Pierre Bourdieu - A Ilusão Bibliográfica
Pierre Bourdieu - A Ilusão Bibliográfica
Pierre Bourdieu - A Ilusão Bibliográfica
Captulo
A iluso
biogrfica*
Pierre
Bourdieu
isto , um caminho
que perconemos
um caminho,
entre o vicio
Romains fala
ou como um
percorrido, um trajeto, lima corrida, Ull1 CllrSllS, lima passagem, urna viagem, lIm percurso orientado, lIm deslocamento
linear, unidirecional
(a
umobilidade"), que tem um come<;o (Uuma estria na vida"), etapas e um
fim, no duplo sentido, de trmino e de finalidade (Uele far seu caminho"
significa ele ter exito, far urna bela carreira), um fim da histria. Isto
aceitar tacitamente a filosofia da histria no sentido de sucessao de
* Bourdieu,
63):69-72,
1986.
184
Usos
ORAL
supostos
indiscernveis
Sem pretender ser exaustivo, pode-se tentar extrair alguns presdessa teoria. Primeiramente, o fato de que a vida constitui um
a um investigador,
sempre em sua es-
A IlUSAO
BIOGRAFICA
185
institui<;ao como causas ou, com mais freqencia, como fins, Conta com a
cumplicidade natural do bigrafo, que, a come<;:ar por suas disposi<;oes de
profissional da interpreta<;ao, s pode ser levado a aceitar essa cria<;ao artificial de sentido.
significativo que o abandono da estrutura do romance como
relato linear tenha coincidido com o questionamento
da visao da vida como existencia dotada de sentido, no duplo sentido de significa<;ao e de dire<;ao. Essa dupla ruptura, simbolizada pelo romance de Faulkner O som
e a Jria, exprime-se comtoda a clareza na defini<;ao da vida como antihistria proposta por Shakespeare no fim de Macbeth: " urna histria
contada por um idiota, urna histria cheia de som e de fria, mas desprovida de significa<;ao". Produzir uma histria de vida, tratar a vida como
urna histria, isto , como o relato coerente de urna seqencia de acontecimentos com significado e dire<;ao, talvez seja conformar-se com urna
ilusao retrica, urna representa<;ao comum da existencia que toda urna tra-
di<;ao literria nao deixou e nao deixa de refor<;ar. Eis por que lgico
pedir auxilio aqueles que tiveram que romper com essa tradi<;.ono prprio terreno de sua realiza<;ao exemplar. Como diz Allain Robbe-Grillet, "o
advento do romance moderno est ligado precisamente a esta descoberta:
o real desconrnuo, formado de elementos justapostos sem razao, todos
(o
em
de
(e, implicitamente,
tencia que essa conven<;ao retrica implica. Nada nos obriga a adotar
filosofia da existencia que, para alguns dos seus iniciadores, indissocivel dessa revolu<;ao retrica;3 mas; em todo caso, nao podemos nos furtar a questao dos mecanismos sociais que favorecem ou autorizam a
experiencia comum da vida como unidade e corno totalidade. De fato,
como responder, sem sair dos limites da sociologia, a velha indaga<;ao
empirista sobre a existencia de um eu irredutivel a rapsdia das sensa-
2 Robbe-Grillet,
E Le mtier d'ducatew:
Paris, Minuit,
1983.
particular
tencia,
ali aparece,
da menor
1984. p. 208.
mesmo e tiio
a todo instante,
como gratuito,
e toda exis-
significa<;iio unificadora"
(Robbe-Grillet,
1984.).
186
Usos
<;oes singulares?
ativo, irredutvel
a normalidade
com a
identidad e entendida como constancia em si mesmo de um ser responsvel, isto , previsvel ou, no mnimo, inteligvel, a maneira de urna histria bem construda (por oposi<;ao a histria contada por um idiota),
dispoe de todo tipo de institui<;oes de totaliza<;ao e de unifica<;ao do eu.
