como um
corpo enfermo. Os anjos seguravam pela barra da estola, como a imitar
mulheres de vestido: que as charpas de suas vestes jamais deveriam
tocar o cho, trazer um minsculo gro de areia para a habitao do
Eterno. Os dias deveriam ser assim, e se eles no varressem todo o
areal at o findar das horas, o sol tambm no se recolheria para o
cair da noite. Contudo, nem mesmo estes instantes de gozo perenal
contentavam o Santssimo por tantas interrupes inoportunas. As
tantas miudezas, os psitacismos das aves, os escrofulosos mal curados,
toda a sorte de infortnio vinha pousar aos ps do Onipotente.
A me do Eterno, que passava os dias debruada numa roca,
costurando um manto que a cobrisse, o atormentava. A porta do
pequeno cubculo onde a Virgem trabalhava era de carvalho negro,
tinha tramelas de bronze; abria-se ali o pequeno orifcio da fechadura,
por onde chave nenhuma passava; e por mais que lhe batessem
porta para faz-la parar com a barulheira, a Virgem no podia ouvir,
que ela mesma j vai idosa e surda na solido de sua alcova. Deus
se agastava por demais com o rudo soturno daquela roca batendo
a desfiar barbantes, odiava aquele manto que no se acabava nunca
de fabricar. Mas odiava, sobretudo, o cordeiro que balia dentro do
cubculo, o cordeiro de l da Virgem.
Deus coava o queixo olhando em torno. A segurava a tigela,
bebia a papa de po molhado, limpava a boca. As moscas que voejavam
h pouco caram por sobre a mesa, Deus as transformara em feijes
torrados. As abelhas que andavam em sua face tambm sumiram.
Os anjos penavam l fora, e as trevas jamais chegavam. Mas agora
CONTOS
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Vozes do caos
139
141
cho. Meus ps pisavam onde Deus pisa, de acordo com minha me. Estou
no territrio dEle e algo pode acontecer a qualquer momento. No vou
negar, tenho tanto medo. Queria tanto algum pra me fazer companhia.
Algum pra amar e sentir que nunca estou s. Para esperar por esse Deus,
de braos abertos pra vida, com algum que seja eu de uma forma que
ainda desconheo.
A chuva at que est agradvel. Molhou-me o corpo por inteiro.
A mim e a uma moa que est nesta mesma praa. Ser que Deus est
nela? Por que todos fugiram da chuva e s ela que no? Parece gostar
de se banhar desse jeito. Ou Deus? Como Ele no pode sentir a
chuva, pois acho que no tem pele, est nela para sentir ao menos
uma vez como sentir-se pintado numa tela na vida real. A chuva
pinta essa moa. Todas as gotas que caem nela so multicoloridas.
Acho que na verdade Deus se aquietou. Parou de correr e agora pinta
uma das mais belas de suas obras-primas. Deus o grande pintor.
Moa? Cheguei mais perto.
Tenho medo desse homem que se aproxima. Pensei que fosse Deus,
mas no era, pelo menos achei que no era. Eu estava molhada e com
vergonha. Mas ele tambm estava. E sorria. Senti que Deus estava no
sorriso molhado dele.
Diga.
E os dois sorriram um riso acolhedor, que aquecia o corpo inteiro.
E ela, estendendo sua mo para ele, olhou para o cu e sorriu (nesse
sorriso cabiam todas as ltimas cores inventadas pelos poetas de acrlico
que desenham palavras imortalizadas em meio ao caos). E entre os dois
havia um propsito: viver desconhecendo o futuro comeado desde hoje.
142 II PRMIO PROEX/UFPA DE LITERATURA
CONTOS
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Jurupari
145
147
qual conhecia apenas o prenome: Luiza. - que partira sem nem sequer
me deixar, a smile daquele famoso conto de fadas, o sapatinho de
cristal como pista. Um prenome e nada mais. Quantas Luizas devem
existir no mundo?
Aps rodar toda a sede, veio a mente o lugar bvio onde ela
deveria estar: o toalete lgico, idiota! Ela sentiu vontade de urinar,
no deu para segurar e por isso saiu correndo. Se bem que faz tempo...
