Brochures, roteiro e filme nacional">
O Homem Que Virou Suco - João Batista de Andrade
O Homem Que Virou Suco - João Batista de Andrade
O Homem Que Virou Suco - João Batista de Andrade
pmd
7/12/2009, 18:31
Roteiro do Filme
Fortuna Crtica
Depoimentos e Entrevistas
Organizao
Ariane Abdallah e Newton Cannito
Governador
Secretrio Chefe da Casa Civil
Geraldo Alckmin
Arnaldo Madeira
Diretor-presidente
Diretor Vice-presidente
Diretor Industrial
Diretora Financeira e
Administrativa
Chefe de Gabinete
Ncleo de Projetos
Institucionais
Hubert Alqures
Luiz Carlos Frigerio
Teiji Tomioka
Nodette Mameri Peano
Emerson Bento Pereira
Vera Lucia Wey
Marcos Mendona
Adlia Lombardi
Rita Okamura
Organizao
Ariane Abdallah e Newton Cannito
So Paulo - 2005
2005
CDD - 791.4370981
ndices para catlogo sistemtico:
1. Filmes cinematogrficos brasileiros :
Roteiros : Arte 791.4370981
2. Roteiros cinematogrficos : Filmes
brasileiros : Arte 791.4370981
Apresentao
O que lembro, tenho.
Guimares Rosa
A Coleo Aplauso, concebida pela Imprensa
Oficial, tem como atributo principal reabilitar e
resgatar a memria da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compem
a cena brasileira nas reas do cinema, do teatro
e da televiso.
Essa importante historiografia cnica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituda de
maneira singular. O coordenador de nossa coleo, o crtico Rubens Ewald Filho, selecionou,
criteriosamente, um conjunto de jornalistas
especializados para realizar esse trabalho de
aproximao junto a nossos biografados. Em
entrevistas e encontros sucessivos foi-se estreitando o contato com todos. Preciosos arquivos
de documentos e imagens foram abertos e, na
maioria dos casos, deu-se a conhecer o universo
que compem seus cotidianos.
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Hubert Alqures
Diretor-presidente da
Imprensa Oficial do Estado de So Paulo
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I. Introduo
Ao falar de O Homem Que Virou Suco, no so
necessrias grandes apresentaes. Trata-se de
um dos filmes mais conhecidos da histria do
cinema nacional. Circulou com sucesso no cinema brasileiro, foi muito premiado internacionalmente e obteve seu maior sucesso em circuitos populares e cineclubes criados juntos a
sindicatos e organizaes de todo o Brasil. At
hoje, O Homem Que Virou Suco um dos filmes
mais utilizados por professores para discutir a
questo da migrao nordestina nas dcadas de
1970 e 80. Dessa forma, mesmo com a tradicional resistncia para a exibio televisiva , O Homem Que Virou Suco se tornou um dos filmes
brasileiros mais presentes no imaginrio de nosso povo.
Ao mesmo tempo poltico e humano, o drama
em torno do nordestino Deraldo, que vai a So
Paulo vender sua poesia e confundido com
Severino, um operrio que matou o patro, fala,
acima de tudo, sobre a realidade do imigrante.
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O Homem Que Virou Suco um filme inconfundvel, principalmente por conta de sua forma
inusitada de abordar uma realidade j to explorada, na maioria das vezes, de maneira superficial e estereotipada. Com este livro, celebramos mais uma iniciativa de perpetuar o trabalho
de Joo Batista, dividindo com o pblico entrelinhas e cenas reais que marcaram os bastidores
da produo. Contextualizando a obra pretendemos estimular, alm de uma extenso de entretenimento que comea na tela, a reflexo sobre
um dos temas mais presentes na nossa realidade
atual e, portanto, uma reflexo sobre a relevncia da discusso que o autor prope para a histria do Pas.
Ariane Abdallah
Newton Cannito
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O Bode Expiatrio
(O Homem Que Virou Suco)
Argumento de Joo Batista de Andrade
1971
A histria de um nordestino (Severino) que vem
pra So Paulo, fugindo da seca. um personagem ingnuo que acredita em tudo e acha
que em So Paulo vai tudo ser fcil para ele.
Mas logo ao chegar, saindo da Estao da Luz,
j os malandros o assaltam com aquela conversa mole e, sem dar tempo para Severino reagir,
vo tomando tudo dele: a mala, a luva de couro,
o colete de couro, o cinturo de couro e comeam a tirar mesmo as calas, quando intervm
um sujeito gordo (GORDO I) que o salva com a
inteno de ficar sozinho com a vtima. O Gordo I, vendo que no resta mais quase nada pra
tirar de Severino, quer o dinheiro. Inventa ento
que o estava esperando, que recebeu carta do
coronel l do Norte, que j arranjou inclusive
um emprego sensacional para Severino. Severino cai no conto com a maior felicidade. O
Gordo I leva Severino pela cidade, como um
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Surge o diretor que, vendo a cena, acha gozado e comea a filmar. De repente aparecem os
trs patetas que vem Severino e partem em
cima dele. O Gordo II aproveita e foge. Os trs
batem em Severino e o diretor filma a cena.
Severino acaba fugindo, deixando os trs loucos furiosos novamente. Os trs ento, vendo
o diretor, partem para cima dele, fazendo dele
um cavalinho.
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O Sonho de Severino
Severino andando por um lugar todo enfumaado, desolado. Olhando bem, no meio da fumaa, ele v os trs loucos fantasiados, de
perucas, um batendo no outro, fazendo magias
(exploses, conversas estranhas, aparecendo e
desaparecendo). Severino se benze e vai sair
quando v que algum ri dele. uma gorda,
toda pintada, enfeitada. Severino esconjura a
mulher e ento ela ri mais. Vai-te Satans!, ele
grita, e ela ento se arrebenta de rir. Ento os
trs diabos ouvem e acabam descobrindo
Severino. Correm atrs dele, pegam-no, batendo nele para valer. Surge ento o diretor, agora
tambm fantasiado, com peruca: o diretor
comea a filmar e os trs diabos fazem toda
uma cena com Severino, transformando-o em
bichos, em caixa, em pedra, em sapo, em lagarto
e em cachorro. A Gorda intervm e pega o
cachorro e sai correndo com eles, salvando Severino (que est transformado no cachorro). A
Gorda leva o cachorrinho para dentro de casa,
amarra-o na cama, felicssima, cantando, e
comea a preparar a comida para ele. Nisso
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FIM
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Severino no sabia
Por qual forte razo
O povo olhava e no via
Nem tomava deciso
Que o livrasse do castigo
Que sofria sem razo
O primeiro lhe chutava
E a perna era de ferro
O segundo ainda gritava
Agredia com seu berro
O terceiro com seu fogo
Dizia logo te enterro
No meio de tanta gente
Com o rabo o co laava
E espetava com o tridente
Depois ainda queimava
E ningum c da cidade
A Severino ajudava
Um homem no vale nada
Fora de seu quintal
Sem amigos sem dinheiro
Em sua luta contra o mal
De todo jeito que tenta
Acaba em triste final
Passando junto de um homem
Com os trs batendo forte
Severino machucado
Sangrando cheio de corte
E o homem ali to perto
No ligava sua sorte
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Severino decidido
A sair da peleja
Aceitou a condio
Que ento assim seja!
E os dois, como amigos
Tomaram duas cervejas
Aquele dia marcou
A vida de Severino
Que agora s enricava
Querendo ser homem fino
Esquecendo aquela fome
Que passou desde menino
Mas mesmo na euforia
Uma coisa estranhava
Seu corpo diminua
De tanto que suava
Dias noites semanas
E o suco no acabava
Severino se esvaa
Em suor renitente
Sofrendo na solido
Como um ru penitente
Sem amigos sem mais nada
Cheirando mal e doente
s vezes sentia voltar
Como uma lembrana forte
Toda a vida passada
A infncia no Norte
As amizades perdidas
Em seu caminho de sorte
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As coisas se complicavam
Na mente de Severino
Imagens to confusas
Uma grande boca sorrindo
Um grande trem no espao
Prdios altos caindo
Severino percebia
Que a vida se acabava
J era difcil pensar
Cada dia mais suava
E se via flutuando
A cabea endoidava
Reuniu todas as foras
Foi pra frente da estao
Levou peixeira emprestada
E um punhado de rao
Esconjurou os diabos
Com a fora de seu pulmo
Muita gente ali chegava
Tal e qual Severino
Vinham no Trem do Norte
Homens mulheres, meninos
Sonhando com So Paulo
Seguindo seu destino
No teve que esperar muito
Um novo estrondo se fez
A terra abriu uma fenda
O asfalto se desfez:
E surgiu o demnio
Falando seu ingls
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IV. O Roteiro
O Homem que Virou Suco
Roteiro Cinematogrfico de
Joo Batista de Andrade - 1979
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SEGURANA
Por favor, Mr. Losey no gosta de ser fotografado!
Mr. Losey entra no salo.
LOCUTOR (OFF)
Neste momento, anunciamos a presena de Mr.
Joseph Losey da Ashby Losey do Brasil S. A.
Teobaldo de Nigris comea a falar.
LOCUTOR (OFF)
Festa do Operrio smbolo de 1979. Os operrios mais responsveis, mais conscientes de seu
papel perante a nao...
TEOBALDO DE NIGRIS
Para sermos uma grande nao precisamos da
vossa constante dedicao ao trabalho, de vossa
assiduidade, de vossa responsabilidade em relao famlia. Do elevado grau de companheirismo, do respeito aos princpios e s leis que
regem o nosso pas.
LOCUTOR (OFF)
Jos Severino da Silva, da Ashby Losey do Brasil... (APLAUSOS)
LOCUTOR (OFF)
Sob aplausos, o novo operrio smbolo vai sendo
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DERALDO
T a, descobri... Vocs vivem to bem por isso,
no ?
SEQ. 4. EXT. DIA. BAR DO CEAR.
Deraldo entra no Bar do Cear que j o olha com
ar de poucos amigos. Pega um ovo cozido e comea a quebrar. Os fregueses observam a cena.
