100 Anos Etnomusicologia
100 Anos Etnomusicologia
100 Anos Etnomusicologia
Introduzindo
musicologia comparativa, predicado que, a meu ver, jamais reclamaria para si,
pois o trabalho de Adler ignora por completo a verdadeira importncia de
sistemas musicais no pertencentes ao domnio cultural do Ocidente. Fica
evidente a partir de Adler que a musicologia comparativa se ocupa
exclusivamente da msica de tradio oral e no europia, mesmo que o seu
nome aponte para um mtodo (a comparao) e no necessariamente para uma
segmentao geogrfica ou cultural.
Ao mesmo tempo que na ustria Adler esboava seu plano para o estudo da
msica impingindo-lhe aspiraes universais, na Inglaterra o fsico e fonlogo
Alexander J. Ellis (1814-1890) examinava a particularidade de escalas e
afinaes em instrumentos orientais com equipamentos de medio acstica,
pouco preocupado ainda com as colocaes de Adler ou com quaisquer outros
conceitos e pre-conceitos da musicologia histrica. Ellis, que, ao lado de Adler,
tambm visto como precursor da musicologia comparativa, preocupou-se
diretamente com sistemas de afinao. Defendeu que o que o estudo de
manifestaes musicais estranhas ao mundo ocidental, deveria adotar a
comparao como principal recurso metodolgico. Em 1885 Ellis publicou suas
descobertas feitas a partir de anlises acsticas em instrumentos de msica do
sudeste asitico e africanos do acervo do Pitt-Rivers-Museum, prximo a
Londres. Para descrever os intervalos que encontrou em instrumentos de
afinao fixa utilizou-se de uma unidade mnima de medio, os Cents.
Estabeleceu que cada intervalo de semitom temperado teria 100 Cents e que,
portanto, a oitava comporia 1200 Cents. Com base nas suas medies, Ellis pde
afirmar que diversos intervalos musicais encontrados nos instrumementos,
quando fixados em Cents, no pertenciam a um sistema sonoro natural (o que
se acreditava ser o sistema ocidental) mas que estes intervalos representariam
construes culturais. De certa forma, Ellis apontava para o carter ilusrio de
uma suposta lei dos intervalos acsticos, considerada pelas cincias de sua
poca como sendo natural. O veredito final do seu artigo On the musical scales
of various nations fulminante:
... a escala musical no apenas uma, no natural, nem mesmo
necessariamente fundamentada nas leis de constituio do som musical, (...)
mas muito diversificada, muito artificial e muito caprichosa (Ellis, 1885).
Ellis conclui o seu artigo comentando que uma nova rea de pesquisa deveria se
resultados a apresentar. Por isso opta por delinear as metas a serem alcanadas
por este jovem rebento (Sprssling) que acaba de nascer, a musicologia
comparativa. Hornbostel argumenta, que as condies bsicas para poder abrir
o novo campo de pesquisa esto garantidas com o mtodo comparativo e com a
inveno do fongrafo de Edison. Sublinha tambm a importncia do arquivo
sonoro como fundo de materiais de pesquisa. Depois de comentar uma lista de
diferentes parmetros musicais, reconhecendo a orgem musicolgica da
disciplina, Hornbostel chega etnografia, focalizando o contexto das
manifestaes musicais e as artes correlatas, a dana e a performance
dramtica. Na verdade, Hornbostel introduz aqui o que bem mais tarde se
denominaria de performance studies na antropologia. O autor enxerga
claramente que o registro de campo no se pode restringir ao parmetro sonoro,
e que tambm o filme teria de desempenhar funo essencial na recolha de
dados. Vemos que esta proposta visonria de Hornbostel de 1905, antecipa uma
etnomusicologia moderna, que no se limita ao aspecto sonoro da msica, mas
reconhece a importncia de suas mltiplas formas de expresso e de seu meio
social como fatores indissociveis da pesquisa.
Alm da ampliao do Phonogrammarchiv para uma instituio de pesquisa e
dos mencionados textos programticos, importante verificar a insero da
disciplina no cenrio das pesquisas culturais. Qual a postura das duas
disciplinas que lhe so mais prximas, a musicologia histrica e a antropologia,
no momento de constituio de seus paradigmas enquanto rea prpria de
pesquisa? Conforme j vimos acima, nas palavras de Hugo Riemann, a
musicologia histrica se via ameaada com as pesquisas exatas da musicologia
comparativa, como efetuadas por Stumpf, Hornbostel e Abraham, acusando-a
de querer derrubar o edificio da msica ocidental. Esta a manifestao da
ruptura que ocorre dentro da musicologia, conforme j mencionado
anteriormente.
Enquanto isso, neste mesmo ano, a antropologia, tendo como porta-voz o
diretor do Museu de Antropologia de Berlim, Felix von Luschan, d aos
representantes da musicologia comparativa uma primeira acolhida. sinal de
que o novo paradigma musical chega antropologia e tambm s suas
instituies. Com a publicao de um artigo quase homnimo ao supra-citado
de Hornbostel e Abraham, intitulado: A importncia de gravaes fonogrficas
para a Antropologia (Luschan, 1904), Luschan no esconde as dvidas iniciais
Tabela
Primeiras gravaes fonogrficas no Brasil
no esprito de tomada de novas metas mencionado acima, que se inserem as
primeiras gravaes feitas com o fongrafo de Edison no Brasil, no contexto de
viagens de pesquisa etnogrfica. Desde o incio do sculo XIX viajantes
pesquisadores percorreram o Brasil em vrias expedies de coleta e de
investigao. As pesquisas antropolgicas e culturais recebiam, ao lado das
biolgicas e zo-botnicas, um lugar permanente e de destaque.