Ter sido o nmero dois? dirigi-me rapidamente para o lado onde
ficava o banheiro. Estava fechado. Sorte que a porta era de madeira.
Bati repetidas vezes. Chamei: - Luiza! Luiza! Ningum respondeu.
Fiquei preocupado, e como os seguranas da Villa Nueva estavam
ocupados demais para me socorrerem quem sabe, Luiza no passou
mal e est desmaiada a dentro resolvi arrombar a porta. Com um
chute o fiz. Foi ento que vi Luiza por um instante, no mais que um
instante. Ela estava de costas para mim. De repente seu cabelo louro
comeou a se transformar em um longo rabo. Na cabea surgiram
chifres. Braos, pernas e pescoo foram recobertos de pelo. A mulher
ficou com a aparncia de um bode. O ar se encheu de um odor
insuportvel de enxofre. Ela (ele) se virou para mim com um aspecto
horrvel. Olhos esbugalhados. Soltava fumaa pela narina. Rinchava
como cavalo. Fiquei apavorado. Juro que me urinei todinho! Comecei
a clamar pelo sangue de Nosso Senhor. Congelado de pavor, espiei
nos olhos da criatura. Ele (ela) me reparou. Deu um berro de agonia,
um pulo para o alto e evaporou no ar. S depois disso consegui me
mexer do lugar. O bicho que vi era o cramulho em pessoa.
Aps terminar o relato, o neto estava sobressaltado, mas
para no dar o brao a torcer gracejou: - Cramulho, ?- e caiu na
gargalhada - ento, alm da Jovem Guarda ser que o diabo tambm
chegado em um tecnomelody? E gargalhou mais alto ainda sob a
advertncia do av que o mandava ter cautela com o assunto. L fora
CONTOS
149
CONTOS
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153
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157
suas rampas e pulavam pelos lados. Quem ali dormisse ai ia, isto
sim, sentir como se um canto de sereia fosse lhe lanar em profundo
e delicioso sono. As janelas abertas daquela casa na margem, elas
convidavam a estranha lua a iluminar os campos retos e altos do
mar, que se escureciam quanto mais a distncia se eternizava. As
lamparinas, lembretes entre as noites, a bailar com leves remissas
do vento a largo, se entreolhavam, e batizavam a gua com seus
fachos, como se abrissem fendas infantis no escuro animal da gua.
Tambm vinham, me lembro com lucidez, mentiras pelas veredas da
gua, almas mortas, contadoras das histrias das ilhas longnquas e
csmicas, veredas... veredas... vadiavam de acaso... os breves contos
das ondas... os breves contos das ondas... os breves cantos das ondas...
Sonho
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161
CONTOS
163
A grande preamar
Joo Pereira Loureiro Jnior
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167
169
CONTOS
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s vezes azul
173
pavo. Hoje, meu amigo, posso dizer ser um dia azul. Hoje o tempo
vitrifica enfeites, e bilhetes ao monte esto escritos no cu e eles te
dizem tudo o que poderias entender. Poderias ao menos saber que eu
sou como esse dia, tenho vezes a mais, vezes a menos e s vezes. Sim,
s vezes eu estou s vezes eu no estou. s vezes eu sou, e no sou. s
vezes o corao que bate. s vezes so as pernas que estremecem. s
vezes, a fala que desatina, s vezes a mesma que engata. s vezes eu
preciso ler a alma de algum para entender a mim. s vezes eu preciso
que ningum exista para eu sentir que eu existo em mim. s vezes
eu preciso que algum leia perdidamente minhas palavras, s vezes
eu necessito que elas sejam invisveis, e s os inteligentes as possam
ver. s vezes eu preciso recuperar minha sensibilidade, s vezes, quem
precisa dela? Deveramos ser duros como pedras e quebrar apenas com
as ondas do mar. s vezes. Sabe, nesses dias que no tenho te visto
eu tenho visto como que de repente, assim sem mais nem menos, as
ureas das pessoas e finjo no acreditar que vejo. tudo bobagem,