DERALDO
Conterrneo, vai salvar minha fome...
CEAR
O senhor sabe quanto est me devendo?
DERALDO
No, no sei. Mas eu pago.
CEAR
Vai pagar com qu?
DERALDO
Poesia.
CEAR
Poesia, seu Deraldo? O custo de vida subindo
todo dia... e o senhor vem me dizer que vai pagar com poesia? O senhor acha que eu pago a
mercadoria aqui com qu?
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DERALDO
Sabe que que o senhor faz? Pega seu po, sua
manteiga e a sua mdia... e v pro inferno...
CEAR
Vai trabalhar, seu vagabundo! Em vez de ficar
pensando o dia todo em poesia!
Deraldo d as costas a Cear e vai embora. Mas
resolve voltar, acintosamente. Faz um verso, divertindo os fregueses (ele no agressivo, cnico).
DERALDO
Bem dizia o Z Limeira: Quem nunca teve um
tosto, quando arranja, sempre abusa. Desconhece os companheiros... e o primeiro que
abusa. como diz o ditado: Quem nunca comeu merda... quando come se lambuza.
Cear, que ouviu calado, indignado, grita com o
poeta. Deraldo vai saindo e Cear vai andando
atrs, numa cena engraada.
CEAR
Seu Deraldo, v trabalhar, seu vagabundo!
T pensando que eu consegui isto tudo com o
qu? Foi com o suor do meu ganho. Veja isso
aqui, veja tudo isso. Foi trabalhando e muito.
DERALDO
Por que vai fazer isso? So meus, moo. Isto aqui
poesia.
FISCAL
Isto aqui So Paulo, no Nordeste. Vamos
conversar direito. Isto aqui So Paulo, no
Nordeste. E digo mais... se voc vai ficar fazendo baderna, isto no Nicargua. Vem c, menino. Aqui todo mundo tem documentos.
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DERALDO
A misso da Prefeitura no levar? Eu fao poesia e todo mundo paga pra voc levar? Est bem,
mas no venha cantar de galo.
FISCAL
o seguinte, eu vou ter que levar isso aqui. Isso
aqui o seguinte: Isso aqui So Paulo, entendeu?
DERALDO
Grande bosta!
SEQ. 6. EXT. NOITE. BAIRRO.
Deraldo sobe as escadas rumo a seu barraco. Um
menino chama, ele pra.
DERALDO
Nego, como que voc t?
MENINO
O senhor precisa fugir.
DERALDO
Eu preciso fugir por qu?
MENINO
O senhor esfaqueou um dono de fbrica.
DERALDO
Eu? T todo mundo louco. Onde que tu ouviu
essa conversa?
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MENINO
T no jornal. Espera a, que eu vou buscar para
o senhor ver.
Menino traz jornal. Deraldo l. Na primeira pgina, uma foto com sua cara. Ele l:
DERALDO
OPERRIO ESFAQUEIA O PATRO. Puta que
pariu, rapaz! minha cara mesmo!
Deraldo vai saindo.
MENINO
Seu Deraldo, a polcia esteve aqui.
DERALDO
E o que que a polcia veio fazer aqui?
MENINO
Ela veio procurar a peixeira.
DERALDO
Que peixeira? Eu no tenho peixeira. E quem
foi chamar a polcia?
MENINO
Foi a minha me. Mas ela no tem culpa de nada.
Ela foi entregar o jornal pro Cear e ele chamou
a polcia.
DERALDO
Ah, o Cear? Aquele filho-da-puta!
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DERALDO
Olha aqui, eu li o jornal...
O cara parece comigo. Mas o senhor vai ler aqui
e vai compreender que o nome outro.
POLICIAL
Ah, t aqui... Jos Severino da Silva, ainda com
o trofu na mo de operrio smbolo... golpeia
o patro com sua peixeira.
, o nome esse: Jos Severino Silva.
Deraldo fica feliz, aliviado.
DERALDO
E meu nome Deraldo Jos da Silva.
POLICIAL
, mas tudo esses pau-de-arara Silva. Documentos. No tem documentos?
Deraldo faz gesto negativo.
DERALDO
No, no tenho nenhum documento. Quando
eu cheguei aqui no deu tempo de tirar documentos.
POLICIAL-2
Ah, esses pau-de-arara sempre sem documentos.
Mas que onda essa? Voc um descarado
mesmo. Mexer com p-de-chinelo foda. Como
, do Norte, e a identidade?
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POLICIAL
V gostar duma peixeira assim na puta que o
pariu! Puxa vida, cad a peixeira?
Deraldo aproveita um descuido e foge, desaparecendo na noite.
POLICIAL
Segura esse filho-da-puta! Ele vai fugir!
POLICIAL-2
Bota o carro em cima dele.
SEQ. 7. EXT. NOITE. BAIRRO.
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MESTRE
Qual teu nome?
DERALDO
Deraldo Jos da Silva.
MESTRE
Escuta, eu no vi tua cara em algum lugar j no?
DERALDO
Pode ser, pode ser de alguma obra por a.
MESTRE
Voc j trabalhou? Tem alguma experincia?
Tem documentos?
DERALDO
Eu no, porque cheguei do Norte h pouco tempo...
MESTRE
Em que obra voc j trabalhou? Em que edifcios voc trabalhou?
DERALDO
difcil de explicar...
MESTRE
Voc j trabalhou em alguma obra de edifcio
que nem essa?
DERALDO
Assim grande no.
MESTRE
J misturou areia com cimento? Sabe fazer concreto? Sabe o que concreto armado? Sabe o
que vergalho? Olha, meu chapa, o trabalho
aqui dureza. No que nem aquelas molezas
que voc tinha l no Norte. Isso aqui trabalho
pra macho. Aqui salrio mnimo. E voc tem
duas horas por obrigao de dar pra obra, por
dia. A voc tem o salrio e tem as duas horas
em que voc ganha por fora.
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Vo entrando no prdio em construo, o Mestre, arrogante, falando sem parar. Deraldo, atrs,
zomba dele, fazendo caretas.
DERALDO
Mas s um?
MESTRE
Tu acha pouco? Um salrio s, no. salrio
mnimo, mais as duas horas e mais que voc pode
morar aqui. Se voc fosse pagar aluguel, voc ia
pagar uma nota. Isso que voc economiza morando aqui salrio tambm. Como ? Topa ou
no topa?
DERALDO
Olha, na minha concepo eu acho que muito
pouco.
Pedro, outro operrio, tipo simplrio, trabalha
perto observando a cena.
MESTRE
Voc no est satisfeito, Pedro? Pedro ganha
salrio mnimo. Voc t satisfeito, no t?
PEDRO
A tem seus conformes...
MESTRE
Pedro t satisfeito, rapaz. No tem problema
nenhum.
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PEDRO
Olha l, pessoal, a carta de minha noiva. Mas
no faz mal, quem quiser escutar pode. Recruta, faz essa caridade.
Deraldo pega a carta, seu rosto irradia camaradagem. Comea a ler.
Enquanto l, todos os operrios escutam emocionados como se a carta fosse para cada um deles.
A CAM, num s plano, percorre seus rostos,
mos, ps, seus gestos.
DERALDO
26-8-79. Querido Pedro Barbosa...
J faz mais de 4 meses que no recebo carta sua.
E todo mundo aqui fica preocupado quando
voc no escreve. Eu tenho sonhado muito com
voc. Outro dia mesmo tive um sonho ruim. Voc
era perseguido por uma novilha preta. E eu olhava e no conseguia me mexer, vendo voc tentando se livrar. Chorei o dia inteiro, mas minha
madrinha Dagmar me disse que era bobagem.
Sonho no nada, mas eu fiquei preocupada e
s vou ficar alegre quando chegar carta sua
dizendo que est tudo bem. A gente houve
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no queria, mas desde que voc foi pra So Paulo, o jeito aceitar. E tambm que minha vida
tem que ser com voc, onde voc estiver. No
fique tanto tempo sem escrever. Sua me esteve aqui semana passada e manda lembranas.
Muita saudade de sua Mariazinha.
Acaba a leitura, silncio, todos tomados pela
emoo. Deraldo, sensvel, olha para Pedro.
DERALDO
Quer responder?
PEDRO
Voc escreve pra mim?
Pedro nem acredita. Outros operrios pegam
folhas de papel e se juntam em torno de Deraldo.
OPERRIO
Vai passar a noite escrevendo, recruta?
DERALDO
Ah, se eu fosse um beija-flor!
PEDRO
Recruta, pra Mariazinha. Capricha. Eu pedi
primeiro.
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MESTRE
Pode ficar tranqila. Isto aqui mais seguro do
que o cho. Pode deixar, que eu vou operar aqui.
O poeta Deraldo fica invocado.
DERALDO
No, o operador aqui sou eu. Quem vai manobrar sou eu.
ENG
O senhor o manobrista? Porque o senhor no
t nem com luva, nem bota?
DERALDO
No me deram.
MESTRE
Como no? No mandei voc l no barraco
pegar luva e capacete?
DERALDO
Eles quiseram me vender e eu no quis comprar
porque no sou trouxa.
ENG
Seu Manoel, eu j vi essa cara em algum lugar.
DERALDO
No senhor. Deve ser engano do senhor.
MESTRE
Sai da! Quem manda aqui sou eu! T criando
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MESTRE
Tu no pedreiro no, tu um atrevido!
DERALDO
Olha aqui, eu no sou criana pra voc gritar no
meu ouvido.
MESTRE
Voc t despedido. Eu vou falar com o engenheiro e depois vou descer aqui pra resolver na
marra contigo. Tu muito macho l na Paraba.
Vamos l, leva essa merda l pra cima. Depois
eu acerto contigo. Pau-de-arara de merda!
O Mestre entra no elevador, para subir. Deraldo
exulta: sua chance. Liga a mquina temerria
e faz o elevador subir dando tranco. Da pra
frente, fica brincando com a mquina, para
desespero do Mestre que grita do elevador que
sobe e desce perigosamente. At que o Mestre
consegue saltar, corre atrs do poeta que sobe
um muro por escada de madeira e retira a
escada.