A mais evidente , obviamente,
r-
A IluSAO BIOGRFICA
autentica
187
essa identidade,
de um
sibi,
uni-
versos sociais, os deveres mais sagrados para consigo mesmo tomem a forma de deveres para com o nome prprio (que tambm, por um lado,
sempre um nome comum, enquanto nome de famlia, especificado por um
prenome). O nome prprio o atestado visvel da identidade do seu portador atravs dos tempos e dos espa<;os sociais, o fundamento da unidade
de suas sucessivas manifesta<;oes e da possibiJidade socialmente reconhecid a de totalizar essas manifesta<;oes em registros oficiais, curriculum vitae,
cursus honorum, ficha judicial, necrologia ou biografia, que constituem a
gido", segundo a expressao de Kripke, "designa o mesmo objeto em qualquer universo possvel", isto , concretamente, seja em estados diferentes
vida na totalidade
do mesmo campo social (constancia diacr6nica), seja em campos diferentes no mesmo momento (unidad e sincr6nica alm da multiplicidade das
posi<;oes ocupadas).4 E Ziff, que define o nome prprio como "um ponto
fixo num mundo que se move" tem razao em ver nos "ritos batismais" a
maneira necessria de determinar urna identidade. s Por essa forma intei-
ferentes as particularidades
fluxo das realidades biolgicas e sociais. Eis por que o nome prprio nao
pode descrever propriedades
nem veicular nenhuma
informa<;ao sobre
aquiJo que nomeia: como o que ele designa nao senao urna rapsdia heterogenea e disparatada de propriedades biolgicas e sociais em constante
muta<;ao, todas as descri<;oes seriam vlidas somente nos limites de um es-
agente, isto , em todas as suas histrias de vida possveis. o nome prprio "Marcel Dassault", com a individualidade
biolgica da qual ele representa a forma socialmente instituda, que assegura a constancia atravs
tgio ou de um espa<;o. Em outras palavras, ele s pode atestar a identidade da personalidade, como individualidade
socialmente constituda, a
analysis. lthaca,
Cornell
University
o produtor
signum authenticum
1982; e tambm
Press,
de filque
ou definitivo.
"Designador
rgido",
o nome prprio
circunstanciais
l forma
e aos acidentes
individuais,
no
custa de uma formidvel abstra<;ao. Eis o que evoca o uso inabitual que
Proust faz do nome prprio precedido do artigo definido ("o Swann de
Buckingham
de entao",
"a Albertina
encapotada
dos
Engel, P Identit
1960. p. 102-4.
por ex-
6 Nicole, E. Personnage
et rthoriqlle
1981.
188
Usos
7 A dimensao
propriamente
biolgica
da individualidade
de identidad e -
que o estado
e o lugar, isto , os espa~os sociais que lhe dao urna base muito menos
mera
defini~ao
ver Maresca,
nominal.
(Sobre
S. La rprsentation
vail de rprsentation
38:3-18, mai 1981.)
as varia~oes
da hexis corporal
de la paysannerie;
des dirigeants
agricoles.
civil apreende
remarques
segundo
segura
sob
o tempo
do que a
os espa<;os sociais,
ethnographiques
sur le tra-
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A IlUSAO BIOGRFICA
direta
ou mediata
de situac;oes
equivalentes
usos
190
tivas entre as diferentes esta<;:6es.Os acontecimentos biogrficos se definem como coloca(:oes e deslocamentos no espa<;o social, isto , mais
precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribui<;aodas diferentes espcies de capital que estao em jogo no campo considerado. O sentido dos movimentos que conduzem de urna posi<;ao a
outra (de um pasto profissional a outro, de urna editora a outra, de urna
diocese a outra etc.) evidentemente se define na rela<;ao objetiva entre
o sentido e o valor, no momento considerado, dessas posi<;6es num espa<;:oorientado. O que equivale a dizer que nao podemos compreender
urna trajetria (isto , o envelhecimento social que, embora o acompanhe
de forma inevitvel, independente do envelhecimento biolgico) sem
que tenhamos previamente construdo os estados sucessivos do campo no
qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das rela<;6esobjetivas que uni-
vidualidade
poderes
biolgica
notadamente
si~6es mlriplas
cluindo
dutores
efici-
no traramento
a quesrao
e5tatstico;
da superficie
entre
ourras
que tambm
coisas,
principal
do campo).
eliminar
o agente
eficiente,
e a pcrsollalidade,
e dotada
du.
como
indi-
de propriedades
e de
15s0 suscita
cuja atividade
propriedades
campos.
construido,
num campo,
pela nomina~ao
o dono de indstria
que implica,
e o individuo
eficiente
instituida
em diferentes
as "elites" escamoteiam
concreto
o agente,
socialmente
como agente
evidente
plicada
intervir
numerosos
problemas
considerada
dono de jornal
dos campos
se situa em ourros
dominante
de produ~ao
campos,
05 individuos
deixando
sobre
em po-
ou determinante,
na categoria
dos donos
culrural
escapar
de
normalmente
todos
in-
etc. (o
os pro-
assim cenas
A !lUSAO BIOGRAFICA
191
compreender que nao se tenha imposto de imediato a todos os pesquisadores, se nao soubssemos que o indivduo, a pessoa, o eu, "o mais insubstituvel dos seres", como dizia Gide, para o qual nos conduz
irresistivelmente urna pulsao narcsica socialmente refor<;ada, tambm a
mais real, em aparencia, das realidades, o ens realissimum, imediatamente
entregue a nossa intui<;ao fascinada, intuitus personae.