no? um mistrio que talvez no caiba a mim. E eu fujo dele como
se tivesse sempre que pegar a um outro trem para um outro lado do
mundo, um mundo mais coerente do que esse. Por que s vezes eu sou
cheia de s vezes, e tanto faz. s vezes eu sou to cheia, que o tanto
de tantos me faz estourar. E eu fico vazia novamente. E eu tento me
reescrever pgina por pgina. Mas o pargrafo para, e s vezes nem
comea. Ento, chega um momento que as frases continuam como
num salto. Um salto da falta que tem um ponto final, para um texto que
continua porque suas linhas so tortas, porque sua melodia frentica,
porque sua cano perdida, e uma cano perdida, de certa forma,
no para de prosseguir na tentativa talvez de se encontrar; mesmo que
chegue seu fim, no para de procurar; mesmo sem saber o qu. Pode
ser uma porta, podem ser duas. Pode ser um rosto, Pode ser um pedao
de doce, pode ser o gosto inteiro do amargo, pode ser algum, pode ser
174 II PRMIO PROEX/UFPA DE LITERATURA
175
mas prefere observar os tons, apenas os tons que seguem num ritmo
acelerado que para voc se torna lento e duradouro quele momento
que se transforma num balo interno que vai crescendo, crescendo,
crescendo num alimento dirio e insacivel de tanto mistrio, mistrio,
mistrio.
Foi assim que um dia conheci um cara. Quando eu o olhava
tinha a impresso de que ele ia explodir e a sensao, de que era porque
ningum mais olhava para ele. Isso sempre me intrigou a cabea, era
como se ele possusse peas que eu tivesse de encaixar. Essa ideia
ecoou na minha mente durante semanas, e permaneceu em mim
durante meses, quando passamos a conversar. Ele sempre dizia no
caber dentro dele mesmo. Repetia claramente: - Eu no caibo dentro
de mim! e eu no o entendia, apenas ria e ria mais ainda quando
estvamos embriagados de tanta noite, tanto dia. E passei por tantas
noites e tantos dias sem o entender. E por ser tanta noite e tanto dia,
um dia eu o entendi. E hoje, meu amigo, mais precisamente, neste
momento eu o entendo ainda mais. pena que para isso tive que sair
de casa, trancar todas as portas e janelas e andar por a, andar de um
lado para o outro como se quisesse marcar todos os espaos por onde
os meus ps pisassem. Fiz uma longa viagem e quando voltei para
casa, e mergulhei em quadros que eu j havia esquecido, abri armrios
que j estavam mofados, arrombei gavetas que estiveram trancadas por
muito tempo, e reli meus escritos com rasuras em papis amassados,
tive que abrir todas as portas e janelas novamente. Tive que ir at a
sacada e olhar o cu e tive que mandar algum sinal para o meu amigo.
E se voc tivesse olhado para o cu, meu amigo, teria entendido meu
sinal azul. Teria entendido que a mensagem era o prprio cu com
seus vitrais azuis, com seu dia todo azul e seu tempo todo azul. Teria
me entendido mais, com o meu tempo nem quase sempre azul. Nem
quase. Nem sempre. s vezes azul.
CONTOS
177
179
que essa parte da histria fosse real tambm, mas s o fato de ela
existir j alimentava minhas iluses.
Ela continuou sem dar muita importncia careta do meu
irmo. Foi a que eu vi que ela havia mudado ligeiramente a histria.
Quando eu completei dezoito anos comecei a ter sonhos
muito ruins, muito ruins. Quando eu dormia vinham imagens de
matanas h muito esquecidas na minha mente, do medo que as
pessoas sentiam quando estavam cara a cara com a morte, eu podia
quase respirar o ar que elas respiravam em grandes golfadas, podia
sentir as batidas dos seus coraes que pareciam bater junto com o
meu. No incio eu fiquei muito confusa, eu no sabia que era ele me
preparando para sua chegada.
Em suas histrias anteriores ela sempre dizia que seus sonhos
eram com ele. Com sua forma, seu cavalo, suas roupas e seu jeito cruel.