DERALDO
Voc corno! V mexer com sua me, filho da
puta!
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MESTRE
No brinca com esse troo no, desgraado.
DERALDO
Ladro!
MESTRE
Vou te pegar no tapa, desgraado. Baixa essa
merda a depressa! Eu vou te pegar, seu miservel!
DERALDO
Vem c, seu bosta, tua me gostosa.
O Mestre vem furioso, com peixeira na mo. O
poeta, vendo-se protegido, dedica-lhe uma poesia atrevida.
DERALDO
Tem gente que vem do Norte
e s causa decepo...
Tu s mestre de safadeza
aleijo da criao...
Conheo a tua bravura,
puxa-saco de patro.
MESTRE
Vou te cortar o colho. Poeta de rima cot.
O Mestre tenta subir por umas madeiras, com
faca na boca, mas escorrega, no consegue.
SEQ. 14. EXT. INT. DIA. CASA DE MADAME
SOM: MSICA DE DISCOTECA
Coronel, de bota e chapu, vem entrando no
jardim da casa, trazido pela dona da casa. O coronel traz um enorme vaso na mo.
MADAME
Coronel, que prazer receb-lo em minha casa...
50 anos de poltica... mas o quanto j deve ter
feito por este Brasil.
CORONEL
A gente faz o que pode.
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MADAME
O senhor j um patrimnio nacional.
CORONEL
No exagere. A senhora no repare eu chegar
assim de botas na sua casa. Alis, uma beleza de
casa. Mas que eu fui ver umas terrinhas que
comprei o ano passado... 8 mil alqueires... Uma
terrinha ali perto de Sorocaba, terra boa. L a
terra muito boa.
MADAME
Seu quarto est preparado. Deve estar cansado
da viagem.
A afilhada dana, beira da piscina, com outros
coleguinhas: discoteque. Ao fundo da cena, duas
mulheres cortam o pelo de um cachorro.
CORONEL
Como que vai minha afilhada?
MADAME
Est uma moa, Coronel.
CORONEL
Comprei este jarrinho pra ela. Ser que ela vai
gostar?
MADAME
Que beleza de jarrinho. lindo. Essa moada de
hoje s pensa em danar.
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CORONEL
Na discoteque, comadre. Mas a comadre t bem
apanhada ainda.
MADAME
Obrigada, Coronel.
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CORONEL
A comadre gosta de Boi de Reis, de Bumba-meuboi?
MADAME
Isso a de Gois. Foi presente de um deputado.
CORONEL
diferente do boi da Paraba. O boi da Paraba
tem chifre assim, agressivo, pra frente. Feito o
Brasil.
MADAME
Por que o senhor no vem morar aqui em So
Paulo, Coronel? Deixa aquela vida de luta, se
divertir um pouco.
CORONEL
Comadre, isso no. Isso aqui l vida? A senhora sabe que eu vim pela rua um tempo e ningum nem bom dia me deu? No Norte, aquilo
que vida, no descanso, na calma, na fartura.
Deraldo vai passando com a bandeja de whisky
em direo piscina. Pra atrs da coluna, ouvindo contrafeito as palavras do Coronel.
Madame v e o chama.
MADAME
Ded, vem c. Vem tirar. Vem tirar as botinas do
Coronel. Mas, tira com cuidado. No machuca o
p do compadre.
CORONEL
Olha, comadre, l no vive bem quem no quer.
O que atrapalha muito l a ignorncia, falta
de cultura... Eu mesmo tou montando uma
indstria l na Paraba, com incentivos fiscais.
Ajuda do governo.
MADAME
Governo bom.
CORONEL
Graas a Deus. Mas eu vou levar gente daqui,
gente ligada produo. Vai ser uma beleza.
O poeta vai tirar as botas do Coronel, humilhado.
Sua cara revela que ele prepara algum troco. O
Coronel joga cinza do cigarro no cho. Deraldo
cata a cinza. Deraldo sai com a cinza na mo e
jogo tudo dentro dos copos de whisky. Sai com
a bandeja. Deraldo vai passando pelos garotos
que pulam a discoteque. Cada garoto pega seu
copo e bebem danando. Deraldo vai at o
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Mistura-se aos garotos, pulando ao som da discoteque, mas dando umbigadas que logo so
correspondidas pelos garotos, transformando a
discoteque numa dana nordestina. Madame e
o Coronel (com o vaso) vo chegando e observam, pasmos.
MADAME
Mas que negcio esse com a minha filha e as
meninas? Sem-vergonha, ponha-se no seu lugar.
Pensa que t na sua maloca, seu candango?
CORONEL
No tem vergonha, rapaz? Isso coco. , ele quer
tirar coco na sua filha.
Madame e o Coronel do-lhe a maior bronca.
Depois o Coronel oferece o vasinho afilhada.
CORONEL
Trouxe este vasinho pra voc. Olha, cermica da
Paraba.
MADAME
Leva isso l pra dentro. Anda, Ded.
Por ordem da Madame, Deraldo pega o vaso. E
sem mais joga-o para o alto (o vaso cai na piscina). Deraldo ri freneticamente, andando rpido, gozador. Nesse momento a cozinheira vem
trazendo o bife para o cachorrinho Xax. Deraldo passa a mo no bife e sai comendo, frentico, gozador.
COZINHEIRA
O bifinho do Xax.
DERALDO
E me d o bife desse cachorro. Olha a, comadre... Seu escaler t no fundo do oceano. E muito obrigado pelo bife do cachorro viado.
SEQ. 15. EXT. DIA. FAVELA.
Deraldo, ainda comendo pedaos do bife, anda
por uma favela. Deraldo d um pedao para um
cozinho vira-lata.
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DERALDO
Olha a o bifinho do Xax...
SEQ. 16. EXT. NOITE. VIADUTO.
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Embaixo do viaduto, Deraldo tenta se acomodar para dormir. Ali esto outras pessoas, um
deles canta, bbado, iluminado por uma
fogueirinha. Deraldo se encosta numa
carrocinha. O dono, um mudo, faz gestos para
que ele saia. Ele sai, o mudo tem pena e joga
um pedao de cobertor para ele. Deraldo dorme, reconfortado com a camaradagem do mudo.
SEQ. 17. EXT. DIA. RUA/ CASA DE CARNES.
Deraldo observa as carnes expostas (carne-seca).
Surge ento um dos operrios da obra. o mesmo que o ensinou a operar o elevador.
OPERRIO
Que sumio, rapaz! No voltou nem pra receber
o dia e se despedir dos amigos. A turma l vai
sentir muito falta sua, sabe? De sua leitura, da
sua escrita pras cartas.
DERALDO
, mas no dava pra voltar no, meu irmo.
OPERRIO
Olha, o homem ficou uma fera! Vapt daqui, vupt
de l com aquela peixeira na mo, e a gente
naquele riso... No dia seguinte, ele apareceu l
na obra com o jornal embaixo do brao... mostrando uma reportagem pra todo mundo com a
sua cara no jornal.
DERALDO
Eu no matei ningum no, viu? E meu nome
Deraldo. O cara que matou o patro chama-se
Jos Severino da Silva. Agora, como eu no tenho documento... No posso provar. A polcia
t atrs de mim. Realmente, amigo, estou numa
pior. Tou passando fome, necessidade.
OPERRIO
Qual , recruta? Olha, eu tenho um amigo que
trabalha no metr. E ele disse que o metr t
precisando de gente pra servio braal. Vai l,
recruta. Vai l mesmo! Tomara que ningum l
saiba de sua histria, hein? Dessa confuso sua
com outro cara que matou o patro. Tchau, recruta. Aparece l na obra noite que o mestre
nunca t l.
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O operrio vai indo embora. Enternecido, o poeta Deraldo resolve presente-lo, com versos.
DERALDO
Um versinho pra voc:
Nas asas do pensamento
voarei por muitos ares...
Cantarei como os passarinhos
sobrevoando os pomares.
Serei um vate das letras
cantando em muitos lugares.
O operrio pra, feliz, ouvindo. O operrio agradece e vai indo, mas de novo chamado.
DERALDO
Agora, uma do Cano de Fogo:
Bem s pode estar o Sol
porque ningum o alcana.
Haja no mundo o que houver,
o sol l nem se balana.
Enquanto a fortuna dorme,
a desgraa no descansa.
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Nosso heri se acabrunhava, mas no se emendava. E logo aprontava mais uma valentia: desrespeitar as ordens. E l vai o nosso heri, cambaleando pela tbua.
E chibum, despenca na poa dgua. Virgulino
era mesmo ridculo. Tinha fama de heri, mas
era um palhao.
Perdeu o emprego. E expulso pelos prprios
companheiros. E acaba recebendo uma chuva de
cuspe na cara. L vai Antonio Virgulino Silva.
Atravessando So Paulo de volta para o Norte,
como um derrotado.
Obs.: Os operrios, entre os quais o poeta
Deraldo, comeam a assistir ao audiovisual tensos. Depois vo se acostumando e curtindo. Mas
aos poucos suas feies mudam, vo sendo profundamente atingidos pela mensagem do
audiovisual que ridiculariza seus mitos, sua cultura, sua rebeldia. Deraldo o que mais sofre,
vivendo um pesadelo naquelas imagens e sons.
(Todo o audiovisual acompanhado de msicas
nordestinas: repentes, toadas, aboios.)
Quando termina, a luz se acende, Deraldo est
transtornado. Todos quietos, paralisados em suas
cadeiras. O professor os encara um longo tempo, observando e curtindo o efeito naqueles homens sua disposio. Deraldo se sente incomodado com o olhar do professor.
PROFESSOR
Podem sair.
DERALDO
Nunca me viu no? Fica me olhando assim como
se eu fosse um bicho!
PROFESSOR
A discusso s amanh...
Deraldo no suporta a tenso em sua cabea.