Apesar de j encontrarmos referncias a tradies musicais do pas no sculo
XIX, notadamente atravs das transcries musicais que encontramos nos
volumes de Spix e Von Martius de 1823, ou nas gravuras de Moritz Rugendas,
justamente o fongrafo de Edison que abre perspectivas novas para a
documentao musical de fato. Dado o interesse dos pesquisadores alemes
pelo Brasil e o fato de em Berlim se encontrar o maior centro de documentao
da msica mundial, no coincidncia que os primeiros registros de msica
feitos no Brasil com o fongrafo de Edison ainda na primeira dcada do sculo
XX, deixem o pas rumo Europa na bagagem de pesquisadores alemes.
As primeiras gravaes fonogrficas feitas durante expedio de pesquisa no
Brasil e das quais se tem notcia, foram feitas por uma misso da academia
imperial de cincias da ustria sob a direo de Richard Wettstein em 1901 no
sul do pas. Trata-se de poucas amostras acsticas do idioma guarani, de uma
brasileiras, e, mais tarde, das diversas escalas captadas pelo fongrafo de KochGrnberg. No seu estudo de 1909 j adianta a seguinte concluso:
Existe um princpio coerente de afinao dos instrumentos a qual se processa
atravs da entonao dos sons harmnicos que servem sempre de base
afinao do canudo seguinte. (Hornbostel, 1909)
De especial relevncia para a histria da musicologia no Brasil, um artigo
publicado por Hornbostel anos mais tarde, Msica dos Makuxi, Taulipan e
Yekuanan baseado nas gravaes feitas por Koch-Grnberg, e novamente
publicado como captulo independente, na segunda grande obra deste intitulada
Do Roraima ao Orinoco (Hornbostel, 1923). Alm portanto de uma numerosa
coleo de instrumentos musicais provenientes do Brasil, Hornbostel tem a
partir de 1913 mo mais de cem cilindros de cera gravados com msica vocal e
instrumental dos ndios brasileiros, podendo assim realizar uma anlise
musicolgica que a seu ver tinha todas as prerrogativas para trazer resultados
relevantes, no somente ao conhecimento da msica de povos indgenas
brasileiros, mas disciplina como um todo. Hornbostel realiza anlises
detalhadas e inditas com base nestas gravaes. Estuda ritmo, tempo,
estrutura de melodias indgenas, tanto instrumentais quanto vocais, elementos
portanto que jamais poderiam ser desvendados apenas atravs da anlise de
instrumentos musicais dos respectivos grupos.
Assim como a antropologia, a arqueologia e a lingustica, a musicologia estava
contribuindo para traar relaes amplas que iam de encontro com uma das
grandes preocupaes da poca: a tarefa de participar, sua maneira, da
composio do grande mosaico histrico-cultural da humanidade.
Paralelamente pesquisa de Koch-Grnberg na Amazonia, um antroplogo
brasileiro, o carioca Edgard Roquette Pinto (1884-1954), realizava gravaes
com um fongrafo de Edison em pesquisa de campo no noroeste do Mato
Grosso entre os Parecis e Nhambiquara em 1912. No sabemos at que ponto
um antroplogo tinha conhecimento do outro. Nas correspondncias de KochGrnberg no encontrei referncias ao colega brasileiro. As gravaes de
Roquette Pinto encontram-se hoje no Museu Nacional, Rio de Janeiro. O
resultado de suas pesquisas est exposto no seu livro Rondnia (Roquette
Pinto, 1917).
Notas
1. Bruno Nettl faz meno a algo como uma celebrao de 120 anos da
etnomusicologia, partindo de 1885, ano em que Alexander J. Ellis publica o
resultado de suas pesquisas acsticas (Ellis, 1885). Na verdade Nettl inclui o
perodo que antecede o nascimento da etnomusicologia conforme busco
argumentar neste ensaio. Nettl toma os 50 anos da Society for
Ethnomusicology como ensejo para refletir sobre as datas importantes da
disciplina (Nettl, 2005).
2. Uma verso reduzida deste texto foi apresentada na mesa redonda Presente
e futuro da Etnomusicologia no Brasil (2 Enconcontro Nacional da ABET em
Salvador, novembro de 2004). Ainda estavam presentes mesa Manuel Veiga e
Rafael Jos de Menezes Bastos. A mesa foi presidida por Salwa El Shawan
Castelo-Branco.
3. Para uma discusso mais aprofundada sobre a complexa relao entre a
musicologia histrica e sistemtica, vide Menezes Bastos, 1995.
4. Esta dupla natureza da etnomusicologia logo tematizada no primeiro
captulo de um dos livros-chave da disciplina, no The Anthropology of Music de
Alan P. Merriam:
A etnomusicologia carrega dentro de si as sementes para a sua prpria
diviso, pois sempre foi composta por duas partes distintas, a musicolgica e a
etnolgica, e talvez seu maior problema seja a mistura das duas em um s
modo de ser, que no enfatiza nenhuma das duas, mas que toma ambas em
considerao. (Merriam, 1964)
Obs: So minhas as tradues das citaes do ingls e do alemo
Referncias bibliogrficas
Adler, Guido
Merriam, Alan P.
1964 The Anthropology of Music. Evanston
Nettl, Bruno
2005 A Year of Anniversaries, SEM Newsletter, 39 / 3: 5
Riemann, Hugo
1904 Handbuch der Musikgeschichte, vol. 1. Leipzig
Roquette Pinto, Edgard
1917 Rondnia. Rio de Janeiro
Schneider, Albrecht
1976 Musikwissenschaft und Kulturkreislehre. Bonn
Stangl, Burkhard
2000 Ethnologie im Ohr. Die Wirkungsgeschichte des Phonographen. Viena