Mas parecia que ela tinha passado por tormentos ainda maiores, ela
nunca havia falado daquele modo.
Era uma noite chuvosa de maro. Pegamos o costume das
pessoas desta cidade de sentar na porta das casas quando escurecia.
Quando a chuva parou, eu peguei uma cadeira e coloquei na porta
da nossa casa, fiquei observando o movimento das pessoas que
passeavam, namorados que no se tocavam, crianas que brincavam.
Fiquei l at perto da meia-noite, o movimento tinha quase parado.
Minha me j tinha me chamado duas vezes e eu estava pronta para
entrar. Quando ele surgiu. Ele vinha cavalgando do fim da rua, umas
quatro casas depois da minha. O cheiro de podre exalou por toda a
rua. Ele vinha cavalgando lentamente, mas eu no podia ver a cabea
do cavalo, ao invs disso eu o via claramente. As patas do cavalo no
faziam barulho quando ele pisava no barro e nas pedras da rua. E
quando dei por mim ele estava bem na minha frente.
Eu sempre me assustava com a descrio que minha av fazia
CONTOS
181
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medo naquele momento. Mesmo assim ele parecia mais vivo que eu.
Meu irmo estava em estado de choque, ainda se dando conta do que
estava acontecendo com nossa av.
Ele parou na frente da minha av e tocou sua mo esquerda
e puxou-a para si, mas minha av no se moveu do lugar. O que ele
puxou para si foi uma moa que parecia ter sado de dentro daquele
corpo frgil de idosa. A voz dele era realmente assustadora quando
chegava aos ouvidos, mas eu pude ouvir claramente o que ele disse.
A rua se foi, as casas se foram, as outras moas no esto
mais aqui, mas minha princesa continua a me esperar. E como uma
princesa voc no envelheceu nem um dia. Ele a olhava nos olhos.
Eu vi a Lua nascer e morrer muitas vezes depois que fizemos
amor pela primeira vez, mas eu no estava pronta para ir para sempre
deste mundo. Agora eu estou. A moa ainda tinha os traos de
minha av, mas seu cabelo no era mais branco e agora havia ficado
novamente loiro; ela era branca como gelo e seu vestido era de um
azul muito claro de lmpido.
Os dois atravessaram o gramado do stio at o cavalo, o Filho
da Lua era um ser amaldioado que sabia amar. O corpo de minha
av continuava l na cadeira de balano, seus bracinhos magros
haviam tombado em seu colo e sua cabea descansava para o lado,
acho que ela dormia o sono dos justos. Os dois se desfizeram em
uma luz prateada e a Lua l em cima surgiu de entre as nuvens; ela
parecia sorrir para ns. Meu pai resmungou uma pergunta, sobre o
que estava acontecendo, e eu respondi:
Pai, a vov foi embora com o vov.
A pipa azul
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Amigos.com
Marcelo Pires Dias
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Nada S/A
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O carinha, ali da esquina, me olhou com aquele ar de: se ela desse pra
mim, no precisaria entrar nesse lugar... Voc tambm acha que uma
bem feita com um desconhecido me daria sensao de descontrole,
de perda, de paixo? No desiste de mim! Voc poderia me ajudar
se achasse alguma coisa... menos abstrata, entende? Ela est abaixo
do meu umbigo. No estou me insinuando! que esse jogo como
cocana. Quando percebo j estou em voc e voc j est em mim.
Mas eu no sinto nada! Posso ver o seu rosto, ouvir seus gemidos,
transformar essa sua vida regrada e pattica em cena de filme de ao,
mas no final no tem happy ending, por que voc no vai significar
nada pra mim, entende? Mas isso no tem importncia agora. Vem
c, me deixa fazer voc viver por alguns segundos dentro de mim!
Delegacia. Quero saber desde quando proibido ser libidinosa?
Tudo bem! Eu vou embora. Voc no me ajudou em nada! Mdico
imbecil e brocha. Mas saiba que quem perdeu foi voc. Por que eu j
estou acostumada a no sentir nada.