Precisa fazer alguma coisa. Olha com dio para
o professor e acaba chutando uma cadeira que
se quebra, com grande estrondo.
SEQ. 21. EXT. DIA. CORREDOR DO REFEITRIO
Na entrada do refeitrio, um corredor de madeira por onde devem passar os operrios para
se servir. exatamente como um corredor de
gado, usado para controle, marcao, vacina.
Deraldo, sozinho, em transe, ali dentro. Faz gestos
lentos, estranhos e, de incio, bem sutis. No sabe
o que faz. Aos poucos, comea a emitir som triste,
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suave. O som aos poucos se parece com um mugido de boi. Seus gestos aos poucos vo se transformando em marradas (cabeadas de boi) contra a
cerca. Gesto e som vo num crescendo doido.
SEQ. 22. EXT. DIA. RUA DE SO PAULO.
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Deraldo no responde, mas j inquieto e abalado com a aula e os sonhos, vai se perturbando
com a fala cnica do operrio. Deraldo acha uma
barata no prato. a gota dgua. Explode, joga
o prato para cima e grita.
DERALDO
Isso comida pra gente, porra? Barata na comida!
O refeitrio explode na maior confuso. Guardas brigam com o poeta, zoeira total. Deraldo
consegue fugir.
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DERALDO
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No sou mendigo.
ENFERMEIRA
Tem gente em situao muito pior.
DERALDO
Eu sou poeta.
A enfermeira o detm. Um mendigo que mais
parece um ser de outro mundo, vestido com restos
de saco, o olhar catatnico, entusiasma a Condessa.
A CAM descreve o miservel que engraado,
original.
CONDESSA
Pessoal da imprensa, os reprteres, venham at
aqui. Vejam o estado em que esses pobres coitados chegam aqui. Eles chegam sem a menor
condio de higiene. Cheios de piolhos, pulgas,
vermes, um horror. E a a nossa equipe mdica
faz um check-up geral... Para ver se eles tm alguma doena grave... Se eles tm Mal de Chagas,
se eles tm tuberculose... Vocs sabem, esse povo
nosso extremamente subdesenvolvido, desnutrido. Voc percebe olhando pra ele que ele est
num estado lastimvel. E as nossas enfermeiras
fazem um trabalho admirvel...
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FOTGRAFO
Luza, no esse a o operrio?
REPRTER
Que operrio?
FOTGRAFO
O operrio-smbolo, aquele que matou o patro.
FOTGRAFO
Voc no aquele operrio que matou o patro na festa do operrio-smbolo?
DERALDO
Eu no matei ningum, moa.
FOTGRAFO
Como no , rapaz? Se eu vi com esses olhos e
fotografei com essa mquina.
DERALDO
Eu fao poemas e no tenho nada com isso.
FOTGRAFO
Vou chamar a Condessa.
REPRTER
Chamar a Condessa nada. Vamos fazer uma entrevista com ele sozinho.
Vendo-se acuado, Deraldo rene foras e derruba o fotgrafo que tenta fotograf-lo. E foge.
SEQ. 27. EXT. NOITE. RUA.
Deraldo, ainda de pijama, se aproxima de um
paredo onde algumas mulheres procuram
fregueses. Deraldo pensa ver entre elas sua vizinha, Mariazinha. Ela o v, disfara. Passa um
carro.
MOTORISTA
Ei, morena. Chega mais...
MOTORISTA
Vamos ganhar a vida?
Mariazinha se aproxima do carro, observando
Deraldo. Ela est toda pintada, a boca vermelha
de batom, to diferente da Mariazinha que implicava com o poeta no bairro. Mariazinha, sempre olhando para Deraldo, entra no carro. O carro parte.
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MARIA
Deraldo! Pensei que voc tivesse voltado pro
Norte...
DERALDO
Eu sou um homem, Maria!
Deraldo reage protestando. Maria faz gesto de
silncio. L na venda, embaixo, Cear bbado
se prepara para fechar o boteco.
MARIA
O Cear!
DERALDO
O Cear, no ? Sabe o que eles queriam? que
eu voltasse l pro Norte, feito um derrotado. Mas
podem ficar tranqilos, o papaizinho aqui no
volta no.
Deraldo e Maria entram no quarto dela. Os dois
se olham maliciosamente. Deraldo sorri, feliz.
DERALDO
Ontem eu te vi na rua... Tu tava entrando num
carro. Num volks... Cad teu marido?
MARIA
O Z voltou pra Natal...
L embaixo, Cear fala sozinho, arrogante, bbado.
No quarto, o clima de grande aproximao
entre os dois.
MARIA
Eu li um versinho teu outro dia.
DERALDO
Meu? Gostou?
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MARIA
Demais. Vem c.
DERALDO
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Vem tu.
Ela vai, os dois se acariciam, acabam se amando.
Enquanto isso, Cear vai fechando a venda. Desliga a chave geral, apagando todas as luzes (inclusive a do quarto de Maria).
CEAR
Puta que pariu. Tenho que desligar esse negcio.
Cear fecha a porta de ferro e, com lanterna,
sobe a escada, em direo ao quarto de Maria.
Bbado, bate na porta, querendo entrar na marra.
CEAR
Abre essa porta, sua putinha. Abre essa porta.
Quem est a com voc?
MARIA
No tem ningum aqui.
Maria se levanta, ele invade, os dois brigam, ela
acaba jogando o Cear pra fora, com grande
fora e indignao.
MARIA
Voc no tem o direito de entrar na minha casa.
Fora cachorro, fora!
MARIA
Merda de vida!
Dentro do quarto, Maria anda de um lado para
outro, em desespero, sob o olhar impotente de
Deraldo. Maria chuta para longe a lanterna do
Cear que cara ali no cho. Deraldo tenta
acalm-la.
DERALDO
Tenha calma. Ainda mato aquele filho-da-puta.
MARIA
A que voc se lixa mesmo. Vira assassino de
verdade.
DERALDO
Eu vou embora.
MARIA
Espera, tenho umas coisas pra te dar.
Maria traz para ele um pacote: so livrinhos seus,
de cordel.
DERALDO
Onde que voc achou isso aqui?
SEQ. 29. INT. DIA. EDITORA.
Deraldo entra na editora. O salo de entrada
uma livraria popular, com estantes e vitrines
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DERALDO
E quase troca a minhoca tambm.
Deraldo fica vendo os livrinhos com suas capas
imaginativas. interrompido pelo Sr. Castor que
como que o acorda.
CASTOR
Pode ficar a lendo.
DERALDO
Leia com ateno. T bonito, t maravilhoso.
CASTOR
Sonhando, seu Severino?
DERALDO
No tou entendendo.
Castor vem com um jornal onde est a foto do
operrio que matou o patro.
CASTOR
Olha aqui o jornal.
DERALDO
Sr. Castor, o senhor sabe, isso aqui outra pessoa.
CASTOR
A cara a mesma.
DERALDO
Mas meu nome Deraldo e o senhor sabe disso.
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CASTOR
Sei porque voc me falou.
DERALDO
Mas o senhor tem que acreditar na minha palavra. Homem homem. O senhor meu amigo
ou no ?
Castor olha desconfiado para o poeta.
CASTOR
Mas no vai dar. Aqui est o seu livrinho.
DERALDO
O senhor no gostou do livrinho?
CASTOR
No, essa histria muito nordestina. Coisa pra
gente que vive l.
DERALDO
Mas no tem nordestino em So Paulo?
CASTOR
Tem, mas no estamos interessados nisso.
Deraldo, necessitado, tem uma idia que o ilumina, porque atende o editor e tambm sua
prpria curiosidade.
DERALDO
Venha c, eu tenho uma idia que talvez interesse o senhor.
CASTOR
E qual ?
DERALDO
Eu vou escrever a histria desse operrio que
matou o patro.
CASTOR
T a, essa uma boa idia.
DERALDO
Dentro de uma ou 2 semanas eu entrego essa
histria prontinha pro senhor ver.
SEQ. 30. EXT/ INT. NOITE. BAR E FORR.
Deraldo bebe no bar. J meio bbado, entra no
salo de forr, ainda vazio.
DERALDO
Bota uma cachaa pra mim, companheiro.
Algumas pessoas limpam o cho. O salo todo
ornamentado com imagens onricas, smbolos da
cultura nordestina. Vital Farias (o prprio, autor
da trilha sonora do filme) resolve ajudar Deraldo.
Vital entra com seu violo, chama um rapaz que
ajuda na limpeza e apresenta o Deraldo.
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VITAL
Rapaz, vai pegar fogo hoje. No tem problema
no. Vai quebrar o seu galho este rapaz aqui.
Este o filho do meu compadre Antonio Tenrio
da Silva. Grande poeta e ele vai quebrar teu galho. Pode ficar descansado, que ele agora vai
realmente quebrar teu galho. Tenrio conhece
muita gente. Sabe tudo que se passa neste mundo. O rapaz olha Deraldo, espantado.
RAPAZ
Puta que pariu, cara. Voc parecido demais.
Olhando a sua cara, v a cara dele.
Dominguinhos, no Forr
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DERALDO
O sr. conhece um rapaz chamado Jos Severino
da Silva?
HOMEM
O sr. no sabe nem a rua que ele mora?
Gente na rua, barracos, casas, bar. Nada, ningum conhece o Severino.
DERALDO
No sei. Ele parece comigo bea. O senhor no
sabe?
HOMEM 2
Pelo nome ele no me estranho.
MULHER
Para informar melhor mesmo aqui nesse bar.
DERALDO
Muito obrigado. O sr. conhece um rapaz parecido
comigo chamado Jos Severino da Silva?
HOMEM 3
No conheo.
DERALDO
No conhece? Nunca ouviu falar?
SEQ. 32. EXT. DIA. CASA EM CONSTRUO
Dois homens trabalham como pedreiros numa
casa, carregando areia. Deraldo se aproxima,
esperanoso.
DERALDO
Companheiro, posso atrapalhar um pouquinho
o trabalho de vocs aqui? To morando h muito
tempo aqui perto?
PEDREIRO 1
Muito tempo.
DERALDO
Vocs no ouviram falar... no Jos Severino da
Silva, um cara que foi operrio?
PEDREIRO 2
Severino? Conheo. Conheci ele numa firma. Ele
comeou a trabalhar na limpeza.
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RECONSTITUIO 1
Interior de uma fbrica (Indstria Mecnica).
Severino, de macaco, ar sombrio, tipo seco,
determinado, limpa o cho, olhando interesseiro para um torno onde trabalha o Olavo. Olavo
faz uma pea no torno mecnico. Ouve sinal,
desliga o torno e vai saindo. Severino deixa a
vassoura e vai, disfaradamente, mas com deciso, treinar no torno do Olavo. Liga-o e fica trabalhando.
PEDREIRO 2 (OFF)
Severino era cearense. Tinha vindo fazia pouco
tempo do Norte. Era doido pra subir. L na fabrica tinha um colega nosso, o Olavo. Todo dia
era o Olavo ir embora e o Severino ficava ali,
treinando no torno do Olavo. No queria ficar
na limpeza.
RECONSTITUIO 2
Interior da mesma fbrica, mesmo local. Sob o
olhar interesseiro de Severino, dois policiais prendem Olavo, tirando-o do torno que fica ali funcionando. Severino, sob olhares crticos de seus companheiros, ocupa o lugar de Olavo no torno.
PEDREIRO 2 (OFF)
Um dia, fez a maior sacanagem. Olavo era do
sindicato. E a gente tava preparando uma greve. Todo mundo esperando s a ordem do Olavo.
Na hora H, chegou a polcia e baixou o porrete
em todo mundo. E prendeu o Olavo. (VOLTA
AOS PEDREIROS)
DERALDO
Prenderam tambm o Severino?
PEDREIRO 1
Que prendeu Severino? Severino tirou a
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Severino, fugindo dos olhares dos companheiros e de Luiso, sai limpando as mos. Luiso
tenta impedi-lo de sair, mas Severino passa, sem
qualquer gesto, o rosto sem qualquer expresso.
OPERARIO 2 (OFF)
...Que trabalhava com a gente tambm. E esse
rapaz, esse Luiso... foi que ficou no lugar do
Olavo liderando o movimento. Mas s que agora a gente no ia fazer greve de parar. Tvamos
fazendo uma operao tartaruga. S tava produzindo a metade. O desgraado do Severino
no parava de trabalhar.
LUISO
Onde que voc vai?
RECONSTITUIO 4
Severino vai entrando pelo escritrio da empresa, corredores sofisticados, secretrias, salas e
mais salas. Severino vai ficando intimidado. Entra na sala onde esperado pelo diretor, Mr.
Joseph Losey, seu patro, e os diretores da Ashby
Losey do Brasil. O escritrio ultra sofisticado e,
pelo enorme vitral, se pode ver a cidade de So
Paulo do alto, o mar de edifcios brancos. Todos
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SEGURANA 2
Pode dizer, que no vai acontecer nada nem pra
eles, nem pra voc.
SEGURANA 1
Vamos, rapaz, fala. Pode falar. (VOLTA AOS OPERRIOS NO PTIO).
OPERRIO 1
Ele dedurou o Luiso. Eu tava aqui mesmo neste
lugar.
OPERRIO 2
O Luiso tava tambm. A gente estava aqui conversando. Quando a gente v, l vem ele.
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RECONSTITUIO 5
Luiso ali est, no ptio, no mesmo local da
conversa de Deraldo com os operrios. E esto
tambm os mesmos operrios mais Luiso. L da
ponta do ptio vem vindo Severino. Quando vai
passando por eles, Luiso o agarra pelo macaco,
ergue-o e esfrega sua cabea na parede.
LUISO
Eu te mato, desgraado! Eu te mato! Na sada
eu te mato! Te fao engolir essa lngua de
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parava. Ningum trabalhava com ele l. E o patro, de quem tanto puxou o saco... Mandou ele
embora com prmio e tudo. Quando foi l na
festa receber o prmio de operrio-smbolo... J
tava desempregado e na pior.
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DERALDO
A senhora D. Auxiliadora? mulher de
Severino? Seu marido t a?
SEQ. 35. EXT. DIA. FAVELA.
Deraldo acompanha filho de Severino por becos e mais becos. De repente, a surpresa amarga. Num buraco imundo, de uma porta de um
pequeno barraco, sai Severino, ainda de terno
(como estava na festa) e de culos, mas todo sujo,
com a peixeira na mo, dando facadas no ar.
Louco. Deraldo, extremamente comovido, tomado pela cena. Os dois ssias se encaram, h
um encantamento nesse gesto que os une.
SEQ. 36. INT. DIA. EDITORA.
Grfica imprimindo o livrinho do poeta Deraldo:
O Homem que Virou Suco
SEQ. 37. EXT. DIA. PA ESTAO ROOSEVELT.
Deraldo vende seus livros de cordel.
DERALDO
a histria de todo nordestino. Do cara que chega
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140
INSERTS: cenas de greves operrias de 1979 (tiradas do filme Greve! de J. Batista Andrade).
A ltima cena: milhares de mos aplaudem. (FIM
DO INSERT).
DERALDO (OFF)
Ignora que a vitria uma conquista.
Na vida s ter decepo.
Quem trata o povo com desdm...
Se atrasou neste mundo e no...
Que no peito, na fora e mo...
E na unio, que uma semente,
A fora que o povo tem.
FISCAL
Cad o povo? Que povo? Voc um bobo, rapaz. Cad seus documentos?
DERALDO
Os documentos de um homem.
FISCAL
Voc espertinho, rapaz.
Volta cena da Praa. O Fiscal sai, resmungando.
Deraldo, feliz, redobra esforos para vender o
livro.
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DERALDO
A pessoal: O Homem Que Virou Suco. Dez cruzeiros.
FISCAL
Ainda vou te foder, voc vai ver s!
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Na indstria ou construo
O diabo amassou o po
E ficou bem amassado
Isso que mouro voltado
Isso que voltar mouro
II
Pra que serve a cidade
Pra viver no corre-corre
E depois que a gente morre
Se acaba toda a vaidade
Pra que a necessidade
Pra se mendigar o po
Pra que serve o patro
Pra dar parte ao delegado
Isso que mouro voltado
Isso que voltar mouro
III
Pra que serve o operrio
Pra construir edifcio
Pra que tenha sacrifcio
Pra ganhar pouco salrio
Mas quem faz esse inventrio
S pode ser o patro
E quem ganha com a produo
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No quisesse trabalhar
Sofrendo fome e cansao
A fora fugiu do brao
Comeou a esmolar
Debaixo de um viaduto
Uma esposa chorosa
Dizia: oh Deus dos aflitos
Nunca pensei em passar
Vida to desventurosa
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(linguagem debochada dos versos: Minha comadre / V na cozinha / Diga Custdia / Que mande minha coberta / Pra eu me cobrir)
7. Deraldo briga com o chefe dos lixeiros (seqncia filmada e no utilizada na montagem
final)
Sou poeta, violeiro e repentista
E quem me v assim nessas condies
Desconhece a grandeza de Cames
E no sabe dar valor a um artista
Ignora que a vitria uma conquista
E na vida s ter decepo
Quem me v por aqui correndo no cho
Se atrasou nesse mundo e no responde
Desconhece o valor que em mim se esconde
E a grandeza que tem no corao
(chega um rapaz)
Um momento companheiro!
Chegou esse cidado
Bem vestido e perfumado
Gravata, pasta do lado
Causando admirao
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empresrio, patro
ou militar reformado
Tomou o terno emprestado
Ou t pagando prestao?
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Voc teve contato direto com alguns nordestinos que assistiram ao filme?
Um dia a federao das associaes de nordestinos de So Paulo marcou um encontro comigo.
Eu fui ao Brs, num salo imenso com uma fila
de cerca de 150 organizaes nordestinas que
queriam ter cpia do filme. Foram depoimentos
maravilhosos, eles choravam no cinema, no
agentavam a emoo. Quando eu falava que
era de Minas, o pessoal ficava indignado: O qu?
Voc no nordestino? Mas eu me identifico,
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voltou de Moscou tivemos uma reao surpreendente. A imprensa enlouqueceu com o prmio,
a reao foi maravilhosa. A o filme voltou a ser
lanado comercialmente. As crticas tambm foram boas, tanto no Brasil quanto no exterior, mas
o grande sucesso do filme foi junto ao povo. Os
cineclubes eram importantes na poca e atingiam
outras parcelas de pblico. Um exemplo: um dia
ligou para mim o presidente da Associao dos
Catadores de Papel dizendo: Eu vou fazer congresso e queremos mostrar o filme. Ns no temos
dinheiro, mas passamos o chapu. O que render
pagamos para vocs. Topamos na hora. Teve tambm a reunio do Clube dos Nordestinos. Foi emocionante assistir com eles. Eles no entendiam
como um diretor que no era nordestino tinha
feito um filme to bom.
E como foi essa relao com os nordestinos?
Tivemos uma certa imerso na realidade dos
nordestinos. Durante a preparao do filme, o Joo
ia muito nos bares de repentistas sentir um pouco
do clima, do estado de esprito, da alma deles. A
coisa do banzo, da tristeza, tudo isso tinha relao com o clima do filme. Foi uma experincia bem
interessante. Depois ele freqentou as exibies
populares onde o pblico torcia pelo filme. Tem
uma cena onde o personagem do Denoy de Oliveira, interpretando o mestre-de-obras, comea a
perseguir o Jos Dumont. Quando o Dumont escapa, o pblico aplaudia, gritava, como se fosse filme de bandido e mocinho. Era maravilhoso.
Como era a distribuio nos cineclubes?
No geral eram exibies em 16 mm. O filme passava em todo canto, todo mundo queria ver. No
incio era a Raiz (produtora do filme) que cuidava das cpias. Teve um momento em que a Federao dos Cineclubes, a Dinafilmes, passou a ter
suas prprias cpias que eram distribudas para
cineclubistas e movimentos sociais. Isso durou
muito tempo at a DinaFilmes fechar. Depois foi
a CDI que continuou a distribuio.