A bailarina
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CONTOS
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Flor do mausolu
Rayane Clicia Atade
Eu observava a rvore seca que ficava em frente a nossa pequena casa de barro. Suas folhas haviam cado quase por completo, mas
por uma fora incrvel da natureza a rvore continuava de p. Eu
sempre olhava para aquela poeira que costumava me deixar sujos os
cabelos louros.
Um dia, ele chegou. Era um homem amigo de meu pai.
Homem do mundo, como ele se autodenominava. Vivia da venda de
todo tipo de quinquilharia. Conhecia o Nordeste inteiro e at aquelas
cidades onde dizem que s tem gente loura dos olhos azuis e tambm
aquelas onde as pessoas moravam em rios. Eu queria morar em um
rio, l as rvores devem ser mais bonitas, assim como nos meus poucos livros de histrias.
Apesar do pouco espao em nossa pequena casa, meu pai
hospedou o viajante por alguns dias.
Aquele homem costumava me observar. Talvez, por eu ser a
mais jovem da famlia ou ento por ser a nica filha mulher de sete
irmos machos. Eu tinha medo dele. Minha me me ralhava a cada
desfeita, como a no cumprimentar o estranho.
Ele iria passar trs dias em casa, at conseguir um cavalo bom.
Um cavalo bom no serto. O serto esquecido de Deus.
CONTOS
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Conte-me pequena, o que escreves tanto por a? ele me perguntou um dia quando me viu ensaiar palavras no meu caderno no
mais usado da escola. Contos do corao eu lhe respondi me afastando. Percebendo meu medo, disse-me em sua ousadia: Oh, minha
pequena, por que ter medo do que vai acontecer?.
Era um dia silencioso. Pai se fora para a cidade tentar vender
o que restara da plantao de milho e a me estava no que sobrou do
rio. Lavava pilhas e pilhas de roupas com as mos calejadas. Cada
irmo fazia seus afazeres, enquanto eu costumava ficar sozinha em
casa fazendo tarefas domsticas.
Naquele dia, uma nica flor nasceu na raiz da rvore seca. A
flor do mausolu. Quando a vi, peguei-a com cuidado e entrei correndo para o quarto de meu pai e me olhei no nico espelho grande
que tinha em casa. Meus cachos pendiam na testa, as bochechas jaziam cor de rosa, um sorriso mostrava a primeira alegria durante
tanto tempo e as minhas mos em orao seguravam a estimada flor.
A rvore seca me olhava l de fora. Vigiava-me com seus olhos
grandes. Grandes e negros. Negros e duros. Observava-me em lgrimas e ento eu parei de sorrir. O estranho entrara no quarto.
Oh, minha pequena, para que ter medo do que vai acontecer?
A flor caiu no cho de terra batida. O mausolu de
Mausolo. O sepulcro do homem morto. E ficou l, sangrando...
Para sempre.
Compadre e comadre
Elton Rodrigues de Sousa
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CONTOS
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menopausa, mas que acabou sofrendo por ter gestado e gerado uma
filha que dos seus outros seis destoava, os que nasceram dela e do seu
desaparecido marido alemo. Ele que mesmo j velho reluzia a beleza
que lhe foi legada em DNA e transmitida a todos os filhos daquela
unio. Tinham olhos azuis, azuis acinzentados, verdes-azulados.
Cabelos lisos e negros, como os da imponente beleza indgena da
me; outros loiros, mas lisos tambm.
De fato, a menina nada herdara da me, que era mais uma
mistura de ndio com portugus. De belas curvas; cabelos longos,
negros e lisos; de branca-amendoada pele; de olhos negros repuxados.
A me, ao se deparar com a diferena, imenso desgosto teve.
Contudo, engoliu a densa saliva banhada de orgulho e vaidade, e
reconheceu-a como filha. Mas para batizar a renegadinha, escolheu o
nome mais horrendo que conhecia.
medida que crescia, Feiatristegente nem percebia que era
diferente. At ento o seu espelho era o mundo que a circundava, um
mundo em que seus irmos se encontravam.
Como pouco se juntavam, de longe os contemplava e os amava.