Foi uma carreira longa...
Na verdade, uma carreira que nunca terminou.
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Como foi todo o processo do filme desde quando voc foi convidado at o lanamento?
No festival de Gramado em 79, eu ganhei como
ator coadjuvante pelo filme Gaijin, os Caminhos
da Liberdade (dirigido por Tizuka Yamasaki). O
Joo viu meu trabalho e achou que eu estaria
prximo do que ele imaginava que fosse o homem que virou suco, me convidou e eu aceitei
no ato. Estava comeando e fui convidado para
fazer um filme com uma histria to interessante, to imaginativa, criativa e forte, que tinha tudo a ver comigo. Mas claro que isso me
levou a um estado de euforia, de insegurana,
afinal eram dois papis e uma obra intensa, profunda.
Como foi a construo do personagem e sua
repercusso na sua carreira e vida pessoal?
Eu fui para So Paulo ficar na casa do Joo. Procurei corresponder ao que o ele queria, absorver o mximo de informao que ele tinha. O
personagem tinha uma dimenso muito grande, afinal era uma homenagem, uma sntese de
todo nordestino, de todo imigrante. Tinha uma
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um ideal que ele tinha pensado. Era um personagem grande: a condio do homem, da identidade, o esmagamento do homem pela cultura. Eu travei um combate com meu passado a
partir do filme e ganhei meu primeiro round na
vida.
Como e quanto tempo duraram sua preparao
e as gravaes?
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Minha preparao foi de trs, quatro dias. Durante as filmagens das cenas, quando o Joo me dava
informaes, ele queria a grande conscincia da
realidade brasileira, mundial, da poltica do mundo. Mesmo assim, eu estava sempre com dvidas,
e algumas cenas eram to boas que ele deixava
eu fazer. Falava o texto e gerava algumas situaes reais nas quais era necessrio improvisar para
que o filme tomasse cor.
Como foi a filmagem da parte documental do
filme?
O Joo fazia um cinema em que ele criava um
fato e comeava a filmar, as coisas iam se modificando e ele registrava o cinema com provocao.
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fez subir e descer o elevador em alta velocidade, num vai-e-vem hilrio e de arrepiar.
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Um dia Deraldo encontra um ex-colega de trabalho que lhe conta que o patro ainda est
sua procura e o aconselha a tomar cuidado, pois
se eles se cruzarem no meio da rua, ele ser capaz de furar seu bucho com aquela peixeira enorme. Zombeteiro, do alto de sua sabedoria popular, o nordestino responde atribuindo
seus versos ao famoso personagem da literatura de cordel Cano de Fogo: Bem s pode estar
o sol / Porque ningum o alcana / Haja no mundo o que houver! / O sol l nem se imbalana /
Enquanto a fortuna dorme / A desgraa no
descansa.
Nessa poca, eu trabalhava na Dinafilme como
programador e esse filme foi contratado para
ser distribudo para os cineclubes, logo aps sair
de cartaz do circuito comercial. Revi, ento, no
Cine Belas Artes, onde fora lanado. Novamente
sobre mim a sensao avassaladora. Acho que
ainda o filme ao qual mais vezes assisti, por
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eram enormes. Na sua absoluta maioria, os cineclubes funcionavam em pequenas salas de sociedades de amigos de bairro, subsedes de sindicatos, sales paroquiais, garagens, ruas etc. Muitos
dos grupos tiveram que apelar para os padres
para fazerem sesses do filme tambm nas igrejas, cujos altares eram tampados com tela. Naquele grande salo se exibia o filme de forma
mais confortvel, sempre cobrando uma Taxa
de Manuteno inferior meia-entrada dos
cinemas comerciais. A renda era dividida entre
Cineclube, Dinafilme e Embrafilme, que mantinha com a Raiz Produes o contrato de distribuio do filme.
O filme foi programado para fazer duas sesses
no Cineclube da Vila Santa Catarina, zona sul de
So Paulo, ambas depois das missas. Na apresentao do sbado, o padre estranhou que a exibio tivesse mais pblico do que fiis para assistirem missa. Terminada a sesso, durante o debate, o pessoal da Opus Dei (tendncia de direita
radical da igreja catlica) alegou que o filme divulgava a pornografia. Explica-se: existe uma
183
Seu Armando, o Projeta, e o pessoal do Cineclube entraram em polvorosa. No podiam concordar com aquela censura e foram at a minha
casa expor a situao. Depois de muita conversa, chegamos nossa proposta: o filme seria
exibido e, na hora da cena, o projecionista faria
uma movimentao em volta do projetor (que
ficava no meio do pblico), desfocando a imagem e mantendo o som. Aps a cena focaria-se
novamente e voltaria ao normal. Simples, no?
Novo problema: quem faria isso. O pessoal do
Cineclube no tinha segurana e domnio suficiente do projetor para realizar a tarefa. L fui
eu, realizar a misso.
Comeou o filme: sesso lotadssima, mais gente
do que o dia anterior, e ningum saa da sala. Fazia calor, muito calor. Aproximava-se a cena fatdica, mantinha-se o combinado. O pessoal da Opus
Dei de bituca, na marcao. Desfoque. A platia inteira olhando para trs e para o projetor e
algum ento gritou: Olha o foco! Assovios. A cena
no terminava, parecia durar uma eternidade.
Outro grito: Ontem eu vi o filme..., e mais outro:
Ele mexeu na lente de propsito. O suor descendo frio pelo rosto. De repente, o silncio do filme
impera, respiro das personagens, pessoal do
Cineclube apreensivo em volta do projetor, e algum diz: Terminou a cena, volta o foco! A cena
focada volta bem na hora H... A platia vem
abaixo: gritos, vaias, assobios, palavres. Resultado: sufoco, meu mano, que sufoco!
Fato que a Opus Dei deflagrou uma campanha
contra o filme e, em todas as parquias que havia cineclube com essa programao, a exibio
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Mas ali estvamos ns, patticos, argumentando com o Batista para a cena do filme ser suprimida quando passasse em cineclubes de periferia. Joo Batista, apesar de saber que o filme seria
seriamente prejudicado e, penso eu, por mais
que pudesse entender nossa situao, jamais
abriria mo de uma questo vital como essa.
Batista deixou pra gente encaminhar a questo
da melhor forma possvel. Que sapos e lagoas
que j tivemos que engolir por este Movimento
e pelo cinema brasileiro.
Quando o filme ganhou o Festival de Moscou,
na poca um dos maiores do mundo, a recepo
foi feita no Cineclube Bexiga. O Ouro de Moscou foi exposto no saguo do Cineclube para
todos verem. A nata do cinema nacional foi l
prestigiar este cineasta que uma das mentes
mais brilhantes do cinema brasileiro. O filme foi
relanado no mercado comercial com relativo
sucesso de pblico.
Para ns, cineclubistas, permanece a certeza que
um filme s cumpre sua misso quando a razo
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de sua existncia for compreendida por seu pblico. Esse o papel do cineclubismo, e a trajetria do filme O Homem que Virou Suco entre
os cineclubes est repleta de momentos maravilhosos, como esses.
188
Felipe Macedo um dos fundadores do Conselho Nacional de Cineclubes (1974) e da Federao Paulista de Cineclubes (1975), entidades das
quais foi tambm diretor. Em 1976 organizou e
dirigiu a Dinafilme (distribuidora de filmes para
cineclubes). Em 1978, foi eleito para compor o
Comit Executivo da Federao Internacional de
Cineclubes (FICC), da qual foi tambm secretrio latinoamericano de 1980 a 84. Fundou vrios
cineclubes, como Oscarito (1985) e Eltrico
(1990). Foi programador de centros culturais,
como SESC e Aliana Francesa, e organizou ciclos
de filmes em bibliotecas municipais.
jornalista e trabalhou como pesquisador, redator e editor em diversas publicaes, como a
Revista TVA. Foi gerente de marketing da Empresa Sul, em So Paulo, de 1986 a 88. H cinco
anos, mora em Montreal (Canad), onde trabalha com traduo e legendagem de filmes. Mantm um stio sobre cineclubismo na internet:
www.utopia.com.br/cineclube.
Como foi a repercusso de O Homem Que Virou
Suco nos cineclubes na poca em que foi lanado?
A comercializao do filme do Batista foi uma
coisa indita. Um paralelo contemporneo talvez
fosse o Michael Moore liberando o filme dele
na internet ao mesmo tempo que lanado em
todo o mundo. O lanamento aconteceu simultaneamente nos cinemas comerciais e em cpias 16
mm nos cineclubes e outros pontos de exibio
atendidos pela Dinafilme. A esmagadora maioria
desses cineclubes era na periferia das grandes cidades, e os outros clientes da Dinafilme eram
projees ligadas a movimentos sociais que no
se constituam propriamente como cineclubes.
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Qual era o perfil do pblico? Tinha muito nordestino? Qual era a reao deles?
O Homem Que Virou Suco teve um enorme sucesso com esse pblico (e tem at hoje, pois ainda
exibido esporadicamente pelo Pas afora). Foi
durante muito tempo o filme mais alugado na
Dinafilme. Naquele momento, representava uma
verdadeira revoluo esttica, na medida em que
mudava o tratamento do protagonista popular, alm de adotar uma linguagem prxima
do documentrio e do cinema direto. Os filmes
brasileiros, inclusive e particularmente os do
cinema novo, pintavam, no mais das vezes,
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criminalidade, nem as drogas, que h hoje nesses mesmos bairros, nessas mesmas periferias das
mesmas cidades.
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nou seu patro no dia da entrega do prmiosmbolo, pela sua conduta exemplar.
Em Doramundo, Batista de Andrade procurou
quebrar o vnculo da platia para com as personagens centrais, atravs de uma no-compreenso das mesmas com os mecanismos que as oprimiam. Aqui em seu novo filme, Deraldo tambm
no compreende a complexidade que no permite sua efetiva participao, e sua teimosia lhe
d foras suficiente para interferir no sistema
opressor, numa busca desses mecanismos aparentemente ocultos, mas que sua peregrinao
aos poucos lhe revelar as contradies que cercam seus irmos de sangue.
Deraldo caminhar entre a construo civil, o
subemprego, o metr, tentar se adaptar entre
as classes mais elevadas, at que acuado ao extremo, se apercebe da necessidade de interferir
nesses obstculos que o fazem fugir continuamente. Deraldo parte em busca de uma explicao para sua situao; tentar encontrar seu ssia Severino e enfrentar a verdade que o levou
ao ato extremista de eliminar o patro. A investigao da realidade de Deraldo realizada de
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acordo com sua atuao consciente. Seu comportamento inquieto produto de uma noadaptao mquina que a todos espreme e
que, aps retirar o suco, devolve o bagao que
no pode mais ser aproveitado.
Deraldo perambula pela grande metrpole procura de uma explicao para o medo, a insegurana e a violncia que o acua cada vez mais. Sua
tentativa de participar em vo, pois o sistema
no quer sua contribuio, apenas necessita de seu
sumo. Dessa vez Deraldo ter de observar atentamente seu novo habitat, sob o risco de ser consumido sem maiores explicaes.
Batista de Andrade com isso logra o melhor
momento de sua filmografia, concretizando o
que o cinema brasileiro apenas teorizara durante a dcada passada. Em seu O Homem Que Virou Suco, realiza o legtimo cinema popular, pois
devolve personagem central a necessria vida
prpria para que possa por si s encontrar os
conflitos e se conscientizar atravs de sua interferncia, com os mecanismos que a oprime. O
didatismo de sua proposta emerge juntamente
com a sinceridade de Deraldo, brilhantemente
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seguintes termos: eles so o pblico leitor/ouvinte possvel do folheto O Homem que Virou Suco;
a literatura que Deraldo escreve fala desses operrios que constituem seu amplo pblico; eles
so o pblico espectador desejado do filme O
Homem que Virou Suco. Isso ocorria num domingo tarde, numa sala do cinema popular Art
Palcio (So Paulo), a qual estava quase vazia.
Estabelece assim uma relao entre o filme e o
folheto homnimo e podemos falar, no do filme-dentro-do-filme (como o caso, por exemplo, em Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira
dos Santos), mas, num mesmo sentido, do folheto-dentro-do-filme. A partir da, a personagem de Deraldo me parece ganhar uma nova
dimenso. Joo Batista fez um filme que se dirige intencionalmente a um pblico popular e
que fala intencionalmente desse pblico.
Para isso, ele criou um personagem popular.
Entre todas as profisses ou no profisses que
esse personagem podia exercer, Joo Batista escolheu a de poeta. E de um poeta que, por sua
vez, escreve sobre e para o povo, especificamente
sobre um operrio. Um operrio duplamente
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trabalhador que assimilara e defendia a ideologia do patro. O que, na obra de Joo Batista, talvez seja o ponto mximo da opresso.
justamente esse traidor o oposto dos operrios
que vemos nos quatro breves planos que
Deraldo tem que carregar como uma cruz. Entre
os dois encontramos afinidades e oposies.
Deraldo um artista da palavra, enquanto seu
ssia no fala nunca (se estou bem lembrado).
Os gestos do ssia louco ameaando inimigos
imaginrios com sua peixeira lembram os gestos
de Deraldo vestido de cangaceiro, no sonho,
investindo com a peixeira contra a roda de curiosos na rua.
Como poeta e intelectual, Deraldo est integrado no meio social de que e para que ele fala.
um intelectual do povo, o que o diferencia dos
intelectuais que se encontravam em filmes do
Cinema Novo na dcada de 60. A harmonia
perfeita na seqncia do dormitrio: ele o
letrado que l e escreve cartas familiares para
os operrios analfabetos, uma das poucas
seqncias em que Deraldo no agredido ou
agride.
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Por outro lado, Deraldo no est inserido na produo como os outros operrios do filme. No
pra em lugar nenhum. Alm de poeta, no tem
capacitao especfica. Ele solitrio e solto. A
sua mobilidade permite ao filme fazer um corte
vertical na sociedade: favela, burguesia, construo civil, metalrgicos, mendigos, etc. Essa mobilidade aproxima Deraldo de muitos personagens do Cinema Novo, e sua diferenciao em
relao aos operrios lembra a posio ambgua
que ocupava o personagem principal de A Queda (Nelson Xavier, Ruy Guerra).
Esse fenmeno de identificao/no-identificaao permite a Deraldo cristalizar sobre si a
dor, a opresso e a revolta do operrio, em nvel
individual. O que se manifesta na agressividade
constante de Deraldo, mas em particular numa
belssima metfora: ele est sozinho numa espcie de corredor feito de tbuas que leva os operrios do metr ao refeitrio. Jos Dumont tem
gestos lentos e interiorizados que criam uma
expectativa, algo parece estar para acontecer,
mas o espectador no sabe o qu. Lentamente,
Dumont vai esfregando o ombro contra uma
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marginais, e temas localizados, como o xodo nordestino, a migrao interna no Brasil, e a senda do
migrante na cidade de So Paulo, sua dificuldade
em adaptar-se na metrpole, sua desventura ante
a qualidade de vida e a tirania dos processos
econmicos, sua marginalidade, seu Xanadu desmoronado, levando-o indigncia existencial,
desumanizao, sarjeta, ao regresso com sabor
de derrota, loucura, morte. J o ttulo do filme
assinala uma metamorfose, a transformao do
migrante nordestino em massa liquefeita.
A caracterstica de cinema-verdade que, neste
filme em particular, se ressalta por uma pobreza de ordem econmica de produo, decorre
provavelmente da prpria situao econmica
do cinema cultural, discriminado pela cpula
dirigente do cinema brasileiro que, via de regra,
tem prestigiado as produes do cinema dito
comercial. Decorre desse fato, em grande parte,
o fracasso de bilheteria, proveniente da exgua
publicidade. Porm, se por um lado, nem sempre os fatores de ordem econmica so determinantes da boa ou m qualidade artstica de um
filme, conforme atesta ampla filmografia, em O
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tinta de alguns clssicos como Ladres de Bicicletas (De Sica, 1948), em que a cmera passeia sobre
a multido, e se decide aleatoriamente sobre um
personagem para narrar-lhe a histria (histria que
se assemelha de cada indivduo da multido),
em O Homem que Virou Suco a saga do protagonista Deraldo Jos da Silva (Jos Dumont) representa metaforicamente a histria de todas as levas
de nordestinos que aportam diariamente em So
Paulo, e que o mecanismo econmico aprendeu a
absorver como coisa, como especial mo-de-obra
desqualificada e barata.
H um trecho no filme denominado O Heri Ridculo, na verdade um audiovisual projetado a
postulantes de emprego que diariamente se dirigem s obras do metr, e que conta a histria
de um tal de Antonio Virgolino da Silva, cabramacho, livre, acostumado s vaquejadas, mas
que em So Paulo forado a descaracterizar-se
para manter o emprego, o alojamento, a comida. O nome Virgolino, estreitamente vinculado
a Lampio, Rei do Cangao, obviamente se
reporta ao destemor, dimenso herica do
homem nordestino. A projeo do audiovisual,
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patronais denunciando seus companheiros, recebe ttulo honorfico, mas despedido da empresa, e por isso acaba cometendo o assassinato que
o conduz loucura; o poeta, rebelde, nega o status
quo, e sobrevive. Enquanto o poeta de cordel se
pe a escrever em versos um livreto sobre as desventuras de Severino, o homem que virou suco, as
situaes transpostas na tela acabam se transformando na prpria elegia de Deraldo, o migrante
inconformado com a situao.
Com efeito, O Homem Que Virou Suco se apresenta como um discurso crtico, fiel a seu estilo
cinematogrfico e, ao mesmo tempo, criativo.
Embora se apresente como um caracterstico filme
engajado, consegue manter um nvel de linguagem equilibrada entre os limites da realidade
esttica. Desenvolve uma expresso cinematogrfica fora dos padres, mas estimulante, vigorosa
e poeticamente significativa. Por isso, trata-se de
obra importante na filmografia brasileira.
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Ps-crtica
A Crtica Vista por Joo Batista de Andrade
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Uma obra de arte sempre um enigma a ser desvendado, no exatamente o que o autor planejou nem exatamente o que o expectador pensa
que . E nem sempre os elementos mais aparentes so os mais importantes. O papel da crtica,
nesse sentido, seria o de se aprofundar mais na
obra em si mesma e descobrir nela, na sua forma
de ser, o seu fundamento, o seu contedo. Pra
ser radical, eu acho que toda obra de arte traz
dentro dela a sua prpria proposta de crtica, isto
, aponta ela mesma para o sentido maior de sua
forma. O exerccio crtico aqui ento entendido
como um exerccio profundo, elucidador, capaz
de buscar no filme, em sua particularidade, valores universais e, assim, incorporar essa reflexo (a
crtica) no universo da criao, da cultura.
Pra dar uma idia dessa necessidade, eu lembro o que aconteceu com meu filme O Homem
Que Virou Suco. As crticas foram excelentes,
vistas sob o ngulo estrito do pessoal: elas foram boas para minha neurose e para o filme
enquanto mercado e prestgio. Mas eu acho que
so falhas.
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viviam, e vivem, mas que na verdade toda a sociedade vivia e vive ainda hoje em contraposio
ao autoritarismo. Por isso importante para
todos aquele gesto de um homem simples, que
no vale nada (isso capitalismo), afirmar ali que
vale, que se preocupa com um detalhe to insignificante mas humanizador: os plos do nariz.