Sua me pouco a notava, pouco a anelava. Qualquer coisa que fizesse
ou dissesse era motivo para que ralhasse com a menina, gritando com
sfrego prazer seu nome, que sempre saa eloquentemente entoado.
Feiatristegente morava em uma ampla casa, ladeada por verdes
campos. Foi l que na sua meninice escolheu uma rvore como amiga
e confidente, alm de ser seu aconchego sempre presente, frutificava
seus pensamentos com doces sentimentos. Dialogava com as folhas
reluzentes, com os livros que, em certa idade, a fez entender o juntar
que as letras dava, que o somar das palavras significava: feia + triste
+ gente. Algo nela se transformou. Momentaneamente seu interior
inundado de dor ficou. Seu espelho comeou a refletir a verdade dos
fatos que existia no emaranhado do seu exterior renegado.
212 II PRMIO PROEX/UFPA DE LITERATURA
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vez que ela no a chamou pelo nome, que compartilhou de sua vida
clandestina. Que a beijou, e com alegria. Percebera, ento, que algo
estava errado. Pensou que talvez as lembranas de sua me tivessem
sido furtadas.
Nos dias seguintes, comportamentos novos foram notados,
e Feiatristegente chamou o mdico da cidade, no havia o que
contestar: alzaimer, para a garota o nome mais feio que j ouviu falar,
e o nome que carregava consigo a fora devastadora de um punhal
cravado no peito, ia fazer morada para sempre na mulher desalmada.
A menina informou aos outros irmos, mas nenhum jamais apareceu
para uma visita, nem deram a mnima para a velha. Porm, sua filha
caula ficou e jamais arredou um p que fosse.
O brilho de uma mente sem lembranas fez com que
Feiatristegente fosse algum diferente a cada novo dia: um dia era ela
a prima, em outro a filha, noutro a me...Tambm foi a desconhecida,
foi ningum, mas nada disso a importava. Para ela tanto melhor ser
ningum do que ser algum-objeto-de-dor.
O tempo que ainda restava para a velha mulher era balsmico
para a menina que nunca mais foi Feiatristegente. Era a boneca de
porcelana, a nenm que acabara de nascer. Diversos nomes recebeu:
foi Clarinha, Amanda, Amada, Bia, Cristal, Felcia, Sara, Alba; foi
o seu reverso: Lindaalegregente... Na ltima manh da vida de sua
me, foi Alice, num eterno Pas das Maravilhas.
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Crime perfeito
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No h osis no asfalto
Anselmo de Sousa Gomes
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Entre os pinheiros
Rosany de Oliveira Lisboa
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meu brao que era puxado fortemente por aquele ser, o qual parecia
uma pintura desgastada e desbotada pelo tempo.
No que a incerteza seja definitiva em minha vida, mas o
uso do talvez seja inevitvel quando o que te resta so apenas
flashes de memrias que querem ser verdadeiras. As pessoas ao
meu redor parecem distantes, ou talvez eu seja o estranho entre
elas. Quem sabe eu devo estar me afastando, mas qual ser o significado dessas lembranas que me vm cabea em vrios momentos? Uma casa, rvores e pessoas aparentemente desconhecidas. A vida em cada pessoa repleta das mais variadas emoes, as
minhas parecem difceis de distinguir das memrias alheias dela,
talvez por isso no as compreendo bem. Eu no quero evidenciar
a teoria da reencarnao, pois no acredito nela, mas concordo
que todas as pessoas esto ligadas por uma rede de sentimentos e
a qual estou preso.
Esta manh ao comear mais um de meus dias, percebi que por
mais que tentamos, no conseguiremos jamais manter uma rotina. O
que fazemos todos os dias apenas semelhana, sempre ir existir um
novo dia pra recomear. E l estava eu, tentando imitar o dia anterior
e querendo que aquelas palavras nunca fossem pronunciadas e muito
menos escutadas por ningum, mas eram inevitveis, eles estavam
em minha casa e os seus objetivos foram alcanados. Eis a notcia:
ela estava morta.