No vamos caricaturar o que estou dizendo. No
queria uma crtica sobre os plos do nariz (mas
ela poderia ter havido...), queria uma crtica que
revelasse no filme o seu aspecto fundamental,
que o faz to popular apesar da linguagem louca
que tem: a questo da identidade, da cidadania
do homem brasileiro no ano especfico (e at
hoje) de 1979, ano das greves, da anistia, do
revigoramento mpar da luta contra o autoritarismo. Coisa que no era inteno inicial do projeto que, como eu disse, era at negativista, pois
se dirigia viso do sistema que esmaga e no
como ficou, do homem que luta contra esse esmagamento. No quero aqui deixar parecer que
no h crticos bons no Brasil, seria entrar num
terreno que no interessa: h crticos excelentes
com espaos minguados para poderem desen-
volver o que pensam. Evidentemente que o terreno que escolhi para escrever aqui sobre a relao crtica/cinema foi outro.
Joo Batista de Andrade
So Paulo, 23 de Setembro de 1983
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VIII. Anexos
VIII-A
Ficha Tcnica O Homem Que Virou Suco
Argumento, roteiro e direo
Joo Batista de Andrade
Fotografia
Aloysio Raulino
Cenografia
Marisa Rebollo
Montagem
Alain Fresnot
Msica e Textos Poticos
Vital Faria
Direo de Som (Som Direto)
Romeu Quinto
Produo Executiva
Assuno Hernandes
Direo de Produo
Wagner Carvalho
Assistente de Direo
Adilson Ruiz
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Cmera
Aloysio Raulino
Assistente de Cmera
Eduardo Poyano
Continusta
Dulcinia Gil
Assistentes de Produo
Big Nilson Villas Boas / Rubens Xavier
Secretrio de Produo
Roberto Ramos
Eletricistas
Paulo Alves / Lus A. Tadeu da Silva
Still
Joo Farkas / Nellie Solitrenick
Assistente de Som
Paulo Mrcio Galvo
Assistente de Montagem
Danilo Tadeu
Maquiagem
Paulo Lago / Clia de Lima
Microfonista
Paulo Mrcio A. C. Galvo
Consultor de Imagem
Joseph Illes
Laboratrio de Imagem
Flick
Estdio de Som
Stop Som
Mixagem
Walter Rogrio
Produo
Raiz Produes Cinematogrficas
Embrafilme
Governo do Estado de So Paulo
(Secretaria de Cultura)
Joo Batista ensaia Clia Maracaj e Jos Dumont
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VIII-B
Biografia do diretor e Roteirista de
O Homem Que Virou Suco
H quase 40 anos Joo Batista de Andrade atua
como um dos mais importantes cineastas brasileiros. Nascido em Ituiutaba, em 1939, Batista veio
a So Paulo em 1960, para cursar Engenharia na
Escola Politcnica. Logo se filia ao Partido Comunista e participa ativamente do movimento estudantil. Junto com Franscisco Ramalho Jr. e Clovis
Bueno cria um grupo de produo cinematogrfica e participa ativamente de vrias produes.
Em 1966 realiza seu primeiro filme, o hoje clssico Liberdade de Imprensa. O filme, aps uma
nica exibio em So Paulo e outra no Rio,
apreendido pelos militares. S 30 anos depois
ser relanado, evidenciando suas inovaes de
linguagem e sua importncia na histria do
documentrio brasileiro.
Em 1969 dirige Gamal, o delrio do sexo, seu primeiro longa que receber os prmios Air France
de diretor (revelao) e atriz (Joana Fomn). Gamal
se tornar uma das obras mais importantes do
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S em 1995 volta ao cinema, com o longametragem O Cego Que Gritava Luz, premiado
no Festival de Braslia como melhor filme e tambm como melhor ator, Tonico Pereira.
Em 1999 realiza o longa-metragem O Tronco,
adaptao do romance homnimo de Bernardo
Elis. Em 2002 lana Rua Seis, Sem Nmero, filme
em digital e de baixo oramento.
No momento est finalizando seu prximo longa-metragem, Veias e Vinhos, e preparando seu
prximo filme, sobre o jornalista Vladmir
Herzog, seu parceiro de produo na poca da
TV Cultura.
VIII-C
A Censura do Filme na TV
Carta do diretor
A respeito da proibio, para a TV,
de meu filme O Homem Que Virou Suco
Recebo com grande indignao a notcia da proibio de meu filme O Homem Que Virou Suco,
para a TV. No h nada que justifique mais esta
arbitrariedade da censura contra a cultura e contra o cinema brasileiro. Meu filme j passou em
tantos cinemas, em tantas cidades, j foi vendido
para o exterior, visto por tudo quanto tipo de
pblico; qual ento o sentido da proibio? Que
eu saiba, a exibio do filme at aqui no provocou
nenhuma revoluo e nem derrubou ministros
nem secretrios, no gerou nenhum perigo de
qualquer tipo de catstrofe poltica ou social. Afinal, meu filme apenas um filme, uma reflexo
livre a respeito de coisas que nos dizem respeito,
que me inquietam e que certamente inquietam o
pblico e tambm as autoridades (seno elas no
proibiriam o filme...).
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Eu vejo esse ato como uma castrao de meu trabalho, de minha criatividade, e como uma imposio
a milhes de pessoas que, por uma deciso solitria de um censor, se vem privadas de um direito:
o de ver o filme. A censura, assim, se sobrepe
nao, ao pblico, ao povo brasileiro. a pior tutela do Estado, num momento em que, exatamente, se luta para eliminar da vida brasileira o tradicional autoritarismo que subjuga as pessoas, desorganiza a sociedade, confunde e justifica a violncia institucional. O caso da proibio de meu filme
no um ato isolado: ele vem se somar ao grande
nmero de arbitrariedades cometidas contra a
cultura brasileira desde que o governo resolveu
virar as costas para a maioria do povo brasileiro e
atender as minorias atrasadas e intolerantes que
cercam o poder no Brasil. Tivemos a proibio do
Pra Frente Brasil, os cortes deformadores e absurdos no Das Tripas Corao, a proibio de vrios
filmes, a perseguio moralista em cima do ertico
e do poltico. Essa escalada representa o aumento
do poder do Estado sobre a livre expresso da sociedade e de seus artistas; o aumento do poder de
controle exercido pelo Estado contra a criatividade
do homem brasileiro, pois a criatividade incomoda o poder autoritrio. Vejo a censura a meu filme
como um ato exclusivamente poltico do governo, no sentido de inviabilizar a produo cultural
brasileira ou de reduzi-la a um monte de pastiches
informes e sem vida, sem criatividade, sem crtica,
sem inquietao.
H pouco tempo, a TV exibiu meu filme Doramundo. Para liberar o filme, sem que eu soubesse, a
censura efetuou cortes absurdos com sentido nitidamente de deformar o filme: foi cortada, por
exemplo, a cena de amor entre os personagens
Teodora e Raimundo (de onde a palavra Doramundo), onde os dois nem nus esto, uma cena
absolutamente potica e sem qualquer malcia. A
cena, alis a seqncia, foi cortada ento somente
com o intuito de destruir o filme, de criar uma
dificuldade no relacionamento filme / pblico e
assim, quem sabe, jogar o pblico contra o cinema brasileiro. No vejo outra razo, na medida
em que cenas tremendamente mais fortes passam
tranqilamente em outros filmes nitidamente
comerciais.
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Nesse momento da vida brasileira, acho inadmissvel tais arbitrariedades. Nem eu, nem ningum,
pode aceitar essa castrao imposta a 130 milhes de brasileiros. Estou nesse momento pedindo Embrafilme que reencaminhe o filme para
a censura, seguindo todas as instncias possveis,
at mesmo o Conselho Superior de Censura, apesar de sua desfigurao recente, tambm um ato
de arbitrariedade. Acho tambm que o conjunto da sociedade deve se manifestar contra essa
escalada da censura, protestar contra essa tutela
indesejvel. Afinal, o que est em jogo so coisas
muito caras a todos ns: a liberdade, a democracia, o respeito aos direitos do homem.
VIII-D
Prmios Alcanados Pelo Filme
O Homem que Virou Suco
1980
MELHOR ATOR no Festival de Braslia
1981
MEDALHA DE OURO no Festival Internacional
de Moscou
MELHOR ROTEIRO e MELHOR ATOR no Festival
de Gramado
MELHOR ATOR no Festival Internacional de
Huelva (Espanha)
PRMIO MRITO HUMANITRIO Juventude
Sovitica Moscou
1982
PRMIO DE QUALIDADE, CONCINE (Brasil)
1983
PRMIO DA CRTICA no Festival de Nevers (Frana)
PRMIO SO SARU, pela Federao dos
Cineclubes do Rio de Janeiro
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244
ndice
Apresentao - Hubert Alqures
05
15
21
O Folheto de Cordel
39
O Roteiro
57
145
Entrevistas e Depoimentos
155
Fortuna Crtica
193
Anexos
Ficha Tcnica O Homem Que Virou Suco
231
245
235
A Censura do Filme na TV
239
243
246
Coleo Aplauso
Perfil
Anselmo Duarte - O Homem da Palma de Ouro
Luiz Carlos Merten
247
Ieda de Abreu
Especial
Dina Sfat - Retratos de uma Guerreira
Antonio Gilberto
Cinema Brasil
Bens Confiscados
Roteiro comentado pelos seus autores
Carlos Reichenbach e Daniel Chaia
Cabra-Cega
Roteiro de DiMoretti, comentado por Toni Venturi
e Ricardo Kauffman
O Caador de Diamantes
Vittorio Capellaro comentado por Maximo Barro
Casa de Meninas
Incio Arajo
De Passagem
Roteiro de Cludio Yosida e Direo de Ricardo Elias
Dois Crregos
Carlos Reichenbach
249
A Dona da Histria
Roteiro de Joo Falco, Joo Emanuel Carneiro e Daniel Filho
Narradores de Jav
Eliane Caff e Lus Alberto de Abreu
Teatro Brasil
Alcides Nogueira - Alma de Cetim
Tuna Dwek
Trilogia Alcides Nogueira - peraJoyce Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso Plvora e Poesia
Alcides Nogueira
Cincia e Tecnologia
250
Cinema Digital
Luiz Gonzaga Assis de Luca
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253
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7/12/2009, 18:31