A vida nunca significou muito para ela, mas a vida dela significava muito para mim. ramos crianas e l estava ela a brincar,
o vestidinho branco correndo entre os pinheiros e o vento entre os
seus cabelos. Era uma viso mgica, como se o tempo se repetisse
lentamente. Mesmo to viva, sempre pareceu estar ligada a morte,
por algum lao que a deixava to plida e de ar delicado como se ela
fosse desmontar a cada passo que desse.
230 II PRMIO PROEX/UFPA DE LITERATURA
Ela me pertencia de alguma forma como se estivssemos ligados por uma fora estranha que nos prendia e nos permitia sentir
o que outro estava sentindo. Caro leitor, talvez voc ache neste momento que eu esteja sendo piegas, mas no me entenda assim, essa
carta foi a forma mais fcil que achei para aliviar a minha alma de um
sofrimento alheio, que carrego desde esta manh e que j no posso
mais suport-lo.
Os movimentos bruscos do meu empregado me trouxeram
at a casa, onde vi aqueles homens que traziam a morte como sua
sombra. Eles a levaram antes que eu pudesse me despedir, e tudo
que pude ver foi o ltimo embalo dos seus cabelos ao vento. Aqueles
pinheiros j no eram os mesmos depois que ela os deixou.
No cemitrio, enquanto aquela triste cena ocorria, eis que me
recordo de retalhos de memrias, resgatados das profundezas da minha mente, entorpecida por iluses de v-la viva. Estava chovendo, e
via ela a correr novamente entre os pinheiros com uma camisola branca, fugindo de algo que era indescritvel, pois no era real, mas algo
que foi criado em sua imaginao, um medo, uma doena e a morte
que a tomava de uma maneira que ningum a conseguia controlar, at
que debruada entre a relva mida estava morta mais uma vez.
Apenas uma manh levou para perceber o quanto estvamos
interligados, e que um adeus para a vida era a forma mais simples e
menos dolorida de livr-la da torrente de sofrimentos que a afligiam.
Caro leitor, perdoe-me, pois s consigo buscar palavras que torne
suave a sua doena, por mais que fosse fcil ser dito por outras pessoas a palavra loucura, mas devo lhe advertir que no se trata disso,
era como se ela quisesse me mostrar o mundo de uma forma opaca
e que eu to fraco de esperanas tentava absorv-la, e no conseguia
acompanh-la. E agora entendi o que lhe acontecia e devo admitir
que no percebo mais a diferena entre o real e o imaginrio. Sinto
CONTOS
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que estou com o corao dela vivo em meu peito e suas lembranas
entrelaadas na escurido dos meus pensamentos.
Era uma rvore frondosa, tinha alguns ramos solitrios, uns
desprendidos de suas folhas, mas que mesmo assim continuavam a
gracejar em movimentos inebriantes ao serem tocados pelo vento,
enquanto outros plumosos e cheios de vida, mas mortos por no conseguirem se render ao suave toque da brisa. Algumas folhas no cho
completavam a anestesiante viso que obtivera daquela rvore, e era
incrvel como esse manifesto de simplicidade natural conseguia despertar tamanho sentimento e emoo em um simples homem atormentado por seu destino. Talvez estivesse sonhando, e percorri o meu
campo de viso. E eis que encontro a resposta, a chave para tudo que
at ento era incompreendido em minha mente, o meu choro sem
lgrimas e a viso sem brilho do mundo, apenas meras lembranas da
vida que deixei quando me juntei a ela novamente. Eu estava morto
e ela comigo estava e nada mais importava, suas lembranas eram
minhas e as minhas as suas.
O contraste do cu azul com o verde das rvores mais forte
e tudo se apagar novamente, mas ser para sempre e ns estaremos
entre as sombras de uma rvore apreciando a brisa real das manhs.
Adeus Caro leitor.
A resposta em amor a uma pessoa nunca foi to fortemente
expressada. No ano de 1983 essa carta foi encontrada junto ao corpo
de um homem chamado Ernesto, que se matou s cinco horas da tarde, no mesmo dia em que sua esposa Helena faleceu depois de uma
crise de esquizofrenia. A rvore citada na carta est situada junto a
sepultura de sua esposa.